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Henri-Pierre Jeudy ESPELHO DAS CIDADES CASA oxttlrhwons REPRESENTACAO SIMBOLICA DAS CIDADES Acidade excede a representagao que cada pessoa faz dela. Ela se oferece e se retrai segundo a maneira como é apreendida. Uma: certa nostalgia parece nos fazer acre- ditar que a cidade nao corresponde mais ao signo porque se teria tornado exces- sivamente percebida gracas aos simbolos de sua monumentalidade exibida. Nos centros histéricos, os bairros restaurados e as fachadas rebocadas com suas velhas insignias evocam a cidade perdida, uma cidade mitica da qual nao mais encontra- remos, olhando ao acaso, os poucos vestigios ainda escondidos, pois foram todos recuperados. A limpeza dos monumentes, desses edificios urbanos que represen- tam a histéria da cidade e sua inscrigdo no tempo, nao faz sendo consagrar 0 po- der da (aniformizagao patrimonial.Contudo, a proliferagao dos signos em uma cidade permanece vertiginosa. Os signos se multiplicam e se fazem signos. Apesar da obsessao da restauragao, uma certa desordem visual persiste e convida 0 cida- dio a criar seus préprios modos de leitura da cidade. Como disse Jean-Luc Nancy, “nés somos todos urbanistas sem emprego, todos temos urbanidades sem perfil”! No ritmo de nosso assombro, de nosso entusiasmo ou de nossa desaprovagio, construimos de forma imaginaria uma cidade dentro da cidade, que temos a opor- tunidade de ver ou de morar nela. A cidade permite uma aventura da imaginacao como essa somente, na medida em que o que dela se exponha demonstre imedia- tamente ter capacidade de absorver 0 novo. Com as operagées de urbanismo rea- lizadas, os projetos de arquitetura concretizados se transformam, apds um tempo relativamente curto, em expresses de uma urbanidade integrada. Esse poder de assimilagao, todas as cidades detém, sendo ele seu proprio enigma. Estamos de acordo que uma arquitetura ou uma obra de arte considerada feia termina dando um certo sabor a cidade. O que € decretado publicamente signo de feitira, ao adquirir valor patrimonial, impée-se algum tempo mais tar- de como um simbolo da cidade. Os gestores do urbano podem exercer suas es- colhas arbitrarias; sofrerao eventualmente uma chuva de reprovagoes coletivas ‘Mas, ao longo do tempo, tém todas as possibilidades de acabar vitoriosos, uma vez que o fruto de suas decisdes se integraré ao territério da cidade como o signo patrimonial de uma época. As maneiras de apreensdo da cidade tém a estranha faculdade de tirar proveito tanto do que satisfaz os gostos dos cidadaos quanto do que suscita sua repulsa. A feitira faz do olhar um refém. Nao se trata de um exercicio coletivo de relativismo consensual, que consiste em achar que 0 que agrada a alguns pode desagradar a outros. A feitira, valendo por si mesma, passa aconstituir um prazer estético. Qualquer forma de poética da cidade recolhe nela os dons de se renovar. Assim, a percepcao sensivel de uma cidade, em suas mais diversas manifestagoes, assegura a legitimidade, a posteriori, de qualquer inter- veneao plastica feita na cidade. E os olhares dos cidadaos, confortados pelos dos fotdégrafos, dos escritores, tiram proveito do fato da cidade parecer nada rejeitar. Mesmo que uma torre tenha sido destruida, ou que um monumento seja der- rubado, sua destruigao seguida de sua auséncia permanecerao na meméria dos citadinos. A cidade se nutre de tudo que serve de signo porque tudo ¢ chamado a funcionar como signo, de forma fugidia ou duravel. Este sobrepeso de signos e de suas potencialidades incomensuraveis passa a tragar as condigdes da aventura da percepgao cotidiana da cidade. Os fotégrafos procuram na maioria mais das vezes, ao menos em nossa época, fazer falar 0 que a cidade parece esconder. Bom ntimero deles insistem nos “nao- lugares”, nos territorios indefiniveis, continuam fascinados pelos “entre-dois-es- pacos”. Captam imagens parecidas com “montagens naturais”, que associam “frag- mentos de realidade” a fim de provocar e manter uma sensibilidade propria das aparicdes insélitas. Quanto aos escritores, nao apenas fazem da cidade cendrio de uma agao, cendrio tornado assimilavel no ritmo de derramamentos metaféricos que eles a apreendem tanto em sua fragmentagao quanto nas manifestagdes de sua totalidade, como uma atmosfera que se faz e se desfaz ao sabor de desloca- mentos ou de posicdes eliminadas. A cidade se faz objeto, mas nao para de perder seu carater objetal, uma vez que recua os limites de qualquer olhar, confundindo a distingao tradicional entre 0 sujeito e 0 objeto. Nada deixa supor, igualmente, que a cidade se desenvolve como uma exe- cugao do pensamento. O processo de objetivagao da cidade, necessario a ges- tao de seu futuro, implica um olhar distanciado, mas parece responder a um conjunto de determinagées preliminares que impée, como seria de se esperar, a maneira de refletir a cidade como um objeto. Um prefeito pode perfeita- mente ler literatura ou filosofia que digam respeito a cidade, ver fotografias, 82 HENRI-PIERRE JF'DY ies policiais que oferegam miriades de imagens da cidade: sua sensibilidade in- telectual Ihe sera de grande utilidade quando tiver de tomar decis6es em matéria de urbanismo? Por um lado, a gestao urbana, quando pretende ser prospectiva, protege-se sempre por tras de necessidades radicais que tornam incongruentes ou deslocadas visdes excessivamente poéticas da cidade; por outro, as formas de apreensao sensivel da cidade sao relegadas a uma fungao bem especifica, que é de demonstrar que uma comunidade esta em condigdes de “viver a cidade” tal - como ela se apresenta, tal como se torna. Os financiadores de obras artisticas ou arquiteténicas podem sempre fazer crer que se inspiram em uma certa poesia da cidade, mas estéo mais preocupados em produzir uma imagem determinante de sua cidade do que em responder a uma sensibilidade comum aos habitantes. Arepresentagao politica da soberania obtém uma demonstracao sempre visivel de sua legitimidade através das metamorfoses da cidade. As megaldpoles se tornam freqiientemente territérios de contagio de signos. Elas 0 conseguem principalmente por nao terem centro histérico impondo uma concentragao de simbolos monumentais. Téquio é 0 paraiso dos arquite- tos, uma vez que os projetos mais heteréclitos puderam ser realizados la. Para 0 estrangeiro, a cidade de Téquio oferece uma infinidade de signos e imagens cuja relativa incompreensao estimula a percep¢ao. O estrangeiro é obrigado, para nao se perder, a construir ele mesmo suas referéncias, a organizar sua propria leitura da cidade, ao mesmo tempo experimentando um efeito constante de alteridade radical. E curioso o poder de uma tal alteridade sobre o imagindrio. Nao se trata mais daquela “inquietante estranheza” de que falava Freud, mas de uma atracaio inesperada entre signos inapreensiveis ¢ as imagens mais subjetivas| Quanto mais a cidade escapa-a representacao, mais ela provoca uma apropriacao imaginaria do espago.\E preciso dizer também que a cidade japonesa tem a catastrofe natural como horizonte de sua propria representacdo. O fato de viver permanentemen- te sobre territérios suscetiveis de sofrer terremotos violentos exacerba a relagao japoneses, nas fichas que entre a memoria e o esquecimento. Em todos os hotéi descrevem as condutas a seguir em caso de sinistro, a rubrica “terremoto” esta presente. O que demonstra como ninguém jamais esquece que 0 solo pode desa- bar a seus pés a qualquer momento, A eventualidade da catéstrofe est inscrita na meméria presente, Mesmo que a aplicagao de regras anti-sismicas na construgao urbana dé uma representagdo publica de uma possivel conjuracao dos efeitos desastrosos de um abalo sismico, ela nao provoca 0 esquecimento do risco sem- pre presente, A distingao usual das temporalidades entre o passado, o presente € 0 futuro nao tem razdo de ser, uma vez que o ritmo da memoria sustenta o da catastrofe, provocando uma colisdo temporal, o que faz com que qualquer ocul- A CRITICA DA ESTETICA URBANA 83 tacao, supostamente voluntaria em uma época, perca o sentido. A cidade - ¢ nao || somente Téquio — contém a catastrofe de sua representacao. | | Esse recorte infinito de toda a cidade por seus préprios signos, como se fosse pelas metamorfoses de sua morfologia territorial, é a causa do elo entre o signo ea imagem. signo funciona como um sinal que provoca a irrupgao da ima- gem. Ao longo da primeira fase do conflito na ex-lugoslévia, quando 0 grafista Antonio Galego produzia cartazes nos quais inscrevia 0 nome de Sarajevo, ele estava desviando o sistema de signalética ao brincar com a guerra de simbolos. Ele lembrava 0 nome de uma cidade gravado em todos os espiritos como se as cidades, da mesma maneira que os mitos, estivessem destinadas a se pensar entre si. Tratava-se do orgulho da cidade, sempre renascendo de suas cinzas. Nome préprio de uma cidade, ao mesmo tempo indutor de uma constelagao de ou- tras soberanias urbanas. Dizer que as cidades se pensam entre elas é afirmar 0 quanto suas mais radicais singularidades perduram no jogo inconsciente de suas, substituicdes. Nao se trata de um jogo de comparacao, mas de superposicao ¢ de condensacao de imagens mneménicas das cidades. Ao nos ensinar a viver a simultaneidade temporal e espacial, a cidade oferece provavelmente a mais bela experiéncia da soberania estética, uma vez que ela jamais obtém sua identidade aparente dos efeitos do totalitarismo da representagao. A proliferacao de imagens de cidades permanece inesgotavel por nunca se sujeitar a uma ordem semantica que lhe seria imposta por um sentido prévio. Na aurora do século XXI, quando a gestdo tecnocratica tenta infligir uma configuragao cada vez mais racional a con- figuracao arquiteténica urbana assim como as modalidades de organizagao das atividades urbanas, nem por isso a apreensao intuitiva e sentimental da cidade desaparece. © poder sentimental imposto pela cidade nao tem paralelo com ne- nhum julgamento objetivo. A relacao estética que nés mantemos com o mundo, ‘ou que o proprio mundo provoca, essa relagdo movimentada, sempre incerta, tem como origem a experiéncia cotidiana da cidade. E nosso corpo ora se ins- cteve no espaco ptiblico, ora joga com uma certa distancia desta pluralidade de pontos de vista. Pois € exatamente ele - 0 nosso corpo — que nao para de cons- truir anamorfoses na cidade, ao se dispor a suportar alguma perturbagao em seus habitos de representagao. 84 HENRI-PIERRE JEUDY A CIDADE, CONSTELACAO DE IMAGENS Em sua célebre obra A cidade através da Histéria, Lewis Mumford mostra 0 quan- to a questao do ponto de vista parece determinante nas diferentes concepgdes estéticas da cidade ao longo das grandes épocas, helenistica, romana, barroca... Contudo, se o historiador dispde de numerosos elementos para demonstrar que determinado ponto de vista predomina nessa ou naquela época, nas maneiras de conceber e de ver a cidade, isso nao impede sua interpretacao retrospectiva de excluir a arbitrariedade de sua posicao. E, em vez de tomar essa arbitrarieda- de como um risco de um certo relativismo, parece-nos mais judicioso considera- laa origem contemporanea de uma multiplicidade de pontos de vista. A maneira pela qual, no presente, olhamos a configuracao de uma cidade supée que a pré- pria idéia de ponto de vista é concebida como uma modalidade de olhar que ja seria fruto de uma intengao estética. Nas pinturas do século XIII e do século XIV, a cidade da Idade Média é geralmente representada com suas muralhas verticais, como uma cidadela ergui- da em segundo plano em uma paisagem campestre. Nas pinturas de Patinir, a cena religiosa aparece em primeiro plano, em meio a natureza, e ao fundo se ergue o burgo medieval com suas muralhas, como se fosse uma figura de destino antecipada da conquista urbana desafiando a propria natureza. Orgulhoso e enig- mitico, o burgo medieval oferece uma representacao do futuro, a da ascensdo das cidades. As cores azuis de Patinir destacam a serenidade do céu fazendo-a ligeira- mente desafiadora, ¢ acentuam essa impressdo de soberania urbana triunfante. Como um objeto fechado em si mesmo, estranho e longinquo, a cidadela contém seus segredos, exibindo seu poder pela presenga de torres elevadas. Podemos no- tar, em certas pinturas do final da Idade Média, que a representagao da cidade é sempre concebida de um ponto de vista exterior. A cidade ocupa uma parte do quadro como uma ilhota, em um canto mais ou menos protegido, mas especial- mente visivel. Ela nao é apresentada de seu interior. Sua figuracao ¢ feita sobretu- do a partir das muralhas e das torres mais altas do que elas. A cidade forma um todo pela apresentagao de seu envoltério ¢ pelo labirinto interior constituido por um dédalo de ruelas e por uma disposi¢ao pouco ordenada de habitacoes, perma- necendo ao abrigo do olhar. A cidadela medieval ergue-se como uma clausura pontual no horizonte da paisagem. “Nao nos esquecemos de um antigo costume que reaparece na Idade Média: a utilizacao do muro para passeios recreativos no verao”? Os habitantes nao véem sua cidade, eles véem, a partir da sua cidade, a paisagem do campo. O ponto de vista é uma alternativa que suprime a visdo interna: o olhar se dirige da muralha para o campo ou a muralha se apresenta & visdo como 0 recinto impenetravel da cidade, a partir do campo. A configuracao interna da cidade s6 pode ser apreendida como um todo de maneira abstrata, a partir de sua propria invisibilidade. A adogio de um ponto de vista é sempre 0 ato de reconhecimento de uma cegueira. Adotar um ponto de vista é uma manei- ra de constituir 0 ponto cego da percepgao. Com o periodo do Renascimento e do Barroco, as muralhas ver a cidade se apresenta como um espaco geométrico. “O estudo da perspectiva ‘ticais caem levava da mesma forma a eliminagao sistematica de tudo que pudesse atrapalhar o olhar e impedi-lo de alcancar a linha do horizonte”,’ escreveu Lewis Mumford, mostrando o quanto o Barroco une duas tendéncias contraditérias: uma se ma- nifestando através da extravagancia e a outra através do “espirito metédico da geometria”. “As novas concepsdes estéticas encontraram sua expressdo no traca- do das grandiosas avenidas, ou apenas um obelisco, um arco do triunfo ou uma fachada de edificio interrompem as linhas paralelas das calcadas ¢ das cornijas.”* A extravagincia do Barroco é ainda mais manifesta, chegando a ser detectada a partir do espaco geométrico. O olhar é conduzido pela perspectivagao, seguindo por assim dizer os caminhos que lhe sao tragados e, simultaneamente, permane- cendo suscetivel de ser permanentemente atraido por detalhes, até mesmo pela acumulacao desses detalhes, Para alguns historiadores, o espaco geométrico urba- |, no corresponde a instalagao de uma ordem militarizada, sendo as artérias princi- ) pais um meio privilegiado de fazer circular as tropas, ou servindo para grandes | paradas. Os prédios com fachadas padronizadas sao entao comparaveis as fileiras 7 de soldados em estado de prontidao. © ponto de vista se torna o do “olho do po- der”: “as pracas reais também tém como fungao dar destaque ao rei como chefe dos exércitos: no centro delas, uma estatua o representa invariavelmente a cavalo, como se ele dirigisse tropas ou desfilasse diante delas”’ Visao de conjunto, ponto de vista supremo. O espaco geométrico ao qual se atribui uma finalidade militar, 86 HENRI-PIERRE JEUDY torna possivel a estética urbana da soberania. O poder absoluto se prolonga na | configura¢io espacial de uma ordem dominada que, como a imagem devolvida | pelo espelho, se torna a inscricao territorial de sua representagao especular. | Uma certa uniformidade de pontos de vista pode vir da restauragao, a mes- | ma que anula a “espessura do tempo”. 0 monumento modificado ao longo de ¢ periodos sucessivos é mais do que o reflexo da hist6ria da cidade, sua histéria se 4 compée de fragmentos de relato, relativos 4 atualidade de sua propria crénica. / Na ocasido em que John Ruskin se insurgiu contra a restauracdo dos monumen- tos, ele nao o fez em nome da pr preservacao da autenticidade -inicial, 1 mas porque considerava qu queo ) principio da restauracao era, em si, uw! pode ser feita em nome do embelezamento das cidades, em nome da conservacao de construcdes que correm 0 risco de se transformar em ruinas, em nome ainda de uma vontade de manter a identidade original do lugar, preservando-a por in- termédio de novas técnicas. m eml ste. A restauracao O conjunto dessas raz6es em nada muda o fato da restauragao ser ela mesma um ato de destruicao, por criar uma unidade ficticia da cidade. Segundo John Ruskin, “o verdadeiro significado da palavra restauragdo nao é compreendido nem pelo puiblico nem por aqueles a quem compete a manutengao de nossos mo- numentos ptiblicos. Significa a mais completa destruicao que um edificio pode sofrer; destruigao da qual nao se poder salvar o minimo fragmento; destrui¢ao acompanhada de uma falsa descrigao do monumento destruido. Nao vamos nos iludir sobre esta questao tao important impossivel restaurar 0 que um dia foi grande ou belo em arquitetura, tio impossivel quanto ressuscitar os mortos”.® A restauracao inverte o sentido do movimento intrinseco do destino de qualquer monumento que sobrevive a partir de sua prépria transformagdo ao longo do tempo. A fidelidade & sua autenticidade original é uma ilusio puramente mora- lista. Trata-se de fazer crer que restaurar uma construgao é conserva-la tal como era antes, quando, na verdade, 0 que se esta fazendo é a operacao contraria, isto 6, desnaturd-la ao idealizar sua imutabilidade temporal. Ao reconstruir seus tem- plos, perfeitamente iguais, a cada vinte ou trinta anos, os japoneses sao os mais respeitosos do valor atribuido a autenticidade original. E se “congelamos” um monumento, tentando manté-lo no estado em que se encontra, interrompendo tanto quanto possivel 0 prosseguimento eventual de sua degradagao, 0 que es- tamos conservando na,yerdade nada mais é que um conjunto que sofreu uma restauracao precedente. ‘Sendo um processo sem fim, a restaura¢ao nao conserva senao 0 que ja fc foi irestaurado, “O defeito da restauracao € produzir uma equivaléncia estética da cidade, de sua histéria, de seus estratos organicos, e induzir uma convergéncia de olhares A CRITICA DA ESTETICA URBANA 87 na direcdo de um tinico ponto de vista indiferenciado. Incapaz de sugerir uma distincao de signos arquiteténicos representativos de uma ou de outra época, a restauragao parece restabelecer a ordem nos vestigios do passado, tornando-os mais visiveis, mais limpidos do que nunca. Ela impoe uma representacao comum da cidade como beleza suprema. Mas se a cidade exprime de uma maneira impli- cita uma disposicao do sublime, s6 consegue fazé-Io se ultrapassar, nas visdes que provoca, os efeitos dos artificios simbélicos de sua eminéncia. Para o cidadao, o sublime urbano é parasita, esté ligado ao pitoresco, ao que advém ao olhar por acidente. De acordo com John Ruskin, “essa caracteristica, cuja busca exagerada em geral consideramos aviltante para a arte, é o sublime parasita, ou seja, um su- blime escravo dos acidentes, ou das caracteristicas menos essenciais dos objetos a que pertence”” O pitoresco se desenvolve como parasita do sublime. A prépria idéia da beleza de uma cidade se sustenta no acidente pitoresco que faz da estra- nheza, da incongruéncia, nao s6 um sentimento que acompanha a percep¢ao, como também a caracteristica do sublime parasita. O que John Ruskin nos incita a pensar é sobre a maneira pela qual 0 pitoresco, na qualidade de parasita do subli- me, tira proveito da propria monumentalidade. Destinado a representar a sobera nia urbana, 0 monumento majestoso é confrontado com a emergéncia de signos pitorescos, tanto através de jogos de sombra e luz quanto de grafites, ou outros incidentes que parodiam o sublime sem negé-lo. Assim, o pitoresco nao é 0 fruto de uma jocosidade do olhar, permanecendo independente do objeto, que nao é por ele qualificado, e do modo de percepgao, que nao € por ele orientado. Ele é, essencialmente, 0 nao convencional, o que faz surgir o sublime em sua expressio parasita. Seu aspecto acidental, incongruente, ameaga qualquer producao do su- blime, tornada excessivamente voluntiria apenas pela conservagao patrimonial e monumental. O mesmo que dizer que a negagao do pitoresco (como parasita do sublime) é 0 cavalo de batalha de uma gestio urbana preocupada em demasia com a unificacao patrimonial das cidades. A cidade, trajetoria da escrita A nostalgia nao €a unica maneira, a partir de uma certa idade, de aprender a ci- dade na qual vivemos, ou a qual voltamos depois de uma longa auséncia. Os retor- nos de meméria se parecem mais com circunvolugées, gracas as quais as visoes do tempo presente se misturam com as imagens do passado. Para dizer a verdade, isto nao se deve a uma escolha do citadino ou do passeador, a propria cidade im- pe ao olhar a visdo incerta de suas transformag6es, opondo-se a vontade de se reencontrar 0 que ja foi. Quando tentamos voltar a ver os lugares onde vivemos, | 88 HENRI-PIERRE JEUDY ficamos desde logo fascinados pela relacao estranha imposta pela cidade, entre o | que desapareceu ¢ 0 que foi recentemente construido, e somos cativados por esse movimento de substituicdo reversivel que estimula a memoria antes que nasga a desolacao. Se nos lembramos do que foi, de qual era a configuracao do local ao qual estamos voltando, constataremos curiosamente que sua transformagao pre- sente permite 4 memoria se deleitar com as imagens da restituicdo, e sobretudo com sua espantosa liberdade. A auséncia do que foi possibilita qualquer invengio bipscutedamemibnauAssim, a sensacao de desaparecimento nao provoca nostal- gia, mas, a0 Contrario, provoca efeitos de atualizacao do local cuja atragao visual estd relacionada a exibicgdo presente de sua metamorfose. Em seu livro La forme d’une ville, Julien Gracq previne-se ele mesmo contra qualquer atracao pela nostalgia. “A antiga cidade — a antiga vida — ¢ a nova se | superpoem em meu espirito ao invés de se sucederem no tempo: estabelece-se | entre uma e outra uma circulacdo intemporal que libera a recordacao de toda melancolia e toda opressio; 0 sentimento de uma referéncia, ao se destacar da duracao, projeta para adiante e amalgama ao presente as imagens do passado, em vez de arrastar o espirito para tras”.* A reminiscéncia se torna uma atividade do espirito liberada da nostalgia. Atividade que estaria privada de seu poder caso nao se fundasse na acuidade visual do atual. E essa “intemporalidade”, compa- r4vel 4 estranha confusao temporal que caracteriza as imagens do sonho, nao é apenas a do movimento do espirito ¢ de seus modos de percepcao, ela também é propria do poder de condensagao temporal exercido pelas cidades. A represen- tacao patrimonial das cidades parece nos habituar, ao contrario, a uma distingao fundamental dos séculos, das épocas ~ distingao legitimada visualmente por sig- nos determinados — mas mascara 0 jogo de superposicao e de contagio desses mesmos signos, 0 que provoca um entrecruzamento sutil e pouco perceptivel das temporalidades urbanas. A propria cidade parece resistir 4s operacoes de retros- pectiva patrimonial, que tentam manter uma estética original e auténtica de uma época em que a representacao publica é convocada para se fazer de eternidade. © que é uma “duragao que projeta para adiante”? A duracao nao pode ser objeto de uma conservagao propriamente dita; ela requer uma forma projetiva, mas s6 pode adotar uma forma assim se for imaterial, separada dos simbolos ex- cessivamente concretos — como os monumentos histéricos —, os quais tém por fangao representé-la. Os efeitos de condensacao, de superposigao das imagens de cidade, participam dessa projegao do tempo, que termina ndo correspondendo mais aos habitos de classificagéo temporal que nos habituamos a praticar para distinguir o passado do futuro. “E estranho que concentremos assim — por um movimento menos natural do que parece — 0 carater e quase a esséncia de uma A CRITICA DA ESTETICA URBANA 89, cidade em umas poucas construgées, tidas em geral como emblemiticas, sem imaginar que a cidade assim representada por delegacio tende a perder para n6s sua densidade prépria, que retiremos de sua presenca global ¢ familiar todo © capital de devaneios, de simpatia, de exaltagao, que vai se fixar nesses pontos sensibilizados”? A palavra “delegacao” utilizada por Julien Gracq tem um sentido determinante: a cidade nao se oferece mais ao olhar, a escuta, ou ainda ao olfa- to, por si mesma, ela se apresenta através de objetos referenciais que asseguram uma verdadeira delegagao simbdlica. A configuracao monumental da cidade nao oculta contudo a estranha labil “densidade propria’, uma vez que as imagens tornadas mais estereotipadas por suas fungdes simbélicas permanecem sempre suscetiveis de serem desviadas de dade cotidiana dos modos de apreensao de sua seu poder referencial. Mas a cidade nao forma mais uma totalidade organica, ela cindiu-se em um centro e uma periferia. a “densidade propria” explodiu. Poderfamos adotar co- mo marco dessa ruptura a maneira como a entrada em uma cidade mudou 0 interesse que suscita ao olhar. A passagem do campo para a cidade tornou-se mais desumana, por causa das inumerdveis construgdes comerciais erguidas nas periferias. Nese mesmo livro, Julien Gracq escreve: “A aproximagao de uma cida- de sempre foi para mim uma ocasiao de especial atengao as modificagoes progres- sivas da paisagem que a anunciam. Eu observo, especialmente, se estou chegando de trem, os primeiros sinais de infiltracdo do campo por meio das digitagdes do nticleo urbano, e, caso se trate de uma cidade onde goste de viver, ocorre-me to- mé-las por um gesto de acolhida feito de longe por uma mao levantada sob uma soleira amistosa’.!° Uma visao de entrada na cidade como esta uma outra época, pois parece representar toda a docura e a lentidao da infiltra- corresponde a a0 da vida urbana para dentro do campo. No presente, a “densidade propria” da cidade passou a ser apreendida a partir de sua expansio periférica. Em seu livro Zones, Jean Rolin parte para a aventura do subtirbio hospedan- do-se em hotéis de diferentes cidades em torno de Paris. A cada dia descreve ce- nas da vida cotidiana, da suas impressdes, ora num tom lacénico, ora num tom mais carregado de paixao. O autor parece fundir-se em um tecido urbano que permaneceria inextricavel se ele nao desse nomes que, de uma maneira encanta- téria, evocam cidades conhecidas. O movimento de sua descrigao, ao ritmo de sua observacao detalhada, permite ir-se representando no pensamento do leitor toda a vida cotidiana em sua realidade imediata. Proximo da crénica, seu texto éconstruido através de uma continuidade cénica cuja eventualidade do fim nao tem mais sentido do que a eventualidade de seu comego. Cada situagao surge € depois desaparece, cada visao da cidade delineia-se de acordo com uma realida- 90 HENRI-PIERRE JEUDY de que advém, que marca, que capta e que se esvai em seguida dentro da noite dos tempos. “O que leva um homem sao de espirito a descer de um énibus da Petite Ceinture’! na altura da parada Pont-National?”” E a partir de um jogo da contingéncia ¢ da determinagao que o escritor cria as condigdes de expectativa de seu olhar, Essa disposi¢o torna possivel a singularidade da emergéncia dos acontecimentos mais banais. E a curiosidade nao decorre mais do enigma pro- vocado, buscado como algo que nunca se deixa ver, mas da prépria replicagao da vida urbana. A cidade nao é mais 0 cendrio de uma infinidade de cenas incon- gruentes, ela oferece sua propria existéncia morfolégica na banalidade tornada singular das cenas cotidianas, que nao reteriam a atencao se nao fossem pontos de interesse do olhar flanéur. A relacao entre a topografia e a cronologia das deambulagoes é uma constante nesse género de escrita sobre a vida urbana. O nome dos lugares é essencial, ele dé aparéncia de realidade concreta é representagao que o leitor pode fazer dela. Os nomes das cidades, das estagdes de metré, das ruas e das avenidas, dos hotéis e das estagdes de trem, os ntimeros dos dnibus e os edificios sio também meios evocadores que tracam a realizacao de um percurso, inscrevendo-o na desordem das areas sucessivas. Mas o procedimento tem sido empregado de tal maneira que acabou se tornando um arquétipo dos modos de apreensao do espaco urba- no, Como se constituiu esse arquétipo que passou a definir maneiras comuns, compartilhadas, da disposi¢ao momentanea do olhar citadino? O momento do olhar deambulatério, do olhar desocupado, pronto a captar aquilo que nao vé normalmente, prefigura a possibilidade de apreensao imediata do espaco e do tempo, sua concordancia ideal no movimento de aparecimento e desaparecimen- to, esse movimento ao longo do qual qualquer pessoa se coloca numa postura de “sentir” sua cidade. A disponibilidade ao imediatismo do olhar deambulatério é ambigua: decorre do fato de cada pessoa se colocar em posigao de olhar e de uma auséncia de decisao a adotar tal posigao. Eu decido ficar disponivel, mas eu nao decido mais sobre a propria possibil espaco € o tempo se torna mais condensada por escapar totalmente a minha von- dade de imediatismo. A relagao entre o tade. A expectativa nao decorre mais de um estado que a predispée, ela surge do proprio territ6rio, transformando-se na mesma hora em acontecimento. E comum pensar que a cidade provoca uma experiéncia intelectual e que as maneiras pelas quais se traduz na escrita, na fotografia, no cinema dependem antes de mais nada da singularidade dos autores. Essa experiéncia se apresenta como um desafio da existéncia na histéria dos autores, ela tem de particular 0 fato de exacerbar seus modos de apreensao do pensamento. Um autor se poe em paralelo com uma cidade, se faz, se desfaz, se refaz com ela. Em seu livro City of ACRITICA DA ESTETICA URBANA 91

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