Você está na página 1de 3

O lobisomem do Jequitinhonha

Em sua versão mais conhecida, o Bicho da Carneira, ou Joaquim Antunes de


Oliveira, surge como um cachorro grande no fim da tarde ou à noite
Luís Carlos Mendes Santiago

Um personagem histórico pode se tornar um mito. Mas uma pessoa de carne e osso pode virar
assombração? Foi o que aconteceu com o mineiro Joaquim Antunes de Oliveira. Após sua
morte, ele foi transformado pela imaginação popular no temível Bicho da Carneira.

Se há um monstro que aterroriza as crianças do Vale do Jequitinhonha e de boa parte das


regiões vizinhas, em Minas e na Bahia, é o Bicho da Carneira, também chamado de Bicho da
Fortaleza, Bicho de Pedra Azul, Bicho da Rodagem e Lanudo. Esse monstro da mitologia
popular assume diferentes formas. A mais frequente é a de um cachorro preto e grande que
aparece ao entardecer ou depois que a noite cai. Também é descrito como a figura de um
lobisomem ou animal peludo desconhecido na nossa fauna – o Lanudo –, ou um homem
sedutor, ou um personagem misterioso que traja capa escura e aparece nas noites sem lua, ou
ainda como uma pessoa comum. O comportamento também varia: o que usa capa realiza
operações mágicas e seduz mocinhas; o homem comum é reconhecido pelo apetite fabuloso e
pela menção aos familiares; e o animal consome uma quantidade anormal de alimentos, abate
bezerros, ataca cachorros, mata e deixa feridos, muitos de uma vez só. E as mães ameaçam as
criancinhas com aparições desse monstro se não dormirem cedo.

Esse monstro foi um dia Joaquim Antunes de Oliveira, nascido em 1799, no norte de Minas
Gerais, entre os rios São Francisco e Jequitinhonha. Teve três esposas, Francelina, Bernardina
e Manoela, que lhe deram 15 filhos. Viveu na região de São José do Gorutuba, próximo à
Janaúba de hoje, área então pertencente ao município de Grão Mogol. Dali se mudou, na
década de 1860, para a nascente povoação de Catingas, e depois para Fortaleza, hoje Pedra
Azul, onde faleceu no final do século XIX. O genealogista que registra o ano do seu
nascimento, Valdivino Pereira Ferreira, também anota o ano em que morreu, 1876, mas sua
assinatura ainda aparece em livros cartoriais da cidade de Jequitinhonha na década de 1880.

Existe uma explicação para a transformação de Joaquim Antunes em monstro: ele foi
enterrado no pequeno cemitério de Catingas, que ficava na praça principal do povoado, e foi
objeto de disputas políticas que determinaram seu deslocamento, já em 1919, para local mais
afastado. Seus restos foram então transferidos para a nova sepultura, que misteriosamente
rachou. Além disso, apareceram pelos de animal entre as fendas. A sepultura foi reparada,
mas as rachaduras voltaram a surgir mais de uma vez, também misteriosamente. Na mesma
época, na Fazenda Gameleira, onde Joaquim vivera, sumiu uma banda de porco. Estava criada
a lenda.

Na área rural de Pedra Azul, muitos dos moradores mais velhos já viram o Bicho da Carneira.
Em geral, não há interação: é um cão preto que passa ou um homem trajando capote. Mas
existem narrativas em que o Bicho aparece criando situações inusitadas. Em Teófilo Otoni e
Montes Claros, contam que um homem foi a uma pensão e pediu jantar para várias pessoas.
Só que ele comeu toda a comida sozinho e pediu que mandasse a conta para seus parentes da
família Antunes. Mas há quem diga que se trata de um golpe para tirar dinheiro de gente
supersticiosa.
Já próximo a Estiva (distrito de Jequitinhonha), o “causo” foi diferente: um fazendeiro viu um
cão devorando uma rês de madrugada. Em seguida, o animal tomou a forma de Joaquim
Antunes, que ele conhecera em vida. Como o fazendeiro estava armado, a assombração não
titubeou: perguntou se teria coragem de atirar nele.

Reza a lenda que o monstro assombra a própria família. Em Caraí, na véspera do casamento
de um dos Antunes, ouviu-se um barulho vindo da despensa. Era um animal grande, e
ninguém teve coragem de abrir a porta. Quando o barulho cessou, tiveram uma surpresa: os
bois e porcos abatidos haviam sido devorados pelo Bicho.

Há outras versões sobre a formação do mito. Uns dizem que Joaquim era muito bonito e que
fugiu com aquelas que depois vieram a ser suas esposas, e isso teria criado uma aura mágica
em torno dele. Outros dizem que, nos últimos anos de vida, padeceu de uma doença tratada
com mercúrio, e por isso seu quarto ficou impregnado de um cheiro muito forte, o que
impediu que recebesse os mínimos cuidados: cabelos, barba e unhas deixaram de ser cortados,
tornando sua aparência aterrorizante. Também conta-se que os pelos na rachadura do túmulo
eram de animais entrando e saindo. Mas a história que mais se difundiu foi a de que batera em
sua mãe, em quem colocou sela e montou. Ela o teria amaldiçoado com esse terrível destino
no além-túmulo.

Outra hipótese, mais plausível, aponta para o fato de Joaquim Antunes pertencer a uma
família ainda hoje consciente de suas origens hebraicas, a dos Antunes de Oliveira, que se
internou nos sertões baianos ainda no século XVII para fugir da perseguição da Inquisição.
Essa caçada à família Antunes teria sido motivada pela existência, entre os antepassados, de
um cristão-novo de ascendência hebraica chamado Heitor Antunes. Nos anos de 1591 e 1592,
quando o Brasil recebeu a visita do inquisidor Heitor de Mendonça, apurou-se que o finado
Heitor Antunes, dono de engenho em Matoim, no Recôncavo Baiano, mantinha uma série de
costumes judaizantes. Ele viera para o Brasil em 1558, falecendo em 1576. As investigações
do inquisidor mostraram que chegou a instalar uma sinagoga no seu engenho, e que se dizia
sacerdote do rito hebraico e descendente dos Macabeus, dinastia levita que lutou contra a
dominação helênica em Israel (século II a.C.) e governou o país até pouco antes da era cristã.

Heitor Antunes havia falecido, mas isso não impediu que sua viúva, Ana Roiz, já bastante
idosa, fosse levada para os calabouços do Santo Ofício, em Lisboa, onde morreu pouco tempo
depois. Alguns dos filhos e netos de Heitor e Ana se mudaram para os sertões, onde a
Inquisição era menos atuante, e dos sertões baianos, um ou mais ramos da família passaram à
recém-criada capitania de Minas Gerais, ainda no século XVIII, estabelecendo-se na região de
Lençóis do Rio Verde, hoje Espinosa, situada na bacia do São Francisco. Dali, alguns foram
para a região de Itacambira e Grão Mogol, em busca de ouro e de diamantes, de onde a
família se irradiou, ao longo do século XIX, para Piedade, hoje Turmalina, Itinga,
Jequitinhonha e Pedra Azul, seguindo, já no século XX, para Medina, Joaíma, Almenara e
Jordânia.

Nessa família, até meio século atrás, eram habituais a endogamia, o uso de homônimos e certo
comportamento arredio, derivado do estigma de cristão-novo, características incomuns que
contribuíram para o surgimento e a propagação da lenda. Os Antunes mais velhos repreendem
os mais jovens quando fazem qualquer referência ao Bicho, mas isso não impediu que, em
1989, o músico Heitor de Pedra Azul e seu primo Edmundo Antunes de Almeida
organizassem a festa “Antunes recebe Antunes”, que tinha o slogan “É isso aí, bicho!” e
reuniu muitos descendentes de Joaquim Antunes. O evento deu ensejo ainda à publicação de
um livro com informações sobre o Bicho da Carneira e sua árvore genealógica.

A popularidade desse monstro cresceu com o passar do tempo. Seu nome original, Bicho da
Carneira, continua sendo o mais utilizado, mas, ao se difundir, o monstro passou a ser
denominado Bicho da Fortaleza ou Bicho de Pedra Azul. O termo Lanudo é raramente
empregado, e Bicho da Rodagem tem seu uso restrito a Almenara, onde ele surge na estrada
que leva a Pedra Azul. Conta-se ainda que o Bicho não aparece em Itinga, apesar do grande
número de parentes que tem ali, devido a uma procissão anual que circunda a cidade, criando
um perímetro de proteção. O bairro do Porto Alegre, do outro lado do Rio Jequitinhonha, que
foi recentemente unido ao restante da cidade por uma ponte, não conta com esse entorno e
está, portanto, vulnerável às aparições do monstro.

As histórias em torno do Bicho de Pedra Azul demonstram que, apesar de o nosso tempo ser
caracterizado pela racionalidade, o imaginário das populações continua criando mitos. Com
isso, a tradição popular permanece em constante processo de criação e recriação, pelo menos
no Vale do Jequitinhonha, região conhecida por sua notável vitalidade cultural.

Luís Carlos Mendes Santiagoé coautor de Pedra Azul – Cinco visões de uma cidade. Prefeitura
Municipal de Pedra Azul: jornal Boca das Caatingas, 1996.

Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 7. nº 77. fevereiro de 2012. p.23-25.


Disponível em http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/o-lobisomem-do-jequitinhonha

Você também pode gostar