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42082020 1013
Abstract The article aims to discuss the care Resumo Este texto tem como finalidade discutir
provided by female healthcare workers in Brazil o cuidado de trabalhadoras da área da saúde em
during the Covid-19 pandemic, based on a socio- face da Covid-19, sob a análise sociológica de au-
logical analysis by authors who discuss such care toras que o vêm discutindo enquanto um trabalho
as devalued and poorly paid work performed to que é desempenhado, na sua maioria, pelas mu-
a large extent by low-income women. The work lheres das classes populares, é desvalorizado e sofre
involves social constructions of emotions and has baixa remuneração. É uma atividade que envolve
used the body as a work instrument in care for as construções sociais das emoções e tem utiliza-
others. In addition, the increasingly precarious do o corpo como um instrumento de trabalho no
nature of health work in Brazilian society, aggra- cuidado com o outro. Além disso, a precarização
vated in recent decades, with an increase in tem- do trabalho em saúde na sociedade brasileira
porary contracts, loss of labor rights, overload of acirrada nas últimas décadas, como o aumento
tasks, and adverse work conditions, among others, de contratos temporários, perdas de direitos tra-
adds to the increase in medical and hospital care balhistas, a sobrecarga das atividades, condições
in the Covid-19 pandemic. In this context, female de trabalho precárias, dentre outros, soma-se com
healthcare workers experience lack of personal o aumento dos atendimentos médico-hospitalares
protective equipment, fear of coronavirus infec- diante da pandemia da Covid-19. Neste contex-
tion, concerns with their children and other fam- to, as trabalhadoras em saúde vivenciam as au-
ily members, and illness and death of coworkers sências de equipamentos de proteção individual,
1
Instituto de Ciências and themselves. The article highlights the need for medo de contaminação pelo vírus, preocupações
Humanas e Sociais, government attention and management of health- com filhos e familiares, vivências diante da morte
Universidade Federal de
Mato Grosso. Av. Fernando care work and professional societies, analyzing the e do adoecimento de si e de colegas de profissão.
Corrêa da Costa 2367, work conditions female healthcare workers are ex- Este texto aponta para a necessidade de atenção
Boa Esperança. 78060 periencing in confronting the pandemic. governamental, bem como para a gestão do tra-
900 Cuiabá MT Brasil.
silvanasocipufmt@ Key words Work conditions, Pandemic, Women balho em saúde e dos órgãos de classe profissional,
gmail.com workers, Gender analysis in health analisando as condições de trabalho que as traba-
2
Departamento de Estudos lhadoras em saúde estão vivendo no enfrentamen-
sobre Violência e Saúde
Jorge Careli, Escola Nacional to da pandemia.
de Saúde Pública Sérgio Palavras-chave Condições de trabalho, Pande-
Arouca, Fundação Oswaldo mia, Mulheres trabalhadoras, Análise de gênero
Cruz. Rio de Janeiro RJ
Brasil. na saúde
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Bitencourt SM, Andrade CB
qual seja, quase uma essência da própria ideia de É através dele que cuidadoras experimentam
feminilidade “saber e estar disponível” para cui- sentimentos próprios diante da morte e do ado-
dar do outro14. ecimento alheio, realizam procedimentos para
Interessa-nos salientar que, tal como reafirma antever as necessidades das pessoas, ou seja, ela-
Hirata18, sob a perspectiva da divisão sexual do boram estratégias para atender as demandas do
trabalho, a atividade doméstica, das quais partici- cuidado. E, nesse sentido, “a solicitude e a res-
pam as mulheres de maneira emblemática e real, ponsabilidade sentidas, assim como os significa-
é um trabalho e, portanto, deve ser considerada dos que têm, não são dadas e naturais”13(p.44).
nas análises sobre gênero e suas confluências no Assim sendo, Borgeaud-Garciandía13 consi-
mercado. dera que são construídas na dinâmica e nas ten-
Conforme Hirata e Kergoat19, é relevante sões das relações de trabalho do cuidado no âm-
considerar a condição de bipolarização entre bito público ou privado. Dessa maneira, é preciso
as mulheres para se analisar a situação delas no lidar com a morte e com os dilemas morais para
mercado, pois a compra da função doméstica a tomada ou não de decisões. Mas, ao mesmo
nos últimos tempos tem sido fundamental para tempo, existe um convívio diante da intimidade
as das classes médias construírem suas carreiras, entre quem recebe e quem a realiza, uma vez que
fato que complexifica as relações de gênero, por- o reconhecimento da vulnerabilidade do outro é
tanto de poder entre as mulheres para participar necessário para a condução do atendimento das
do trabalho. Leva-se em consideração, ainda, que necessidades de quem é cuidado13.
a maternidade tem ficado sob a responsabilidade Sendo o care requerido em todas as socie-
das mulheres e não avaliada como uma questão dades, por pessoas em situações de vulnerabili-
social, que precisaria da efetiva ajuda do Esta- dade ou não, realizado por especialistas ou não,
do, das políticas públicas e do exercício de uma ele exprime a sua extensão subjetiva para além
paternidade consciente, que dividiria as tarefas da venda da força de trabalho na sociedade ca-
domésticas, incluindo o cuidado dos filhos, com pitalista. É a partir das considerações sobre as
suas companheiras20. construções subjetivas e o cuidado, que Pascale
A partir de tal abordagem, portanto, traze- Molinier24 considera as experiências de sofrimen-
mos as contribuições das produções teóricas to, compaixão, processos criativos e de afetos nas
feministas e metodológicas dos estudos do care, interações, com vistas à preservação da vida de
sobretudo de autores como Helena Hirata12, Na- quem é cuidado.
tacha Borgeaud-Garciandía13, Ângelo Soares21 e A perspectiva das construções subjetivas no
Pascale Molinier22-24, pois consideram o cuidado e pelo trabalho de cuidado traz avanços para
como trabalho. analisar as suas facetas e complexidades, pois,
Ao aproximarmos desse campo teóri- de acordo com Molinier22-24, existe uma invisibi-
co12,13,21-24, é possível conhecer as condições de lidade dos saberes e fazeres de cuidar. Uma das
trabalho nas quais estão expostas as trabalhado- contribuições trazidas pela autora é sobre o sa-
ras da saúde, as suas inserções e permanências ber-fazer discreto, em que as antecipações para
no mercado, os salários e as jornadas, as formas proporcionar conforto e bem-estar estão sempre
de conciliação entre esfera produtiva e reprodu- presentes nas ações da cuidadora (remunerada
tiva (cuidado com filhos e familiares, atividades ou não), sem que as pessoas percebam um gesto,
domésticas etc.). Somam-se a isso a perspectiva o zelo ou a prevenção de uma complicação, por
das construções subjetivas e os desafios postos a exemplo; sem contar as preocupações com o con-
elas, sobretudo no que diz respeito ao cuidado forto físico e emocional da pessoa cuidada. Além
em saúde realizado em tempos de pandemia, tais disso, existe um saber-fazer que é aprendido nas
como o medo da morte e do adoecimento, o ter formações técnicas, mas também pelas adversi-
que lidar com a sobrecarga devido ao aumento dades do cotidiano de trabalho, tal qual o encon-
do número de pessoas que necessitam de atendi- tro de soluções diante de um problema24.
mento, o cansaço físico e mental, os sentimentos Salientamos que, além do cuidado com o cor-
de compaixão e de responsabilidade. po do outro, o trabalho em saúde, especialmente
O trabalho de cuidado é complexo, pois en- daqueles que estão em contato direto com as pes-
volve as interações entre quem cuida e quem é soas, é permeado pelo uso do corpo. O conceito
cuidado, bem como engendra as relações sociais de trabalho corporal, que ficou durante muito
para atender as necessidades humanas com vistas tempo sem ser central para a sociologia do tra-
ao bem-estar e conforto, solicitando de quem cui- balho, agora parece ser indispensável, sobretudo
da a responsabilidade pela ação13,21-24. nos avanços sobre o trabalho com e pelo corpo,
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Se visitarmos os sites dos conselhos de classe, valorização salarial quando comparadas com os
como da enfermagem ou da medicina, as condi- homens. Sem dúvida, “a desigualdade de gênero
ções vividas pelas trabalhadoras da saúde estão influencia as condições de trabalho e a forma
ruins, de modo a verificar que o Brasil é o país como os atores as racionalizam”38(p.15), o que
que mais teve mortes de profissionais do setor reitera que as condições de trabalho de mulheres
em decorrência da Covid-19, segundo o CO- se relacionam com a segregação sexual (trabalho
FEN e o Conselho Internacional de Enfermeiros de homem e mulher) nas inserções no mercado38.
(ICN). Até a data de 27 de outubro de 2020, fo- Considerando que ainda não temos um
ram confirmadas 454 mortes de trabalhadoras/es prognóstico para lidar com o coronavírus, mes-
da equipe de enfermagem (enfermeiros, técnicos mo que medidas protetivas sejam acatadas pela
e auxiliares) no cenário brasileiro e 41.926 casos população e possam diminuir o risco, como a hi-
reportados34. gienização das mãos com o uso de álcool em gel
Em recente pesquisa sobre as condições de e lavagem com água e sabão, bem como a utiliza-
trabalho no Brasil, foram encontradas cerca de ção de máscaras, o isolamento e distanciamento
17 mil inconformidades nos atendimentos da social, podemos verificar que inúmeras profissio-
Covid-19, relatadas por 1.563 (56% de mulheres) nais da saúde têm sido contaminadas e não sa-
participantes. Dentre os maiores agravos, têm-se bem a forma como contraíram o vírus. Portanto,
a ausência de: a) EPI, citada por 38,2% (másca- as emoções, como medo de morrer, preocupação
ras, aventais, óculos protetores, luvas etc.); b) in- em contaminar familiares e ansiedade por não
sumos, exames e medicamentos (kit de exames saberem como será o dia de amanhã, tendem a
de Covid-19, medicamentos etc.), por 18,9%; c) intensificar a pressão emocional que vivenciam.
equipe de profissional de saúde (enfermagem, Os corpos das profissionais de saúde torna-
medicina, limpeza, alimentação e fisioterapia), ram-se números, como um narrou ao ser entre-
por 13,7%. Igualmente, a pesquisa mostra a falta vistado sobre seu trabalho, que sentia muita tris-
de produtos hospitalares, como álcool (líquido e teza de ver as vidas que importavam sendo agora
em gel), papel toalha, sabonetes, desinfetantes e somadas em números de “lápides” devido à in-
leitos hospitalares, dentre outros35. tensificação das mortes diárias: “Hoje nós somos
O Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), números, agora os nossos números de matrículas
em nota, aponta o medo de infecção sentido pela estão sendo substituídos por número de lápides”
categoria, o receio de transmissão para seus fa- (profissional de saúde)39.
miliares (filhos e pais adoecidos), o pouco cuida- Os sentimentos gerados na pandemia têm
do de si em decorrência do tempo que resta e da transformado a realidade social, assim como as
intensificação das atividades, as vivências diante subjetividades femininas, sendo que a incerteza
das mortes de colegas e de pacientes. Além disso, produzida diante da Covid-19 já se apresentava,
o evidente desgaste físico de se trabalhar por ho- considerando as consequências do projeto da
ras em pé, com pouco tempo de repouso36. modernidade40 perante as limitações do conhe-
Certamente, essas condições permeiam ou, cimento científico para responder como será o
pelo menos, relacionam-se com o adoecimento amanhã. Nos termos weberianos, esse conheci-
dessas trabalhadoras em saúde. E, dessa maneira, mento apresentava limitações por não responder
as vivências diante do cuidado retratam as vio- às indagações relativas ao sentido da existência
lências pelas quais vêm passando, entendendo-as humana, ou seja, o que devemos fazer e como
como aquelas que envolvem: “[...] a negligência devemos viver41, diante da realidade social apre-
em relação às condições de trabalho; e a omissão sentada.
de cuidados, socorro e solidariedade diante de No contexto antropocêntrico, no qual a ci-
algum infortúnio, caracterizados pela naturaliza- ência moderna foi compreendida como uma
ção da morte e do adoecimento relacionados ao conquista humana, que resolveria todos os di-
trabalho”37(p.30). lemas enfrentados pela sociedade, os preceitos
Assim, chamamos à atenção para as relações religiosos, assim como todos os outros tipos de
de gênero e as desvantagens das mulheres no conhecimentos, foram deixados em segundo pla-
mercado. Estas têm sido objeto de estudos e, de no41, pois a ciência emerge como saber único e
acordo com a União Europeia, são elas que mais verdadeiro da modernidade. Assim, é afirmada a
têm sido expostas às doenças profissionais, aci- hegemonia do conhecimento ocidental, branco e
dentes de trabalho, violências, como os assédios, masculino. Os conhecimentos produzidos e de-
os empregos precários e com baixos salários, bem senvolvidos pelas mulheres sobre o corpo femi-
como possuem jornadas mais extenuantes e des- nino e o trabalho reprodutivo foram ignorados
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Agora o elogio pode ser um antídoto para silen- a mercantilização (quem paga e quem oferece o
ciar vozes que querem trabalhar, mas precisam serviço de cuidado, quem tem acesso ou não ao
de condições adequadas para desenvolver suas cuidado profissional, quem realiza a formação
atividades que foram vistas como necessárias, es- profissional e quem paga por ela), em um país
senciais e valiosas no contexto desta pandemia. desigual como o Brasil, até a concretude da ativi-
Considera-se que as heroínas se tornaram “sim- dade, que é feita, na maioria, pelas mulheres das
ples enfermeiras”49, portanto pessoas que preci- classes populares.
sam também de cuidados, sobretudo na realida- E, assim, este artigo reflexivo aponta para a
de brasileira, em que a precarização do trabalho necessidade de atenção governamental a gestão
está posta. Como analisamos anteriormente, do trabalho em saúde e dos órgãos de classe pro-
o aumento dos atendimentos da Covid-19 e as fissional, percebendo as más condições a que es-
precárias condições de trabalho permitem ques- tão vivendo no enfrentamento da pandemia. Não
tionar o peso da representação de “heroínas” que é possível que essas condições possam ser esca-
essas mulheres estão recebendo nesta pandemia. moteadas diante de tanto adoecimento e mortes
de profissionais deste setor.
Dessa maneira, a partir da perspectiva da
Conclusões análise sociológica do trabalho de cuidado, foi
possível entender que muitas mulheres, enquan-
Diante do cenário de grande crise sanitária que to trabalhadoras da área de saúde, estão viven-
vem enfrentando o Brasil, temos a percepção ciando inúmeros desafios, inclusive os de adoeci-
de que as mortes e os adoecimentos ocorridos mentos e mortes de colegas de trabalho, além da
em decorrência da Covid-19 apontam para a precarização e diminuição dos investimentos na
necessidade de um sistema de saúde público de área de saúde pública, que já assolavam o setor
qualidade, tal como o proposto pelo SUS, para antes até mesmo do contexto pandêmico.
o atendimento integral e universal da população Ademais, os medos e as emoções relativos a
de norte a sul do país para todas as classes sociais. essas vivências precisam ser pensados de modo
É também neste período que fica evidencia- que, coletivamente, as ações para a saúde dessas
da a centralidade do trabalho de cuidado, como profissionais sejam garantidas em um momento
aquele que produz e mantém a vida social na es- de negacionismo da ciência como o que vivemos
fera produtiva e reprodutiva, mas que, ao mesmo e de intensificação das demandas de trabalho,
tempo, possui suas contradições, que vão desde seja em casa ou na área da saúde.
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