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5 - danações (1969)
a) Danações *
por Antônio Houaiss
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A literatura brasileira goza de maioridade há já algum tempo. Não se trata de
voltar à discussão de quando deixou ela de ser mera expressão na América da
própria literatura portuguesa - problema , é claro , que importa , mas noutro con-
texto que não é afim das considerações seguintes. Aqui, o que quer se afirmar é a
mera evidência , extensiva , por sinal , a toda a América Latina, mas com uma van-
tagem singular para o nosso caso específico, a política, já que os azares inerentes
à história nos propiciaram sermos desde os fins do século XVIII uma nacionali-
dade e um Estado , em que os particularismos regionais ou locais, mesmo quando
fomentados inerte ou deliberadamente , não assumiram feição separatista incon-
troversa: foram pontas de lança inovadoras que, malogradas no tempo, vingaram
depois na composição geral do nosso quadro nacional .
Dentre outros traços relevantes de nossa maioridade literária há o da floração
de uma notável quantidade de poetas que vêm assumindo impressionante varie-
dade de posturas , de apreensões, de antenaçoes vitais do poético : os poetas de há
muito deixaram de fazer da poesia um prurido episódico de seu crescimento bio-
lógico deles, poetas, ou uma esporádica manifestação de sua deles vivência. Dão-
nos , em verdade , pela primeira vez, colegiadamente , uma visão do mundo que é
(embora virá a ser ainda mais) brasileira e, por isso mesmo , universal no que há
de universal em cada sociedade nacional .
A mera presença , quantitativamente registrável, de um número crescente de
pessoas que se dedicam , como postura essencial ou vocacional de seu viver , à
• Publicado como estudo introdutório da coletânea Danaçõet, José Alvaro Editora, Rio de
Janeiro , 1969 ; Co"eio do Povo , Porto Alegre, 21 de fevereiro de 1970.
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poesia na-o nos deve induzir a precipitados julgamentos de valor : é bem possível
que o percentual de "poetas" em relaça-o à população não seja crescente , se con-
siderados os três últimos séculos e o incremento demográfico correspondente .
Mas a mera continuidade deste percentual , se confirmada , seria a um tempo um
índice óbvio de aumento absoluto e um índice demonstrável de aprimoramento
qualitativo . E este é o ponto . Ser poeta entre nós, nos dias que correm , é repto
cada vez mais vital . Cada vez mais se exige mais do poeta , e , isso não obstante ,
cada vez mais brotam em todos os quadrantes do Brasil (e do mundo) os que ten-
tam trazer algo de novo como poesia . E algo de novo que é cada vez menos, mes-
mo que tentativamente, um mero devanear gratuito incompromissado com inda-
gações básicas ou radicais (que é poesia?, como exprimi-la?, que recursos ousar? ,
até onde não abandonar uma das faces ontológicas?, como inovar? , que existe na
tradição de não abjurável? , como formalizá-la sem conformá-la?) . Pois que de fa-
to um índice de maturidade, superado ou em vias de sê-lo , era o de planger públi·
co factício de corações em cio, que se calavam tão pronto encontravam cami-
nhos ou recantos de acasalamento , dois dos quais eram conspicuamente : ou a
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dona d'algo relutante que mais caro que as outras dar queria o que deu par dar-se
a natureza, ou o favor da notoriedade de campanário ou da res publica, graças
aos quais os outros reais objetivos do cursus honorum seriam atingidos, um de-
grau mais na magistratura , ou na judicatura, ou na generalatura, ou na politicatu-
ra, ou na economicatura, ou na financiatura, et on en passe.
Essa exigência maior dos (aos, ante , contra, em favor) poetas é um fato social ,
cuja explicação não se saberia ou pelos menos não se tentaria fazer aqui. Mas é
visível: ser poeta , nas condições do mundo moderno e nas condições não podres
do nosso subdesenvolvimento específico, é , na imensa maioria dos casos, uma sa-
crifício permanente de interesses pessoais imediatos, por algo que é uma flechada
lançada contra o azul (ou cinza) de um céu deserto que acaso cruze um pássaro
flechável. O poeta é um mediador não apenas entre a vida vivida e vivitura , e a
vida vivível e vivenda da sociedade, sena-o que também e sobretudo mediador de
si mesmo (de mim mesmo, de ti mesmo, se congeminamos). t que o seu poetar ,
se o (me , te) torna menos ilúcido para si (mim, ti) mesmo , menos dessituado no
caos do presente e dos futuros, torna~ ser que se prorroga, adia, transfere , sa-
ciando~ de impossíveis e esfomeando~ de cotidiano . E, abstraídos o silêncio e a
camoniana ufania da milícia e da polícia, um dos mais doídos esfomeamentos
que lhe traz o cotidiano é a realidade, mercantil ou contábil ou computatorial-
mente programada das empresas de análise de viabilidade de aplicabilidade de ca-
pital e trabalho: ser poeta nlfo é negócio, pois, dá, nos casos máximos aleatórios
de grande sucesso de público, ou a parca féria para um viver que apenas não é
incondigno ou, por abjuração, a porta para outros negócios. Negócio por negó-
cio, pois, é mais viável ir direto aos viáveis. Mas continua a haver poetas, e os
grandes a serem-no enquanto vivam, sexagenários, septuagenários, octagenários
em flor, flor justificadamente amarga ou ressentida, mas flor necessária cujos
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frutos de ouro (de outro ouro, de nã'o~uro) se colhem nos jardins das Hespérides
das nossas esperanças e utopias .
Mas a exigência social maior aos (dos , contra, ante) poeta nlio está desse lado
só : está dentro também da corporaçã"o. I: nela, mais que alhures, que brotam os
protestos contra a asfixia da repetitividade , mas é nela , mais que alhures , que se
formam as correntes que tendem a fulminar o que nã'o é poesia, indo mais peri-
gosamente além, resolvendo ou ditando o que é poesia e quais os caminhos de
obtê-la, exprimi-la , formulá-la. Às rotinas instauradas por inércia no corpo, me-
lhor , no módulo fundamental dessa coisa sem a qual o homem não é homem - a
tradição - , àquelas rotinas , reais e atuais, opõem-se rotinas potenciais. (f temeri-
dade usar da palavra "tradição", que se instaura como condiçao humana de hu-
manização do homem pelo homem , numa transmissão acumulada de saberes e
fazere s acrescentáveis, quando a pobrezinha é colateralmente usada como instru-
mento político de conserva e perd uraçã'o do caduco e da coonestaçã'o do supera-
do pela própria tradição . Fique , porém , o esclarecimento.) Medievalmente, conti-
nuam poetas e poetas-críticos a patrocinar , perante seus congéneres e perante
seus convivais leitores aliciados, certo só (são várias é óbvio, cada uma, porém, a
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só verdadeira) deriva da poesia . Não se trata, sejamos precisos de prescrever elec-
tuários ou preceptuários ; mas há , por contrapartida, formulários : proscrevem-se
formas , temas , problemas , conteúdos , processos , recursos, relações, meios , fins;
mostra-se que poesia se obtém assim ou não-assim ; que certo tipo de poesia per-
tence ao passado; que certo tipo de poesia é espúrio ; que a poesia do presente e
do futuro só pode ser segundo certa tendência que buscam provar haverem des-
coberto no presente , a fim de que ela possa ser do futuro ; que a poesia como coi-
sa feita, objeto , arte, produto , criação , visão do mundo totalizante , catarse, uto-
pia , protesto, anseio, desejo , voto, esperança, compreensão, apreensã"o, antena-
ção, tendência , vivência, existência, essência , crença, convicça-o , dúvida, hetero-
doxia , é coisa caduca ; quer ser ou aspirar a ser poeta é caduco ; que, em suma, o
poeta é o Ersatz, o que faz algos que na-o encerram nada daquilo, pois sã'o coisas
que não são coisas, pois são a formalização de inconteúdos que sã'o o só seu con-
teúdo , reiações de irrelações, zero vetoriado no infinito potenciado ao infinito,
através de sinais sensuais (por ora visuais, por impotência dos media; como estes
se enriquecera-o , em breve os outros sentidos se ensaiara-o , até o nirvânico do si-
nestético umbilical telepático insubjetivo e inobjetivo ) .
(Opositivamente, os galos cantam pré-manhã'zinha; e o nosso galinício é obje-
to de especulações , lindíssimas aliás , de se, ocorrendo horas antes da aurora so-
lar , nã'o encerra no âmago da espécie a hora dos fusos horários de origem ... ) Opo-
sitvamente , no Brasil como no mundo, segundo a enorme dagradaçã'o cultural
que nos dão os estratos sociais (ah! as palavras proscritas!), a poesia continua em
romances , histórias , estórias, trovas, canções , versinhos de escola ou pra namo-
rada (ainda os há?), epopéias, odes , epodos, rapsódias, gestas , e essa coisa que -
por inominável - se chama poema .
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Ora, o que parece admirável (não é , pois é vital) é que, malgrado os muitos
pólos figurados acima , haja poetas que , conhecendo esses pólos e podendo (co-
mo capacidade artesanal) aderir a algum ou alguns deles, procuram exprimir-se
sem adesões de correntes ou escolas, e sem deixar de sofrer-lhes alguma influên-
cia (pois o poeta sofre todas e tudo, na medida do seu alerta} . Esses obstinazes
autônomos se capacitam talvez (não saberia dizer por que vias) de que a única
regra eterna em poesia é a que deve ser cumprida: uma eterna que é a sua própria
negação, pois que é feita de duas realidades absolutamente irrepetitivas e irrepeti-
tíveis : a realidade objetiva e subjetiva e interativa mesma, perpetuamente móvel a
engendrar emergentes, potencializantes e atualizantes, e a linguagem perpetua-
mente aberta a dizer o inédito, o inaudito, os futuríveis , os impossíveis, com o
que o seu código e sistema jamais são fechados e jamais tão abertos que sejam a
própria negação do intersubjetivismo. A única afirmação que parece válida é que
a poesia apresenta hoje em dia espectros ou pólos insuspeitáveis no século XVIII ,
insuspeitados no século XIX , insuspeitandos no século XX, insuspecturos no sé-
culo XXI. A essa afirmação poder-se-á acrescentar uma segunda : espectros e pó-
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los da poesia hoje em dia vão desde expressões no tempo, crônicas, as expressO'es
fora do tempo, acrônicas, a expressões do tempo pretérito, anacrônicas , a expres-
sões do tempo futuro , precônicas, a expressões que neguem o tempo, ucrônicas .
E o mesmo se diria em relação ao espaço , poesias tópicas , atópicas, anatópicas ,
protópicas, utópicas , diatópicas, metatópicas. E o mesmo com relação à física , à
mimese, à ergia , à lógia, à patia: afísica, anafísica , profísica, ufísica , diafísica ,
metáfísica; animética , anamimética , promimética, umimética, diamimética , me-
tarnimética; anérgica, proérgica, unérgica, dianérgica , metanérgica ; alógica , analó-
gica , prológica, ulógica, dialógica, metalógica ; apática, anapática, propática, upá-
tica, simpática, empática, diapática, metapática- e os combinatórios que se qui-
serem.
Este é um poeta já amadurecido na faina diuturna de poetar - pertence àque-
les que já tem um saber de experiência feito, o único que concilia teorias e práti-
ca, pois esta é ainda (quando não o será?) o critério da verdade .
Ponho-me a imaginar algumas coordenadas que me levam a intuir algum sen-
tido- não um claro sentido . Carlos Nejar nasceu em Porto Alegre, de cepa levan-
tina, em 1939. Fez-se advogado, é promotor público e professor secundário , em
São Jerônimo. Já publicou quatro livros de poesias - Sélesis (Ed . Globo , 1960),
LivrodeSibion (Difusão de Cultura, 1963). Livro do Tempo (Champagnat , 1965)
e O Campeador e o vento (Ed . Sulina, 1966). Que é que faz esses "turco" -brasi-
leiros , já em primeira geração - como tantos outros que eu poderia citar e nos
quais (i) modestamente me incluo - sejam ou tão polarmente avessos à lingua-
gem (quando em geral prosperam no comércio, indústria ou ... jornalismo) , ou
((ainda quando cristãos: maronitas, greco-ortodoxos , e os vindos raro não o são)
tão, quase coranicamente , adictos a ela? Sua função social no nosso meio, como
mascateantes esparzidores de mercancias por todos os confins pátrios , já foi obje-
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to de um belo ensaio de ilustre gaúcho . Sua vocação miscigenante com a massa
brasileira também - e, em segunda geraç:ro , o que lhes resta do passado é um tal-
vez vestígio de orgulho étnico , um prazer gastronômico para com certos pratos
que tendem a vulgarizar-se entre nós e , ademais , esse algo ligado ã língua , ou
oposto a ela que deles faz ou péssimos usuários , consuetudinários, ou razoáveis
teóricos de suas formas , ou até , por vezes, escritores que acrescentam algo ao
nosso meio. Carlos Nejar está por certo entre os do último caso - e como poeta ,
o que o singulariza , pois poetas dessa ascendência temos ainda tido uns poucos
apenas.
A leitura de sua obra , a releitura e a degustura da-o-nos motivo para certos oti-
rnismos . O primeiro refere-se a esse fato notável - o de , já de alguns anos , a vin-
da para a capital cultural (que já não temos ; temos várias) n:ro é condiç:ro para
conhecimento do que acontece no mundo das letras . Essa aristócrática república,
ela pelo menos , democratiza-se e está em todos os recantos imagináveis do país:
no Nordeste , com foros quase autônomos ou pelo menos autógenos no Ceará,
na Para1ba , em Alagoas , em Pernambuco e além ; na Bahia , no Espírito Santo ;
Minas e São Paulo vão ao requinte , principalmente a primeira , de terem escolas
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localistas universalitíssimas (Cataguases , Divinópolis , por exemplo) . E assim por
diante. O segundo refere-se ã quase total ausência de defasagem : os poetas desses
recantos embebem-se na circulaç:ro universal , estão dentro da gratosfera terres-
tre , e podem aderir aos -isinos que quiserem , pois deles têm conhecimento.
Em Carlos Nejar isso é patente . A matéria-prima de suas elaboraçOes é de pri-
meira mão , porque é a vida , mais dos outros em que se inclui a,sua, do que a sua
em que a dos outros se espelharia ; mas é também (e nisso vai mérito) de segunda,
terceira , quarta , n ma-os , porque recua ao conhecimento de poesias pregressas e
está a par dos experimentos presentes . Entretanto , sem fil iar-se a um -ismo (im-
poss ível qualificá-lo a esse respeito), ela se apresenta informada , seletiva , aberta e
despreconceituosa . Ver-se-lhe-á , por isso , ora aqui , ora ali , ora acolá , uma influên-
cia : mas é natural, e bom, que assim seja: não há rios sem fonte , ou fontes , ou tri-
butários ou afluentes. O que nele não há é o pastiche, a tentativa de molhar leito
ou talvegue já indundado e ainda corrente .
A prática lhe tem aumentado densidade e rigor. De maneira que os livros seus
se vêm sucedendo em crescendo qualitativo , situando a sensibilidade gaúcha - e
suas afinidades psíquicas beduínas ou nomáticas ou daruesas - no quadro físico
de uma natureza e sociedade que , com terem tanta cor local , nem por isto é vista
em exotismos fáceis (é sempre usuário da língua comum , explorada não raro ,
quando a mentação o quer , em recursos normativos).
O que , porém , marca o poeta Carlos Nejar são dois traços que cumpre ressal-
tar : de um lado , a fluência e variedade rítmica , e a sabedoria da repetição (alite-
rante , assonante , cognata, refranesca , eventualmente rimante, anafórica), que dá
ao corpo poético potencialidade mnemônica de nova rapsódia . Mas , substancial-
mente , o outro lado é mais poderoso. Carlos Nejar postula desde cedo uma ética,
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que atinge, nestas Danações, o ápice. Ética moral - de onde vem ela e como se
insere ela em poesia, sen o risco de ser didática, setenciosa, acaciana ou victoria-
na? Creio que provém do orgulho humilde, ou da humildade orgulhosa, do fraco
forte consciente que se rebela e insurge contra o forte inconsciente, seja ele natu-
reza, Deus, Diabo ou Sociedade. Há algo de podre no reino da Dinamarca. Mas
isso - que é universalmente óbvio: Dinamarca, Danamarca, Mundidina , Mundi-
dana - na-o lhe suscita ambiguidades hamletianas , nem opositivamente, asserçoes
partidárias; leva-o - e já é muito - a revelar-nos a potência do protesto, mesmo
que sem sequela, pois só ele, reiterado, se fará Verbo.
Este é, assim, um livro ascendente, numa poética que é, pelo consenso de mui-
tos gaúchos, das mais representativas dos nossos pampas de hoje em dia. É, assim,
poderosamente brasileiro e universal. E prenuncia novos cantos - pois Danações
abrem um ciclo em que o social pervade e pede novos cantos, ao cantor que já
soube cantar (episodicamente) de amores, freqüentemente de buscas e perdiçOes,
e que, com neoprofetismo, se faz vindicativo e anunciador:
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Nada sou, nada tenho,
senão o que me exime
do veneno ( ... )
Assim resisto
O que sou
é dar socos
contra facas cotidianas
E é pouco.
porque
Baixa-me, se o quiserdes,
com nojo.
Também na morte
preciso de vosso engodo.
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b) O depoimento do homem *
por Nelly Novaes Coelho
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B com esta "Advertência" viril, prenhe de segurança e certezas, que se abre
Danações 1, volume que , publicado em fins de 69, simultaneamente com Orde-
ções I e II, inicia um novo momento na poesia do gaúcho Carlos Nejar, uma das
presenças mais marcantes da "geraçlfo de 60" brasileira.
Poesia que revela a presença de uma consciência de fundo sentido histórico , a
de Carlos Nejar apresenta-se como um dos exemplos mais vivos da fus:ro essencial ,
" tradição - ruptura" , que tem marcado a poesia criadora de todos os tempos .
Em seus primeiros momentos , procede da grande linhagem mítico-mística de
um Jorge de Lima, somada à nitidez concretizadora e rígida de um Jolfo Cabral
de Melo Neto. Nestas recentes produções, arraiga no húmus épico-medieval do
Fernando Pessoa de "Mensagem" e no anti-épico Drummond de sempre(= o in-
sulado numa vida adubada pela morte).
Fluindo inicialmente no nível da linguagem sagrada , fora do Tempo e doEs-
paço , mas sem naufragar em momento nenhum no misticismo religioso ou no li-
rismo da prece que define a grande poesia de J . de Lima, a poesia nejariana surge
imersa no Mito , mergulhada na "noite imemorial", no caos primordial que ante-
cedeu ao cosmos (Sélesis, 60 e Livro de Si/bion , 63). Gradativamente passa para
o "plano do Tempo" construído pelo homem (O Livro do Tempo , 65) ; deste pa-
ra o "plano do Homem inserido no tempo (O Campeador e o Vento, 66) e final-
mente nestas duas recentes publicações entra no "tempo histórico" e testemunha
o Homem que construiu esta nossa civilização em julgamento .
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De O Campeador e o Vento para estas recentes Danações e Ordenações, dá-se
como que uma explosão da essência épica que, desde as primeiras horas , perma-
necerá como uma corrente subterrânea a alimentar sua poesia . A intenção de de-
poimento e afirmação do homem denuncia-se desde logo três epígrafes colocadas
como pórtico .
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arcaicos, fortalecida pela força da entonação jurídica e pela cadência do verso
onde ecoa o "tonus" dos cronistas, a poesia última de Carlos Nejar depõe pelo
Homem .
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Compareço
do leito ou da pedra ,
com pólvora em todos os sentidos.
(. . .)
Aqui estou
por própria culpa.
Possuo o desespero
residente
naquilo qtce construo
(. . .)
Não pretendo ser salvo
Vivo explosivo, áspero,
mas vivo .
E sou meu próprio alvo. (Comparecimento)
Eis a nova face do "homem da queda '' afirmada agora com desassombro pela
poesia nejariana .
Face que , a nosso ver , é uma das contribuiçoes essenciais da "geraçcTo de 60" aos
sulcos criadores abertos pelas geraçoes anteriores desde 22. Nela se amplia aquilo
que Rui Mourcfo chamou de "herança maior que os modernistas legaram às gera-
ções mais novas " isto é , "a instituição da pesquisa como a própria razéTo de ser da
atividade criadora e a vontade de construir uma arte viva sintonizada com a pro-
blemática mais atualizada e com a realidade brasileira" . 1
1 Rui Mourão , "A Instauração de uma vanguarda brasileira" II , Supl. Lit. de O Estado de
São Paulo. 7/2/70
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Carlos Nejar é , pois , o poeta que testemunha o seu "instante", o que constrói
o tempo de sua geraçlfo , realizando uma das fus~es mais decisivas para o gênio
"nado r: amalgar Tradição e Renovação.
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homem que se afirma criadoramente, naquela dimenslro eternizada por Pessoa
em "Mensagem". ("Louco, sim, louco , porque quis grandeza/Qual a sorte nlro
dá./Minha loucura , outros que me a tomem/Com o que nela ia./Sem a loucura
que é o homem/Mais que a besta sadia ,/Cadáver adiado que procria?") E desta li-
nhagem, o homem "nejariano" ... aquele que encontra agora este mundo cadu-
co" ...
Como vemos , na nova palavra poética trazida por Nejar, nada mais resta da
"inatuaçlfo" drummondiana , do homem que imóvel contempla "o tempo de
homens partidos " (Rosa do Povo-45) e, cheio de uma ternura frustrada, com os
anos vai-se voltando para o passado e lucidamente passa a "caminhar de costas"
(Boitempo-68), numa declarada demisslro do "agir. .. " O novo homem tece con-
sideraç~es sobre a morte, procede ao arrolamento do mundo e da vida, mas nlro
se demite da açlro. O gesto criador da "geraçlro 60" mostra que os tempos já slro
outros, embora ainda nlro estejam evidentes ...
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presença que se revela por detrás. Jotro Cabral é predominantemente impessoal,
mas quando uso o "eu" também se identifica claramente consigo mesmo (Cf. po
ex., "O Rio"). De maneira mais aguda Carlos Drummond , desde Alguma Poesia
( 1930) até Boitempo ( 1968), vem-se revelando exacerbadamente individualizado
pelo "eu" que , como invisível fronteira e isola dos homens à sua volta .
Rompendo, pois , o "insulamento " que, em essência marca os poetas anterio-
res, e com a mesma consciência com que Fernando Pessoa usou o "eu" em Men-
sagem, Carlos Nejar e com ele sua geração) se afirma pela "integração" .
"Vós me haveis de dar lugar"/nesta hora semfereza "/por mais que tenhais
guardado,fpor mais que o tenteis guardar.f"Armeiro, vim desarmar "/os
agravos;fo que for/será de amor e passagem./"Pousada me haveis de dar"/e
aos meus cavalos pastagem".
O "homem-gemido " cantando em sua primeira poesia, nos idos de 60, hoje
assume, desassombrado, o "signo do Rei" e afirma seu lugar na História.
Que nos trará amanhã a poesia nejariana? A julgar pela evoluçtro que ela vem
apresentando, suas Ordenações III e IV (já anunciadas) virtro ampliar o seu depoi-
mento do homem e essa resoluta afirmação da "geração da terra" . Teremos ra-
zão? O tempo dirá . ..
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c) Danações *
por Ernani Reichmann
Danações, de certa maneira , está para Ordenações como Livro do Tempo está
para Livro de Silbion . À exuberância deste último , coloca-se o despojamento de
Livro do Tempo - idêntico despojamento que Danações apresenta-se em relaça-o
a Ordenações. Também o aprofundamento do trágico em Danações, como a cap-
tação mais pronunciada do tempo do Livro de Silbion acentuam essa relaça-o -
embora; é claro, só seja absolutamente válida a remissão de qualquer livro a seu
autor, isto é, a Carlos Nejar , no caso específico dos livros que acabamos de citar.
Inicialmente , gostaria de dizer algumas palavras sobre o trágico, não obstante
minha intenção de tratar do assunto mais tarde, quando verdadeiramente eu tiver
- tanto quanto possível - devassado o mundo do poeta de Danações. Contudo ,
uma breve referência ao trágico neste momento não poderá vir a constituir-se
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num obstáculo futuro , mesmo que meu entendimento das coisas venha a modifi-
car-se com o decorrer do tempo.
Ao dizer-se que a existência é trágica tudo está dito , desde que não se faça da
existência um mero conceito â maneira dos filósofos da existência. O fato de se
recusarem a conceituá-la em poucas pala'\lras, como são em geral os conceitos,
na-o quer dizer que a conceituam. Qual , a rigor , a diferença entre descrever e con-
ceituar? Como praticantes do método fenomenológico , dizem que não concei-
tuam , que descrevem a existência. Na verdade , porém, bem analisada a coisa, per-
cebe-se que partem sempre de uma conceituação , que está é que dá limites e con-
torno à sua descritiva e que esse conceito , assim , sempre é prévio , embora oculto .
Basta saber-se ler entre as linhas e perceber no fundo de tudo procedimentos e
atitudes para que se revele o conceito que tem da existência os seus filósofos .
Existir é uma coisa, conceituar a existência, outra. O que importa é existir , mas
toda a existência é trágica . Quando Nejar existe enquanto poeta trágico , existe
e
em seu ser mais profundo, em sua verdade. isto que se revela em sua poesia, é
claro, e não podia ser diferente .
Max Scheller pode vir em auxllio de nossa colocaça-o quando diz: "Ele (o trá-
gico) é, ao contrário , um elemento essencial do universo . O assunto no qual se
inspiram a obra trágica e o autor dramático já deve conter em si mesmo este ele-
mento sombrio ". Para que o trágico possa manifestar-se , segundo o pensador ale-
e
mlro , é preciso que um valor seja destruído . preciso que alguma coisa no ho-
mem seja destruída , como um projeto, uma vontade, uma força , um bem , uma
crença. Mas as forças que destroem o seu valor positivo superior devem elas con -
• Excerto do livro Poética de Carlos Nejar, Imprensa da Universidade Federal do Paraná ,Cu ri-
tiba, 1973.
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ter valores igualmente positivos, para que o trágico possa surgir. A arte suprema
do poeta trágico consiste pois antes de tudo em iluminar a uma plena luz os valo-
res das partes em luta e a colocar em relevo o direito intrínseco de cada persona-
gem. Em poucas linhas, é esta a concepç:ro de Max Scheller, que parece confir-
mar o que dissemos sobre o trágico em indicaçoes anteriores. Contudo a análise
do problema na poesia de Carlos Nejar exige mais do que uma simples indicaç:ro
de seus livros (na-o obstante o quadro existencial em que a procuramos situar).
Os conflitos que encontramos em Ordenações aprofundam-se em DanaçtJes,
de maneira que o homem sente a sua condenaç:ro, como réu do crime de existir.
Existência e culpa (tema bastante acentuado pelos filósofos da existência) signi-
ficam no fundo a mesma coisa porque toda existência é culpada. Mas só pode ser
culpada quando referida a algo que a transcede . Em Nejar o que transcende a cul-
pa é a vida. Mas a vida, por sua vez, é terrível. Daí o sentido do poema "Roda"
{de "Ordenaç:ro 5 ~"),que expressa de uma maneira lírica o trágico dessa circula-
ridade:
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sem ponteiros (quem pode merecê-los?)
como uma tolda única, um enredo
a deslindar-se noutro. Onde a corda
(que aos poucos enforca}, venda, solda
de sons que não entendo? Quem entorta
o andar, mas não empe"a
como se"a sempre a cortar, mortalha?
E sempre a circular, per.zetro nele -
o relógio ou a sorte - que trabalha,
sendo o próprio rodar, o próprio espelho
que a nossa brevidade não demarca.
JVadasou,nadatenho
senão o que me exime
do veneno
188
Assim, seu banimento, sua condenação n!o é dos outros que depende. Que
cada um cuide de si mesmo (o poeta não diz, mas entende-se). Essa advertência
vale também para Platão e todos aqueles que, depois dele, condenaram os poetas
ao banimento .
Ao flm de Ordenações o poeta dissera que :
Todos os passaportes
e cartas de viagem
passaram na embaixada.
Ultrapassei a fronteira,
sem passaporte ou visto,
sem porte de arma
para o que trago comigo.
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É certo que em Ordenações não poderia romper certas regras que os homens
inventaram. Em "Danações", porém, o poeta confessa que se desfez do passapor-
te e ultrapassou a fronteira levando consigo apenas a poesia. Mas também é dessa
maneira que resiste.
Em "Comparecimento" diz o poeta :
Aqui estou
por própria culpa.
Possuo o desespero
residente
naquilo que construo.
Dissemos, a propósito de Livro de Silbion que fora dos limites da fé não resta
ao homem senão assumir uma forma qualquer do desespero. Que a transparência
não é possível , a não ser em silêncio - silêncio que é a negação da poesia. E que
só por isto Nejar não é a poesia em carne e osso (algo impossível, pois poesia é
expressão). Agora sabemos que ele aqui está (isto é, que ultrapassou a fronteira)
por sua própria culpa e que, por isso, o desespero está em tudo o que constrói, o
que mostra a coerência inacreditável de Nejar. O poeta na-o recua dos deuses . A
lucidez, que o levar a ver as linhas da loucura que nele lutam, não o permite. Re-
jeita a luz e o erro, isto é, rejeita todo julgamento. Não pretende ser salvo por
ninguém, se não puder ser salvo por si mesmo, em si mesmo. Aceita a sua própria
danação. E vive, na condição de poeta que é:
189
Vivo explosivo, áspero
mas vivo
E sou meu próprio alvo.
Sabe que o cotidiano é como faca em pontas. Não importa! Continuará a dar
socos contra essas facas , e isso é pouco.
O que ama é o sangue que o crucia e doma seu ferro . Não espera dos deu-
ses , pois engendra o deus que transfere para ele a solida-o de ser o seu próprio
universo, porque :
Sou poeta,
ABL
formo o ciclo do tempo ,
onde me ente"o.
E os outros, quem sífo?
Réu? Sim, réu . Procede-se a apreensão do chapéu, com idéias impassíveis sob
a aba e a velha máscara , que se gruda contra a cara (e esconde nossa própria ver-
dade) ; o casaco e a camisa que escondem o peito , onde há pássaros e inferno (a
própria condiçlTo humana) , os livros . .. e por fim os vazios da fé , aguçada , calci-
nada, mas em pé .
Não , o poeta não quer deliberação . Os conceitos são mortos , os filósofos ro-
tos e a idéia de deus gerou o exHio . E mais , como filho da terra :
Não quero deliberação .
Quero a vida
sem refrão ou bandeira,
companheira.
190
Neste poema: "Deliberaçllo Improfícua" pode-se perceber porque a terra se
fez mundo . São palavras futuras, verdades escritas, signos e escuros, onde dor-
mem ladroes, que dão à terra o sentido que a transforma em mundo. Por isso,
sllo necessários os gestos . Só dentro do mundo os gestos adquirem significado e
expressllo.
No mundo, é como no tribunal . Tribunal em que comparece com a escura co-
ragem de um réu antigo e selvagem:
O que me prendeu
lutou comigo e venceu.
Vacilava em me reter,
mas eu que me entregava,
por saber que minha chaga
estava exposta na lei.
O poeta vai ao e vem do Tribunal. Por isso, condenou-se (é réu, mas também
ABL
juiz) a permanecer aqui no mundo.
Os dois poemas seguintes tratam da morte e do morto (tema reiterado na poé-
tica de Nejar, como vimos) .
Em "O Revés ", topamos novamente com a compreensllo da loucura. Em
"Comparecimento", ele dissera :
Não oculto
as linhas de loucura
que me lutam.
191
É ele sua própria comida ou o ente que , na matéria , revela seu próprio ser -
revela e esconde . A liturgia contrafeita dessa refeiça-o consiste num assentar-se e
levantar , mas como quem viaja e sempre torna ao mesmo lugar. Nada importa ,
sem saber a serventia das coisas, nem encarcerar-se na rotaça-o da vida , mas dige-
rir a argila de onde viemos . Ele , como os outros homens , nã"o viceja entre talhe-
res a sóbria altura dos sonhos. O que faz , farto e nunca farto , é renunciar ao abis-
mo no prato .
As asas nlfo trabalham , ele não tem peso, mas :
Demente,
o m ecanismo da morte
me alcança - trape! -
como um chicote,
no tribunal
ou em qualquer parte.
ABL
rio vem específico , em perguntas claras e respostas precisas :
E remete tudo ao julgamento , mesmo na-o sabendo onde estão suas culpas e
suas sandálias :
Ao julgamento a sede,
ao julgamento a fome,
o orgulho, a ambição , o sonho
em julgamento. O homem
em julgamento sempre,
roda e rota,
em julgamento o medo,
o corvo, a raposa, o termo.
Em julgamento todos.
Alcaide ou não decidi.
192
Aos senhores da ocasião e da guerra, o poeta pergunta:
ABL
Não vim para oferendas,
nem para impor a lei e sua lava,
temores e espadas.
Vim para dar ao homem
sua morada.
De amigos e inimigos
Fui servido,
e com tão finada vida
e alegados motivos,
que ao dar por eles, já partira
e quando dei por mim , não estava vivo.
Testemunhai a respeito
do vagão de passageiros
desvencilhado do trem,
onde apertados seguimos
desesperados e firmes ,
desconhecendo o que vem.
193
Mas que testemunhem também a respeito deles mesmos, nã"o só do poeta .
Quanto a ele:
E eu, réu,
recebo o que for.
No poema: "O Ganho" diz que não espera nada dos deuses . Mas nem sabe
mesmo:
ABL
Não poupo,
embora sabendo
que sua fonte
é de água pura.
A maior danação é a dúvida, que leva sob o braço , como um fardo ou no bol-
so . Que importa?
A maior danação
é o próprio nome
da dú vida, não ela,
volumosa fera .
ABL
gir o infmito com as têmporas, ficamos enterrados num sótlro doméstico. E o
poema termina , com estes versos trágicos :
Animal doméstico
dormes nos calendários
e a morte te desperta
no melhor da sesta.
Doméstico, até na morte doméstico .
195
No poema que se segue, descobrimos que o juiz não é outro senão aquele ge-
rado pelo próprio poeta - por ele mesmo, contra ele mesmo . Cuidou de não ter
calado o juiz nos dias em que viveu, até que finalmente separou-se do encargo,
isto é, deixou de julgar-se. E, agora , no tribunal, surgirá o julgador mais terrível ,
o julgador não parido. Assim:
Nenhuma parte
de mim se esconde,
no foro de quem reparte
o ruim.
Ao fim nada lhe resta a não ser esperar a sentença :
Espero a sentença
como quem já pós a mesa.
Espero a sentença, apenas.
ABL
mesmo tempo perguntando e respondendo :
Em "Repúdio" pede que o desterrem , pois ele (que pede) é o sinal que elimi-
na a nossa parte de fera . Pede mais que usemos de concisão ao colocar o tampão
ou ao colocá-lo qual pão para o consumo do Todo , em torno do qual ele gira e
por isso é mais ele. E :
Baixai-me, se o quiserdes,
com nojo.
Também na morte,
preciso de vosso engodo.
"Desígnio" nos traz de volta o tema do cão que se repete (se na-o forem três
cães) :
ABL
Um cão farejou a minha sorte . ..
Um cão me farejou no insondável. . .
Um cão me negreja em toda parte. . .
Sélesis? Talvez, pois este cão late no peito onde o poeta se agita. Suas patas
depositam-se sobre a rocha do não (o poeta jaz no grito) . E a última estrofe mos-
tra que é o ser que nele depõe para encontrar-se . Citemos a estrofe:
O réu ,
com os sonhos e os pés vergados
e os desvãos,
vive de estar embarcado.
Não pertence a esta corte , o rei governa sem ele. Sua alma está costurada à
nau, a estas cargas (da vida), a esta duração sem falha na esperança (que sempre
surge nos livros de Nejar como uma revelaçã'o súbita , isto é , que não poderíamos
sequer suspeitar) :
197
Gastei a roupa,
o gibtlo, a retirada
a minha alma costurada
a esta nau, a estas cargas,
a esta duraçtfo sem falha
na esperança.
ABL
Serei breve no amor e no transporte.
O óbolo está pago, o dia resgatado
e a barca pronta, como seu barqueiro amargo.
Não chega a ser estranho, mas é um fato repetido como uma constante : ao
fim de cada livro, Nejar aponta de uma maneira irrecorrível o salto para a nova
experiência (o novo livro). Assim em Sélesis, a pergunta? "Qual o destino do ho-
mem?" Em Livro de Silbion, sua opção pela terra. Em Livro do Tempo o pró-
prio tempo que se constrói e se avoluma no sangue. Em Campeador e o Vento,
é o vento que prossegue sempre . Nos dois , a continuidade do tempo e do espaço .
Ao começo de Danações transpôs a fronteira e, agora ao fim , está novamente
pronto para partir .
Acho conveniente , para encerrar esta indicaç:ro , que voltemos ao trágico . Fa-
çamos assim um pequeno confronto entre o mundo grego e o mundo crista-o e ,
em seguida , procuremos ver se o trágico de nosso dias n:ro será uma persistência
do trágico grego , como de certo modo se observa em Nejar.
Paul Ricoeur fazendo um confronto entre a culpabilidade trágica e a culpabi-
lidade bíblica, encontra dois traços que as diferenciam : "O primeiro traço da ex-
198
periência b1blica - e mais precisamente hebraica - do pecado , concerne ã situa-
ção do pecador diante de Deus . O pecado tem desde logo uma grandeza religiosa
e nlfo moral. Nã:o é a violaçcro de um mandamento abstrato , né'fo é uma desobe-
diência a valores , mas uma lesão na relaçcro pessoal com Deus.( ... ) é aquilo do
qual o penitente se arrepende . No ato do arrependimento , o pecado surge retros-
pectivamente como uma agresscro contra Deus : contra Ti pequei , só contra Ti ... "
O segundo traço do pecado b1blico - continua Paul Ricoeur - comparado à fal-
ta trágica é de se apresentar como um acontecimento primordial que sucede na
inocência . Pouco importa que para nós este relato né'fo seja mais a história do co-
meço e o começo da história , mas somente uma história exemplar. Para cada ho-
mem, o pecado começa· e recomeça. Ele sobrevem e entra no mundo ... " Tanto
para os gregos quanto para os cristãos , contudo , a responsabilidade é colocada na
consciência . Consciência de um pecado cometido contra Deus , diante de quem o
homem sempre é culpado (Kierkegaard) e consciência de uma falta da qual se
pode não ser responsável (no helenismo) . Neste último caso , a consciência da fal -
ta cometida (caso de Orestes) pode vir a destroçar o homem mesmo né'fo respon-
ABL
sável , vítima da desumanidade dos deuses . O homem nã'o passa de um brinquedo
nas maos das divindades , cumprindo suas decisões as mais extravagentes e crimi-
nosas.
O que mais nos interessa contudo é a diferença entre o trágico antigo e o mo-
derno, diferença esta muito bem colocada por Kierkegaard . Este vê a diferença
no fato de que o herói trágico moderno é subjetivamente refletido em si mesmo
e esta reflexã'o não só o leva para fora de todo contato direto com o Estado , a fa-
m11ia e o destino , mas muitas vezes também para fora de toda sua vida anterior.
O que deve nos ocupar é um momento preciso de sua vida considerada como re-
sultado de sua própria ação. É por esta razé'fo que a situaçcro e a réplica são sufi-
cientes para esgotar o trágico , porque nada resta daquilo que é espontâneo . A
tragédia moderna né'fo possui nenhum primeiro plano épico , nem qualquer heran-
ça épica. O herói se mantém ou cai por força de seus próprios a tos .
Mais de cem anos se passaram desde que Kierkegaard escreveu essas palavras.
Não poderia ele prever que o homem se tornaria cada vez mais objetivo e sujeito ,
a forças que , mesmo enraizadas no século 19, só neste século alcançaram pleno
desenvolvimento . Novamente o Estado , nã'o somente o Estado totalitário , mas o
próprio Estado democrático (através de sua organizaçã'o que penetra em todos os
recantos , mesmo os mais privados de nossa vida) é uma força terrível de pressã'o
sobre o destino de cada um . Por outra parte , novas forças surgiram substituindo
o destino e os deuses gregos , muito bem descritas por Kafka em suas obras (qua-
se proféticas). Que os deuses ou o destino tenham outros nomes , essa diferença
já nã'o é suficiente para distinguir o trágico de nossos dias do trágico grego pro-
priamente dito . Nejar , assim como Kafka , nã'o obstante possuído de uma rebel-
dia quase selvagem , como o réu de " Danações, topou com os deuses (poderia tê-
los chamado por outros nomes, se tivesse querido), mas procurou manter sua li-
199
herdade diante deles, nã"o obstante saber que estamos condenados só pelo fato de
existir. E possível e sou levado a acreditar que a distância entre o trágico grego e
o moderno , na colocaçã"o de Kierkegaard , só é dada pela reflexa-o . A existência,
sem reflexa-o , subjuga-nos , faz de cada homem um escravo , submetido a todas as
forças cegas do nosso tempo (que procuram converter o homem num andróide).
A reflexa-o , porém , liberta-nos , pela consciência que adquirimos dessas forças e
sua cegueira , ãs quais nos submetemos ou contra as quais lutamos , verdadeiros
rebeldes . Daí o sentido maior da poética de Carlos Nejar , um dos mais lúcidos
poetas do nosso tempo!
ABL
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