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APROFUNDAR
A missa cheira a mofo?
Devo dizer que não fui eu que inventei este título. Mas
admito que me ri várias vezes sozinho com a pergunta
provocadora que me propuseram como ponto de partida para
esta reflexão. No entanto… confesso que os meus
sentimentos eram estranhos… complexos… quase
contraditórios. Como se o meu riso tivesse um retrogosto
profundamente… amargo…

Quando estamos demasiado habituados a uma realidade e,


talvez por ignorância, não a tomamos muito a sério, com
facilidade fazemos piadas e rimo-nos. Assim parecemos
grandes… superiores… e mais inteligentes do que os outros.
A missa, e a liturgia em geral, é uma destas realidades.

Não o fazemos por mal mas… a verdade é que nós somos filhos da Modernidade, do Iluminismo e da
Revolução Francesa. Esmagámos o obscurantismo e a crendice dos simples, erguemos bem alto um
cérebro humano (talvez de uma das vítimas da nossa sanha libertadora…) e gritámos aos quatro ventos:
“Eis o homem!”.

Para os filhos deste novo Prometeu, a missa tem obrigatoriamente que cheirar a mofo. De facto, a liturgia
supõe um homem ou uma mulher completos, e não só um cérebro. Reduzimos o homem à razão e ao
pensamento… e talvez por isso tantas das nossas missas sejam de facto apenas homilia… Por isso,
terminada a homilia, muitas vezes já não há espaço nem tempo para mais, e o padre despacha
atabalhoadamente a oração eucarística, como se esta fosse apenas um apêndice secundário da sua
brilhante homilia. Ganhámos o cérebro… ou talvez os sentimentos mais superficiais… somos os campeões
da ética… mas falhámos tristemente o Encontro.

Ao contrario, a liturgia supõe que todos os nossos sentidos estejam despertos e em acção. Supõe que, pela
volatilidade da música, a Palavra possa tocar profundamente o coração, o comova… e o eleve; supõe que
o perfume do Crisma, do incenso e do vinho doce despertem em nós um conjunto de sensações infinitas,
indescritíveis… e que desta forma sejam sinal subtil, transbordante e indómito de Vida, Vinda (Advento) e
de Presença; supõe a capacidade de saborear o gosto simples e primordial do pão e do vinho; supõe o
abraço sincero e o beijo criador; supõe a verdade dos gestos… e dos sentimentos. A liturgia supõe, enfim,
a pedagógica paciência da espera… e a alegria autêntica da festa. Supõe um tempo diferente do tempo dos
centros comerciais. A liturgia não cheira a plástico.

A liturgia supõe um homem que possa cair de joelhos, comovido, reconciliado e confortado pelo toque de
Cristo. Supõe que no fim nos encontremos sós… nós e Jesus, e que já ninguém se lembre sequer de quem
era o padre daquela missa.

Quando cheguei a Roma tive a possibilidade de conhecer pessoalmente a Comunidade de Santo Egídio.
Uma noite por semana ia com a comunidade distribuir comida aos sem-abrigo junto a uma estação de
comboios, depois de participar na belíssima oração que a comunidade faz todas as noites na Basílica de
Santa Maria in Trastevere. Numa das primeiras conversas disse-lhes que estava a estudar liturgia. Ficaram
muito entusiasmados e disseram-me. “A liturgia tem um lugar muito importante na Comunidade de Santo
Egídio, mas nem sempre foi assim. Quando a comunidade começou, nos anos 60, éramos todos típicos
jovens intelectuais e meio revolucionários, movidos pelo desejo evangélico de fazer o bem, mas sem uma
sensibilidade para a beleza e espiritualidade da liturgia. Começámos a fazer serviço aos pobres dos bairros
de Roma e vimos que tínhamos de mudar: foram de facto os pobres que nos ensinaram o gosto e a
profundidade da liturgia”.

Voltando à questão inicial, certamente ninguém na minha paróquia, ou numa destas paróquias dos bairros

1 de 2 01-07-2011 08:53
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de Roma, encontraria um motivo de riso nestes temas. Eles sabem muito bem que esta é a realidade mais
sagrada a que podemos aceder, e ficariam seguramente escandalizados com este título. E têm razão. Mas,
num ambiente de gente mais convencida, talvez até num meio eclesiástico, o mais sagrado pode ser
motivo de gozo, o que não nos pode deixar indiferentes…

Na célebre pintura da Criação do Homem no tecto da Capela Sistina, o dedo de Deus e o dedo do homem
aproximam-se… mas a pintura não chega a mostrar o tremendo momento do toque divino-humano. De
facto o Mistério não se impõe nem se publicita de portas escancaradas. Aquele toque, insinuado e
anunciado pela pintura, não acontece diante dos olhos esbugalhados e das câmaras fotográficas (sem
flash!!!!!!) da multidão dos turistas que todos os dias pagam para poder ver esta obra prima de Miguel
Ângelo.

Aquele toque acontece… mas somente, quando na Capela Sistina os turistas dão lugar aos discípulos de
Jesus… Quando estes se encontram para celebrar a memória viva do Mistério... o Mistério inefável de um
Deus que, por Paixão, abraçou a humanidade nas suas alegrias e esperanças… mas também nas suas
tristezas e angústias (Gaudium et Spes 1, II Concilio Ecuménico do Vaticano). A missa, e a liturgia em
geral, é aquilo que permite que este abraço aconteça no nosso hoje, aqui e agora.

Deus não falta a este abraço…

E tu?

“Aquilo que era visível no nosso Redentor passou aos sacramentos”.

(S.Leão Magno, Papa, séc.IV)

sugestões de aprofundamento:

Constituição Conciliar Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia: http://www.vatican.va/archive


/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19631204_sacrosanctum-concilium_po.html

J. Corbon, A fonte da liturgia, Paulinas, Lisboa.

J. Ratzinger, Introdução ao espírito da liturgia, Paulinas, Lisboa.

Fernando António sj Comentários (8)


01.01.2011 Imprimir

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