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ALICE, MUITO ALÉM DE 1984

Na obra 1984, o autor George Orwell aponta para o Grande Irmão que vê
tudo, até o nosso duplipensamento. Orwell projeta o futuro numa crítica
a falta de opção da sociedade da época. Foi o que aconteceu com
Winston, que tinha atitudes contrárias ao Partido, como anotar num
caderno suas ideias.
Assim, Winston corria o risco de se tornar “impessoa”. Portanto, todos os
seus registros poderiam ser apagados. Seria uma pessoa que nunca
existiria.
Seria isso hoje uma versão de: “posto, logo existo”? Se não postar, sou
impessoa?
Emboscados no olho do ‘Grande Irmão’, necessitamos que seja feito o
grande compartilhamento, assim no Facebook como no Twitter e no
Instagram. O olho envia, curte e compartilha causas, aplicativos e
imagens, em gigante palco virtual que engoliu o planeta. A sociedade
caminha para a profecia cinematográfica de George Orwell convergindo
para um espelho negro, que reaparece na visão do diretor Charlie Brooker
na série “Black Mirror”.
Em 2012, Brooker iniciou Black Mirror abordando de forma impactante os
efeitos colaterais da tecnologia. Personagens zumbis na tela apareceram
escravizados pelos smartphones e pelo olhar cabisbaixo. Viviam mundos
irreais em simulações que imaginavam reais.
Black Mirror passou a ser vista como série antológica, cuja crítica social é
forte, sufocante e realista.

A NARCOLEPSIA DO HOMEM DAS REDES SOCIAIS


Em 2021, o novo homem é o narcisista das redes sociais que hoje vive um
estado de narcolepsia porque não quer despertar do sono eletrônico.
Vivemos no mundo do espelho de Alice, com muita perfumaria de
imagens e pouca realidade. Um espelho de Alice no país das maravilhas
eletrônicas.
O homem está enfraquecido pelo excesso de imagens, consumo,
solicitações e informações artificiais. Isso nos leva a uma desorientação
sobre a vida, sobre nossas próprias escolhas.
Estamos confusos com tantos catálogos a escolher. Começando pelos da
Netflix.
Em Alice no País das Maravilhas, ao atravessar o espelho, a menina
encontra uma realidade simulada, uma realidade que não é de fato
verdadeira.
Dentro desse espelho, há um coelho apressado, nos braços de Morpheus,
o deus do sono. A pressa hoje é uma característica da sociedade e por
causa dessa pressa, vivemos apenas um recorte da realidade. Vivemos
num mundo de simulação, o mundo é um simulacro. Tudo é urgência
porque repetimos o comportamento do coelho de Alice: “É tarde, é muito
tarde”.
Somos levados aos 15 segundos. Nossa vida necessita ser postada em
quadrinhos de 15 segundos de stories.
E de quadro em quadro, somos levados a um universo oceânico de
informações.
Vivemos vorazes por novidades. Também estamos vorazes por consumo,
por cultura, por estilos de vida.
Esse excesso de informação leva à desinformação. O aumento da
conectividade e o crescimento exacerbado das redes sociais nos motivam
a uma solidão interativa.
Buscamos ter mais curtidas, comentários e compartilhamentos, o que tem
formado um homem cada vez mais narciso e com menos vínculos reais.
Na solidão da multidão em rede, o homem se submete a ilusão do
encontro.
A ERA DO VAZIO
Estamos vivendo a era do vazio. E estamos vazios justamente pelo excesso
de informações e solicitações nas redes sociais.
O pensador Gilles Lipovestky descreve a sociedade contemporânea como
sendo de hábitos a “La Carte”, acreditando que a ‘era do vazio’ esteja
ligada a um tempo de desorientação agravada pelo individualismo e pelo
excesso de ofertas sobre tudo: viagem, diversão, alimentação, dieta,
roupas, carros, etc. Se, ao final desse menu, a satisfação não for
encontrada, há ainda opções de medicações, psiquiatras, medicina
alternativa e religiões. “Há, portanto, com a sociedade de hiperconsumo,
uma fragilização dos indivíduos”.
Desse modo, a comédia e a tragédia se espetacularizam do palco das
redes sociais. Nada escapa à espetacularização da vida
O eu foi espetacularizado, não importa que seja sob forma de tragédia ou
vitimização.
“A humanidade virou frágil personagem de si mesmo. Escoa na
modernidade líquida, como teorizou Zygmunt Bauman.

GERAÇÃO DE BAIXADOS E NASCIDOS


Somos geração ciborgue. O nosso deus é onipresente porque é versão
www. O conectamos ao despertar, porque ao acordar, acionamos o
celular. Ele é iGod.
Hoje temos a visibilidade como trunfo, mesmo por algo que não se
conquistou. Não precisamos virar heróis e termos talentos além da conta,
só precisamos ser ciber.
Uma frase de Sartre não me sai da cabeça. Ela é verídica: “O homem está
só em sua solidão visceral”, mas também teria nova roupagem: “O homem
está só em sua multidão virtual”.
O autor Pierre Levy enxerga na cibercultura potencialidades positivas A
tecnociência produziu tanto a bomba atômica quanto as redes interativas.
Mas então porque estamos aflitos em rede?
Porque estamos indiferentes pelo excesso.
Estamos no eterno grande olho das redes sociais, em uma servidão
voluntária, falando dos nossos problemas como se o Instagram, o
Facebook, a thread do Twitter fossem consultórios psiquiátricos gratuitos
com auditório.
Se o nosso eu “pirou”. Viramos vedetes, palco e plateia. Viramos frágeis
personagens de nós mesmos.
O FacebooK como psiquiatra da cibercultura, incita: “no que você está
pensando?”
Estimula você a postar os desabafos. E jogamos tudo na linha do tempo,
queremos que curtam, compartilhem e comentem. A era do 3C.
Nossos medicamentos são googleáveis.
É só “dar um google” e encomendar na farmácia on-line sertralina,
ritalina e diazepan.
Pagar com Master Card no crédito. Depois, postar uma selfie sorrindo
(sem os remédios, claro). A felicidade dá o tom das redes.
Vivemos relações de baixados e nascidos”. O impacto na sociedade
começa com a pergunta da geração Y. “Pai, eu fui baixada ou eu fui
nascida.?”, disse uma menina em um vídeo analisado por pesquisadores.
Um professor, pós-doutor em cibercultura, que aprendi a admirar porque
ele une Friedrich Nietzsche, filosofia e tecnologia, Francisco Menezes
Martins, alerta que estamos pastoreando na rede. A realidade concreta foi
modificada, inundada pela realidade virtual. Ele diz que a internet pode
ser graça ou desgraça.
Hoje, somos editados pelo acaso. Em alguns anos de internet, a revolução
“ciber” modificou de forma acentuada os meios de comunicação, o modo
como se leem as notícias. A internet forneceu um novo jeito de fazer
jornalismo, a inteligência colaborativa da rede faz com que todos
sejam “editados pelo acaso”. Somos uma sociedade de vigilância. Com a
rede social, o flagrante deixou de ser propriedade do jornalista. Enquanto
o desafio do jornalista, é trabalhar o que não está no Google e lidar com
uma nova tecnologia em que os “algoritmos” são o novo poder da
sociedade.

A cibercultura ajuda a captar novos modelos de negócios. Essa é a parte


boa e produtiva. Por isso, é inútil resistir a tecnologia, porque precisamos
nos atualizar na pós-modernidade.
Mas também acende o sinal de alerta chamando atenção para o lado B.
“A digitalização por si só não constrói uma sociedade mais democrática.
A internet gera celebridades, que depois são remanejadas para a
televisão. A visibilidade virou trunfo na cibercultura. O dilema moderno se
resume em: postar e existir porque postou. Se posto, tenho brilho. Será?

CARAMELOS DIGITAIS
O ator Othon Bastos, há muitos anos, narrou uma comercial sobre futuro
tecnológico, que eu guardo até hoje:
“Para onde estará a tecnologia nos levando”.
Quando conseguimos ser por um instante passageiro, é passageiro. Por
mais visceral que seja a mudança algo permanece não muda.
“A gente não sabe querer coisas diferentes, só sabe criar coisas diferentes
de querer as mesmas coisas.” Por mais tecnologia que tenhamos, somos
frágeis, emocionais e continuamos com medo do escuro.
Talvez o próximo passo além do último seja o retorno para dentro de si.
Uma vez, um amigo meu disse-me: as redes sociais são a tarja preta da
vida moderna. Nem tudo pode ser tão apocalíptico assim.
Mas, observamos neste ponto certa semelhança relacionada a narrativa
de George Orwell, vislumbrando um cenário de servidão e vigilância da
sociedade sob domínio do Grande Irmão na obra “1984”. Estamos
mergulhados em um grande e vigilante olho.
Sentimos síndrome de abstinência quando não podemos nos relacionar
com o nosso algoritmo social. Ele nos faz tão bem. O celular são nossos
caramelos digitais.
Lembro aqui do fim emblemático de 1984: “Winston já não corria nem
dava vivas.... Finalmente vencida a batalha contra si mesmo. Amava o
Grande Irmão.” Servidão virtual.

*Narcolepsia “é o que padece diariamente toda a sociedade que adormece diante de um


monitor depois de tomar conhecimento das atrocidades do mundo narradas pelos
telenoticiários. Não queremos despertar do sono eletrônico que nos permite entrar em
contato com as emoções mais profundas a partir da segurança de um voyeur.”
Bibliografia
• 1984 – George Orwell
• Alice no País das Maravilhas – Lewis Caroll
• A Era do Vazio – Gilles Lipovetsky
• Modernidade Líquida - Zygmunt Baumann
• Black Mirror – série britânica

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