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O mar do menino

De tanto observar seu pai no ato da pescaria, quando os dois iam de canoa, para o alto mar,
ganhar tempo, a vida; através da quantidade de peixes a serem pescados e vendidos no
principal mercado da cidade de São Tomé. O filho, de apenas 9 anos, aprendeu tal ofício quase
genético, munido duma atenção curiosa que o fez saber como usar essa arte ao seu favor. As
redes de pesca metamorfoseavam-se em instrumentos fáceis de serem manuseados, os remos
que no começo pareciam duros, passaram a ser mais leves, pois as suas mãozinhas já se
tornavam autossuficientes para esse tipo de trabalho. Dizem que a leveza do espírito consegue
mover qualquer dureza física. O “anzu” (criança) do mar percebeu isso. E tão cedo vai iniciando
a aplicação desse princípio.

Sob as regras do mar, não muito longe nem muito perto daquela praia em Neves, onde este
miúdo esperto espertíssimo habituava-se pescando, no comando da canoa, sozinho, ou
melhor, acompanhado do seu irmão de 7 aninhos. Que sem mais demoras, também irá com
duvidosa certeza, seguir as mesmas “ondadas” patriarcais. Um destino traçado, mas incerto,
porque nem sempre um fruto do pescador, pescador é.
Mesmo expostos aos perigos da natureza, esses obreiros infantis encaram o desafio, o esforço,
a pesca tradicional, e ainda por cima nadam como se o oceano fosse uma parte crucial dos
seus pequenos âmagos. Uma respiração cheia de maresia, que os identifica e ensina o valor do
trabalho honesto, sem precisarem passar pela escola. O conhecimento também brota de
lugares onde nada se espera colher.

O segredo das boas colheitas está na persistência. Inicialmente, a inexperiência pode falar mais
alto, os erros podem ser enormes, mas quando a vontade de vencer é multiplamente enorme,
os bons resultados aparecem. Dentro da canoa, existe uma lengalenga que balança os corpos,
as ondas fazem agitar esse objeto que impede a água de entrar em grande quantidade, e
afundá-lo. O garoto permanece firme nas suas pequenas pernas, tentando seguir a sua sina, na
busca do alimento e do empirismo que lhe permitirá melhor conduzir, aquilo que o Criador
ofereceu “quase afabalmente” (gratuitamente): a inteligência para o domínio-imperfeito-do
mar.
No céu, havia muitas nuvens com uma branquitude acinzentada, uma ameaça de trovoada
estava um tanto distante. A amenização do ambiente inventava certa calmaria marítima, e os
pensamentos do menino aplainavam até lugares longínquos, onde ele se imaginava numa sala
de aula, aprendendo o que não desejaria aprender. Afinal, tudo o que ele quer está ao seu
alcance. A imensidão salgada à sua frente representa a educação facultativa que é essencial na
identidade que vai construindo.

Durante esse tempo, os peixes iam sendo apanhados aos montões, queixando-se do seu ganho
de azar, e da vitória de sorte do pequeníssimo pescador. Pra ver que a natureza consegue
beneficiar uns, prejudicar outros, e de vez em quando, àqueles seres beneficiados também
acabam saindo prejudicados.
Variados sorrisos rodeavam os lábios do rapaz, que via uma formidável recompensa pela
devoção ao rejubilar das águas marinhas. A felicidade é feita de pequenas conquistas. Naquele
instante, a aluvião dos peixinhos tristonhos com uma respiração desinspirada, era o motivo
desse triunfo. Com certeza, isso seria um motivo de orgulho para o seu pai, que mesmo não
estando ali no momento, se fazia representar abstratamente, nos ensinamentos que passou
para o primogénito.
Já de regresso à praia, por volta das 10h15. Ele, mais o seu pequeno irmão, arrastaram com
uma boa dose de força, a canoa que os guiou e continuará guiando pelo mar fora, nas
próximas viagens. O resultado da pescaria foi demasiadamente proveitoso para estabelecer-se
desaproveitado. A mãe, que é ”palaiê” (vendedora de peixe) e costuma vender os peixes na
feira de ponto ou arredores, lá pela capital, estava com a mão na cintura, numa pose
matriarcal, perto do sítio onde a areia e o barro se encontram em exaspero. De olhos bem
fixos nos filhos, esperando-os com um sorriso nos lábios, devido à retribuição que lhe foi
passada pela cara de felicidade dos miúdos. Ela sentia-se orgulhosa e satisfeita com o facto de
ver seus rebentos a cuidarem de si e da sua família, desde mais tenra idade. Mesmo que
muitos olhem para essa situação como uma exploração de mão de obra infantil, é priorizável
dizer que existe uma política prazerosa no interior dessas crianças-crescidas, cuja
aprendizagem as levam a sentirem-se capazes e importantes, dentro da estrutura familiar.
Também coexistem na ideia de que a vocação, não é uma característica somente dos
antropólogos e doutores de uma determinada ciência, pois pode ser inspirada para as ditas
classes menos valorizadas e mal posicionadas na convencionalidade da pirâmide das
profissões.

Após ter cumprido sua missão naquela batelada azul-esverdeada, o catraio esperto
espertíssimo, em vez de descansar o cansaço, acabou espoletando-o multiplamente, seguindo
para o mato com os seus amiguinhos do peito, para uma expedição aos safuzeiros (árvores que
concebem um fruto chamado Safú, típico em São Tomé e Príncipe) que iam reproduzindo
imensos “safús” na época. Pretendia arranjar muitos deles, para serem vendidos,
principalmente, aos mais ilustres cidadãos de Neves, - pequena cidade do distrito de Lembá - e
os restantes iriam ser levados a casa, onde seriam degustados pelos seus pais e irmãos. Trata-
se dum estilo de vida agitado, mas que é vivido com a intensidade de quem ama fazer o que
faz.
No momento em que voltava para o lar doce lar, quando a tarde ia se tornando mais escura e
as estrelas se materializavam timidamente no teto do planeta, o menino de pele negra e
africana deu um salto até a praia, para dar um mergulho gostoso de água salgada, saboreando
a sua independência traquina e pensando no dia de amanhã, que espera vir a ser tão bom
como o dia de hoje que, calmamente, vai anoitecendo.

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