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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE é uma publicação

quadrimestral do ANDES-SN: Sindicato Nacional


dos Docentes das Instituições de Ensino Superior.

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dade de seus autores. Todo o material escrito po-
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A greve e os limites da institucionalidade
ASSINATURAS e pedidos de números avulsos:
utilize o cupom da página final.

Conselho Editorial: Antonio Candido; Antônio


7 A greve e o limite da institucionalidade.
Ponciano Bezerra; Carlos Eduardo Malhado Bal- Lara Lorena Ferreira
dijão; Décio Garcia Munhoz; Florestan Fernandes
(in memorian); Lauro Campos; Luiz Henrique
Schuch; Luiz Pinguelli Rosa; Márcio Antônio de
9 “República dos professores” -
Oliveira; Maria Cristina de Morais; Maria José
perdemos o status, não a dignidade.
Feres Ribeiro; Maurício Tragtemberg (in memori- Maria Ciavatta
an); Newton Lima Neto; Oswaldo de Oliveira Ma-
ciel; Paulo Freire (in memoriam); Paulo Rizzo; Re-
nato de Oliveira; Sadi Dal Rosso. 17 Fazer política sindical em contexto de
criminalização dos movimentos sociais.
Encarregatura de Imprensa e Divulgação: Marcelo Badaró Mattos
José Domingues de Godoi Filho

Coordenação do GTCA: 23 Flexibilização trabalhista: engodo de pretensa


José Domingues de Godoi Filho, Antônio José modernização,
Valle da Costa e Adriano Severo Figueiró. Mauro de Azevedo Menezes
Editor:
Edmundo Fernandes Dias 32 “O financiamento público para a universidade
pública é necessário”.
Editores Adjuntos: Antônio Ponciano Bezerra e Francisco Miraglia e Soraya Smaili
Franci Gomes Cardoso

Secretário Executivo Editorial: 37 Avaliação da greve de 2001, das IFES, pelo CNG.
Jair Tenório Jatobá

Edição de arte e editoração eletrônica:


Dmag Comunicação
Universidade, Estado e Educação
Capa e ilustrações:
Doriana Madeira (Dmag) A descoberta (im)prevista: transformar servidores
53 públicos em investidores financeiros.
Revisão de textos:
Antônio Ponciano Bezerra Ana Elizabete Mota

Revisão final:
Iara Yamamoto
65 Segurança nas universidades públicas: um caso
para a polícia?
Maria Aparecida Morgado
Impressão e acabamento:
Copy Service
73 Ensino de história e formação de professores.
Tiragem: Terezinha Alves de Oliva
3.000 exemplares

REDAÇÃO E ASSINATURAS: ANDES-SN 78 Imprensa estudantil: jornais da década de 1930.


Jorge Carvalho do Nascimento
Secretaria Regional São Paulo. Av. Prof. Luciano
Gualberto, trav. J. 374, antiga reitoria, sala
ADUSP, Cidade Universitária, São Paulo-SP. 83 O crescente interesse do Banco Mundial pela
CEP: 05508-900, educação no Brasil: razões explicativas.
Tel. 011-3813-5573, ffax: 3814-9321 Alexsandro Sousa Brito
e-mail: andes.sp@adusp.org.br
Home Page: http://www.andes.org.br
Entrevista: Miriam Limoeiro Cardoso 43

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE
Sumário
Homem e Sociedade
99 Teoria das ondas longas Kondratiev e a recessão mundial: contra-ofensiva imperialista
e estratégia de recolonização.
Valerio Arcary

106 Análise crítica do plano diretor da reforma do aparelho do Estado.


Eduardo Alves

119 Desenvolvimento e natureza: interpretação e possibilidade de diálogo.


Gilberto Marques

129 Os Estados Unidos: começo do fim.


Aluizio Lins Leal

Memória do Movimento Docente


143 Entrevista com Raul Guenter.
por Antônio Ponciano Bezerra

Depoimentos
147 Por que a Revolução dos Cravos deixou de ser socialista - entrevista com o tenente-
coronel Otelo Saraiva de Carvalho.
Por Waldir José Rampinelli

152 A Europa, os Estados Unidos e o Brasil de JK apoiaram a ditadura de Oliveira Salazar -


Entrevista com o professor Fernando Rosas.
Por Waldir José Rampinelli

159 A escola latino-americana frente ao neoliberalismo. Entrevista com Ronald J. Lárez.


Por Jaume Martinez Bonafé. Tradução de Maria da Graça N. Bollmann

Resenhas
165 A lei contra a justiça - um mal-estar na cultura brasileira. Morgado, Maria Aparecida.
Editora Plano, Brasília, 2001, 175p.
Por Roberto Boaventura

Ensaio Fotográfico 167


Trabalhadores em luta: cenas da democracia brasileira nas ruas.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 3


Editorial Institucionalidade:

Editorial limite ou possibilidade?


Existe um conjunto grande de palavras que determina o comportamento das pes-
soas no interior de uma dada sociedade. Palavras - nada inocentes - que demar-
cam o campo do possível, do praticável, do aceitável. Palavras-constituidoras do re-
al, na medida mesma em que possibilitam ou proíbem, apóiam ou reprimem, atua-
lizam ou recalcam.
Cidadania, institucionalidade, greve... Cada qual com sua força semântica e polí-
tica, com seu interdito ou sua permissão. Quando falamos em cidadania e em ins-
titucionalidade, estamos determinando, a um só tempo, tanto uma relação de pos-
sibilidades quanto o cerceamento de outras. As palavras-forças não são neutras.
Elas expõem concepções de mundo, realidade, política, ciência.
Cidadania é hoje uma palavra mágica. Determinando, como natural, o conjunto
dos procedimentos atuais, ela ilegitima as manifestações contraditórias, as tendên-
cias antagonistas.
O monarca não coroado, do alto do seu “saber” sociológico, nos afirma isto com
clareza: vivemos a “utopia possível”. Qualquer um pode, com facilidade, ver o con-
tra-senso aí embutido. O utópico não pode obviamente estar limitado pelo possível.
Se aceitamos esta caracterização fatalista “o possível”, percebemos o diferente co-
mo “impossível”, “não racional”, “contrário à natureza das coisas”. Se acrescentar-
mos a isso a obviedade de que toda sociedade necessita reproduzir-se, vemos que
o discurso do possível é o limite da vontade das forças sociais que comandam a so-
ciedade. Nada tem de natural. Ela é uma forma particular de fazer-viver a política.
Se a institucionalidade vigente não pode ser alterada substancialmente, sob pena
de sairmos do campo da lei, veremos que todas as vozes discordantes são necessa-
riamente interditáveis de princípio.
A greve é, na realidade, exemplar nesse sentido. Ela é uma alteração do cotidia-
no da dominação da institucionalidade imposta, por isso, sempre se busca quem se-
rão os prejudicados. E cidadãos de “elevada” consciência “cívica” tratam logo de
designar “os cabeças” do movimento, os responsáveis pelo fato de uma massa
determinada ser levada a extremos que ela, por si só, não chegaria. A desqualifica-
ção da massa é clara: “os cabeças” comandam os “sem cabeça”.
Se na ordem privada a greve pode funcionar como um limite ao arbítrio e à acu-
mulação, no setor público, ela é vista como deteriorando as condições de um “ser-
viço público” que, no dia a dia, os governantes vêm procurando destruir de forma a
cumprir os ditames do FMI, do Banco Mundial e da OMC. Quem são os “cabeças” é
uma pergunta que facilita as coisas para eles, porque desloca a questão. Paranóia?
Não. Aliás, a prática decenal de adiar e procrastinar a resolução dos conflitos pare-
ce ser a forma ótima para os governantes, embora seja a pior possível para os tra-
balhadores e para a sociedade.
A institucionalidade e a cidadania, contudo, não são coisas, mas relações. São
campos onde as diversas classes, categorias, forças sociais buscam, mesmo consi-
derando a brutal desigualdade de poder, apresentar suas propostas à sociedade.
Esta não pode ser resumida ao governo como os dominantes gostariam. Por um
golpe de prestidigitação, o governo, porta-voz dos grandes grupos econômicos, apa-
rece como a voz da sociedade, enquanto que aqueles que lutam pelos direitos
sociais são apresentados como corporativistas. Este é o segredo da institucionalida-
de possível.
Quando nosso Sindicato se colocou a consigna “Movimentos Sociais e Uni-
versidade: a mesma luta”, ele afirmou que outras formas de relação entre governan-
tes e governados eram possíveis e necessárias. Para além dos limites do possível-
fatal, as greves das Universidades e da Educação afirmam novo programa. Afirmam
a necessidade de uma nova sociedade: a socialista.
Este número traz valiosas compreensões sobre o conjunto das lutas e das alterna-
tivas que se apresentam para nossa sociedade. Que a leitura destes artigos e das
fotos estimule a toda(o)s a produção de novos conhecimentos e de uma nova forma
de viver politicamente, de viver como coletivo de individualidades desenvolvidas e
não como reunião de individualismos que recusem a construção social.
Os editores
A greve e os limites da institucionalidade

Universidade e Sociedade Ano XII, Nº 26,


XI, Nº 26, fevereiro
fevereiro de
de 2002
2002 - 5
6 Ano XII, Nº 26, fevereiro de 2002 Universidade e Sociedade
A greve e os limites da institucionalidade

Lara Lorena Ferreira *

A greve e o limite
da institucionalidade

Não é o objetivo, neste breve go 37, inciso VII, da Constituição Fede- cia contida da norma acima transcrita,
ensaio, trazer à colação o histórico ral pátria: “o direito de greve será exer- reconhecendo nela a possibilidade do
das disposições legais que já cido nos termos e nos limites definidos exercício do direito de greve mesmo
trataram sobre a greve dos em lei específica”. Desde a promulga- antes da edição de lei, e que seria re-
servidores públicos no Brasil, ção de nossa Constituição, bem como gulada dentro da esfera do poder dis-
para melhor contextualização do da Emenda Constitucional nº 19/98, o cricionário do Poder Público. Há quem
problema, ou fazer um estudo tema do exercício do direito de greve defenda ainda que esta lei deve se re-
comparado do direito de greve, tem colecionado muita polêmica dou- vestir sob a forma de lei complemen-
já que o espaço não permitiria. trinária e jurisprudencial. Vários juristas tar para a aplicabilidade do dispositivo
Assim, o foco dessa análise passa a já se debruçaram sobre a questão e constitucional; outros, apenas de lei
ser mais pontual e centralizado no nossos tribunais não permaneceram à ordinária. Por outro lado, o Supremo
atual cenário institucional e no margem do debate. Tribunal Federal (STF) defende a posi-
conflito que a ausência da norma Um breve panorama sobre as posi- ção da inviabilidade do exercício do
regulamentadora desse exercício ções atuais tomadas pelos operadores direito de greve dos servidores públi-
de direitos acarreta. do Direito, sem delinear os argumen- cos, enquanto a norma não for regula-
No que concerne à Administração tos envolvidos, se faz necessário. De- mentada por lei. Por sua vez, o Supe-
Pública Direta e Indireta, dispõe o arti- fendem alguns doutrinadores a eficá- rior Tribunal de Justiça (STJ) tem enten-

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 7


A greve e os limites da institucionalidade

dimento majoritário de que o exercício


do direito de greve pode ser exercido O cidadão vem sendo penalizado pela inércia
amplamente, mesmo sem a regula-
mentação do inciso VII, artigo 37 da do Poder Público, e os instrumentos constitucionais
CF, porém, com a restrição do descon- à sua disposição, embora acionados,
to dos dias parados enquanto a norma se mostram totalmente inócuos
infra-constitucional não sobrevier.
Toda essa discussão se torna ultra-
passada à medida que, nesta matéria, sanção ao Legislativo, em caso da não sempre tem muito a perder. A falta de
os cidadãos não têm sucesso efetivo elaboração de lei, não pode mais o respaldo legal para intermediar essa
na garantia de seus direitos, mesmo cidadão ver seu direito constitucional, situação, cuja ausência, tal como disse-
recorrendo aos instrumentos constitu- legítimo, constrangido em virtude da mos, inicialmente, pode parecer inte-
cionais disponíveis para dar aplicabili- ineficiência do Poder Público, ou ain- ressante, sob uma determinada pers-
dade a direitos e garantias individuais, da, da falta de interesse político de ela- pectiva política, se revela deletéria à ins-
tal como o mandado de injunção. boração de determinadas leis. tituição, havendo desgaste sob todos os
Na realidade, o cidadão vem sendo A polêmica que cerca a questão do aspectos da mesma e das autoridades
penalizado pela inércia do Poder Públi- direito de greve do servidor público administrativas envolvidas que, ao mes-
co, e os instrumentos constitucionais à ocorre não somente pelos interesses mo tempo, devem lidar com os prejuí-
sua disposição, embora acionados, se em pauta, mas também porque envol- zos que a falta do serviço público acar-
mostram totalmente inócuos. O man- vem direitos que estão nas paixões do reta, com a insatisfação dos funcioná-
dado de injunção, garantia constitucio- ser humano. O direito de greve acaba rios, com a opinião pública e com a
nal do cidadão sempre que a falta de sendo um desdobramento de direitos pressão de autoridades administrativas
norma regulamentadora torne inviável individuais, como o direito à liberdade, superiores. Contudo, nesse caso, o pro-
o exercício de direitos, tem se tornado à igualdade, de associação e de direi- blema criado para a instituição pública
obsoleto, visto que não cumpre seu pa- tos políticos à medida que a greve não reverte a favor do servidor que tam-
pel, em parte, em razão do próprio Po- constitui um instrumento democrático bém, sem a regulamentação da lei, arca
der Judiciário. Se o Poder Legislativo a serviço da cidadania. com o ônus de permanecer à mercê do
não realiza seu trabalho ordinário, de A posição adotada pelo STF e a inér- poder discricionário da autoridade ad-
elaboração de leis, cabe ao Poder Judi- cia do Poder Legislativo podem, num ministrativa da instituição. Afinal, quem
ciário, no caso o Supremo Tribunal Fe- primeiro momento, trabalhar a favor de sai ganhando nessa situação?
deral, assumir a responsabilidade de uma determinada convicção, mas ter- O problema da greve no serviço pú-
suprir tal lacuna no caso em concreto, minam agindo contra a própria Consti- blico é ainda maior por se realizar co-
conforme diretriz constitucional, saindo tuição e colocando em xeque as institui- mo uma desobediência civil direta ao
da posição passiva que assumiu quan- ções públicas que, constantemente, se Estado, diferentemente de greve dos
to ao problema em tela, de não reco- defrontam com o problema da greve. trabalhadores que agem contra em-
nhecer o direito de greve enquanto a A instituição pública que enfrenta presas. Como tratar esses desobedien-
lei infra-constitucional não for editada. uma greve entre seus servidores, sem tes civis? Penalizando suas ações, mes-
Ora, a discussão é de fato ultrapassa- o respaldo legal para equacionar o mo sendo legítimas? O exercício do di-
da, não cabendo mais argüir se depen- problema, tem como contrapartida pa- reito de greve representa assim o limi-
de ou não de elaboração de lei para o ra reprimir a greve a ameaça do uso da te da cidadania e o instrumento mais
pleno exercício do direito de greve sua autoridade para cortar funcioná- adequado para ela se impor. É, neste
porque, uma vez tendo sido o Poder rios ou a folha de pagamento, ou ain- sentido, um teste à democracia no pa-
Público chamado, como o foi nesta da, autorizar o emprego da violência fí- ís, e, na prática, um teste aos dirigentes
matéria, por via do mandado de injun- sica, concentrada nas mãos do mono- das instituições públicas, que devem
ção, a cumprir sua função de editar a pólio estatal, deflagrando então nessas perseguir a consolidação dessa demo-
lei, e permanece até então sem tê-lo ações toda a mácula da falta de tradi- cracia.
feito, o ônus se transfere ao Poder Pú- ção democrática que os anos de re-
* Lara Lorena Ferreira é advogada da
blico, e não ao cidadão. Este é um pas- pressão nos impuseram, levando a ins- Associação dos Docentes da USP e mes-
so à frente da discussão em pauta. A tituição pública ao descrédito e, por tranda em Filosofia do Direito, na PUC-SP
despeito da tímida posição que o STF vezes, à antipatia da sociedade.
assumiu nesse caso, não impondo Dessa forma, a instituição pública

8 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


A greve e os limites da institucionalidade

Maria Ciavatta 1

“República dos professores”-


perdemos o status,
não a dignidade
2
“Professores em greve para não apagar o futuro”.

Introdução
Causou polêmica a manifestação de
um jovem estudante universitário
mostrando descrença e descaso para
com o regime “democrático” de
nosso país. Seu argumento era o que
já está vigente, é o “sistema de mer-
cado”. Seu pensamento não surpreen-
de diante da sociedade competitiva e
agressiva que se instala no país, ali-
mentada pela mídia, pelo desempre-
go e pela violência do dia-a-dia nas
grandes cidades. O que surpreende é
que ele não parece distinguir um regi-
me “democrático” (mesmo entre
aspas) de um sistema de força, como
as ditaduras vividas, com todos os
seus tormentos, pelos brasileiros das
gerações anteriores à sua.
A violência simbólica dos meios de
comunicação, a ditadura da moda e
do consumo, da compra e venda da
consciência política e a violência real
da repressão aos pobres que pertur-
bam a ordem pública com a venda de
quinquilharias, com os pequenos fur-
tos, com sua fome incômoda, não de-
vem ser muito diferentes para quem
tem vinte anos e só conhece este
mundo ou o Primeiro Mundo que tem
suas próprias violências. Mas, para
quem está na universidade tentando

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 9


A greve e os limites da institucionalidade

trabalhar com valores diferentes do


consumismo e da violência institucio- Fomos levados à greve pela intransigência de
nal, surpreende a “nova cultura” inte-
governantes autoritários, intransigentes e ciosos
riorizada sem um gesto de recusa, co-
mo uma fatalidade absolutamente do pagamento da especulação financeira que caracteriza
normal. as dívidas externa e interna.
Esta reflexão parte desse fenômeno
mas não se detém nele, diretamente. ça equilibrista” na “República dos sidente, recolhemos vários depoimen-
Nós, professores das universidades Professores”.3 tos. Pessoas das gerações 50 e 60 lem-
públicas e servidores públicos de vá- bravam o status de professor na socie-
rias categorias, fomos levados à greve Os professores, coitados?! dade brasileira. Era figura de honra nas
que sói consumir nossas melhores Diz o samba popular carioca “quem comemorações, pessoa importante
energias. Fomos levados à greve pela é você que não sabe o que diz, meu ouvida com deferência pela cultura,
intransigência de governantes autori- Deus do céu que palpite infeliz!” Foi conhecimentos e experiência, a quem
tários, intransigentes e ciosos do pa- com este sentimento de espanto que eram confiados os filhos na escola que
gamento da especulação financeira os professores universitários comenta- era, como os professores, instituições
que caracteriza as dívidas externa e vam na manhã seguinte à declaração4 respeitadas na sociedade.
interna. Insensíveis às reais necessi- do ex-professor homenageado com o Os mais novos, nascidos sob o im-
dades de sobrevivência dos trabalha- título doctor honoris causa em univer- pacto das novas tecnologias e da co-
dores assalariados e da importância sidades de várias partes do mundo, municação, viam os professores como
da instituição pública, mostram des- “príncipe dos sociólogos”, autor de im- aqueles que, por seu adentramento
dém para com os professores e à pro- portantes livros no passado, ex-aluno nos estudos das diversas áreas do sa-
dução do conhecimento que deve ali- de grandes mestres da intelectualida- ber, não apenas devem transmitir co-
mentar a qualidade de vida, a educa- de brasileira e, depois, mestre, ele nhecimentos, mas ser portadores da
ção e a democracia no país. Neste mesmo, de gerações de intelectuais, reflexão e do diálogo.
breve texto, primeiro, queremos recu- colega de muitos professores, da Uni- Para alguns, ser professor é uma
perar algumas declarações durante o versidade de São Paulo e de outras profissão de fé, não apenas um em-
movimento que manteve os professo- grandes universidades. prego, um trabalho como outro qual-
res das instituições federais de ensino Como tudo na vida, mesmo de um quer. Deve ter o espírito crítico e o dis-
superior em greve, durante 107 dias “palpite infeliz” é possível extrair lições. cernimento sobre os valores a serem
(de agosto a dezembro); em segundo A primeira delas é a reflexão sobre o preservados nas novas gerações. Nada
lugar, refletir sobre o lugar dos profes- que é ser professor. A segunda é sobre se compara na formação de alguém
sores na sociedade e, particularmen- a relação ensino e pesquisa na univer- como ter bons professores, alguém
te, nas universidades públicas no Bra- sidade. que goste de estudar, que prepare
sil, objeto final destas reflexões que Sobre a primeira questão, discutindo bem as aulas, que disponha de seu
tem como pano de fundo a “esperan- a greve em curso e as palavras do Pre- tempo para orientar os alunos, que
não espere retorno imediato porque
nem todos os alunos são gratificantes.
O exame histórico da profissão, no
quadro luso-brasileiro,5 mostra, em pri-
meiro lugar, a origem “missionária” da
profissão, herdada da latinidade via o
sistema de ensino dos jesuítas e a ati-
vidade docente do clero. Em segundo
lugar, desde antes da expulsão dos
jesuítas, no século XVIII, começa a se
processar a profissionalização do do-
cente. As famílias ou os municípios
mantinham os professores. Estes, nem

10 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


A greve e os limites da institucionalidade

sempre, repassavam os recursos dos


impostos cobrados (o “subsídio literá-
rio”), os régios ordenados que permi-
tissem aos professores “decente ho-
nestidade de habitação e de indepen-
dência”.6
Com o sistema de “aulas régias”,
autorizadas pela Coroa, cria-se o pro-
fessor “público” que dava aulas nas es-
colas de meninos e meninas ou em
casa e “passa a ser pago através de es-
truturas administrativas estatais e de-
las fica dependente sob o ponto de
vista burocrático, pedagógico e disci- ção Federal de 1988. Sob o pretexto te porque há muita informação nova
plinar”. Os lugares docentes passam a de regulamentar o direito de greve, o na Internet, competição entre os pares,
ser preenchidos por concurso e os pro- Governo pretende aplicar a nós uma sistemas quantitativos de avaliação.
fessores classificados em efetivos ou lei de greve similar à do sistema pro- Mas, no nível universitário, a atualiza-
substituto por dois ou três anos. Entre- dutivo. Irônica e autoritariamente, a ção e a produtividade requeridas en-
tanto, a afirmação histórica da catego- medida provisória elaborada para punir tram em conflito com o discurso con-
ria como classe profissional se daria os grevistas interfere em nossa liberda- traditório da valorização do professor e
bem mais tarde, pelo sindicalismo do- de e autonomia, campo fundamental o aligeiramento de sua formação, os
cente e pelo avanço das “ciências da para o conhecimento. Se aplicada, a salários rebaixados, a substituição dos
educação”. atividade docente passa a ser regulada concursos públicos plenos por contra-
A partir dos anos 70, no Brasil, os não pela esfera pública que lhe é ati- tos precários de um até dois anos, para
professores começaram o processo de nente, mas pela esfera do capital. professores substitutos horistas.
unificação de suas lutas com outras Quanto ao “ofício de professor”, se- Exemplo dessa ambigüidade da po-
categorias profissionais que atuam nas gundo os estudiosos,8 estão se proces- lítica governamental é também a dis-
escolas (funcinários administrativos, sando mudanças que dizem respeito seminação de cursos ditos superiores
serventes) e na sociedade. Explicita-se ao questionamento da identidade do em tempo breve de dois anos, conteú-
“a vinculação das lutas pela democra- professor, que vê seu papel diminuído dos reduzidos das ciências humanas e
tização da educação e pela organiza- pela intervenção de outros profissio- sociais e dos fundamentos filosóficos e
ção dos professores com as lutas dos nais na instituição escolar (psicólogos, históricos da cultura e da educação.
trabalhadores”. No plano político-orga- animadores etc.). Ao mesmo tempo, Referimo-nos, específicamente, à ten-
nizativo, nas palavras de Florestan Fer- ele é chamado a ampliar sua atividade tativa de proibição aos cursos de peda-
nandes, teriam passado de “funcioná- com funções organizativas e a compar- gogia de formar professores (Decreto
rios da burguesia a trabalhadores da tilhar a atividade docente com outros no. 3.276/99), à atenuação do mes-
educação”.7 especialistas, a dividir o trabalho com mo decreto sob a pressão dos movi-
Contraditoriamente, ao nos tornar- equipes educativas em diversos níveis mentos sociais organizados (Decreto
mos trabalhadores assalariados, auto- de ensino. no. 3.554/00), e à criação dos Insti-
denominados trabalhadores da educa- No quadro atual brasileiro, ser pro- tutos Superiores de Educação (Reso-
ção, somos alvo do cerceamento do fessor supõe qualificação, experiência, luçào no. 01/99, do Conselho Nacio-
direito de greve previsto na Constitui- atualização permanente, principalmen- nal de Educação) que regulamenta a
LDB no. 9.394/96, prevendo a forma-
No nível universitário, a atualização e a produtividade ção de professores do ensino básico
em nível superior até o final da Década
requeridas entram em conflito com o discurso
da Educação, dezembro de 2007. 9
contraditório da valorização do professor e o Aos professores, principalmente os
aligeiramento de sua formação universitários, exige-se que faça o vín-
culo entre a razão, a palavra e o pensa-

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 11


A greve e os limites da institucionalidade

mento, e a sociedade dos dois terços


de excluídos.10. O que nos leva a pen-
sar, diante do suposto esgotamento da
razão e da política, que devemos de-
sentranhar, “com nossas vidas, outras
formas de política, só viáveis se formos
capazes de forjar conceitos fecundan-
tes de uma realidade mais includente,
mais plural e mais solidária”.11
Quanto à segunda reflexão, acima
proposta, a relação entre o ensino e a
pesquisa na carreira do professor, os
depoimentos ouvidos e as manifesta-
ções escritas são no sentido de que os
bons professores fazem pesquisa e
conseguem estabelecer diálogos enri-
quecedores. A pesquisa evita um ensi-
no livresco e repetitivo, alimenta e alar-
ga a compreensão da realidade ine- para ensinar e não devem fazer pes- ensino e a pesquisa não se realizou.
rente à atividade docente. quisa porque são escolas do Terceiro Apesar da perspectiva promissora das
Alguns cientistas e professores se Mundo. Grandes pesquisadores são grandes universidades, a maioria das
manifestaram claramente ofendidos grandes professores”.13 Trata-se de instituições não se manteve à margem
com as palavras do Presidente: “Em uma política que induz à separação do processo, seja por incompetência
qualquer país decente, a profissão de entre o ensino e a pesquisa, à diversi- ou por imediatismo de objetivos.16 Ou-
professor é honrada, seja ele do ensi- ficação das instituições entre poucas tras, por não terem equipes produzin-
no fundamental, médio ou superior. de excelência, destinadas à produzir do segundo os padrões exigidos pelas
Menosprezar o professor é um atenta- pesquisa, com apoio institucional, e agências financiadoras, não puderam
do contra a civilização que é transmiti- aquelas de massa, escolões, com pro- pleitear recursos e reforçam o círculo
da pelos docentes. Só nos países mais fessores horistas, destinados ao ensino vicioso de quadros docentes com par-
primitivos e broncos não é assim”. A de graduação, como fazia prever o ca ou nenhuma dedicação à pesquisa.
exemplo de outros adjetivos como va- Projeto de Emprego Público,14 barrado Acrescente-se o fato da grande expan-
gabundos para os aposentados, neo- neste momento pela ampla mobiliza- são do ensino privado, a partir da dé-
bobos para os que se opunham às po- ção e greve dos docentes. cada de 60, e a existência de mais de
líticas neoliberais de seu governo, “es- Uma investigação realizada no final 2/3 das instituições de ensino superior
ta declaração desqualifica o trabalho e dos anos 80, examinou a indissociabi- serem privadas.
a profissão do professor. Nós também lidade do ensino e da pesquisa (pre- Também há diferenças entre as áre-
produzimos conhecimento e saber. A vista no art. 2º. da Lei 5.540/68), em as de saber pesquisadas. Elas têm ori-
carreira de professor transcende a pró- uma universidade pública em algumas gem e histórias distintas, com níveis
pria ciência. Sou assistente social. Não áreas do conhecimento (Biologia, Fí- de desenvolvimento e institucionaliza-
produzo ciência, mas contribuo para o sica, Letras e Ciências Sociais).15 Alguns ção diferenciados. O que, em parte,
pensamento crítico da sociedade”. 12 aspectos são de especial interesse pa- também é fruto da criação de muitas
Outros chamaram a atenção para o ra nossa reflexão, não tanto por sua universidades, a partir da união de fa-
projeto político-educacional em curso originalidade, mas pelo alerta para a culdades e institutos isolados, que tra-
no Brasil: “A universidade é uma insti- permanência histórica da falta de um ziam apenas a estrutura de ensino. A
tuição que se caracteriza por unir o projeto institucional de valorização da indissociabilidade do ensino e da pes-
ensino à pesquisa. Fernando Henrique pesquisa e da atividade docente. quisa, enquanto projeto institucional,
parece estar adotando a visão do Ban- Dentro das condições de implanta- “implica relações de poder e constitui
co Mundial de que as escolas da Amé- ção da lei mencionada, a meta da ex- uma expressão simbólica” ligada dire-
rica Latina têm de ser escolões apenas celência da indissociabilidade entre o tamente à história da instituição.

12 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


A greve e os limites da institucionalidade

Quanto aos professores entrevista- to, “desde 1988, o maior orçamento - mas que não quer oferecer serviços;
dos pelos pesquisadores, verificou-se com relação ao Fundo Público Federal em segundo lugar, trata-se do uso do
que as atividades de pesquisa não são (FPF) e ao PIB - é de 89 (ano em que fundo público, alocando-o a institui-
percebidas como um “preceito de lei, as Ifes receberam R$ 9.427 bilhões, ções públicas ou privadas que ofere-
mas como uma prática que pode ser em valores corrigidos). Depois houve çam serviços a uma população que
melhor compreendida como a expres- queda violenta até 92, ano do impe- não tem como pagar. Na prática, isto
são de um ethos e de uma visão de achment de Collor. Esses números vol- significa a possibilidade de repassar
mundo, internalizadas através de sím- tam a subir até 1995, para R$ 7.670 bi- alguns serviços totalmente para a ini-
bolos e processos socializadores, cuja lhões - reflexo do governo Itamar Fran- ciativa privada, e apenas subsidiar ou-
base principal, na grande maioria dos co -, mas não chegaram aos índices de tros, a exemplo das universidades que
casos, foi a relação tutorial professor- 89. Desde o início do governo FHC, o devem captar recursos no mercado.
aluno”. (op. cit., p. 13). orçamento teve queda lenta e dimi- A gênese mais recente dessa situa-
Ambas as funções, ensino e pesqui- nuiu 15% no período”, o que significa ção que atinge, particularmente, as
sa, concorrem para a reprodução do um estratégia para levar as Ifes à cap- universidades públicas federais, está
conhecimento. Mas a produção crítica tação de recursos no mercado.20 no ajuste estrutural que o Governo
do saber não tem a mesma demanda vem promovendo em todos os níveis,
da função reprodutora que supõe uma Opera-se o desmonte através de reformas, dentro de um
postura acrítica e de conformidade, projeto claramente subordinado à
enquanto a função crítica implica a progressivo da capacidade nova ordem internacional e aos pro-
possibilidade de contrapor-se aos inte- das instituições e de seus cessos de globalização associados às
resses contraditórios obscurecidos pe- políticas neoliberais. Estas mudanças
profissionais, de oferecer
las ideologias de legitimação daqueles estão pautadas pela idéia do Estado
que detêm o poder.17 ensino e desenvolver a mínimo e de sua desobrigação para
com os serviços sociais e, conseqüen-
pesquisa e a extensão
Universidades públicas temente, sua privatização pela desre-
para quê? 18 dentro dos padrões de gulamentação, pela descentralização
As universidades públicas são as qualidade que a sociedade com o repasse de responsabilidade na
mais atingidas pela crise do ensino su- captação de recursos, embora man-
perior no Brasil. A elas estão sendo ne- tem o direito de exigir. tendo o poder centralizado, avaliador e
gados os recursos suficientes para o coordenador. No quadro empobrecido
desempenho de suas atividades fins, o No entanto e apesar disso, são as da população brasileira, estas mudan-
ensino e a pesquisa e, complementar- universidades públicas, por terem pro- ças sinalizam maior desagregação e
mente, a extensão, ao mesmo tempo fessores mestres e doutores e tempo exclusão social.
em que se pratica a política de privati- de dedicação à pesquisa, que respon- No âmbito do ensino superior, estas
zação do ensino pelo crescimento das dem por cerca de 80% da produção reformas, apoiadas em forte vontade
instituições particulares. Em entrevista, científica no país. E, em meio à greve, política, detalhados instrumentos jurí-
durante o período de greve, o Ministro o Exame Nacional de Cursos, o polê- dicos produzidos pelo Executivo e re-
da Educação, Paulo Renato de Souza, mico “Provão” destinado aos egressos cursos externos estão conduzindo a
declarou que “A sociedade brasileira do ensino superior em diferentes cur- um processo de regressão na demo-
vai ter que decidir se ela vai querer fi- sos, confirmava o desempenho supe- cratização do conhecimento nas diver-
nanciar o sistema [público] no futuro”. rior dos alunos provenientes de cursos sas regiões do país. Opera-se o des-
E previu o fim do ensino gratuito, acres- das instituições públicas de ensino su- monte progressivo da capacidade das
centando que o atual sistema “em cin- perior. instituições e de seus profissionais, de
co ou seis anos se esgota”.19 A crise que atinge o ensino superior oferecer ensino e desenvolver a pes-
A questão orçamentária é o pano de público deve ser localizada, principal- quisa e a extensão dentro dos pa-
fundo da institucionalização das condi- mente, no contexto da reforma do Es- drões de qualidade que a sociedade
ções precárias da atividade docente tado e do uso do fundo público. Trata- tem o direito de exigir.
nas universidades públicas federais. se, primeiro, da passagem de um Es- É um desmonte molecular através
Segundo Amaral, estudioso do assun- tado provedor a Estado coordenador dos baixos salários, da perda de poder

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 13


A greve e os limites da institucionalidade

aquisitivo para atualizar-se, da extinção “eficiência social”, faz-se a manipula- Neste contexto, a democracia torna-
das vagas dos professores (titulados) ção das massas pelo monopólio dos se um fetiche que aparenta ser uma
que se aposentam, da contratação de meios de comunicação. coisa e é outra, mas da qual o imagi-
jovens professores substitutos sob vín- Em oposição ao seu controle, atra- nário político não pode prescindir. As-
culos precários, sem voto nos departa- vés de um Estado forte, do poder cen- sim se explicaria que uma medida tão
mentos, sem tempo para pesquisa e tralizado e de sua integração pelas ve- acertada (e tardia) como a tentativa de
sem apoio institucional para prosse- lhas formas políticas clientelisticas, universalização do ensino fundamen-
guir sua formação. Sob o signo do Gramsci defendia que “uma nova civi- tal, que o Governo promete levar adi-
mercado e da privatização, compro- lização só poderia vir à luz pelo ingres- ante, seja contraposta à redução/extin-
mete-se a formação crítica das novas so na história das massas livre e demo- ção, privatização do ensino médio téc-
gerações que devem constituir os qua- craticamente organizadas”. Diferente nico público e à privatização/ensino
pago das universidades públicas, com
uma argumentação indefensável de
falta de recursos, quando a ditadura
do mercado financeiro consome bi-
lhões.
Algumas idéias básicas balizam os
limites da democracia. Primeiro, quais-
quer que sejam os valores norteadores
de uma sociedade e as formas de go-
verno assumidas por sua organização
política, ela tem por base uma socie-
dade concreta. Segundo, as estruturas
de legitimação de uma sociedade, o
pensamento político, as formas ideoló-
dros mais preparados do país, e reduz- dos defensores das políticas neolibe- gicas, com que se apresentam os go-
se a possibilidade de um mínimo de rais hoje, ele estava convencido de vernos, são sempre mais aparentes
soberania que a produção do conheci- que somente pelo desenvolvimento que as condições de base (as relações
mento pode assegurar à solução dos de uma consciência histórica da reali- sociais de produção) em que se funda-
problemas brasileiros. dade e de uma ação política para ele- mentam ou que lhes dão origem. Ter-
A análise crítica da universidade bra- var a condição “moral e intelectual” ceiro, a forma de organização política
sileira, para prestar um serviço ao país, das massas seria possível chegar a mais avançada que conhecemos, a
deve apontar as disfunções e os entra- uma sociedade que pudesse humani- democracia, é a forma mais frágil, exa-
ves de ordem política que prejudicam zar-se e autogovernar-se. tamente porque supõe a expressão
o desempenho desta instituição, mas Este pensamento, que permanece das condições concretas, contraditóri-
também situar estes problemas no atual como no tempo de sua concep- as da vida social, dos interesses de
âmbito mais amplo de projetos socie- ção, supõe a democratização do aces- grupos e de classes sociais. Quarto, a
tários alternativos do país e de sua so aos bens materiais e da cultura, o democracia não é um conceito de
inserção internacional. De forma bre- que sempre foi uma contramão da his- igualdade universal (como faz crer a
ve, nos deteremos apenas na questão tória em um país de base político-so- doutrina política liberal e sua ressigni-
da democracia e da educação. cial escravocrata como é o Brasil. E o é ficação, o neoliberalismo), mas de de-
O povo, entendido como massa ou ainda mais hoje quando se acentuam sigualdade real e de conflitos que de-
massas populares, historicamente, todas as formas de elitização sob a vem ser administrados segundo parâ-
sempre representou uma ameaça à ação do mercado globalizado onde até metros que podem ser mais ou ser
ordem social e uma preocupação para a produção de massa, do modelo for- menos igualitários.
as elites. A solução tradicional de sub- dista, tende a ser cada vez mais subs- Quem deve arcar com os custos da
metê-lo pela persuasão e/ou pela tituída pela produção de qualidade, educação? Ainda não chegou ao Brasil
força é uma constante na história da para os poucos privilegiados que po- sequer o ideário da burguesia indus-
humanidade. Hoje, com muito mais dem pagar. trial dos países hoje desenvolvidos,

14 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


A greve e os limites da institucionalidade

que organizou o Estado para suprir as status de mestres e de profissionais


carências “morais e intelectuais” dos Não apenas os brancos respeitados nesta sociedade, mas não
filhos da classe trabalhadora, forman- perdemos a consciência da dignidade
e os ricos, mas também
do o cidadão através de uma educa- de nossa profissão, cabe velar pela boa
ção elementar obrigatória, gratuita, os negros e os pobres formação das crianças e jovens que
professores remunerados e respeita- logram ser bons nos são confiados e resistir à desestru-
dos, prédios e equipamentos escolares turação insidiosa do Estado de direito.
profissionais e contribuir
condizentes com a função. Diante do “A cada um com suas armas”, dizia An-
crescimento populacional e de seu
para o avanço tonio Cândido, “e nossas armas, como
empobrecimento, o Estado brasileiro do conhecimento. intelectuais, são as palavras”.22 Mas as
busca transferir para o setor privado a palavras não são signos vazios, elas
tarefa de educar. Isso tanto se faz pela espaço da criação intelectual e científi- são sentidos e significados que mo-
adoção de escolas pelas empresas, pe- ca”, nas palavras de C. M. Castro, é cer- vem a consciência, inspiram ações e
la imposição do padrão empresarial de to, também, que sob um regime de- instauram novas formas de se inserir
gerência e de qualidade total em to- mocrático, quando são dadas as opor- na realidade.
dos os níveis, quanto por sistemas mal tunidades de uma boa escolarização A nós é dada a opção privilegiada de
divulgados de incentivos e bolsas de em todos os níveis, não apenas os resistir pela palavra, pelo diálogo e
estudo para as instituições privadas. brancos e os ricos, mas também os ne- pelas ações a todas as formas de desu-
Esta desfiguração da responsabilida- gros e os pobres logram ser bons pro- manização que a vaidade, a prepotên-
de da esfera pública tem uma dupla fissionais e contribuir para o avanço do cia e o poder engendram. Ser profes-
conseqüência: a educação deixa de ser conhecimento. É desnecessário citar, a sor é investir no horizonte. Podemos
concebida como um direito subjetivo história é rica de exemplos, em todas até ter as pequenas alegrias do retorno
inalineável e condição da cidadania as épocas. Mas, para tanto, é preciso que nos dão nossos alunos bem suce-
efetiva e transforma-se em um “bem democratizar o acesso e, principalmen- didos no seu aprendizado, na sua ex-
qualquer”, um serviço que se compra te, a permanência dos jovens de todas periência de vida. Mas nosso investi-
no mercado. As parcerias, os apadri- as classes sociais com suas experiên- mento maior é no mundo a que aspi-
nhamentos estimulam uma história cias culturais particulares, com a vivên- ramos construir para as novas gera-
das “elites do atraso” que tomam o cia de problemas e soluções diferen- ções, onde prevaleçam os valores da
descontínuo e parco apoio à educaçâo ciados. É preciso ter um projeto de país ética, da justiça social e da dignidade
e à cultura como forma de fugir ou de e ações coerentes para um desenvolvi- da vida humana. Já não basta a demo-
mascarar sua obrigação de impostos mento econômico e social que seja cracia representativa dos interesses de
na construção do fundo público. Como também desenvolvimento cultural. uma elite, lutamos pelo reconheci-
conseqüência, como advertiu Flores- Este é o objetivo prioritário da uni- mento do direito de todos aos benefí-
tan Fernandes, chegamos ao final do versidade pública: ampliar sua área de cios da riqueza social.
século XX sem um efetivo e democrá- conhecimento e de ação no sentido de
tico sistema público de ensino. por em movimento um projeto de país Rio, jan. 2002.
Falida a escola elementar pública na que não seja apenas uma série de pla-
tarefa de humanizar para a complexi- nos econômicos, mas um projeto res- NOTAS:
dade do mundo moderno, e levada à ponsável de formação para a ciência e 1. Licenciada em Filosofia, Doutora em Ciên-
falência a universidade pública pela para a cidadania. Este deve incluir a cias Humanas, Professora Titular da Uni-
carência de recursos materiais e hu- produção do conhecimento que con- versidade Federal Fluminense, Niterói, Rio
manos, o recurso à privatização não in- tribua para a solução dos problemas de Janeiro, Brasil. ciavatta@alternex.com.br
terfere na formação das elites mas do país e para o resgate do povo bra- 2. Jornal da ADUFF-SS do ANDES-SN, out. 2001.
aumenta a exclusão daqueles que sileiro, oferecendo à grande massa se- 3. Estabelecida pelo Presidente da República,
buscam emergir do analfabetismo lite- cular dos desamparados os meios de Fernando Henrique Cardoso/ex-USP, o Mi-
ral, político e social. Se é certo que o vida, de esperança e de dignidade. nistro da Educação, Paulo Renato de Sou-
ensino superior é “ensino de elite”, za/ex-UNICAMP, a ex-Secretaria e a atual
que exige “motivação para a abstração Considerações finais 21 Secretária deo Ensino Superor, respectiva-
e o esforço adicional de operar no A nós professores, que perdemos o mente, Eunice Durham/USP e Maria Helena

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 15


A greve e os limites da institucionalidade

Guimarães/formada pela UNICAMP, o 9. Silva, Waldeck Carneiro da. A reforma da versidade: questão de lei ou de visão de
Coordenador da CAPES, Abílio Baeta Ne- formação de Professores no Brasil e o lugar mundo? Cadernos de Pesquisa, Fundação
ves/UFGRS, os membros ou ex-membros do social da universidade. In: Linhares, Célia Carlos Chagas, São Paulo, (69): 5-16, maio
Conselho Nacional de Educação Silke (org.). Os professores e a reinvenção da es- de 1989.
Weber/UFPe, José Carlos Almeida da Sil- cola. Brasil e Espanha. São Paulo: Cortez, 16. A exemplo das declarações do o educador
va/ex-UFBa, Rose Neubauer/USP, Lauro Zi- 2001, p. 120-1. João Uchoa Cavalcanti Neto, dono da Uni-
bas Zimmer/Universidade Estácio de Sá, 10. Outros autores falam do “mundo 20 por versidade Estácio de Sá que, em três déca-
Yugo Okida/UNIP (Objetivo), Carlos Alberto 80, a sociedade de um quinto”. Martin, das de existência, passou de 166 alunos a
Serpa de Oliveira/CESGRANRIO e ex-UGF, Hans-Peter e Schumann, Harald. A armadi- 90 mil. Em entrevista à imprensa, ele decla-
Antonio Mcdowel Figueirdo/ UFRJ, Artur Ro- lha da globalização. O assalto à democracia rou que “a pesquisa em si não vale nada. As
quete de Macedo/ CESGRANRIO e ex- e ao bem-estar social. São Paulo: Globo, faculdades privadas não fazem pesquisa
UNESP, além dos membros de outras pastas 1999, p. 21. porque não querem jogar dinheiro fora”.
do Governo, também professores ou ex-pro- 11. Linhares, Célia. Introdução. Educação e Entrevista à Folha Dirigida, reproduzida em
fessores. Apud Costa, Cristina e Carvalho, professores em tempo de armar e amar. In: Dono de faculdade diz que estudar é boba-
Priscila. Seleto grupo. Caros Amigos, São Linhares (org.), op. cit., p.10. gem. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, sexta-
Paulo, Edição Especial, (9):20-1, nov. 2001. 12. Declarações, respectivamente, do físico Ro- feira, 16 de novembro de 2001, p. 6.
4. ”Mas se a pessoa não consegue produzir, nald Shellard do Instituto Brasileiro de 17. A análise utiliza-se de Cardoso, Miriam L.
coitada, vai ser professor. Então fica a an- Pesquisas Físicas e da PUC-RJ, e de Cleusa Universidade e estrutura de poder. Espaço
gústia: se vai ter um nome na praça ou se Santos, professora vice-presidente da Asso- Cadernos de Cultura USU, Rio de Janeiro,
vai dar aula a vida inteira e repetir o que os ciação de Docentes da UFRJ. Apud Cientis- (3)3:29-43, 1981.
outros fazem”. Governo recua e paga .O tas dizem que também são professores. O 18. Parte destas reflexòes constam de Cia-
Globo, O país, Rio de Janeiro, quarta-feira, Globo, O país, Rio de Janeiro, quarta-feira, vatta, Maria. Universidade pública para que?
28 de novembro de 2001, 2a. edição, p. 3; 28 de novembro de 2001, 2a. edição, p. 3 Fórum Democrático, Rio de Janeiro, (7/8);
Pérola. Caros Amigos, São Paulo, ano V, no. 13. Roberto Leher, presidente do ANDES-SN 30-1, set./out. 2000.
58, p. 27. Declaração do Presidente da Re- (Sindicato Nacional dos Docentes do Ensi- 19. Ministro não vê sobrevida do ensino gra-
pública, Fernando Henrique Cardoso, quan- no Superior). Op. cit. tuito. Folha de São Paulo, domingo, 21 de
do falava da própria experiência como pro- 14. Projeto de lei “encaminhado pelo MEC ao outubro de 2001, p. C3.
fessor do Institut for Advanced Studies da Congresso Nacional, que estipula o regime 20. Orçamento das instituições federais cai
Princeton University, nos Estados Unidos. de trabalho CLT para os novos contratados 15% durante o governo de FHC. Entrevista
5. Fernandes, Rogério.Ofício de professor: o no Sistema Federal de Ensino, com o fim da com Nelson Cardoso do Amaral, professor
fim e o começo dos paradigmas. In: Sousa, estabilidade e da aposentadoria integral e de física da Universidade Federal de Goiás,
Cynthia P. e Catani, Denise (orgs.). Práticas de uma carreira pautada por gratificações de falando ao Jornal da Paulista, da Univer-
educativas, culturas escolares, profissão do- produtividade e por categorias de docentes sidade Federal de São Paulo (Unifesp).
cente. II Congresso Luso-Brasileiro de Histó- contratados apenas para atividades de ensi- Apud Jornal da Ciência, SBPC, Rio de Ja-
ria da Educação. São Paulo: Escrituras, no”. ANDES, Comando Nacional de Greve. neiro, 21 de dezembro de 2001, p. 2. Para
1998, p. p. 1-20. Informe especial no. 4, Brasília, s.d., p. 2. uma análise detalhada do desmonte dos
6. Holanda, Sérgio Buarque (org.). História ge- 15. Marques et al. Ensino e pesquisa na uni- sistemas universitários públicos no Brasil e
ral da civilização. Tomo I . A época colonial. na América Latina, entre outros, ver Gentili,
São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1960, Pablo (org.). Universidades na penumbra.
p. 85; Fernandes, op. cit., p. 9. Neoliberalismo e reestruturação universitá-
7. Franco, Maria Ciavatta e Frigotto, Gaudêncio. ria. São Paulo; Cortez/CLACSO, 2001.
Editorial. De profissional da burquesia a tra- 21. Sou grata aos professores e a outros pro-
balhador da educação. Contexto & Educação, fissionais que contribuíram para o debate
Revista de Educación em América Latina y el das idéias aqui apresentadas: Antonio Car-
Caribe, Unijuí, VIII (31):5-8, jul./set. 1983. los Pantoja, Célia Maria Loureiro Muniz,
8. Van Zanten, Henriot, Plaisance, E. e Sirota, Gaudêncio Frigotto, Lucas Ciavatta, Maria
R. Les transformations du systeme éducatif. de Lourdes Lyra, Mariana Ciavatta Pantoja e
Acteurs e politique. Paris: L’Harmatan, 1993, Sebastião Martins Soares.
apud Fernandes, 1998, op. cit. 22. De Antonio Cândido.

16 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


A greve e os limites da institucionalidade

Marcelo Badaró Mattos *

Fazer política sindical


em contexto de criminalização
dos movimentos sociais
I- A questão social:
ainda caso de polícia?
Entre fins do século XIX e a década
de 1920, período conhecido como
República Velha, o nascente
movimento organizado dos
trabalhadores urbanos foi taxado de
grave ameaça à ordem social. Para
não referendar a expressão luta de
classes e evitando caracterizar as
profundas desigualdades sociais
decorrentes do crescimento urbano-
industrial em moldes capitalistas,
nossas classes dominantes cunharam
a expressão “questão social” para
referir-se às primeiras lutas da classe
trabalhadora. Não foram poucos os
governantes que então compartilha-
ram da visão de que a questão social
era “caso de polícia” e, na ausência
de qualquer regulação legal que
impusesse limites à exploração patro-
nal, a única ação do poder público
neste campo era a repressão.
O avanço do movimento, entretanto,
obrigou a classe dominante a ir além e
construir, através de uma série de polí-
ticas sociais (trabalhistas, previdenciá-
rias etc.) uma resposta política que pu-
desse somar-se aos mecanismos coer-
citivos, sempre com o objetivo de con- que caracterizou, na maior parte do policial ostensiva e violenta, nos mo-
trole sobre as mobilizações dos traba- tempo, o 1º Governo Vargas. mentos de greves, por exemplo, quan-
lhadores. Daí que as políticas sociais A presença da repressão policial, no to da vigilância sistemática e perma-
viessem acompanhadas de uma legis- entanto, continuou a rondar perma- nente das polícias políticas. Situação
lação que atrelava os sindicatos ao Es- nentemente as movimentações dos que atravessou todo o período dito de-
tado e contextualizadas pela ditadura trabalhadores, através tanto da ação mocrático de 1945 a 1964 e, obvia-

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 17


A greve e os limites da institucionalidade

mente, ganhou caráter mais duro nos doso o Estado recuou em relação ao
tempos da ditadura militar. O par polí- tratamento político da “questão so-
cia (a de ordem política e social, em cial”, restou o recurso intensificado ao
especial) e política (social, em particu- outro remédio de controle do conflito
lar) continuou a ser a marca no trata- social: o policial.
mento aos movimentos sociais. Dele
decorreu, em grande parte, o sucesso II- Que democracia?
econômico - do ponto de vista das FHC e os movimentos sociais.
classes dominantes - de um projeto de Há, na sociedade brasileira de hoje,
desenvolvimento industrial acelerado, um espaço privilegiado para acompa-
que teve na superexploração da força nhar-se o processo de criminalização
de trabalho um de seus pilares funda- dos movimentos sociais: o campo. To-
mentais e nas desigualdades de distri- mando como marco inicial justamente
buição de renda e propriedade, uma o ano de 1985, quando a ditadura
conseqüência lógica. militar se encerrava, e seguindo até
Com a redemocratização do país, 2000, ocorreram 1.190 assassinatos
após 1985, apostou-se numa nova de trabalhadores, dirigentes sindicais,
equação que combinaria avanço da advogados, agentes pastorais e outros
democracia política com ampliação envolvidos nos conflitos de terra,
dos direitos sociais e diminuição das segundo dados da Comissão Pastoral
desigualdades. Isto não se concretizou. da Terra (CPT). Somente no período de
Ao contrário, a consolidação da demo- governo de Fernando Henrique, 195
cracia representativa fez-se acompa- trabalhadores rurais foram mortos. Ne-
nhar de um aprofundamento do fosso nhum mandante foi condenado. O
que separa a minoria numericamente Ministro responsável pela questão
inexpressiva dos que se apropriam da agrária, Raul Jungmann, consegue
grande fatia da riqueza nacional, da- apresentar cinismo suficiente para re-
quela imensa maioria trabalhadora, ferir-se a crimes deste tipo como resul-
que cada vez recebe quinhão menor. tantes de “desavenças pessoais”.
Em outras palavras, a perspectiva polí- Entre os estados da Federação, o Pa-
tica da otimização de direitos civis e ca do capital, ainda que sujeitos aos li- rá lidera a estatística macabra, com
sociais num regime de ampliação dos mites impostos pela luta organizada 453 assassinatos, entre 1985 e 2000,
direitos políticos, na qual a teoria polí- dos trabalhadores. quase a metade do total do país. E foi
tica orientada por Marshall se apóia, No contexto de refluxo das lutas so- justo no Pará que procuradores fede-
mostra sua fragilidade quando defron- ciais em meio à reestruturação capita- rais, na busca de pistas dos “desapare-
tada com um contexto histórico de su- lista, que caracterizou os anos 1990 no cidos” políticos da Guerrilha do Ara-
peração do modelo social-democrata Brasil, pouco poderia se esperar como guaia, encontraram, em julho deste
de Estado de bem-estar.1 Na compre- resultado social da ampliação dos di- ano, documentos do Exército que qua-
ensão deste processo, as definições reitos políticos. Se a Constituição de lificavam movimentos sociais, como o
liberal ou reformista de cidadania fa- 1988 parecia ter significado um gran- Movimento dos Trabalhadores Rurais
lham, justamente por menosprezarem de avanço em relação aos direitos so- Sem-Terra (MST), como “forças adver-
o fundamento de classes - e de confli- ciais, a realidade logo se mostrou me- sas” e receitavam que, para controlá-
to de classes - das sociedades capita- nos promissora para a classe trabalha- los, seria justificável “arranhar direitos”
listas. Para a lógica do capital, a demo- dora. Chama a atenção como, ao lon- dos cidadãos. Eis aí a concepção de
cracia sempre foi e sempre será um go da década de 1990, desenvolveu-se direitos civis alimentada por um Es-
valor instrumental. Distintos equilíbrios um rápido desmonte das políticas tado que se afirma respaldado pela
entre os diferentes níveis de cidadania sociais, através das reformas do Estado democracia política, quando enfrenta
são construídos conforme as deman- e da legislação trabalhista. E, se, no movimentos organizados que lutam
das historicamente existentes da lógi- governo de Fernando Henrique Car- por direitos sociais fundamentais.

18 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


A greve e os limites da institucionalidade

A seqüência de escândalos financei- ando, sob a égide do sistema financei- evidente que o par lógico de globaliza-
ros envolvendo atividades de espiona- ro internacional, a já profunda distân- ção é pobreza.2
gem de agentes dos “novos” órgãos de cia existente entre os países “ricos” e Esta é a explicação para o surgimen-
“inteligência”, como a ABIN, nos deve- os “pobres”. to de novos movimentos sociais, extre-
ria levar a pensar em que dimensões Nestes últimos, a ampliação da dis- mamente heterogêneos quanto às
este tipo de braço secreto do Estado se tância interna entre “ricos” e “pobres” suas origens de classe, objetivos políti-
envolve com a repressão às forças ad- foi parte integrante de toda trajetória cos e horizontes programáticos, mas
versas, como os movimentos sociais. de desenvolvimento econômico, quan- confluentes na condenação ao proces-
As vultosas verbas aplicadas, sem qual- do este ocorreu, como no caso brasi- so de globalização. Embora mais co-
quer controle do Legislativo, nestes leiro. Nada de surpreendente, portan- nhecidos a partir das manifestações de
herdeiros do SNI, não seriam justificá- to, no fato de que as desigualdades novembro de 1999, em Seattle-EUA,
veis, para este governo, caso seus ob- sociais continuem a se ampliar nestes durante conferência da OMC, quando
jetivos de controle e repressão sobre tempos recessivos de barbárie neoli- cerca de 1.400 organizações participa-
as organizações dos trabalhadores não beral. Porém, é uma novidade, ao me- ram dos protestos, que desemboca-
fossem tão amplos. nos em relação à segunda metade do ram em graves confrontos com a polí-
No mesmo sentido, devemos aten- século XX, que estas desigualdades cia, tais movimentos se repetem desde
tar para a ameaça implícita no Decreto também estejam se ampliando nos os anos 1980. O primeiro “fórum alter-
de 27/08/01, que autoriza o Exército, países “ricos”. Torna-se cada vez mais nativo” aconteceu durante reunião do
em “casos excepcionais”, a atuar com G7 em Londres, no ano de 1984. Ou-
poderes de polícia. Sob a justificativa tro grande encontro ocorreria em Ber-
de evitar as greves da polícia, o gover- lim, em 1988, durante reunião do FMI.
no ampliou, através de decreto do Exe- Em maio de 1998, na Inglaterra, 70 mil
cutivo - portanto, sem qualquer discus- pessoas desfilaram em protesto contra
são legislativa - a margem de arbítrio reunião do G8. No começo de 2001,
das forças repressivas. Daí a sua utiliza- enquanto Davos, na Suíça, se encon-
ção sistemática na repressão aos movi- trava sitiada pela Polícia para a realiza-
mentos sociais a distância é pequena. ção do Fórum Econômico Mundial, es-
Afinal, as tropas sempre estiveram em tes movimentos se encontraram em
alerta para isso, como não nos deixam Porto Alegre para realizar o I Fórum
esquecer episódios como o da greve Social Mundial. Alvos comuns, como o
da CSN, em Volta Redonda, no ano de FMI, o Banco Mundial, a OCDE, o G8 e
1988, ou mesmo os casos recentes de a OMC; bandeiras unificadoras, como
utilização de tropas do Exército para o cancelamento da dívida externa dos
guardar o patrimônio privado da famí- países pobres, a defesa do meio am-
lia Cardoso, quando das tentativas de biente (pela regulamentação de Kyoto
ocupação de sua fazenda, em Buritis- da emissão de poluentes, contra os
MG, pelo MST. transgênicos), a modificação das re-
gras do comércio internacional, a de-
III- O contexto internacional núncia do poder das multinacionais;
Ainda que sem maiores reflexões além de meios de ação comum, como
sobre a natureza do processo de rees- a informação via internet e as demons-
truturação através do qual o capital trações de massa nos protestos inter-
busca superar sua crise estrutural, des- nacionais, garantem um horizonte uni-
de os fins da década de 1970, é possí- ficador de luta aos movimentos, em-
vel constatar, sem maiores polêmicas, bora seu anti-capitalismo latente nem
alguns de seus produtos. No plano in- sempre se traduza em uma perspecti-
ternacional, a nova fase da internacio- va estratégica que vá para além da
nalização do capital - midiaticamente nostalgia dos anos dourados do Esta-
tratada por globalização - vem acentu- do interventor/reformista.3

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 19


A greve e os limites da institucionalidade

O volume de forças repressivas inter- trônica, num clima de grande xenofo- carização, das relações de trabalho.4
nacionalmente acionado visando à bia anti-árabes, são apresentados No Brasil, após novas regras que
contenção destes movimentos anti- explicitamente como limitações “ne- legitimam a precarização do trabalho,
globalização é espantoso. Em Gênova, cessárias” aos direitos civis. Mais am- como a do contrato temporário, a pro-
em julho deste ano, durante a reunião plo foi, nos Estados Unidos, o pacote posta mais recente é a apresentada
do G-8, o mundo assistiu via satélite o de medidas aprovado pelo Congresso, pelo Ministério do Trabalho, de altera-
aparato montado para receber os che- que autoriza vigilância orwelliana ção no artigo 618, da CLT, colocando
fes de Estado dos países “ricos”. U$ sobre os residentes em solo america- os acordos coletivos em condições de
250 milhões foram gastos em um na- no e as comunicações via satélite ou reduzirem direitos estabelecidos em
vio especialmente concebido para internet em escala planetária. Não é lei. Se aprovada, a proposta gerará
abrigar estes “líderes”, a salvo dos gri- apenas por aqui, portanto, que “arra- acordos em que férias menores do
tos e pedras dos manifestantes. Deze- nhar direitos” está sendo assumido que 30 dias, redução de salários, fim
nas de milhares de policiais foram mo- como estratégia legítima para reprimir da remuneração pelo descanso sema-
bilizados e uma violência bárbara foi as “forças adversas”. nal ou do 13º salário, entre outras su-
autorizada pelas autoridades de um pressões, poderão ser cotidianamente
governo italiano que não à toa abriga No Brasil, embora com celebrados.
fascistas em sua base de sustentação. Não é por outro motivo que, do
O saldo, após manifestações que che- antecedentes mais remotos, ponto de vista dos responsáveis pelos
garam a reunir 150 mil pessoas nas é no governo Fernando “ajustes estruturais”, aquelas organiza-
ruas de Gênova, foi terrível: 126 pre- ções coletivas dos trabalhadores capa-
sos, 500 feridos e a morte do estudan-
Henrique que o ataque zes de imprimir resistência a estas re-
te Carlo Giuliani, alvejado com um tiro aos sindicatos se tornou formas - os sindicatos - são tratadas
a queima roupa e, em seguida, atrope- como inimigos declarados. No Brasil,
mais sistemático.
lado pelo carro qu conduzia o policial embora com antecedentes mais remo-
que o matou. tos, é no governo Fernando Henrique
Após os ataques aos templos das que o ataque aos sindicatos se tornou
finanças e da guerra norte-americanos, IV - Um alvo prioritário: mais sistemático.
em 11 de setembro último, a ofensiva o movimento sindical O projeto de reforma da estrutura
internacional de criminalização dos Entre os objetivos mais evidentes sindical, proposto em fins de 1998,
movimentos sociais deve intensificar- das reformas neoliberais, inseridas no pelo governo Fernando Henrique, ins-
se. A resposta norte-americana e de processo de reestruturação produtiva tituiria, se aprovado, a pluralidade sin-
seus aliados europeus aos atos terro- capitalista, está a redução do custo da dical e acabaria com o imposto sindi-
ristas não está se contentando com a mão-de-obra. A tendência estrutural cal. Mas manteria sob o controle da
carnificina da guerra em solo afegão, da economia capitalista à redução do Justiça do Trabalho definir qual sindi-
mas já se traduz também em autoriza- trabalho vivo empregado na produção cato poderia ser considerado repre-
ções legais para a ampliação das pos- é reforçada pelo recurso intensivo à sentativo para fins de negociação e
sibilidades de vigilância e controle das incorporação de novas tecnologias contratação coletiva. Quer dizer, estaria
forças repressivas - das polícias aos que ampliam o desemprego industrial. liberada a criação de sindicatos, mas
serviços secretos - sobre toda socieda- Por outro lado, garantias de direitos se manteria o controle do Estado na
de, num plano de suspeição generali- sociais mínimos, conquistados ao definição de com qual deles o empre-
zada com o qual as organizações de longo de jornadas históricas pelas sariado celebraria acordos, invertendo
luta dos trabalhadores já estão histori- organizações dos trabalhadores, como o princípio básico de um regime de
camente acostumadas a lidar. Pacotes as limitações à jornada de trabalho, os liberdade de organização sindical, em
de medidas anunciadas às pressas pe- direitos de seguridade social, as garan- que a representatividade dos sindica-
los governos, como o francês que, na tias de estabilidade no emprego, entre tos depende do número de filiados e
primeira semana de outubro, ampliou outras, passaram a ser vistas como en- de sua capacidade de mobilização. O
os poderes dos policiais para revistar traves a remover e reformas nas legis- objetivo deste governo se explicitou
cidadãos e concedeu liberdade aos juí- lações sociais impuseram níveis varia- em vários momentos. Trata-se de fo-
zes para autorizarem espionagem ele- dos de “desregulamentação”, ou pre- mentar o sindicato por empresa, par-

20 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


A greve e os limites da institucionalidade

ceiro do empresariado - por adesão ou dos petroleiros, em 1995. Uma greve, aulas. Decisão semelhante tomou o
por pressão - na busca do aumento da que durou 32 dias, colocou em pauta juiz da infância e adolescência do Rio,
produtividade e da lucratividade. reivindicações econômicas da catego- em outubro, ao punir com R$ 5,00 por
Mas, se o projeto de reforma sindical ria e a defesa do monopólio estatal aluno/dia, os professores grevistas da
ainda não conseguiu espaço político sobre o petróleo, que acabaria por ser rede federal de ensino médio. Se mul-
para sua aprovação, o governo não quebrado pelo Congresso Nacional na tas desse tipo fossem aplicadas aos
encontrou as mesmas dificuldades em época do movimento. Para reprimir a governos, pela falta de professores nas
impor limites repressivos aos sindica- greve e criar um exemplo para o con- salas de aula, pelo desvio dos recursos
tos, nos momentos dos enfrentamen- junto do movimento sindical, o gover- que deveriam ser destinados por lei à
tos mais significativos. As greves, pelo no Fernando Henrique, em seu primei- educação, pela falta de vagas nas esco-
seu potencial de explicitação do confli- ro ano de mandato, demitiu lideranças las públicas, ou simplesmente para
to de classes, são ocasiões bastante sindicais; a imprensa acusou os petro- garantir as condições básicas ao ensi-
propícias à radicalização da perspecti- leiros pela falta do gás de cozinha (na no público, talvez o descaso governa-
va anti-sindical do governo. verdade, os distribuidores especula- mental com este direito dos cidadãos
No fim dos anos 1970, as greves dos ram com o produto para garantir um fosse atenuado. É sintomático, entre-
metalúrgicos do ABC paulista (1978, aumento do seu preço) e a Justiça do tanto que, na ausência de regulamen-
1979 e 1980) marcaram a reentrada Trabalho decretou a “abusividade” da tação infra-constitucional do direito de
dos trabalhadores na cena política bra- greve, estabelecendo uma multa diária greve do funcionalismo público, a
sileira. Por sua contundência na crítica de R$ 100 mil enquanto durasse a pa- Justiça use deste recurso transverso
ao modelo econômico da ditadura e à ralisação, penhorando bens e retendo para culpabilizar os professores justa-
estrutura sindical oficial brasileira, aca- a receita das contribuições dos sindica- mente pela situação que denunciam:
baram por servir de marco inaugural lizados. o desmonte do ensino público. De
de uma fase de ascensão das lutas A greve dos Petroleiros pode ser en- qualquer forma, é interessante notar
operárias, conhecida pela expressão tendida como marco inaugural de uma que os estudantes organizados não
novo sindicalismo. Os anos 1980 assis- nova etapa repressiva sobre o movi- aceitam tal inversão e denunciam nos
tiram à generalização das greves, cuja mento sindical, justamente a que este governos os responsáveis pela situa-
quantidade chegou perto das 4.000 artigo pretende caracterizar ao referir- ção, da mesma forma que a população
paralisações por ano (marca de 1989) se à criminalização do sindicalismo. em geral tem identificado nas greves
e o impacto social atingiu dimensões Episódios recentes de greves de pro- um instrumento de defesa do serviço
novas, com a inclusão entre os grevis- fessores da rede pública mostram uma público na área educacional.
tas de categorias antes distantes das nova etapa de refinamento das táticas Na greve nacional dos servidores
lutas sindicais, como os funcionários
públicos. Uma greve que marcou a
Na ausência de regulamentação
década, pela sua contundência e pela
violência da repressão militar, foi a infra-constitucional do direito de greve do funcionalismo
greve dos trabalhadores da Compa- público, a Justiça use deste recurso transverso para
nhia Siderúrgica Nacional (CSN), em culpabilizar os professores justamente pela situação que
Volta Redonda, no ano de 1988. Ao
cabo daquelas jornadas de luta, a
denunciam: o desmonte do ensino público.
Constituição de 1988 assegurou o di-
reito de greve. Uma grande ginástica de criminalização do movimento. É o públicos federais, iniciada em agosto
legal foi necessária para que o gover- caso da greve dos profissionais da re- deste ano (e ainda inconclusa quando
no, através de regulamentações infra- de pública de ensino da capital minei- da redação deste artigo), o grau de ra-
constitucionais e da ajuda da Justiça ra, Belo Horizonte, ocorrida neste se- dicalização deste processo de crimina-
do Trabalho pudesse, a partir daí, repri- gundo semestre de 2001. Decisão ju- lização do movimento sindical acen-
mir as greves, acusando-as, se não dicial, que partiu do Juizado da In- tuou-se. Em especial, no trato com os
mais de ilegalidade, agora de “abusivi- fância e da Adolescência, puniu grevis- servidores docentes e técnico-adminis-
dade”. tas - e inicialmente também a Prefeitu- trativos das Instituições Federais de
Assim aconteceu com o movimento ra - com multa diária, por alunos sem Ensino. Alguns indicadores desta radi-

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 21


A greve e os limites da institucionalidade

calização podem ser listados. de Justiça, garantindo o pagamento tempos de desmanche neoliberal,
Em setembro, após tentativa de dos docentes, o Ministro Ilmar Galvão, possuem também características de
abertura de audiência através de ma- do Supremo Tribunal Federal, ter cas- garantia dos interesses dos cidadãos
nifestação na porta do Ministério da sado a referida liminar, acatando o em geral. Reprimidas duramente pela
Educação, em Brasília, os militantes do parecer do conhecido “engavetador de ação criminalizante do governo, adqui-
ANDES-SN e da FASUBRA-Sindical fo- processos”, o Procurador Geral Geraldo rem agora o caráter de espaço decisi-
ram surpreendidos com a tentativa do Brindeiro, que afirmou ser a greve, vo da resistência da classe trabalhado-
governo de impedir manifestações na além de ilegal, um “risco de grave le- ra e de suas organizações sindicais
área do ministério e vedar o acesso ao são à ordem, à saúde, à segurança e à contra o retorno do tratamento da
local dos dirigentes das duas entida- economia”. Tempos de arbítrio os tem- “questão social” como um caso exclu-
des, através do instrumento jurídico do pos em que se considera que o direito sivamente de polícia.
“interdito proibitório”. de greve, garantido pela Constituição
Aliás, nas manifestações dos grevis- Federal, possa ser suprimido por um NOTAS:
tas, o aparato policial envolvido na re- decreto do executivo e em que se qua- 1. O modelo de análise da cidadania a par-
pressão chamou a atenção. Em 03 de lifica o mesmo direito como ameaça à tir dos direitos civis, políticos e sociais foi for-
outubro, profissionais de todos os ní- ordem. mulado por Marshall, T. H. Cidadania. Classe
veis da educação do país se uniram social e status. Rio de Janeiro, Zahar, 1967. A
numa Marcha em Defesa da Educação tentativa mais acabada de aplicação deste
Pública, que levou 50 mil pessoas, en- modelo à análise do caso brasileiro é feita por
tre elas os grevistas da área federal, a Carvalho, J. M. de. Cidadania no Brasil: o longo
Brasília. A presença, na marcha, de caminho. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
mais de 4 mil Policiais Militares, arma- 2001.
dos, com cães e tropas de cavalaria de 2. Esta relação é extensivamente documen-
sabres em punho, além de civis à pai- tada por Chossudovsky, M. A globalização da
sana infiltrados na multidão, portando pobreza. Impactos das reformas do FMI e
armas de fogo, granadas e realizando Banco Mundial. São Paulo, Moderna, 1999.
espancamentos e prisões ilegais de 3. Uma boa síntese da trajetória destes mo-
estudantes, foi a culminância de várias vimentos pode ser encontrada na matéria de
ações repressivas a manifestações Fernando Evangelista, publicada na revista Ca-
anteriores. ros Amigos, no. 53. São Paulo, agosto de 2001.
Teve o mesmo sentido criminalizan- 4. Sobre este processo, ver Antunes, R. Os
te a atitude do Ministro da Educação, sentidos do trabalho. São Paulo, Boitempo,
um pretenso candidato a candidato à 1999.
Presidência da República, de retaliar o
movimento grevista, através da reten- * Marcelo Badaró Mattos é professor do
Departamento de História da Universida-
ção dos salários de professores e téc-
de Federal Fluminense, 1º Vice-Presiden-
nico-administrativos. O Ministro sub- Embora seja impossível realizar uma
te regional Rio de Janeiro do ANDES-SN,
meteu-se à completa desqualificação avaliação completa de um movimento gestão 2000-2002.
pública ao comprometer-se, em reu- ainda inconcluso, é possível destacar
nião com as representações dos co- que greves como esta dos servidores
mandos de greve e parlamentares, no federais, em particular, nas condições
dia 26 de setembro, a abrir negocia- de agudização do conflito que assu-
ções em reuniões agendadas para a mem nas Instituições Federais de En-
semana seguinte, para no dia 27 anun- sino, ganham contornos ainda mais
ciar a arbitrariedade da retenção dos relevantes. São, como todas as greves,
salários de servidores docentes e técni- instrumentos de luta dos trabalhado-
co-administrativos. res para a garantia de salários e condi-
Mais grave foi o fato de, após a con- ções de trabalho dignas. Por assumi-
cessão de liminar do Superior Tribunal rem a defesa do serviço público em

22 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


A greve e os limites da institucionalidade

Mauro de Azevedo Menezes1

Flexibilização trabalhista: engodo


de pretensa modernização
1. Introdução.
Tramita no Senado Federal
um projeto de lei ordinária já
aprovado na Câmara dos De-
putados em polêmico regime
de urgência, para tratar de
uma mudança estrutural na
regulação das relações traba-
lhistas no Brasil. Trata-se da
introdução na Consolidação
das Leis do Trabalho (CLT) de
um dispositivo que flexibiliza
as garantias legais mínimas do
trabalhador, permitindo a sua
derrogação por acordo ou
convenção coletiva de traba-
lho, mesmo que isso repre-
sente uma depreciação dos
referidos direitos.
Eis o teor do Substitutivo ora
em apreciação:
PL 5483/2001 - SUBSTITUTI-
VO APROVADO NA CÂMARA
DOS DEPUTADOS
“Artigo. 1º - Na ausência de
convenção ou acordo coletivo,
firmados por manifestação ex-
pressa da vontade das partes e obser- mentar, as leis nºs. 6321, de 14 de solicitar o apoio e o acompanhamen-
vadas as demais disposições do Título abril de 1976, e 7418, de 16 de de- to da central sindical, da confederação
VI desta Consolidação, a lei regulará zembro de 1985, a legislação tributá- ou federação a que estiverem filiados,
as condições de trabalho. ria, a previdenciária e a relativa ao quando da negociação de convenção
Parag. 1º - A convenção ou acordo Fundo de Garantia do Tempo de Ser- ou acordo coletivo previstos no pre-
coletivo, respeitados os direitos traba- viço - FGTS, bem como as normas de sente artigo.
lhistas previstos na Constituição Fede- segurança e de saúde do trabalho. Artigo 2º - Esta lei entra em vigor na
ral, não podem contrariar lei comple- Parag. 2º - Os sindicatos poderão data de sua publicação e tem vigência

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 23


A greve e os limites da institucionalidade

de dois anos”. “A partir da década de 1980, ob- globalização vem se implantando: o


A proposta vem na esteira de uma servamos uma intensificação do comércio internacional, os investimen-
seqüência de medidas de reforma do processo de internacionalização das tos e os fluxos financeiros. Cada um a
Direito do Trabalho, de índole nitida- economias capitalistas que se con- seu modo, esses mecanismos tendem
mente ofensiva à integridade dos direi- vencionou chamar de globalização. a unificar o espaço econômico em es-
tos sociais, conquistados ao longo de Algumas das características distinti- cala planetária, obrigando setores an-
um complexo processo de evolução vas desse processo são a enorme tes protegidos por barreiras nacionais
histórica. Ao contrário do que se pro- integração dos mercados financei- ou regionais a aceitarem a agonia e a
pala enganosamente, não se cuida de ros mundiais e um crescimento sin- incerteza da disputa contra adversários
aperfeiçoar o sistema da CLT, ainda ho- gular do comércio internacional - duros e implacáveis. (...) O problema é
je contaminado pelos resquícios de viabilizado pelo movimento de que- que, recentemente, a preocupação
corporativismo, representados pela da generalizada de barreiras prote- tem sido muito mais com a extensão
unicidade sindical, pelo poder norma- cionistas-, principalmente dentro da competição a todos os terrenos do
tivo da Justiça do Trabalho e pela con- dos grandes blocos econômicos.” que com a sua contenção dentro de
tribuição sindical compulsória. A pre- A globalização, portanto, dá ensejo a limites civilizados.”
texto de favorecer a liberdade sindical, Os avanços civilizatórios garantido-
a proposta em verdade agrava o dese- res de valores essenciais ao desenvol-
quilíbrio de forças entre capital e traba- vimento humano tornam-se vulnerá-
lho, relegando os interesses obreiros à veis ao trator da globalização, cuja
mercê das conveniências empresariais, marcha despreza a previsão de impli-
numa época em que o emprego tor- cações sociais. Segundo Faria5, “trata-
nou-se lamentavelmente uma moeda se de uma integração de natureza emi-
de troca, e o que se vende é a dignida- nentemente sistêmica, acima de tudo
de humana. alicerçada na especialização e ‘mer-
Nesse sentido, o aludido projeto de cantilização’ do conhecimento, na efi-
lei faz parte de uma agenda de refor- ciência, na tecnologia, na competitivi-
mas, cuja inspiração predominante- dade, na produtividade e no dinheiro.
mente neoliberal é inegável. Sua justi- Trata-se, portanto, de uma integração
ficativa teórica argüi a irrecusabilidade transformações radicais de grande que entra em conflito com a integra-
do processo de globalização, para daí alcance, determinadas pelo interesse ção - esta, por sua vez, fundada em va-
em diante alinhar as conseqüências ti- de irradiação de capitais financeiros. A lores, normas, sanções, entendimen-
das como inevitáveis e as receitas con- extensão de tais mudanças, resultan- tos e contratos, ou seja, mediada pela
sideradas obrigatórias. tes da acelerada internacionalização consciência dos atores.” E quanto às
do mercado de bens, serviços e capi- conseqüências sociais deste processo,
2. O impacto da globalização. tais, provoca reações igualmente enfá- acrescenta o citado jurista que “do
A origem da onda reformista dos sis- ticas, tais como esta formulada por Bo- ponto de vista social, (...) aceleraram a
temas de proteção trabalhista se situa navides3: “A globalização é ainda um mobilidade do trabalho e a flexibiliza-
nas transformações vertiginosas resul- jogo sem regras; uma partida disputa- ção de sua estrutura ocupacional entre
tantes da internacionalização das eco- da sem arbitragem, onde só os gigan- setores, regiões e empresas, provocan-
nomias capitalistas. Trata-se de uma tes, os grandes quadros da economia do o declínio dos salários reais; am-
profunda revisão de paradigmas, que mundial, auferem as maiores vanta- pliando os níveis de concentração de
vem sendo proposta a reboque da su- gens e padecem os menores sacrifí- renda; acentuaram o fosso entre os
posta necessidade de ajustes à nova cios. (...) A globalização econômica co- ganhos das várias categorias de traba-
realidade economia mundial. loca o capitalismo outra vez na selva.” lhadores, relativizando o peso do tra-
Este fenômeno propulsor de forte Numa abordagem didática a respei- balho direito nas grandes unidades
impacto, denominado globalização, to do tema, Ricupero4 assinala que “O produtivas; aumentaram o desempre-
tem as suas referências básicas descri- nome desse jogo é competição, exa- go dos trabalhadores menos qualifica-
tas por Dupas2 cerbada ao extremo pelos mecanis- dos, esvaziando as proteções jurídicas
mos principais por meio dos quais a contra, por exemplo, o uso indiscrimi-

24 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


A greve e os limites da institucionalidade

nado de horas extras, a ‘modulação’ da


jornada de trabalho e a dispensa imo- A implementação dos postulados ideológicos neoliberais,
tivada; reduziram o número de assala-
no ambiente competitivo da globalização, promoveu nítidos
riados beneficiados por algum tipo de
direito social, como assistência médi- efeitos na regulamentação das relações de trabalho,
ca, aposentadoria por tempo de servi- até então tuteladas, de maneira crescente,
ço e seguro-desemprego etc.”6
pela evolução dos direitos sociais.
As circunstâncias forjadas pelo con-
texto mundial globalizado revigoram beral, assim definido por Robortella8: Esta orientação passou a afetar a tra-
valores liberais clássicos, em contrapo- “O neoliberalismo, opondo-se ao dição garantista dos direitos sociais,
sição a princípios inspiradores dos di- paternalismo estatal, rompe com as consoante descreve Freitas Jr.12
reitos sociais conforme explica Baylos7, bases tradicionais do direito do tra- “Em síntese, a crença na capaci-
de forma didática: balho, porque preconiza o afasta- dade de auto-regulação do merca-
“O fato é que existem certas ten- mento cada vez maior do Estado co- do faz com que os juslaboralistas de
dências no desenvolvimento das re- mo gerador do desenvolvimento formação liberal inclinem-se por
lações de trabalho que conduzem a econômico e social.” aceitar, sob o impacto da globaliza-
um conjunto variado de fenômenos Ao comentar a voga do que define ção econômica, e de seus efeitos
que se assemelham por conceder como “utopia neoliberal”, Hobsbawn9 sobre a competitividade das empre-
importância crescente à autonomia destaca o caráter individualista desta sas situadas em economias de alto
individual, a qual assume funções ideologia: “Que cada indivíduo buscas- grau de cobertura social, uma dire-
diretamente normativas no marco se a sua satisfação sem restrições, e, triz francamente desreguladora do
da relação de trabalho. A explicação qualquer que fosse o resultado, seria o trabalho subordinado.”.
destes fenômenos não é homogê- melhor que se podia alcançar. Qual-
nea, ao contrário, muitas vezes eles quer curso alternativo, argumentava-se A desregulamentação, por conse-
são definidos como ‘contraditórios’ e implausivelmente, era pior.” Tendo Mil- guinte, funciona como veículo de uma
resultantes de finalidades diversas. ton Friedman e Friedrich Hayek, como autêntica crise de desagregação do Di-
Provavelmente, isto deve-se a que o alguns de seus principais formulado- reito do Trabalho, assim caracterizada
discurso sobre individualização das res, o neoliberalismo resiste à inter- por Baylos13:
relações de trabalho ocorre em venção do Estado para resolver os pro- “A conjunção de processos sociais
paralelo, tanto ao conhecido debate blemas sociais, “muito embora admi- que denomina-se ‘crise de desagre-
sobre ‘desregulamentação’ e ‘- tam-na, das mais variadas formas, di- gação do Direito do Trabalho’ apre-
flexibilidade’ - herdeiro dos paradig- ante de problemas econômicos.”10 senta desafios ao sistema jurídico
mas de ‘exceção’ da grande crise de regulador do trabalho assalariado,
1973-1974, como também à discus- 4. Desregulamentação que o levam a questionar-se sobre
são sobre a transformação do siste- do trabalho. suas linhas fundamentais e seu sen-
ma de produção normativa no A implementação dos postulados tido. O ponto de partida é o ‘princí-
Direito do Trabalho. Por outra parte, ideológicos neoliberais, no ambiente pio de igualdade’, que tem sido
este discurso se sobrepõe a uma competitivo da globalização, promo- identificado como regulação unifor-
profunda reflexão sobre a redefini- veu nítidos efeitos na regulamentação me de situações jurídicas homoge-
ção dos graus e níveis de proteção e das relações de trabalho, até então neizadas e padronizadas, que mui-
de tutela que o ordenamento jurídi- tuteladas, de maneira crescente, pela tas vezes são vistas como incompa-
co deveria outorgar.” evolução dos direitos sociais. Como tíveis com a nova organização social
explica Faria11, “do ponto de vista jurí- e produtiva dominante e sua cultu-
3. A ideologia neoliberal. dico, estas transformações abriram ra. Aqui se encontram as exigências
A força que tem direcionado a glo- caminho para a deslegalização das de reforma que pretendem desarti-
balização ao encontro de uma matriz normas protetoras dos trabalhadores, cular as figuras símbolo do mundo
que preconiza a superioridade moral despolitizando as relações de trabalho do trabalho, anular sua dimensão
da liberdade e do individualismo, está e as reduzindo a uma simples ordem coletiva e incorporar a diversidade e
aglutinada em torno do ideário neoli- de troca contratual.” o tratamento diferenciado como ele-

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 25


A greve e os limites da institucionalidade

mento central de um novo tipo de gras ditadas pelo Estado para regular
regulação do trabalho. Sobre estas as relações de trabalho”18. Em nosso
premissas, está claro o diagnóstico entendimento, esta debilitação do Di-
dos que receitam a destruição do reito Estatal pode ocorrer para que se
Direito do Trabalho, dos que entrela- dê ênfase às negociações coletivas en-
çam os mitos ideológicos do libera- tre empregados e empregadores, ou
lismo e do individualismo com a simplesmente representar a quebra da
necessidade de por fim às velhas re- rigidez da norma, possibilitando o seu
gras que compõem este ramos do descumprimento, a despeito de outor-
sistema jurídico. O problema para gar a supressão da lacuna às partes
estes novos profetas é que, apesar sociais19. No caso do Brasil, a tendên-
de tudo, ‘as velhas regras resistem e cia predominante da flexibilização tem
não são substituídas a toda veloci- fenda no princípio da inderrogabili- sido no sentido de promover a mera
dade por uma nova ordenação, hos- dade das normas de ordem pública precarização das garantias trabalhis-
til ao tipo de regulação do trabalho e no da inalterabilidade in pejus das tas20. O argumento de que a relativiza-
vigente.” condições contratuais ajustadas em ção das normas estatais protetoras
Assim, a desregulamentação signifi- favor do trabalhador, visando a faci- corresponderia necessariamente à
ca a supressão das normas que regu- litar a implementação de nova tec- assunção do instituto da negociação
lam as relações de trabalho, deixando nologia ou preservar a saúde da coletiva21 não encontra guarida na rea-
que o mercado se encarregue de esta- empresa e a manutenção dos em- lidade do país, pois nele ainda não
belecer livremente o tratamento dos pregos. (...) Na desregulamentação foram construídos os pressupostos
assuntos “desregulamentados”. o Estado não intervém nas relações para que a sua prática ocorra num cli-
Devido ao caráter prejudicial aos tra- de trabalho, para que a autonomia ma de efetiva liberdade sindical22. Por
balhadores da flexibilização que se privada, coletiva ou individual, dis- outro lado, as circunstâncias sócio-eco-
promove na região, tem havido fre- ponha sem limitações legais, sobre nômicas indicam que o período em
qüente confusão destes dois concei- as condições de trabalho.’ que tais medidas flexibilizantes se ope-
tos, chegando alguns autores a consi- A diferença entre flexibilização e ram está marcado pelo crescimento
derá-los sinônimos14. Segundo Catha- desregulamentação é extremamen- dos índices de desemprego, tendo co-
rino15, no entanto, “flexibilizar não é te relevante, porque esta última dei- mo conseqüência direta o enfraqueci-
desregular. É regular de modo diferen- xa o trabalhador inteiramente a des- mento do poder de negociação dos
te do que se acha regulado.”. Cumpre coberto da proteção de normas es- sindicatos obreiros.
resgatar esta distinção conceitual, co- tatais, e volta-se ao tempo histórico Caso adotássemos um conceito
mo adverte Vieira16, citando Calheiros já relembrado em que as partes tão mais estrito de flexibilização, chegaría-
Bomfim: desiguais contratavam como se mos à conclusão de que as normas
“Segundo ensina Calheiros Bom- houvesse uma igualdade.” trabalhistas de origem estatal pode-
fim17 ‘a desregulamentação do Di- riam ser flexibilizadas sem que isto re-
reito do Trabalho, por alguns defen- 5. Flexibilização de presentasse prejuízo às garantias míni-
dida, não se confunde com a flexibi- direitos trabalhistas mas que buscam assegurar a dignida-
lização das relações de trabalho, Para aclarar a terminologia acima de do trabalhador. Nessa hipótese, a
hoje praticada na Europa Ocidental utilizada, vale firmar que consideramos flexibilização seria uma autêntica
e em países que seguem o seu mo- que a expressão flexibilização traduz, transferência das atribuições estatais
delo. Esta última corresponde a uma de maneira geral, “diminuição de re- de regulamentação do Direito do Tra-
balho, para que este pudesse passar a
ser ditado por fontes autônomas, nu-
No caso do Brasil, a tendência predominante da tridas pela instauração de um legítimo
flexibilização tem sido no sentido de promover a mera diálogo social, por sua vez alimentado
pela efetivação de institutos que viabi-
precarização das garantias trabalhistas lizassem a liberdade e autonomia sin-
dicais23.

26 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


A greve e os limites da institucionalidade

6. A reforma trabalhista que nunca deixaram de ser caracte-


flexibilizante no Brasil. Os próceres da rísticas intrínsecas do mercado de
A reforma da proteção trabalhista no trabalho no Brasil.”
flexibilização no Cone Sul
Brasil pode ser definida como um Os próceres da flexibilização no
complexo de alterações do ordena- argumentam que as Cone Sul argumentam que as transfor-
mento jurídico nacional, tendentes à transformações nas mações nas relações de produção, de-
flexibilização das normas protetivas correntes das novidades tecnológicas,
relações de produção,
dos trabalhadores e à desregulamen- do processo de globalização e da rees-
tação das relações de trabalho
decorrentes das novidades truturação produtiva impõem uma “re-
Definitivamente, o modelo europeu tecnológicas, do processo visão dogmática” do Direito do Traba-
ocidental não se assemelha ao tipo de de globalização e da lho. A proposta não esconde o seu in-
flexibilização em curso nos países do tuito de promover um severo ataque
reestruturação produtiva
Cone Sul, tampouco no restante da teórico aos princípios fundantes da
América Latina. Nestes países, vigora o impõem uma “revisão disciplina, procurando inverter para-
que poderíamos denominar de flexibi- dogmática” do Direito digmas, ao pressuposto de que não há
lização predatória, na qual a retirada salvação para os marcos axiológicos
do Trabalho.
do papel estatal de tutelar minima- tradicionais do juslaboralismo. Neves25
mente as relações de trabalho não é esclarece as características desse tipo
suprida pela implantação das condi- claras de transição e uma visão sis- de flexibilização ao qual nos referimos:
ções adequadas para o exercício livre têmica da reforma que se pretende “Os defensores da flexibilização
da autonomia privada coletiva. Não há encaminhar. Mesmo que prevaleça partem da afirmação de que é ex-
um regime de sustento à atividade sin- a aposta na descentralização das cessivamente minuciosa a regula-
dical que ofereça aos trabalhadores negociações e no reforço das rela- mentação das relações laborais,
fatores de equilíbrio das relações cole- ções diretas entre empregados e impondo encargos desnecessários e
tivas. Prepondera, ao contrário, um dis- empregadores, em detrimento de inibidores da competitividade em-
curso orientado pela conveniência em- formas mais centralizadas e articu- presarial. E, em última análise, afas-
presarial, conforme observam Siqueira ladas de negociação, isso não pode- tadores de investimentos e acirrado-
Neto e Marco Antonio Oliveira24: rá levar à completa ausência do res do desemprego.
“Mesmo que não venham a se Estado no âmbito das Relações de A reconstrução de conceitos opera-
concretizar plenamente, essas novas Trabalho, sem o que não haverá de- da pelos flexibilistas em oposição às
medidas reforçam as tendências já mocratização efetiva das relações clássicas instituições jurídicas traba-
observadas, concentrando-se nas de trabalho e tenderá a se estreitar, lhistas obedece a certos preceitos, su-
mudanças das relações contratuais. ainda mais, o espaço das negocia- marizados por Robortella26:
Elas visam basicamente à redução ções coletivas. “O conceito de norma mais favo-
dos custos empresariais (por meio A desregulamentação do merca- rável varia conforme as realidades
da redução dos salários e de outros do de trabalho, como vem ocorren- econômicas, políticas e sociais. Uma
benefícios) e à formulação de su- do, sem o estabelecimento de con- norma pode ser socialmente aceitá-
postas alternativas para a preserva- trapartidas claras nos terrenos da vel num período de abastança e, en-
ção do emprego. A última medida representação sindical e da contra- tretanto, absolutamente nociva di-
relacionada, prevê ainda a revisão tação coletiva, não só levará a uma ante da crise econômica.
dos pilares básicos do sistema cor- perda crescente de direitos adquiri- (...)
porativo, deixando claro o desejo de dos, como deverá provocar uma Sem perda de seu caráter prote-
se ampliar o caminho da negocia- maior fragmentação e pulverização tor, o direito do trabalho tem a fun-
ção direta entre as partes. das negociações coletivas, até mes- ção de organizar e disciplinar o mer-
Ainda que pareça existir um relati- mo nos setores em que há maior cado de trabalho, como verdadeiro
vo consenso em torno desse último grau de organização e uma certa instrumento de política econômica.”
ponto, não há dúvida de que uma tradição de negociação, reiterando- Trata-se, em verdade, de uma refor-
mudança para um novo sistema de se mais uma vez a flexibilidade, a ma sem projeto; sem o prévio estabe-
relações de trabalho requer regras precariedade e a heterogeneidade lecimento de um compromisso entre

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 27


A greve e os limites da institucionalidade

as partes sociais. Não se desenha um como a livre circulação de capitais e de


sistema que se deseje alcançar. Evi- trocas comerciais pelas fronteiras do
dentemente que, no terreno das rela- mundo inteiro com velocidade e facili-
ções trabalhistas, marcadas pelo dina- dades inéditas na história. De acordo
mismo e conflituosidade, a inexistên- com esta visão, “os estados nacionais
cia de um consenso social acerca dos devem abrir-se aos princípios determi-
objetivos das mudanças implementa- nados pelas organizações internacio-
das causa inexoravelmente o fracasso nais”29, tais como o Fundo Monetário
da iniciativa. Internacional - FMI e o Banco Mundi-
O mais grave, contudo, reside na es- al30. Estes princípios podem ser resu-
sência das modificações introduzidas, midos na defesa intransigente do livre
pois estas retomam a inspiração indivi- mercado; da iniciativa privada; da li-
dualista das regras selvagens que de- berdade econômica; da diminuição do
ram ensejo ao nascimento do Direito tamanho do Estado; e da desregula-
do Trabalho, como reação à idéia de mentação. O Direito do Trabalho seria,
que o trabalho humano pudesse ser pois, um incômodo freio à competitivi-
considerado juridicamente como mer- dade empresarial e ao livre jogo das atingiu o seu grau máximo devido às
cadoria27. leis econômicas31. precárias condições sociais da massa
As peculiaridades do difícil processo Os fundamentos da reforma, destar- trabalhadora, associadas à resistência
de integração social dos países do te, partem da convicção de que as desencadeada pelo movimento sindi-
Cone Sul impõe aos reformistas das legislações trabalhistas são restritivas e cal. O atual governo aparenta a todo
relações de trabalho a árdua tarefa de intervencionistas. Nessa ótica, o Direito momento estar comprometido com a
oferecer explicações para a precariza- do Trabalho fica esvaziado do seu agenda de reforma trabalhista de índo-
ção de direitos trabalhistas em nações substrato axiológico, reduzindo-se tão le desprotetora. Além das mudanças
com baixos níveis médios de desen- somente à condição de mera regula- legislativas, a flexibilização tem sido
volvimento humano. A principal justifi- mentação indesejável do mercado de fartamente operada pelas alterações
cativa utilizada é a da necessidade de trabalho. Tenta-se, a todo tempo, rotu- jurisprudenciais, em especial pela
geração de empregos. Todavia, fre- lar o Direito do Trabalho com a pecha orientação do Tribunal Superior do tra-
qüentemente as referidas propostas do anacronismo. balho (TST), e até mesmo pela abdica-
são veiculadas mediante o apelo no É bem verdade que as inovações ção de direitos trabalhistas em instru-
sentido de adequar as empresas aos tecnológicas e de gestão empresarial mentos normativos pactuados pelos
imperativos da abertura econômica clamam pela modernização das rela- sindicatos obreiros.
internacional28. ções de trabalho, mas a solução até O principal freio à ofensiva desregu-
A alegação de que a reforma traba- aqui oferecida pela reforma não contri- lamentadora e flexibilizante no país é
lhista auxilia o combate ao desempre- bui para aperfeiçoar o ambiente de o texto da Constituição Federal, que,
go resulta da compreensão da suposta trabalho nas empresas, resultando embora tenha acolhido duas previsões
existência de pesados encargos remu- apenas num desequilíbrio de forças de flexibilização convencionada, con-
neratórios e tributários em decorrência ainda maior entre capital e trabalho. templa uma rica enumeração quantifi-
das relações de emprego típicas. Daí Estas novidades interferem no proces- cada de direitos dos trabalhadores32,
porque surgiriam as alterações, desti- so de reforma para atiçar a brasa do tais como: proteção contra despedida
nadas pretensamente a viabilizar con- problema do desemprego, que assu- arbitrária; seguro-desemprego; salário
tratações, assim como despedidas me características estruturais e serve mínimo; irredutibilidade do salário; dé-
mais flexíveis, menos onerosas e, por- para justificar a debilitação das contra- cimo terceiro salário anual; participa-
tanto, facilitadas. tações e das dispensas. ção nos lucros; jornada de oito horas
O argumento relacionado a ajustes A marcha legislativa no Brasil na últi- diárias e quarenta e quatro semanais;
pretensamente indispensáveis para ma década confirma a existência de repouso semanal remunerado; remu-
que as empresas possam adaptar-se à um vigoroso processo de flexibilização, neração do serviço extraordinário com
abertura econômica tem como cerne o bem como de desregulamentação de adicional de 50%; gozo de férias anu-
processo de globalização, entendido direitos trabalhistas, que ainda não ais remuneradas, com 1/3 de acrésci-

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A greve e os limites da institucionalidade

mo; licença à gestante de 120 dias; deste. A incorporação dos sindicatos paradoxo priva o Brasil de inúmeras
reconhecimento das convenções e ao Direito, no país, sucedeu em con- vantagens inerentes à implementação
acordos coletivos de trabalho; livre as- texto corporativista, que aniquilou a da liberdade sindical, conforme alerta
sociação sindical; e direito de greve, autonomia das entidades, debilitando- Siqueira Neto34, ao dizer que o sistema
dentre outros. as em sua essência, e a elas reservan- brasileiro “não é democrático, não ser-
Os principais marcos do processo de do um papel secundário. De acordo ve para realizar a negociação coletiva
reforma trabalhista no Brasil foram os com este modelo, cujas marcas até ho- de trabalho, dificulta a participação
seguintes: je persistem, o Estado é desaguadouro dos trabalhadores e o diálogo social,
a) Lei nº 8.949/94, que obstaculizou compulsório dos conflitos trabalhistas, não ajuda a composição voluntária
a caracterização de relação de empre- seja para conter pressões sociais dos conflitos e estimula - fundamen-
go entre o sócio-cooperativado e o to- embutidas em demandas coletivas, talmente pela ausência do contrapo-
mador de serviços da cooperativa; b) seja para alimentar o mito da Justiça der ao empregador - o crescimento
Lei nº 9.527/97, que eliminou ou mo- do Trabalho protetora do indivíduo tra- geométrico dos processos trabalhistas
dificou inúmeros direitos e vantagens balhador. Trata-se de um sistema que de natureza individual (que é também
do regime jurídico único dos servido- não cansa de emanar claros sinais de um indicador do descumprimento das
res públicos federais; c) Lei nº 9.601- esgotamento, mas continua despre- leis do trabalho no País).”
/98, que dispõe sobre o contrato de zando a alternativa da implantação da
trabalho a prazo e sobre o banco de genuína liberdade sindical. 7. Conclusão.
horas; d) Medida Provisória 1.709 de Malgrado os avanços, em 1988 fra- Ante à severa precarização de garan-
6.8.98, atualmente reeditada sob o nº cassou a idéia de efetivar uma adesão tias mínimas que a reforma trabalhista
2.164-41, que permitiu o trabalho a ao modelo internacional de liberdade pode produzir, com graves prejuízos
tempo parcial, com salários proporcio- sindical, nos moldes preconizados pela aos trabalhadores, como já se observa
nais e diminuição do período de férias; Convenção nº 87 da OIT. Pode-se afir- no Brasil, diversos juslaboralistas da
e) Medida Provisória 1.709-4, de mar que a Carta de 1988 promoveu região têm editado manifestações críti-
27.11.98, atualmente reeditada sob o apenas um afastamento aparente do cas à agenda flexibilizadora e desregu-
nº 2.164-41, que permitiu a suspensão Estado do cenário das relações sindi- lamentadora. É o caso de Genro35, que
do contrato de trabalho, com substitui- cais. Por trás desta mera aparência, re- promove uma argumentação compa-
ção do salário por uma ajuda compen- sistiu, ademais, o Poder Normativo da rativa de forte impacto:
satória mensal facultativa; f) Lei nº Justiça do Trabalho, que consiste na “A partir deste movimento o Di-
9.958/2000, que possibilitou a instau- arbitragem obrigatória do Estado, um reito do trabalho é jogado na escu-
ração de comissões de conciliação pré- exotismo praticamente eliminado dos ridão e na indeterminação. Eleito o
via para a atribuição de tentar conciliar países democráticos, que, por exem- inimigo numero um do neoliberalis-
os conflitos individuais de trabalho; g) plo, na França, só teve significado du- mo, sai da condição de consolidador
Medida Provisória nº 2.226/2001, que rante a ocupação nazista, como infor- da tutela dos hipossuficientes para
estabeleceu o requisito da transcen- ma Efrén Córdova33. A maior dificulda- se tornar um instrumento de abertu-
dência para a admissão de recursos ao de do sistema, entretanto, diante da ra das comportas, primeiro via dou-
Tribunal Superior do Trabalho (TST); h) perspectiva de adoção de um regime trina, para a flexibilização necessá-
Lei nº 10.272/2001, que mitigou o de autêntica liberdade sindical, traduz- ria, que lastreia uma nova etapa de
ônus do empregador por atraso con- se na imposição da unicidade, por- acumulação do capital. Os setores
fessado de salários; i) Projeto de Lei nº quanto assim ficam absolutamente hegemônicos das classes dominan-
5.483, de iniciativa do Presidente da descartadas a possibilidade de concor- tes com este movimento retomam,
República, para dar prevalência das rência e a liberdade de escolha, ele- no sentido inverso (e com valores in-
condições de trabalho negociadas so- mentos essenciais da liberdade sindi- versos), a luta pela construção de
bre o disposto em lei. cal. Em outras palavras, a unicidade uma nova fase do Estado.
Aos olhos da sociedade brasileira, o sindical é o ponto central do corporati- (...)
fenômeno sindical sempre esteve si- vismo brasileiro, e enquanto perdurar O velho Direito do Trabalho conso-
tuado aquém das suas possibilidades, no ordenamento jurídico, ficará irre- lidou a civilização industrial; o novo
como apêndice do Direito Individual mediavelmente prejudicada a demo- Direito do Trabalho dissolve a sua
do Trabalho, quando não à margem cracia nas relações de trabalho. Tal estabilidade, implode a centralidade

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A greve e os limites da institucionalidade

específica que ele gestou e joga a América Latina se ha flexibilizado 67, 1994.
sociedade, novamente, à beira de por vía directa del mero incumpli- 9. HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos. São
Paulo: Cia das Letras, p. 543, 1995.
uma legalidade ‘natural’. O velho Di- miento?”
10. PEREIRA E SILVA, Reinaldo. O Mercado
reito do Trabalho é um organizador- Se no plano jurídico as medidas inte-
de Trabalho Humano. São Paulo: LTr, p. 66,
regulador da exploração acordada; grantes da agenda flexibilizante e des- 1998.
o novo Direito do Trabalho é um ins- regulamentadora não convencem, no 11. FARIA, José Eduardo. Obra citada, p.
trumento de viabilização da barbá- âmbito econômico as experiências po- 229.
rie, da livre contratação fundada em dem considerar-se fracassadas, mercê 12. FREITAS JR., Antonio Rodrigues de. Di-
reito do Trabalho na Era do Desemprego. São
condições de maior desigualdade dos exemplos de Argentina e Espanha.
Paulo: LTr, p. 92. 1999.
entre os sujeitos. A pretensão de incrementar a empre-
13. BAYLOS, Antonio. Obra citada. p. 48.
Da utilização freqüente das cate- gabilidade mostrou-se falaciosa. Res- 14. Exemplo desta atitude pode ser locali-
gorias centrais do Direito Civil, reor- taram apenas as marcas da queda de zado na doutrina de Neves, que identifica a
ganizadas, rearrumadas, e reutiliza- qualidade dos empregos existentes. flexibilização como “um processo de desregu-
das no Direito do Trabalho, o novo O custo social da reforma tem sido lamentação das relações laborais e retirada de
benefícios previdenciários”. (NEVES, André
Direito do Trabalho funde-se nas ca- enorme. As medidas vão sendo im-
Luiz Batista. O processo de globalização e
tegorias ‘puras’ da economia e do plantadas sem maior reflexão em tor-
suas implicações quanto à flexibilização do
‘direito econômico’. O parteiro do Es- no de sua efetiva necessidade, e sem o Direito do Trabalho. In: ERGON - Órgão do Ins-
tado de Bem-Estar torna-se instru- esgotamento de alternativas social- tituto Bahiano de Direito do Trabalho, Salva-
mento indutor do projeto neoliberal mente mais adequadas. Prevalece a dor, Ano XLIV, Volume XLIV, p. 6, 1999).
e o Direito, todo, uma quase ‘pura’ idéia imediata de reduzir custos em- 15. CATHARINO, José Martins. Neolibera-
lismo e Seqüela. São Paulo: LTr, p. 51, 1997.
determinação da economia.” presariais, a despeito de inúmeras pro-
16. VIEIRA, Maria Margareth Garcia. A Glo-
Semelhante abordagem é apresen- vas de que a crise econômica atende a
balização e as Relações de Trabalho. Curitiba:
tada por Neves36, que denuncia a per- outras razões, mais profundas. Juruá, p. 65, 2000.
da de identidade do Direito do Traba- Esse, portanto, é o enfoque que con- 17. BOMFIM, Benedito Calheiros. Globaliza-
lho: sideramos válido perante o Projeto de ção, Flexibilização e Desregulamentação do
“Não se pode optar pela desregu- Lei nº 5.483/2001, de mudança da Direito do Trabalho. In: Globalização, Neo-
liberalismo e Direitos Sociais, MACCALÓZ, Ma-
lamentação (ou por uma flexibiliza- CLT.
ria Salete, Et alii. Rio de Janeiro: Destaque,
ção imoderada e desatenta às pecu-
1997.
liaridades do Direito do trabalho, o NOTAS: 18. VIEIRA, Maria Margareth Garcia. Obra
que valeria o mesmo), pois, assim, a 1. MAURO DE AZEVEDO MENEZES, advoga- citada, p. 17.
do trabalhista em Salvador - Bahia, vice-presi- 19. “A flexibilização, por último, busca
própria autonomia do Direito Labo-
dente do Instituto Bahiano de Direito do Tra- afrouxar as rigidezes resultantes do Direito do
ral estará ameaçada, pois ele se
balho, Assessor Jurídico da Regional Nordeste Trabalho. O Direito do Trabalho cresceu sobre
converterá em mero capítulo do Di- III do ANDES-SN, da APUB-SSIND e da a base de suprimir liberdades, de restringir
reito Econômico.” ADUFS-SSIND. possibilidades, de limitar as opções do em-
Tais inquietações encontram sua 2. DUPAS, Gilberto. Economia Global e Ex- pregador. A flexibilização busca exatamente o
expressão na doutrina de Ermida Uri- clusão Social. São Paulo: Paz e Terra, p. 14, contrário: recuperar liberdades e facilidades
1999.
arte37, em questionamentos absoluta- para o empregador. Há, então, uma oposição
3. BONAVIDES, Paulo. Do País Constitucio- básica, frontal, de fundo, entre essas duas rea-
mente pertinentes a respeito do pro-
nal ao País Neocolonial. São Paulo: Malheiros, lidades. O discurso dos defensores da flexibi-
cesso de reforma trabalhista na Amé- p. 139-140, 1999. lidade é o mesmo discurso dos que se opuse-
rica Latina: 4. RICUPERO, Rubens. O Ponto Ótimo da ram, no princípio do século, ao surgimento do
“existen dudas acerca de la nece- Crise. Rio de Janeiro: Revan, p. 68, 1998. Direito do Trabalho. Com uma roupagem ver-
sidad real y los efectos de la flexibi- 5. FARIA, José Eduardo. O Direito na Eco- bal apenas diferente: não se invoca a liberda-
nomia Globalizada. São Paulo: Malheiros, p. de, como nessa época, mas a eficácia; mas
lización: si lo que se flexibiliza en Eu-
52,1999. continua-se invocando a competitividade, a
ropa es un grado de protección ‘-
6. FARIA, José Eduardo. Obra citada, p. 229. inexorabilidade das leis do mercado, a neces-
rígida’ no alcanzado en latinoaméri- 7. BAYLOS, Antonio. Direito do Trabalho: sidade de baixar custos. Esse discurso, levado
ca, qué cosa es la que vamos a fle- Modelo para Armar. São Paulo: LTr, p. 105, às últimas conseqüências, conduz à destrui-
xibilizar?, que efectos tendría la flexi- 1999. ção e à inoperância do Direito do Trabalho,
bilización operando sobre tan bajos 8. ROBORTELLA, Luiz Carlos Amorim. O Mo- como levado às suas últimas conseqüências o
derno Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, p. discurso dos empregadores e dos políticos
niveles? Y, para peor no será que en

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A greve e os limites da institucionalidade

conservadores do princípio do século teria en el Marco de los Actuales Procesos de Cam- 28. Esta linha doutrinária inclina-se pela vir-
impedido que surgisse o Direito do Trabalho. bios: la Situación en Chile. In: Estudios en Ho- tual consagração de um Estado Econômico
(PLÁ RODRIGUES, Americo. Los Principios del menaje al Profesor William Thayer A. Santiago: que, na lúcida crítica de CATHARINO (obra ci-
Derecho del Trabajo en la Perspectiva de la In- Sociedad Chilena de Derecho del Trabajo y de tada, p. 24) denuncia a concepção de um “Di-
tegración Regional. Montevidéo: FCU, p. 15- la Seguridad Social, p. 162-163, 1998). reito Econômico açambarcador” em conflito
16, 1991, apud SILVA, Luiz de Pinho Pedreira 22. “A partir do papel a ser desempenhado de natureza axiológica com os direitos labo-
da. Principiologia do Direito do Trabalho. São pela liberdade sindical é que se pode averi- rais históricos. Para ele, a flexibilização não
Paulo,: LTr., p. 37, 1997). guar a função da negociação coletiva e dos passa de uma “maneira de adaptação de nor-
20. “Só de maneira muito relativizada po- meios de composição dos conflitos coletivos mas jurídicas para atender alterações verifica-
de-se concordar com a flexibilidade, máxime de trabalho e, conseqüentemente, da legisla- das na economia”. (obra citada, p. 50).
na América Latina, onde as condições de tra- ção trabalhista, dos órgãos administrativos e 29. VIEIRA, Maria Margareth. Obra citada,
balho, sobretudo os salários, são muito bai- judiciários, dos mecanismos privados auxilia- p. 24.
xos. Como outros têm dito, nesta parte do res de composição dos conflitos trabalhistas, e 30. “À medida que aumentava o fosso
globo, o Direito do Trabalho já está flexibiliza- reconhecer, enfim, a estrutura do Direito do entre ricos e pobres, parecia que aumentaria
do. (SILVA, Luiz de Pinho Pedreira da. Prin- Trabalho. Ou seja, o ponto de conexão e arti- o espaço para o exercício desse poder global.
cipiologia do Direito do Trabalho. São Paulo,: culação estrutural do Direito do Trabalho é a O problema era que, desde a década de 70, o
LTr., p. 37, 1997). liberdade sindical, que na verdade assume Banco Mundial e o Fundo Monetário Interna-
21. “El trabajo humano y el derecho que lo uma função preliminar, enquanto condição cional, politicamente apoiados pelos EUA, vi-
regula no son ajenos al contenido y efectos de para a atuação dos direitos individuais e cole- nham seguindo uma política sistematicamen-
las transformaciones que, en todo orden de tivos. Dela decorrem logicamente os demais te favorecedora da economia de livre merca-
cosas, derivan de los cambios profundos, ace- institutos do Direito do Trabalho. (SIQUEIRA do, empresa privada e livre comércio global,
lerados e imprescindibles que actualmente NETO, José Francisco. Liberdade Sindical e Re- que servia à economia americana do século
vivimos. Una de las instituiciones más emble- presentação dos Trabalhadores nos Locais de XX tão bem quanto servira à britânica de mea-
máticas del Derecho del Trabajo, la negocia- Trabalho. São Paulo: LTr., p. 18, 2000). dos do século XIX, mas não necessariamente
ción colectiva, es ejemplo claro de ello. La ne- 23. Tal perspectiva moderna encontra-se ao mundo.” (HOBSBAWN, obra citada, p. 556).
gociación colectiva es tanto una instituición adequadamente preconizada por VILHENA: 31. Como elemento propagandístico do
jurídico laboral como una instituición política, “Por outro lado, com o reconhecimento da or- processo de reformas neoliberais, foi cunhada
social y económica. (...) Como instituición po- ganização sindical, dos contratos coletivos de a expressão “Custo Brasil”, que designaria as
lítica es un instrumento fundamental en la trabalho, da ação coletiva, que são instituições despesas que incidiriam indevidamente sobre
extensión e profundización de la democracia, jurídicas exclusivas do novo Direito, admite o as atividades dos empresários e dos investido-
en cuanto ella es un mecanismo de participa- Estado Moderno meios de pressão, juridica- res, sobretudo os estrangeiros, em decorrên-
ción en la toma de decisiones y em el logro de mente organizados, que traduzem a perma- cia de “leis ultrapassadas”, que garantiriam
consensos que aseguren niveles apropiados nente necessidade de resguardar, com maior privilégios corporativos e abusos tributários.
de paz social. (...) Como instituición social, la tônus jurídico, a defesa dos interesses de uma Os direitos trabalhistas mínimos costumam
negociación colectiva es instrumento de ex- das partes do contrato individual do trabalho: ser associados ao chamado “Custo Brasil”,
tensión del concepto de ciudadanía, a la vez o empregado. (VILHENA, Paulo Emílio Ribeiro com o objetivo de depreciar a resistência em
que es el medio apropiado para fortalecer la de. Relação de Emprego. Estrutura Legal e Su- sua defesa.
presencia y gravitación de la sociedad civil en postos. 2. ed. São Paulo: LTr., p. 38-39, 1999). 32. Artigos 7º a 11 da Constituição da Repú-
el diseño y aplicación de la política pública del 24. SIQUEIRA NETO, José Francisco, OLIVEI- blica Federativa do Brasil.
trabajo. (...) Como instituición económica, la RA, Marco Antonio de. As negociação coletivas 33. CÓRDOVA, Efrén. O Ocaso da arbitra-
negociación colectiva es un medio idóneo no contexto do Plano Real. Brasília: OIT, p. 71, gem nos conflitos de interesses. In: Relações
para que las instituiciones laborales - sin per- 1999. Coletivas de Trabalho - Estudos em homena-
der su esencia protectora - puedan manifes- 25. NEVES, André Luiz Batista. Obra citada, gem ao Ministro Arnaldo Süssekind. São Pau-
tarse de forma que también resulten funcio- p. 26-27. lo: LTr, p. 556-572, 1989.
nales con objetivos de crescimiento y desar- 26. ROBORTELLA, Luiz Carlos Amorim. Obra 34. SIQUEIRA NETO, José Francisco. Obra
rollo, facilitando los procesos de transforma- citada. p. 39. citada. p. 21-22.
ción productiva que actualmente tienen lugar, 27. Segundo VILHENA (obra citada, p. 37), a 35. GENRO, Tarso. Um futuro por armar -
especialmente en el marco de la globaliza- “explicação epistemológica do Direito do Tra- Estudo Preliminar. In: BAYLOS, Antonio. Direi-
ción. (...) Como instituición jurídico-laboral, la balho” decorre do fato de que este “surgiu e to do Trabalho: modelo para armar. São Paulo:
negociación colectiva es el medio para conve- se impôs como reação aos princípios indivi- LTr, p. 18-19, 1999.
nir normas que regulen el trabajo y las condi- dualistas e à igualdade abstrata consagrados 36. NEVES, André Luiz Batista. Obra citada.
ciones en que se realiza, así como las remu- pelo Código Civil.” p. 38.
neraciones y las relaciones entre los sujetos 37. ERMIDA URIARTE, Oscar, citado por
sociales - empleadores y trabajadores y las or- SLODKY. Aspectos Legales de la flexibilidad la-
ganizaciones que los representan. (VALEN- boral. In: Flexibilidad laboral. Aportes para un
ZUELA, Emilio Morgado. Necesidad, Funciona- debate pendiente, p. 160. Apud MAILHO, obra
lidad y Viabilidad de la Negociación Colectiva citada, p. 4-5.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 31


A greve e os limites da institucionalidade

Francisco Miraglia e Soraya Smaili*

“O financiamento público para a


universidade pública é necessário”
As Universidades Públicas brasileiras
vivem hoje um momento singular.
Ao cabo de anos de uma política
de desmonte e privatização das
Universidades Publicas, nos últimos
dois anos assistimos a manifestações
fortes e contundentes contra o
esquema que o governo federal e
muitos governos estaduais tentam
impor. Há pouco mais de um ano,
professores, alunos e funcionários das
universidades estaduais paulistas
insurgiram-se contra o arrocho de
salários e verbas através da greve.
Mais recentemente, docentes e técni-
co-administrativos das Universidade
Federais também sustentaram um
duro embate com o governo federal.
Ambos movimentos grevistas
possuíam uma característica em
comum : a ampla mobilização e
organização, construindo a capacida-
de de conquistar um desfecho
vitorioso. Neste momento, mais uma
forte greve ocorre neste mesmo
cenário : a das universidades
estaduais do paraná.
Durante a greve das federais, o go-
verno FHC mais uma vez mostrou a
sua face autoritária, como no caso dos
Petroleiros e do MST, entre outros. No
lugar do respeito e de negociações destruição da organização e da digni- nião pública e de desqualificação dos
efetivas, presenciamos atos incompatí- dade de professores e funcionários. O professores que, para Paulo Renato,
veis com o exercício responsável e de- corte ilegal dos salários, as campanhas são “fascistas” e, para FHC, “coitados”,
mocrático do poder, todos dirigidos à milionárias de desinformação da opi- o desrespeito a compromissos assumi-

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A greve e os limites da institucionalidade

dos publicamente e as decisões do públicos essenciais, sem os quais


Superior Tribunal de Justiça e do Su- aumentarão ainda mais a exclusão e o As greves mostraram tam-
premo Tribunal Federal são alguns empobrecimento da maioria da popu-
exemplos da postura política adotada lação brasileira. A Argentina, por exem-
bém que só a mobilização
pelo governo FHC, quando é pressio- plo, sob a direção de governos que massiva é capaz de reverter
nado por movimentos sociais organi- eram pupilos aplicados do FMI e do
a diretriz de destruição dos
zados. É desnecessário dizer que a Banco Mundial, foi destruída por polí-
banqueiros e a grandes industriais es- ticas com diretrizes análogas às preco- serviços públicos essenciais,
tão reservados muito dinheiro e trata- nizadas pelo governo FHC e aliados. sem os quais aumentarão
mento de dignitários. Só a coesão e a Não custa nada aprender com as expe-
organização do movimento dirigido riências históricas ao nosso dispor. ainda mais a exclusão e o
pelo Sindicato Nacional dos Docentes Durante as greves, um debate volta empobrecimento da maioria
de Ensino Superior (ANDES-SN), em sempre: a questão do financiamento
defesa da Universidade Pública garan- das Universidades. Durante a greve
da população brasileira.
tiram arrancar do governo melhorias das federais, o Ministro Paulo Renato
significativas dos salários e das condi- declarou a necessidade de privatizar o o serviço público tem servido de pre-
ções de vida e trabalho dos seus pro- ensino (Folha de São Paulo) e, não sa- texto para o arrocho de salários e ver-
fissionais. É importante registrar que tisfeito, continua afirmando que as bas, tendo a comunidade acadêmica
persistem problemas graves de finan- “...universidades devem buscar fontes vivido, nos últimos 7 anos, uma das
ciamento da Universidade Pública, em de financiamento” (Uol educação maiores reduções orçamentárias que
particular, da reposição dos quadros 17/01/01). Já não é de hoje que os se tem notícia. O volume de recursos
docente e técnico-administrativo. governos conservadores do nosso país públicos nominais das Universidades
As greves dos últimos anos têm tam- falam, repetida e incansavelmente, do Federais que, em 1995, era de R$ 5,7
bém o papel de explicitar para a opi- Sistema Público Universitário no Brasil. bilhões, passou a R$ 7,4 bilhões, em
nião pública a inadequação da política Entre outras coisas, a Universidade Pú- 2000. Como o menor índice de infla-
do governo FHC, em relação à Educa- blica tem sido rotulada de perdulária, ção para o período (IPC-FIPE) foi
ção, em particular, à Educação Supe- ineficiente e até mesmo de corporati- 58,22%, a correção dos valores de 95
rior. Como disse o Professor Luís Costa vista. Hoje acrescentaram a esse dis- nos levaria à casa dos 9 bilhões de
Lima, é preciso atentar para algo “que curso a afirmação de que o sistema reais, ou seja, cerca de 19 % a mais do
raia o incompreensível : o desmonte não se sustenta e que um país “pobre” que o efetivamente aplicado. E isto só
da Universidade de um país que de- não tem como mantê-lo. Muitos são para permanecer no patamar de 95,
morou a construí-la.... Como se manter os clamores para a reformulação do sem a necessária expansão do siste-
indiferente?” (Folha de São Paulo, sistema e para a necessidade de torná- ma. A tática é conhecida: alegam-se
20/01/02). Neste aspecto, a participa- lo “moderno” e de “rediscuti-lo”. ineficiência e desperdício, arrocham-se
ção ativa dos estudantes é um fato Durante o governo FHC, conservador os salários e as verbas, inviabiliza-se a
politicamente significativo, pois contri- como os anteriores, a cantilena não capacidade de trabalho de um setor
bui de forma importante para a defesa mudou: propalam que a Universidade publico essencial para depois vendê-lo
de uma idéia que ataca o cerne da Pública precisa ser reformulada, indi- por um precinho módico ao setor pri-
perspectiva privatista que norteia a cando a privatização como solução ne- vado. Assim, estes podem enriquecer
ação governamental. Sem serviços pú- cessária e urgente. Querem fazer crer com as necessidades sociais de Edu-
blicos de qualidade, em particular, na que a proliferação de universidades par- cação e Saúde da Nação.
área de Saúde e de Educação, em to- ticulares e a concessão de bolsas de es- Fruto do esforço dos profissionais
dos níveis, não há possibilidade de tudos às custas de juros impraticáveis que trabalham no sistema Universitá-
exercício pleno da cidadania, condição seriam a solução para o sistema. Quem rio Público, no período de 1995 a
essencial para construção de uma acredita? Está claro que o recente caso 2000 e apesar da diminuição real dos
sociedade mais justa e igualitária. As de analfabetos aprovados em exames recursos, houve um aumento de cerca
greves mostraram também que só a vestibulares não ajuda em nada os ar- de 30% nas vagas dos cursos de gra-
mobilização massiva é capaz de rever- gumentos do governo federal. duação oferecidos. Na Universidade
ter a diretriz de destruição dos serviços O discurso da falta de recursos para Federal de São Paulo, que não e muito

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 33


A greve e os limites da institucionalidade

diferente das demais Universidades lização e mestrados “profissionalizan-


As Universidades Públicas Federais, houve uma diminuição do tes”, agredindo o carácter público da
orçamento para pessoal ativo de 120 Universidade e aprofundando o uso de
continuam oferecendo mais
milhões para 84 milhões e, ao contrá- sua capacidade instalada, tanto física
de 89% dos cursos de pós- rio do que querem fazer crer, não hou- quanto intelectual, para ganho priva-
graduação, fazem mais de ve um aumento da folha dos aposen- do. Está claro que este processo está
80% da pesquisa do país, tados, que se manteve praticamente articulado com o estrangulamento do
igual, com 23 milhões. Por outro lado, orçamento e dos salários, criando um
proporcionam 91% das
o número de docentes e técnicos di- ambiente perfeito para a desobrigação
publicações acadêmicas e minuiu e ao final de 2000, o déficit nas governamental.
têm os cursos mais bem Instituições Federais era de 8 mil do- Talvez, o mais surpreendente seja
centes (num total de 40 mil) e de 20 conhecer o sistema educacional de al-
avaliados - seja qual for o
mil técnicos. No entanto, o trabalho guns países centrais e ver que os argu-
instrumento de avaliação. realizado pelos servidores não estag- mentos que nossos governantes ten-
nou ou diminuiu, ao contrário, apenas tam impor ao mostrar outros exem-
aumentou. As Universidades Públicas plos, podem ser facilmente descons-
continuam oferecendo mais de 89% truídos. Algumas perguntas podem en-
dos cursos de pós-graduação, fazem tão surgir neste debate :
mais de 80% da pesquisa do país, pro-
porcionam 91% das publicações aca- Em países desenvolvidos, o ensino
dêmicas e têm os cursos mais bem é privado?
avaliados - seja qual for o instrumento Não. O governo americano, por
de avaliação. Ou seja, a ladainha go- exemplo, investe amplamente em
vernamental não tem nenhum funda- educação e pesquisa. Apesar de a mai-
mento, embora seja propalada aos or parte do ensino ser de responsabili-
quatro ventos, com a colaboração da dade dos governos dos estados e mu-
grande mídia, que freqüentemente re- nicípios, o governo federal dos EUA
presenta os interesses do lucro, a par- aplica 30 bilhões de dólares anuais em
tir das necessidades básicas do popu- educação. Todos os estados america-
lação brasileira. nos têm o seu sistema estadual univer-
Surpreendentemente, o modelo uti- sitário, que conta com um grande nú-
lizado como exemplo pelos nossos go- mero de universidades, escolas técni-
vernantes continua sendo o sistema cas e institutos de pesquisa. Para citar
norte-americano. Dentre as muitas in- um exemplo, apenas no Sistema de
verdades, afirmam que o nosso siste- Ensino de Superior de Maryland, o dé-
ma está errado porque depende es- cimo terceiro no país, gasta-se anual-
sencialmente do dinheiro público, en- mente 1,7 bilhão de dólares. Isso em
quanto que, em países mais desenvol- apenas uma instituição norte-america-
vidos, o sistema funciona com recur- na. Por outro lado, no Brasil, o custeio
sos privados para a manutenção de de todo o sistema federal de ensino
suas universidades e para a promoção superior não passa de 2,5 bilhões de
da pesquisa e do desenvolvimento ci- dólares.
entífico e tecnológico. Durante os últi- Outro aspecto relacionado a esta
mos 7 anos, esta falácia obteve alia- questão diz respeito à cobrança de
dos dentro da comunidade acadêmica. mensalidade como fonte alternativa
Isso suscitou uma onda crescente de de financiamento. Nos sistemas euro-
venda de serviços, obtenção de salá- peus, em geral, não há cobrança de
rios por consultorias e pagamento de mensalidades, com algumas poucas
mensalidades para cursos de especia- exceções. Na França, o sistema é gra-

34 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


A greve e os limites da institucionalidade

tuito. O mesmo acontecia até recente- ao pagamento de estudantes e pós-


mente na Inglaterra, que hoje cobra doutorandos em treinamento.
mensalidades, porém, a maior parte Por outro lado, aqui a indústria não
dos alunos têm bolsas concedidas pe- financia pesquisas, a menos que agên-
lo governo. Nesses países, praticamen- cias públicas de financiamento, como
te não existem as Universidades total- a Fapesp e Finep, criem programas de
mente privadas que seguem o modelo interação, e quem entra com o maior
mercantilista existente no Brasil. Nos investimento é o erário público. As
Estados Unidos, há várias universida- agências de financiamento de pesqui-
des privadas, mas com características sa não totalizam 2 bilhões de reais,
diferentes das do Brasil, pois muitas aplicados em todas as áreas do conhe-
delas realizam pesquisas, sendo que cimento. Em todo o sistema Federal,
os recursos provenientes das mensali- que inclui as Universidades e Institutos
dades (menos de 20%) não são sufi- Federais e onde e feita boa parte da
cientes para custear a totalidade do pesquisa, o gasto não ultrapassa muito
trabalho nestas universidades. Por ou- a cifra dos 7 bilhões (incluindo gastos
tro lado, há uma grande oferta de com funcionários e manutenção). Ain-
Universidades Públicas em todos os da assim, no âmbito federal, os inves-
estados americanos. timentos feitos pelas agências federais
de fomento à pesquisa, como CAPES e
Nos Estados Unidos, país liberal CNPq, vêm sendo drasticamente redu-
por excelência, o setor privado finan- zidas a cada ano.
cia a maior parte das pesquisas ? Ainda nos EUA, a pesquisa básica
O setor privado norte-americano também é financiada, quase que ex-
certamente investe bastante em pes- clusivamente por dinheiro público. Há
quisas e tem tradição neste tipo de fi- alguns anos, discutia-se, no Congresso
nanciamento. Ao contrário da indústria Americano, uma redução neste item
brasileira, no sistema norte-americano, de despesa orçamentária. Presidentes
o setor privado investe apenas 40% do e executivos de alta linha (CEO’s) de
total aplicado em pesquisa e desen- algumas das maiores multinacionais
volvimento. Este total corresponde a do planeta assinavam matéria paga no Aqui a indústria não
3,5% do PIB americano, que é de 7.1 Washington Post, fazendo a defesa das financia pesquisas, a menos
trilhões de dólares. O governo norte- Universidades e da pesquisa financia-
americano cobre mais de 50% dos da pelo dinheiro público. Afirmavam
que agências públicas de
gastos totais com pesquisa em desen- que, sem o investimento público de financiamento, como a
volvimento em todas as áreas. So- larga escala, estava ameaçada o “ame- Fapesp e Finep, criem
mente na área de ciências biomédicas rican way of life”. A busca de lucro a
programas de interação,
e ciências da saúde, através de seu curto prazo inviabiliza o investimento
Instituto Nacional da Saúde, o “Na- estratégico necessário para a produção e quem entra com o maior
tional Institutes of Health” (NIH), gas- de conhecimento das leis naturais, investimento é o
tam-se 16 bilhões de dólares anuais sem o qual é impossível alcançar o de- erário público.
(corrigidos anualmente em cerca de senvolvimento tecnológico. A direção
3% ou de acordo com a inflação). política do capitalismo pode ser tudo,
Dentre estes 16 bilhões, mais de 10 mas não é intelectualmente raquítica.
bilhões destinam-se a financiamento Ao contrário dos seus propagandistas
de pesquisa em diferentes universida- nestes “Estados Unidos” do Brasil.
des, em todo o país. Mais de 3 bilhões
são aplicados em pesquisa dentro de
seus institutos e o restante destina-se

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 35


A greve e os limites da institucionalidade

Como são os salários dos professo- pesquisa e o desenvolvimento tecno-


res em países mais desenvolvidos ? lógico devem ser financiados pelo di-
Como exemplo, podemos citar al- nheiro público, ou então a nossa dívi-
guns dados da Universidade de Ma- da social não irá, jamais, deixar de
ryland, instituição pública estadual nos crescer.
EUA, onde os médios mensais são de Torna-se irônico descobrir que os
4,3 mil dólares (cerca de 12 mil reais) exemplos mais comumente utilizados
para o professor em início de carreira, para nos oprimir, enquanto professo-
e de 7,8 mil dólares (cerca de 21 mil res e pesquisadores, possam ser tão
reais) para o professor em estágio facilmente refutados. Poderíamos até
mais avançado da carreira. Estas cifras ser surpreendidos, se estas mesmas
são gerais, pois as instituições prefe- considerações fossem feitas utilizando
rem não perder pessoal simplesmente como base países com tradição em in-
por diferenças salariais nominais. A vestimentos sociais e em educação
nossa realidade brasileira é bem dife- pública, como a França ou os países
rente, pois os professores das Insti- escandinavos.
tuições Federais de Ensino Superior Na realidade, ao pensarmos os paí-
têm salários de 1,5 mil reais, em início ses chamados “desenvolvidos”, uma
de carreira, chegando a um máximo diretriz fica clara: não existe desenvol-
de 4,8 mil reais, ao final. Estes valores vimento e autonomia sem investimen-
incluem adicionais por titulação (inclu- to maciço em educação e pesquisa,
indo doutorado) e exigem do profes- em todos os níveis. Desta forma, é
sor a Dedicação Exclusiva. Ou seja, a inaceitável que um professor e/ou um
impossibilidade de ter outros empre- pesquisador não tenha um salário que
gos ou acumular funções. Para piorar, o habilite a viver com dignidade, sem
apenas 10-15% dos professores che- ter que ficar pensando em como “ven-
gam ao topo da carreira, já que este ní- der a alma”. Não precisamos copiar ne-
vel depende de concurso e de abertu- nhum sistema, precisamos apenas
ra de vagas que é extremamente restri- aplicar o óbvio. Este mesmo óbvio,
ta. A análise mais geral mostra que a que a maioria dos governantes brasi-
grande maioria dos professores recebe ção do sistema público, recomendam leiros, para atender aos interesses ex-
entre 2 e 3 mil e uma parcela conside- um arremedo, nem remotamente pa- ternos que controlam, fazem de tudo
rável têm salários abaixo dos 1,5 mil recido com o original. Por que será para que não sejamos capazes de en-
(Folha de São Paulo). Apesar disso, o que não recomendam tratamento pe- xergar.
Ministro da Educação tem afirmado nal para sonegadores de impostos ?
Ou escala progressiva para o imposto Francisco Miraglia - Professor Titular da
que a maioria dos Professores Federais
Universidade de São Paulo, doutor em
ganham em média 4 a 5 mil reais men- sobre a renda ? É importante frisar que
lógica pela Universidade de Yale, é Pes-
sais. Um tanto longe do mundo real. a indústria no Brasil não irá, a médio quisador Convidado da Universidade de
Estes foram alguns exemplos de prazo, aplicar uma soma significativa Paris VII, foi Professor Visitante da Uni-
análise crítica de afirmações que cos- de dinheiro em desenvolvimento tec- versidade de Oxford (90-92) e Universi-
tumamos ouvir dos pontífices da priva- nológico. Os grandes produtores de ci- dade de Maryland (97-98).

tização. Assim como a natureza da so- ência aplicada têm os seus países sede
Soraya S. Smaili - Professor Adjunto da
ciedade americana tem raízes na sua como principal foco de investimento.
Universidade Federal de São Paulo e Pre-
história, a história social brasileira ge- Pretendem, isto sim, que brasileiros sidente da ADUNIFESP - doutora em Far-
rou especificidades que nos são pró- paguem, como valor agregado e ge- macologia pela Unifesp, pós-doutora pe-
prias. A cópia pura e simples de políti- rando lucro, a pesquisa que fizeram la Universidade Thomas Jefferson (1997),
cas é, portanto, sem sentido. Mas esta nos seus laboratórios nos EUA, na Eu- foi Pesquisadora Visitante do National
ropa e no Japão (e.g., a indústria far- Institutes of Health (EUA) (98-99).
obviedade não parece constranger
aqueles que, interessados na destrui- macêutica). A conclusão é simples : a

36 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


A greve e os limites da institucionalidade

Fotos: Arquivo Andes-SN


Avaliação da greve de 2001,
das IFES, pelo CNG*
Histórico Afeganistão e o generalizado esforço própria história, e esta foi recuperada
Uma avaliação do movimento da de cerceamento dos direitos civis e em diversas das análises que busca-
greve que ora se encerra deve levar repressão aos movimentos sociais ram compreender as razões de um iní-
em conta a conturbada conjuntura contrários à ordem também foram cio de greve tão forte, da adesão gene-
nacional e internacional em que ela objeto de nossas avaliações. ralizada ao movimento, da resistência
se desenvolveu. Nas dezenas de No Brasil, o quadro de desgaste aos mais duros ataques impostos pelo
avaliações de conjuntura que o político do governo FHC, governo, das mudanças táticas do mo-
CNG/ANDES-SN enviou em seus acompanhado de seu esforço vimento, acompanhadas de coerência
Comunicados, tratou-se de derradeiro para aprovar uma nova de princípios, dos limites de cada fase
caracterizar o quadro da crise etapa de reformas ainda mais da conjuntura, bem como de nossos
estrutural capitalista e de suas radical na quebra dos direitos dos avanços parciais. Haverá espaços mais
manifestações mais recentes, na trabalhadores - como no caso da adequados para uma recuperação
periferia do sistema - como no caso precarização da CLT - forneceram uma ainda mais detalhada da trajetória da
da crise Argentina - ou mesmo no seu moldura importante para as análises greve, elemento essencial para uma
centro dinâmico - a economia de conjuntura do Comando. qualificação adequada de um movi-
norte-americana. Tratou-se também Se, por um lado, seria imprudente mento indiscutivelmente histórico.
do peso dos ataques aos símbolos tentar, em espaço curto, reproduzir a Este, porém, é o momento do balan-
do capital financeiro e do poderio riqueza de tais avaliações, que facilita- ço. Ou, de um primeiro esforço de
militar dos EUA, em 11/09/01. ram ao Movimento posicionar-se em balanço que possa dar ensejo a avalia-
Os efeitos perversos da reação cada etapa da greve; por outro, uma ções mais aprofundadas, nas bases e
americana, com a guerra no greve de mais de cem dias possui sua nas instâncias deliberativas do Sin-

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 37


A greve e os limites da institucionalidade

sionistas, estendendo a eles 60% da


GID. Avançamos em valores e critérios
Não é possível negar o saldo político positivo de uma greve
e diminuímos as diferenças salariais
que nacionalmente parou todas as Instituições Federais de da categoria, com a equiparação da
Ensino Superior ligadas ao Andes-SN e, em cada instituição, GID à GED entre professores de 1°,
as atividades da esmagadora maioria da categoria. 2° e 3° graus. Diminuímos o peso das
gratificações no vencimento, através
do reajuste na tabela. É menos do que
dicato Nacional. Desse ponto de vista, nando Henrique Cardoso/Pedro Ma- queríamos, mas muito mais do que
é necessário começar pelo juízo de va- lan/Paulo Renato, orientados por conseguiríamos (nada) sem a greve.
lor. Todas as greves que fizemos até mecanismos internacionais de submis- Abortamos uma candidatura à Presi-
aqui foram necessárias. Nelas, con- são dos países emergentes. dência da República. Expusemos ao
quistamos direitos, garantias, melho- Consolidamos um dos mais fortes fracasso a política de destruição do
rias para os docentes e a Universidade. movimentos sindicais de caráter con- Sistema Federal de Ensino Público,
Quando isto não foi possível, pudemos frontacional, reconhecido na conjuntu- gratuito e socialmente referenciado
perceber, ainda assim, o saldo positivo ra atual no Brasil. A prática e a organi- pretendida pela política educacional
de termos bloqueado o avanço do zação interna, o respeito à democracia de Paulo Renato. Forçamos o gover-
projeto de desmonte da Universidade e às instâncias deliberativas do Mo- no de FHC a explicitar suas mais
Pública. Essa consciência de que o sal- vimento, a sábia direção do Comando ardilosas iniciativas para destruir o
do das greves se mede pela sua con- Nacional de Greve, a firme orientação sindicalismo no Brasil. Conseguimos
seqüência histórica, e não por even- da Direção do Sindicato permitiram comprometer o MEC com a instalação
tuais conquistas nas suas pautas espe- que nos mantivéssemos em greve de mesas de negociação e grupos de
cíficas, não deve obliterar o sentimen- com grande adesão imediata das 52 trabalho sobre financiamento da Uni-
to com que todos saímos desta greve: Universidades e encerrássemos, hoje, versidade, recomposição dos quadros,
foi uma greve vitoriosa! vitoriosos e unificados. Em todas as carreira (incluindo-se nessa mesa a
Iniciando em agosto como greve IFE, a greve paralisou mais de 90% das discussão sobre GED e GID) e hospi-
unificada dos Servidores Públicos Fe- atividades e mobilizou-nos para pres- tais universitários, entre outros. Além
derais, atravessou setembro e outubro sionar os Conselhos Superiores a assu- disso, garantimos uma recuperação
como greve da área da Educação Fe- mirem uma postura mais ativa na de- em nosso vencimento básico que
deral (mantendo-se forte também na fesa da Universidade. atingiu a todos e sobre o qual incidirá
Saúde e na Previdência), para chegar a o reajuste geral do funcionalismo.
novembro e dezembro como greve Conquistas Ampliamos nossos canais de inter-
dos docentes e dos estudantes das O saldo da greve, em relação à sua locução, a partir da atuação conjunta
Instituições Federais de Ensino. pauta, é inequivocamente positivo. No com os técnico-administrativos e com
Não é possível negar o saldo político âmbito político, estancamos o Pro- os estudantes, o que fez crescer nossa
positivo de uma greve que nacional- jeto de Emprego Público, com sua capacidade de intervenção no plano
mente parou todas as Instituições Fe- proposta de precarização do contrato institucional - Parlamento, Tribunais e
derais de Ensino Superior ligadas ao de trabalho do servidor, baseado em no próprio MEC - e nas ações de rua.
Andes-SN e, em cada instituição, as ati- aumentos via gratificações produtivis- Iniciativas como passeatas, “trancaços”,
vidades da esmagadora maioria da ca- tas e um regime de CLT manietado, aulas públicas, envolveram um núme-
tegoria. Torna-se, portanto, inevitável num momento em que a própria CLT ro expressivo de professores em ativi-
estarmos impregnados pelo gosto da está também sob ataque desregulacio- dades do Movimento e isso nos possi-
Vitória, arrancada, após 108 dias de nista. Novos concursos, com contra- bilitou mostrar à população um pouco
greve, com muita determinação, per- tos regidos pelo RJU, além dos 2000 daquilo que a Universidade produz e,
sistência e perseverança pelo Movi- já em andamento, serão abertos. En- em parte, devido a esse fato, consegui-
mento Docente, em um dos mais con- terraram-se, ao menos na conjuntu- mos conquistar um expressivo apoio
sistentes e duros embates contra as ra atual, as propostas de retomada da sociedade e da mídia. Lutamos alia-
políticas de destruição das Instituições da cobrança do desconto previden- dos aos demais Servidores Públicos
Federais de Ensino propostas por Fer- ciário sobre os aposentados e pen- Federais mantendo, dentro do plano

38 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


A greve e os limites da institucionalidade

estratégico, pautas e ações unificadas.


Fortalecemos a compreensão da ne-
cessidade de nos unificarmos institu-
cionalmente: professores, estudantes
e técnico-administrativos, de modo a
pautar, no cenário político nacional, o
fracasso das políticas educacionais de
Fernando Henrique Cardoso.
O movimento unificado dos SPF tor-
nou possível a discussão em outro pa-
tamar. No setor da Seguridade, que co-
nosco permaneceu em greve por mais
tempo, conquistas foram alcançadas.
Nas IFE, os técnico-administrativos bar- destaque à problemática das Institui- Chile, Uruguai, entre outros e de enti-
raram a tentativa de se impor uma gra- ções Federais de Ensino, em meio a dades como a CLACSO (Confederação
tificação produtivista e variável, que uma conjuntura internacional comple- Latinoamericana de Ciências Sociais) e
poderia representar perdas salariais xa de recessão econômica, com os a AELAC (Associação dos Educadores
para alguns - a GEDAE - e incorpora- acontecimentos do 11 de setembro Latinoamericanos e do Caribe). Tínha-
ram a GAE. Os estudantes avançaram nos Estados Unidos e a guerra contra o mos a certeza de que não estávamos
na obtenção de recursos e no retorno Afeganistão em pleno curso. Explicita- sós na luta, que continua com novos
da rubrica da Assistência Estudantil aos mos, enfim, que existem alternativas contornos e iniciativas.
orçamentos das universidades. Porém, de horizonte histórico para as IFE. Assim, a greve que se iniciou com a
temos o saldo extremamente positivo Os ganhos morais e éticos podem bandeira da defesa da Universidade
da unidade na luta com os Servidores ser reconhecidos em nossa determina- Pública, em meio à luta maior em de-
Públicos Federais e, no interior das IFE, ção, vontade política e resistência. Sem fesa do Serviço Público, adquiriu, pe-
saímos em condições mais favoráveis salários, ameaçados, acusados pelo lo peso do inimigo que enfrentou,
para ampliarmos o grau de unidade na Presidente da República e seu Ministro uma característica de defesa dos di-
ação entre o ANDES-SN, a FASUBRA da Educação, que diariamente busca- reitos sindicais e, diante das arbitra-
SINDICAL, o SINASEFE e a UNE. ram desqualificar-nos (categoria e Sin- riedades do governo, de defesa do
Os ganhos econômicos foram dis- dicato) e humilhar-nos. Mas nós não próprio Estado de Direito e da de-
tribuídos da maneira mais justa possí- nos dobramos; muito pelo contrário: mocracia. Uma vitória desta greve é,
vel, sem abrir mão dos nossos princí- radicalizamos a vontade de ver um portanto, uma vitória em várias fren-
pios. Conquistamos no Parlamento a final vitorioso na greve. Greve que po- tes: na pauta, ao contrapormos uma
aprovação do Projeto de Lei n° deria ter sido resolvida imediatamente, alternativa ao projeto de Universidade
5805/01, após esgotar as possibilida- não fosse a intransigência do Governo do governo, na consolidação interna e
des de negociação com o Executivo. e a incompetência política do Ministro externa dos setores que se dispõem a
Foram dez anos sem aprovação de um da Educação. Consolidamos, nestes defender a Universidade Pública e,
Projeto de Lei no campo da Educação 108 dias de greve, uma perspectiva de além disso, no enfrentamento às arbi-
que nos fosse tão favorável. Forçamos Sindicato combativo, de luta, democrá- trariedades anti-sindicais e anticonsti-
o Executivo a concordar com o Termo tico e autônomo, que atuou de forma tucionais do governo FHC.
de Acordo para instalação de mesas unificada a partir de amplo debate in-
de negociação com o ANDES e o SINA- terno. Balanço
SEFE, coordenadas pela ANDIFES e Fomos solidários uns com os outros, Um balanço mais profundo, porém,
CONCEFET para tratar da carreira e nos apoiamos mutuamente. Recebe- deve abarcar outras dimensões. A gre-
financiamento das IFE; obtivemos vi- mos solidariedade de vários setores da ve ganhou novas dimensões pelo
tórias junto ao Judiciário pela justeza sociedade brasileira - OAB, CNBB, MST, esforço repressivo mobilizado pelo go-
das reivindicações e por estarmos con- CUT entre outros -, bem como de enti- verno para tentar não apenas pôr fim
forme às leis; permanecemos diaria- dades internacionais como os sindica- ao movimento, mas também ao pró-
mente na mídia nacional, que deu tos da Argentina, Espanha, Portugal, prio Sindicato. Intensa repressão poli-

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 39


A greve e os limites da institucionalidade

cial às manifestações em Brasília, inter- de prosperidade, graças à política apli- caram para mesas de discussão com o
ditos proibitórios, retenção ilegal de cada pelo Governo Federal. Rios de di- MEC; os técnico-administrativos ainda
salários, multas; tudo foi feito no senti- nheiro em publicidade foram gastos estão com seus salários bastante defa-
do de criminalizar a ação sindical dos pelo MEC para tentar fazer passar tais sados; os estudantes têm pela frente o
trabalhadores das IFE e o movimento mentiras, acompanhadas de uma ten- desafio de enfrentar a política discrimi-
estudantil. Por fim, com o descumpri- tativa de desqualificar o movimento e natória das agências de fomento na
mento dos acordos negociados, com a o Sindicato. Não há espaço para repro- concessão das bolsas.
burla a decisões judiciais (culminando duzir aqui toda a cantilena de Paulo É preciso também enfatizar que só foi
com o pedido de habeas corpus pre- Renato. Os fatos o desmentiram e a possível conquistarmos nossa vitória,
ventivo do Ministro Paulo Renato) e greve passou enquanto suas intenções num contexto tão desfavorável, pela
com o pacotaço antigreve de 13 de - estas, sim, políticas, mas com sentido firme adesão e mobilização dos profes-
novembro, vozes as mais diferentes se eleitoreiro - naufragaram. sores das 52 Universidade. Essa firmeza,
levantaram para afirmar que as ações Mas qualquer balanço seria incom- sem dúvida, fez uma enorme diferença
do Executivo afrontavam o Estado de pleto se nos faltasse o esforço de apon- na condução do Movimento, superação
Direito. Essa greve deve ser avaliada, tar para adiante os desdobramentos da de momentos delicados e na definição
portanto, pela vitória sobre o governo greve. A volta às aulas, em cada institui- de um método de trabalho, respaldan-
nessas frentes, pelos seus componen- ção, deve ser marcada pela manuten- do os companheiros que participaram
tes de vitória na defesa do Serviço Pú- ção da unidade com os estudantes e das Mesas de Negociação. A confiança
blico, na defesa dos direitos sindicais e os técnico-administrativos na defini- dos estudantes, consolidada na parceria
na defesa das garantias democráticas. ção das regras para uma reposição inte- ao Movimento, certamente foi um gran-
Em cada IFE e nacionalmente, a greve gral e de qualidade. Essa unidade será de motor propulsor nas horas mais difí-
representou ainda a certeza de que ainda mais importante nas lutas neces- ceis. O apoio dos técnico-administrati-
um Sindicato que se negue a aceitar sárias em cada instituição pela demo- vos, presentes na luta conjunta, notada-
passivamente a ordem e se disponha a cratização efetiva dos Conselhos Su- mente nas manifestações, contribuiu
manter a perspectiva classista e com- periores e da escolha de dirigentes. para a visibilidade que a greve adquiriu
bativa faz diferença. E um Sindicato as- Assim como na luta para barrar o em todo o seu processo. Por fim (mas
sim não é resultado de uma Direção avançado processo de privatização não por último), as múltiplas demons-
apenas. Ao contrário, só com uma dis- interna, com os cursos pagos e as fun- trações de apoio de pais de alunos e
posição deste tipo permeando a maior dações de apoio. Ou ainda, nas bata- dos cidadãos brasileiros fazem-nos ter a
parte da categoria é possível impulsio- lhas acadêmicas, como as que se dese- certeza de nada foi em vão.
nar uma Direção disposta à luta. O nham em torno de diretrizes curricula- Comemoremos, pois, a vitória nessa
grau de envolvimento dos docentes res, cursos seqüenciais, “avaliações” de etapa da luta, atentos para a necessi-
das IFE nessa greve demonstra a re- condições de oferta, “provão” e tantos dade de muitos outros embates e da
presentatividade e legitimidade dos outros instrumentos nefastos de ames- ação cotidiana para trazer para o dia-a-
Comandos (CLG e CNG), das Assem- quinhamento do trabalho universitário. dia do trabalho universitário a defesa
bléias Gerais e das Direções do Do mesmo modo, na luta em torno de conseqüente e (neste caso, sim) in-
ANDES-SN e das Seções Sindicais. Mais uma política de Ciência e Tecnologia transigente do projeto de Universidade
ainda: demonstra que a maioria dos adequada às necessidades de produ- Pública, Gratuita, de Qualidade e Soci-
professores, tendo a certeza de que as ção do conhecimento para superação almente Referenciada.
saídas individuais, segmentadas ou das desigualdades, com garantias de Permaneçamos, portanto, mobili-
departamentalizadas, não resolvem os verbas e qualificação dos quadros, a se zados, para não apagar o futuro. A
graves problemas enfrentados pela realizar de forma a garantir o padrão luta continua e é para vencer!
Universidade e a sociedade brasileiras, unitário de qualidade e repudiando as
somam-se à luta coletiva. formas fragmentadoras dos modelos “- Brasília, 07 de dezembro de 2001.
Houve também uma outra frente de núcleo de excelência” ou “Instituto do COMANDO NACIONAL DE GREVE DO
luta que foi preciso enfrentar. Aquela Milênio”. Nas pautas, ainda temos mui- ANDES-SN
aberta pelas mentiras de Paulo Rena- to a conquistar. Nós, professores, preci- * IFES: Instituições Federais de Ensino
to, que afirmou inicialmente estarem samos avançar mais na incorporação Superior; CNG: Comando Nacional de
as universidades vivendo uma época das gratificações e nos pontos que fi- Greve.

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Entrevista:
Miriam Limoeiro Cardoso
Entrevista Miriam Limoeiro Cardoso

Fotos: Daniel Garcia


Miriam Limoeiro Cardoso
Por Antônio Ponciano Bezerra Universidade e Sociedade - O na sua organização sindical.
ANDES-SN apresenta a singularidade Em primeiro lugar, me refiro à de-
de ter se constituído enquanto movi- mocracia interna do movimento e da
Professora de Sociologia, da
mento social e ter se transformado em estruturação das AD-SS e do ANDES-
Universidade Federal Fluminense
sindicato nacional. Quais as caracte- SN, em que a tomada de decisões se
e da Universidade Federal do Rio rísticas que V. apreende como mais faz ou diretamente ou por meio de re-
de Janeiro, Miriam Limoeiro relevantes ou mais significativas nesta presentação ampla da base, em espa-
Cardoso, que concede à revista trajetória do ANDES-SN ? ço público e aberto, através de proce-
Universidade e Sociedade esta M.L.C. - Atribuo grande importância dimentos transparentes e do debate
entrevista, tem uma longa histó- ao movimento docente e à sua estru- coletivo, face a face, de posições toma-
turação no ANDES-SN, tanto no cená- das pela base.
ria de militância no Movimento
rio dos movimentos sociais, quanto do Na história do movimento docente,
Docente Nacional, com destaque
sindicalismo no Brasil. No meu enten- ao que eu saiba apenas com umas
nas funções de vice-presidente e der, esta importância decorre, princi- poucas exceções, as direções têm ca-
presidente da ADUFF-S.Sind e palmente, da forma autônoma e de- ráter executivo e são constituídas, tan-
vice-presidente Regional Rio de mocrática que o movimento assumiu to ao nível local quanto nacional, por
Janeiro - ANDES-SN - gestão 86/88. historicamente e que vem mantendo eleição direta dos professores de cada

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 43


Entrevista Miriam Limoeiro Cardoso

Instituição de Ensino Superior. As prin- ou relações sociais de outra natureza, e à burocratização do movimento e da
cipais instâncias deliberativas são as outros modos de organizá-las. sua organização sindical. Daí porque é
Assembléias Gerais, em que os profes- Por isso me parece tão importante preciso cuidado com práticas burocra-
sores se reúnem face a face para dis- preservar a democracia interna e as tizadas e burocratizantes que se torna-
cutir e decidir diretamente, e a instân- formas de organização e de delibera- ram comuns ao sindicalismo no Brasil.
cia máxima se dá nos Congressos, em ção radicalmente democráticas que o Acredito que a transformação das
que o corpo deliberativo é formado movimento docente criou para si e que sociedades atuais não é possível sem
por delegados eleitos pelas Assembléi- tem sabido consolidar. E também por identificar e se opor às relações de ex-
as Gerais de cada Associação de Do- isso me parece tão importante resistir propriação, de exclusão e de domina-
centes - Seção Sindical, segundo crité- ção que são características das rela-
rio de proporcionalidade. É muito bo- ções capitalistas que as regem. As anti-
nito o funcionamento na prática de to- gas formas de organização deste tipo
do esse processo. de enfrentamento, especialmente os
Numa sociedade em que a mercan- partidos e os sindicatos, têm demons-
tilização se tornou generalizada e em trado enorme dificuldade em construir
que a dominação, através da ideologia e manter internamente relações não-
e do controle, se tornou também ge- mercantis e formas não-burocráticas
neralizados, a existência de espaços de gestão. A burocratização implica
sociais formados por relações não- sempre formas de apropriação do po-
mercantis é importantíssima. Em espa- der por grupos, que passam, por esse
ços como este, o exercício da demo- meio, a dominar os demais no interior
cracia, este sim, se generaliza no seu da organização.
interior e neles constitui o modo usual Não se constrói democracia sem de-
de conviver, de decidir e de agir. A pró- mocracia. Não se constrói uma socie-
pria possibilidade de transformação dade que não seja dominada pela ló-
destas sociedades, que são cada vez gica de mercado por meio de relações
mais plenamente submetidas à lógica que operam segundo a lógica de mer-
Não se constrói uma
do capital, depende hoje em dia, eu cado.
acredito, da criação e do funcionamen- sociedade que não seja Na minha experiência mais direta no
to efetivo de espaços que não se dei- dominada pela lógica de movimento docente, principalmente
xem organizar por esta lógica. Penso quando fiz parte da direção local do
mercado por meio de
que o movimento docente organizado movimento, na ADUFF, e mais ainda
democrática e autonomamente é um
relações que operam quando participei da direção nacional
bom exemplo de um espaço desse ti- segundo a lógica do ANDES, em momento anterior à sua
po. São espaços em que é possível de mercado. constituição como Sindicato Nacional,
produzir por meio das práticas objeti- pude verificar como uma organização e
vas e costumeiras uma crítica efetiva um funcionamento democrático de um
da lógica do mercado e onde assim se movimento com base nacional pode
pode experimentar praticamente ou- consistir num espaço importante de
tras formas de convivência e de toma- relações sociais de um novo tipo.
da de decisões. Agora, para isso há uma condição
Esses espaços e as experiências que que o movimento social ou o sindica-
eles propiciam permitem que, em vez to, qualquer que ele seja, tem que
de construir utopias genéricas e ideais atender para garantir sua liberdade de
contra o capitalismo concebido generi- formulação, de organização e de ação:
camente, se possa construir práticas de é a sua autonomia diante de toda e
discussão e de luta e alternativas con- qualquer forma de poder estabelecido.
cretas (que são parciais, é verdade, mas O movimento social ou o sindicato,
são efetivas) de outras relações sociais, para ser capaz de definir direitos e de

44 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


Entrevista Miriam Limoeiro Cardoso

organizar as lutas para conquistá-los e o capital e o trabalho, mas assumindo vem o reconhecimento de algo como
assim transformar uma determinada ascendência sobre a organização sin- sendo um direito. E, uma vez reconhe-
ordem social, tem que ser autônomo dical. Deste modo, tende a conter e a cido, um direito só se mantém com a
frente aos governos, aos partidos, às orientar as reivindicações do traba- continuidade dos embates daqueles
igrejas, às empresas. lho por meio do controle da sua or- que consigam se fazer ouvir e fazer
Se não garantir a própria autonomia, ganização. respeitar suas propostas. O que de-
a qual começa por sua autonomia Hoje é possível ter uma idéia mais pende da correlação de forças em con-
financeira, o movimento social tende a clara de quanto o sindicalismo pelego fronto no momento e da capacidade e
tornar-se um recurso a mais de que os significou de contenção das transfor- da disposição de luta dos que querem
detentores do poder a que esse movi- mações da nossa organização social fazer valer seus direitos.
mento assim se submete, passam a que poderiam ser mais favoráveis aos Quando se trata de direito ao traba-
contar para dominar o segmento ou o trabalhadores e ao mundo do traba- lho e de lutas por salário e por condi-
setor que esse movimento articula. lho. Uma sociedade democrática se ções de trabalho temos muitos pares
Como conseqüência, em lugar de re- constrói com a participação dos dife- no movimento sindical, pares que en-
presentar este segmento, o movimen- rentes setores que a compõem, cada tendem estas lutas e podem apoiá-las.
to, embora travestido, se torna um re- um deles com as organizações que Quando se trata da defesa da liberda-
presentante daquele poder. consiga criar e manter atuando. Aque- de de pensamento, de expressão e de
No caso do movimento docente, se les que não consigam organizar-se au- organização, também temos muitos
ele não se preservar como uma repre- tonomamente, estarão com certeza pares nos movimentos sociais organi-
sentação autônoma dos professores, submetidos às forças de que depen- zados e na chamada sociedade civil.
torna-se um instrumento ou de um de- dam e terão suas necessidades e inte- Eu gostaria, porém, de avançar algu-
terminado governo, ou de uma determi- resses específicos triados segundo as mas idéias sobre o direito à educação
nada Reitoria, ou de um determinado necessidades, os interesses e as con-
partido político. A mesma coisa pode veniências destas forças.
ocorrer com o movimento sindical. US - Nos últimos sete anos de gover-
Conhecemos muito bem no Brasil o no da coligação que ocupa o poder no
quanto foi e ainda é nocivo para a or- país, vemos um esforço muito forte no
ganização dos trabalhadores o con- sentido da precarização das relações
trole a que o Estado brasileiro subme- de trabalho. Direitos e garantias que
teu historicamente o movimento sin- se consideravam como assegurados
dical. Conhecemos igualmente bem a ou não existem mais, ou estão seria-
dificuldade que os setores mais críti- mente ameaçados, ...
cos, mais independentes e mais com- M.L.C. - É verdade. A radicalidade
bativos tiveram e ainda têm que en- com que a política neoliberal trata o
frentar para organizar um sindicalis- mundo do trabalho é tal que mesmo
mo autônomo. O sindicato atrelado os mais ingênuos estão aprendendo
ao Estado significa inapelavelmente na prática que não há direitos e garan-
incremento do poder deste Estado tias que sejam reconhecidos e respei-
sobre os trabalhadores e o mundo do tados de fato só porque sejam ideolo-
trabalho. O sindicato controlado pelo gicamente definidos como justos ou Uma sociedade democrática
Estado transforma lideranças sindicais devidos. Direitos e garantias não se de- se constrói com a
em pelegos. O termo é forte, mas é finem, não se tornam efetivos e uma
participação dos diferentes
bastante expressivo, porque estas li- vez conquistados não se mantêm por
deranças identificadas como pelegas razões meramente abstratas. setores que a compõem,
contribuem de fato para amortecer o A conversão em realidade de direi- cada um deles com as
confronto do trabalho com o capital e tos reconhecidos só se faz em função
organizações que consiga
com o poder político. O Estado cum- de enfrentamentos que, em geral, são
pre aí uma função, importante para o difíceis e complicados. São sempre lu-
criar e manter atuando.
capital, de intermediar a relação entre tas concretas e específicas que promo-

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 45


Entrevista Miriam Limoeiro Cardoso

e à cultura. Na sua defesa, também te- Quanto ao direito à educação, o movi- zão, estimulando a capacidade de criar
mos pares, especialmente entre os mento sindical em geral e os partidos e a crítica. Uma educação deste tipo
chamados “educadores”, mas entendo que pretendem representar os traba- requer um contexto e uma norma que
que cabe ao movimento docente um lhadores reclamam fundamentalmen- não são a mera disciplina ou a submis-
papel importante neste registro. te esse direito em termos de mais são. Requer sólida base de conheci-
Historicamente, o movimento do- oportunidades educacionais: mais es- mentos e de cultura, mas, por outro la-
cente se constituiu visando um duplo colas e democratização do acesso ao do, requer espírito aberto, curioso e
objetivo: a defesa das condições de sistema escolar. Alguns falam em edu- crítico. Coloco uma pergunta: quais
trabalho e dos salários dos professores cação “de qualidade”, mas em geral forças sociais demandam entre nós es-
das Instituições de Ensino Superior e a permanece vago o que se considera te tipo de qualidade para a educação?
defesa da educação pública, gratuita, como essa qualidade educacional. E, mais ou menos como um contra-
laica e de alta qualidade para todos. Penso, no entanto, que é essencial ter ponto, recordo uma proposta, que de-
Esta dupla defesa se torna muito mais presente e tratar como crucial a ques- via ser altamente polêmica, mas que,
difícil, mas ao mesmo tempo muito tão da qualidade da educação. pelo contrário, se tornou quase con-
mais importante, numa época de mer- Entendo que educação de qualidade sensual em certos círculos que se
cantilização, a todo custo, e visando é educação que faz pensar, que abre apresentam como avançados e críti-
abranger todos os campos da socieda- as mentes para novos horizontes, que cos: a proposta que associa a qualida-
de, que é como se caracteriza a época desperta a sensibilidade e aguça a ra- de da educação no 1º grau com um
atual, não só no Brasil, mas também certo tipo de escola de tempo integral,
no mundo. Numa situação como esta, escola esta que adota como seu obje-
a educação formal se torna uma mer- tivo, supostamente pedagógico, man-
cadoria que, por poder ser muito lucra- ter as crianças pobres fora da rua, fora
tiva, se torna muito atraente, “um do convívio da sua vizinhança e a ma-
grande negócio” que a lógica do mer- ior parte do tempo diurno longe da
cado não deixa que se desperdice com sua família. Isso posto, pretende disci-
facilidade. Os governos comprometi- plinar essas crianças e mantê-las sob
dos com essa lógica tendem não so- controle, por meio de um programa
mente a apoiar vigorosamente a “ini- definido ao nível do Estado. Uma esco-
ciativa privada”, no setor da educação, la assim se assume como clara e forte-
melhor dizendo, a expansão da mer- mente reprodutora. Para este tipo de
cantilização do ensino. Tendem tam- escola, o significado da qualidade da
bém a reorganizar a esfera pública da educação é outro, concebido como
educação de acordo com os padrões uma política de disciplina e de contro-
da lógica do capital. Conhecemos bem le social.
as inúmeras incursões governamentais Acho curioso que as Quando eu comentava a questão
que vão nesta direção no Brasil, da discussões sobre educação, dos direitos, mencionei em conjunto o
GED à avaliação, etc. Em conjunturas direito à educação e o direito à cultu-
assim, a defesa da educação pública,
mesmo as que focalizam a ra. Acho curioso que as discussões so-
gratuita, laica e de alta qualidade para qualidade da educação, se bre educação, mesmo as que focali-
todos alcança uma nova dimensão e detenham tão pouco sobre zam a qualidade da educação, se dete-
significados ainda mais profundos. nham tão pouco sobre o direito à cul-
o direito à cultura.
tura. E me chama a atenção que nos-
US - Que questões especificamente sas lutas releguem esta questão a um
educacionais V. acha importante des- plano tão nitidamente secundário, co-
tacar quanto à educação pública, gra- mo se ela não tivesse um conteúdo
tuita, laica e de alta qualidade para político de primeira grandeza.
todos, que o ANDES-SN historicamen- A cultura em geral, as artes, a filoso-
te sempre defendeu nas suas lutas ? fia, constituem universos em que a
M.L.C. - A qualidade desta educação. produção humana mais arrisca e se

46 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


Entrevista Miriam Limoeiro Cardoso

abre para a criação e a experimenta- panhar ao mesmo tempo pelo aparen-


ção mais livre e inovadora. A poesia, a te paradoxo de um enorme fortaleci-
música, a literatura, o teatro, as artes mento do Estado voltado para a imple-
plásticas desvendam horizontes insus- mentação de políticas de generaliza-
peitados, descobrem novas possibili- ção da mercantilização, tudo isso
dades de sentir, de pensar e de fazer. decorre diretamente do caráter avassa-
Como, porém, são linguagens específi- lador assumido pela lógica do capital
cas, diferenciadas, com códigos pró- nesse momento e tem como conse-
prios e particulares, é preciso aprender qüência incontornável, sob esta lógica,
a “ler” essas linguagens, é necessário a generalização e o aprofundamento
iniciar-se na sua compreensão para da insegurança em todos os níveis e
poder acessá-las e usufruir delas. em todos os sentidos. É importante
No Brasil, os segmentos sociais privi- entender que este conjunto de fatos,
legiados podem até dar-se ao luxo tolo que como um conjunto é bem articu-
de dispensar a cultura, mantendo-se lado, não é produzido aleatoriamente
ignorantes dela, mas não lhes faltam ou espontaneamente. Pelo contrário, é
meios e oportunidades para conhecer fruto de uma política determinada, de-
a produção cultural e se beneficiar do
Atualmente está havendo liberada e plenamente consciente, po-
que esta produção pode oferecer. um forte deslocamento do lítica que é ditada, em última instância,
Quanto aos setores médios, cada vez processo político para a pelos interesses do grande capital fi-
mais empobrecidos, e quanto aos tra- nanceiro rentista em processo de ex-
direita e um aumento
balhadores, porém, o acesso à cultura pansão mundial de sua hegemonia.
depende da abertura do sistema esco- que já se pode notar No entanto, uma orientação política
lar público às atividades culturais e do da ativação de mecanismos geral só se torna real, só se realiza,
empenho dos governos (aqueles que de controle social. quando é concretizada através de me-
sejam sensíveis às causas populares e didas e providências específicas, que
à importância da cultura) em propiciar são elaboradas secundariamente por
este tipo de oportunidade às parcelas apenas dos dirigentes e das lideranças, este ou aquele governo, mas são pri-
subalternizadas da população. mas também de todo professor. mariamente assumidas e postas em
De acordo com a minha experiência execução por esses governos. No caso,
como professora e no movimento do- US - Seria bom que pudéssemos nos estamos lidando, portanto, com uma
cente, a grande maioria dos professo- deter um pouco em questões da con- orientação política geral, elaborada pa-
res nem mesmo se dá conta de que a juntura. Do ponto de vista político mais ra ter vigência em escala global, mas
escola pública de qualidade deveria geral, como V. está vendo o momento que depende fundamentalmente de
cumprir essa função, em todos os ní- atual ? ganhar forma enquanto políticas de Es-
veis de ensino. Nem se dá conta de M.L.C. - Pelo que eu entendo, atual- tado a serem adotadas por determina-
que a elevação cultural tem um signifi- mente está havendo um forte desloca- dos governos. Neste sentido e para es-
cado político da maior relevância, es- mento do processo político para a ta finalidade, o Estado precisa ser forte
pecialmente quando se tem a pers- direita e um aumento que já se pode para impor as políticas anti-sociais que
pectiva da transformação social. notar da ativação de mecanismos de toma como suas políticas. Nesse Esta-
Quando eu penso em qualidade da controle social. Na verdade, todo este do, o papel de mediador social não
educação, penso sempre num sistema período marcado pela hegemonia do tem qualquer sentido que não seja me-
escolar que não se satisfaça em ser me- capital financeiro rentista se expandin- ramente retórico e ele tende cada vez
ro reprodutor da ordem, mas que, no do mundialmente já vinha provocando mais a exercer de forma mais crua e
essencial, estimule em cada um a capa- uma direitização da política. O desem- mais clara uma função de classe.
cidade de pensar por si mesmo, critica- prego estrutural em larga escala, a pre- Para implementar estas políticas, os
mente e com o espírito aberto. No meu carização das relações de trabalho, a governos tendem a adotar múltiplas
entender, o acesso à cultura faz parte redução drástica das responsabilida- estratégias para deter, em suas mãos,
deste esforço e é responsabilidade não des sociais do Estado que se faz acom- o máximo de controle social. Com os

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 47


Entrevista Miriam Limoeiro Cardoso

empresários, arranjos e composições da pauta das questões postas social- tral da constituição de uma determina-
ajustam contrapartidas para lucrativi- mente e à definição da agenda, o que, da política para países que essa mes-
dades e vantagens diferenciais; com os é claro, só é possível se, onde e quan- ma estratégia identificou como atrasa-
políticos, acordos os mais variados pa- do a oposição se debilita ou se subme- dos, ou, já dentro da construção ideo-
ra acomodar, de algum modo e em al- te a tal ponto que se deixa levar a re- lógica então montada, como países
gum grau, sua cooptação; com os mo- boque, inclusive na discussão política, subdesenvolvidos. No fundo, esta es-
permitindo assim que se esvazie seu tratégia pretendia integrar esses países
conteúdo contestador e, conseqüente- no circuito do capitalismo dependen-
mente, sua própria razão de ser oposi- te, acenando a eles com a possibilida-
ção. Todo o quadro político sofre deste de de um “desenvolvimento” capitalis-
modo um deslocamento cada vez ta dependente como sendo “a” forma
mais nítido para a direita. para esses países superarem o seu su-
Podemos tomar como exemplo a posto atraso ou retardamento. São
questão do emprego/desemprego, muitos e bastante complicados os pro-
questão que sem dúvida é crucial nes- blemas envolvidos pela construção e
ta conjuntura, e destacar dois de seus pela efetivação dessa estratégia, como
encaminhamentos postos, que a meu o caráter capitalista dependente do
ver estão entre os principais: 1º) a su- que é aí proposto apenas como “de-
posta resolução do problema do em- senvolvimento”, ou como a definição
prego por meio do desenvolvimento, a em termos nacionais desse desenvol-
partir do que “o desenvolvimento” res- vimento, ou como a perspectiva de
surge como bandeira a ser levantada evolucionismo social aí implicada, etc.
agora pelo mundo do trabalho e seus Creio que não cabe discutir aqui essas
representantes; 2º) a educação apare- questões, por isso apenas as coloco
A massa de trabalhadores cendo como suposta solução geral pa- como indicações de um problema que
expulsos do circuito do ra a questão do emprego, vinculando- é, a meu ver, extremamente importan-
mercado de trabalho se educação com qualificação profis- te analisar, debater e aprofundar.
por esta expansão sional e apontando a re-qualificação Fora do campo ideológico, sabemos,
do trabalhador como necessária à re- apoiados em sólida fundamentação
produtiva não encontrará
inserção no mercado de trabalho do factual, que é inerente à expansão ca-
condições neste mercado trabalhador desempregado . pitalista gerar desigualdade e exclusão,
para ser re-incluída nele. O primeiro encaminhamento diz res- as quais apenas sob condições conjun-
peito ao capital. Se é que haveria pro- turais excepcionalmente favoráveis
vimentos sociais, e especialmente com priamente um desenvolvimento, este podem ser temporariamente ameniza-
os sindicatos, oposição firme, desmo- seria desenvolvimento do capital. Mas, das, mas não podem ser revertidas
ralização pública sistemática e recurso tentando precisar um pouco mais a sob este modo de produção. Também
a todas as formas possíveis para sua linguagem, o capital não “se desenvol- sabemos muito bem que o crescimen-
desestruturação e desmobilização, ve”, o capital se reproduz. As empresas to econômico atual se beneficia de
tanto mais quanto mais autônomo e investem visando à reprodução do ca- avanços tecnológicos e de políticas pú-
independente seja o movimento social pital. O trabalho, considerado sob esta blicas anti-sociais e, através daquelas
organizado ou o sindicato; com a cha- perspectiva como emprego, entra no inovações e destas políticas, é poupa-
mada população em geral, dominação cálculo empresarial como mão-de-obra, dor de mão-de-obra. Desta forma, não
ideológica massiva e maciça, o que im- especificamente como custo de produ- é gerador de mais emprego. Em gran-
plica investimento de recursos extraor- ção e assim é tratado pelo capital. de parte, a massa de trabalhadores
dinariamente grandes em propaganda A concepção de desenvolvimento, expulsos do circuito do mercado de
e marketing, presença intensiva na no sentido em que hoje empregamos trabalho por esta expansão produtiva
mídia e controle extensivo dos meios usualmente esse termo, decorre de não encontrará condições neste mer-
de comunicação. Por outro lado, esse uma estratégia do capital, numa dada cado para ser re-incluída nele. No en-
controle político remete ao comando conjuntura histórica, como parte cen- tanto, vemos partidos que se reconhe-

48 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


Entrevista Miriam Limoeiro Cardoso

cem como sendo “de esquerda”, sindi- posterga-se para o futuro, a médio pra- cação teórica para a intervenção práti-
catos operários e toda uma amorfa zo pelo menos, a suposta “solução”, ca na realidade. Uma vez atingido o
oposição propondo o desenvolvimen- que, afinal, desse modo não será al- plano das determinações, é necessário
to como constituindo a solução para o cançada, já que treinamento específico fazer “o caminho de volta”. Ou seja, as
trabalho e o emprego. e especializado não pode ser feito com determinações gerais só fazem sentido
Felizmente para os que se opõem proveito em sistema educativo geral a quando dão significado ao nível das
verdadeiramente a esta sociedade que médio prazo, que, quando cumprido, questões concretas que são resultados
está estabelecida e aos governos que já estará defasado. E a vantagem se das determinações, isto é, que são de-
adotam as políticas neoliberais, feliz- duplica, com o re-direcionamento da terminadas por aquelas determina-
mente há exceções, como por exem- educação, no sentido de atender à de- ções. Aí, sim, a realidade objetiva pode
plo no Brasil o Movimento dos traba- manda por qualificação e re-qualifica- aparecer a nós como concreta. Esta é
lhadores sem terra, o MST, que não ção profissional, aumentando assim a uma lição que não se encerra nas
propõe o desenvolvimento agrário, ou cisão e a defasagem entre uma educa- questões de método. Ela é muito im-
o desenvolvimento da agricultura, ou o ção formadora, para privilegiados, e portante também para a política.
desenvolvimento do campo, como so- uma educação informadora e profis- Quando somos capazes de estabelecer
lução para os trabalhadores rurais. sionalizante, voltada para a reprodu- as articulações entre os determinantes
Nem identifica esses trabalhadores co- ção da ordem, do mercado de traba- (que configuram, por exemplo, uma
mo sem emprego. Propõe, sim, refor- lho e das exclusões. dada orientação política geral definida
ma agrária e propriedade da terra, para por uma dada hegemonia, numa dada
que nela os que atualmente se encon- US - Que considerações V. faria so- conjuntura) e as políticas concretas
tram na condição de trabalhadores ru- bre os rumos que a discussão política que um ou outro governo formaliza e
rais sem terra possam se estabelecer tem tomado ultimamente no Brasil ? implementa (que no caso correspon-
com suas famílias e produzir. Na pers- M.L.C. - Está havendo, a meu ver, um dem ao que é determinado por aque-
pectiva de um movimento social orga- equívoco de encaminhamento da críti-
nizado como o MST, no Brasil, a aspira- ca feita pela oposição, e esse equívoco
ção e a luta não são por desenvolvi- tem conseqüências importantes.
mento e, sim, por uma transformação Parece que ficamos satisfeitos quando
social que redistribua a propriedade da encontramos, em nossas análises, as
terra. Quanto ao segundo encaminha- determinações mais gerais, que identi-
mento, ao apontar a qualificação pro- ficamos com as origens políticas das
fissional como resposta ao desempre- condições sociais concretas que nos
go estrutural produzido nesta era de são impostas. E como que estancamos
expansão capitalista mundializada, ele nestas determinações, que logo trans-
desloca novamente a questão, desta formamos em entidades contra as
vez fazendo perversamente incidir so- quais erguemos nossas bandeiras:
bre o próprio trabalhador a culpa pelo contra o Banco Mundial, contra o FMI,
seu desemprego, já que este desem- contra este ou aquele governante.
prego decorreria de falta ou de insufi- Esquecemos com isso um ensina-
ciência de qualificação do trabalhador. mento que me parece ser útil recupe-
Identificando então como problema rar: não basta alcançar as determina-
social desemprego tão expressivo ções mais gerais e os seus determi- As lutas que mais fazem
quantitativamente e supostamente de- nantes mais simples. Chegando so-
vido a necessidades de qualificação mente até aí, ficamos prisioneiros da
sentido para as pessoas em
profissional, desloca-se para a educa- abstração, nos perdemos no campo geral são aquelas que se
ção pública a tarefa de responder a es- das abstrações, o que é complicado travam em torno de
ta necessidade. É novamente muito mesmo quando se trata apenas da
questões concretas,
vantajoso para o capital um tal deslo- procura pela explicação no campo do
camento. Desobrigam-se as empresas teórico, mas que é ainda mais sério determinadas e particulares.
do treinamento da sua mão-de-obra, quando se trata da procura pela expli-

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 49


Entrevista Miriam Limoeiro Cardoso

las determinações), nossa análise ga- “mal” daquelas determinações, o que dicato, cada partido político incluir, na
nha consistência concreta e pode, a nos leva a fazer oposição a esta pessoa sua pauta de demandas e de lutas,
partir daí, fazer sentido, mesmo para e não às políticas e à política que ela, estas questões concretas e sobre elas
quem não se aprofunde em busca de como governante, encarna no momen- articular suas lutas, se poderia começar
determinações não aparentes. to. O equívoco é enorme e cheio de a inverter a situação em que são os go-
A importância das determinações ge- conseqüências muito importantes. vernos e os setores dominantes que
rais é que são elas que permitem expli- Segundo o meu entendimento, este formatam a pauta e a agenda social.
car as realidades. Mas essas determina- é um equívoco pelo qual essa oposição Como última observação, gostaria de
ções em geral só existem por meio da- assim conduzida pode vir a pagar o mais uma vez afirmar que já se faz ur-
quilo que elas determinam. São as preço muito alto da mais completa ine- gente que a resposta do mundo do tra-
questões concretas as que as pessoas ficácia política, fortalecendo mais ain- balho à política de mundialização do
podem perceber e que as afetam dire- da, em lugar de enfraquecer, as políti- capital seja encaminhada com forte
tamente. Conseqüentemente, as lutas cas e a política contra as quais, em ênfase na articulação também mundia-
que mais fazem sentido para as pes- princípio, se teria colocado. lizada do trabalho.
soas em geral são aquelas que se tra- E não é por falta de questões concre-
vam em torno de questões concretas, tas de grande impacto que esse equívo- São Paulo, fevereiro de 2002
determinadas e particulares. Senão se co ganha espaço. Na conjuntura brasilei-
* MIRIAM LIMOEIRO CARDOSO, socióloga,
corre o risco de que essas lutas fiquem ra atual, as políticas de submissão indis-
Doutora em Sociologia pela USP, em 1972;
abstratas ou sejam percebidas como criminada e generalizada à lógica de
- Afastada compulsoriamente da UFF e da
abstratas, e deste modo se prestem mercado produziram, entre tantas ou-
UFRJ com base no Ato Institucional no 5, em
mais facilmente a serem contornadas e tras: 1) o colapso do sistema de energia
26 de abril de 1969;
rebatidas pelo poder. elétrica do país, submetendo os setores
- Professora Visitante da División de Estudios
Além do mais, permanecendo no médios e, principalmente, a população Superiores, Facultad de Ciencias Políticas y
plano das determinações mais gerais, pobre a grandes dificuldades e priva- Sociales, Universidad Nacional Autónoma de
nos vemos compelidos a dar a elas al- ções e, além de tudo, propiciando subs- México, México, 1973;
guma concreção que as torne identifi- tancial aumento das tarifas de energia; - Professora da FGV-RJ e da PUC-RJ, entre
cáveis. Daí tendemos a transpor a aná- 2) a epidemia de dengue, que em algu- 1966 e 1980;
lise do capital financeiro, do capital mas regiões já está fora de controle, - Tendo retornado à atividade docente na
rentista, da hegemonia, da burguesia expondo neste caso toda a população Universidade pública, é hoje Professora apo-
internacional ou mundializada para en- (o que não deixa de ser escandaloso) sentada da UFF e da UFRJ;
tidades como o Banco Mundial, o FMI, ao risco de contrair uma doença já em - Após esta aposentadoria, foi Pesquisadora
etc. Mas entidades desse tipo são na estágio de causar morte; 3) a expropria- Visitante no Instituto de Estudos Avançados
verdade representantes intermediários ção por parte do governo de parcela da USP, Professora Visitante no Departa-

de determinantes que não se mostram considerável e crescente, especialmente mento de Sociologia da UFSCar e Pesquisa-
dora Visitante no Laboratório de Políticas
diretamente nelas. E muitas vezes não dos assalariados, com a política de não-
Públicas da UERJ.
conseguimos evidenciar nessas trans- atualização e não-correção da tabela do
- Nos últimos anos está pesquisando a obra
posições o que, na verdade e no fundo, Imposto de Renda etc. etc.
de Florestan Fernandes.
essas entidades expressam, ou seja, Não me parece que estas questões
- Seus principais textos publicados são:
não conseguimos estabelecer os nexos devam ser tratadas como apenas pon-
* Ideologia do desenvolvimento - Brasil: JK -
entre os determinantes (o capital finan- tuais ou como meros exemplos. Pelo
JQ. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977 (2a edi-
ceiro ...) e as intermediações de suas contrário, penso que é sobre estas e
ção 1978);
determinações (o FMI, ...). outras questões concretas e que afe- * La ideología dominante - Brasil / América
Em busca de uma concretização mais tam diretamente as pessoas que é pre- Latina. México: Siglo XXI, 1975;
palpável, acabamos tendendo a perso- ciso calcar o debate político, responsa- * La construcción de conocimientos. Cuestio-
nificar aquelas determinações na figura bilizando, em cada caso, os setores go- nes de teoría y método. México: Ed. Era, 1977.
de um ou de outro governante e passa- vernamentais responsáveis pelas políti- - Participa do Movimento Docente, tendo
mos então a correr o risco mais sério de cas específicas de que elas decorrem sido Vice-Presidente e Presidente da ADUFF-
identificar, na pessoa deste governante pelos prejuízos acarretados. Se cada SS e Vice-Presidente Regional Rio de Janeiro
particular, a própria encarnação do movimento social organizado, cada sin- do ANDES-SN (gestão 1986-1988)

50 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


Universidade, Estado e Educação
Universidade, Estado e Educação

Ana Elizabete Mota*

A descoberta (im)prevista:
transformar servidores públicos
em investidores financeiros.
Os anos iniciais da década de 90 dos por aposentados e pensionistas Nomeada por Delgado (2001:262)
registram a resistência dos trabalha- no governo Collor. A esse seguiram-se como uma contra-reforma, considera-
dores brasileiros pela manutenção outras iniciativas quando das investi- da por Viana (1998) como um proces-
das regras do sistema de previdência das de reforma da Previdência em so de americanização da seguridade,
social público, integrante da segurida- 1993 e durante o período decorrido também por nós entendida como um
de social, como conquistado e inscrito entre 1995 e 19981, ocasião em que movimento de passivização das con-
na constituição de 1988. Um dos seus mudanças substantivas foram feitas, quistas históricas dos trabalhadores,
principais marcos foi o denominado subtraindo alguns direitos conquista- fato é que a trajetória política da refor-
movimento dos 147%, protagoniza- dos na Constituição de 19882. ma da previdência social brasileira

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 53


Universidade, Estado e Educação

mente os fundos de pensão - e da


A despeito do avanço do debate para desmistificar questão previdenciária dos servidores
públicos ativos e inativos, “bola da vez”
os diversos argumentos e armadilhas veiculados
da reforma em curso.
pela mídia sobre a crise da seguridade social, Este desconhecimento, como abor-
dado por Vianna (1999 e 2001), é par-
muitos dos aspectos que envolvem as novas trincheiras
te de uma estratégia utilizada pela bu-
das reformas permanecem desconhecidos rocracia estatal e demais setores vincu-
lados ao grande capital para despoliti-
condensa fatores que envolvem desde em medidas assistenciais focais, na zar a discussão da seguridade e, espe-
as mudanças econômicas globais, a cobertura pública mínima e na com- cialmente, a da previdência social. Ou,
reforma neoliberal do Estado, as trans- plementação de benefícios e serviços numa linguagem gramsciana, para
formações no mundo do trabalho até privados, seja através de instituições obter o consenso passivo dos trabalha-
os ajustes impostos nos acordos feitos do mercado, seja através da formação dores que, na interpretação de Chico
com os organismos financeiros inter- de fundos previdenciários privados. de Oliveira (1998:220), “supõe a inte-
nacionais. À semelhança do que vem aconte- gração das reivindicações dos traba-
cendo com outras políticas, como dis- lhadores ao campo semântico dos do-
corre Amaral (2001:29-45) sobre a de minantes”.
qualificação profissional, a estratégia Segundo a construção de Vianna
utilizada consiste em transmitir a idéia (1999:91-111), trata-se do uso de al-
de que os trabalhadores partilham das gumas armas secretas que vêm sendo
propostas de mudança, aceitando o utilizadas para abater a seguridade so-
fato de que os fins por eles defendidos cial às quais tomamos a liberdade de
podem se transformar em meios que acrescentar outros itens, além dos
legitimem novas práticas e dêem sus- mencionados por ela. Quais sejam:
tentação material e subjetiva aos pro- 1. A utilização de uma linguagem
pósitos das reformas. técnica, fundamentada em argumen-
O cenário deste processo foi e é Transcorrida mais de uma década tos financeiros e atuarias que invertem
marcado por fortes embates entre tra- sob a batuta deste processo, são ine- os termos do debate, dotando-o de
balhadores e empresários, organiza- gáveis a positividade e a capacidade um significado que somente os “espe-
ções financeiras e burocracia estatal, que tiveram os trabalhadores organi- cialistas” dominam e retirando da dis-
revelando a dimensão dos antagonis- zados para “fazerem política”, resistin- cussão temáticas politizadoras em fa-
mos que perpassaram os projetos em do ao processo de passivização das vor da tecnificação do debate. Con-
disputa. Desde o final da década de suas conquistas e constituindo-se - ao ceitos como eficiência, ativos, reserva
80, estão em jogo duas questões cen- lado de inúmeros parlamentares e técnica, capitalização, investimentos e
trais e organicamente vinculadas: uma, organizações do campo das esquerdas poupança interna substituem os con-
de ordem mais econômica que é ade- - em protagonistas das derrotas de ceitos de políticas distributivas, meca-
quar a seguridade social às reformas muitas das propostas que circulavam e nismos de solidariedade social, prote-
macroeconômicas, implicando-a os circulam pelo Congresso Nacional, ção social pública, cobertura social de
mecanismos de financiamento da eco- desde de 1992. riscos, dentre outros. Há um desloca-
nomia e transformando-a na vilã do Todavia, a despeito do avanço do mento político estratégico do debate
déficit público e da plena integração à debate para desmistificar os diversos da seguridade social, reduzindo-o à
economia de mercado; a outra, de na- argumentos e armadilhas veiculados questão da previdência e dela sub-
tureza político-estratégica, consiste em pela mídia sobre a crise da segurida- traindo a saúde e a assistência social.
obter o consentimento passivo3 dos de social, muitos dos aspectos que en- Como bem demonstra Vianna (1999:-
trabalhadores aos mecanismos que volvem as novas trincheiras das refor- 97), “a discussão da previdência no
dão nova funcionalidade ao sistema mas permanecem desconhecidos, co- Brasil tornou-se assunto de peritos em
de cobertura dos riscos sociais (campo mo é o caso da previdência comple- atuaria, especialistas em finanças
da seguridade social), fragmentando-o mentar fechada e aberta - particular- públicas, juristas e administradores -

54 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


Universidade, Estado e Educação

os detentores de uma expertise que relação de trabalho e descaracterizar o zação e a assistencialização da prote-
não está disponível para o comum dos fato de que - ativo ou inativo - ele não ção social, instituindo, ao mesmo tem-
mortais”; perde a sua condição de servidor pú- po, as figuras do cidadão-consumidor
2. O prognóstico da inviabilidade fi- blico. O objetivo dessa ofensiva é con- e do cidadão-pobre, objeto da assis-
nanceira e da impossibilidade de ma- quistar a opinião pública para apoiar tência social focalista.
nutenção da previdência social públi- mudanças no regime de trabalho dos É importante lembrar que embora a
ca, nomeada jornalisticamente de funcionários públicos, modificar o di- arquitetura da seguridade brasileira
“crise da previdência social” como reito constitucional da paridade de re- pós-1988, onde se inclui a previdência
principal argumento mobilizador da ajustes entre ativos e aposentados e social, tenha a orientação e o conteú-
adesão dos trabalhadores à reforma instituir a previdência complementar do das políticas de proteção social que
da previdência social no Brasil. Desta para os servidores. Note-se a comple- conformam o estado de bem-estar nos
discussão, são suprimidas informações xidade da questão somente observan- países desenvolvidos, as características
sobre a fragmentação das fontes de do que a liberalidade para criar a pre- excludentes do mercado de trabalho,
financiamento da seguridade social, o vidência complementar dos servidores o grau de pauperização da população,
uso indevido dos recursos da previ- remonta à Constituição de 1988, toda- o nível de concentração da renda e as
dência no saneamento das contas pú- via, como nas regras atuais ela pouco fragilidades do processo de publiciza-
blicas, a sonegação das contribuições interferiria na redução dos gastos do ção da ação do Estado nos facultam
à previdência, dentre outros. A rigor, Estado, o assunto só tem centralidade afirmar que, no Brasil, a adoção da
essa reforma, ao lado das medidas de porque vincula-se com a mudança no concepção de seguridade social não se
ajuste macroeconômico, ocupa lugar regime de trabalho. traduziu na universalização da prote-
de destaque na agenda das prescri- Com o objetivo de contribuir nessa ção social. Na realidade brasileira, as
ções de cunho neoliberal sob a alega- discussão e de colaborar na constru- políticas sociais voltadas para a prote-
ção da necessidade de adequação do ção de alguns argumentos políticos ção social do trabalhador não transita-
modelo de seguridade pós-1988 à em defesa da previdência social públi- ram efetivamente para o patamar do
atual conjuntura econômica do país; ca dos servidores, tratarei a seguir so- contrato social, materializado nos prin-
3. O tratamento dispensado à ques- bre as suas principais contradições e cípios e meios que regeram o Welfare
tão previdenciária do funcionalismo implicações, nelas incluídas a institui- State como um direito de cidadania .
público, qualificando-os de privilegia- ção da previdência complementar, Parece paradoxal, mas o fato é que
dos e sanguessugas das contribuições assunto que - não por acaso - esteve durante a década de 70 e 80, quando
dos trabalhadores da iniciativa privada, presente nas negociações da pauta de começam a surgir, nos países desen-
omitindo a responsabilidade do Esta- reivindicações da greve nacional unifi- volvidos, as primeiras críticas ao Wel-
do para com os seus funcionários, sub- cada dos Servidores Públicos Federais fare State, assiste-se, no Brasil, primei-
traindo direitos constitucionais e impu- e objeto do Projeto de Lei Comple- ramente sob os auspícios do regime
tando ao valor das aposentadorias e mentar 09/99, em tramitação no Con- militar e, em seguida, num ambiente
pensões dos servidores a causa do gresso Nacional. democrático, durante a elaboração da
desequilíbrio das contas públicas. Des- Antes porém é necessário
ta abordagem são suprimidas informa- esclarecer alguns aspectos his-
ções jurídicas e históricas que particu- tóricos para localizar tal movi-
larizam a condição do servidor público mento no conjunto do que Ve-
e qualificam o seu estatuto de funcio- ra Telles nomeia de “operação
nário do Estado, remunerados com re- desmanche do espaço públi-
cursos da União, seja durante sua ativi- co” (2001:175) e cujo conteú-
dade, seja na sua inatividade. Além do do já apontávamos nos mea-
mais, como a mudança na previdência dos dos anos 90 como sendo
dos servidores está vinculada ao regi- a tendência que se avizinhava
me de trabalho, no caso, o Regime Ju- para a seguridade social brasi-
rídico Único, transforma-se a finalidade leira (Mota:1995), qual fosse a
da questão - aposentadorias do servi- clivagem da política social em
dor público - num meio para mudar a torno de dois pólos: a privati-

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 55


Universidade, Estado e Educação

Constituição de 1988, a expansão e


ampliação dos sistemas de proteção A expansão das políticas sociais no imediato pós-64
social. Em tese, esta disjunção entre as
foi responsável pela criação de meios facilitadores
tendências internacionais e a particula-
ridade local apontava para a consoli- do processo de privatização de algumas áreas
dação, ainda que “tardia”, de um siste-
da política social, permitindo ora a mercantilização,
ma de seguridade social, o que de fato
não ocorreu. Ao contrário, os anos 90 ora a corporativização de parte dos serviços sociais.
nos surpreenderam com uma agenda
de prescrições neoliberais e reformas tentativa de tornar universais os seus dores excluídos do sistema de prote-
voltadas para o desmonte dos recém- projetos de classe, ao tempo em que ção social (autônomos, trabalhadores
instituídos direitos sociais. socializam com os trabalhadores as informais, desempregados, etc), o
Esta reversão, espantosa para uma suas necessidades. No nosso enten- Estado também promoveu a abertura
sociedade na qual a seguridade social der, a realização da sua reforma social do mercado privado de serviços
ainda engatinhava rumo à universali- e moral, imprescindível para a afirma- sociais. Enquanto ampliava alguns
zação, deve ser creditada a três ordens ção da sua hegemonia. benefícios e serviços, incluindo no sis-
de fatores: Sobre o primeiro dos fatores aponta- tema segmentos não assalariados ou
a) os que evidenciam as condições dos, nossa observação (Mota,1995:- em situações sociais de vulnerabilida-
particulares sob as quais a burguesia 139ss) é a de que a expansão da de, ao mesmo tempo, criava as condi-
brasileira incorporou à sua ordem as seguridade no pós-64 se fez mediante ções para o afastamento dos setores
necessidades sociais dos trabalhado- a fragmentação dos meios de consu- médios assalariados do sistema públi-
res no pós-64; mo coletivo, franqueando ao capital co em função da deterioração/deses-
b) os de natureza macroestrutural, privado a prestação de serviços consi- truturação dos serviços, acenando com
determinados pela inserção subalterna derados rentáveis como foi o caso da o canto da sereia da excelência dos
do Brasil na economia internacional, saúde e da previdência via mercado de serviços privados, considerados com-
envolvendo a reestruturação produti- seguros, medicina de grupo e fundos plementares.
va, os ajustes econômicos, a reforma de pensão. A estes junta-se o instituto Essa dinâmica criou uma clivagem
do Estado e as injunções dos organis- da renúncia fiscal que, sob o argumen- na proteção coletiva dos trabalhado-
mos financeiros internacionais. to da colaboração empresarial, estimu- res, estabelecendo a partir daí os me-
c) os de ordem eminentemente po- lou as empresas a ofertar serviços ios para implementar um modelo de
lítica, cujo destaque é o modo como a sociais e benefícios aos seus emprega- proteção social, composto que é por
burguesia e a burocracia estatal ten- dos. sistemas corporativos, pelos seguros
tam garantir a direção dos processos Assim, a expansão das políticas so- sociais privados, pelas políticas sociais
políticos e a produção de consenti- ciais no imediato pós-64 foi responsá- básicas e pelas chamadas políticas fo-
mentos de classe para mudanças, na vel pela criação de meios facilitadores calistas de combate à pobreza, am-
do processo de privatização biente do neo-comunitarismo, da fi-
de algumas áreas da política lantropia empresarial e dos programas
social, permitindo ora a mer- sociais emergenciais e transitórios.
cantilização, ora a corporativi- A segunda ordem de fatores aponta
zação de parte dos serviços para as necessidades advindas do pro-
sociais, cujo consumo passou cesso de reestruturação da economia
a depender do poder aquisiti- capitalista, tais como a globalização, a
vo de uma parcela dos traba- reestruturação produtiva, uma nova di-
lhadores e da oferta de bene- visão do trabalho e a reforma do Es-
fícios sociais pela grande em- tado. Para intensificar a produtividade
presa. do trabalho, algumas estratégias bási-
Desta forma, ao criar as con- cas vêm sendo implementadas de mo-
dições para institucionalizar a do a consolidar novos modos de o
inclusão de alguns trabalha- capital consumir e gerir a força de tra-

56 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


Universidade, Estado e Educação

balho. Dentre elas, a redução do traba- algumas necessidades objetivas em Mais do que viabilizar a implementa-
lho vivo mediante o uso de novas tec- torno do seu projeto. Para tanto, agem ção de medidas que alteram o escopo
nologias, a dispersão e descentraliza- de forma a envolver os trabalhadores da seguridade social brasileira inscrita
ção da produção da grande indústria em questões pontuais, transferindo as na Constituição de 1988, o que está
para pequenas e médias unidades de suas necessidades, enquanto classe, em discussão é o próprio significado
produção e a ampliação, em larga para o âmbito dos interesses imedia- sócio-político da proteção social no
escala, da produção simples de merca- tos dos trabalhadores, formando uma Brasil. A nossa hipótese é de que o al-
dorias à moda do período manufatu- cultura que dilui o seu projeto de vo desta ofensiva é a destruição da
reiro. Neste ambiente, uma parcela de sociedade em medidas práticas e con- seguridade social como mecanismo
ex-trabalhadores assalariados, agora sensuais. São exemplos, as alegações distributivo em prol da criação de polí-
responsáveis pela sua empregabilida- sobre a impossibilidade de reajustes ticas sociais compensatórias e focalis-
de, se transformou em consumidores salariais dos servidores ativos em fun- tas que deverão conviver com a mer-
dos serviços disponíveis no mercado, ção da vinculação existente entre os cantilização dos serviços sociais.
como é o caso dos seguros saúde e seus proventos e os dos aposentados; Sem que se possa imaginar as políti-
planos de previdência privada para os as justificativas para reverter o Regime cas de Seguridade Social longe da
que conseguem pagar. Os demais de- Jurídico Único como meio de garantir esfera da reprodução das relações so-
sempregados, reféns do “custo Brasil” mudanças no sistema previdenciário ciais, o que fica evidente é uma ofensi-
e desorganizados politicamente, en- sob a justificativa de que as obrigações va contra a responsabilidade pública
grossam as fileiras do “mundo da po- sociais e salariais do Estado são res- do Estado, na medida em que as ne-
breza” desassistida. ponsáveis pelo aumento do déficit cessidades sociais e coletivas dos tra-
A terceira ordem de fatores revela público; o argumento de que os “pri-
que as classes dominantes, além do vilégios” das aposentadorias dos fun-
domínio econômico, precisam e inves- cionários são assegurados às custas
tem na necessidade de tornar-se clas- dos trabalhadores da iniciativa priva-
se dirigente, sitiando os projetos das, dentre outros.
sociais dos trabalhadores, não somen- Neste contexto, os prognósticos
te através da força e coerção, mas con- sobre a crise da seguridade social bra-
fundindo seus referenciais na propor- sileira também são formadores de
ção em que dotam de novos conteú- uma cultura que socializa conceitos e
dos as bandeiras políticas históricas diagnósticos sobre a inviabilidade de
dos trabalhadores brasileiros. Já o fize- um sistema de seguridade social
ram com a noção de cidadania, insti- público e universal. Assim, o discurso balhadores transformam-se em de-
tuindo a figura do cidadão-consumi- sobre a inviabilidade financeira da mandas mercantis ou em objeto da
dor; o mesmo acontece com a banali- seguridade social deságua ora na solidariedade privada.
zação da solidariedade ou, ainda, com necessidade de aumentar a carga con- Por isso mesmo, pode-se apontar os
formas mistificadas de democracia tributiva do trabalhador através da pre- processos de privatização e focalização
direta. O que está posto no horizonte vidência complementar, ora nos recla- como as estratégias centrais e media-
é uma nova reforma social e moral da mos de participação ativa da socieda- doras das mudanças em curso. Sua
burguesia feita sobre situações concre- de na criação de mecanismos assisten- implementação revela a subordinação
tas, capitalizando o atendimento de ciais. da esfera social aos objetivos macroe-
conômicos, demarcados pelos meca-
A nossa hipótese é de que o alvo desta ofensiva é a nismos de estabilização, propulsores
da integração de cada país à ordem
destruição da seguridade social como mecanismo econômica internacional e cujas pres-
distributivo em prol da criação de políticas sociais crições são a redução do déficit públi-
co, via corte de gastos sociais, a capita-
compensatórias e focalistas que deverão conviver com
lização do setor privado prestador de
a mercantilização dos serviços sociais. serviços sociais rentáveis e a desregu-
lamentação do mercado de trabalho. É

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 57


Universidade, Estado e Educação

por isso mesmo que a seguridade so-


cial passa a ser discutidas sob a égide
da viabilidade financeira, da incompa-
tibilidade do sistema de repartição
simples com o crescimento demográfi-
co e o aumento da expectativa de vida
da população, da inadiável implanta-
ção do sistema de capitalização, da efi-
cácia e/ou da incompatibilidade entre
os sistemas de proteção social e as
novas configurações do mundo do tra-
balho. Suas diretrizes são recriar os
mecanismos de mercado na provisão
de serviços sociais e/ou de repassar
parte dos fundos públicos para a área
privada, retendo na esfera pública ape-
nas os programas voltados para os
grupos vulneráveis.

O principal desafio posto para o conjunto dos ção dos excluídos no processo produ-
tivo, assim como também no provi-
trabalhadores é a apropriação e a desmontagem crítica mento do seguro social e da assistên-
desta direção ídeo-política e das iniciativas que vêm cia médica, pelo menos nos níveis
básicos, que permanecem sendo fato-
sendo construídas para implementar esse outro modelo res centrais para a manutenção da
de seguridade social no Brasil. coesão social” (grifos nossos).
Nestes termos, o principal desafio
Nesta trilha, os fundos de aposenta- sociais em face da conjuntura nacional posto para o conjunto dos trabalhado-
doria e pensões e os programas de e internacional e afirma que “(...) esta res é a apropriação e a desmontagem
assistência social foram os que mais reflexão está condicionada por uma crítica desta direção ídeo-política e das
rapidamente registraram mudanças tendência geral, no sentido de revisar iniciativas que vêm sendo construídas
nos sistemas de proteção social, esta- o espaço da iniciativa pública e das para implementar esse outro modelo
belecendo uma ponte entre capitaliza- formas tradicionais de atuação estatal de seguridade social no Brasil. Modelo
ção e solidarismo, ao tempo em que em favor do mercado (setor privado) e este que vem sendo tecido a partir de
promoveram tanto um esgarçamento das ações comunitárias (terceiro medidas pontuais e que conformam o
entre os laços de solidariedade, como setor)”. Razão pela qual reconhece que desenho das reformas em curso. Além
a naturalização da fragmentação dos “O Estado deve estar crescentemente disso, é vital, neste momento, mobili-
trabalhadores, transformando-os ora estruturado sob o princípio da subsi- zar forças para afirmar princípios e
em “cidadãos consumidores” de servi- diariedade, devendo intervir quando negar as práticas que seduzem os tra-
ços mercantis, ora em “cidadãos-po- seja necessário em razão da insufi- balhadores a aderirem a alternativas
bres” merecedores da assistência so- ciência ou da inadequação da ação de acesso a serviços e benefícios so-
cial (Mota, 1995:219-230). privada ou comunitária. Assim, a ação ciais através de meios mercantis e/ou
Essas tendências, longe de qualquer estatal deve privilegiar a indução e/ou voluntaristas, em nome da reforma do
ilação, são confirmadas pelas palavras a regulação dos processos” (ibidem). Estado e de um novo modelo de segu-
do Secretário da Previdência do E conclui afirmando que as responsa- ridade social.
Ministério da Previdência e Assistência bilidades do sistema público devem Sobre a previdência social e, particu-
Social (Moraes,1999:12ss) quando in- restringir-se “ao campo do combate à larmente, a do servidor público, penso
terroga sobre a necessidade de políti- pobreza, seja por meio da ação assis- ser inadiável a implementação de
cas públicas de proteção de riscos tencial ou por políticas ativas de inser- ações que permitam formar uma mas-

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sa crítica sobre as estratégias utilizadas de, em última instância, sempre dos Assim, afirmar-se que as contribuições
pelo governo, socializando contra- tesouros públicos” (Guerzoni,1999:66- dos servidores públicos são insuficien-
argumentos que poderiam melhor es- 68). Nestes termos, o locus da discus- tes para arcar com as despesas de sua
clarecer e aprofundar questões como: são não é uma suposta usurpação dos previdência é o mesmo que dizer que
1. A alegação de que as aposentado- trabalhadores contribuintes pelos fun- a remuneração dos servidores ativos
rias e pensões dos servidores públicos cionários públicos, mas as péssimas provoca déficit porque o que eles
são custeadas pelos trabalhadores da condições de vida, trabalho e salário pagam de imposto não é suficiente
iniciativa privada. Sobre este aspecto, é do conjunto dos trabalhadores que para pagar os seus salários, ou que o
importante salientar que não existe incidem diretamente nos valores das que os fornecedores da administração
vinculação entre as contribuições ao suas aposentadorias. pagam de imposto não é o bastante
INSS, feitas pelos trabalhadores do para pagar o que eles recebem dela”
setor privado ou autônomos, e o paga- 2. O constrangimento provocado (Guerzoni,G,1999:68ss). Sob esta ar-
mento das aposentadorias dos servi- pelo argumento de que as contribui- gumentação estão em jogo o estatuto
dores públicos. O segurados do INSS ções pagas pelos servidores públicos do servidor público e o seu regime de
são regidos pelo Regime Geral da para o sistema previdenciário são insu- trabalho. Não é por acaso que para
Previdência Social, participam de um ficientes para cobrir os gastos com o resolver esta questão, consta da pauta
sistema contributivo que, através do pagamento dos benefícios. Aqui vale da Reforma Administrativa do Estado a
regime de repartição, obedecidas as repetir que a aposentadoria dos servi- seleção dos servidores que devem fa-
regras de tempo de contribuição e ida- dores públicos é uma obrigação do zer parte da “carreira de estado”; a
de mínima, têm acesso ao benefício Estado e um direito condicionado ao proposta de transformação de institui-
da aposentadoria, cujo teto máximo cumprimento do tempo de serviço e ções públicas em Organizações Sociais
equivale a 10 salários mínimos de re- idade mínima estabelecidas na legisla- não estatais; e o regime de emprego
ferência. São as contribuições dos tra- ção que, inclusive, rege o seu contrato público.
balhadores ativos e do patronato de trabalho. Por isso mesmo, não é
quem custeiam os aposentados do uma contrapartida por uma contribui- 3. As vantagens do sistema comple-
INSS. Atualmente, a proporção é de ção feita anteriormente. Somente a mentar de aposentadorias como pres-
quatro contribuições de ativos para partir de 1993, quando foi editada a crito por praticamente todas as agên-
uma aposentadoria, proporção esta Emenda Constitucional nº 3, é que os cias internacionais, desde a OIT até o
que varia de acordo com a quantidade servidores passaram a contribuir, mas FMI, omitindo o ônus a ser pago pelos
de trabalhadores empregados ou como a própria lei estipula, esta contri- servidores, quer seja em termos de
aptos a contribuírem com a previdên- buição não modificou os critérios de supressão de direitos, quer seja em
cia. Já os servidores públicos não são aposentadoria. Apesar de haver uma termos do peso que o pagamento de
regidos pelo Regime Geral da Previ- contribuição, não há dependência novas contribuições para a previdência
dência Social e as suas aposentadorias entre valor, tempo da contribuição e os complementar acarretarão aos funcio-
são resultado de uma extensão do fa- proventos da inatividade. Ainda segun- nários públicos. Embora a constituição
to de trabalharem para o serviço públi- do o mesmo especialista, “A aposenta- de 1988 facultasse a instituição da pre-
co e não porque contribuíram para o doria continuou sendo integral e vin- vidência complementar pública, tal
sistema. Nas palavras de um especia- culada à remuneração dos ativos, medida não chegou a ser regulamen-
lista, “quem paga a remuneração do independentemente de quanto e por tada. Seja porque a previdência com-
servidor na ativa e os seus proventos quanto tempo o servidor contribuiu. plementar pública poderia inibir a pre-
na inatividade é o Estado. A aposenta-
doria dos servidores públicos, no siste-
ma que existe e sempre existiu no
Se implementada a proposta do “emprego público”,
nosso país, goste-se ou não, é um item se consolidadas as organizações sociais, se autonomizadas
da despesa pública. A despesa com
inativos e pensionistas é, como a sua as Universidades e fraturado o RJU, a questão da
própria denominação orçamentária ao previdência complementar dos servidores será exitosa.
nível federal já denuncia, encargo pre-
videnciário da União, é responsabilida-

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 59


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vidência complementar aberta4, seja


porque as garantias decorrentes da O grande empecilho para criar a “poupança
vinculação ao RJU tornavam a medida
inócua do ponto de vista das vanta-
capitalizada” dos servidores é o direito à
gens comparativas para a redução do aposentadoria integral que o RJU lhes garante.
gasto público, em função das aposen-
tadorias integrais. Este aspecto difere
dos fundos de pensão existentes que da burguesia. Note-se, na explícita grande filão e da face oculta e cobiça-
são destinados a conceder aos seus defesa do Secretário da Previdência, a da da questão previdenciária, qual
associados complementação de apo- seguir transcrita, a enorme capacidade seja, a necessidade de uma previdên-
sentadorias e pensões em relação ao que possuem para transformar fins em cia privada que complemente os
valor pago pelo INSS, do qual eles são meios, quando defendem, na agenda benefícios da aposentadoria oficial
contribuintes obrigatórios. Contudo, se de um novo “pacto fiscal”, o estímulo básica, pedra angular do capitalismo
implementada a proposta do “empre- financeiro, cujo formato institucional é
go público”, se consolidadas as orga- dado pelo chamado Sistema de
nizações sociais, se autonomizadas as Previdência Complementar5, instituí-
Universidades e fraturado o RJU, a do no Brasil nos anos 70, pela lei 6435
questão da previdência complemen- de 1977, e incorporado à Constituição
tar dos servidores será exitosa, como de 1988 sob o título de previdência
anuncia a PLP 9/99. privada complementar.
Segundo informações publicadas O objeto visível e imediato da
no jornal do DIAP de Maio/2001, “O Previdência Complementar Fechada é
Projeto de Lei Complementar nº o pagamento de benefícios, aposenta-
9/99, que institui a previdência com- dorias e pensões complementares aos
plementar no serviço público, estará benefícios da previdência social públi-
na pauta da Câmara para conclusão da ao aumento de regimes complemen- ca. Seus recursos são originários de
votação dos nove destaques penden- tares de previdência, alegando que “A contribuições de empregados e em-
tes. O governo tem muita pressa na combinação ótima entre sistema bási- pregadores, mediante contrato entre
aprovação da matéria, cuja transfor- co e complementar pode não apenas as partes.
mação em lei criará condições para a assegurar uma maior eficácia do siste- Conceituados como sistemas com-
quebra da paridade de remuneração ma, no que se refere à proteção social, plementares pelo fato de proverem
entre servidores ativos e inativos, para como também potencializar um círcu- complementação de aposentadorias,
acabar com a integralidade da remu- lo eficaz em nível macroeconômico, pecúlios, beneficios e pensões da pre-
neração na aposentadoria e viabilizar derivado do impacto positivo do pri- vidência oficial, são também ampla-
a futura privatização da previdência meiro sistema na sustentação da de- mente conhecidos como “fundos de
do servidor público. O interesse é tan- manda agregada e do segundo, no pensão”. O sistema é submetido à fis-
to que, diante da reação dos servido- aumento da taxa de poupança e no calização da Secretaria de Previdência
res e do permanente questionamento fomento dos investimentos com pers- Complementar do Ministério da
sobre a importância e conveniência de pectivas de amadurecimento a longo Previdência e Assistência Social e tem
aprovação do projeto, o governo resol- prazo” (Moraes,1999:37) a capitalização dos seus ativos regula-
veu ceder em alguns pontos, como Assim, o escopo da questão previ- da pelo Banco Central e Comissão de
forma de viabilizar a votação do texto denciária dos servidores não se restrin- Valores Mobiliários. O BACEN fiscaliza
na câmara” (grifos nossos). ge a problemas de caixa ou à indexa- especificamente o mercado financeiro,
Todavia, para além de uma medida ção dos proventos dos inativos aos dos as operações de renda fixa em geral e
que venha (sob a ótica do Governo e ativos. O grande empecilho para criar a as realizadas com intermediação de
das classes dominantes) dar comple- “poupança capitalizada” dos servido- instituições financeiras bancárias. A
tude à reforma previdenciária iniciada res é o direito à aposentadoria integral CVM é responsável pelo controle e fis-
em 1993 parece não ser apenas este o que o RJU lhes garante. É neste ponto calização das transações, envolvendo
propósito dos intelectuais orgânicos que reside o óbice para dar conta do as entidades de previdência privada

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com o mercado de capitais, (Beltão at privada (fundos de pensão e segura- aproximadamente 80% do PIB.
alli, 1999:). Somente a indicação das doras) existentes hoje no mundo é es- A dimensão do patrimônio que os
agências reguladoras dos fundos de timado em cerca de US$ 12,0 trilhões fundos de pensão concentram, por si
pensão dão idéia do quão tênue é a (Quadro II). só, já é suficiente para avaliar a com-
fronteira que separa as suas finalida- Não por acaso, nos Estados Unidos e plexidade da questão. Contudo, mais
des sociais daquelas de ordem econô- Grã Bretanha7, por exemplo, os recur- inquietante ainda é a capacidade que
mico-financeiras. sos dos fundos de pensão alcançam teve o grande capital em transformar
QUADRO I um mecanismo de proteção social -
FUNDOS DE PENSÃO X PIB - BRASIL originário do mutualismo pré-capitalis-
Ano Ativos das EFPP’s PIB ta - num fantástico agente financeiro,
Milhões de R$ Milhões de R$ imputando aos trabalhadores o novel
1990 26.352 787.806 atributo de mega investidores institu-
1991 36.812 795.920
cionais e protagonistas de uma nova
1992 43.269 791.622
relação entre investidores e corpora-
1993 59.959 830.570
ções privadas, modernamente nomea-
1994 72.742 879.158
1995 74.815 916.259 da de governança corporativa8.
1996 86.629 941.548 Aliás, cabe aqui lembrar a grande
1997 101.033 976.991 “coincidência” entre os princípios da
1998 101.129 977.661 governança corporativa defendida pelo
1999 125.995 1.010.068 capitalismo financeiro internacional
2000 144.025 1.089.688 para gerir as suas empresas e os esbo-
jul/01 155.064 1.116.930 çados pelo ex-ministro Bresser Pereira
Fonte: SPC/IBGE/ABRAPP que utiliza igual expressão para defen-
Segundo informações da Associação QUADRO II
Brasileira de Entidades Fechadas de RESERVAS MUNDIAIS DOS FUNDOS DE PENSÃO
Previdência Complementar (ABRAPP), RESERVAS DOS FUNDOS DE PENSÃO em US$ bilhões
existem atualmente 364 fundos de 1990 1995 2000*
pensão no Brasil, sendo 269 de em- ESTADOS UNIDOS 2.624 4.258 6.400
presas privadas e 95 de empresas es- CANADÁ 198 261 440
tatais dos quais participam aproxima- TOTAL AMÉRICA DO NORTE 2.822 4.519 6.840
damente 6 milhões de beneficiários REINO UNIDO 616 879 1.261
entre associados, pensionistas e assis- HOLANDA 237 327 447
tidos. Acumulam um patrimônio 155 SUIÇA 179 280 501
bilhões de reais, equivalente a 14% do ALEMANHA 106 140 199
PIB brasileiro, como evidencia o qua- SUÉCIA 77 80 136
dro a seguir. FRANÇA 22 74 78
Pelo volume de recursos financeiros ITÁLIA 59 61 81
que concentram e pelo patrimônio DINAMARCA 40 61 113
que acumulam, os fundos de pensão IRLANDA 11 25 29
desempenham um papel definitivo na TOTAL EUROPA 1.347 1.927 2.845
economia mundial, sendo hoje consi- JAPÃO 574 1.263 1.926
derados os maiores ativos financeiros AUSTRÁLIA 53 120 242
do mundo, responsáveis por boa parte HONG KONG 13 28 80
do movimento de financeirização do OUTROS 31 67 116
capital e tratados pela vulgata capita- TOTAL ÁSIA/ OCEANIA 671 1.478 2.364
lista como um novo modelo econômi- AMÉRICA LATINA 25 84 216
co denominado de “capitalismo dos ÁFRICA E ÁSIA (outros) 40 132 300
trabalhadores6”. O volume dos recur- TOTAL 4.905 8.140 12.565
sos dos vários sistemas de previdência

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 61


Universidade, Estado e Educação

der a Reforma do Estado Brasileiro no segmentos da cadeia de valor que eles instituições financeiras não-bancárias,
seu livro Reforma do Estado e Cidada- estimam ser os mais rentáveis e os tendo a função de fazer frutificar um
nia (Bresser, 1998), publicado pela mais desprovidos de riscos - com gran- montante elevado de capital monetá-
ENAP/MARE. de chance de se desfazer em caso de rio, preservando a liquidez e a máxima
Na acurada observação de Chesnais crise”. rentabilidade deste. Com isso muda a
(1999:21), as instituições financeiras Assim, deve ocupar o centro das natureza do fundo (...) e eles passam a
que mais se beneficiaram da passa- nossas discussões e preocupações o ser instituições centrais do capital
gem às finanças de mercado, da libe- modo como as elites burocráticas, po- financeiro, e encabeçam as finanças
ralização e da desregulamentação, fo- líticas e econômicas do país respon- especulativas”.
ram os fundos de pen são (...) cujos dem às reivindicações dos trabalhado- Endossando estas afirmações, Far-
ativos financeiros já ultrapassam de res, particularmente dos servidores netti (1999:188), em ensaio sobre o
longe todos os outros que intervêm no públicos federais, pela manutenção papel dos fundos de pensão no desen-
sistema financeiro mundial, como é o das aposentadorias e previdência so- volvimento das finanças globalizadas,
caso dos bancos, seja como investido- cial pública. afirma algo que inclusive podemos
Astuciosamente, constatar em relação ao Brasil, ou seja:
o governo, ao ace- “os ritmos de crescimento dos ativos
nar com a previdên- que os fundos de pensão detêm per-
cia complementar, mite não somente estabelecer uma
procura não apenas esclarecedora periodização de sua pro-
legitimar política e gressão, mas, sobretudo, permite colo-
coletivamente aqui- car em evidência o paralelismo desse
lo que já vem traba- desenvolvimento com o da globaliza-
lhando no Congres- ção financeira (...) e face a internacio-
so Nacional, que é a nalização dos seus investimentos”.
aprovação da PLC As mediações e ações mobilizadas
09/99, como imple- nesse processo nos obrigam a tam-
mentar - na condi- bém discorrer sobre as inflexões e in-
ção de empregador junções políticas que tal iniciativa car-
e patrocinador - um reia no ambiente das relações antagô-
dos mais poderosos nicas e contraditórias entre o capital e
res do mercado de ações, seja como meios para formar e gerir ativos finan- o trabalho. Como já tivemos oportuni-
proprietários de títulos da dívida públi- ceiros com uma liquidez inaudita. dade de escrever anteriormente9, o
ca, sejam como acionistas preferen- Este fato evidencia, ainda segundo que a inteligente e engenhosa propos-
ciais de grandes grupos e empresas. Chesnais (1999:28) “a dupla natureza ta pretende é que os trabalhadores -
Neste último caso, transformando pro- dos fundos de pensão por capitaliza- mais do que valorizar o capital através
fundamente as relações de poder e o ção. Por um lado, constituem o resul- do uso da sua força de trabalho - neste
sistema de decisões nas empresas me- tado acumulado de contribuições so- momento, financiem a acumulação
diante a prática da “governança corpo- bre salários e benefícios e sua finalida- rentista e os investimento de “curto
rativa” que nas palavras de Farnetti de declarada é garantir a esses assala- prazo”, à moda da chamada nova eco-
(1999:205-206), “contribui para a in- riados, quando se aposentarem, uma nomia, mediante a formação de uma
ternacionalização de uma regulação pensão regular e estável. São, portan- poupança oriunda de parte dos seus
rentista mundializada na qual os prin- to, formas institucionais de centraliza- salariais que, a título de contribuição à
cipais países-fonte do capital-dinheiro ção de poupança, muitas vezes nasci- previdência complementar para garan-
concentrado são colocados no centro das de regimes empresariais privados, tir melhor renda na aposentadoria,
de uma vasta rede, que se nutre de obrigatórios, tendo como fonte os ren- passam a constituir uma fonte de re-
uma parte crescente do valor produzi- dimentos salariais. Por outro lado, a cursos e investimentos para o grande
do no mundo inteiro. Na nova configu- partir do momento em que a poupan- capital.
ração rentista, os investidores institu- ça acumulada ultrapassa certo limite, Se para um dos ideólogos do capita-
cionais têm o poder de escolher os os fundos passam a figurar entre as lismo, como Peter Drucker, o fato de

62 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


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os fundos serem patrimônios dos apo- escolha individual e o parâmetro do


sentados inauguraria... o capitalismo capitalismo como ideário universal.
dos trabalhadores ou o socialismo dos Essa socialização, todavia, não se faz
aposentados, para nós, as contribui- sem o uso de estratégias para obter o
ções dos trabalhadores assalariados foi consentimento ativo dos trabalhado-
a nova força que alimentou o capital res; ao contrário, para realizá-la é im-
financeiro e contraditoriamente agra- prescindível incorporar as reivindica-
vou as condições de vida de milhões ções do trabalho à sua ordem, cons-
de trabalhadores em todo o mundo, truindo uma cultura política negocial e
dado que os investimentos de curto transigente, posto que, para afirmar-se
prazo, no mercado financeiro, vêm como classe hegemônica, a burguesia
ocorrendo em detrimento dos investi- necessita utilizar a democracia, reciclar fundos internacionais como os do
mentos produtivos. seus aparelhos de hegemonia e fazer Reino Unido e Estados Unidos - é pre-
Materializam assim, uma estratégia algumas concessões para a obtenção ciso radicalizar a critica a esta perversa
de enfrentamento da crise econômica de consentimentos em torno de medi- idéia de capitalismo dos trabalhadores
e de inserção do Brasil na dinâmica das encaminhadoras do seu projeto e as práticas da governança corporati-
da mundialização financeira, sob os social. va. Menos que uma ameaça, este é um
argumentos da redução dos gastos Nunca é muito lembrar que “a hege- fato posto desde a aprovação da Lei
do Estado, da justiça entre a remune- monia pressupõe indubitavelmente Complementar 109 publicada no Diá-
ração de ativos e inativos e da liber- que levem em conta os interesses e as rio Oficial da União, de 30/05/01, que
dade individual do trabalhador para tendências dos grupos sobre os quais inclusive faculta aos sindicatos de tra-
escolher os meios de obter uma a hegemonia será exercida; que se balhadores a instituição da previdência
melhor aposentadoria. forme um equilíbrio de compromisso, complementar10.
Desse modo, o grande capital aloja isto é, que o grupo dirigente faça sacri- Ademais, e como principal questão
de ordem política, é preciso pensar so-
O grande capital aloja no campo previdenciário uma bre o papel contraditório e por vezes
perverso desta instituição que, sob a
questão que diz respeito ao seu projeto social, isto é, égide da proteção social de grupos
transformar os trabalhadores em parceiros indiferenciados, crescentes de trabalhadores, vem as-
metamorfoseando-os em trabalhadores provedores do segurando a mundialização financeira,
a privatização das empresas estatais e
capitalismo financeiro e proprietários de grandes negócios. o investimento líquido de capitais nos
grandes grupos industriais, comerciais,
no campo previdenciário uma ques- fícios de ordem econômica-corporati- agroindustriais e de serviços.
tão que diz respeito ao seu projeto va. Mas também é indubitável que os Ao tornarem-se investidores e/ou
social, isto é, transformar os trabalha- sacrifícios não se relacionem com o proprietários de meios de produção,
dores em parceiros indiferenciados, essencial, pois se a hegemonia é ético- estes trabalhadores tornam-se - quer
metamorfoseando-os em trabalhado- política, também é econômica; não se tenham conhecimento ou não do fato
res provedores do capitalismo finan- pode deixar de se fundamentar na fun- - em provedores de capital, patrões de
ceiro e proprietários de grandes ção decisiva que o grupo dirigente outros trabalhadores e protagonistas
negócios. exerce no núcleo decisivo da atividade de um conjunto de iniciativas que, na
Esta inflexão sugere que a burgue- econômica (Gramsci, 1988:33). prática, os qualificam de parceiros do
sia brasileira não mais quer ser ape- Mesmo que ponderemos a possibili- grande capital.
nas classe dominante, ela quer se dade dos trabalhadores virem a exer-
constituir como classe hegemônica e, cer controle sobre a gestão dos fundos NOTAS:
para tanto, toma a conjuntura da crise de pensão, implementando novas e 1. Sobre a trajetória e as particularidades
das reformas da previdência social nos anos
da previdência como objeto de socia- alternativas formas de capitalização e
80 e 90, consultar MOTA. A. E. Cultura da Crise
lização de suas concepções sobre a gestão financeira dos ativos - fato não
e Seguridade Social, Cortez Editora, São Paulo,
sociedade, dentre elas, a liberdade de demonstrável em nenhum dos mega- 1995, DELGADO, I.G. Previdência Social e Mer-

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 63


Universidade, Estado e Educação

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2. Referirmo-nos à mudança nas normas da de ser entendida como o sistema que englo- balizadas. In: A mundialização financeira, São
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dência privada complementar facultativo. rativa, faz-se necessária também, a existência In: Estado e Políticas Sociais no Neoliberalis-
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consentimento podem ser pensados como o conselheiros de administração, diretores exe- MORAES, M.V.E. O futuro da seguridade so-
processo de incorporação ativa, pela impreg- cutivos, funcionários, e quando houver, conse- cial in Debates nº 19. Reforma previdenciária -
nação de uma nova racionalidade, ou passiva lheiros fiscais.-Os agentes da governança cor- vetores do Debate contemporâneo. Fundação
pela neutralização das práticas das classes porativa são os acionistas, o conselho de Konrad-Adenauer-Stiftung / Centro de Estu-
subalternas (...).Dias, 1997:91-92) administração, a diretoria, o auditor indepen- dos, São Paulo, 1999.
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pulverizada entre muitos milhões de trabalha- (org.) O desmonte da Nação. Rio de Janeiro,
dores participantes de fundos de pensão, hoje Ed. Vozes, 1999.
transformados em poderosos investidores ins- Ver proposta da reforma administrativa pro-
titucionais” in revista ABRAPP, Ano XVII, nº posta por Bresser Pereira in Lua Nova e os co-
231, fev. 1997. São Paulo. mentários de Chico de Oliveira(2000) sobre a
7. Sobre as particularides dos fundos de mesma.
pensão nestes países, ver Farnetti(1999). Beltrão, K at alli, 1999
8. A expressão governança corporativa vem (Gramsci, 1988:33).
sendo utilizada no mundo dos negócios para
designar o “governo das empresas”, cujo po- * Ana Elizabete Mota é Professora ad-
der decisório pertence aos acionistas, mem- junta do departamento de Serviço Social
bros do conselho de administração e diretores da UFPE-Universidade Federal de Per-
dos grupos corporativos. Como acionistas ma- nambuco
joritários e com representação nos conselhos

64 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


Universidade, Estado e Educação

Maria Aparecida Morgado*

Segurança nas universidades


públicas: um caso para a polícia?
“Não convém a gente levantar escândalo de começo; só aos poucos é que o escuro é claro.”
(Guimarães Rosa)

Em M, o Vampiro de Dusseldorf, um
dos primeiros filmes falados do
cinema no Século XX1, um senhor de
meia idade, bom funcionário, solteiro,
bonachão e calmo, é, por vezes,
tomado por fantasias persecutórias e
sai ao encalço da multidão de seres
que o aterrorizam: crianças do sexo
feminino. Segundo suas próprias
palavras, o senhor de meia idade
estupra e mata essas meninas
para que parem de atormentá-lo
até à loucura.
A crueldade e a sanguinolência dos
crimes fazem com que a atemorizada
população e autoridades da localidade
alemã passem a denominá-lo Vampi-
ro. A região onde o Vampiro atua é um
parque público repleto de crianças e
circunvizinhanças. Sua tática para ga-
nhar confiança consiste em oferecer
doces ou outro tipo de presente a me-
ninas que, por um pequeno período
de tempo, escaparam do olhar de suas
mães.
O bairro em que o criminoso sexual
atua é também o local predileto da
ação de quadrilhas de ladrões. Há um nem às autoridades interessa que o defesa e diz que o fazer da acusação e
acordo entre esses últimos e policiais: cruel Vampiro continue a agir. Polícia e dos jurados é tão criminoso quanto o
a região é pouco policiada. ladrões saem ao encalço do incômodo seu. Os integrantes das quadrilhas se
A pressão social impõe às autorida- personagem. defendem, dizendo que aquele é o tra-
des intensificação da segurança públi- Os ladrões o pegam e detém primei- balho deles. Já no final do julgamento,
ca no local, o que passa a atrapalhar os ro. No tribunal, composto de integran- a Polícia chega, o tribunal de quadri-
negócios das quadrilhas: nem a elas tes das quadrilhas, o réu faz a própria lhas foge e o Vampiro é preso.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 65


Universidade, Estado e Educação

O clássico do cinema é emblemático


de muitas coisas, inclusive de vários
aspectos correlatos à problematização
em foco.
Presentemente, a criminalidade2
transformou-se em um dos temas cru-
ciais para as autoridades brasileiras.
Antes mais restrito a regiões centrais pagamento de um adicional de risco dor universitário do Núcleo de Estudos
decadentes e à periferia das grandes nos salários. Os Boletins de Ocorrência da Violência (NEV) da Universidade de
cidades, o fenômeno se estendeu aos (BOs), feitos pelos policiais, passaram São Paulo (USP), Sérgio Adorno, consi-
bairros de classe média e de classe a ser controlados eletronicamente. dera que também falta às polícias
alta; dos assaltos a bancos e roubo de Diploma de Ensino Médio e Teste de reforço no trabalho de inteligência in-
automóveis, migrou para seqüestros Integridade passaram a ser exigidos vestigativa (Folha de S. Paulo, 27/01-
recorrentes; dos grandes centros urba- para o ingresso na Corporação. Foi /2002, C-1).
nos se estendeu para o interior; das alterado o treinamento dos PMs: o Foi noticiado que a denominada “fá-
cidades se estendeu para as estradas; tempo inicial de formação passou de brica de bandidos” recrutou sua “força
do cidadão comum se estendeu ao oito meses para 2 anos; implantaram- de trabalho” em várias frentes. Por
cidadão notório. se cursos de qualificação com policiais exemplo, na região metropolitana em
Segundo avaliam autoridades, das estrangeiros hiper-especializados; os que o índice de desemprego foi
ruas a criminalidade se estendeu às alvos preferenciais de tiros deixaram 19,3%, em 1999. Na desativação de
Universidades Públicas. de ser cabeça e coração. políticas públicas voltadas a projetos
Conforme tem sido noticiado, não Aulas de direitos humanos e polícia de assistência social, que atendiam
há mais lugar seguro para se viver e comunitária foram implementadas. O aproximadamente a 2,7 milhões de
trabalhar. O medo - do furto, do assal- policiamento de rua passou a contar pessoas: em escolas, circos-escolas
to, do estupro, do seqüestro, da perda com equipamentos considerados “não (referência internacional para a ONU),
da vida -, intensificado pela recorrência letais”, como armas com balas de bor- oficinas de cultura, creches e escolas
criminal e por abordagens bombásti- racha, cassetetes elétricos e sprays quí- de futebol para crianças e adolescen-
cas dos veículos de comunicação, micos. Helicópteros altamente equi- tes, cujo abandono social pode tornar
virou pânico coletivo3. Planos e mais pados - com computadores, radares, vulneráveis ao recrutamento por crimi-
planos de segurança pública vêm rastreadores eletrônicos, dentre outros nosos. A desativação desses projetos
sendo anunciados por autoridades - passaram a fazer ronda aérea. foi seguida da dispensa de 5.000 fun-
federais, estaduais e municipais. Implantou-se, também, o denomi- cionários (Folha de S. Paulo, 27/01-
No Estado mais rico da Federação, nado policiamento comunitário, que /2002, C-3).
também emblemático da problemáti- inclui as chamadas Bases Comunitá- A “fábrica” também recrutou sua
ca em foco, a verba aplicada em segu- rias Móveis. “força de trabalho” nas próprias polí-
rança duplicou entre 1995 e 2001: de Foi feita a integração física dos co- cias, principalmente com relação ao
R$ 2,04 bilhões saltou para R$ 4,20 mandos das polícias Civil e Militar, e a narcotráfico e ao roubo de cargas em
bilhões (Folha de S. Paulo, 27/01- divisão dos territórios de ação foi alte- estradas, conforme mostraram as
/2002, A-1). rada. Foi criada a Ouvidoria de Polícia. Comissões Parlamentares de Inquéri-
Tal investimento, proporcionalmente Foi implantado o “Disque Denúncia” to Federal e Estadual (Folha de S. Pau-
maior do que aquele empreendido (Folha de S. Paulo, 27/01/2002, C-1). lo, 27/01/2002, C-1 e C-3).
por cada um dos quatro governos es- Conforme especialistas criminais, É digno de menção que, após o tér-
taduais anteriores, privilegiou mais po- como o juiz aposentado Luiz Flávio mino da greve dos Policiais Militares
liciais militares nas ruas e mais equipa- Gomes, Doutor em Direito Penal: “Não na Bahia, em julho de 2001, o Gover-
mentos associados à alta tecnologia. adianta prender 100 mil enquanto a nador do Estado tenha declarado à im-
Foram mudados o Regulamento fábrica de bandidos prepara o triplo de prensa sua suspeita de que os saques
Disciplinar, a farda da PM e as cores pessoas para o crime” (Folha de S. e arrastões ocorridos no período parti-
das viaturas. Foi implantado seguro de Paulo, 27/01/2002, C-1). ram “deliberadamente” de PMs aquar-
vida para os policiais. Foi implantado o Segundo foi noticiado, o pesquisa- telados (Folha de S. Paulo, 19/07/-

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Universidade, Estado e Educação

2001, C-3). 27 deles durante o serviço e 110 du- 1-9).


Levantamento realizado por alunos rante a folga (Folha de S. Paulo, Informações coletadas pelos NEV,
de Direito da Universidade de São 27/01/2000, C-3). em 22 Estados da Federação, também
Paulo - em 29 varas criminais do foro O NEV divulgou que o assassinato indicam a violência policial brasileira
central da capital, em 2.901 dos pro- de crianças e adolescentes brasileiros, como a mais comum forma de desres-
cessos criminais que deram entrada entre 10 e 19 anos, aumentou em peito aos Direitos Humanos: mais fre-
entre 1991 e 1999 -, sugere o seguin- 21,95%, de 1995 a 1998. Para Sérgio qüente que as disputas de terra, que
te perfil para agentes de roubos e fur- Adorno, Coordenador do Núcleo, a as pendências políticas - como seqües-
tos na cidade de São Paulo: 57% bran- redução desse índice demandaria tros e assassinatos de integrantes do
cos, 31% pardos, 12% negros. Nesse “uma grande mudança na polícia e no Executivo e Legislativo - e que as de-
universo, 97% integram o sexo mascu- Poder Judiciário” (Folha de S. Paulo núncias de trabalho escravo (Folha de
lino. No universo total, quase metades 11/06/2000, C-5). S. Paulo, 12/01/2000, C-7).
dos delitos é cometida por jovens, na Estudos realizados entre 1991 e Relatório do Comitê de Direitos Hu-
faixa etária entre 18 e 21 anos. Se- 1996 mostram que a probalidade de manos da ONU, relativo ao ano de
gundo é sugerido, o jovem transgres- punição do adulto que mata uma cri- 2000, conclui que o descaso do Estado
sor é majoritariamente solteiro, de- brasileiro com a Lei estimula a conti-
sempregado e tem baixa escolaridade nuidade da prática de tortura policial.
(Folha de S. Paulo, 04/03/2001, C-1).
Relatórios internacionais Nas 31 recomendações feitas pelo re-
Autoridades do Estado de São Paulo e nacionais colocam a lator Nigel Rodley, recorrentemente é
argumentam a relação entre o porten- enfatizada a necessidade das autorida-
execução de civis por
toso investimento em segurança des- des brasileiras cumprirem a Lei. Uma
crito e o aumento da eficiência policial policiais militares como o dessas recomendações sugere o fim
para realizar prisões. A argumentação mais grave problema dos tribunais militares no julgamento
é relativizada pelo especialista Luiz de crimes cometidos por PMs durante
Flávio Gomes, já mencionado: “A Po- brasileiro relativo aos o serviço de policiamento (Folha de
lícia prende principalmente os que co- Direitos Humanos. São Paulo, 11/04/2001, C-1 e C-3).
meteram pequenos delitos, os chama- Na mesma direção, em artigo de sua
dos crimes de bagatela” (Folha de S. autoria, o criminalista José Carlos Dias4
Paulo, 27/01/2002, C-1). ança ou um adolescente é de 1,72% considera:
A Ouvidoria de Polícia do Estado (Folha de S. Paulo, 11/06/2000, C-5). “Somente uma polícia estruturada
divulgou que, em 1999, o número de Outras levantamentos apontam ho- sobre valores democráticos poderá re-
pessoas mortas pelas Polícias Civil e mens, entre 15 e 29 anos, como prin- produzir tais valores em sua relação
Militar subiu 23,8 %, com relação ao cipais alvos das mortes por causas vio- com a sociedade. A pauta do dia deve-
ano anterior. À Polícia Civil são imputa- lentas: dessas, a maioria é produzida ria ser, pois, a desmilitarização da polí-
das aproximadamente 80 mortes. À por armas de fogo. No universo geral, cia, com a unificação das polícias Civil e
Polícia Militar são imputadas aproxi- essas mortes reduzem em 2,7 anos a Militar. (...). O momento que o país
madamente 570 mortes (Folha de S. expectativa de vida dos brasileiros de atravessa é delicadíssimo (...) pasto
Paulo, 27/01/2000, C-3). sexo masculino (Folha de S. Paulo, ideal para apetites ditatoriais. Urge pru-
O índice de mortes de 1999, cujo 01/02/2000, C-1). dência, inteligência e coragem. Espera-
agente é o policial, só não é superior Relatórios internacionais e nacionais se isso do governo” (Folha de São
às 1.421 mortes ocorridas em 1992, colocam a execução de civis por poli- Paulo, 29/07/2001, A-3).
quando, a pretexto de conter uma re- ciais militares como o mais grave pro- Esse protagonista do processo de
belião, 120 PMs e 1 policial Civil exe- blema brasileiro relativo aos Direitos redemocratização pede “prudência, in-
cutaram 111 presidiários na Casa de Humanos. teligência e coragem”. A quem? Talvez,
Detenção da cidade de São Paulo Do Relatório do Departamento dos a parcelas da geração que combateu o
(Morgado, 2001). EUA, foi divulgado: “O sistema de tri- totalitarismo5 militar de 1964.
Os dados da Ouvidoria de Polícia bunais específicos para policiais milita- Como se sabe, muitos jovens foram
também mostram que, no ano 2000, res contribui para um clima de impuni- vitimados por prisões políticas, tortura,
137 PMs morreram por causa violenta: dade” (Folha de S. Paulo, 26/02/2000, tribunais militares, execuções, bani-

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 67


Universidade, Estado e Educação

mento do país, dentre outros crimes distribuição de renda como o Brasil, com de extirpar a corrupção que apodrece a
do Estado6. Presentemente, integran- a intolerável promiscuidade entre os polícia por dentro. (...). A unificação das
tes da geração jovem, que se insurgiu muito ricos e os miseráveis, não pode es- polícias é a segunda medida a adotar.
contra o regime de exceção, ocupam perar que os seus níveis de violência se- Não haverá polícia na rua sem unifica-
vários espaços no aparelho estatal. jam semelhantes aos daquelas nações ção. Há 20 anos foi apresentado um
José Genoino, ícone da parcela jo- em que a riqueza é distribuída menos projeto de emenda constitucional com
vem vitimada pelo estado totalitário desigualmente” (Folha de S. Paulo, 22- esse objetivo11. (...) Também há 20
implantado em 1964, deputado fede- /01/2002, A-3). anos buscou-se retirar da competência
ral pelo Partido dos Trabalhadores O criminalista Antônio Cláudio Mariz da Justiça Militar o processo e o julga-
(PT), candidato ao governo de São de Oliveira, Presidente da OAB-SP, ar- mento dos chamados crimes de poli-
Paulo, propõe a presença mais osten- gumenta que a criminalidade vem ciamento. Muito pouco foi consegui-
siva da ROTA7 nas ruas, em seu progra- sendo tratada de maneira superficial e do12. E o projeto que busca maior
ma de segurança, posicionando-se não preventiva nos planos e ações go- abrangência da competência civil está
contrariamente ao histórico projeto de vernamentais, no artigo da sua autoria: nas gavetas do senador José Fogaça.
emenda constitucional para desmilita- “O fenômeno criminal está presente (...) Pois bem, limpar, reformar e pôr a
rização da Polícia Militar (Folha de S. no âmago do corpo social, por ele é ge- polícia na rua é fundamental para a
Paulo, 13/01/2002, A- prevenção do crime. A re-
10). pressão vem depois, co-
Em entrevista publica- mo confissão de incom-
da em 27/01/2002, o petência” (Folha de São
jurista Hélio Bicudo - Paulo, 25/01/2002, A-3.).
que sistematicamente Do vultoso investi-
denunciou os esqua- mento em segurança
drões da morte, a tortu- feito no Estado São
ra, dentre outros crimes Paulo, entre 1995 e
de Estado do totalitaris- 2001, também consta a
mo de 1964, considera: retirada dos chamados
“a reforma da polícia guardas escolares da
passa pela desmilitari- porta de escolas da Re-
zação”. Entende que de Estadual de Ensino,
propostas como a de que foram substituídos
José Genoino pretendem captar votos rado, dele nasce e nele produz os seus por aproximadamente 4.500 PMs
na “área” da “direita”. Avalia que, par- efeitos. Estudar e pensar a violência im- (Folha de S. Paulo, 27/01/2002,C-3).
tindo do campo da denominada plica estudar e pensar a sociedade” (Fo- Os dados e perspectivas de aborda-
esquerda, tais propostas “são mais lha de S. Paulo, 22/01/2002, A-3). gem apresentados indicam que a pro-
eleitorais do que qualquer outra coisa. O jurista Hélio Bicudo9 - deputado blemática em foco vai muito além do
Tentar entrar no eleitorado conserva- federal pelo PT-SP por dois mandatos, campo da opinião - a favor ou contra.
dor é um erro (...) um equívoco desas- entre 1990 e 1998, Vice-Prefeito da Para além da aparência fenomênica, o
troso” (Folha de S. Paulo, A-6). cidade de São Paulo10, integrante da complexo fato requer observação sis-
Outros juristas também se manifes- Comissão Interamericana de Direitos temática e elaboração teórico-crítica.
tam criticamente com relação a proje- Humanos da OEA (Organização dos Dito de outro modo, o tema exige que
tos e propostas que enfocam a polícia Estados Americanos) - considera os seja estabelecida a diferença substan-
como agente privilegiado da seguran- chamados novos planos de segurança, tiva entre a doxa e a ephisteme, como
ça pública. nas esferas federal e estadual, “uma já recomendava Platão. Para aborda-
O criminalista Márcio Thomaz Bas- leve maquiagem”. No artigo da sua au- gem das suas múltiplas facetas, o
tos, presidente da Ordem dos Advo- toria, enumera as medidas que deve- evento social também requer explicita-
gados do Brasil (OAB) e da OAB-SP8, riam ser adotadas para abordagem ção do posicionamento político do ob-
em artigo da sua autoria, diz: adequada da problemática: servador.
“Um país com um terrível regime de “A primeira atitude a adotar é, pois, a Assim sendo, recorrente estratégia

68 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


Universidade, Estado e Educação

do Estado brasileiro merece reflexão: abolido e substituído por comunas au- ria de ocorrer avanço democrático sem
enquanto sociedade política13, é ele tônomas” (Bottomore, 1988, p.11). precedentes.
próprio que apresenta à sociedade A vertente marxista entende por Para começar, a Polícia teria de ser
civil planos de segurança pública com comunitária a sociedade em que, res- democrática. Tal adjetivação demanda-
supostas inovações, como a propagan- tabelecendo controle sobre as forças ria que ela estivesse inscrita nos códi-
deada Polícia Militar Comunitária. materiais, os indivíduos abolem a pro- gos do contemporâneo Estado Demo-
É isso o que se vê em manifestações priedade privada, as classes e a divisão crático de Direito burguês. Como é
de autoridades estatais: do Ministro da do trabalho. Marx e Engels argumen- sabido, isso significa adequar-se ao
Justiça, a Secretários de Segurança, a tam: princípio fundante desse Estado: “to-
Governadores, a Prefeitos, a parlamen- “Isso não é possível sem uma comu- dos são iguais perante a lei”17.
tares - nas esferas federal, estadual e nidade (...). A ilusória comunidade na No caso particular da Polícia Militar,
municipal -, a autoridades policiais e qual, até o presente, os indivíduos se isso é impossível! O princípio “todos
reitores simpáticos a convênios entre têm combinado sempre adquiriu uma
Universidade Pública e Polícia Militar. existência independente, a parte des-
Uma polícia que sequer
Na Universidade de Brasília (UnB), ses mesmos indivíduos, e, já que era
por exemplo, a segurança do patrimô- uma união de uma classe contra a ou- está inscrita nas normas
nio universitário é realizada por funcio- tra, representava, para a classe domina- da democracia burguesa
nários do próprio quadro e a seguran- da, não só uma comunidade completa-
ça pública é realizada pela PM. mente ilusória como também uma contemporânea, também
Numa primeira visada, a expressão nova algema. Numa comunidade ge- não está inscrita nos códigos
comunitária parece surtir o efeito de nuína, os indivíduos conquistam sua
obliterar a memória: do arbítrio, da liberdade na/e através de sua associa-
da civilização burguesa.
brutalidade, da tortura, da corrupção e ção” (Bottomore, 1988, p.72; grifos Não sustenta a convivência
da impunidade, vinculados à polícia meus).
democrática e civilizada e
brasileira, em geral, e à Polícia Militar, As vertentes, anarquista e marxista,
em particular. Esse enraizamento his- concordam que a sociedade desenha- está totalmente à margem
tórico é parte indissociável da natureza da por ambas é uma sociedade sem do campo político da
do aparato de segurança pública do classes e sem Estado (Bottomore,
Estado brasileiro. 1988, p. 12). cidadania.
Em termos políticos clássicos, como Em termos filosóficos, a junção do
seria possível a existência de uma polí- conceito comunitária à polícia é, no são iguais perante a lei” não a alcança.
cia comunitária na sociedade burguesa mínimo, problemática (Abbagnano, Nem em termos jurídicos, pois conta
dividida em duas classes fundamen- 1982, p. 149-150). com legislação e tribunais próprios.
tais, uma dominante, outra dominada, Em termos lingüísticos, a atribuição Nem em termos políticos: há anos tra-
onde a primeira se vale dos aparato dessa qualidade - comunitária - à polí- mita no Congresso Nacional o projeto
repressivo e ideológico para conter e cia é, para dizer o mínimo, polêmica16: de emenda à Constituição que propõe
conseguir a adesão política da segun- renderia muitas teses e antíteses aca- a desmilitarização da PM.
da14? dêmicas. Uma polícia que sequer está inscrita
Na sociedade brasileira contemporâ- Em termos históricos, como pode o nas normas da democracia burguesa
nea, o aparato de segurança é expres- Estado da sociedade burguesa produ- contemporânea, também não está ins-
são dessa natureza repressiva: o mo- zir uma polícia comunitária? crita nos códigos da civilização burgue-
nopólio estatal da força é recorrente- Portanto, polícia comunitária expres- sa. Não sustenta a convivência demo-
mente exercido como violência contra sa uma contradição de termos e uma crática e civilizada e está totalmente à
a população15. impossibilidade histórica. margem do campo político da cidada-
A vertente anarquista do pensamen- Mas antes, muitíssimo antes da so- nia.
to político moderno entende por co- ciedade autogestionária sem Estado, Em síntese, não é possível à Polícia
munitária “uma sociedade auto-regu- integrada pela comunidade de indiví- Militar ser democrática, nem civilizada
lada de indivíduos e de grupos livre- duos livres para definir seus destinos e e, menos ainda, cidadã. Nem demo-
mente formados. (...) o Estado seria o modo de uso da própria força, have- crática, nem civilizada e nem cidadã.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 69


Universidade, Estado e Educação

casual que na década do denominado leira para a Educação das gerações


Não é casual que na enxugamento das políticas públicas mais novas? Permissivas na aparência
sociais e do concomitante aprofunda- e despóticas na raiz, quando as preten-
década do denominado
mento concentração de renda, os índi- sas intervenções educativas falham, o
enxugamento das políticas ces mostrem ascensão de práticas le- que as suas instituições têm feito?
públicas sociais e tais de policias, em geral, e de PMs, em Nos anos 50 do Século XX, apelou-
do concomitante particular. se para a moral e os bons costumes
Qual é o contingente social mais piedosos. Depois, apelou-se para o
aprofundamento
atingido por essa desintegração do po- psicólogo. Isso, nos segmentos mé-
concentração de renda, os der, conforme a perspectiva arendtia- dios.
índices mostrem ascensão na? Como sugere levantamento apre- Dos segmentos empobrecidos e dos
de práticas letais de policias, sentado acima, as prisões de São Pau- miseráveis, sempre se soube o destino
lo estão repletas de jovens, desempre- social. Não houve projeto civilizatório
em geral, e de PMs,
gados e com baixa escolaridade. Con- que os incluísse.
em particular. siderados os índices estatísticos divul- Presentemente, o mesmo destino
gados, os jovens integram o contin- parece estar sendo construído para jo-
Comunitária? Uma ficção! gente populacional brasileiro mais vens de classe média.
A duplicação inglória dos gastos do atingido pelas recorrentes ações letais Filhos da omissão, os jovens vestibu-
Governo do Estado de São Paulo com de policiais. landos das universidades públicas são
a PM nos últimos 5 anos mostra, mais A quantas andam os investimentos candidatos a quê? Filhos da permissivi-
claro que mil sóis, que não há medida governamentais nas Universidades Pú- dade autoritária22, os jovens estudan-
paliativa que resolva o problema: sua blicas? Qual é o montante do investi- tes dessas universidades23 são forma-
origem está na raiz. mento na contratação de professores- dos para quê? Filhos da despótica ra-
Conforme Hannah Arendt18, “poder e pesquisadores nessas Universidades? zão embrutecida24, são candidatos a
violência são termos opostos”. Para a Como está a qualidade do ensino? quê? A um suposto lugar no mercado,
autora, “o poder resulta da capacidade Como se dá a imprescindível interação do qual são excluídos mesmo antes da
humana de agir em conjunto, o que ensino-pesquisa na Universidades Pú- colação de grau25?
requer o consenso de muitos quanto a blica, campeã de programas de exten- Os levantamentos acima apresenta-
um curso comum de ação”. Segundo são? dos indicam que esses jovens vêm
ela, “a afirmação absoluta de um signi- Qual é o projeto civilizatório da uni- sendo incluídos nas estatísticas de
fica a ausência do outro”. Em última versidade pública brasileira20? Forma- mortes cujo agente é o policial.
instância, a grande pensadora da vida ção de mão-de-obra? Superficialidade O contexto até aqui apresentado
social contemporânea entende que: no ensino? Reprodução de pesquisas escapa ao desejo individual da pesqui-
“É a desintegração do poder que en- do interesse de organismos internacio- sadora. Ele se impõe à vida social, em
seja a violência, pois quando os co- nais? Ativismo pedagógico? Assisten- geral. À vida universitária, em particu-
mandos não são mais generalizada- cialismo e propaganda na extensão? lar: reitores de universidades públicas
mente acatados, por falta de consenso Em que e como são gastos os recur- vêm firmando convênios com a PM
favorável, implícita ou explícita, de mui- sos governamentais destinados à uni- para que faça segurança das pessoas
tos, os meios violentos não têm utilida- versidade pública brasileira? Em im- nos campi.
de. (...) a violência destrói o poder” (p. portação rápida do modismo político- Para quê polícia na escola?
08). intelectual da potência militar domi- Qual é o segmento mais numeroso
A sociedade brasileira pode ser nante? Em pagamento de salários cujo da coletividade universitária?
tomada com caso emblemático do nú- contrato de trabalho não é cumprido? Uma polícia mais centrada no ativis-
cleo da questão posta por Hannah Em infindáveis seminários sobre vio- mo espetacular que no paciente labor
Arendt19: à sociedade civil falta poder e lência? Em inumeráveis seminários so- da investigação preventiva, repressora
à sociedade política - Estado - sobra bre tudo, nada ao mesmo tempo? Em dos pequenos delitos e protagonista
força. convênios e mais convênios com As dos grandes, desorganizada, brutaliza-
Essa diretriz argumentativa permite academias de Sião21? da, pode tomar conta das pessoas na
uma primeira aproximação: não é Qual é o projeto da sociedade brasi- universidade pública?

70 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


Universidade, Estado e Educação

Como conciliar obediência militares-


ca à hierarquia com liberdade de ex-
pressão do pensamento? Como conci-
liar o mundo da obediência incondi-
cional ao mundo da pergunta metódi-
ca26 - razão de ser do ensino, funda-
mento da pesquisa?
Segurança para quem?
Repressão para quem? Para os jo-
vens27? Para os estudantes?
O campo problemático apresentado
permite uma certeza. Esse tipo de con-
vênio Universidade-PM é um retroces-
so histórico. Disso decorre um grande
equívoco, revelador de desapreço pela
frágil democracia que a sociedade bra-
sileira pôde conquistar até aqui. Que
as coletividades universitárias e outros No cenário de dificuldades financei-
setores implicados da sociedade civil ras pelo qual passam as universidades
brasileira reflitam sobre a urgente Consciência pessoal e públicas brasileiras, o projeto de segu-
questão: com ponderação, com res- consciência política não rança que vem sendo implementado
ponsabilidade e compromisso demo- na Universidade Federal de São Carlos
crático. se separam. Temos a (UFSCar), situada ao lado da movi-
Segurança é um tema crucial em responsabilidade de educar mentada Rodovia Washington Luiz, re-
nossos dias, mas não pode ser enfren- presenta um promissor exemplo - para
as gerações mais jovens. ficar no campo dos eventos positiva-
tado às custas da democracia.
Não podemos, mais movidos pelo mente verificáveis.
temor que pela esperança28, enveredar constitui o passo decisivo da civilização. Segurança começa por mudança de
pelo enganoso caminho das soluções Sua essência reside no fato de os mem- hábitos. Com inteligência, observação
imediatistas, finalistas e militarizantes. bros da comunidade se restringirem metódica, pesquisa de experiências di-
Em nome disso, muitos crimes contra em suas possibilidades de satisfação, ferenciadas, criatividade, maturidade,
a humanidade, como o holocausto na- ao passo que o indivíduo desconhece espírito democrático, e co-responsabi-
zista e o recente genocídio de afegãos, tais restrições. A primeira exigência da lade, aquela coletividade vem cons-
foram cometidos. civilização, portanto, é a da justiça, ou truindo sua prática de enfrentamento
Democracia dá trabalho, requer pa- seja, a garantia de que uma lei, uma da difícil questão, e com “otimização
ciência histórica, exaustivo debate de vez criada, não será violada em favor de de recursos”31 - humanos, tecnológicos
posições divergentes para construir o um indivíduo” (Freud, 1930, v. XXI, pp. e financeiros - e, sobretudo, com
consenso político29, mas é sempre o 115-116; grifos meus). meios não brutalizados e nem espa-
melhor, mais educativo e mais fecun- Logo em seguida ao advento da Ar- lhafatosos de contenção do fenômeno
do dos caminhos. quitetura da Destruição30, Adorno que se convencionou denominar vio-
Após o advento da Primeira Guerra advertiu: lência.
Mundial do Século XX, algum tempo “Para a educação, a exigência de que Consciência pessoal e consciência
antes da Segunda, o criador da Psi- Auschwitz não se repita é primordial. política não se separam. Temos a res-
canálise, grande conhecedor dos efei- Precede de tal modo quaisquer outras, ponsabilidade de educar as gerações
tos do sofrimento social na subjetivida- que, creio, não deva nem precise ser mais jovens.
de individual e na intersubjetividade, justificada.(...). Todo debate sobre parâ- ***
fez notar: metros educacionais é nulo e indiferen- Não se pretendeu produzir uma
“A substituição do poder do indiví- te em face deste - que Auschwitz não perspectiva conclusiva de abordagem
duo pelo poder de uma comunidade se repita” (Adorno, 1969, p.33-45). do tema que encabeça a pesquisa e o

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 71


Universidade, Estado e Educação

ensaio teórico de que resultou o texto. Brasil, 1988. DESCARTES, R. Discurso do Método (1637).
Muito antes, e para além disso, a siste- 18. Cf. Arendt, 1994. IN: Os pensadores. Trad. de J. Guinsburg e
19. Cf. Arendt, 1973. Bento Prado Júnior. São Paulo, Abril Cultural,
matização dos dados disponíveis e a
20. Cf. Freire, 1992. 1983, p. 25-71.
tecitura da argumentação pretende
21. Cf. Machado de Assis, 1909, p.163-171. FERREIRA, A. B. de H. Novo Dicionário da
colaborar para introduzir o debate na 22. Cf. Snyders, 1978. Língua Portuguesa. 2ª ed. 27ª imp. Rio de
pauta do Movimento Docente. Que a 23. Cf. Morgado, 2002. Janeiro, Nova Fronteira, 1984.
democracia seja o nosso começo e 24. Cf. Horkheimer, 1976. FREIRE, P. A pedagogia da esperança. Rio
limite. 25. Cf. Ponce, 1979. de Janeiro, Paz e Terra, 1992.
26. Cf. Descartes, 1983. FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930).
27. Cf. Tupiná, 1991; e, 1994. IN: Edição standard brasileira das obras psi-
NOTAS:
28. Cf. Arendt, 1994. cológicas completas de Sigmund Freud. Trad
1. Diretor: Fritz Lang. Ator principal: Peter
29. Cf. Bobbio, 1996; e Rossiaud & Scherer- de José Octávio de Aguiar Abreu. Rio de Ja-
Lorre.
Warren, 2000. neiro, Imago, 1980, v. XXI, pp. 73-171.
2. Para ficar no campo conceitual utilizado
30. Documentário sobre a concepção de HORKHEIMER, M. Eclipse da Razão. Trad.
por juristas.
sociedade nazista, inscrita no mundo arquite- de Sebastião Uchoa Leite. Rio de Janeiro, Edi-
3. Histeria coletiva, para alguns.
tônico produzido. torial Labor do Brasil, 1976.
4. Ex-Ministro da Justiça do governo Fernan-
31. Para usar as expressões preferidas por LA BOÉTIE, E. de. Discurso da servidão vo-
do Henrique Cardoso.
alguns. luntária. Trad. de Laymert Garcia dos Santos.
5. Cf. Arendt,, 1979.
3ª ed. São Paulo, Brasiliense, 1986.
6. Cf. Arquidiocese de São Paulo, 1985.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS MACHADO DE ASSIS, J. M. Histórias sem
7. Batalhão da PM de São Paulo ao qual é
ABBAGNANO, N. Dicionário de Filosofia. data. 2ª ed. Rio de Janeiro, Garnier, 1909.
imputado o maior número das mortes no
Trad. de Alfredo Bosi e outros. 2a ed. São MARX, K. & ENGELS, F. A ideologia alemã
Massacre na Casa de Detenção, em que 111
Paulo, Mestre Jou, 1982. (I - Feuerbach). Trad. de José Carlos Bruni &
presidiários foram executados (cf. Morgado,
ADORNO, T. W. Educação após Auschwitz. Marco Aurélio Nogueira. 3ª ed. São Paulo, Li-
2001).
IN: Sociologia. Editora Ática, São Paulo,1994. vraria Editora Ciências Humanas, 1982.
8. Respectivamente, gestões 1987 a 1989 e
ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil: MORGADO, M. A. A lei contra a justiça:
1983 a 1985.
nunca mais. Petrópolis, Vozes, 1985. um mal-estar na cultura brasileira. Brasília,
9. Também jornalista, publicou, dentre
ARENDT, H. Crises da República (1969). Plano Editora, 2001.
outros, Violência - o Brasil cruel e sem ma-
Trad. de José Volkmann. São Paulo, Perspec- MORGADO, M. A. Da sedução na rela-
quiagem, e Meu depoimento sobre o esqua-
tiva, 1973. ção pedagógica: professor-aluno no emba-
drão da morte.
ARENDT, H. Origens do totalitarismo. I. te com afetos inconscientes. 2ª ed. São Paulo,
10. Governo Marta Suplicy.
Anti-semitismo, instrumento de poder (1951). Summus Editorial, 2002.
11. O jurista refere-se a seu projeto de des-
Trad. de Roberto Raposo. 2a ed. Rio de Janei- PONCE, A. Educação e luta de classes.
militarização da PM, ao qual se juntou, em
ro, Documentário, 1979. Lisboa, Vega, 1979.
1977, sugestão de emenda do mesmo teor
ARENDT, H. Sobre a Violência (1969). Trad. ROSSIAUD, J. & SCHERER-WARREN, I. A de-
encaminhada pelo então governador de São
de André Duarte. Rio de Janeiro, Relume-Du- mocratização inacabável: as memórias do fu-
Paulo Mário Covas. O projeto está nas gavetas
mará,1994. turo. Petrópolis/RJ, Vozes, 2000.
do ministério da Justiça (cf. Morgado, 2001).
BOBBIO, N. O futuro da democracia: uma SNYDERS, G. Para onde vão as pedago-
12. O jurista refere-se ao substitutivo a seu
defesa das regras do jogo. Trad. de Marco Au- gias não-directivas? Trad. de Ruth Delgado. 2ª
projeto, que, contrariamente ao texto original,
rélio Nogueira. 6ª ed. Rio de Janeiro, Paz e ed. Lisboa, Moraes Editores, 1978.
resultou na emenda constitucional segundo a
Terra, 1986. TUPINÁ, H. M. O assassinato de Chris-
qual somente os crimes dolosos de policiais
BOTTOMORE, T. Dicionário do pensamento tian: desvelando a violência no discurso da
militares contra a vida são julgados na esfera
marxista. Trad. de Waltensir Dutra. Rio de Ja- Impunidade. Cuiabá, MT. Ed. do autor, 1991.
de competência da Justiça Criminal Comum.
neiro, Jorge Zahar, 1988. TUPINÁ, H. M. Luto-luta: a inteireza da
Conforme o texto resultante, de cuja versão
CONSTIUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATI- cidadania. São Paulo, Vilibor, 1994.
final e articulações para aprovação participou
VA DO BRASIL (de 05 de outubro de 1988).
o então deputado federal José Genoino, é o
São Paulo, Atlas, 1988. Maria Aparecida Morgado é doutora em
Inquérito Policial Militar que caracteriza a exis-
Psicologia Social, professora do Pro-
tência ou não de dolo - intenção de matar (cf.
grama de Pós-Graduação em Educação
Morgado, 2001).
da Universidade Federal de Mato Grosso.
13. Cf. Bottomore, p.351, 1988.
No Programa de Estudos Pós-Graduados
14. Cf. Marx, 1982; Bottomore, 1988; e, La
em Psicologia Social da PUC/SP, colabo-
Boétie, 1986.
ra com o Núcleo de Pesquisa Psicanálise
15. Cf. Morgado, 2001.
e Sociedade e com o Núcleo Psicologia
16. Cf. Ferreira, 1994.
Política e Movimentos Sociais.
17. Constituição da República Federativa do

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Universidade, Estado e Educação

Terezinha Alves de Oliva*

Ensino de História e
formação de professores
O ensino de História
constitui um momento de
realização do conhecimento
histórico e da sua
concretização. Em níveis
diferenciados, ele divulga,
amplia este mesmo chamada “geografia dos
conhecimento e o professores”, na Europa,
transforma em tradição. pôde camuflar a queda da
A História Ensinada é um reflexão teórica. Não é por
dos esteios da História- outra razão que o
Conhecimento e, como diz geógrafo argentino Marcelo
Selva Guimarães1, constitui Escolar, levando em conta
dimensão do trabalho como “a Geografia
especializado dos contribuiu para construir o
historiadores. Isto acontece sentido comum nacional
também em outras áreas dos cidadãos”2, acha que
e pode ser exemplificado o estudo sobre o ensino
com a Geografia : entre da Geografia pode ajudar
1900 e 1917, considerado inclusive a superar
um período de crise no dificuldades teóricas do
campo de produção da conhecimento geográfico
teoria geográfica, a no presente.

A importância da pesquisa sobre o meira aproximação. Marcos Silva que se estudam nessa específica área
ensino de História nem sempre foi chama a atenção para esse ponto: “re- de investigação.”3
adequadamente compreendida. Po- fletir a respeito do ensino de história, Nesse sentido, mesmo que se distin-
demos dizer que estamos longe de en- visando a sua prática como boa expe- ga a pesquisa sobre o ensino de His-
tendê-la apenas como um estudo so- riência para todos, ultrapassa o isola- tória da presença da pesquisa no ensi-
bre as práticas e sobre os instrumentos cionismo da historiografia sem olhos no de História, é necessário estabele-
didáticos, mas, ao mesmo tempo, te- para tantos de seus circuitos de produ- cer também que uma coisa tem a ver
mos que reconhecer que em grande ção e circulação e de pedagogias des- com a outra. Se no trabalho do profes-
parte é assim que ela é vista numa pri- cuidadas em relação aos conteúdos sor, Marcos Silva adverte que ensino e

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 73


Universidade, Estado e Educação

pesquisa devem ser encarados como Essa advertência, a meu ver, acentua
faces de uma mesma atividade, o ar- o papel do ensino de História e do seu
gumento de que “ensino e pesquisa
Os franceses continuam poder, enquanto mostra a importância
se iluminam, ampliam e superam si- apegados ao panteão das representações construídas sobre
multaneamente”4 e devem questionar- a História no ensino. Não é por acaso
tradicional e que, nesse
se permanentemente, aplica-se tam- que ganha atenção crescente na pes-
bém à pesquisa sobre o ensino de sentido, pouca coisa mudou quisa sobre o ensino de História a aná-
História. Ela pode iluminar, ampliar e lise das representações. Em “Repre-
desde a primeira pesquisa
levar à superação de desafios no cam- sentações e linguagem no ensino de
po do ensino, enquanto ao mesmo dessa natureza, realizada História”, Ernesta Zambone lembra o
tempo pode iluminar, ampliar e levar à em 1948. impacto que, sobre as representações
superação de questões presentes na e os seus sentidos, tem tido a crise de
historiografia, pela informação que paradigmas e de valores, o fim da vi-
pode proporcionar sobre como o co- lou que os franceses atribuem à esco- são homogênea dos fenômenos soci-
nhecimento histórico se difunde, se la os seus conhecimentos sobre His- ais e históricos, o questionamento dos
enraíza e se torna tradição através do tória, considerando os recursos audio- discursos científicos, as idéias de pro-
ensino. A investigação feita na busca visuais, a mídia e demais recursos da gresso, nação e nacionalidade, presen-
da aproximação entre o ensino de His- indústria cultural como auxiliares da tes no ensino de História. Segundo ela,
tória e o conhecimento histórico pode- escola nesse mister. Concluiu-se que a expansão das relações virtuais no
rá ter a capacidade de transformar os os franceses continuam apegados ao mundo contemporâneo evidencia a
dois campos que ela procure assim ar- panteão tradicional e que, nesse senti- “consideração pelo imaginário”, a pon-
ticular. Mas a pesquisa sobre o ensino do, pouca coisa mudou desde a pri- to de a ordem simbólica passar a ser
de História tem quase sempre consta- meira pesquisa dessa natureza, realiza- uma outra forma de existência da rea-
tado, apesar das inovações nele havi- da em 1948. lidade histórica, razão da preocupação
das, uma certa resistência do velho Isso se torna muito interessante com o seu impacto no ensino de His-
projeto filiado aos objetivos da cons- quando sabemos do impacto da His- tória.9
trução da nação e aos princípios da tória Nova sobre o Ensino de História Essa análise conduz à questão da
historiografia do século XIX. na França. As inovações introduzidas inovação e das permanências no ensi-
A professora Ernesta Zambone5 assi- fizeram Jacques Le Goff temer, por um no da disciplina, pois aborda a relação
nalou uma homogeneidade de preo- momento, que se estivesse substituin- de aprendizagem professor-aluno e as
cupações na pesquisa sobre o ensino do “um saber histórico arcaico por ab- múltiplas mercadorias produzidas pela
de História, quer ela se realize na solutamente nenhum.”7 Mas nunca é indústria cultural. Como mostra Zam-
França, no Canadá, em países da Amé- demais lembrar o que diz Marc Ferro bone, se há mudanças evidentes na
rica Latina ou no Brasil. Vem a propó- no parágrafo inaugural de “A manipu- escolha das temáticas abordadas no
sito um fato curioso. A revista francesa lação da história no ensino e nos me- ensino de História marcadas pela His-
L´Histoire divulgou, em abril de 2000, ios de comunicação”: “Não nos enga- tória Nova, o tratamento metodológico
os resultados de uma pesquisa de opi- nemos: a imagem que fazemos de ou- dos temas continua tradicional: “o co-
nião realizada em toda a França, para tros povos, e de nós mesmos, está as- nhecimento histórico é visto como
medir a popularidade de grandes figu- sociada à História que nos ensinaram uma verdade absoluta, homogeneiza-
ras históricas. Apresentada como re- quando éramos crianças. Ela nos mar- dora, sem problematização”.10 Para a
portagem de capa sob o título “Fran- ca para o resto da vida. Sobre essa autora essa realidade se constata não
ceses, quem são vossos heróis ?”6, a representação, que é para cada um apenas nos livros didáticos, mas até
pesquisa constatou que os franceses de nós uma descoberta do mundo e nos paradidáticos em que a liberdade
elegeram heróis principalmente mas- do passado das sociedades, enxer- de abordagem é reconhecidamente
culinos e ligados à história da nação tam-se depois opiniões, idéias fugazes maior. Igualmente na sala de aula, é
francesa. O general De Gaulle, Napo- ou duradouras, como um amor... mas ainda marcante o distanciamento en-
leão Bonaparte e Luís XIV, nessa or- permanecem indeléveis as marcas tre a fala dos professores, o texto do
dem, foram os vencedores da sonda- das nossas primeiras curiosidades, livro didático e o universo cultural dos
gem. Por outro lado, a pesquisa reve- das nossas primeiras emoções” 8. alunos. A aproximação entre o papel

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Universidade, Estado e Educação

das representações no conhecimento de ambas com a difusão do conheci-


histórico e as representações produzi- mento histórico através dos livros
das no material didático ou na sala de didáticos”.13 Debruça-se sobre as re-
aula permite a percepção da importân- presentações, no ensino de História,
cia dessa questão seja no campo da da colonização portuguesa e da cons-
História ensinada , seja no do conheci- trução da História da nação no Brasil. A
mento histórico. partir do exame de um corpus docu-
No mesmo sentido pronunciam-se mental que cobre livros produzidos
os autores de “Inaugurando a História entre o final do século XIX e o ano
e construindo a nação: discursos e 2000 e fazendo um confronto entre a
imagens no ensino de História”, livro narrativa pictórica e a narrativa textual,
organizado por Lana Siman e Thais a autora mostra a permanência do uso
Fonseca. Nele os autores fazem análi- de determinadas imagens na História difundidas e recriadas pelo ensino de
ses sobre a história nacional tomando que fala da construção de uma identi- História. Escudada em teóricos da con-
por mote o debate provocado pelas dade nacional, imagens que exaltam a cepção sobre as representações so-
comemorações dos quinhentos anos História da nação e que estimulam os ciais, a autora sublinha a importância
do descobrimento do Brasil. A publica- sentimentos patrióticos. Elas estão desse trabalho para o ensino de His-
ção se coloca como uma reflexão so- presentes até mesmo em livros didáti- tória, no entendimento de que a cons-
bre “o ensino de História e suas rela- cos que, produzidos a partir da década ciência histórica e a formação das
ções com os avanços historiográficos de 1980, condenam a história épica e identidades sociais resulta das rela-
mais recentes”, estabelecendo a ponte heróica. O resultado a que chega Fon- ções entre os imaginários sociais, as
entre a História ensinada e o conheci- seca é o de que, na trajetória do livro interpretações sobre o passado, a per-
mento histórico. Os autores reconhe- didático de História no Brasil as ilustra- cepção do presente e a expectativa de
cem que “é no âmbito desse ensino ções revelam concepções “profunda- futuro. Sua coleta de informações foi
que se sedimentam concepções e va- mente enraizadas na cultura historio- feita na população estudantil do ensi-
lores que se apresentam como verda- gráfica brasileira, herdadas do final do no médio de Belo Horizonte e chegou
des para a maior parte da população. século XIX e cultivadas não apenas aos seguintes resultados : as represen-
A história conhecida pela maioria pela historiografia como também pelo tações expressas pela maioria dos es-
vem, predominantemente, da esco- ensino de História.”14 Por isso, a autora tudantes têm relação com as interpre-
la.”11 Partindo dessa constatação, Edu- mostra que ainda quando os livros di- tações construídas após a proclama-
ardo Paiva analisa a questão do senti- dáticos são novos no formato, na ma- ção da República ou com interpreta-
mento anti-lusitano, presente desde neira de apresentar os assuntos, nas ções marxistas, na projeção de uma
Frei Vicente do Salvador, mas trabalha- atividades que propõem e até na irre- imagem negativa do colonizador por-
do e aprofundado pela historiografia verência e quase-banalidade da lin- tuguês. Por isso, Siman chama a aten-
republicana. Considera a historiografia guagem, continuam a usar concep- ção para a força homogeneizadora da
atual como redentora de mitos contra ções, periodização e imagens cujas raí- escola, que promove interpretações
os portugueses e aponta, nesse caso, zes evocam a historiografia do Insti- autorizadas, modos “aceitos” de ver o
para o pesquisador do ensino de His- tuto Histórico e Geográfico Brasileiro, mundo. Ela afirma que é na escola que
tória, o problema de saber até que na linha da monumentalização de o conhecimento histórico é transfor-
ponto a escola e o senso comum con- eventos e de personagens. mado em senso comum e o senso co-
tinuam “insistindo na incompetência Já Lana Siman procura saber quais mum em conhecimento histórico.
lusa e no resultado desastroso do do- os efeitos da educação histórica sobre Além disso, mostra que as imagens
mínio português nos trópicos”.12 a formação das consciências e identi- captadas não constituem propriamen-
Num capítulo cheio de informações dades. Para isso estuda as representa- te “erros históricos”, mas acentua que
sobre a pesquisa no ensino de Histó- ções que os estudantes fazem sobre o essas imagens precisam ser abraçadas
ria, Thais Fonseca estuda “a circulação descobrimento do Brasil, ciente de pela pesquisa sobre o ensino de Histó-
de imagens entre a historiografia e as que as significações atribuídas pelos ria como objeto privilegiado, pelo que
artes plásticas, as múltiplas apropria- alunos são o produto de interpreta- podem revelar. Elas exigem um traba-
ções de uma pela outra e as relações ções construídas pela historiografia e lho de desconstrução, na perspectiva

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 75


Universidade, Estado e Educação

das novas interpretações e de uma tão que eu chamaria de “originária”,


nova compreensão de temas históri- qual seja a da formação do profes-
cos. sor.
Dessa forma, Siman termina sugerin- Desde o início da década de 1970,
do um projeto para a pesquisa sobre o o tema da formação do professor
ensino de História: o de identificar as tornou-se objeto de reflexões, de se-
representações sobre a História nacio- minários, de trabalhos diversos. Na-
nal e sobre as identidades e, a partir quele período, quando estava em dis-
dessa identificação, elaborar um pro- cussão a reformulação dos cursos de
grama de reflexão e de desconstrução Pedagogia e das Licenciaturas, tinha-se
de certas representações e de criação como objetivo formar o técnico em
de novas representações, na perspecti- educação: o professor deveria ser o or- tre a Universidade e o ensino de pri-
va da história da cultura. Assim, ela denador do processo de ensino-apren- meiro e segundo graus. A crítica ao
acredita que se venha a acentuar as dizagem, pois se vivia a época da valo- descaso da Universidade com relação a
várias possibilidades de compreensão rização do método, das técnicas. A rea- esses níveis de ensino e por conse-
da experiência histórica: “Nesse senti- ção a esse quadro estabeleceu-se na qüência, com a formação dos professo-
do, estaremos não apenas nos enga- segunda metade dos anos 1970 e to- res, com os cursos de Licenciatura, veio
jando a compromissos de um ensino mou força na década de 1980, quando à tona. Pensar as licenciaturas, diagnos-
de História variado, que considera a a crítica, principalmente a de caráter ticar a sua situação e refletir sobre a for-
multiplicidade de fontes e linguagens marxista, investiu contra o predomínio mação do professor gerou um debate
de produção do saber histórico, mas, da tecnologia educacional. O caráter forte no início dos anos noventa.
sobretudo, contribuindo para que o político do trabalho do educador e o Nesse período a pesquisa ascendeu
ensino de História se transforme em seu compromisso com as classes po- decisivamente como objetivo maior da
educação histórica ao incluir no con- pulares tornou-se então o enfoque Universidade : o ensino passou a ser
junto de suas proposições e práticas principal. visto como atividade inferior, a pesqui-
os próprios significados que os sujeitos É também quando toma corpo a sa e a pós-graduação assumiram um
constroem a respeito do mundo em denúncia sobre a falência do sistema lugar preeminente em detrimento do
que vivem, de suas heranças passa- educacional brasileiro e aprofunda-se ensino e da graduação (e nela, espe-
das, de seus projetos futuros” .15 a discussão sobre o perfil do profissio- cialmente, das licenciaturas). É o mo-
Querer que o ensino de História seja nal da educação. Passou-se a atribuir mento em que as Ciências Sociais en-
“educação histórica” é entender o que ao professor o caráter de especialista frentam a crise dos paradigmas en-
diz Maria Stephanou: “a análise dos num determinado conteúdo, facilita- quanto no pensamento educacional
principais elementos que, (...) histori- dor da aprendizagem, enquanto se lhe brasileiro surge o perfil de um novo
camente caracterizam o ensino de his- opunha o educador, o formador, aque- profissional para a educação: ele seria
tória, incita-nos a pensar como noções le que fomentaria o desenvolvimento o professor-pesquisador, que deveria
(...) e exercícios escolares (...) têm pro- global do aluno, um agente sócio-polí- aliar o domínio do produto (o conheci-
duzido nossas subjetividades, nossa tico de formação do educando. Foi mento específico) ao domínio do pro-
consciência no mundo social”.16 Isso dessa discussão que emergiu o perfil cesso (a produção do conhecimento).
conduz a pensar na importância capi- de um profissional que pudesse aliar a Concebia-se que o ensino deveria visar,
tal da pesquisa sobre o ensino de His- competência técnica e o compromisso com prioridade, os processos de aqui-
tória e na amplitude das questões que político. sição do conhecimento. O professor-
ela poderá abarcar. Da produção à rea- A década de 1980 foi riquíssima nes- pesquisador, investigador, teria que
lização do conhecimento, à sua trans- se debate que terminou trazendo à aliar a teoria à prática, articulando-as.
formação em saber escolar, a pesquisa cena a relação entre a prática e a teo- O debate sobre a formação docente
sobre o ensino de História deverá ter ria. Já sabemos a que isso conduziu: à no Brasil tem sido, desde os anos
em conta, sem dúvida, o currículo, os questão do papel do professor e do 1970, o campo de uma luta pelo poder
conteúdos escolares, as estratégias e pesquisador e, em ponto maior, à que espelha a decisiva tendência, na
instrumentos de ensino, as representa- questão da relação entre a Univer- Universidade brasileira, para o predo-
ções, mas não pode esquecer a ques- sidade e a formação do professor, en- mínio da pesquisa sobre o ensino. Um

76 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


Universidade, Estado e Educação

acelerado desprestígio das atividades Na verdade, apesar da mudança de ensino e pesquisa. São Paulo : Brasiliense,
didático-pedagógicas foi um dos seus concepção, vivemos ainda um eco do 1995, p.18.
4 Idem, p. 19.
saldos, percebido e denunciado com tradicional esquema do 3+1, quando a
5 Zambone, Ernesta. Panorama das pesqui-
veemência no Seminário realizado em formação específica era dada nos três
sas no ensino de história.In: V Encontro
1986, em São Paulo, do qual resultou primeiros anos, seguida de mais um Nacional de Pesquisa em Ensino de História,
o livro “Universidade, escola e forma- ano de formação pedagógica. A ativi- João Pessoa: 8-11/10/2001.
ção de professores” e em publicações dade de ensinar não é vista, em suma, 6 Français, qui sont vos héros? L´Histoire,
que vieram a lume durante a década como aquela que deveria ter como ob- Paris: nº 242, 2000 avril.
7 Citado por Munakata, Kazumi. Histórias
de 1990, uma das quais chegou a re- jetivo “fundamentalmente, aos proces-
que os livros didáticos contam, depois que
conhecer, em 1994, que formar profes- sos de aquisição do conhecimento,
acabou a ditadura militar no Brasil IN Freitas,
sores, na Universidade brasileira, tor- não apenas aos produtos”.20 Esta situ- Marcos César de (Org.) Historiografia brasilei-
nou-se “remar contra a maré” ou con- ação leva Pereira a concluir que “as ra em perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998,
tra os interesses das forças dominan- mudanças na maneira de se pensar a p. 288.
tes na Universidade.17 No seu livro “For- formação de professores não garan- 8 Ferro, Marc. A manipulação da História no
ensino e nos meios de comunicação. São
mação de professores: pesquisas, re- tem, porém, mudanças, alterações e
Paulo: Ibrasa, 1983, p.11.
presentação e poder” Júlio Pereira ana- inovações imediatas nos cursos de for-
9 Zambone, Ernesta. Representações e lin-
lisa todo esse embate, mostrando co- mação docente, especificamente nas guagens no ensino de História. Revista
mo o desprestígio do ensino acarretou licenciaturas. A efetivação de mudan- Brasileira de História, São Paulo: v. 18, n. 36,
igualmente o desprestígio das Licen- ças nesse âmbito parece ser mais p.89-102, 1998.
ciaturas, a ponto de ensino e formação lenta e seguir um caminho mais com- 10 Idem, p. 90.
11 Siman, Lana Mara de Castro e Fonseca,
de professores serem consideradas ati- plexo”.21
Thais Nívia de Lima e. Inaugurando a História
vidades de terceira categoria. A valorização da pesquisa na Uni-
e construindo a nação : discursos e imagens
Os Cursos de História assumiram versidade e na formação do profissio- no ensino de História.Belo Horizonte:
desde a década de 90 o compromisso nal há que ser tomada como um cami- Autêntica, 2001, p.17.
de formar o professor-pesquisador. En- nho para a revalorização do ensino. A 12 Paiva, Eduardo IN Siman, Lana M. C.e.
tretanto continuaram, na sua maioria, pesquisa sobre o ensino pode renová- Fonseca, Thais N. L . op. cit. p. 46.
13.Fonseca ,Thais N.L IN Siman, Lana M.C.,
cuidando apenas do trabalho com o lo, integrá-lo cada vez mais aos circui-
Fonseca, Thais N. L. op. cit. p.92.
conteúdo específico, formando um tos do conhecimento produzido e con-
14 Idem, p.111.
profissional com certo preparo para a correr com os seus resultados para a 15 Siman, Lana IN Siman, Lana , Fonseca,
pesquisa, enquanto a questão didáti- melhoria da formação do profissional Thais. op. cit. p. 168.
co-pedagógica prossegue na mão dos de História. Um profissional que conti- 16 Stephanou, Maria. Instaurando maneiras
Cursos de Pedagogia ou das Faculda- nua tendo no ensino o seu grande de ser, conhecer e interpretar. Revista
Brasileira de História, São Paulo, v.18, n. 36, p.
des de Educação, e, “mesmo perten- campo de ação. Por isso, ele deverá
18,1998.
cendo ao Departamento de História,” desenvolver novas competências e
17 Cf. Júlio Emílio Diniz Pereira, Formação
como constata Marlene Cainelli, “os habilidades que o capacitem a atender de professores : pesquisas, representações e
professores de Metodologia e Prática às demandas e aos desafios cada vez poder. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
de Ensino que integram a área são maiores lançados pela massa de edu- 18 Cainelli, Marlene. Diretrizes curriculares,
considerados da “área de Educação”.18 candos que hoje acorre às escolas e a currículos e formação de profissionais de
História IN História: fronteiras. São Paulo:
O professor-investigador deveria ser todas as instâncias da educação. Para
ANPUH, 1999, p. 225.
capaz de articular teoria e prática pe- ela, o ensino de História tem um im-
19Pereira, Júlio E. D. op.cit, p.44.
dagógica mas, na afirmação de Pereira portante papel a cumprir, tanto mais 20 Santos, apud Pereira, Júlio E.D. op. cit.,
“a separação explícita entre essas amplo quanto mais crescerem na so- p.44.
duas atividades no seio da universida- ciedade as demandas por cidadania. 21 Pereira, Júlio E.D.op.cit., p. 52.
de e a valorização da pesquisa em
detrimento do ensino (de graduação) NOTAS: * Terezinha Alves de Oliva é professora
1 Fonseca, Selva Guimarães. Caminhos da do Departamento de História da Universi-
no meio acadêmico têm trazido prejuí-
história ensinada .Campinas:Papirus, 1993. dade Federal de Sergipe, Doutora em
zos enormes à formação profissional, 2 Escolar, Marcelo. Crítica do discurso geo- Geografia pela UNESP/Rio Claro.
e particularmente, à formação de pro- gráfico.São Paulo: Hucitec, 1996, p.12.
fessores”. 19 3 Silva, Marcos Antonio da. O prazer em

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 77


Universidade, Estado e Educação

Jorge Carvalho do Nascimento1

Imprensa estudantil:
jornais da década de 1930

Ao atentar para a imprensa estudantil, a produção, circulação e uso dos jor- janeiro de 2001.3 Mesmo a literatura
este artigo lança o olhar sobre um nais produzidos por e para estudantes que se dedicou aos estudos sobre
campo das práticas escolares que e vinculados a instituições escolares. juventude, publicada em Sergipe4 e
ajuda a estabelecer um entendimento A literatura sobre periódicos educa- nos outros Estados brasileiros5, não
a respeito da história da escola e dos cionais no Brasil2 ainda é recente e não costuma examinar o problema dos jor-
saberes e práticas que a constroem. conseguiu produzir uma massa crítica nais publicados por e para estudantes.
Mais apropriado pelos alunos que suficiente a respeito dos jornais estu- Este trabalho foi inspirado pelo pro-
pelos professores, tal campo prioriza dantis. Em Sergipe, consegui identificar jeto Catálogo das Revistas Sergipanas,
práticas de estudantes, e se insere no apenas um trabalho tratando especifi- que venho executando desde setem-
conjunto de estudos sobre periódicos, camente da imprensa estudantil: uma bro de 2001, juntamente com o pro-
livros e leituras. Assim, o objetivo aqui série de artigos publicados por Luiz fessor Itamar Freitas, no Departamento
proposto é o de fazer uma exposição Antônio Barreto, no jornal Gazeta de de História da Universidade Federal de
inicial acerca das regras que regulam Sergipe, no período de 14 a 20 de Sergipe. Ao inventariar e catalogar as

78 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


Universidade, Estado e Educação

revistas publicadas em Sergipe, entre


1890 e 2000, percebi a existência de A ausência de uma política consistente de preservação da
uma vigorosa imprensa estudantil ser-
memória estudantil, certamente possibilitou que a maior
gipana, no período compreendido en-
tre as décadas de 1930 e 1960. Sele-
parte dos exemplares desse e de outros jornais se perdesse.
cionei os dois acervos nos quais iden-
tifiquei a maior quantidade de jornais década, os estudantes de São Paulo vi- e vinte, publicados em abril e maio de
produzidos por e para estudantes em veram momentos de grande agitação 1934. Do jornal quinzenal O Colegial
tal período: o Instituto Tobias Barreto política, enquanto na Bahia, grandes foram localizados apenas dois exem-
de Educação e Cultura - ITBEC e o Ins- massas estudantis se manifestavam plares, os de números sete e oito. O
tituto Histórico e Geográfico de Ser- contra a política do interventor Juraci número sete foi publicado em 16 de
gipe - IHGS. Pertencem ao acervo do Magalhães.8 Em todos os Estados da junho e o número oito em 22 de julho
ITBEC os jornais A Luta, Terra, O Co- região Nordeste, muitos estudantes se de 1934. O jornal Canaan sobrevive
legial, A Voz do Estudante, e Canaan. engajaram na campanha presidencial através do exemplar de número três,
No acervo do IHGS, estão os seguintes do paraibano José Américo,9 no mes- publicado em setembro do mesmo
títulos: A Juventude, Juventude, Bole- mo momento em que, em todo o país, ano. O Boletim é do ano de 1935. De-
tim, Correio do Colegial, Escola Nor- estudantes se organizavam em torno le, consegui resgatar apenas o número
mal, O Ideal e O Serigi. Além destes, da Juventude Comunista e da Juventu- dois, publicado no mês de outubro.
há jornais estudantis citados pela bi- de Integralista.10 Em Sergipe,11 o movi- Em 1939 circularam dois jornais: Terra
bliografia existente que não foram lo- mento estudantil se expressava atra- e Correio do Colegial.
calizados nos acervos pesquisados, a vés de lideranças como Joel Silveira, O Colégio Tobias Barreto conheceu a
exemplo de A Voz do Atheneu, que cir- que agitava o Grêmio Cultural Clodo- maior quantidade de jornais estudan-
culou no ano de 1934, sob a direção mir Silva, do Colégio Atheneu Sergipe. tis. Dos seis publicados no período
de Joel Silveira, tendo Jagunharo Pas- Muitos estudantes já haviam deixado o que este artigo analisa, três o foram
sos como secretário. ensino secundário em Aracaju e cursa- por estudantes daquela instituição es-
Neste trabalho, optei por fazer um vam faculdades na Bahia, mas conti- colar: Terra, O Colegial e Boletim. Dos
primeiro estudo exploratório acerca nuavam influindo a militância estudan- três, O Colegial assumiu inicialmente o
dos jornais estudantis publicados na til local. A imprensa estudantil registra caráter de veículo do Grêmio Lítero Ci-
década de 1930, apesar de também os nomes de Renato Franco, Paulo de entífico Tobias Barreto. A Juventude era
haver localizado periódicos dessa natu- Carvalho Neto, Walter Sampaio, Alber- publicado pelos alunos da Escola Téc-
reza publicados nas décadas de 1940, to Barreto de Melo, Enoch Santiago Fi- nica de Comércio Conselheiro Orlando,
1950 e 1960, a exemplo de A Luta, A lho, José Silvério Leite Fontes e Ema- através do Clube de Turismo Instrutivo
Voz do Estudante, Escola Normal, Ju- nuel Franco. Mas, esse ambiente cultu- mantido pelos estudantes. Canaan era
ventude, O Ideal e O Serigi. Os periódi- ral possibilitava que se cuidasse não um jornal organizado no Colégio Athe-
cos analisados neste artigo foram apenas da agitação política. As excur- neu Sergipense e o Correio do Colegial
todos publicados por e para estudantes sões pedagógicas, organizadas por ini- era o veículo dos estudantes do Co-
de escolas localizadas na cidade de ciativa da Diretoria da Instrução Pú- légio Jackson de Figueiredo.
Aracaju. blica, das direções das escolas públicas Apesar de haver registros quanto à
e privadas,12 ou dos grêmios estudan- publicação do jornal A Voz do Atheneu,
A efervescência estudantil tis, movimentavam os estudantes e va- em 1934, tal periódico não será aqui
A década de 1930 foi um período de lorizavam o discurso de defesa dos re- analisado, uma vez que não foi locali-
grande efervescência para os estudan- cursos naturais. zado qualquer exemplar dele nos acer-
tes brasileiros. A fundação da União No contexto da década analisada, vos consultados por esta pesquisa. A
Nacional dos Estudantes, em 1937,6 e circularam seis jornais estudantis: A Ju- ausência de uma política consistente
a realização do Primeiro Congresso da ventude, O Colegial, Canaan, Correio de preservação da memória estudantil,
Juventude Operária Estudantil,7 no Rio do Colegial, Boletim e Terra. Em 1931, certamente possibilitou que a maior
de Janeiro, em 1934, são expressões começou a circular o jornal A Juventu- parte dos exemplares desse e de ou-
de um universo cultural brasileiro da- de. Dele, ainda podem ser consultados tros jornais se perdesse. Assim, são ra-
quele período. Na primeira metade da os exemplares de números dezenove ros os exemplares que encontramos

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 79


Universidade, Estado e Educação

desses periódicos nos acervos pesqui- jornal esparsos até o ano de 1953 - o mato 28 X 36 centímetros, com quatro
sados. O Instituto Histórico e Geográ- último em que há registros da circula- páginas; o Boletim tinha formato de
fico de Sergipe possui os números 19 ção do periódico. Assim, estão preser- 23 X 32,5 centímetros e quatro pági-
e 20 do jornal mensal A Juventude. É vados muitos números de um jornal nas; 27 X 37,5 centímetros era o for-
importante assinalar que este periódi- estudantil que circulou durante 14 mato de Terra, que circulava com qua-
co começou a circular em 1931. Po- anos. Do jornal quinzenal O Colegial tro páginas; o Correio do Colegial cir-
rém, entre o ano inaugural do jornal e estão perdidos os seis primeiros nú- culava com oito páginas no formato 24
o mês de abril de 1934 foram publica- meros, encontrando-se apenas os X 33 centímetros.
dos dezoito números de A Juventude, exemplares de números sete e oito no A qualidade das edições e as linhas
dos quais não se conhece qualquer acervo do Instituto Tobias Barreto de editoriais existentes no material anali-
vestígio. Do mesmo modo não há ves- Educação e Cultura. Não há registros sado são reveladoras do modo como
tígio de qualquer outro número que da existência de outros números publi- os estudantes se apropriavam das prá-
porventura tenha sido posteriormente cados após o oito. O acervo do ITBEC ticas do fazer jornalístico. Os dirigentes
publicado. O IHGS mantém em seu possui também o único exemplar co- e colaboradores procuravam impor
acervo o exemplar de número dois, o nhecido do semanário O Canaan, o de aos seus periódicos a marca das suas
único conhecido, de Boletim, publica- número três, publicado em 1934. Tam- idéias e dos objetivos das publicações.
do em 1935. Não há qualquer infor- bém não é sabido se, após este, foram A Juventude era dirigido por Alfredo
mação a respeito do paradeiro do nú- publicados outros números, da mes- Gomes e tinha Vicente Arcieri como
mero um do jornal e não se sabe da ma maneira que estão desaparecidos editor. Do seu quadro de colaborado-
publicação de números posteriores. O os exemplares de números um e dois. res participavam Jagunharo Passos e
mesmo arquivo mantém os exempla- No mesmo acervo podem ser localiza- Ronald Silva. Edio Vieira de Azevedo
res de O Correio do Colegial. O jornal dos os números quatro e cinco do jor- dirigia O Colegial, jornal que tinha
começou a circular mensalmente a nal Terra, que circularam em setembro Márcio Rolemberg Leite, Sindulfo Bar-
partir de dezembro de 1938 e foi cer- de 1939. Não há qualquer informação reto Filho, Geraldo Brito e José Men-
tamente um dos periódicos estudantis sobre os três primeiros números ou donça como colaboradores. Jagunharo
de maior longevidade, dentre os vários registro da públicação do número seis Passos, Henrique Franco e Lyses Cam-
publicados por escolares sergipanos. e outros subseqüentes. pos eram diretores do Canaan, jornal
Os cinco primeiros números não fo- Quase todos os periódicos examina- que recebia a colaboração de Célio
ram encontrados, mas há disponível dos tinham um formato padrão aproxi- Araujo Costa e Passos Cabral. A dire-
para consulta uma série que se inicia mado. A Juventude circulava com seis ção do Boletim era de responsabilida-
em maio de 1939, com o número seis páginas no formato de 23,5 X 33 cen- de de Durval Mainari, Gustavo Dantas,
e vai até 1949. Todavia, há números do tímetros; Canaan era publicado no for- José Barreto, Márcio Rollemberg, Paulo
Garcez e Sindulfo Barreto Filho. Dentre
os autores dos textos publicados pelo
periódico, estava Manuel Cabral Ma-
chado. O estudante Segismundo An-
drade era diretor do Terra, periódico
no qual Arivaldo Fontes atuava como
redator e Alberto Miramar, Almir San-
tos, Almir Barreto Ribeiro, Renato Cor-
rêa, J. Dantas de Brito Lima e Paulo de
Carvalho Neto eram colaboradores. O
expediente do Correio do Colegial não
esclarecia os nomes dos seus diretores
e editores. Todavia, dentre os colabora-
dores constam os nomes de Abdon
Monte, padre Brito, Dulce Borges,
Cludomira Saturnino, Eduardo Cabral,
Iêdo Júlio de O. Ribeiro, Jair Belém, Jo-

80 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


Universidade, Estado e Educação

sé Albuquerque de Feijó, Maria M. mento estudantil e dos problemas de O que resta nos arquivos é muito pou-
Barreto e Maria Odete Mesquita. Era financiamento dos periódicos. O jornal co. E este mínimo acervo não pode ser
comum que algumas pessoas atuas- também abria espaços para a poesia. perdido. É necessário que, além do
sem em mais de um periódico. Bons Terra buscava oferecer formação cívica levantamento feito no IHGS e no ITBEC,
exemplos são Jagunharo Passos, cola- e moral com matérias de homenagem se proceda a uma minuciosa varredu-
borador de A Juventude e diretor de à Igreja Católica, ao Exército, e de valo- ra nos demais arquivos sergipanos,
Canaan; Márcio Rollemberg Leite foi rização dos sentimentos de amor à pá- não apenas os localizados em Aracaju,
colaborador de O Colegial e dirigiu o tria. Afirmava a identidade do Colégio mas também os acervos existentes em
Boletim; Sindulfo Barreto Filho foi cola- Tobias Barreto, homenageando a insti- outras cidades. Esse tipo de documen-
borador de O Colegial e dirigiu o Bo- tuição e os seus professores. Os textos tação nos fala da história da escola sob
letim. dedicados à literatura também ocupa- a ótica das práticas estudantis e do
Os textos publicados pela imprensa vam muito espaço nas suas páginas. O modo como os estudantes se apro-
estudantil na década de 1930 cumpri- Correio do Colegial manifestava apoio priavam e punham em circulação os
am quatro objetivos: oferecer forma- aos interventores que governavam padrões de uma cultura política que os
ção política; forjar a consciência moral Sergipe, na década de 1930, fortalecia envolvia. Nos diz também da necessi-
e cívica; difundir novos valores sociais; nos estudantes o sentimento de amor dade de verificar as estratégias adota-
e, oferecer ilustração literária. O jornal ao Colégio Jackson de Figueiredo, va- das pelo movimento estudantil para
A Juventude valorizava a natureza, ao lorizava a natureza através das excur- fazer com que as vozes das suas lide-
colocar em discussão as excursões do sões pedagógicas, difundia valores cí- ranças fossem ouvidas. O jornal estu-
Clube de Turismo Instrutivo da Escola vicos e morais e o amor à pátria. dantil representa, em tal contexto, uma
Técnica de Comércio Conselheiro Or- forma de expressão política de um
lando. Também discutia a identidade grupo emergente na vida social brasi-
daquela instituição escolar ao tempo leira que se pretende cada vez mais fa-
em que levantava questões que di- zer ouvir. Nessa busca, as lideranças
ziam respeito às condições sob as estudantis perceberam a necessidade
quais estudavam os alunos do curso de romper o estreito limite dos muros
noturno, principalmente os que traba- escolares e entenderam que a legiti-
lhavam no comércio de Aracaju. O Co- mação seria produzida à medida em
legial publicava comentários sobre o que falassem para toda a sociedade. O
trabalho de escritores e poetas, além espaço da imprensa estudantil foi, por-
de divulgar a criação de jovens poetas. tanto, aberto não apenas aos estudan-
Além disso, veiculava artigos de forma- tes matriculados nas escolas em que
ção cívica e de exaltação dos valores os jornais eram publicados, mas tam-
morais e textos de exaltação a intelec- bém abrigou estudantes que já tinham
tuais e heróis sergipanos, como Tobias ultrapassado o momento dos ensino
Barreto e Camerino. Uma outra discus- secundário e já freqüentavam o ensino
são freqüente era a dos problemas das Em busca de uma história superior, principalmente em faculda-
disciplinas curriculares do ensino mé- A análise dos seis primeiros jornais des baianas. Ademais, foram incorpo-
dio da época. Do ponto de vista políti- estudantis localizados nos arquivos do radas contribuições de intelectuais e
co, o jornal abria bastante espaço para Instituto Tobias Barreto de Educação e escritores consagrados que funciona-
divulgação de artigos escritos por mili- Cultura e do Instituto Histórico e Geo- vam como avalistas das práticas políti-
tantes integralistas. Canaan criticava o gráfico de Sergipe aponta para a im- cas estudantis.
movimento feminista, e produzia uma portância dessa memória que conti- A história de cada um dos jornais
memória do Colégio Atheneu, além de nua à espera de intérpretes interessa- publicados por estudantes tem muito
divulgar textos literários. Boletim dedi- dos em dar-lhe sentido. A primeira res- a ensinar a respeito da produção e cir-
cava espaços para a discussão das difi- ponsabilidade dos que se dedicam aos culação de impressos, da tipografia e
culdades vividas pela imprensa estu- estudos da História da Educação é a da indústria gráfica em geral, da apro-
dantil em função das permanentes de salvamento do acervo. Os docu- priação que faziam os estudantes no
mudanças de direção do próprio movi- mentos se destroem aceleradamente. relacionamento que estabeleciam com

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 81


Universidade, Estado e Educação

a instituição escolar e nesta, especial- NOTAS: grafia); RAMOS, Antônio da Conceição. 2000.
mente, com os professores e com os 1. Doutor em História da Educação pela Movimento estudantil: a JUC em Sergipe
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. (1954-1964). Aracaju, Universidade Federal
livros aos quais tinham acesso. Há ne-
Professor do Departamento de História e do de Sergipe. (Dissertação de mestrado); GRA-
cessidade de produzir estudos que dê-
Núcleo de Pós-Graduação em Educação da ÇA, Tereza Cristina Cerqueira da. 1998. Pés-
em conta da trajetória de vida dos Universidade Federal de Sergipe. de-anjo e letreiros de neon. Ginasianos na
diretores, editores, redatores e colabo- 2. Cf. VIDAL, Diana Gonçalves. 1995. O exer- Aracaju dos anos dourados. São Cristóvão,
radores dos jornais estudantis. Verificar cício disciplinado do olhar: livros, leituras e Universidade Federal de Sergipe. (Dissertação
de quais grupos sociais eram oriundos práticas de formação docente (Instituto de de mestrado). No caso da bibliografia sergipa-
Educação, 1932-1937). São Paulo, Faculdade na sobre o assunto, mesmo um trabalho sin-
e a que tipo de estudante dirigiam as
de Educação-USP. (Tese de Doutoramento); tonizado com as tendências mais atualizadas
suas mensagens. Todos eles deram
CATANI, Denice B. e SOUSA, Cynthia P. de. dos estudos de história da educação brasilei-
grande contribuição à circulação dos 1999. Imprensa periódica educacional paulis- ra e de juventude, como o desta última auto-
padrões culturais brasileiros do século ta (1890-1996). São Paulo, Plêiade; MARGOT- ra, passa ao largo do problema da imprensa
XX e certamente incorporaram às suas TO, Lílian R. 2000. A Psicologia chega à esco- estudantil.
práticas profissionais muitas experiên- la: o saber psicológico nos periódicos educa- 5. Cf. LEVI, Giovanni e SCHMITT, Jean
cionais (São Paulo 1890-1930). São Paulo, Claude. 1996. História dos jovens I: da antigui-
cias que ajudaram a formar a mentali-
Faculdade de Educação da USP. (Tese de Dou- dade à era moderna. São Paulo, Companhia
dade brasileira das décadas seguintes.
toramento); CARVALHO, Marta Maria Chagas das Letras; LEVI, Giovanni e SCMITT, Jean Clau-
É importante saber das práticas que a de e VIDAL, Diana Gonçalves (Orgs.). 2000. Bi- de. 1996. História dos jovens 2: da época con-
vida intelectual do período estudantil blioteca e formação docente: percursos de lei- temporânea. São Paulo, Companhia das Le-
impuseram a esses sujeitos e como tura (1902-1935). Belo Horizonte/São Paulo, tras; POERNER, Arut José. 1968. O poder jo-
muitos deles irradiaram esses padrões Autêntica Editora/Centro de Memória da vem. 2ª. Ed. Rio de Janeiro, Civilização Bra-
Educação - FEUSP, FINEP. 96p. sileira; FORACCHI, Maria Alice. 1972. A juven-
de cultura.
3. Cf. BARRETO, Luiz Antônio. 2001. “Sergi- tude na sociedade moderna. São Paulo, Pio-
A vida estudantil desvelada através
pe e os ideais estudantis”, I. II. III, IV, V e Final. neira; FÁVERO, Maria de Lourdes A. 1994. A
dos jornais aqui examinados é revela- In: Gazeta de Sergipe. 14 a 20 de janeiro. UNE em tempos de autoritarismo.Rio de Ja-
dora de muitas contradições daquele 4. Cf. BRITTO, Maria Zelita. 1999. Em des- neiro, Editora da UFRJ; SOUSA, Janice Tirelle
período: ao mesmo tempo em que compasso com o regime militar: os estudan- Ponte de. 1999. Reinvenções das utopias: a
procurava criar um sentimento de tes sergipanos e a resistência a tutela militar. militância política dos jovens nos anos 90. São
São Cristóvão, Universidade Federal de Sergi- Paulo, Hacker; ALBUQUERQUE, José Augusto
amor para com a instituição escolar,
pe. (Monografia); CRUZ, José Vieira (Org.) et Guilhon. 1997. Movimento estudantil e a con-
era instrumento revelador dos seus
alli. 1996. O Centro Popular de Cultura da sciência social na América Latina. Rio de Ja-
problemas e fragilidades; forjava um União Nacional dos Estudantes e a UNE-Vo- neiro, Paz e Terra; BERLINCK, Manoel T. 1984.
discurso cívico de amor à pátria e tam- lante em Sergipe (1962-1964). (Monografia); O Centro Popular de Cultura da Arte da UNE.
bém denunciava os problemas sociais CRUZ, José Vieira. 1998. O Centro Popular de Campinas, Papirus. FORACCHI, Maria Alice.
brasileiros; abria espaços para as ma- Cultura da União Estadual dos Estudantes Ser- 1965. O estudante e a transformação da so-
gipanos e os movimentos culturais do início ciedade brasileira. São Paulo, Companhia Edi-
nifestações dos jovens comunistas e
dos anos 60: 1962-1964. Aracaju, DHI/UFS. tora Nacional; LIMA, Haroldo & ARANTES,
da juventude integralista; criticava o
(Monografia); MENEZES, Magna. As idéias ce- Aldo. 1984. História da Ação Popular da JUC
discurso feminista, mas também dava pecistas no Teatro Gato de Botas em Aracaju: ao PC do B. 2ª. Ed. São Paulo, Alfa-Omega;
espaço à presença de mulheres. Os 1962-1964. Aracaju, DHI/UFS; OLIVEIRA, Ana PINTO, Álvaro Vieira. 1986. A questão da uni-
periódicos examinados nos dizem da Júlia Lima Máximo. 1999. A atuação dos jucis- versidade. 2ª. Ed. São Paulo, Cortez/Autores
intensidade da vida estudantil em ins- tas em Aracaju. São Cristóvão, Universidade Associados; SANFELICE, José Luís. 1986. Mo-
Federal de Sergipe. (Monografia). PEREIRA, vimento estudantil: a UNE na resistência ao
tituições escolares públicas como o
Carla Cristina Alves. 1997. “A luta por um golpe de 64. São Paulo, Cortez/Autores As-
Colégio Atheneu e a Escola de Co-
mundo mais justo...”: atuação do movimento sociados; VENTURA, Zuenir. 1998. 1968: o
mércio Conselheiro Orlando, mas tam- estudantil do Colégio Estadual de Sergipe - ano que não terminou. Rio de Janeiro, Nova
bém nos falam da importância de um CES. 1964-1968. Aracaju, DHI/UFS. (Mono- Fronteira.
tipo de instituição escolar para o qual 6. Cf. POERNER. Op. cit. pag. 131.
necessitamos olhar sem as viseiras do 7. Idem. Pag. 133.
8. Ibidem. Pag. 115.
preconceito: a escola privada e o vigor
9. Idem, ibidem. Pag. 125.
das suas práticas, como é possível ob-
10. Idem.
servar através dos jornais publicados 11. Cf. BARRETO, Luiz Antônio. Op. Cit.
por estudantes dos colégios Tobias 12. Cf. GRAÇA, Tereza Cristina Cerqueira da.
Barreto e Jackson de Figueiredo. Op. Cit. Pag. 179.

82 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


Universidade, Estado e Educação

Alexsandro Sousa Brito1

O crescente interesse do
Banco Mundial pela educação
no Brasil: razões explicativas.
1. Introdução. políticas educacionais; o que parece lhador dotado de novos atributos. É
A relação entre o Banco Mundial e justificar-se pelo entendimento que faz essa a razão pela qual vem concen-
as políticas educacionais é resultado o Banco Mundial de que “a educação trando esforços na melhoria da educa-
de uma parceria de três décadas. Ape- é requisito fundamental para assegu- ção, principalmente a básica. No en-
sar de ser algo relativamente recente, rar o desenvolvimento a longo prazo, tanto, partindo da observação de co-
passou por diferentes enfoques, seja aliviar a pobreza e reduzir a desigual- mo as políticas educacionais vêm sen-
em decorrência do processo de rees- dade de renda” (BANCO MUNDIAL, do implementadas, norteadas no
truturação tecnológica, dos programas 2000), e de que, segundo Gonzalez marco teórico ideológico neoclássico,
de ajustes estruturais de segunda gera- (1990), as imperfeições na oferta de a partir da teoria do capital humano e
ção ou mesmo pelos esforços de de- trabalho, gerando desequilíbrios no da lógica do custo-benefício, acredita-
mocratização do ensino. Mas é a partir mercado de trabalho e na distribuição se que o destaque dado a Educação,
da década de 90 que se nota a vee- de renda, são conseqüências de uma principalmente nos anos 90, estaria
mência dada, por esse organismo, ao má formação técnica e básica, sendo sendo outro instrumento político-ideo-
financiamento (Gráfico 1) e gestão das necessária a construção de um traba- lógico utilizado por esse organismo

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 83


Universidade, Estado e Educação

para legitimar a situação de exclusão e tos políticos e sociais, na década de 80, cação assume o papel de veículo polí-
concentração provocadas, provavel- tiveram pouca ou nenhuma influência tico para sedimentação das matrizes
mente, pela adoção do pacote de re- dessa inserção na agenda do Banco. ideológicas do neoliberalismo, que
formas estruturais de primeira e segun- Apesar de a Constituição de 1988 re- tem o Banco Mundial como seu princi-
da geração, de cunho neoliberal, im- presentar grandes mudanças, principal- pal representante.
posto pelo Banco Mundial, nestas duas mente sociais, o que se nota é que, no Para uma leitura clara da natureza
últimas décadas, fazendo parte ainda tocante à Educação, essas mudanças da política educacional que vem sendo
de um amplo programa de corrosão parecem não lograr êxito, principal- orientada pelo Banco Mundial ao Bra-
das bases fundamentais do Estado e mente quando se observa que a dis- sil, torna-se necessário então analisar
do direito público a educação. cussão do Projeto de Lei de Diretrizes e as implicações dos determinantes su-
Gráfico 1 Bases da Educação Nacional, que rei- pracitados bem como verificar como

Empréstimos do Banco Mundial à Educação - Brasil (em US$ milhões)


450,0
400,0

350,0
300,0
250,0

200,0
150,0
100,0

50,0
0,0
1971 1974 1977 1980 1983 1984 1985 1987 1990 1991 1993 1994 1997 1998 1999

Explicar o porquê da prioridade dada vindicava uma gestão educacional que se dá a atuação do Banco Mundial ao
pelo Banco Mundial à Educação, prin- envolvesse e considerasse as propostas longo dessas décadas, que parece es-
cipalmente nesta última década, impli- das entidades educacionais, científicas tar sempre vinculada à dinâmica das
ca entender como a educação se inse- e da sociedade civil, em busca de um relações econômicas e financeiras
re na agenda dos organismos multila- grande pacto nacional que permitisse a internacionais.
terais, verificar se, na realidade, houve superação das condições de funciona-
uma mudança da histórica postura e mento de nossa lamentável educação, 2. Alguns aspectos gerais da
do discurso desse organismo quanto à que estava representado no Projeto de atuação do Banco Mundial.
concepção de desenvolvimento e cres- Lei do deputado federal Jorge Hage (PL Em meados da década de 40, por
cimento econômico e, concomitante- 1258/88), foi posta de lado por um ocasião da conferência de Bretton
mente, verificar se existe essencial- outro projeto que alteraria significativa- Woods3, firmou-se o nascimento dos
mente uma política social. Nesse tra- mente a proposta de educação, sem dois principais organismos supranacio-
balho, partimos do pressuposto que a nenhuma discussão com os setores nais da atualidade, o FMI - Fundo Mo-
inserção da educação na agenda dos educacionais, sindicais ou populares netário Internacional - e o Banco Mun-
organismos multilaterais dá-se, sobre- (ARELARO, 2000). dial, cujas funções seriam, então, res-
tudo, a partir do processo de reestrutu- Assim, pretende-se demonstrar que pectivamente, promover a regulação
ração tecnológica, iniciado na década a prioridade dada à educação, longe econômica permanente do sistema fi-
de 70, e dos ajustes estruturais de de representar um produto das de- nanceiro internacional, que estava en-
segunda geração2, implementado no mandas sociais, está mais atrelada às volto a constantes crises decorrentes
início da última década. alterações estruturais no capitalismo, a da Primeira Guerra e da Grande De-
Esses pressupostos trazem uma partir da reestruturação tecnológica e pressão de 1929, e ajudar no financia-
implicação fundamental: ao que pare- dos ajustes estruturais de segunda ge- mento das economias arrasadas pela
ce, os longos esforços de democratiza- ração, portanto, fruto de uma concep- segunda Grande Guerra; em síntese:
ção empreendidos pelos diversos sujei- ção neoliberal. Nesse contexto, a edu- seriam os protagonistas da reestrutura-

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ção capitalista no pós-guerra. fortalecimento da aliança não-comu- economias centrais, levando a um pro-
Em geral, a atuação do Banco Mun- nista, promovendo assim a assistência cesso de reestruturação tecnológica e
dial, ao longo das últimas cinco déca- econômica, política e militar aos países produtiva nos países industrializados,
das, passou por várias fases, “as quais subdesenvolvidos, face à eminência da bem como a emergência do processo
são freqüentemente associadas a conjuntura bipolar e, por fim, à admi- de globalização7, verificados nessa
modificações de enfoque quanto às nistração das áreas geopolíticas impor- década e deslanchando-se para as se-
estratégias de desenvolvimento a tantes para os Estados Unidos, criando guintes (SOARES, 1996), também con-
serem adotadas em cada momento” para tanto agências de financiamentos tribuíram para reformulação das políti-
(GONZALEZ, 1990: 27). Segundo este especiais6. cas e reorientação dos empréstimos
autor, essas modificações estão dividi- Dessa forma, é plausível considerar àqueles países. Assim, de alguma
das em, pelo menos, quatro fases: a) que, a cada fase, ou a cada nova estra- forma, os projetos financiados com
reconstrução das economias européi- tégia de atuação, o Banco Mundial vi- fins a fomentar o crescimento econô-
as; b) promoção do crescimento das sava responder às situações macroe- mico não foram capazes de pôr fim ao
economias subdesenvolvidas; c) diver- conômicas de risco que se seguiram fenômeno da pobreza, evidenciando
sificação setorial dos empréstimos; d) no pós-guerra. Foi assim quando da in- que o padrão de crescimento, orienta-
financiamento de desembolso rápido, tenção de recuperar as economias eu- do pelo Banco Mundial, até então, po-
para atender à necessidade do balan- ropéias arrasadas pela Segunda Guer- deria estar equivocado.
ço de pagamento dos países subde- ra; quando do direcionamento dos Concomitantemente, insuflava-se a
senvolvidos. empréstimos ao eixo subdesenvolvido, idéia de que a origem do problema
Gonzalez (1990) coloca que essas priorizando as inversões em infra-es- encontrava-se nas condições de saúde
fases foram orientadas pelo movimento trutura, para a suposta promoção do e educação e que as novas condições
econômico-financeiro internacional, de- crescimento econômico; e quando do macroeconômicas exigiam um posi-
preendendo-se daí que, possivelmente, redirecionamento da alocação de re- cionamento diferente destes países.
o Banco Mundial modificava suas estra-
tégias de atuação para acomodar o O atual discurso sobre a “modernização” do Estado
interesse político e ideológico do capi-
tal4, orientando em cada fase o padrão é norteado pelas mesmas medidas que se punha
de crescimento5 dos países subdesen- na década de 80 quando do discurso da
volvidos. Assim observa-se que
“Os determinantes dessa redefi-
“racionalização” do Estado.
nição quanto às estratégias de de-
senvolvimento adotadas, têm sido, cursos, para o combate à pobreza, na A partir da década de 80, marcada
em geral, vinculadas à dinâmica década de 70, em resposta à proposi- pela aguda crise de endividamento,
das relações econômicas e finan- ção de que, nas décadas anteriores, o tanto o FMI quanto o Banco Mundial
ceiras internacionais. Com efeito, Banco Mundial teria funcionado, se- começam a impor programas de ajus-
as transformações operadas no gundo Gonzalez (1990), como um veí- tes estruturais8 às economias endivida-
âmbito da economia mundial en- culo de propagação de um crescimen- das, influenciando a formulação de po-
sejaram novas funções ao Banco, to concentrador e excludente junto líticas econômicas e a legislação, com
fazendo com que fossem crescen- aos países subdesenvolvidos. vistas à “transformar a estrutura econô-
temente ampliados os limites de Segundo Serra (1991), esta última mica dos países, de forma a fazer desa-
sua atuação, em especial, nos paí- constatação teria sido responsável pe- parecer características julgadas indese-
ses subdesenvolvidos” (GONZALEZ, la nova mudança no eixo de alocação jáveis e inconvenientes ao novo padrão
1990: 28). dos empréstimos àqueles países, prio- de desenvolvimento (neoliberal): pro-
Em síntese, pode-se dizer, segundo rizando a diversificação setorial, onde tecionismo, excesso de regulação, in-
Soares (1996), que as várias transfor- são proeminentes os setores da Saúde tervencionismo, elevado grau de intro-
mações pelas quais passou a atuação e Educação. Por outro lado, em nível versão, entre outras”. (SOARES, 1996:
do Banco Mundial objetivaram, entre macroeconômico, o próprio esgota- 23); e, de acordo com o Banco Mun-
outras coisas, a alavancagem do setor mento do eixo de acumulação iniciado dial, promover o desenvolvimento sus-
industrial na reconstrução européia, o no pós-guerra e a crise estrutural das tentável dos países subdesenvolvidos,

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assegurando com isso o pagamento da culo à superação da própria crise, face 3. Política educacional na
dívida. Nesse aspecto: à elevação da transferência de recur- agenda dos organismos
“...a concessão dos empréstimos sos9 para o pagamento dos serviços da multilaterais: segunda geração.
setoriais e de ajuste estrutural cum- dívida e ao mecanismo das condicio- As reformas de primeira geração
pre, portanto, a função de garantir a nalidades10, que inviabilizavam o apor- compreenderam os ajustes estruturais
presença do Banco, tanto no pro- te de capitais. Em segundo lugar, os empreendidos a partir da década de
cesso de ajuste dos países subde- programas neoliberais de ajustes con- 70 até os anos 80, iniciadas, sobretu-
senvolvidos, quanto na definição tribuíram para o que vem se chaman- do, quando do fracasso das políticas
das mudanças que devem ser ope- do no Brasil de “a década perdida” de orientação keynesianas. No entan-
radas em sua estrutura produtiva (anos 80), onde se criou um conjunto to, como apontado anteriormente, es-
para atender à dinâmica do comér- de políticas e instrumentos econômi- tas reformas implicariam uma eleva-
cio exterior” (GONZALEZ, 1990: 29). cos incapazes de construir as bases ção da pobreza12 em toda América La-
Ainda a esse respeito, Soares (1996) para um desenvolvimento, tornando a tina. Essa constatação, segundo Mulot
destaca que: economia nacional vulnerável e am- (1998), atrelada ao temor de que o in-
“...o Banco Mundial ganhou im- pliando o fosso entre ricos e pobres. cremento da pobreza desestabilizasse a
portância estratégica na reestrutu- Não obstante às críticas levantadas ordem política e social, através da poli-
ração econômica dos países em quanto aos resultados do programa de tização dos trabalhadores, favoreceu à
desenvolvimento por meio dos ajustes estruturais, o Banco Mundial, mudança do discurso dos organismos
programas de ajuste estrutural... o ao que parece, não alterou, significati- multilaterais, no sentido de reconhecer
Banco Mundial tornou-se o guar- vamente, sua linha de atuação, im- que havia tido demasiado confiança
dião dos interesses dos grandes plantando, a partir de 1994, um novo nos mecanismos de mercado.
credores internacionais, responsá- pacote de ajustes, chamado de “refor- A partir da década de 90, implanta-
vel por assegurar o pagamento da mas de segunda geração”11 . Essas re- ram-se as chamadas reformas de se-
dívida externa e por empreender a formas apenas ampliam os limites de gunda geração, como apontadas aci-
reestruturação e abertura dessas intervenção desses organismos na ma, caracterizadas pela luta contra a
economias, adequando-as aos no- concepção das políticas públicas. Nes- pobreza, em que o Banco Mundial des-
vos requisitos do capital globaliza- se novo pacote, enfatiza as atividades ponta como principal protagonista. Em-
do”. (SOARES, 1996: 20 - 21) de combate à pobreza e implementa bora houvesse uma mudança do dis-
No entanto, para este último autor, programas nas áreas de meio ambien- curso e não se tenha, a partir de então,
esses programas de ajustes não logra- te, educação e saúde. Com isso nova- dado tanta ênfase àquelas soluções
ram êxito, sobretudo porque primeira- mente atenua as críticas aos ajustes, que priorizavam apenas os mecanis-
mente os empréstimos para as refor- bem como as tensões sociais que por- mos de mercado, mas reconhecida a
mas estruturais tornaram-se um obstá- ventura surgissem e que comprome- importância do Estado e da sociedade
tessem a continuidade das reformas, civil, e apesar do volume de projetos
“ou seja, a recente ênfase no combate sociais financiados nesta década, se-
à pobreza tem um caráter instrumental gundo Salamá e Valier (1986) “el con-
onde os programas sociais visam tenido de los nuevos programas de
garantir o suporte político e a funcio- ajuste no há cambiado profundamente,
nalidade econômica necessários ao por lo menos a nível económico (SA-
novo padrão de crescimento baseado LAMÁ & VALIER apud MULOT, 1998: 3)”.
no liberalismo econômico” (SOARES, Segundo Mulot (1998), a mudança
1996: 27). do discurso usa os mesmos meios pa-
ra implantação dos ajustes estruturais:
a exemplo, enfatiza que o atual discur-
so sobre a “modernização” do Estado
é norteado pelas mesmas medidas
que se punha na década de 80 quan-
do do discurso da “racionalização” do
Estado.

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Universidade, Estado e Educação

No entanto, para compreender a alívio da extrema pobreza, as quais, não vão de encontro aos princípios
atual funcionalidade das chamadas como visto, integram as políticas de neoliberais. A principal lógica dessas
reformas de segunda geração, é eluci- ajustes estruturais. novas políticas sociais está na concilia-
dativo verificar que as supostas novida- Segundo ainda, o mesmo autor, ou- ção de eficácia e equidade (MULOT,
des nessas reformas, segundo o mes- tro fator importante na análise dessas 1998). Nesse sentido, as políticas so-
mo autor, são, em primeiro lugar, que reformas de segunda geração está no ciais, nesse tipo de orientação, “permi-
“se admite que, por causa del rigor reconhecimento da idéia de “falhas do ten que el enriquecimiento de unos no
presupuestario impuesto por el BM y mercado” que, no nosso caso, interes- impide el enriquecimiento de otros, y
FMI, el Estado no podia cumplir con sa apenas dizer que “significa que los particularmente de los más pobres
este papel [o de produção de normas agentes económicos privados, y más (MULOT, 1998:6)”.
e coordenação de políticas que dêem ampliamente los mecanismos de mer- O autor apresenta alguns argumen-
maior espaço às iniciativas privadas] cado tradicionales, no son más capa- tos que evidenciam que a Educação é
(MULOT, 1998: 4)”; aqui precisa-se en- ces que el Estado para proporcionar o instrumento, por excelência, nessa
fatizar que na concepção neoliberal o servicios sociales a los grupos margi- conciliação: primeiro por que favorece
Estado não é capaz de produzir nem nalizados. Al contrario, refuerzan la ex- que a repartição da riqueza não se dê
de distribuir, em segundo lugar, estão clusión de esos grupos (Id.Ibid.:5)”. através da distribuição de renda, mas
a emergência de preocupações sociais, Com o reconhecimento de que o mer- na igualdade de oportunidades. Assim,
como apontado acima. Porém, cado não soluciona o problema da po- “No se quiere toma lar riqueza de
“La integración del campo social breza e que, por outro lado, a ação unos ciudadanos para ayudar di-
dentro de las políticas de ajuste es- estatal deve ser evitada, dá-se então rectamente a los excluidos, por
tá justificada o legitimada por con- apromoção de novos agentes de cará- medio de impuestos: esta era la
sideraciones de ciertos mecanis-
mos de mercado. En primer lugar,
As idéias de descentralização, desconcentração,
se pone en tela de juicio el concep-
to de “efecto de derrame”, basado eqüidade, participação, voluntariado, etc... ,
en la “curva de Kuznets” [10]. An- que são os eixos temáticos das grandes políticas
tes, no se tomaban en cuenta los sociais, não vão de encontro aos princípios neoliberais.
aspectos sociales porque prevale-
cía la idea de que el crecimiento
económico generaba por sí una al- ter solidário; é o caso da grande massa técnica utilizada po el Estado Provi-
za de los ingresos. Sin embargo da sociedade civil: ONGs, fundações, dencia. La ayuda no debe ser obli-
después de un período inicial, más associações, etc.. o que torna a manter gatoria, sino voluntaria, lo que ex-
o menos largo, de alza de las desi- o caráter privado da ação social. plica también la importancia de los
gualdades. Así, después de un cier- A inserção desses novos agentes faz agentes privados desinteresados.
to tiempo, el crecimiento provoca- parte do receituário neoliberal, uma Por otro lado, las políticas aplicadas
ría una disminución de las desi- vez que, como agentes privados, não deben incitar al beneficiario a
gualdades. Se minimizan pues los logram o lucro e são agentes apolíticos actuar para mejorar su situación.
problemas de distribución de la ri- que defendem apenas a melhoria das En consecuencia, las medidas ten-
queza, donde intervienen elemen- condições de vida dos indivíduos. drán como objetivo igualar el acce-
tos sociales (conflictos distributi- É a partir daí que se explicam as so a los instrumentos que permitan
vos), y no exclusivamente mecanis- grandes orientações das novas políti- al pobre de salir de su situación
mos de mercado (MULOT, 1998:4,5)”. cas sociais. Se se observa o clássico (Id.Ibid.: 6)”
No entanto, esse período de desi- “Capitalismo e Liberdade”, de Milton Segundo porque a Educação cria um
gualdades, ultrapassou muitas déca- Friedman, um dos pais do atual neoli- ambiente de eqüidade e igualdade à
das, sem contudo, provocar redução; beralismo político-econômico, vê-se medida que possibilita a todos a opor-
ao contrário, consolidava-se cada vez que as idéias de descentralização, des- tunidade de melhorar sua condição.
mais como excludente e concentrador, concentração, eqüidade, participação, Nesse contexto, vê-se que o próprio
daí o que justificaria a instauração de voluntariado, etc... , que são os eixos indivíduo é responsável por suas con-
políticas sociais compensatórias para o temáticos das grandes políticas sociais, dições de vida; deve-se, portanto, pro-

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Universidade, Estado e Educação

ver instrumentos (crédito, saúde, etc..)


para que todos os indivíduos tenham
A reorganização da economia mundial
as mesmas oportunidades. A Educa-
ção age, assim, igualando a capacida- foi lograda sob a ordem da “competitividade” e
de de utilizar os meios de elevação da da “eficiência” que, por sua vez, vaticinam a morte
renda. Nesse sentido,
“...la educación es, en esta pers- das economias que não se adaptam a esses princípios.
pectiva, uno de los médios de enri-
quecimiento más importante, por ternacionais, há também um outro as- mento geral, a iniciativa e a capacida-
dos razones. Primero, la educación pecto dessa inserção: a própria mu- de de raciocínio lógico, visando à reso-
teóricamente revela los talentos, dança do eixo de acumulação capita- lução de situações-problema. É nessa
las capacidades de los individuos. lista. perspectiva que surgem categorias co-
En segundo lugar, dichas capacida- Até meados da década de 70, a edu- mo formação polivalente e abstrata,
des, garantizadas por el sistema cação, vinculada ao modelo fordista13 e espírito empreendedor, qualidade to-
educativo a través notablemente ao Estado de Bem-Estar Social, estava tal, flexibilidade, educação para com-
del diploma, se valorizan directa- voltada para o tecnicismo e especifis- petitividade, etc., jargões muito em vo-
mente en mercado de trabajo mo, o que se justificava pelo elevado ga ultimamente que refletem algumas
(Id.Ibid.: 7)”. grau de mecanização e profunda divi- das características propostas pelo novo
são técnica do trabalho, objetivando a modelo14 de formação básica e profis-
Por último, a Educação também é produção em larga escala e o consu- sional, naquilo que se vem chamando
importante porque contribui para for- mo de massa, e pelo próprio padrão de sociedade pós-industrial15. No en-
mação de capital humano, onde o in- de acumulação vigente, sustentado tanto, entendemos esse capítulo da
cremento salarial depende do melho- nos recursos naturais e nas fontes de história, não como um outro contexto
ramento da formação individual; aqui energia. social, mas como uma fase cíclica da
se vê a Educação como instrumento Em fins da década de 70, o modelo história do sistema capitalista, entendi-
de elevação da produtividade e conse- fordista, bem como o padrão de acu- do como um conjunto cíclico e contra-
qüentemente de crescimento e enri- mulação vinha se mostrando saturado, ditório que cria e recria elementos de
quecimento individual. incorrendo na queda da produtivida- superação para suas próprias contradi-
Em geral, a Educação é importante, de, “em razão da obsolescência da ba- ções, como na crise de superprodução
dentro desses princípios neoliberais, se tecnológica que lhe dava sustenta- de 1929, quando o liberalismo econô-
porque legitima a desigualdade como ção” (FERRETTI, 2000: 55), e da pró- mico, até então protagonista do siste-
resultado das escolhas individuais, uma pria conexão entre as economias mun- ma, cedeu lugar à intervenção estatal,
vez que possibilita a todos às mesmas diais, fazendo com que a estrutura do atendendo aos pressupostos da Teoria
oportunidades e desenvolve a capaci- Estado-Providência começasse a ruir e Keynesiana, iniciando a fase do Wel-
dade de utilização dos meios de eleva- não respondesse mais às necessida- fare Estate.16
ção de renda individual. Portanto, nu- des de acumulação do capital. É nesse Com a crise do Welfare Estate e do
ma sociedade eqüitativa que possibilita ínterim que se processa uma nova re- modelo fordista de regulação social,
a igualdade de oportunidades, a desi- estruturação produtiva, baseada nas criam-se os pressupostos para redefi-
gualdade é eticamente justa, porque é mudanças tecnológicas ocorridas nos nição das políticas públicas de enfren-
um produto de comportamentos indi- ramos da microeletrônica, microbiolo- tamento da crise do modelo capitalis-
viduais (MULOT, 1998). gia e na informática, que redefiniriam ta de produção, em que as ações polí-
a organização e divisão da produção e ticas são reorientadas sob a égide do
4. Política educacional na promoveriam uma nova sociabilidade esvaziamento do Estado de Bem-Estar
agenda dos organismos do capital. Social. Nesse afã de redefinição e reo-
multilaterais: processo de Nesse novo contexto, a educação rientação, com vistas à supressão dos
reestruturação tecnológica. básica exigida pelo mercado ganha pontos de estrangulamento do mode-
Por outro lado, além do caráter ideo- novos contornos: passa de no mínimo lo capitalista, há a ascensão de outro
lógico da inserção das políticas educa- cinco para doze anos de escola, exigin- fenômeno: “as grandes corporações
cionais na agenda dos organismos in- do um perfil que prioriza o conheci- transnacionais assumem os centros de

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poder em nível planetário, em detri- papel do Banco Mundial como guar-


mento dos Estados Nacionais, escua- dião dos interesses dos credores inter-
das em organizações financeiras como nacionais, em sua missão de assesso-
o Fundo Monetário Internacional (FMI), ria técnica e financeira aos países lati-
o Banco Interamericano de Desen- no-americanos.
volvimento (BID), o Banco Mundial, A internacionalização do capital, a
etc.” (SGUISSARDI, apud FERRETI, ascensão das corporações transnacio-
2000: 56), promovendo intensa inter- nais e dos organismos multilaterais, a
nacionalização do capital. A exemplo, mudança da base técnica, concomi-
segue o citado por Beto (2000) em tantemente, à transição para um novo
alusão ao controle do poder em nível eixo de acumulação capitalista, a fa-
planetário e à intensa internacionaliza- lência do Estado de Bem-Estar Social
ção do capital: com seu jugo de gastos, na verdade,
“A Ford é a segunda maior em- são premissas para inauguração da
presa do mundo, depois da Gene- chamada “nova ordem econômica
ral Motors. O faturamento da Ford mundial”, pautada no velho liberalis-
em 1998 foi de US$ 147 bilhões. O mo clássico17 e na globalização, os “Se o consenso difundido nas
da GM, US$ 164 bilhões. No entan- quais, gradativamente, além de obs- décadas de 50 e 60 era de que o
to, exige que o governo brasileiro truírem a intervenção estatal, vêm cas- futuro pertencia ao capitalismo
financie sua implantação na Bahia, trando a gestão das políticas públicas sem perdedores, seguramente ad-
dispensando-a de pagar imposto do Estado18, o que apenas ratifica a evi- ministrado por governos nacionais
até o ano 2010. A Ford deixará de dência de que a gestão do poder deci- atuando em conjunto, as décadas
recolher aos cofres públicos, por sório, nas políticas públicas, está sub- posteriores de 80 e 90 são domi-
ano, R$ 180 milhões! Eis um caso metido, a esses organismos, entre os nadas por um consenso baseado
típico de avareza empresarial. quais destacamos o Banco Mundial e em suposições contrárias, de que
(...) Em 1980, apenas 30% das o FMI, através das imposições de suas os mercados globais são incontro-
receitas dos filmes americanos vi- políticas de ajustes estruturais. láveis e de que o único caminho
nham de fora dos EUA. Hoje, Hol- para evitar tornar-se um perdedor -
lywood obtém 50% de suas recei- 5. Reestruturação produtiva seja como nação, empresa ou indi-
tas no exterior. Em 1987, a indústria e política educacional víduo - é ser o mais competitivo
cinematográfica dos EUA ocupava Dentro desse outro aspecto, político- possível (HIRST e THOMPSON,
56% do mercado europeu. Hoje, econômico, torna-se relevante de- 1998: 20)”.
abocanha 70%. No Brasil a fatia é monstrar as implicações dessa reestru-
de 83%! Menos de 1/3 dos progra- turação produtiva sobre as políticas Como, na dinâmica capitalista, a con-
mas de TV transmitidos na América públicas relacionadas à educação e ao tradição é parte inerente de seu funcio-
Latina é produzido no Continente e trabalho, inseridas no ideário neolibe- namento e como, nesse modo de pro-
62% nos EUA”. (BETO, 2000: 14, 20) ral, uma vez que já se percebeu que a dução, os conflitos de classes são in-
reorganização da economia mundial conciliáveis, mais do que em qualquer
É importante citar esse fenômeno foi lograda sob a ordem da “competi- outro momento, na crise, a força de tra-
porque uma das principais implicações tividade” e da “eficiência” que, por balho passa a ser uma área de ampla
dessa tomada de poder, em nível pla- sua vez, vaticinam a morte das econo- dificuldade. Nesse caso, a superação
netário, está em promover o que cha- mias que não se adaptam a esses prin- das crises sistêmicas pelo capitalismo
mamos de uma cooptação das políti- cípios. Esses princípios norteadores dá-se, com muito mais ênfase, através
cas públicas, na construção de um são importantes porque inauguram da capacidade de tornar a força de tra-
ambiente jurídico, político e ideologi- um novo consenso político econômico balho funcional ao regime de acumula-
camente favorável aos interesses inter- e social, onde os valores do público, ção do sistema. Nesse sentido,
nacionais, em detrimento de uma do direito e da coletividade são supri- “A disciplinação da força de tra-
agenda política que priorize os interes- midos. O que se explica pelo fato de balho para os propósitos de acu-
ses nacionais. É aí que sobressai o que: mulação do capital - um processo a

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Universidade, Estado e Educação

que vou me referir, de modo geral, que deve ser explorada de maneira reformas propostas educação, sobretu-
como ‘controle do trabalho’- é uma mais intensa e sofisticada, ao do, a partir da Conferência Mundial de
questão muito complicada. Ela menos nos ramos produtivo dota- Educação para Todos, em Jontiem, Tai-
envolve, em primeiro lugar, alguma dos de maior incremento tecnoló- lândia, onde a educação volta a fazer
mistura de repressão, familiariza- gico”. (ANTUNES, 2000:9) parte da agenda política nacional. Ao
ção, cooptação e cooperação, ele- final da década, essas políticas mostra-
mentos que têm de ser organiza- E é esse aspecto, o que mais vem se ram-se frustradas, não pelos argumen-
dos não somente no local de traba- tornando alvo das políticas neoliberais tos comumente aceitos, mas porque
lho como na sociedade como um de adaptação ao contexto mundial, “as políticas educacionais acabaram
todo (HARVEY, 1992: 118)”. através da intervenção dos organismos sendo fortemente direcionadas, tanto
multilaterias, principalmente na Amé- na definição de suas prioridades, quan-
Assim, a socialização do trabalhador rica Latina. to de suas estratégias, pelas orienta-
às condições de produção capitalista, Para Krawczyk (2000), as profundas ções dos organismos internacionais fi-
principalmente nessa “nova ordem transformações surgidas nas áreas ci- nanciadores, principalmente pelo
econômica mundial”, tem que perpas- entífica e tecnológica sugeriram mu- Banco Mundial (KRAWCZYK, 2000: 3)”.
sar todo o controle social desde de ins- danças nas formas de gerir, organizar e Esse direcionamento, antes de tudo,
tituições de educação às religiosas. controlar o processo de trabalho e as denota a redefinição do papel desem-
Percebe-se, assim, que as mudanças tendências verificadas quanto à gover- penhado pelo Banco Mundial que,
desencadeadas pela “nova ordem eco- nabilidade do Estado-nação e o pro- além de financiador, passa a ser ges-
nômica mundial” exigiram, além de cesso de mundialização da economia, tor20 dessas políticas, face à necessida-
novas relações sociais, a produção de de de inserir a Educação nos liames
“um homem que sente, pensa e vive políticos e ideológicos do neoliberalis-
diferente, o que parece ser uma forte mo, para que, entre outras, a reprodu-
razão, dentre outras, para a infinidade ção da força-de-trabalho se realize nor-
de reformas havidas em nível planetá- teada nas novas competências e habi-
rio” (FERRETTI, 2000: 57). Fica clara, lidades já apontadas, visando atender o
portanto, a construção de uma nova sistema de produção vigente.
sociabilidade do capital, que se apro- Nesse contexto, é importante perce-
pria do conhecimento plural e o res- ber que se acentua, então, o papel
tringe à necessidade da nova platafor- desempenhado pela escola como um
ma de produção, onde o eixo central locus de reprodução do padrão da for-
de acumulação transfere-se da apro- ça-de-trabalho exigido pelo mercado,
priação dos recursos naturais e das e como um agente fundamental no
fontes de energias e passa para apro- reenquadramento ideológico na rela-
priação do próprio conhecimento, daí ção capital-trabalho. Sônia Marrach
a necessidade de uma formação bási- (1996), ao falar sobre a retórica neoli-
ca e profissional diferente que mescle, beral para educação, cita três papéis
segundo Ricardo Antunes, o conheci- favoreceram à ascensão do conheci- estratégicos que ela deverá cumprir:
mento científico com o conhecimento mento como a “principal variável na a) atrelar a educação escolar à
laborativo. A este respeito, o mesmo explicação das novas formas de orga- preparação para o trabalho e à pes-
autor destaca que: nização social e econômica - e muitas quisa acadêmica ao imperativo do
“Estabelece-se, então, um com- vezes como condicionante e gerador mercado ou às necessidades da
plexo processo interativo entre tra- de novas desigualdades e diferencia- livre iniciativa;
balho e ciência produtiva, que não ções (KRAWCZYK 2000: 2)”, o que jus- b) tornar a escola um meio de
leva à extinção do trabalho, mas a tifica a importância da gestão da políti- transmissão dos seus princípios
um processo de retroalimentação ca educacional19 e a inserção das polí- doutrinários;
que gera a necessidade de encon- ticas sociais nas agendas dos Estados c) fazer da escola um mercado para
trar uma força de trabalho ainda nacionais. os produtos da indústria cultural e da
mais complexa, multifuncional, A autora chama atenção para as informática; (MARRACH, 1996)

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Universidade, Estado e Educação

Além desse papel pedagógico que marco jurídico y reglamentario; la “...sob o aspecto qualitativo do
as escolas deverão cumprir, como con- modernización del sector público, y custo, sendo os professores, o ma-
seqüências da direção dada às políti- el mejoramiento de las finazas pú- terial didático, o método, e outros
cas educacionais, um outro exemplo blicas... (BANCO MUNDIAL, 2000: mais, entendidos como meros in-
pode ser dado para ilustrar a orienta- 88,89 - grifo nosso) “. sumos, alocados e priorizados à
ção dada pelo Banco Mundial21 à Edu- medida que representem a melhor
cação, atrelando-a aos interesses ma- Embora o Banco defina sua finalida- opção de custo-benefício, em detri-
croeconômicos: no Relatório do Banco de como a de “... incremetar la calidad, mento da qualidade do processo
Mundial de 1999, aponta-se que, no el acceso y la equidad (id.ibid.: 129)”, ensino-aprendizagem ou do méto-
ano de 1998, o Brasil, assim como to- as suas orientações indicam o inverso, do didático-pedagógico, além de
da a América Latina sofreu um declínio haja vista insistirem em que se deva: ser colocada como única alternati-
médio em torno de 2% de seu cresci- “Fomentar a maior diferenciação va para a manutenção do nível de
mento, principalmente pela redução das instituições, incluindo o desen- emprego e renda dos indivíduos,
dos ingressos de capitais, da queda volvimento de instituições priva- sendo estes responsáveis pela sua
dos preços das exportações e pela das; proporcionar incentivos para própria permanência no mercado
desaceleração do comércio mundial e que as instituições diversifiquem as de trabalho, já que o Banco Mun-
ainda como conseqüência da crise da fontes de financiamento, por exem- dial entende que o fenômeno do
Bolsa asiática e da moratória da dívida plo, a participação dos estudantes desemprego não é fruto de um
da Federação Russa. Segundo esse nos gastos e a estreita vinculação desajuste entre a população eco-
mesmo relatório, esses fatores macro- entre o financiamento fiscal e os nomicamente ativa e as ofertas de
econômicos vêm desestabilizando as resultados; redefinir a função do trabalho na atual conjuntura das
economias regionais e apesar de al- governo no ensino superior; adotar relações de trabalho e produção,
guns países dessa região estarem me- políticas que sejam destinadas a mas por uma incompatibilidade
lhorando os ingressos dos fluxos de outorgar prioridade aos objetivos entre o perfil dos que se inserem
capitais, a pobreza e a desigualdade da qualidade e da equidade (BAN- neste mercado e o exigido pelo
continuam graves problemas. Na pers- CO MUNDIAL, 1994 apud SGUIS- novo paradigma produtivo... (BRI-
pectiva do Banco, as estratégias para SARDI, 2000)”. TO, 2000: 50)”.
consecução de um crescimento sus-
tentável e duradouro repousam, princi- Percebem-se, nas duas citações do Esse conjunto temático-ideológico
palmente, nas inversões em capital Banco, os dois principais eixos (de na- contribui para a apologia que faz o
humano, atreladas às famosas refor- tureza economicista e já apontados Banco de que o problema da educação
mas do Estado: acima) de direção da política educa- não diz respeito a um problema de
“La estrategia del Banco (Mun- cional, que se resumem na incorpora- democratização e, sim, de gerencia-
dial) a mediano plazo en América ção da lógica do custo-benefício e da mento, ou seja, a educação passaria,
Latina y el Caribe, al igual que en teoria do Capital Humano que, de for- então, por uma crise de qualidade e
otras regiones, está centrada en la ma bem geral, entende que o investi- não de democratização. Nesse sentido,
reducción de la pobreza. Esa estra- mento no fator humano é um dos de- o Banco atribui a si e às suas linhas de
tegia tiene tres objetivo. En primer terminantes principais para o aumento programas e financiamentos a única
lugar, el Banco se ha propuesto da produtividade e da superação do alternativa de resolver os problemas da
ayudar a eliminar los obstáculos atraso econômico. Nesse contexto, a pobreza e das desigualdades, por isso,
que impiden el crecimiento, lo que educação passa a ser gerida
a su vez reduce la pobreza. Para
que un crecimiento económico sea Como o corolário neoliberal necessita da subjunção
sostenido y más vigoroso será ne- das políticas públicas, a participação do Banco Mundial,
cesario mejorar el capital humano.
a título de cooperação técnico-financeira e de assessoria,
Esto se logrará mediante inversio-
nes para mejorar el rendimiento vem sendo a maneira encontrada para articular
escolar; reformas de los mercados a política educacional nessa base ideológica.
financieros; el mejoramiento del

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Universidade, Estado e Educação

“... alienta a los países a adoptar ticas para educação superior, resumiu
un enfoque que abarque todo el seus esforços apenas no tocante à
sector y de largo plazo; a incorpo- educação básica ou primária (como é
rar la asistencia del Blanco como o caso dos países africanos). O discur-
un elemento integral de los progra- so da qualidade parece resumir-se
mas nacionales; a incluir su finan- apenas às estatísticas de ingresso à Es-
ciamiento en el apoyo más amplio cola. Mas o fato de se olvidar do enfo-
proporcionado por consocios de que que deveria ser dado à educação
donantes, y a aprovechar sus nue- superior não é característica apenas do
vos instrumentos crediticios,... (BAN- Banco Mundial, a própria OIT - Organi-
CO MUNDIAL, 2000: 131 - grifo zação Internacional do Trabalho, por
nosso)”. incrível que pareça, parece priorizar as
inversões no nível fundamental básico,
Nesse entendimento, parece que o por entender ser este o principal fator
Banco descarta a criação e gestão de do maior incremento de produtivida-
uma política autenticamente nacional, competencias y calificaciones en el de:
descarta a capacidade do Estado e da momento oportuno habrá muchas “América Latina se enfrenta, pues,
sociedade de prover políticas públicas más probabilidades de aprovechar con el reto de recuperar su nivel de
que resolvam o dilema social, pelo las nuevas oportunidades y los crecimiento, lo cual va a necesitar pro-
menos, no caso da educação que só nuevos segmentos específicos del bablemente una base de capital hu-
encontra solução na adoção das matri- mercado... Unas inversiones en en- mano sensiblemente mayor para
zes ideológicas do Banco Mundial e de señanza y formación convenientes poder aumentar la productividad, en
seus programas creditícios à educação, y bien encaminadas gracias a una una economía mundial más abierta
que só no ano de 1998, representou menor desarmonía entre la de- que trae consigo unas tecnologías ca-
praticamente 20% (Gráfico 2) do total manda y la oferta de calificaciones da vez más complejas.... Por razones a
dos financiamentos do Banco Mundial pueden traer consigo una creación la vez de productividad y de igualdad
à América Latina e Caribe. Mas essa de empleos productivos en la eco- de oportunidades, procede mejorar la
figura de único redentor da miséria nomía nacional (OIT, 2000: 149 - calidad y el acceso en el nivel prima-
latino-americana é difundida também grifos nossos)”. rio... y los sistemas de formación de-
pela própria OIT - Organização Inter- ben contribuir cada vez más directa-
nacional do Trabalho, que dissemina Não se está dizendo aqui que a for- mente a la elevación del nivel de cali-
com muito fatalismo não existia outra mação, a qualificação e a educação de ficación de la mayor parte posible da la
alternativa cabal senão adequar-se à um modo geral não sejam essenciais población activa (OIT, 2000: 143)”.
imposição mundial: ao desenvolvimento econômico. O O que representa uma grande con-
“Todo país debe tener muy pre- que se critica é o engodo (ideológico) tradição, se se supõe, como o Banco,
sente su posición competitiva inter- fomentado pelos organismos multila- que a crise do emprego e atraso eco-
nacional si quiere mejorar su nivel terais de que a crise estrutural do de- nômico, dizem respeito a um desequi-
de vida... Si tarda en amoldarse a semprego, da alarmante desigualdade líbrio entre a oferta e demanda de em-
la nueva competitividad mundial y de renda e da galopante diferenciação pregos qualificados (BANCO MUN-
a los progresos técnicos, se queda- entre os países ricos e pobres sejam DIAL, 1999; OIT, 1998). Além de não
rá cada vez más rezagado... La conseqüência da disparidade entre o direcionar políticas para educação su-
existencia de una población activa padrão tecnológico e de formação perior, o Banco chega a apontar a pró-
bien formada y calificada engen- educacional existente, como se as víti- pria remuneração dos professores
dra posibilidades superiores para mas desse processo implacável de como um obstáculo ao desenvolvi-
los países, en lo que se refiere a mundialização do capital fossem os mento da educação:
pasar a sectores de mayor valor algozes de si mesmas. “En seminarios que contaron con
añadido y tecnológicamente ade- Outra constatação intrigante está no la participación de altos funciona-
lantados. En la economía mundial, fato de que, durante os últimos anos, rios gubernamentales y otras partes
para un país que tenga las debidas o Banco Mundial não direcionou polí- interesadas... se examinaron las op-

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Universidade, Estado e Educação

ciones de política para los países crise? Quem deve ser consultado, cionalizar o princípio da competição
en que los sueldos de los docentes nessa perspectiva se se pretende que deve regular o sistema escolar en-
son tan altos que obstaculizan o lo- encontrar uma solução para os quanto mercado educacional (id.ibid:
gro de un rápido progreso hacia la problemas que a escola enfrenta 23)”; além de favorecer a centralização
educación... (BANCO MUNDIAL, atualmente? (GENTILI, 1998: 16)”. e, paradoxalmente, a descentraliza-
2000: 131, grifo nosso)”. ção22.
Para o autor, a perspectiva neoliberal Para gerir esse sistema ou fornecer a
Essa verificação é oportuna para se entende que a crise vivida pela educa- cooperação técnica, aponta-se, no pla-
verificar qual o entendimento do Ban- ção, ao contrário do que se aponta, diz no local, a participação do empresaria-
co Mundial, enquanto expoente da po- respeito à incapacidade de se produzir do, e, no plano internacional, o Banco
lítica neoliberal, da situação atual da eficiência, eficácia e produtividade, ou Mundial.
educação nos países pobres, onde se seja, é uma crise de qualidade. “Dessa Nesse contexto, a sustentação social
percebe o elenco das prioridades de forma, interpreta-se que os sistemas para a consolidação dessas políticas
melhor custo-benefício em detrimento educacionais latino-americanos cres- públicas de cunho neoliberal, segundo
das psico-pedagógicas. ceram quantitativamente sem garantir Krawczyk (2000), dá-se através do que
Por outro lado, é interessante verifi- um conseqüente crescimento qualita- se vem chamando de concertación,
car que o Banco entende a crise da tivo (GENTILI, 1998: 17)”. um pacto social que assume um cará-
educação, não como uma crise de Assim aceita-se que existe um pro- ter de “estratégia de governabilidade
democratização do ensino, mas como blema de alocação de recursos em ge- que, na maioria dos casos, apela à sen-
uma crise de gerenciamento. Segundo ral; a escola não é competitiva, por sibilidade dos indivíduos, privilegia os
Gentili (1998), as reformas propostas à isso, emprega mal o dinheiro, não usa pontos consensuais entre os diferentes
educação, a partir da década de 80, racionalmente o espaço físico de que setores envolvidos, pretende que os
além de fazerem parte do conjunto de dispõe, não qualifica o corpo docente conflitos sociais sejam processados na
reformas orientadas para garantir o e não estimula os discentes a serem dinâmica do mercado e/ou através da
ajuste econômico na América Latina, responsáveis quanto aos estudos. ‘cidadania responsável’ e desconside-
essas mudanças acham guarida na Nesse entendimento, o neoliberalis- ra ou diminui significativamente a im-
América Latina porque, sobretudo, são mo aponta o Estado, o sindicato e a portância do dissenso na construção
frutos não de uma imposição da “orto- própria sociedade como os verdadei- das políticas (KRAWCZYK, 2000: 7)”,
doxia neoliberal” dos organismos in- ros responsáveis por essa crise de qua- cuja principal conseqüência está em
ternacionais, mas de uma coalizão de lidade. O primeiro, por ser ineficiente cumprir “...um papel regressivo nas
interesses entre as elites políticas e na gestão do sistema educacional, im- possibilidades de democratização das
econômicas locais e os seus dois prin- possibilitando a criação de um merca- relações sociais porque coloca as
cipais expoentes, o FMI e o Banco do educacional; o segundo, por pres- questões de forma fragmentada, busca
Mundial. É nesse sentido que Gentili sionar a presença do Estado na gestão, diluir a referência ao coletivo e, portan-
abre a possibilidade de se chamar que criação e controle das políticas públi- to, debilita os sujeitos sociais (id.ibid.)”.
há um “consenso de Washington”, na cas; e o terceiro, por incorporar e mos- De qualquer forma, todas essas mu-
Educação. É a partir daí que se obser- trar-se resistente a não romper com danças que vêm solapando a classe
va, a pretexto de contribuir para solu- comportamento vicioso logrado pelo trabalhadora e que tencionam a cons-
cionar uma suposta crise nos sistemas Estado de Bem-Estar, onde o senti- trução de um novo consenso político,
educacionais, a intervenção do Banco mento paternalista de provisão e a ex- pautado nos princípios dos organis-
Mundial nas políticas públicas nacio- pressão do direito público, da gratui- mos multilaterais, que têm empreen-
nais, em particular, na educação que dade e do coletivismo são postas co- dido esforços para despolitizar a edu-
se caracteriza, segundo o autor, mo eixos norteadores, em detrimento cação, são produtos da relação dialéti-
“... tratando de responder quatro da competição, do esforço individual, ca inerente ao conflito entre capital e
interrogações: Como os neoliberais etc... (GENTILI, 1998) trabalho que permanecem bem vivos
entendem a crise educacional? Para superar a crise, dever-se-ia “de- e inconciliáveis.
Quem são, segundo essa perspec- senvolver um conjunto de propostas Assim, pensar que a lógica neolibe-
tiva, os culpados? Que estratégias em níveis macro e microinstitucionais ral, “que parte do pressuposto de que
deve ser definidas para sair de tal mediante as quais seja possível institu- a economia internacional é auto-regu-

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Universidade, Estado e Educação

lável, capaz de vencer as crises e, pro- Gráfico 2


gressivamente, distribuir benefícios Comparação do percentual de participação da Educação
pela aldeia global, sem a necessidade nos empréstimos totais do Banco Mundial.
de intervenção do Estado” (MARRACH,
1996: 42), aplicada à Educação, vem 25 Mundo América Latina e Caribe
humanizando a condição do trabalha-
dor é uma falácia, pois:
20
“a súbita redescoberta e valoriza-
ção da dimensão humana do traba-
lhador está muito afeta a sinais de
15
limites, problemas e contradições
do capital na busca de redefinir um
novo padrão de acumulação com a
10
crise de organização e regulação
fordista, do que a autonegação da
forma capitalista de relação huma-
5
na” (FRIGOTTO, 1996: 144).

No entanto, como o corolário neoli- 0


beral necessita da subjunção das polí- 1990-1994 1995 1996 1997 1998 1999
ticas públicas, a participação do Banco Fonte: Banco Mundial,1999

Mundial, a título de cooperação técni-


Fonte: Banco Mundial, 1999
co-financeira e de assessoria, vem sen- NOTAS: empréstimos:
do a maneira encontrada para articular 1. Bacharel em Ciências Econômicas e mes- a) pressões exercidas pelos países subde-
trando do Programa de Pós-Graduação em senvolvidos, face ao crescimento de sua parti-
a política educacional nessa base ideo-
Políticas Públicas da Universidade Federal do cipação como membros do FMI;
lógica, escamoteando, na realidade, b) necessidade de redirecionar os emprés-
Maranhão - UFMA (alex_brito@yahoo.com).
políticas econômicas como políticas timos, face a emergente recuperação japone-
sociais. 2. Entendemos que tanto o processo de sa e européia;
Portanto, a relação entre o Banco reestruturação tecnológica quanto os ajustes c) o deslocamento havido na política norte-
Mundial e as políticas educacionais, estruturais são faces de um mesmo fenôme- americana, de apoio aos países subdesenvol-
no, que diz respeito às alterações estruturais vidos, preferindo a mediação multilateral a
objetiva apenas submeter a Educação
no capitalismo, na transição da orientação bilateral;
ao discurso neoliberal, onde segundo
econômica keynesiana para neoclássica.
Sônia Marrach, “a Educação deixa de Assim a separação é meramente didática. 5. Quanto a este aspecto, Gonzalez (1990)
ser parte do campo social e político observa que as linhas de financiamentos dis-
para ingressar no mercado e funcionar 3. A Conferência Monetária e Financeira poníveis aos países subdesenvolvidos revela-
à sua semelhança” (MARRACH, 1996: Internacional das Nações Unidas e Associa- vam a concepção de crescimento adotada
das, ou simplesmente Conferência de Bretton pelo Banco Mundial, que entendia o desenvol-
43), característica que se torna proe-
Woods, como ficou conhecida por ter sido se- vimento como a mudança da base agrícola
minente, a partir dos anos 90, quando para a industrial, onde caberia ao Estado a cria-
diada na cidade de mesmo nome nos E.U.A.,
os empréstimos ao setor educacional, foi onde se congregaram os prepostos dos ção da infra-estrutura básica para a expansão
logo nos primeiros anos, chegam a re- futuros países vitoriosos da Segunda Guerra, dos capitais privados nacionais e estrangeiros.
presentar pouco menos de 30% para, segundo Silva (1996), reconstruir a es-
(Gráfico 2) do total. trutura internacional do comércio e das finan- 6. O Banco Mundial atualmente é formado
ças, assegurando para tal uma nova Ordem por cinco agências: o BIRD - Banco Interna-
Internacional, que regularia o jogo econômico cional de Reconstrução e Desenvolvimento, a
e financeiro do mundo. AID - Associação Internacional de Desenvol-
vimento, a CFI - Corporação Financeira Inter-
4. A este respeito, ressaltamos o que colo- nacional, a AMGI - Agência Multilateral de Ga-
ca esse mesmo autor ao mencionar alguma rantia de Investimentos e o CIADI - Centro In-
das razões que redefiniram os países subde- ternacional para Arbitragem de Disputas sobre
senvolvidos como o novo foco de alocação de Investimentos, além de administrar o GEF -

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Universidade, Estado e Educação

Fundo Mundial para o Meio Ambiente. Estas f) reforma do sistema educacional; modelo rígido do sistema taylorista e fordista,
agências foram criadas a fim de permitir que g) implementação de programas sociais tendo como conseqüência um trabalhador
todos os Estados Nacionais, levando em con- para grupos mais pobres; flexível com uma nova qualificação humana.
sideração suas especificidades, pudessem ser h) reforma institucional e reestruturação do 16. Também conhecida como a fase áurea
mutuários do Banco, além de garantir sua in- Estado; do Capitalismo, constituía-se num sistema de
fluência em áreas geopolíticas consideradas livre-empresa, com acentuada participação do
importantes. 12. Na Guatemala, por exemplo, a década poder estatal, responsável pela promoção de
de 80 foi caracterizada pelo aumento gritante padrões de vida mínimo (saúde, educação,
7. A este respeito vale ressaltar que todos do percentual de pobres no país: no início da moradia, etc.), e pelo desenvolvimento das
esses processos contribuíram para supressão década as famílias pobres representavam condições de produção de bens e serviços
das concepções keynesianas e a ascensão das 63% da população, em 1986 eram 74% e em sociais, bem como o controle do ciclo econô-
teorias monetaristas neoliberais, que viriam a 1989 representavam 76%. Paralelamente, o mico e os ajustes necessários à produção, le-
ser o alicerce ideológico das políticas do nível de indigência passou de 32% em 1980 vando em consideração os custos e as rendas
Banco Mundial para as próximas décadas. para 54% em 1989. sociais, cabendo à iniciativa privada o incre-
mento e a realização da produção. (SANDRO-
8. Segundo esse autor esses programas 13. Segundo Frigotto ( apud PINTO, 1999), NI, 1999)
estavam embasados em: as características principais do fordismo são:
a) equilíbrio orçamentário; a) uma determinada forma de organização 17. Hoje chamado de neoliberalismo, visa
b) abertura comercial; do trabalho fundada em bases tecnológicas adaptar as diretrizes do liberalismo econômi-
c) liberalização financeira; que se pautam por um refinamento do siste- co às condições do capitalismo moderno, su-
d) desregulamentação dos mercados do- ma de máquinas de caráter rígido, com divi- jeitando as políticas públicas, inclusive às edu-
mésticos; são específica do trabalho, um determinado cacionais, à lógica do mercado.
e) privatização das empresas e dos serviços patamar de conhecimento e uma determina-
públicos; da composição da força-de-trabalho; 18. A esse respeito, o próprio Presidente
9. A este respeito, Soares (1999) informa b) um determinado regime de acumulação, Fernando Henrique Cardoso em alusão a glo-
que no período entre 1987 a 1997, os desem- fundado numa estrutura de relações que bus- balização admitiu, em matéria publicada pelo
bolsos do BIRD ao Brasil somaram US$ 9,6 bi- cou compatibilizar produção em grande esca- jornal Folha de São Paulo, de 02/11/97, que
lhões, enquanto os pagamentos atingiram la e consumo de massa num determinado “o fenômeno limita efetivamente o âmbito de
US$ 15,5 bilhões e se for considerado o perío- nível de lucro; ação dos Estados Nacionais” (PINTO, 1998)
do que vai de 1980 a 1997, constata-se que o c) e, por fim, um determinado modo de re-
país realizou pagamento no valor total de US$ gulação social que compreende a base ideoló- 19. Um exemplo revelador está na maneira
17,1 bilhões, recebendo US$ 14,3 bilhões, im- gica-política de produção de valores, normas, como se trabalhou a questão do desenvolvi-
plicando numa transferência de US$ 2,8 bi- instituições que atuam no plano do controle mento na América Latina, onde atrelaram as
lhões e uma dívida em 31/12/97 de US$ 5,3 das relações sociais gerais, dos conflitos inter- “reivindicações históricas de democratização
bilhões, evidenciando a tendência negativa capitalistas e nas relações capital-trabalho. da educação - expansão, equidade e integra-
das transferências líquidas nestas duas últi- ção - aos princípios de competitividade, de-
mas décadas. 14. Nesse novo modelo, segundo Liedke, “o sempenho e descentralização (KRAWCZYK,
trabalhador deve ser capaz de administrar, de 2000: 2)”, ou como se entende, atualmente, o
10. Segundo Serra (1999) essas condiciona- identificar problema, saber trabalhar em desenvolvimento econômico, a superação do
lidades representam o corpo de políticas e grupo, tomar iniciativas, perceber que um pro- fenômeno da pobreza e a disparidade desigual
atuações programadas e flexíveis chamadas a blema está para acontecer e tentar impedir da renda, como conseqüência de uma política
reger a utilização dos recursos de forma que que aconteça” (LIEDKE, 2000: 12). educacional direcionada (BRITO, 2001).
responda às preocupações dos estatutos dos
organismos multilaterais; são as bases funda- 15. Segundo o que demonstra em Gentili 20. O Banco Mundial financia a educação
mentais de imposição de condições para utili- (apud FRIGOTTO,1996), esta tese parte de um brasileira há trinta anos, datando de 1971 o
zação de recursos, fazendo com que o país eli- novo modelo de organização social: a socie- primeiro empréstimo concedido (GONZALEZ
mine os obstáculos aos pagamentos externos. dade do conhecimento, que consiste em um et al, 1990). No entanto, os financiamentos
novo tipo de organização industrial baseado iniciais (tanto para o Brasil como para o mun-
11. Os principais eixos norteadores desse em tecnologia flexível, em contraposição ao do) privilegiavam apenas a infra-estrutura,
programa são: sendo somente a partir de 1980, que o Banco
a) aprofundamento do processo de abertu- Mundial publicou seu primeiro documento de
ra comercial; política para a área da educação, abrangendo
b) elevação da poupança interna; daí em diante as áreas de pesquisa, assistên-
c) reforma do sistema previdenciário; cia técnica e consultoria aos governos em
d) estímulo ao investimento privado em política educacional (TORRES, 1996)
infra-estrutura;
e) flexibilização do mercado de trabalho 21. Dessas organizações intergovernamen-

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Universidade, Estado e Educação

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96 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


Homem e Sociedade
Homem e Sociedade

* Valerio Arcary

Teoria das ondas longas Kondratiev e


a recessão mundial: contra-ofensiva
imperialista e estratégia de recolonização
Quais são as causas últimas da pri- lismo e as vagas da revolução mun- 90, em simultâneo ao processo de res-
meira guerra do século XXI? Na com- dial? tauração capitalista na ex-URSS. As
plexa cadeia de fatores próximos, Os atentados do 11 de Setembro cri- duas dimensões desta contra-ofensiva
entrelaçam-se distintas variáveis, aram, nos EUA, as condições políticas são inseparáveis: hegemonia política
desde determinações políticas mais internas que faltavam para que o im- militar e intensificação da exploração
imediatas da nova conjuntura que pério americano desencadeasse uma econômica dos países dependentes. E
respondem à oportunidade de contra-ofensiva política-militar e eco- respondem, em última análise, às ne-
inverter as relações políticas de força nômica de grande fôlego pela defesa cessidades de superação da crise eco-
dentro da sociedade americana de sua hegemonia, em um momento nômica mundial e de derrota das mo-
aberta pela bestialidade dos ataques em que a recessão atinge o coração do bilizações sociais e nacionais que ame-
de 11 de setembro, até necessidades sistema capitalista. Uma estratégia de açam os interesses das quinhentas
geo-estratégicas da dominação na afirmação de seu domínio mundial corporações que controlam
etapa histórica que se abriu com a que corresponde, por sua vez, a uma o governo da maior
restauração capitalista na ex-URSS. política econômica de recolonização potência mundial.
Mas quais são as articulações mais dos países dependentes impulsionada A mídia
profundas destas causas próximas desde o início dos anos
com a situação econômica mundial de
recessão generalizada? Qual o papel
que as guerras contra-revolucionárias
cumpriram, na história do século XX,
para ajudar a recuperação econômica
do sistema e garantir a ordem político-
social indispensável à “boa saúde dos
negócios” do capitalismo? Enquanto
alguns levianamente recorrem à idéia
schumpeteriana de “destruição criati-
va”, para diminuir a severa gravidade
dos custos humanos e sociais da re-
cessão mundial que se abre, não deve-
ria merecer atenção a lição histórica
que associa as crises econômicas à
precipitação de guerras? Ou ainda, que
relações de regularidade podemos ob-
servar entre as flutuações dos ciclos
longos do desenvolvimento do capita-

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 99


Homem e Sociedade

mundial tem apresentado a nova guer- são trilhões de dólares que hoje se crepâncias entre as periodizações his-
ra americana como a guerra contra o refugiam em papéis porque não en- tóricas e as econômicas, em uma pers-
terrorismo: a luta entre a “civilização e contram expectativas de valorização pectiva crítica, tenha sido feito em um
a barbárie”, e o presidente americano no processo produtivo. campo dissidente das pesquisas na
não nos poupou da retórica de Rea- É certo, no entanto, como nos recor- economia. Encontra, no seu centro, a
gan, autor do discurso teatral apocalíp- da Arrigui, no seu O Longo século XX, revalorização da discussão sobre a teo-
tico do armagedon, a luta final do bem que essa tendência à financeirização ria das ondas longas e as sugestões
contra o mal. Mas qualquer observa- não é nova: o que é novo são os volu- que ela nos oferece para a periodiza-
dor atento da evolução da situação mes e escalas em que opera. Qualquer ção histórica.
mundial, depois da guerra do Golfo ameaça mais séria de desvalorização
contra o Iraque, sabe que o que esta- do dólar, ou de moratórias em cascata A teoria da ondas longas como
va em jogo, era o domínio geo-estraté- dos países devedores, poderia fazer uma hipótese de síntese entre a eco-
gico americano. Não só o controle de ruir como um castelo de cartas a apa- nomia e a história
fornecimento das atuais reservas de rente prosperidade da financeirização. Talvez seja útil, em primeiro lugar,
petróleo do Oriente Médio, a preços A guerra contra o terrorismo, a nova observar que não existe, a rigor, uma
baixos, e das espantosas reservas de ideologia de camuflagem da disputa teoria das ondas longas, mas um de-
gás que existem na Ásia Central, mas a do império americano pela hegemonia bate quase “hemorrágico”, com muitas
preservação da hegemonia americana mundial são também, uma resposta à e variadas formulações diferentes.
através de regimes como a monarquia estagnação prolongada das últimas Embora ela esteja associada para sem-
absoluta dos sheiks da Arábia Saudita, duas décadas. Assim poderia se abrir o pre aos artigos que Kondratiev publi-
a ditadura militar da Argélia ou a dita- caminho para que o capitalismo supe- cou em 1922, as primeiras apresenta-
dura civil de Mubarak, no Egipto. Em
uma palavra: as causas que explicam a
guerra não são as mesmas que expli- Qualquer ameaça mais séria de desvalorização do dólar,
cam a existência de organizações co- ou de moratórias em cascata dos países devedores,
mo a de Bin Laden.
poderia fazer ruir como um castelo de cartas a
Boa parte da análise critica da globa-
lização ou mundialização tem correta, aparente prosperidade da financeirização.
mas unilateralmente, denunciado a
crescente financeirização e o papel dos re mais rapidamente a recessão mun- ções da hipótese são anteriores, o que,
movimentos ilimitados de massas dial, ainda que ao custo de uma colos- em geral, é ignorado. Nas suas origens,
imensuráveis de capital nas especula- sal destruição de forças produtivas. a regularidade de ciclos longos atraiu o
ções com moedas, ações e títulos, co- Este movimento teórico nostálgico interesse tanto de militantes da Se-
mo a causa da instabilidade da atual do fordismo e das políticas de inspira- gunda Internacional como Parvus (na
crise. Mas é sempre perigoso confun- ção keynesianas se expressa também verdade, Helphand, militante russo
dir a superfície do fenômeno com a na controvérsia de interpretação do emigrado, pioneiro, também, em es-
sua substância. Este erro metodológi- atual período. E deveria despertar uma treita relação com Trotsky, das primei-
co, o economicismo, tem na sua raiz a polêmica em defesa da centralidade ras formulações da teoria da revolução
dificuldade de compreender a articula- da História, no quadro geral das ciên- permanente) e Van Gelderen (que es-
ção das transformações econômicas cias sociais, contra a hegemonia das creveu, em 1913, um único trabalho
com as flutuações da luta de classes. A interpretações finalistas que buscam sobre as ondas longas que, por força
globalização dos movimentos de capi- ingenuamente aprisionar, em equa- das circunstâncias de um destino trági-
tais é mais conseqüência da depressão ções econométricas, fenômenos que co que, de resto, foi o de sua geração
prolongada do que causa. O grande exigem um esforço interdisciplinar de - suicidou-se em 40, quando da inva-
cassino da economia global é mais a interpretação que somente a valoriza- são nazi - só foi traduzido do holandês
expressão da contração do mercado ção da pulsação dos tempos históricos em 1996 e, portanto, sequer era do
mundial do que da sua pujança. Ca- poderá resolver. conhecimento de Kondratiev, ou dos
pitais fictícios, capitais virtuais ou capi- Entretanto, é curioso observar que o outros participantes da debate russo
tais especulativos, como queiramos, debate mais estimulante sobre as dis- de 1928, no Instituto da Conjuntura),

100 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


Homem e Sociedade

quanto de pesquisadores como Pare- Apesar das inescapáveis polêmicas sa a elevaçao geral; outro, secundá-
to, entre outros. Todos tinham um metodológicas, não parece existir rio, que corresponde às flutuações
acordo em torno da necessidade de qualquer incompatibilidade entre as periódicas constantes, relativas aos
uma periodização de longas fases de datações das ondas longas e as perio- dezesseis ciclos de um período de
expansão e retração, e da possibilida- dizações históricas que o marxismo, 138 anos. Nesse tempo, o capitalis-
de de encontrar um quadro de explica- com critérios que eram outros, sugeriu mo viveu aspirando e expirando
ção teórica que considerasse um con- sobre as fases históricas de desenvolvi- de maneira diferente, de acordo
junto de fatores sociais, políticos e eco- mento do capitalismo, depois da revo- com as épocas. Desde o ponto de
nômicos que explicasse esse movi- lução industrial: ascensão, até meados vista do movimento de base, quer
mento da economia capitalista. do século XIX; apogeu, até a deflagra- dizer, desde o ponto de vista do
Mas, enquanto Pareto insistia na im- ção da Primeira Guerra Mundial; e de- progresso e decadência do capita-
portância dos conflitos no interior da clínio, desde então. Ao contrário, ocor- lismo, a época de 138 anos pode
classe dominante, que se expressa- re uma inquietante ou talvez perturba- dividir-se em cinco períodos: de
riam em uma alternância conflitiva de dora aproximação de cronologias. 1783 a 1815, o capitalismo se de-
hegemonia entre especuladores e ren- Esta aproximação cronológica pode senvolve lentamente, a curva sobe
tistas, em cada fase histórica, para Par- ser conferida na seguinte passagem do penosamente; depois da revolu-
vus e Van Gelderen, as flutuações das informe de Trotsky, em 1921, ao con- ção de 1848, que amplia os limites
lutas de classes e as variações da taxa gresso da Terceira (anterior, portanto, à do mercado europeu, assistimos a
média de lucro eram as causas últimas discussão sobre a teoria das ondas lon- uma volta muito brusca. Entre
da alternância de períodos longos de gas de Kondratiev): as datações de épo- 1851 e 1873, a curva sobe de re-
crescimento contínuo, seguidos de cas que ele sugere são quase idênticas pente. Em 1873, as forças produti-
depressões igualmente prolongadas. ao movimento das ondas longas que vas desenvolvidas chocam-se com
Posteriormente, Kondratiev irá desen- Kondratiev irá defender. Merecem espe- os limites do mercado. Produz-se
volver as suas posições que, para o cial atenção os dois momentos de pas- um pânico financeiro. Em seguida,
essencial do debate, repousavam na sagem de fases de depressão prolonga- começa um período de depressão
defesa de que a dinâmica das varia- da para as fases de expansão ou cresci- que se prolonga até 1894. As flu-
ções estava determinada por contradi- mento sustentado. A primeira, depois tuações cíclicas têm lugar durante
ções econômicas endógenas: um mo- da derrota das revoluções democráticas esse tempo; porém a curva básica
vimento de rotação de capital mais de 1848. A segunda, depois da vitória cai aproximadamente no mesmo
lento do que o ciclo curto, mas apoia- anti-escravista na Guerra Civil, nos EUA, nível. A partir de 1894, começa
do no mesmo padrão causal desco- e durante a fase de conquista e partilha uma época nova de prosperidade
berto por Marx para o ciclo de renova- do mundo pelo imperialismo moderno. capitalista, e até a guerra, a curva
ção do capital fixo: a operação da lei Também é interessante como Trotsky vê vai subindo com vertiginosa rapi-
da queda tendencial da taxa de lucro. a articulação dos ciclos curtos com as dez. No fim, o fracasso da econo-
mudanças de época. mia capitalista no curso do quinto
Identifica os dois movi- período se realiza a partir de
mentos e sugere que o 1914.” (grifo nosso)1
movimento na longa Não deixa, portanto, de ser inquie-
duração das alternân- tante e perturbadora a relação entre as
cias de épocas seria o fases econômicas ascendentes e os
mais estrutural e decisi- períodos de estabilização política
vo, incidindo sobre as mundial, com clara hegemonia de
flutuações dos ciclos uma potência. Um outro aspecto inte-
curtos: ressante é observar como se pensava
“A curva do progres- o entrelaçamento dos ciclos curtos, de
so econômico põe em aproximadamente dez anos, no inte-
evidência dois tipos de rior das ondas longas. Esse processo
movimento: um, fun- pareceria se manifestar no maior fôle-
damental, que expres- go e vigor das fases de crescimento

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 101


Homem e Sociedade

dos ciclos curtos, quando inseridos em sous l’impact d’événements exogè- crescimento capitalista que se seguiu à
uma vaga ascendente: sete e até oito nes, tels que les révolutions, les I Guerra Mundial, como o fenômeno
anos, isto é, uma duração mais susten- guerres ou autres bouleverse- contrário, a tendência às previsões
tada, e com recessões mais brandas, ments politiques (la chronologie apocalípticas que supunham a próxi-
de dois ou três anos, quando chega a que proposait Trotsky en ce qui ma crise do Capital como a última. A
hora do ajuste. Já na vaga descenden- concerne les tournants dans le primeira questão remete ao perigo de
te das ondas longas, ocorreria um cres- trend etait la suivante: 1781-1851, critérios econômicos unilaterais que
cimento menor, mais contido e frágil, 1851-1873, 1873-1894, 1894-1913, ignorem a centralidade dos processos
aos quais se sucederiam desacelera- 1913-... Elle correspond de très político-sociais em qualquer tentativa
ções mais acentuadas, bruscas e pro- près aux périodisations avancées de periodização do capitalismo (que,
longadas, ou seja, a depressão crônica. avant lui par d’autres auteurs(...) como sabemos, não é inocente, por-
Em uma palavra: uma pulsação desi- que Trotsky ne connaissait probable- que a avaliação do passado contém
gual e assimétrica dos ciclos curtos de ment pas. La convergence de si uma perspectiva de quais são as possi-
acordo com os períodos históricos. nombreux auteurs sur la chronolo- bilidades de futuro).
Enfrentemos agora a discussão prin- gie, alors meme qu’ils travaillaient Para Trotsky, a hipótese Kondratiev
cipal: quais seriam as causas das indépendamment les uns des autres, resultaria em uma formulação teórica
ondas longas? Vejamos primeiro os di- souligne les traits distinctifs des com dois erros: (a) reconhecendo no
ferentes postulados que explicariam a développements historiques du capi- sistema uma capacidade de auto-regu-
passagem das fases (A) de crescimen- talisme au xix siècle. Cela revenait à lação na longa duração, colocava em
to sustentável para as fases (B) de re- critiquer Kondratieff pour sa tenta- questão o prognóstico da escola mar-
cessão prolongada. E mais importante, tive de présenter l’ensemble des xista da Segunda Internacional de que
e muito mais complexa, a passagem facteurs politiques comme des fac- o capitalismo teria um limite histórico,
inversa. Esta elaboração, que ocupou teurs endogènes, autrement dit ou seja, os limites de valorização do
um lugar na tradição marxista, tem, d’ignorer l’autonomie des proces- próprio capital; (b) trabalhava sem de-
contudo, também uma história, muito sus sociaux par rapport à la sphè- monstração a premissa de uma passa-
pouco conhecida, que seria importan- re économique.”2 (grifo nosso) gem “indolor” para fases históricas de
te, mesmo que brevemente, recuperar: Em resumo: Trotsky duvida de uma expansão. Os dois postulados estavam
“Lorsque le premier essai de Kon- aproximação endógena “economicis- em irreconciliável contradição com a
dratieff sur « Les cycles longs de la ta”, ao tema do desenvolvimento capi- caracterização da Terceira Internacio-
conjoncture» parut en 1922, son au- talista na longa duração, e defende nal sobre a natureza da época do im-
teur était probablement convaincu que os fluxos e refluxos da luta de clas- perialismo, definida como um período
que sa description et ses hypothèses ses incidem sobre as flutuações dos de esgotamento da fase histórica “pro-
seraient l’objet d’un large accord, et processos econômicos, tanto quanto gressiva” do capitalismo.
il ne put cacher sa surprise devant la estes sobre aqueles. As preocupações Quanto à segunda questão, o pro-
vive critique formulée par Trotsky de Trotsky, na polêmica com Kondra- blema era o perigo das generalizações
contre son texte. Dans un article pu- tiev, parecem ter sido de dupla nature- catastrofistas que eram predominante-
blié au cours de l’été 1923, Trotsky za, e ambas merecem atenção: uma mente influentes na direção do KPD
utilisa des données publiées par le teórico-metodológica e outra política, alemão, com o apoio dos húngaros, e
Times de Londres pour démontrer mas de signos inversos. Em ambas, ele que sustentavam o vaticínio de uma
que «la courbe du développement deslocava a sua atenção para a situa- iminência da revolução, como se o ca-
capitaliste» connaissait de temps à ção exterior à URSS: temia tanto as pitalismo pudesse ter uma “morte na-
autre des tournants brusques, pressões impressionistas diante do tural”, sem que os desenlaces decisi-
vos exigissem a entrada em cena dos
sujeitos sociais e também de uma von-
Trotsky duvida de uma aproximação endógena
tade política consciente.
“economicista”, ao tema do desenvolvimento capitalista na longa
duração, e defende que os fluxos e refluxos da luta de classes As ondas longas do desenvolvi-
incidem sobre as flutuações dos processos econômicos mento capitalista e as cinco vagas da
revolução mundial no século XX: pe-

102 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


Homem e Sociedade

riodizações incompatíveis ou comple- cem convincentes: a


mentares? recuperação da taxa
A conclusão metodológica que se média de lucro não
poderia, assim, retirar, seria reconhecer depende unicamente,
a primazia dos fatores político-sociais na longa duração, de
como causalidade das grandes flutua- fatores estritamente
ções das fases do desenvolvimento his- objetivos, isto é, a re-
tórico do capitalismo. Nessa direção, gulação mercantil da
avança a elaboração de Mandel: oferta e da procura,
“Up to this point, all of the proces- mas também de fato-
ses described seem to correspond res subjetivos, ou seja,
(...) to the objective needs of capital. de variáveis que se de-
But at this point, an exogenous ele- finem na luta de clas-
ment appears. Capital has a cons- ses e que acabam por
tant need to increase the rate of sur- decidir se uma relação
plus value(...) but its capacity to rea- de forças mais favorá-
lize these ends does not depend on vel ou mais desfavorável irá vingar. Não parece ter sentido polemizar so-
objective conditions alone. It depen- Curiosamente, porque pouco estu- bre a existência destas quatro vagas de
ds also on subjective factors (i.e., dadas, e confirmando as expectativas ascenso revolucionário, relativamente
the capacity of the working class de Marx, as vagas revolucionárias, no sincronizadas, revoluções que se inspi-
to mount resistance and counte- século XX, mantiveram a forma de on- raram, e se apoiaram, de alguma ma-
rattack). And this capacity, in turn, is das internacionais, mas em uma esca- neira, umas nas outras. A própria utili-
not a straightforward mechanical la muito superior ao XIX: períodos rela- zação do conceito de ascenso, ou de
function of what happened in the tivamente breves, mas de grande in- fluxos e refluxos, para descrever um
previous period: the degree of grow- tensidade de propagação, em que se período de maior intensidade de con-
th of the wage-earning class, the re- concentraram de forma excepcional os flitos na luta de classes remete à idéia
lative level of unemployment, the le- grandes momentos de irrupção mobi- de uma simultaneidade de mobiliza-
vel and homogeneity of unionization lizada de massas. Hobsbawm, entre ções nacionais. Mas podem-se, com
(more generally, working-class orga- outros, chama a atenção para esses certeza, discutir as datações que foram
nization) attained. Although these fenômeno: sugeridas por Hobsbawm.
factors are obviously very important, “Revoluções continuarão ocorren- Como critério geral, propomos con-
others must be brought into play: do? As quatro grandes ondas do siderar que uma vaga se abre em fun-
the absolute (numerical) strength século, 1917-20, 1944-62, 1974-8 e ção de um grande triunfo revolucio-
of the working class (its weight in 1989-, poderão ser seguidas de ou- nário, de repercussões mundiais, e se
the total active population) and of tras de colapso e derrubada? Nin- fecha com uma derrota, também de
the organized labor movement; guém que olhe em retrospecto um conseqüências incontornáveis. Nesse
the degree of self-confidence and século em que não mais que um sentido, em nossa opinião, a periodi-
militancy of the working class; its punhado de Estados hoje existen- zação das vagas acompanha as mu-
degree of autonomy in relation to tes passou a existir, ou sobreviveu, danças de etapas. Não se deveria ig-
predominant bourgeois ideolo- sem passar por revolução, contra- norar, entretanto, que duas das qua-
gies; the relative strength of the revolução armada, golpes militares tro vagas, a primeira e a segunda, fo-
workers’ vanguard inside the class ou conflito civil armado aposta- ram uma conseqüência, mais ou
and the labor movement (i.e., the ria(...) no triunfo universal da mudan- menos direta, das duas grandes guer-
relative strength of that layer of ça pacífica e constitucional, como ras mundiais que sangraram o século
the working class that is qualitati- previsto em 1989 por alguns eufóri- XX. Mas não se deveria concluir que
vely more independent from bour- cos crentes na democracia liberal. O são somente as guerras que precipi-
geois and petit bourgeois ideo- mundo que entra no terceiro milênio tam as vagas, em uma relação mais
logy...”3 (grifo nosso) não é um mundo de Estados ou so- ou menos mecânica de causa e efei-
As considerações de Mandel pare- ciedades estáveis.” 4(grifo nosso) to. Só as guerras não podem explicar

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 103


Homem e Sociedade

um ascenso em forma de vagas inter- da derrotados (Bolívia, em 52, Sri Lan- com sangue, e se radicaliza na revolu-
nacionais. Revelou-se, também, ne- ka, etc...), mas insuficientes para alterar ção chilena. Mantêm-se aberta, duran-
cessária uma vitória política, ou políti- uma relação de força mundial, e pare- te os agitados anos 70: perspectiva de
co-militar, que pudesse abrir o cami- ce, portanto, um pouco forçado, consi- um governo PS/PC, na França, vitória
nho, demonstrando que seria possí- derar a permanência da mesma vaga, do Labour na Inglaterra, no calor de
vel vencer. ininterrupta, até 62. Na verdade, o pro- uma onda grevista única no pós-guer-
A primeira vaga, em nossa opinião, cesso de descolonização da Ásia e da ra, imensa instabilidade na Itália (que
só se esgota em 23, porque o proces- África foi impulsionado pelos EUA, se expressou na votação de mais de
so alemão, apesar das derrotas políti- nesse intervalo, e a maioria dos ex-Im- 30%, no PCI), com um impressionante
cas do início de 19 e de 21, se mante- périos, em particular, o francês e o in- ascenso sindical, que só será derrota-
ve até 23, quando ocorre uma mudan- glês, realizaram uma descolonização, do porque uma boa parte da vanguar-
ça importante das relações de forças sem que se abrissem crises revolucio- da pós-68 se desloca para a luta arma-
(derrota na Alemanha e na Itália). A nárias. As antigas colônias se transfor- da, o que precipita uma mudança do
segunda vaga, que se inicia em 44, maram em países semi-coloniais, com regime e uma situação de estado de
depois da inversão das relações de for- regimes e governos completamente sítio crônica, por uns dois ou três anos,
ças militares na guerra contra o eixo subservientes às suas ex-metrópoles, crise revolucionária na Espanha, na
(derrota nazista em Stalingrado e em com as classes proprietárias nacionais sucessão pós-franquista etc...Esta vaga
El Alamein, e derrota japonesa em em formação, integradas como sócias culmina com a vitória da revolução ni-
Midway, no Pacífico), se estende, menores dos imperialismos, no sa- caragüense e iraniana, mas se fecha
somente até 49, em nossa opinião, queio das riquezas nacionais. As des- depois de uma série de derrotas, em
com a vitória da revolução chinesa. Is- colonizações negociadas e limitadas um processo acumulativo: estabiliza-
ção democrática em Portugal (76/78),
Não parece haver razões para muitas dúvidas de que o Espanha e Grécia, guerra civil crônica
traço chave da etapa aberta após o final da II Guerra financiada pelos EUA na America Cen-
tral (a sangria espantosa em El Salva-
Mundial tenha sido o deslocamento do eixo das revoluções dor, os contras na Nicarágua), guerras
sociais da Europa para os países dependentes nacionais impulsionadas e financiadas
pelos EUA (massacres palestinos de
so porque, no centro da revolução foram a regra e as revoluções, a exce- Sabra e Chatila, em Beirute, invasão do
mundial, nessa etapa, a Europa do me- ção. Por isso, ao contrário de Hobs- Irã pelo Iraque). A vaga se encerra com
diterrâneo, a consolidação dos regi- bawm e outros historiadores marxis- uma contra-ofensiva, em toda a linha,
mes de unidade nacional, na França e tas, consideramos mais apropriado militar, política, econômica e ideológi-
Itália, uma derrota histórica, teria fe- que a segunda vaga se encerrou em ca, liderada por Thatcher e Reagan,
chado o processo. 48/49, com a derrota na Europa. que ficou conhecida pelo revivalismo
Abre-se, então, uma nova etapa in- A terceira vaga, por sua vez, em do programa liberal.
ternacional que será definida pelo nossa opinião, se inicia mais cedo, in- Quais seriam as causas profundas de
acordo de Yalta e Potsdam, que esta- dubitavelmente, em 68, com o Maio um ascenso revolucionário em forma
beleceu as bases de uma ordem polí- francês, desprezado, um pouco inex- de vagas internacionais? Poderíamos
tico-militar inter-estatal que se mante- plicavelmente, por Hobsbawm. Atinge procurar um primeiro nível de explica-
rá, para o essencial, inalterada durante vários continentes como uma vaga in- ção na conjuntura econômica mun-
todo o período da “guerra fria”. Nesse ternacional poderosíssima: em África, dial, e tentar encontrar, nesse terreno,
intervalo de quase vinte anos, que cor- tem, no seu epicentro, a guerra de li- um marco comum para os países que
responde ao período do boom de pós bertação, nas ex-colônias portuguesas, foram atingidos pelo vendaval revolu-
guerra, nos países centrais, ocorrem que irão abrir uma revolução na me- cionário. Uma primeira aproximação a
três processos revolucionários muito trópole, mas se estende para a Ásia esta questão parece confirmar a cen-
importantes, vitoriosos em diferentes (Vietnam, em 75, Cambodja e Laos, na tralidade da causalidade econômica,
medidas, Vietnam, Argélia e Cuba, e seqüência) e América Latina, e atinge, ou posto de maneira inversa o proble-
outros, nos países dependentes e nas primeiro, o México e o Brasil, onde as ma, os efeitos político-sociais estabili-
ex-colônias, em maior ou menor medi- rebeliões estudantis são derrotadas, zadores do crescimento sustentado.

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Homem e Sociedade

Não parece haver razões para muitas sustentado da economia mundial, nos
dúvidas de que o traço chave da etapa países periféricos, os surtos de cresci-
aberta após o final da II Guerra Mun- mento sendo muito débeis e instáveis,
dial tenha sido o deslocamento do ei- incapazes de atenuar relativamente a
xo das revoluções sociais da Europa defasagem de sua integração no mer-
para os países dependentes, enquanto cado mundial, e sendo as seqüelas so-
o crescimento sustentado das três dé- ciais da decadência crônica intolerá-
cadas do pós-guerra (entre outros fa- veis, a luta de classes abre o caminho
tores, como a prolongada hegemonia para situações e crises revolucionárias
por mais de cinqüenta anos da social com uma freqüência incomparavel-
democracia e ou do estalinismo sobre mente maior.
destacamentos fundamentais das clas- Quanto à última vaga, aberta pelas
ses trabalhadoras, nos países com centrais, e ainda assim, com uma in- revoluções no Leste Europeu de 89,
maior tradição de luta), retirava de ce- tensidade maior na Europa (nos EUA, esta atingiu, quase exclusivamente, os
na a perspectiva de crises revolucioná- a onda de lutas dos anos 60 atingiu países que giravam em torno da ex-
rias. Que regularidades e singularida- sobretudo a juventude, pela resistên- URSS (dizemos quase, porque o levan-
des podemos observar nessas quatro cia à guerra no Vietnam, e o movimen- te estudantil derrotado da praça Tian
vagas? to negro, sem maiores repercussões An Men demonstrou que a China ia na
A primeira (17/23 porque o proces- no proletariado), em duas circunstân- mesma direção): aí, a decadência eco-
so alemão se estendeu) coincidiu com cias: no marco de depressões prolon- nômica das economias pós-capitalis-
o final da fase A do terceiro Kondratiev gadas, ou na sequência das guerras tas, que vinham desde o final dos anos
e se explica, essencialmente, pela pre- mundiais. Há irrefutáveis evidências 60, como se diz, andando para o lado,
cipitação da I Guerra Mundial. A se- históricas empíricas de que existe uma se acentuou de forma dramática nos
gunda vaga de 44/62 se estende por relação entre o movimento da econo- anos 80, como conseqüência de uma
toda a fase ascendente da 4ª onda mia e da política, mas qualquer exage- complexa combinação de fatores.
longa (e deslocou-se, sem exceção, ro nesse terreno, cheio de armadilhas,
é muito perigoso. Esse fenômeno se NOTAS:
para os países dependentes, ou perifé-
1. Trotski, Léon “La situacion económica
ricos e semiperiféricos); finalmente, a expressa tanto na longa duração, que
mundial y las nuevas tareas de Ia Interna-
terceira vaga, que talvez devêssemos é o tempo lento dos movimentos do cional”, in: Una escuela de estrategia revo-
datar como 68/80 (para incluir, no seu capital, o tempo das ondas semi-secu- !ucionaria, Buenos Aires, DeI Siglo, 1973, p. 57,
início, o maio francês e o outono italia- lares de expansão e retração do de- Apud. COGGIOLA, Osvaldo, “O debate mar-
no de 69 e, no seu fim, as revoluções senvolvimento histórico capitalista, xista sobre as crises econômicas” , manus-
quanto nos tempos mais curtos, do ci- crito, 1999, p. 34
nicaragüenses e iraniana de 79 e a
2. (LOUÇÃ, Francisco, “Ernest Mandel et la
fundação do Solidarinosc em 80), clo de renovação do capital fixo. O
pulsation de L’histoire”, in ACHCAR, Gilbert. Le
coincide com o início da vaga depres- tempo da política é, todavia, diferen- marxisme d”Ernest Mandel, Paris, PUF, 1999,
siva do último kondratiev, e tem como ciado. É sempre, em alguma medida, o p. 82/3).
centro os agitados e instáveis anos 70. tempo breve do presente, das deci- 3. (MANDEL, Ernest. Long waves of capita-
A última vaga se fechou em 91/92, sões que são iminentes, que não list development, a marxist interpretation.
podem ser adiadas. Quando uma clas- Londres, Verso, 1995. p36-37.)
com a vitória de Yeltsin, e a restaura-
4. HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o
ção capitalista na URSS. se dominante é infértil e, portanto,
breve século XX - 1914-1991. Trad. Marcos
Quais conclusões poderiam ser reti- parasitária, ela renuncia à perspectiva Santarrita. São Paulo, Companhia das Letras.
radas desta observação? As articula- de um projeto (a recolonização na p. 445-6.
ções das vagas da luta de classes com América Latina, por exemplo, pratica-
as flutuações dos ciclos econômicos, mente, não encontrou, pelo menos
ainda, uma resistência burguesa ex- * Valerio Arcary é doutor em história pela
na longa duração, revelam alguma re-
USP e professor do CEFET/São Paulo.
gularidade? Duas conclusões razoavel- pressiva) e, nesse sentido, é estéril de
mente sólidas são possíveis: futuro.
(a) a primeira é que só se abriram (b) a segunda é que, mesmo nos
vagas de lutas populares, nos países marcos de uma fase de crescimento

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 105


Homem e Sociedade

* Eduardo Alves

Análise crítica do plano diretor


da reforma do aparelho do Estado

Introdução O texto, portanto, dedica-se em fundamentais para a luta dos trabalha-


Ao analisar criticamente a publicação situar a análise sem restringi-la à criti- dores (principalmente o setor dos ser-
do Extinto MARE (Ministério da ca da publicação do MARE. Ao contrá- vidores) na implementação do neoli-
Administração e Reforma do Estado) - rio, temos, como ponto de partida, a beralismo no Brasil. Esperamos, assim,
Plano Diretor da Reforma do realidade. Não são as críticas que estar contribuindo com a reflexão críti-
Aparelho do Estado - pretendemos transformam o mundo real, mas sim a ca coletiva, com a produção de conhe-
oferecer uma leitura com base em prática, ou seja, a ação coletiva, cons- cimento comprometido com a luta
uma perspectiva marxista. Nesse ciente e organizada da principal classe contra o capital e com o avanço dos
sentido, demonstraremos o quanto explorada no sistema capitalista: os setores explorados.
tais teorias sustentam-se nas bases trabalhadores. Buscamos então deixar
teóricas da literatura comprometida isso claro, tentando combinar a análise A crise da crise do Estado
com o capital e desnudar as idéias do texto ao momento político no qual O texto do antigo extinto MARE (Mi-
que têm como fundamento a vivemos. Por isso, optamos por uma nistério da Administração e Reforma
ampliação do lucro e da exploração. organização que pressupõe o desen- do Estado) intitulado Plano Diretor da
Como conseqüência, sugerimos algu- volvimento mínimo de seis subtítulos Reforma do Aparelho do Estado, no
mas alternativas de ação para a classe (sem contar com a introdução e a bi- prefácio assinado por FHC, inicia di-
trabalhadora (principalmente o setor bliografia básica), entre os quais, o últi- zendo que “a crise brasileira da última
dos servidores) que consideramos mo - “Sugestão de Alternativas para os década foi também uma crise de Es-
coerente com a concepção que Trabalhadores” - assume a responsabi- tado”. Ou seja, para o Presidente da
expressamos. lidade de indicar caminhos mínimos e República, os governos passados des-

106 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


Homem e Sociedade

viaram o Estado de suas funções bási- imperialismo entre EUA e Comuni- adequações que respondessem às exi-
cas “para ampliar sua presença no dade Européia - os Estados Unidos as- gências dos capitalistas, principalmen-
setor produtivo”. Em primeiro lugar, ca- sumiram, nos últimos anos, uma posi- te do setor imperialista, monopolista e
be ressaltar que o Estado Capitalista ção de super potência (algo que pode- financeiro. Essa crise ficou conhecida,
sempre estará em crise, pois as contra- mos chamar de “super-imperialismo”). popularmente, como “crise fiscal”, mas
dições causadas pelas relações sociais A contradição reside em que o país na verdade constitui-se como uma
de produção, baseadas na exploração centro da dominação do capital amar- crise por conta do avanço das forças
da força de trabalho que é operada gue uma aguda crise que apareça no produtivas, da ampliação das contradi-
pelos detentores da propriedade priva- seu crescimento pife de cerca de 2% ções entre capital e trabalho e impôs
da do capital, tendem a crescer com o ao ano. Por sua vez, paralelo a essa rebaixamento nas margens de lucro da
desenvolvimento das forças produti- realidade, há um evidente apodreci- burguesia. Para ampliar o espaço da
vas. As contradições existentes no mo- mento progressivo do modelo neoli- margem de lucro, foi necessário operar
do de produção capitalista geram cri- beral, que já se esgotou na crise de mudanças nos orçamentos nacionais e
ses que são aprofundadas ou estendi- vários países, entre as quais destaca- no papel que os Estados Nacionais vi-
das de acordo com a luta de classes e mos a crise do México, do Sul Asiático nham assumindo na prestação de ser-
as condições reais de desenvolvimen- e da Argentina. viços e na participação direta em
to do capitalismo, em nível internacio- No Brasil, o fantasma da crise que alguns campos da produção - com
nal e nacional. Entretanto, ressaltar a assolou outros países (como os apre- maior ou menor potência de acordo
crise do Estado, desta forma, pode dar sentados acima) tem nos rondado com o grau de desenvolvimento nacio-
a entender que o Estado está em crise, mais do que nunca. A coalizão conser- nal e com peso na economia interna-
que vivemos um período de transição vadora formada para garantir o neoli- cional. Por sua vez, tais remédios, que
do Estado e isso não é verdade (por beralismo possui, entre seus conteú- em geral (com menor ou maior grau)
enquanto). A crise que se aprofunda é dos básicos de sustentação, as privati- viraram os investimentos sociais para a
a do capital, crise essa que não foi zações, as terceirizações, a precariza- propriedade privada, inclusive alteran-
resolvida com os remédios da guerra, ção, a desregulamentação e a flexibili- do a forma de propriedade e fazendo
foi estancada com modelos de “Bem zação. Não é por menos que temos avançar empresas capitalistas no lugar
Estar Social” (como na Europa e nos um Brasil mais miserável, com 50 de empresas estatais; ampliaram a de-
Estados Unidos - durante o Governo milhões de pessoas abaixo da linha da pendência; retiraram a ação de execu-
Roosevelt) e se aprofunda vertiginosa- pobreza e uma concentração de renda tor de políticas sociais do Estado,
mente com o neoliberalismo. absurda, na qual 12,2 % da população transformando-o em regulador e re-
Há vários aspectos que devem cha- (composta pelos capitalistas e pelo se- baixaram direitos sociais; modificaram
mar nossa atenção na identificação da tor mais bem pago de gerentes, admi- as relações trabalhistas desregulamen-
profundidade da crise do capital. Um nistradores, advogados, economistas, tando direitos, marcaram a caracteriza-
deles diz respeito à realidade das rela- etc) detêm 33,8% da renda, enquanto ção do neoliberalismo e são responsá-
ções de produção. O Século XX foi os setores mais empobrecidos da clas- veis por crises que já vieram ou estão
marcado pelo avanço das forças pro- se trabalhadora (25,7% da população) chegando.
dutivas e das relações sociais de pro- representam apenas 6,9% da renda Essa realidade não caracteriza, no
dução, nos apresentando, dessa for- nacional (pesquisa divulgada pela entanto, que o Brasil passa por uma
ma, um mundo praticamente capitalis- Folha de São Paulo). Como vemos, o crise de Estado. Uma verdadeira crise
ta, com algumas poucas exceções1. empobrecimento, a proletarização, a de Estado coloca em xeque o poder
Outro elemento é o fim da bipolarida- lupem-proletarização, o sub-emprego político, seguido da possibilidade real
de, com a extinção da União Soviética (com a ampliação do fenômeno das da tomada e construção de um novo
e a tomada capitalista no Leste Euro- terceirizações) são características des- poder. Para isso, no entanto, fazem-se
peu. Tal movimento coincide com ad- sa fase do Estado (no Brasil) e atinge necessárias condições objetivas e sub-
vento neoliberal e com a formação do todos os trabalhadores. jetivas2. Vivemos um momento em
blocos imperialistas dessa etapa impe- As saídas buscadas pelos Estados que afloram ricas condições objetivas,
rial ainda mais elevada. Apesar de ter Nacionais, através de suas classes a partir das quais é possível construir
havido um reenquadramento das po- dominantes, para encontrar um remé- situações de superação da ordem bur-
laridades - destacadas na disputa do dio que dê sobrevida ao capital exigiu guesa: o capitalismo, em nível mun-

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 107


Homem e Sociedade

dial, já desenvolveu satisfatoriamente tra, (de novo) o de Getúlio e depois a


as relações sociais de produção; temos de JK, apostaram, com todas as dife-
O Estado, através dos
um planeta, predominantemente, regi- renças constitucionais, políticas e
do pela ordem do capital; há sinais de aparelhos repressivos e sociais, no mesmo caminho de de-
apodrecimento das forças produtivas; ideológicos, busca senvolvimento econômico, encon-
o neoliberalismo, desde a crise do Sul trando maior ou menor êxito em suas
transformar em universal
Asiático e do México, para não citar as táticas por conta do acúmulo de for-
crises brasileira e argentina, demonstra
aquilo que é particular, ças existente na sociedade. Assim,
claros sinais de instabilidade e fragili- fazendo parecer que as podemos afirmar que a reforma que
dade econômica. Certamente que não idéias da burguesia são está sendo feita não é ponto indis-
é dessa crise que fala FHC, mas, sim, pensável para o desenvolvimento,
idéias de toda a sociedade.
de uma “crise” administrativa, a qual mas sim para o aprofundamento do
exige alterações superficiais nos apare- subdesenvolvimento, da dependência
lhos do Estado para prolongar a domi- e da inserção do Brasil na ordem
nação burguesa e adequar o Brasil à mundial hegemônica.
nova (velha) ordem. Um Estado que se Novamente insistem no absurdo.
torna empecilho para a maximização Esse não é um movimento entre socie-
do lucro é um obstáculo para os capi- realidade, para a burguesia buscar dade e governo, pois colocados dessa
talistas. Cabe ao Estado, apenas, cum- fôlego em sua crise. forma, não são nada, são caóticos, não
prir seu rumo fundamental em uma explicam as condições reais e as con-
sociedade de classes: garantir a repro- O Estado e a sociedade no Brasil tradições existentes. A sociedade é
dução e manutenção da exploração e No Brasil, particularmente, o proces- uma abstração, “se desprezarmos, por
o poder político da burguesia, manten- so de estatização dos setores produti- exemplo, as classes que a compõem”4.
do-a como classe dominante. vos, envolvendo a transformação de Uma sociedade divida em classes pos-
É claro que a desconstituição dos matéria bruta, a prestação de serviços sui idéias distintas, representações dis-
aparelhos de propriedade estatal e a em energia, água, produção siderúrgi- tintas e governos de diferentes posi-
ampliação dos Aparelhos Privados de ca e outras, foi o próprio caminho de ções políticas. Cada governo tem uma
Hegemonia3 das classes dominantes desenvolvimento e formação de uma ligação orgânica a uma ou outra clas-
passam, necessariamente, pelo redi- sociedade capitalista. Ou seja, isso foi se, ou mesmo a outras que não são
mensionamento de todas as áreas que um investimento dos setores domi- fundamentais, como é o caso em uma
exigem um papel de intervenção dire- nantes e era necessário criar um Es- situação bonapartista5. Não existe, por-
ta nos problemas sociais, assim como tado com capacidade de dirigir o pro- tanto, tal movimento que cita FHC. O
no setor econômico. Os dois casos, cesso de formação capitalista da socie- que ocorre é que o Estado, através dos
apesar de representarem gastos e in- dade brasileira. Nesse sentido, é inve- aparelhos repressivos e ideológicos,
vestimentos necessários, são obstácu- rossímil que os próprios capitalistas busca transformar em universal aquilo
los para a ampliação do lucro dos capi- hoje façam críticas sobre esse proces- que é particular, fazendo parecer que
talistas - e essa questão está no centro so, como se não tivessem responsabi- as idéias da burguesia são idéias de
de todas as mudanças. No entanto, a lidade nenhuma sobre ele. Assim toda a sociedade. Os trabalhadores
ampliação desse lucro, por conta de parece que as coisas ocorreram por organizados, representados por enti-
um modelo de Estado (amplo e con- escolha, por uma simples vontade hu- dades classistas, já deixaram claro que
servador - nos países em desenvolvi- mana de alguns dirigentes, ou mesmo não concordam com as mudanças do
mento - ou amplo com forte investi- por dádiva sobrenatural. Mas sabemos Governo. Setores importantes de
mento social - nos países desenvolvi- que não foi assim que ocorreu o movi- várias organizações como OAB, ABI,
dos), encontra-se parcialmente limita- mento de construção do Estado e da CNBB e outras já mostraram que não
da. A crise do capital, acentuada pelo Sociedade brasileira. Foi feita a política concordam com as alterações gover-
fim da guerra fria, impõe novos mode- necessária, sob a lógica burguesa, para namentais. Movimentos de massas
los de dominação imperialista. O cami- o desenvolvimento. Esse era o cami- como o MST, UNE, UBES já declararam
nho das privatizações e das terceiriza- nho possível frente às condições reais suas diferenças. Os partidos de
ções é um caminho evidente, frente tal do Brasil. Os Governos de Getúlio, Du- esquerda fazem uma oposição cotidia-

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Homem e Sociedade

na ao modelo imposto ao Brasil. Logo, mudança apenas de cunho adminis- Temos pela frente a grandiosa tarefa
cabe perguntar: de que sociedade fala trativo. Essa é a superficialidade da de promover mudanças radicais que
FHC? Com certeza não é a sociedade mudança e não seu conteúdo funda- alterem a forma de propriedade, mas
real, diversa em determinações, em mental. O elemento central encontra- o caminho é totalmente inverso do
idéias e representações, mas a socie- se na alteração da propriedade e na que vem fazendo o Governo. É nessa
dade que os capitalistas querem que relação entre propriedade privada e esfera de entendimento que aparece
exista, mesmo que não seja a socieda- propriedade estatal. No prefácio de um equívoco muitas vezes repetidos
de existente. FHC, o discurso que justifica a altera- por setores de esquerda, populares ou
Todo esse discurso, entretanto, é ção da administração baseia-se no democráticos. Há uma idéia, aparente-
para justificar a importância da econo- atendimento ao “cliente” ou “cidadão mente predominante, de que o pro-
mia de mercado e de marcá-la como a cliente”. Mas isso não passa de um dis- cesso imposto diminui o Estado e, por-
forma mais desenvolvida para fazer curso ideológico para falsear as altera- tanto, como pregamos o fim do
avançar o país. “O grande desafio his- ções reais e manter o processo hege- Estado, ou de seu cunho autoritário,
tórico é o de articular um novo mode- mônico no subconsciente dos explora- ou mesmo de seu poder quase abso-
lo de desenvolvimento que possa tra- dos. Por isso, era necessário pautar o luto sobre a individualidade, tal movi-
zer para o conjunto da sociedade bra- serviço público como debate central mento não é tão ruim para a política
sileira a perspectiva de um futuro em 1995 e tirá-lo do centro em 1999, que defendemos. Ledo engano, pois
melhor”, ou seja, “o fortalecimento do quando os efeitos das mudanças isso nos levaria a um processo de
Estado para que seja eficaz sua ação começavam a aparecer. Essa é uma aumento desregulado da concentra-
reguladora, no quadro de uma econo- das razões pelas quais insistimos em ção do poder e do lucro, repassando
mia de mercado”. Com essa afirmação que devemos situar novamente o ser- para os aparelhos privados, ou seja,
presente no Plano Diretor da Reforma viço público como tema central de para a propriedade privada do capital,
do Aparelho do Estado, demonstram- debate na sociedade. uma arena central de disputa política.
se claramente a superação de um Por exemplo: não é possível disputar
modelo desenvolvimentista imple- política de comunicação, de grande
mentado no Brasil e a adoção do pro- vulto, hoje, com possibilidade de uma
jeto de ampliação da margem de lucro disputa hegemônica real em nível
e diminuição da capacidade de ação nacional, que possa alterar a correla-
social do Estado. A ação reguladora é a ção de forças, sem quebrar o monopó-
marca da desconstrução progressiva lio privado dos meios de comunicação.
dos serviços públicos, aliada ao pro- Na esfera do Estado, entretanto, temos
cesso de privatização, contratualização maiores condições, pela própria carac-
e terceirização. Tais marcas são deter- terística do Estado de Direito, criado
minantes na Reforma Administrativa pela burguesia, de operar a disputa
proposta pelo PDRAE (Plano Diretor hegemônica. Certamente que, para a
da Reforma do Aparelho de Estado) e classe trabalhadora, isso só pode ter
implementada pelo Governo. Mesmo conseqüência se tiver calcado em uma
identificando que a implementação do organização classista, com capacidade
modelo, muitas vezes, foge de sua de mobilização e organização, que
arquitetura inicial, esse desvio não é Do ponto de vista da propriedade, trave na sociedade a disputa ideológi-
no mérito, continua com todo o con- que é o centro de todo o nosso deba- ca e sirva como base real para a cons-
teúdo fundamental apresentado te, o que está em jogo é repassar o pa- trução de mudanças. Sem isso, fica-
desde 1995. trimônio público acumulado para os mos no administrativismo e não con-
É por isso que nossa análise deve se setores privados, aumentando assim a seguimos alterar as condições reais
deter na pedra angular do sistema e concentração do lucro, ao mesmo que exigem mudança na forma de
mesmo das mudanças: a alteração das tempo em que se desobstruem as bar- propriedade.
formas de propriedade. A mudança reiras que impossibilitam o aumento Sem dúvida, analisar o prefácio es-
para um modelo gerencial de funcio- da margem do lucro. Do nosso lado, crito pelo presidente tem uma impor-
namento do Estado não é uma isso também é um grande desafio. tância central: saber qual a orientação

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 109


Homem e Sociedade

que se mantém, independente de ficar tais diferenças, lançando mão da


ministérios e ministros, e qual o discur- “arma da crítica” e buscar contribuir,
O Estado nunca está acima
so central que a justifica. Por isso, não dessa forma, para reforçar a ação dos
nos cansaremos de afirmar que as trabalhadores. da sociedade, mesmo
bases do PDRAE continuam presentes Se começarmos pela caracterização quando bonapartista, pois é
na implementação das mudanças. O do Estado, um dos conceitos centrais sempre fruto da luta de
que houve foi um desvio tático para tratados nessa contribuição, identifica-
classes, da correlação real
implementar o núcleo central das remos diferenças intransponíveis e
adaptações neoliberais, nada mais que insuperáveis. Segundo o Governo, “o entre as duas classes
isso. Para tanto, vamos analisar três Estado é a organização burocrática que fundamentais (trabalhadores
pontos centrais do Plano Diretor da tem o monopólio da violência legal, é
e burgueses).
Reforma do Estado: 1. As bases teóri- o aparelho que tem o poder de legis-
cas; 2. O objetivo da Reforma lar e tributar a população de um deter-
Administrativa; 3. O Aparelho de Esta- minado território”. Esse conceito é
do e as Formas de Propriedade. É na vazio, não explica nem situa o papel
análise desses três elementos que en- que cumpre o Estado. Certamente não
contraremos indicativos6 para nossa passa de uma constatação e se apro- determinações diferenciadas das que
ação contra a reforma, no momento pria apenas da aparência e do funcio- são propostas pelo Plano Diretor. Mes-
político em que vivemos. namento, deixando de lado sua carac- mo que as mudanças sejam, no Esta-
terização fundamental. O Estado é um do (na superestrutura), apresentadas
As bases teóricas do PDRAE instrumento de dominação de uma como elementos fundamentais, elas
A diferença que guarda nossa análi- classe sobre a outra. Isso serve tanto não são, diferentes do que afirmam, a
se sobre o Estado em relação àquela para o modelo restrito analisado por saída para a superação da crise atual.
que consta no Plano Diretor da Marx, quanto pelo modelo amplo ana- Isto porque tais mudanças decorrem,
Reforma do Aparelho de Estado, edita- lisado por Gramsci. Em nenhum dos necessariamente, de uma alteração
do pelo MARE, em 1995, é de cunho casos, fruto de momentos históricos e nas formas de propriedade. Na verda-
epistemológico e conceitual. Episte- formações sociais distintas, o Estado de, as alterações que são propostas no
mológico porque o trabalho do antigo perde sua principal característica que, PDRAE se justificam porque, para as
Ministério da Administração e Reforma por sua vez, não é determinada por ele classes dominantes, é necessário
do Estado utiliza conteúdos funda- mesmo, mas pelas relações sociais de aumentar o arco de poder econômico
mentais do positivismo: a neutralida- produção, ou seja, pelos diferentes pa- da burguesia, ampliar a margem de
de, a desistorização, a ilusão de partir péis desempenhados pelas classes lucro, incrementar a ocupação de
do dado imediato. Conceitual porque fundamentais do capitalismo. Mas o espaço na propriedade privada do
apresentam conceitos que são verda- Governo não pode admitir isso, pois tal capital, de forma a expandir a partici-
deiras totalidades caóticas, que não posição o levaria a dar organicidade ao pação dos capitalistas nos setores de
explicam e não podem dar conta do seu propósito, ligando-o a uma das serviços ou mesmo de produção de
movimento histórico que engendrou o classes fundamentais, coisa que a neu- matéria-prima. Isso é o que está por
capitalismo brasileiro, no final do sécu- tralidade não permite. trás das privatizações, coisa que o con-
lo passado, além de apresentarem A totalidade das relações de produ- ceito colocado pelos “intelectuais” do
bases conceituais “jus naturalistas” ou ção forma “a estrutura econômica da antigo MARE não permite identificar.
“liberais” de política (por mais que sociedade, a base real sobre a qual se No entanto, identificar o movimento
neguem tal vínculo). Certamente que levanta uma superestrutura jurídica e real operado pelo neoliberalismo é,
tal diferença é determinada, em última política, e à qual correspondem for- necessariamente, superar epistemolo-
instância, pelo caráter de classe que mas sociais determinadas de cons- gicamente o conceito de Estado apre-
tem cada uma das concepções (a do ciência. O modo de produção da vida sentado e assumir um conceito históri-
Governo e a nossa). Tal diferenciação material condiciona o processo em co e materialista que dê conta da aná-
cria uma barreira intransponível que só geral da vida social, político e espiri- lise das condições atuais.
pode ser superada através da própria tual” 7. Tal compreensão é fundamen- Se essa é uma das mais importantes
luta de classes. Vamos procurar identi- tal para o debate, já que parte de rupturas teóricas que devemos fazer,

110 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


Homem e Sociedade

há outras que são decorrentes de tal tóricas, no mínimo questionáveis, para decorrentes...de empresários e de fun-
pensamento. Então vejamos, a conse- não dizer comprometidas com o pro- cionários que buscaram utilizar o
qüência da atitude dos governistas é cesso de dominação que defendem. Estado em seu próprio benefício...tam-
propor uma reforma administrativa e Por exemplo, o texto afirma que “a de- bém do desenvolvimento tecnológico
não poderia ser diferente, pelo menos sordem econômica expressava agora a e da globalização, que tornaram a
no discurso. O problema é que o grau dificuldade do Estado em continuar a competição entre as nações muito
de ideologização e politização que tem administrar as crescentes expectativas mais aguçada”. Sobre os argumentos
uma reforma administrativa, mesmo em relação à política de bem-estar baseados no desenvolvimento tecno-
que escondido pela retórica escrita, aplicada com relativo sucesso no pós- lógico e na globalização, Petras nos
torna inverossímil tal proposição. O guerra”. Como se a ordem ou a desor- mostra os seus pés de barro, ao afir-
Estado nunca está acima da socieda- dem econômica, existente nas várias mar que nada tem a ver desenvolvi-
de, mesmo quando bonapartista, pois flutuações ou momentos históricos do mento tecnológico e globalização, pois
é sempre fruto da luta de classes, da capitalismo, fosse decorrente de ações a política de “globalização vem ocor-
correlação real entre as duas classes naturais (ou quem sabe sobrenatu- rendo há vários séculos”9. Além disso,
fundamentais (trabalhadores e bur- rais). Além do mais, ao afirmarem isso, corrobora a visão aqui expressa, pois
gueses), das disputas entre agentes e incorporam outro problema que é o afirma que “a política estatal é uma
representações fundamentais das clas- de dizer que, nesse momento, devem- função da correlação de forças sociais:
ses sociais fundamentais. Nessa fase se destituir as políticas de bem-estar, e
(bem trabalhada por Marx, no 18 Bru- junto com elas destruir os direitos con-
mário), há uma aparência maior de quistados. É certo que isso não é dito,
autonomia estatal, porque há uma mas fica bem entendido na afirmação
condição na luta de classes, entre os colocada, pois o momento do pós-
setores fundamentais, que permite a guerra foi, sem sombra de dúvidas, um
elevação de uma classe intermediária período de conquistas de direitos
ao Governo ou à parte do poder políti- sociais, tanto para os países desenvol-
co. Abstraem, dessa forma, o papel do vidos, como para os não desenvolvi-
Governo, do Imperialismo, dos pro- dos. A margem desses direitos foi de-
prietários da propriedade privada do terminada pela formação social de
capital, dos trabalhadores, dos parti- cada um deles, com elevações maio-
dos, dos movimentos, e apresentam res ou menores. É certo que nem to-
uma visão típica do “contrato social’, dos os países viveram o modelo de
que facilmente pode oscilar entre fas- bem-estar, como é o caso do Brasil,
cista e liberal. É claro que o centro do em que o modelo desenvolvimentista
contrato, aquilo que o representa, não poderia dar essa qualidade nas a capacidade de diferentes classes
principalmente na sociedade moder- políticas executadas. Porém, o mundo mobilizarem recursos para influenciar
na, é a Constituição. E o é também não se dividia entre desenvolvidos e a política econômica do Estado”10. Ou
para os governistas, uma Constituição não desenvolvidos, mas entre socialis- seja, “não são forças econômicas glo-
que, para eles, está acima do bem e tas8 e capitalistas, o que foi marcante bais impessoais que estão operando
do mal, e não impregnada de conflitos, após a segunda guerra mundial - em aqui, mas uma estratégia econômica
ideologias, visões de classes distintas, 1945 - com o início de uma guerra fria, enraizada nos interesses da classe
de acordo com a correlação de forças que só acaba com a derrota final do alta e das corporações”11. Portanto,
em que é produzida socialmente. Ou socialismo nos países do leste e na não são ajustes necessários a um
seja, antes de um instrumento legal ou União Soviética. desequilíbrio casual que força a supe-
jurídico, a Constituição é, fundamen- Contudo, se isso não bastasse, con- ração da política promovida pelo capi-
talmente, um instrumento político que tinuam os palacianos em sua viagem, tal, mas sim a necessidade de respon-
dá o corpus necessário para um pro- ora racionalista, ora positivista. “Não der às exigências da burguesia e das
cesso de dominação entre as classes. obstante, nos últimos 20 anos esse grandes corporações monopolistas e
É claro que tal inspiração teórica dos modelo” - de bem-estar social - “mos- oligopolistas em nível internacional e
palacianos os levará a afirmações his- trou-se superado, vítima de distorções não apenas de problemas localizados

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Homem e Sociedade

nacionalmente. Por conseguinte, po- políticas; eliminar a isonomia como di-


demos afirmar que movimentar uma reito subjetivo; descentralização e fixa-
Movimentar uma oposição
oposição coerente e que tenha conse- ção dos servidores dos três poderes.
qüências favoráveis contra a aplicação
coerente e que tenha Esses seriam os objetivos das emen-
do neoliberalismo exige, além de conseqüências favoráveis das constitucionais, significativamente
outras coisas, uma ruptura conceitual contra a aplicação do cumpridos pela EC 19/98. Cumpriram
ao modelo expresso pelo Plano Diretor neoliberalismo exige, além legalmente e hoje ainda existe a guer-
da Reforma do Aparelho do Estado. ra da implementação e mesmo da edi-
de outras coisas, uma
Não se pode ficar apenas nas críticas ção de leis complementares que pos-
às implementações, por mais que se- ruptura conceitual ao sam regulamentar todo o processo de
jam importantes e necessárias. É im- modelo expresso pelo Plano mudança ao qual foram expostos os
prescindível uma crítica global ao con- Diretor da Reforma do servidores.
junto teórico que as inspira, por mais Aparelho do Estado. No fundamental, podemos ver que
que seja progressivamente invisível. tais modificações não mudam em na-
Assim, se o fizermos, daremos um sal- da a crítica feita pelo próprio docu-
to de qualidade substantivo para o mento governista. Continuam, pro-
processo de disputa hegemônica que temente, mudou-se a estabilidade, ins- gressivamente, incentivando uma ad-
demanda essa luta. tituíram-se os contratos de gestão, ministração patrimonialista e em nada
introduziram-se os contratos trabalhis- avançam para superar essa característi-
O objetivo da reforma tas por emprego público, alterou-se a ca do Estado brasileiro que foi deter-
administrativa: um percurso revisão salarial dos servidores, estabe- minado pelo modelo de colonização e
parcialmente cumprido leceu-se a terceirização como perma- pela formação tardia, conservadora e
O processo da reforma administrati- nente, criaram-se formas legais para autoritária que teve o capitalismo.
va, que é o núcleo central da chamada demissões, esvaziaram-se os serviços Dizem que o patrimonialismo é uma
reforma do Estado, atingiu parcialmen- públicos, legalizaram as privatizações. “excrescência inaceitável”, pois existe
te seus objetivos, mas continua fazen- Há uma série de leis complementares como conseqüência inerente “à cor-
do o seu percurso. Esse percurso tem no meio do caminho, mas é a análise rupção e ao nepotismo”. E afirmam
que ser obstaculizado para podermos dos recuos e avanços que o PDRAE fez, que, “no momento em que o capitalis-
impedir sua implementação, ao mes- em relação à EC 19/98, o que nos inte- mo e a democracia se tornam domi-
mo tempo em que colocamos em prá- ressa nesse estudo. nantes, o mercado e a sociedade civil
tica medidas que possam resgatar con- Já havia, no texto do ex MARE, uma passam a se distinguir do Estado”. Ou
quistas perdidas e avançar para uma anunciação do objetivo das emendas a seja, seria essa própria distinção, fruto
construção que seja coerente com os serem apresentadas: fim da obrigato- de um desenvolvimento capitalista,
interesses dos trabalhadores. Para isso, riedade do RJU, permitindo-se a volta que exige que o Estado e a Sociedade
no entanto, é necessário barrar o trân- de contração de servidores celetistas; Civil se unifiquem para superar um
sito para essa quarta fase do Estado processo seletivo público para contra- modelo que é obstáculo ao próprio
brasileiro inaugurado pelo neolibera- tação de celetistas e concurso público desenvolvimento do capitalismo. Isso
lismo, que foi desastrosamente inicia- para a de estatutários; flexibilizar a es- sim é uma excrescência que aparece
do por Collor e sistemática, organizada tabilidade através da possibilidade de de variadas formas e por diversificadas
e organicamente continuado por FHC demissões por falta grave, por insufi- razões: 1. lançam mão da tese critica-
(nos seus dois governos). Do ponto de ciência de desempenho ou por exces- da pelos mesmos que é o desenvolvi-
vista legal, a Emenda Constitucional so de quadros; criar a possibilidade da mentismo, para eles o desenvolvimen-
agrupa as medidas fundamentais que disponibilidade; permitir a contratação to do capitalismo gera a necessidade
dão escopo para o processo em curso de estrangeiros no serviço público; li- de superação de um modelo adminis-
no Brasil. Uma medida de mudança da mitação rígida da remuneração dos trativo e tal mudança é forçada pela
Constituição é, desde sempre, inveros- servidores; limitação rígida dos pro- unidade entre sociedade civil e pelo
símil, pois acumula uma série de in- ventos da aposentadoria e das pen- Estado; 2. fazem a sociedade civil ga-
constitucionalidade no seu conjunto. sões; facilitação de transferência de nhar o caráter de neutro, de uma tota-
Entretanto, foi aprovada e, conseqüen- pessoal e de encargos entre pessoas lidade caótica - teoria já criticada por

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nós nesse texto - que unificada adere a propriedade privada do capital, ou outro. Mas isso não é possível nos
ao processo de apoio ao capitalismo e assim como o legítimo direito ao lucro limites do capitalismo brasileiro. En-
ao desenvolvimento; 3. decidem priva- e à exploração, sem que existisse qual- quanto em nível internacional pode-
tizar e repassar patrimônio público pa- quer grau de ação estatal. Essa etapa mos mostrar os vários regimes capita-
ra o setor privado e migrar o setor pri- do Estado capitalista na história da listas, datá-los, demonstrar o modelo
vado para a administração, confundin- humanidade tem seu predomínio no estatal de forma mais precisa, no Bra-
do mais ainda o mercado com o Es- século XIX, mas persistiu até o início do sil, isso não é possível. Houve uma
tado e aprofundando o patrimonialis- século passado. Não há uma relação mistura permanente, pela própria con-
mo; 4. trabalham o conceito de demo- direta, portanto, com o modelo admi- dição de formação do capitalismo e
cracia dentro do capital, deixando claro nistrativo burocrático, que é uma visão das classes fundamentais, que alter-
seus limites e não explicitando aquilo weberiana13, um tipo ideal e não um nou e fez simbioses entre concepções
que seria democrático12. formato real de organização ou de liberais e marginalistas14. Portanto, do
Mas isso não dá conta ainda do con- sociedade. ponto de vista administrativo, cultural,
junto de questões que envolvem o de- O mais estranho é que os estudiosos de posturas, o Estado era e é predomi-
bate sobre administração, do ponto de do antigo MARE não conseguem fir- nantemente patrimonialista e a supe-
vista político e conceitual. Apresentam mar qual era o modelo predominante ração desse modelo, no país, deman-
dois modelos que são alternativos ao no Brasil, se o patrimonial ou o buro- da rupturas e não medidas disfarçadas
modelo brasileiro: a administração pú- crático. Mas vejam, tinha que ser em discursos teóricos que têm como
blica burocrática e a administração pú- assim, pois a concepção metodológica verdadeiro objetivo concentrar a pro-
blica gerencial. Afirmam que, como e conceitual desses estudiosos não priedade e ampliar o lucro dos capita-
conseqüência do modelo burocrático, permite a contradição como elemento listas15.
“o Estado volta-se para si mesmo, per- chave de análise. Não há proponentes É claro que restará como “modelo
dendo a noção de sua missão básica, nem defensores do modelo patrimo- perfeito”, segundo a ótica do Governo,
que é servir à sociedade”. Embora esta nial. O que há, nesse caso, são visões a imposição do modelo gerencial. Di-
nunca tenha sido a missão básica do que podem ser aproximadas a partir zem que tal formato “emerge na se-
Estado. No formato liberal, predomi- de uma defesa de excesso de poder, gunda metade do século XX, como
nante até a primeira guerra, mantinha- postura inclusive muito parecida com resposta, de um lado, à expansão das
se uma estrutura mínima segundo a a que tem hoje o Governo de FHC. É funções econômicas e sociais do Es-
lógica do individualismo, considerando claro que o Brasil vive tanto um mode- tado e, de outro, ao desenvolvimento
que os interesses individuais livremen- lo quanto outro. O desenvolvimento tecnológico e à globalização da eco-
te desenvolvidos seriam harmonizados do capitalismo, principalmente a partir nomia mundial, uma vez que ambos
por uma mão invisível, que garantiria da década de 30 e depois nas décadas deixaram à mostra os problemas
também a livre concorrência. Nesse de 50 e 60, trouxe contradições de to- associados à adoção do modelo ante-
período, havia uma forte rejeição a da a ordem, inclusive no formato ad- rior”. O modelo anterior ao qual fazem
qualquer tipo de intervenção estatal na ministrativo. Colocado na forma do referência é o welfare state, mais co-
vida econômica. A política do laissez- texto, o que ocorre é a expressão de nhecido como Estado de Bem-Estar
faire era garantir a livre concorrência e uma aparência de escolha entre um Social. Abramos parênteses para me-
lhor explicitar esse ponto.
Esse modelo de Estado surge para
administrar a insuficiência do capitalis-
mo e assim dar conta de uma crise
detonada em 1929. Representa tam-
bém uma resposta, como alternativa,
ao modelo socialista que consegue
uma grande expressão real, com capa-
cidade de disputa internacional, a par-
tir da revolução Russa de 1917. To-
davia, tanto o Welfare State na Europa,
quanto o New Deal de Roosevelt, que

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teve menor tempo de vida, não conse- ção do FORDISMO/TAYLORISMO se compromisso com o FMI; o que, entre-
guiram resolver a crise do capital, que deu fundamentalmente pelas monta- tanto, causa estranheza é setores da
recrudesceu pela exigência de aumen- doras, que representam o lugar privile- esquerda insistirem na defesa de teses
to da margem de lucro dos próprios giado do operariado industrial moder- que acabam não se diferenciando
capitalistas. Mas sem dúvida, tais polí- no. Nesse sentido, podemos dizer que qualitativamente do modelo apresen-
ticas, pelo forte investimento do Es- a afirmação de que eles importam tado por FHC. Isto ocasiona, como es-
tado em setores sociais e sua significa- racionalmente um modelo de admi- tamos presenciando, uma onda de
tiva abrangência na área econômica, nistração distante da realidade brasilei- cooptação, aberta ou velada, resultan-
acabaram firmando-se como um dos ra é incompleto, se não firmarmos que te dessa proximidade de visões.
elementos de uma crise que teve co- a origem de tal formato se deu na A maior parte da esquerda encontra-
mo resposta o modelo neoliberal. Co- fábrica, na linha de montagem, na pro- se na defensiva ideológica, reduzindo
nhecida como crise fiscal, na verdade, dução, ou seja, na propriedade privada seu programa ao combate, ao neolibe-
essa crise alcançou grandes propor- do capital, onde a produção, o lucro e ralismo e/ou à defesa de um “desen-
ções, por estar implicada ao desenvol- a concentração são elementos consti- volvimento com soberania nacional”. A
vimento das forças produtivas e a uma tuintes fundamentais. base teórica do desvio nacionalista
nova disputa internacional que redi- Mas, talvez, o maior dos absurdos é está em não perceber que a “questão
mensiona as potências centrais, tam- a idéia de que, através de um tal mo- nacional” é uma questão “burguesa”
bém por dar um novo sentido à multi- delo gerencial de administração públi- de per si. A defesa da Nação contra o
polaridade16 e recolocar a questão do imperialismo pode ser algo extrema-
lucro em um mundo predominante- mente progressista e revolucionário.
mente (quase totalmente) capitalista. Mas o mundo pelo qual os socialistas
O paradoxo é que o modelo para lutam não é o de “nações-Estado”.
superar a crise do capital já nasce em Nesse sentido, a “defesa da Nação”
crise e promove seu desenvolvimento por parte dos socialistas sempre será
em um processo de genocídio interna- uma missão espinhosa e cheia de con-
cional que reedita a possibilidade da tradições. Além disso, há sempre o
barbárie se os setores socialistas não risco da própria burguesia —mesmo
colocarem a necessidade do socialis- essa burguesia entreguista e integrada
mo na ordem do dia. que temos no Brasil— assumir arrou-
Fechando os nossos parênteses, po- bos nacionalistas e neutralizar a es-
demos voltar a nos questionar sobre o querda. Isso aconteceu diversas vezes
que é o modelo gerencial e suas alter- na história do Brasil e pode voltar a
nativas “milagrosas” para a sociedade. acontecer. Para que isto não ocorra e
Segundo o PDRAE, o modelo gerencial para que possamos dar um salto de
“deixa de se basear no processo para qualidade, a esquerda brasileira deve
se concentrar nos resultados”. Ou seja, romper com sua tradição programática
metas, números, quantidade, e como nacional-desenvolvimentista e adotar,
não poderia ser diferente, a lógica da ca, o Brasil sofrerá qualquer grau de programaticamente, o socialismo.
produtividade. Os serviços públicos desenvolvimento. Para haver desen- As revoluções, em países periféricos
devem ser sempre em grande escala, volvimento, deve haver rupturas, saltos e/ou pré-capitalistas, foram, na verda-
mas sempre com qualidade, isso para e superações, não é possível um de- de, assim como diz Gramsci sobre a
nós é fundamental, pois reforça nossa senvolvimento apenas por continuida- Revolução Russa, revoluções contra “O
luta de hegemonia na sociedade. de. Mesmo que o modelo posterior Capital”. Embora tenham adotado
Entretanto, o Governo prefere a produ- tenha elementos do modelo ulterior, muitas vezes um processo de revolu-
tividade, isto é, os resultados finais, isso não significa que a necessidade ção capitalista: longas jornadas; traba-
independente do processo. Vamos e de ruptura seja desconsiderada. Con- lho infantil; remunerações baixas; con-
convenhamos, isso é claramente uma tudo, o Governo não apresentar esse troles intensos sobre a mão-de-obra;
discussão com o modelo Taylorista de elemento, não deixar cair a máscara, é proletarização forçada de camponeses,
administração. A tentativa de supera- de se esperar tendo em vista o seu etc. Com isso se desenvolveram, mas

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não conseguiram suplantar as potên- viços, responsabilidades e, junto com de gestão. O contrato de gestão assu-
cias centrais do capitalismo. tudo isso, do patrimônio e do pessoal me então uma forma estratégica de re-
Observamos então um processo de originalmente estatal. Não há outro passe do patrimônio e de pessoal para
cooptação progressiva da esquerda nome para isso a não ser privatização. um setor paralelo chamado, no Plano
pelo capital, visto que esta não conse- As diversas nomenclaturas que vão sur- Diretor, ou de agência executiva (no
guiu, entre as década de 50 e 70, na gindo no processo - publicização, con- que diz respeito às atividades exclusi-
América e na Europa, impor uma luta tratualização, etc - na verdade dizem vas) ou organizações sociais ( no que
política no mínimo reformista, e aca- respeito a tramites distintos para priva- diz respeito aos serviços não exclusi-
bou sendo protagonista do neolibera- tizar aquilo que é público. vos), além de induzir à modificação, é
lismo. No debate conceitual, as coisas são claro, o contrato de trabalho.
Boa parte dos socialistas vive a pola- mais difíceis de serem enxergadas, Trata-se, decerto, de um processo de
ridade entre o esquerdismo e o refor- mas quando chegamos à proposta privatização. Aquilo que não é estatal,
mismo. De um lado, os esquerdistas concreta, que envolve a relação entre que é chamado de público, que tem
acham que cada conquista que os tra- administração, ação do Estado, presta- estatuto próprio de formato privado,
balhadores alcancem sob o capitalis- ção de serviços e formas de proprieda- mesmo “sem fins lucrativos”, faz parte
mo constitui um estímulo a menos des, fica mais fácil de constatar o con- do setor privado. Vide os modelos de
para a luta revolucionária. Já os refor- junto de argumentações colocadas ONG’s. Esses modelos de organizações
mistas, com raciocínio similar, acham
que a luta cotidiana pode impedir a O objetivo é esvaziar o estado, diminuir os investimentos sociais,
revolução, mas não o socialismo, que
repassar o que interessa para iniciativas privadas e, em outros
poderá ser produto dos pequenos acú-
setores, trazer a iniciativa privada, na lógica ou na pessoa física
mulos das conquistas conjunturais.
Parece que acreditam que os capitalis- dos capitalistas que podem ser responsáveis pelo contrato
tas ficarão paralisados frente à perda de gestão, para dentro da esfera estatal.
progressiva da propriedade. Setores da
esquerda brasileira buscam ainda en- aqui nessa contribuição. Segundo o não governamentais não são outra
contrar o lugar dos trabalhadores na Governo, há três formas de proprieda- coisa que propriedades privadas, as
ordem neoliberal, como fizeram nas des: a estatal, a pública e a privada. As quais acabam ocupando o vazio e a
décadas de 50 e 60. No mínimo não empresas estatais, todas, sem exceção, insuficiência do Estado e contribuindo,
identificaram as mudanças. devem ser privatizadas como no novo com todas as contradições, para as
modelo. Já instituições como universi- mudanças principais que vêm ocorren-
O aparelho de Estado e as dades, hospitais, museus, centros de do nesse período.
formas de propriedade: pesquisa devem ser movimentadas De qualquer forma, o mais impor-
quando cai a máscara para o setor público não estatal. Ca- tante para nós era mostrar a argumen-
É nesse ponto que a máscara do Go- beria à propriedade estatal, portanto, tação teórica e política que justifica um
verno cai. Ou seja, quando se reforça a apenas o núcleo burocrático (legislati- processo progressivo, velado ou não,
argumentação que fizemos no sentido vo, judiciário, presidência, cúpula dos de transferência da ação do Estado pa-
de afirmar que o objetivo central está ministérios e ministério público) e as ra o setor privado. Tal movimentação é
no aumento da taxa de lucro e na alte- atividades exclusivas (regulamentação, chamada de privatização, mas apenas
ração na forma de propriedade, que fiscalização, fomento, segurança públi- no que diz respeito às estatais. No
gerará uma maior concentração da ca, seguridade social básica). A ressal- campo dos serviços, o objetivo é esva-
propriedade privada do capital. Ao afir- va é que as atividades exclusivas terão ziar o estado, diminuir os investimen-
mar que o “Estado é, portanto.o poder o modelo administrativo gerencial e, tos sociais, repassar o que interessa
de constituir unilateralmente obriga- por isso, transferirão as modificações para iniciativas privadas e, em outros
ções para terceiros, com extravasa- para agências executivas, mesmo setores, trazer a iniciativa privada, na
mento dos seus próprios limites”, fica sendo de propriedade estatal, pois lógica ou na pessoa física dos capitalis-
claro que o objetivo, na busca pela efi- todo serviço auxiliar, em qualquer es- tas que podem ser responsáveis pelo
ciência, eficácia e modernidade, de que fera, será terceirizado e, em alguns contrato de gestão, para dentro da
tanto falam, é o repasse das ações, ser- casos, repassado através do contrato esfera estatal. Nesse sentido, afirma-

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Homem e Sociedade

Nesse sentido, sugerimos três ele-


A práxis simplificadora nos leva à repetição de ações que se mentos fundamentais para compor
uma estratégia de luta:
afastam da autocrítica, pois confortam-se em formulações
a) numa perspectiva mais geral, o
principistas. Tal equívoco nos leva a desprezar as diferenças, estabelecimento de um arco de alian-
a correlação de forças, as especificidades, e tende fazer-nos ça com a esquerda brasileira na resis-
tência ao neoliberalismo. Os servido-
reproduzir os mesmos equívocos positivistas.
res precisam se firmar como um dos
agentes fundamentais de luta nesse
mos que o contrato de gestão assume A compreensão do exposto acima período e participar ativamente das di-
papel-chave, fundamental, principal, nos leva ao entendimento de que não versificadas ações da classe trabalha-
na destruição dos serviços públicos e é possível discutir as mudanças no dora, resistindo ao neoliberalismo, as-
na constituição de uma administração setor público, sem debater as marcas sumindo bandeiras gerais e de outros
pública cada vez mais patrimonialista, fundamentais do capital: a proprieda- setores explorados e denunciando,
concentrada, e que esvazia, também de privada, o lucro, a mercadoria, as permanentemente, o que ocorre nos
pela lógica do orçamento, a ação do relações sociais de produção e as for- serviços públicos e na administração
Estado nas esferas sociais. ças produtivas. Apenas um debate pública, apresentando assim suas ban-
administrativista, burocrático, não é deiras específicas;
Sugestão de alternativas para suficiente para cumprirmos dois desa- b) a disputa de hegemonia na socie-
os trabalhadores fios centrais: a) superar as bases teóri- dade. Principalmente se levamos em
É claro que uma superestrutura re- cas da literatura acumulada sobre o conta que o projeto apresentado pelo
cheada amplamente de aparelhos pri- tema em questão, principalmente no governo em 1995 e aqui discutido já
vados de hegemonia e profundamen- que diz respeito ao serviço público e à cumpriu duas das suas etapas estraté-
te mínima em propriedades estatais, administração pública e b) oferecer gicas que diziam respeito à preparação
uma superestrutura com profissionais bases de reflexão que sirvam como das bases para alterações legais e ins-
precarizados, terceirizados, desqualifi- guia para as mudanças da realidade titucionais e às próprias Reformas
cados (propositalmente) e sustentada social, sob a ótica dos trabalhadores. O Constitucionais. Além disso, avança-
na ideologia do voluntariado (portan- diálogo sobre serviço público não ram em muitas mudanças através de
to, intensamente diminuída de profis- pode acomodar-se nas águas das teo- medidas provisórias, decretos leis e
sionais qualificados), uma superestru- rias liberais, jusnaturalistas, positivistas, leis. Nesse momento, no entanto, ha-
tura voltada para circulação dos valo- que se respaldam nas idéias de neu- via uma razoável sustentação social
res de troca, que impõe uma burocra- tralidade estatal e sustentam-se no para ocorrer as transformações. Entre-
cia estatal que se confunde com um conceito de Estado de Direito. Seria tanto, após as greves de 2000 e 2001
“balcão de negócios” e voltada para a profundamente equivocado, tanto do iniciou-se uma movimentação social,
ação dos aparelhos repressivos (volta- ponto de vista da teoria, quando do na qual foi fragilizado, em muito, o
da para a prática da vigilância, da regu- ponto de vista da prática - que se pre- apoio ao governo e fortalecido, razoa-
lamentação, do controle, da interme- tende transformadora - desenvolver a velmente, o apoio para os servidores.
diação e esvaziada em sua capacidade discussão da classe apoiada em for- Isso exige dos servidores uma ação
de ação) têm como conseqüências, ao mulações antagônicas. Por outro lado, imediata que combine dois movimen-
mesmo tempo, a profunda retirada de não podemos cair no equívoco, muitas tos: de um lado, a construção do pro-
direitos sociais (rebaixamento da qua- vezes repetido, das simplificações. A jeto e, de outro, o convencimento da
lidade de vida) e o enfraquecimento práxis simplificadora nos leva à repeti- maioria da população. O projeto não
da capacidade de disputa de hegemo- ção de ações que se afastam da auto- pode se resumir ao debate administra-
nia da classe. A substituição da quali- crítica, pois confortam-se em formula- tivista, deve, necessariamente, indicar
dade (uma das caracterizações do ções principistas. Tal equívoco nos leva mudanças na forma de propriedade
valor de uso) pela quantidade (uma a desprezar as diferenças, a correlação no Brasil, questão fundamental para
das caracterizações do valor de troca) de forças, as especificidades, e tende alterar as condições e o papel do
impõe a mercantilização e a suprema- fazer-nos reproduzir os mesmos equí- Estado a favor dos setores explorados.
cia máxima do lucro. vocos positivistas. Para isso, é necessário pautar nova-

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Homem e Sociedade

mente, como prioridade, o debate so- mas relações de produção de modos pretéri- sindical. Para isso, demanda-se uma análise
bre o Estado e o serviço público em tos que subsistem na América Latina. sobre o sistema capitalista em sua totalidade,
2. Digamos que a questão da subjetividade coisa que não faremos nesse texto, por não
nível nacional. O primeiro passo seria a
é o tema central a ser tratado nesse período ser nosso objetivo.
criação de um fórum permanente so-
histórico da classe. Não a desenvolveremos 7. Marx, Karl. “Prefácio”.Para a Crítica da
bre serviço público na Câmara Fede- aqui porque não faz parte, stricto sensu, do Economia Política - Os Pensadores.
ral17, atraindo os partidos de esquerda, presente trabalho. Vamos apenas explicá-la. 8. Não entraremos no mérito se os mode-
organizações de tradição democrática As condições subjetivas são o somatório entre los existentes na ex-União Soviética, ou nos
(OAB, CNBB, ABI, DIAP etc), entidades organização, formação, elevação de consciên- países do Leste, eram ou não socialistas. Isso
cia, mobilização, capacidade de ações de não cabe nesse texto. Entretanto, a existência
organizativas de luta (UNE, UBES, MST,
massas, radicalização do discurso e da prática, da bipolarização precisa, baseada em dois
etc) e parlamentares que apóiem o
etc. Para melhor entender, apresentaremos a modelos distintos, apresentava uma ordem
debate. Para ter êxito, tal fórum deve figura do foguete, se temos toda a plataforma, econômica que não permitia o avanço do mo-
ser convocado pela CUT e CNESF, além o foguete, a estrutura, energia e o botão para delo neoliberal, que se alastrou na década de
de assimilar, em sua organização e co- enviá-lo, temos as condições objetivas. Fal- 80, com o apodrecimento das nações tidas
ordenação, os partidos de esquerda e tarão apenas as condições subjetivas, ou seja, como socialistas e se consolidou, mesmo já
o dedo para apertar o botão. com as crises aparentes, no início da década
o Fórum de Lutas.
3. Apropriamo-nos do conceito de Gramsci, de 90, com a definitiva queda “dos muros”.
c) retomar a capacidade de mobili-
apresentado nos Cadernos do Cárcere, para 9. Petras, James. Armadilha Neoliberal e Al-
zação e luta sindical, operando a orga- melhor explicar a extensão e amplitude do ternativas para a América Latina. Editora
nização por local de trabalho, de forma
permanente, e convocando uma gran-
de greve do setor que possa ter conse-
qüência em uma grande greve geral
(ou, no mínimo, ser combinada com
uma grande greve geral). O debate
sobre organização sindical deve ocor-
rer com capacidade de aprofundar di-
ferenças que há no setor. Aparente-
mente, há compreensões distintas so-
bre a caracterização dos servidores co-
mo um setor da classe trabalhadora
(tanto pelos que acham que os servi- Estado. Com isso, pretendemos explicar Xamã.
dores compõem vários setores da clas- melhor que a alteração da forma de proprie- 10. Idem.
se trabalhadora, quanto para os que dade, promovida pelo Governo de FHC, não 11 Ibidem.
transforma o Estado em mínimo, ao contrário, 12. O que certamente resume-se ao pro-
acham que há vértices mais fortes de
amplia sua capacidade de dominação e sua cesso eleitoral e ao processo de promulgação
unidade, não pelo vínculo de trabalho,
extensão de controle e ideologia, fortalecendo da constituição. Por isso, baseiam-se no con-
mas, mais precisamente, pela função sua hegemonia (ou seja, seu poder), através ceito de cidadania e não em conceitos de
que desempenham ou ocupam). No da ampliação dos aparelhos privados que classe social.
fundamental, o pacote antigreve, edi- cumprem papel de reprodução na superestru- 13. Com todas as influências de neutralida-
tado em 13 de novembro de 2001, pe- tura. de técnica ou epistemológica, Weber estava
4. Marx, Karl. “O método da Economia Po- mais para racionalista do que para positivista.
lo Governo Federal, exige uma respos-
lítica”. Marx (coleção Os pensadores). A construção de modelos de tipo ideal não
ta imediata que, do nosso ver, deve
5. Estado Bonapartista é um conceito mar- tinham relação direta com a realidade objeti-
apresentar-se através da radicalização xista para explicar situações em que o Estado va. Não era um trabalho de um economista
da luta de massas e do movimento assume uma aparência de estar acima das ou de um cientista político, que pensa formas
grevista. classes, muitas vezes motivado por um golpe reais de administração, mas sim uma formula-
ou mesmo por um governo que não repre- ção sociológica de modelos teóricos gerais,
senta as classes fundamentais, que no capita- que mesmo tendo indicadores na história ou
NOTAS:
lismo ainda são trabalhadores e burguesia. nas sociedades, partem ou se propõem como
1. Como é o caso de Cuba; de algumas
6. Aqui encontraremos alguns indicativos. concreto.
relações não propriamente capitalistas na
Os outros estão fora desse arco de debate, 14. Mesmo com a diferenciação do margi-
China (que não nos arriscamos aqui aprofun-
encontram-se nas formas de luta e na estraté- nalismo para a concepção keynesiana, esta-
dar), de realidades de barbárie que, infeliz-
gica da classe trabalhadora e do movimento mos incluindo Keynes aqui nesse grupo.
mente, tomam parte da Ásia e África e algu-

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 117


Homem e Sociedade

15. Insistiremos permanentemente nessa Liberatore. São Paulo: Ática, 1992. Kugelmann. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
tese. 12. _________. Marxismo sem utopia. São 33. _________. Formações econômicas pré-
16 A multiporlaridade antes era clara com Paulo: Ática, 1999. capitalistas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
a disputa entre as potências do chamado 13. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárce- 34. _________. Crítica do programa de go-
“socialismo real”, das quais se destacava a re - Volume 1: Introdução ao Estudo da tha. Livraria Ciência e Paz, 1984.
URSS, e as potências capitalistas, dentre as Filosofia. A filosofia de Benedetto Croce. Rio 35. MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A ide-
quais se destacava os EUA. Hoje, no entanto, de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. ologia alemã. São Paulo: Hucitec, 1999.
há uma disputa de hegemonia, que ocorre 14.________________. Cadernos do cárcere 36. PETRAS, James. Armadilha neoliberal e
principalmente entre os EUA e a Comunidade - Volume 2: Os Intelectuais. O Princípio Edu- alternativas para a América Latina. São Paulo:
européia, sobre o tema. Não interessa aos cativo. Jornalismo. Rio de Janeiro: Civilização Xamã, 1999.
europeus um mundo unipolar, pois isto signi- Brasileira, 2000. 37. _______________. Ensaios contra a or-
fica a reafirmação da predominância imperia- 15. _______________. Cadernos do cárcere - dem. São Paulo: Scritta, 1995.
lista dos Estados Unidos. Portanto, hoje a Volume 3: Maquiavel. Notas sobre o Estado e 38. POMAR, Valter (organizador). Socialis-
questão entre unipolaridade e multipolarida- a Política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, mo ou barbárie (Documentos da Articulação
de faz parte da disputa capitalista das grandes 2000. de Esquerda). São Paulo: Viramundo, 2000.
potências sobre o controle do mundo. 16. _______________. Cadernos do cárcere - 39. SANTOS, Luiz Alberto. Agencificação, pu-
17 . A proposição da Câmara de Deputados Volume 4: Temas de Cultura. Ação Católica. blicização, contratualização e controle social.
Federais como espaço para a organização do Americanismo e Fordismo. Rio de Janeiro: Brasília: DIAP, 2000.
Fórum Permanente sobre Serviços Públicos Civilização Brasileira, 2001. 40. __________________. Diretrizes Para a
parte do principio de que é um espaço que 17. GUIMARÃES, Juarez. Democracia e mar- criação e estruturação de carreiras no serviço
tem ampla repercussão em várias esferas da xismo: crítica à razão liberal. São Paulo: Xamã, público federal. Brasília: CONDSEF, 2000.
sociedade e por estarem representadas, nesse 1998. 41. __________________. Reforma adminis-
espaço, variadas vertentes da esquerda brasi- 18. HARNECKER, Marta. Tornar possível o trativa no contexto da democracia. Brasília:
leira. As que lá não estão, deveriam ser convi- impossível. São Paulo: Paz e Terra, 2000. DIAP, 1997.
dadas para participar do processo. 19. IANNI, Octavio. Estado e planejamento 42. WEBER, Max. Metodologia das ciências
econômico no Brasil. Rio de Janeiro: Civiliza- sociais, parte 1. São Paulo: Cortez Editora;
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de Janeiro: Zahar, 1979. cia. São Paulo: CPV, 1999. sociais, parte 2. São Paulo: Cortez Editora;
2. ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos 21. KURZ, Robert. Os últimos combatentes. Campinas: Editora da UNICAMP, 2001.
de estado. Rio de Janeiro: Graal, 1998. Petrópolis: Vozes, 1997. 44. ____________. A Ética protestante e o
3. BENJAMIM, César. Decifra-me ou te 22. ___________. O colapso da moderniza- espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira
Devoro. Apud: SADER, Emir (organizador). ção. São Paulo: Paz e Terra, 1999. Thomson Learning, 2001.
Alternativa de esquerda à crise brasileira. Rio 23. LEFEBVRE, Henri. Lógica formal / Lógica Outros
de Janeiro: Relume Dumará, 1993. dialética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 45. Socialismo e revolução: resoluções da
4. BENSAÏD, Daniel. Marx, o intempestivo: 1995. IV Conferência Nacional da Articulação de
grandezas e misérias de uma aventura crítica 24. LÖWY, Michael. As aventuras de Karl Esquerda. Campinas: Editora Página 13, 2001.
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10. _______________. As regras do método Nova Cultural, 1999. Cientista Social.
sociológico. São Paulo: Companhia Editorial 31. _________. Manuscritos econômicos e
Nacional, 1975. filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1964.
11. GORENDER, Jacob. Marcino e 32. _________. O 18 Brumario e cartas a

118 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


Homem e Sociedade

Gilberto Marques *

Desenvolvimento
e natureza: interpretações e
possibilidade de diálogo
Introdução
Os problemas ambientais estão
ganhando cada vez maior magnitude,
colocando em risco a própria
existência humana. Diante desta
realidade, como os pesquisadores e
ativistas das questões ecológicas e
temas relacionados devem enfrentar
esta problemática? Como
interpretá-los?
Este trabalho pretende fazer breves
incurssões nesta temática. Na primeira
parte, faremos uma rápida exposição
do debate nas últimas décadas, desta-
cando as interpretações clássicas do
desenvolvimento sustentável, para, na
segunda parte, trazer a problematiza-
ção para o campo da evolução da ci-
ência. Em seguida, será introduzido o
pensamento de Marx para que se pos-
sa propor, na última parte, um diálogo
entre economia política e ecologia po-
lítica.

Introduzindo a questão ambiental


no debate sobre desenvolvimento
A humanidade vem saqueando a
terra. Esta é a constatação do relatório
de 2001, do Fundo das Nações Unidas
para a População (FNUAP). Desde dos demonstram que, entre 1985 e em permanente estado de desnutri-
1960, a população mundial dobrou 1995, dos 105 países em desenvolvi- ção, que 2 bilhões passam a fome, às
para 6,1 bilhões de pessoas e deve mento estudados em 64, a produção vezes, e metade da população do pla-
alcançar 9,3 bilhões, em 2050, a maio- de alimentos foi inferior ao crescimen- neta vive com menos de US$ 2,00 ao
ria está nos países pobres. Do ponto to populacional. O relatório afirma ain- dia (Jornal do Brasil, 08.11.2001). Esta
de vista da produção alimentar, os da- da que 800 milhões de pessoas vivem situação tem em si uma forte implica-

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 119


Homem e Sociedade

ção social e ambiental. Diante disto, o mente nos debates estarão teses que
controle populacional acaba assumin- Os grandes interesses da partem da finitude dos recursos natu-
do papel de destaque no relatório. rais, dos limites físicos ao desenvolvi-
Apesar dos dados atualizados, a dis-
produção capitalista, em mento econômico e de que o cresci-
cussão que o relatório traz não é nova. base à busca do lucro, mento populacional gera problemas, o
As preocupações com as questões ainda predominam na hora que impõe a necessidade de políticas
ambientais e mesmo populacionais já que controlem a expansão da popula-
de determinar as diretrizes
vêm de longa data. O debate em torno ção em escala global.
deste tema se intensificou nas décadas do desenvolvimento. O relatório do Clube de Roma, de
de 1960 e 1970 e ganhou expressão 1972, apresenta a tese “limites do cres-
em algumas correntes que começaram cimento”. Tese impulsionada também
a moldar propostas de desenvolvimen- pela Conferência de Estocolmo sobre
to que levassem em conta os proble- recursos naturais são finitos e a popu- desenvolvimento humano que se rea-
mas ambientais em escala mundial. lação cresce em ritmo ascendente, isto liza também neste ano. Diante da
Muitas das elaborações vão cami- conduziria a uma situação em que se constatação de dificuldades de produ-
nhar para o que vai ser conhecido superaria a capacidade de suporte do ção de alimentos e da existência de
como desenvolvimento sustentável sistema1, fazendo com que este per- danos irreparáveis ao meio ambiente,
que, desde o seu início, já apresentava desse sua capacidade de reprodução, o relatório afirma que o crescimento
leituras diferentes sobre si mesmo. de se manter sustentável, isto é, em econômico ilimitado é insustentável.
Estas leituras vão se aprofundando, le- equilíbrio, levando a um esgotamento Como resultado de suas constatações,
vando, em alguns momentos, a aproxi- dos recursos naturais e à morte dos defende a interdependência global e a
mações de interpretações, em outros membros da sociedade, ou seja, à “tra- necessidade de crescimento zero.
ao afastamento e ao surgimento de gédia dos comuns”. A tese de crescimento zero esteve
novas elaborações. A compreensão de Hardin se contra- presente na conferência de Estocolmo
O debate que se apresenta nesta põe à interpretação liberal de Adam que discutiu uma concepção mais glo-
década traz muita influência do econo- Smith que em sua teoria da mão invi- bal de desenvolvimento, vinculando
mista inglês Thomas Malthus que, no sível, afirma que os interesses indivi- questões sócio-econômicas e ambien-
final do século XVIII e início do século duais, egoístas, levariam ao bem-estar tais, de forma a abordar a responsabi-
XIX, desenvolve sua teoria da popula- de toda a sociedade. Para o autor, este lidade comum sobre o meio ambiente
ção que afirma que a população cres- comportamento teria como resultado e a colaboração entre países ricos e
ce em ritmo geométrico (2, 4, 8, 16...) o esgotamento dos recursos, colocan- pobres. Mas a defesa de crescimento
e a produção alimentar em proporções do em risco toda a população. Em zero feita pelos países ricos encontrou
aritméticas (2, 4, 6, 8...), levando a comum com Smith, é a defesa da pro- forte resistência entre os países pobres
uma situação de desproporção entre priedade privada, mas como forma de que reivindicaram o direito ao desen-
crescimento populacional e produção evitar a tragédia dos comuns. Assim, volvimento e à melhoria de vida. Assim
de alimentos. Isto traria problemas e ele defende um Estado centralizador e estabeleceu-se um impasse que carac-
colocaria em risco todo o conjunto da o estabelecimento de normas que terizou a conferência.
população. Assim, o crescimento po- limitem a liberdade, pois só se evitan- O debate dos problemas ambientais,
pulacional era um problema que deve- do o crescimento populacional se evi- desde o seu início, é polêmico e confli-
ria ser enfrentado através de mecanis- taria a tragédia. tuoso. Os Estados latino-americanos
mos que limitassem esta expansão. Tal qual Malthus, os autores neomal- ávidos pela industrialização que ga-
Um autor que desenvolve suas ela- thusianos apresentam uma visão apo- nhava fôlego em vários países da re-
borações tendo por base o pensamen- calíptica e menosprezam o desenvolvi- gião, apresentam o relatório de
to malthusiano é Garret Hardin (1980) mento tecnológico, assim como a ca- Bariloche que tem como principal ob-
que, nos anos 60 e 70, resgata a visão pacidade de auto-regulação das comu- jetivo fundamentar o direito ao desen-
apocalíptica do crescimento popula- nidades. Suas interpretações acabam volvimento contra as imposições eco-
cional. Ele não acredita em soluções desaguando na defesa das teses de lógicas (Altvater, 1995).
técnicas à disjuntiva expansão popula- “crescimento zero”. Em 1973, Maurice Strang, diretor do
cional versus recursos naturais. Se os Sempre presentes preponderante- programa de meio ambiente da ONU,

120 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


Homem e Sociedade

apresenta o conceito de ecodesenvol- (CMMAD), onde se fará a defesa de lo, porém muito do que se elaborou,
vimento, defendendo uma unidade um desenvolvimento sustentável que em seus pontos chaves, não saiu do
possível entre meio-ambiente e interrelacione parâmetros de sustenta- papel. A solidariedade entre países ri-
desenvolvimento. A partir dele, Ignacy bilidade, padrões de desenvolvimento, cos e pobres, por exemplo, tem se res-
Sachs (2000) formula as bases do que subdesenvolvimento, degradação am- tringido a discursos “bem intenciona-
virá a ser entendido como desenvolvi- biental, pobreza e compromisso e soli- dos”. Assim têm ocorrido porque os
mento sustentável: satisfação das dariedade entre países desenvolvidos grandes interesses da produção capi-
necessidades básicas; solidariedade e pobres. talista, em base à busca do lucro, ainda
para com as gerações futuras; preser- A cidade do Rio de Janeiro foi o pal- predominam na hora de determinar as
vação dos recursos naturais, assim co- co, em 1992, das polêmicas e debates diretrizes do desenvolvimento.
mo do meio-ambiente; estabeleci- da Eco-92: a conferência das Nações
mento de um sistema social que pro- Unidas que discutiu desenvolvimento Chamando a ciência a
picie emprego, segurança social e res- e meio ambiente, entre outras, esteve se posicionar
peito a outras culturas; programas presente a discussão sobre problemas As interpretações da relação desen-
educacionais e envolvimento da popu- ambientais e a contradição entre os volvimento e natureza exposta até
lação. Mesmo trabalhando com a padrões de consumo do norte e as aqui, em maior ou menor grau, traba-
noção de limites dos recursos, Sachs, dificuldades do sul do planeta. Em lham dentro da lógica da produção ca-
diferente de outros autores deste pitalista. Uma matriz teórica que apon-
período, não menosprezará os avan- te um outro caminho pode ser encon-
ços tecnológicos, tampouco negará o trada nas elaborações de Karl Marx. O
desenvolvimento, desde que haja ética método de análise e a forma de enten-
e justiça. Suas elaborações têm como der a ciência, neste autor, são opostos
ênfase a busca de um desenvolvimen- à concepção de ciência que se mante-
to alternativo, o ecodesenvolvimento ve hegemônica até o século XIX.
que, mesmo que sem se propor a Em contraposição à explicação divi-
romper as estruturas capitalistas de na em si, desenvolve-se um movimen-
produção, incorpore a preocupação to que buscará, na razão instrumental,
ambiental, social e temporal (solidarie- a explicação para os fenômenos que
dade para com as gerações futuras). nos cercam e se tornará o “arcabouço
Alguns dos princípios do ecodesen- operacional da ciência moderna”. Po-
volvimento são incorporados pela con- demos destacar como expoentes des-
ferência de Cocoyoc, em 1974, que le- 1994, realizou-se a Conferência Inter- te movimento: Galileu, Bacon, Descar-
vanta a preocupação para com um nacional sobre População e Desen- tes e Newton. Nesta interpretação, o
desenvolvimento econômico que te- volvimento também envolta no debate mundo é visto como sendo mecaniza-
nha como objetivo a satisfação das ne- sobre controle populacional e desen- do, matematizado e previsível. A física
cessidades básicas. Para o presente, a volvimento. Em novembro de 2001, a newtoniana, mecânica, entendia o
conferência defendia a solidariedade Conferência sobre Mudanças Climá- tempo como sendo igual a zero, ou se-
às populações em situação de pobreza ticas, em Marrakech, no Marrocos, foi ja, tudo retornava a seu início. Assim, a
e subdesenvolvimento, para o futuro aberta com a polêmica em torno ao lógica e a matemática se tornam su-
defendeu um desenvolvimento mais acordo assinado em julho do mesmo portes básicos da ciência moderna
harmônico com a natureza como for- ano, em Bonn na Alemanha, para a que apresenta uma concepção frag-
ma de garantir sua existência para as efetivação do Protocolo de Kioto de mentada da realidade, do próprio co-
gerações futuras. 1997. O protocolo, que versa sobre a nhecimento, numa divisão cartesiana,
Nos anos 80, o debate em torno do redução de gases poluentes que cau- onde a sociedade é tomada como a
desenvolvimento permanece e dá ori- sam o efeito estufa, encontra grande somatória das partes. O homem se
gem a novos encontros e documentos, resistência por parte dos EUA, mas é apresenta, então, como “senhor e pos-
entre os quais o Relatório de Brund- defendido pela União Européia. suidor da natureza”, isto é, homem ver-
tland ou Nosso Futuro Comum, da Co- Muitos encontros e documentos já sus natureza (Moreira, 1993).
missão Mundial para o Meio Ambiente foram elaborados e continuarão a sê- Como decorrência, tem-se o enten-

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 121


Homem e Sociedade

fosse produzido seria vendido, impos- interdependências” (Moreira, op. cit.).


sibilitando a ocorrência das crises eco- Percebe-se que as leis da termodinâ-
nômicas. Aqui percebe-se a noção de mica (em particular a entropia) revolu-
equilíbrio do sistema, além da fé no cionam a noção de tempo que deixa
progresso, que seria constante. de ser visto como sendo igual a zero.
Malthus, mesmo com sua visão pes- Assim, o mundo perde sua previsibili-
simista quanto ao futuro da humani- dade mecânica, tornando-se comple-
dade (portanto não otimista quanto ao xo, incerto, imprevisível.
progresso), através de sua teoria da
população, afirma que a pobreza e o Convidando Marx
sofrimento eram, inevitavelmente, o a participar do debate
destino da maioria das pessoas. Se Uma visão complexa e interrelacio-
eram um destino inevitável, a conclu- nal de mundo pode ser encontrada
dimento do progresso como sendo são é que isto acabava por se esboçar nos trabalhos de Marx. Apesar de não
linear e acumulativo. A verdade abso- em uma espécie de lei natural. ter uma obra específica destinada a
luta do conhecimento científico, a fé As leis naturais, nas ciências sociais, discutir natureza, desenvolvimento e
na razão, resolveria os problemas. Isto representaram, ou melhor, foram parte progresso, ele tem sua obra no geral,
impõe a esta visão de ciência um forte de um método de análise, mas tam- em maior ou menor grau, cruzada por
otimismo quanto ao progresso. bém se constituíram em uma defesa esta temática.
Esta interpretação da ciência desem- ideológica da sociedade burguesa, na Em sua análise do modo de produ-
penhará grande influência sobre as medida que afirmam que as desigual- ção capitalista, principalmente em O
ciências sociais que passam por um dades são uma marca presente em Capital (1988), ele identifica a merca-
processo de busca de leis similares às todas as sociedades e não apenas na doria como sendo um produto que,
da natureza que fossem imutáveis, capitalista, cabendo a cada um aceitar por suas qualidades específicas, satis-
inquestionáveis. Adam Smith, no sécu- e cumprir o seu papel dentro desta faz determinadas necessidades huma-
lo XVIII, através da teoria da “mão invi- última. Se assim o fizessem, os mem- nas, provenha elas do estômago ou da
sível”, afirma que as pessoas, na busca bros da sociedade estariam contribuin- fantasia. A mercadoria tem um valor
de seus interesses individuais, egoís- do para manter o equilíbrio da mesma. de uso, mas também um valor de
tas, acabariam levando a um bem- Mas as mudanças e descobertas do troca, que será determinado pela
estar de toda a coletividade. Isto se século XIX serão responsáveis por sig- quantidade de trabalho socialmente
torna a base de sua defesa do liberalis- nificativas mudanças nas interpreta- necessário para a sua produção.
mo e se apresenta como uma visão ções da ciência. A evolução da geolo- Assim, pode-se perceber que o traba-
otimista do progresso que seria, nestes gia, assim como suas descobertas, lho é uma categoria fundamental na
moldes, uma conseqüência das leis quebram a idéia de que as espécies obra de Marx.
naturais da sociedade, quando em li- seriam imutáveis. Tese que será de- No capitalismo, a maioria da popula-
berdade. monstrada na biologia por Darwin e ção não dispõe dos meios de produ-
Posteriormente, Jean-Batiste Say também Wallace. A constatação da ção para a sua manutenção, restando-
trará uma concepção de natureza mutação das espécies abala profunda- lhe a opção de morrer de fome ou pro-
como sendo ilimitada, portanto gratui- mente a tese de que “tudo volta a ser curar vender a única mercadoria que
ta, de livre acesso, em que caberia ao como antes”. Já a física quântica que- lhe resta: sua força de trabalho. Ao
homem se apropriar da mesma. Per- brará a visão absoluta da matéria e vender sua força de trabalho, o traba-
cebe-se que o determinismo da ciên- trará a visão da interrelação: “sob a luz lhador recebe, na forma de salário,
cia moderna, neste caso, assume sua desta percepção, a realidade é a de uma quantidade de valor menor do
face de determinismo econômico, de que estas entidades subatômicas não que aquela que ele produziu, a dife-
superioridade da economia sobre a possuem propriedade intrínsecas, uma rença de valor será apropriada pelo
natureza, que é vista como externa ao essência individualizadora, indepen- capitalista. Este trabalho alheio apro-
sistema econômico. Além disso, este dente do seu meio ambiente. O ser da priado é a mais-valia, condição neces-
autor acredita que a oferta cria sua entidade é relacional, uma complexa e sária para a existência do lucro no
própria demanda, isto é, que tudo que dinâmica realidade de interconexões e capitalismo.

122 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


Homem e Sociedade

A mercadoria, então, expressa uma dade, transformando-se no “funda- tencialidades, de fazer avançar o pro-
relação social fetichizada entre pro- mento da vida humana” (Engels, gresso técnico que, por sua vez, impul-
prietários e não proprietários dos mei- 1986). O homem é visto como parte siona a socialização histórica.
os de produção, o que se traduzirá da natureza e não acima ou separado Diante do exposto, Marx apresenta
num conflito permanente entre bur- dela. uma visão linear, produtivista, otimista
gueses e proletários. O trabalho pre- Mas no capitalismo o trabalho acaba do progresso? Lowy (2000-a) afirma
sente ou passado, determinante do va- por assumir uma função de alienação que o pensamento deste autor está
lor das mercadorias, apresenta então do trabalhador. Com o avanço técnico atravessado por duas concepções dife-
uma face social, na medida em que é e o aprofundamento da divisão social rentes da dialética do progresso. A pri-
um instrumento que medeia a relação do trabalho dentro das unidades de meira de influência hegeliana, fechada,
dos homens entre si e a natureza. Mas produção burguesas, o trabalhador vai que parece acreditar que o desenvolvi-
o trabalho também traz uma face na- perdendo a noção da totalidade de mento das forças produtivas, impulsio-
tural, na medida em que é desgaste de seu trabalho, se restringindo a contro- nado pela Europa, seria sinônimo de
energia contida no homem, assim lar apenas uma parte do processo de progresso e nos conduziria inevitavel-
como nos demais animais. A forma e o produção de determinado produto. mente ao socialismo2. A segunda dia-
sentido que se dará a este desgaste de Mas além disso, o homem passa a vi- lética do progresso é aberta e crítica3,
energia é que diferenciará o homem ver para trabalhar, a satisfação de suas pensa a história simultaneamente
dos demais seres vivos. Em conclusão, necessidades básicas se transforma no como progresso e catástrofe, sem pri-
o trabalho é apresentado por Marx co- fim último de seu trabalho e a sensa- vilégio a um ou outro, pois a saída do
mo uma expressão do homem como ção de liberdade quase sempre só se processo histórico não está pré-deter-
animal, mas também como ser social. apresenta quando ele satisfaz estas minada. Aqui há uma clara ruptura
Através do trabalho, o homem trans- necessidades. O trabalho não é usado com a visão linear de progresso. Em
forma a natureza, mas também a si para alcançar “algo mais”, para obter relação às sociedades pré-capitalistas,
próprio. A descoberta de novas técni- tempo livre para outras atividades, pa- a sociedade burguesa é, simultanea-
cas, de ferramentas e do controle do ra desenvolver o próprio homem. As- mente, avanço e retrocesso. Assim, o
fogo permitiu ao homem primitivo se sim, o trabalho se limita a seu caráter processo histórico é visto como aberto
apropriar de uma maior parcela de re- enfadonho, cansativo, e, ao invés de e frente à luta de classes permite con-
cursos da natureza, mas ao fazer isso, libertar, aprisiona o homem. cluir que a revolução socialista não é
por exemplo, passar a se alimentar de O homem está constantemente cri- nossa única possibilidade. Deste mo-
carne e não apenas de vegetais, ele ando novas necessidades e isso é as- do, não podemos nos pronunciar de
adquiriu substâncias, proteínas, que sim porque ele “não é uma essência antemão a respeito do caráter progres-
até então não dispunha, possibilitan- intemporal, mas a unidade de suas sivo ou regressivo do desenvolvimento
do-lhe um desenvolvimento maior en- próprias carências que o determinam capitalista das forças produtivas.
quanto animal. Mas o avanço das for- dentro de uma relação de troca e de Uma visão que acaba identificando a
ças produtivas também propiciaram- enriquecimento recíproco tanto com o interpretação de Marx a uma certa
lhe avançar em sua socialização, no es- seu meio natural como com seu meio compreensão linear de progresso é a
tabelecimento de relações cada vez social” (Bensaid, 1999). Sendo assim, de Wallerstein (1999). Ele propõe um
mais complexas com os outros ho- o surgimento de novas necessidades método de análise que negue as inter-
mens. Logo, o trabalho cumpre papel coloca o homem diante de novos de- pretações fragmentadas, excessiva-
fundamental no progresso da humani- safios, do enriquecimento de suas po- mente classificatórias do conhecimen-
to que acabam criando modelos e nor-
mas. Propõe uma perspectiva teórico-
O surgimento de novas necessidades coloca o homem metodológica holística para entender a
relação entre o particular e o geral,
diante de novos desafios, do enriquecimento de suas sem dicotomia e buscando compre-
potencialidades, de fazer avançar o progresso técnico que, ender as ciências sociais sem as fron-
teiras que as fragmentam. Este méto-
por sua vez, impulsiona a socialização histórica. do, a análise dos sistemas mundiais,
afirma que o capitalismo é um sistema

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 123


Homem e Sociedade

histórico particular e que para enten- truição acelerada da natureza, um au- entre as nações” (Souza, In Souza).
der seu real funcionamento devemos mento em massa do desemprego em
analisar a sua evolução histórica. escala mundial, marginalização e sub- Estabelecendo um diálogo
A perspectiva dos sistemas mundiais emprego, crise ambiental em escala necessário entre economia
busca entender como se dá o proces- global. Isto reflete a própria contradi- e ecologia
so de mudança, mas sem tentar ver o ção do capitalismo, a desigualdade no Bensaid afirma que os ritmos natu-
progresso e as transições, como um mundo, o que pode ser evidenciado rais desenvolvem-se em séculos e fa-
movimento linear, acumulativo, mas pela incompatibilidade de medida en- zem com que o tempo biológico tenha
num processo complexo e incerto, ne- tre o tempo mercantil e o tempo eco- uma dinâmica incompatível com a
gando a visão da ciência como certeza lógico, ou seja, entre o ritmo ascen- racionalidade mercantil, da busca dos
absoluta, previsível. Defende, então, dente da produção de mercadorias e o lucros imediatos, impondo uma forte e
uma “ciência social histórica que se rompimento da dinâmica da natureza intensa exploração da natureza levan-
sinta à vontade com as incertezas da de se recompor frente aos impactos do à ruptura de sua dinâmica. Diante
transição, que contribua para a trans- desta produção cada vez maior. disto, a questão central a ser enfrenta-
formação do mundo sem apelar para a da não é o esgotamento brusco dos
muleta de uma crença no triunfo inevi- recursos naturais, já que a dinâmica
O avanço técnico é uma
tável do bem”. natural se desenvolve em períodos
Lowy nos mostrou que se há uma
condição necessária ao longos, ou seja, falar em destruição do
visão linear de progresso em Marx, desenvolvimento humano, mas planeta terra é falar de um tempo his-
também há uma perspectiva comple- este desenvolvimento, assim tórico-natural muito longo em relação
xa, não-linear, o que relativiza a crítica como o avanço da técnica, à ação humana.
de Wallerstein. Mas, de qualquer for- tem que ser visto numa relação Podemos concluir de antemão que o
ma, vale ressaltar o chamamento des- homem-homem e homem- homem pode deixar de existir e a terra
te autor para que não se incorra nas continuar seu curso natural, mesmo
natureza, o que, por sua vez,
verdades absolutas, que neguem a que transformada. Se é assim, nos res-
incerteza e nos conduzam a interpreta-
expressa determinada forma ta deduzir que os problemas ambien-
ções simplistas do desenvolvimento social histórica, tal qual tais são eminentemente muito mais
humano. demonstrou Marx. uma questão de sobrevivência huma-
Pelo que já demonstramos anterior- na e muito menos de sobrevivência da
mente, o avanço técnico é uma condi- Progresso e desenvolvimento preci- Terra.
ção necessária ao desenvolvimento hu- sam ser relativizados, problematizados, Nesta linha de interpretação, Fola-
mano, mas este desenvolvimento, assim entendidos em seus contextos históri- dori (1999) coloca que não se pode
como o avanço da técnica, tem que ser cos e em meio às relações sociais. Mas, reduzir os problemas ambientais me-
visto numa relação homem-homem e além disto, também deve-se atentar ramente a questões de externalidades,
homem-natureza, o que, por sua vez, para o conteúdo dos mesmos. Geral- somente técnicas ou naturais. O que
expressa determinada forma social his- mente, o conceito de desenvolvimento se deve perceber é que o conteúdo
tórica, tal qual demonstrou Marx. e progresso “mistura-se com a moder- técnico se relaciona com uma determi-
A corrida intransigente pelo lucro, nização tecnológica e competência pro- nada forma social, que as modifica-
exigência da lógica competitiva e ex- dutiva e facilita assim, sem despertar ções ambientais refletem a forma co-
pansionista do capital levam a uma suspeita de ser ideológico, a reformula- mo se produz e consome os recursos,
universalização crescente das carên- ção e realização de uma hegemonia que a produção é permeada por rela-
cias, das necessidades, gerando avan- que se alimenta de fontes arcaicas” ções sociais entre os homens. Mais:
ços sem precedente as forças produti- (Bruzeke in Souza). Desta forma, as “- “que existe uma correspondência en-
vas, produzindo, por um lado, aumen- noções de desenvolvimento e progres- tre o nível de diferenciação interna da
to da produtividade do trabalho, maior so como noções neutras e universal- sociedade humana e o comportamen-
eficiência na exploração da natureza, mente desejadas permitem obscurecer to da natureza”.
maior diversidade de valores de uso e, as relações de poder e domínio (econô- Assim, os problemas ambientais não
de outro lado, o desperdício dos re- mico, político, tecnológico, militar etc.) são uma questão essencialmente de
cursos, o consumo crescente, a des- que ocorrem tanto no interior quanto limite físico dos recursos. As tempora-

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Homem e Sociedade

lidades distintas entre o econômico e gastar tempo com a constatação de bada na “capacidade auto-organizativa
o natural nos colocam diante da ne- que modernização, desenvolvimento, dos sistemas ecológicos” e sociais.
cessidade de ver que a degradação industrialização e afluência ocorrem Desta forma, a autora acredita que a
ambiental é, fundamentalmente, pro- em uma sociedade mundial com re- elaboração de um conceito de impac-
duto das contradições sociais impostas cursos naturais limitados e relações de to ambiental (que ela propõe para o
pela lógica do lucro. Existe um relativo dominação econômica demarcadas estudo dos fenômenos onde esta pre-
limite ao uso dos recursos da natureza que, por sua vez, transformam qual- sente a relação sociedade-natureza),
e isso não se pretende negar, o que quer caso isolado em um momento da pressupõe mudanças na noção de sis-
pretendemos fazer é chamar atenção sociedade mundial economicamente temas dinâmicos, por meio da “con-
para as relações sociais que levam ao contraditória, socialmente polarizada, cepção de sistemas complexos, não-
esgotamento dos recursos. politicamente conflitiva e ecologica- lineares e longe do equilíbrio”5.
Ao fazer isto, não queremos incorrer mente unificada”. O economicismo extremado cai nu-
na crítica feita por Vayda e Walters Desta forma, a questão ambiental ma negação da natureza, a corrida
(1999) que afirmam que os ecologis- deve ser estudada em sua totalidade, pelo lucro deixa-o cego, impedindo-
tas políticos caem num determinismo fazendo a devida compreensão da re- lhe de ver a complexidade da relação
político quando da explicação das lação homem-natureza, sociedade- sociedade-natureza. Por outro lado,
mudanças ambientais, não destinando natureza, sem entender as partes des- anti-produtivistas e naturalistas funda-
atenção necessária aos fenômenos fí- ta relação como elementos opostos, mentalistas também redundam num
sicos e biológicos, se restringindo a ex- mas sim imbricadas num todo relacio- superficialismo vulgar que pode se tra-
plicar as mudanças ambientais apenas nal. Assim como não podemos negar a duzir em posturas reacionárias em no-
pelos determinantes políticos. O estu- existência e influência dos fenômenos me de uma pseudo-defesa da nature-
do dos fenômenos físicos e biológicos físicos, também não podemos incorrer za. Corre-se o risco, inclusive, de iden-
é necessário, mas, por outro lado, não em análises que se fecham no econo- tificar a liberdade como um perigo ao
se pode cair, o que de certa forma micismo extremado ou no naturalismo ecossistema, negando a racionalidade
ocorre com estes dois autores, num fundamentalista. humana em favor do determinismo
determinismo empiricista que nega a A compreensão desta totalidade natural, o que chega a transformar as
teoria em função dos estudos de caso. parte, justamente, da indissociabilida- vítimas dos impactos ambientais em
Altvater critica esta postura afirman- de entre natureza e sociedade para vilões, em culpados, inocentando os
do que a resignação teórica, bastante investigar as dialéticas das mudanças verdadeiros responsáveis.
difundida, provoca cinismo na política ambientais e sociais e, assim, questio- Este movimento interpretativo acaba
ambiental e de desenvolvimento. Ele nar as interpretações deterministas. produzindo, em alguns momentos se
defende como “absolutamente neces- Coelho (2000) afirma que tanto a resumindo, propostas para controlar
sária” a linha da “grande” teoria para complexidade do espaço urbano4 rela- arbitrariamente a taxa de natalidade6.
que se apreenda “ao menos o âmbito cionado à estrutura de classes sociais Deixa-se de fazer a crítica devida à ló-
social mundial para os projetos de de- quanto à complexidade das condições gica mercantil adotando uma raciona-
senvolvimento e de política ambiental”. biofísico-químicas limitam evoluções lidade mecânica, limitada e conserva-
Isto exige que as grandes teorias não determinísticas em relação à fé exarce- dora. Assim é até provável que alguns
se limitem a categorias tradicionais ou enalteçam um burguês que colabora
se restrinjam a ampliá-las “trans e inter- As temporalidades distintas financeiramente para a preservação de
disciplinarmente”, mas se coloquem o alguma espécie animal ou vegetal,
entre o econômico e o
desafio de formar um novo discurso, “a mas que, por outro lado, reproduz a
produção teórica de novas distinções, natural nos colocam diante estrutura social concentradora de ri-
apropriadas para ordenar a multiplici- da necessidade de ver que a queza e, portanto, produtora de misé-
dade dos processos de desenvolvimen- degradação ambiental é, ria, violência e mortes humanas rela-
to no fim do século XX, possibilitando cionadas às chamadas doenças da po-
fundamentalmente, produto
sua reprodução categorial”. breza. Altvater lembra que um país po-
Para o autor, a ignorância teórica se das contradições sociais de parecer ecologicamente consciente,
associa à arrogância prática de forma impostas pela lógica do lucro. produzindo e consumindo de modo
que se tenta aprender da Europa “sem eficaz, porque pode lançar mão do

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Homem e Sociedade

que é produzido em outras regiões do estratégia de desenvolvimento, de in- cachorro fica girando em torno de si
planeta, ou seja, ele pode melhorar dustrialização, repercute no desenvol- tentando morder seu rabo sem nunca
seu balanço energético se apropriando vimento e meio ambiente das demais conseguir fazê-lo. Mais do que isso,
de energia (na forma de commodities, regiões do planeta, de forma que as achar que os países subdesenvolvidos
por exemplo) proveniente de outros atividades econômicas transformam o podem mudar sua situação por meio
países. meio ambiente e este quando alterado da solidariedade das nações ricas, po-
Nesta perspectiva, crítica também se apresenta como uma restrição ex- de conduzir a uma passividade de não
deve-se atentar para um certo utopis- terna ao desenvolvimento econômico ver que as relações entre estes países
mo que pode vir a ser perigoso. A in- e social7. Se constatamos que a limita- são conflitivas e que é neste campo de
terpretações ligadas ao que podemos ção dos recursos naturais evita que as disputa que se deve procurar mudá-
chamar de visão clássica do desenvol- benesses, as “torres babilônicas”, da las10.
vimento sustentável, defendem uma sociedade industrial “arranhem os Mesmo Sachs, com sua interpreta-
solidariedade entre os países e entre céus em todas as direções”, podere- ção mais complexa, também incorre
as gerações presente e futura como mos entender que a industrialização é em limitações. Ele defende uma pers-
forma de combater a degradação am- um luxo para apenas parte da popula- pectiva que fuja do imediatismo da
biental e a pobreza. Entretanto, não ção da Terra e não para sua totalidade. lógica do lucro e incorpore o longo
questionam, pelo menos seriamente, Diante disto, “é impossível simples- prazo como horizonte, incluindo di-
as bases da exploração burguesa e as mente dar continuidade às estratégias mensões econômicas, sociais, ecológi-
relações de poder a nível internacional. de desenvolvimento e de industrializa- cas, espaciais e culturais. Mas acredita
A pobreza é fruto de um processo ção das décadas passadas (...) É uma ser possível alcançar um desenvolvi-
histórico em que uma parcela da so- ilusão, e por isto uma desonestidade, mento com justiça social por dentro
ciedade se apropria dos meios de pro- alimentar e difundir a idéia de que das estrutura capitalistas.
dução e dos recursos, empurrando a todo o mundo poderia atingir um nível É possível superar a dicotomia natu-
maioria para o caminho da miséria. industrial equivalente ao da Europa reza versus sociedade, natureza versus
Este processo é agravado no capitalis- Ocidental, América do Norte e do Ja- homem. Mesmo identificando tempo-
mo em que a acumulação capitalista pão”. O gozo das benesses da socieda- ralidades diferentes na natureza e na
se transforma na principal responsável de industrial por uma pessoa coloca as economia, Bensaid afirma que a supe-
para a existência de um movimento demais em uma situação pior daquela ração da dicotomia passa pelo estabe-
que concentra riqueza em uma mino- vivida até então. Logo, as “sociedades lecimento do diálogo entre a crítica da
ria em detrimento da humanidade co- industriais só podem reivindicar para si economia política e a crítica da ecolo-
mo um todo. as benesses da afluência industrial gia política, já que ambas enfrentam o
A distância entre pobres e ricos se enquanto o mundo ainda hoje não in- mesmo inimigo, qual seja, o fetichis-
apresenta em escala global, mas tam- dustrializado assim permanecer”. mo mercantil, a sede pelo lucro. O au-
bém a nível local. As diversas cidades e As sociedades industriais capitalistas tor não está propondo uma fusão des-
países de todas as partes do mundo destroem a multiplicidade das espé- tes campos do conhecimento científi-
vivem esta contradição. Até os EUA, cies, fazendo com que o ambiente na- co, mas, como afirmamos, o diálogo,
que procuram construir todo um este- tural, ao se tornar mais uniforme e uma relação por meio da qual a crítica
reótipo de progresso, têm que convi- menos articulado, se apresente mais da ecologia política reforce a crítica da
ver com situações como a do Harlem, sensível a choques externos que po- economia política.
em que somente 40% da população dem fazer desaparecer um sistema Também propondo o diálogo entre
masculina alcança 65 anos, inferior à como um todo: “a entropia8 natural economia política e ecologia, Coelho
expectativa média de vida de Bangla- cresce com a diminuição da complexi- defende que não se deve considerar
desh onde este percentual é de 55% . dade de uma ordem” e contribui para apenas os aspectos ecológicos, mas os
De outro lado, é possível afirmar que o a intensificação da “entropia social” espaciais, sociais, políticos e culturais
modelo de consumo, trabalho e de- das sociedades industriais9. do meio ambiente, de forma a exami-
senvolvimento do norte desenvolvido Diante do exposto, propor e buscar a nar as “relações dinâmicas entre natu-
não pode ser estendido a todos os paí- eqüidade social sem denunciar as reza e sociedade e as estruturas sócio-
ses do mundo (Altvater, op. cit.). razões de sua não existência pode nos espaciais temporariamente determina-
Assim, Altvater afirma que qualquer levar àquela situação em que o das”.

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Homem e Sociedade

Ao criticar a lógica da causalidade ca. Deve, assim, desenvolver um olhar dades, só se resolvem se elevadas a
unidirecional que conduz ao determi- que, resgatando a interdependência planos superiores. Tal qual não pode-
nismo, Coelho afirma que os estudio- entre sistemas econômicos e ecológi- mos neglicenciar diante de sua impor-
sos dos impactos ambientais transfor- cos, busque a verdadeira unidade en- tância, também não devemos nos res-
maram-se, majoritariamente, em “her- tre homem e natureza. tringir ao seu imediatismo, nos tornan-
deiros dos métodos dos cientistas Mas vencer o desafio, quebrar a do cegos para suas interconexões glo-
naturalistas”, o que faz com que mui- racionalidade do lucro, exige, na inter- bais. À luta presente, localizada, deve-
tos continuem não pensando relacio- pretação de Bensaid, a conformação se incorporar a compreensão de que
nalmente, “dominados pela relação de uma democracia política radical on- os interesses de classe (com o Estado
linear de causa e efeito”. Eles preocu- de o homem se reconquistaria en- presente) permeiam os problemas
pam-se mais com os efeitos imediatos, quanto “ser natural humano”, o que se ambientais. A luta pelas políticas públi-
locais, do que com os processos. Mas traduziria no “naturalismo consuma- cas, por legislações ambientais mais
para que se possa compreender ver- do” ou comunismo, em que se verifi- efetivas, pela proteção de espécies em
dadeiramente a “singularidade dos caria a abolição positiva da proprieda- extinção, deve ser acompanhada pela
processos locais” se faz necessário de privada (instrumento de alienação vontade de mudança da estrutura de
interpretar articuladamente os micro e humana) e “apropriação da real essên- dominação burguesa.
macroprocessos de mudanças, de cia humana pelo homem e para o ho- Mas um alerta deve ser exposto: de
forma que se utilize um método que mem”. Assim, se resolveria o antago- antemão, a luta pelo estabelecimento
vá do local ao global e vice-versa. nismo entre homem e natureza, entre de uma nova sociedade não está pré-
Ao trilhar este caminho as possibili- homem e homem, e se obteria a “a determinada quanto a seu resultado, o
dades, as dúvidas têm que ganhar verdadeira solução da luta entre exis- que impõe um compromisso efetivo e
mais atenção, pois as leis gerais da so- tência e essência, entre objetivação e maior por aqueles que assumem este
ciedade, segundo a autora, “não com- afirmação de si, entre liberdade e ne- desafio. Este compromisso tem uma
portam nenhuma certeza, exatidão ou cessidade, entre indivíduo e gênero” face de prática cotidiana, mas também
predição. A descoberta da complexida- (Marx, in Bensaid). de atualização teórica, buscando fugir
de coloca em cheque a abordagem Isto significa que a luta pela prote- de determinismos e objetivando com-
determinista, compartimentada e re- ção ambiental, pela resolução de preender os novos fenômenos da
ducionista. O caminho das possibilida- questões ambientais, só se dará no complexidade do mundo do qual so-
des deixa assim de ser evitado sem nível macro? Que só participaremos se mos parte.
que seja preciso abrir mão do rigor estivermos todos de acordo com a Podemos resgatar as palavras de
científico”. supressão da sociedade capitalista pe- Lowy (2000-b) para concluir que as
Está lançado o desafio. De um lado, la socialista? De forma alguma. As reformas parciais são totalmente insu-
a crítica da economia política precisa questões mais localizadas merecem ficientes, se fazendo necessária uma
complexificar suas interpretações so- muita atenção, muito cuidado. Até economia de transição para o socialis-
bre a relação homem-natureza, trazer mesmo porque é diante destas ques- mo “re-encaixada” no meio ambiente
as questões ambientais para o campo tões que poderemos abrir espaços social e natural, tendo por base a defi-
da economia e das relações sociais. De para questões mais amplas, mais pro- nição democrática das prioridades e
outro, a ecologia deve negar as pres- fundas, mais estratégicas. Mas é preci- dos investimentos pela própria popu-
sões naturalistas anti-humanistas, so que se tenha claro que as questões lação, sendo contrária, portando a
abandonar a pretensão de absorver ou ambientais, em última instância, mes- imposições pelas ‘leis do mercado’ ou
substituir a crítica da economia políti- mo estando sensível às suas especifici- por politburo onisciente, burocrático.
Esta transição tem que conduzir a um
modo de vida diferente, alternativo, “a
A luta pelo estabelecimento de uma nova sociedade não
uma nova civilização, para além do
está pré-determinada quanto a seu resultado, reino do dinheiro, dos hábitos de con-
o que impõe um compromisso efetivo e maior sumo artificialmente induzidos pela
publicidade e da produção ao infinito
por aqueles que assumem este desafio.
de mercadorias prejudiciais ao meio
ambiente (o carro individual!)”.

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Homem e Sociedade

A luta pela resolução das questões isso a mulher vai ter maior controle sobre a REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ambientais, por mais diversas que se natalidade, diminuindo o crescimento popula- BENSAÏD, Daniel. Marx o intempestivo: gran-
cional. dezas e misérias de uma aventura crítica (sé-
apresentem, é uma totalidade relacio-
7. “Os efeitos dos processos econômicos de culo XIX e XX). Rio de Janeiro: Civilização Bra-
nal, com expressões macro e micro,
transformação material e energética (inclusive sileira, 1999.
com ritmos diferentes, mas que come- os efeitos externos assim produzidos) tendem COELHO, Maria Célia Nunes. Impactos am-
ça já, ou melhor, que deve ser recome- a possuir um alcance crescente com o desen- bientais em áreas urbanas - teorias, conceitos
çada todos os dias para que no futuro volvimento técnico. Ao mesmo tempo, a natu- e métodos de pesquisa. In: GUERRA, Antonio
o homem, ao se libertar da lógica do reza externa tem como fonte de matérias-pri- José Teixeira. e CUNHA, Sandra Baptista da.
mas e depósito de emissões uma capacidade (orgs.). Impactos ambientais urbanos no
lucro, se encontre com ele mesmo.
de absorção e de transformação também ten- Brasil. Bertand Brasil, 2000.
dencialmente decrescente, já que os encargos ENGELS, F. O papel do trabalho na transfor-
do passado atuam como restrições no presen- mação do macaco em homem. São Paulo:
NOTAS: te” (Altvater, Idem). global. 1986.
1. A capacidade de suporte seria uma espé- 8. Entropia é o processo em que se tem FOLADORI, Guillermo. Los límites del desar-
cie de índice ótimo, a capacidade máxima de perda de energia, em que parte da energia rollo sustentable. Montevidéo, Revista Trabajo
população que um determinado sistema su- útil, quando transformada, é perdida de forma y Capital, 1999.
portaria, isto é, o equilíbrio entre população e irreversível. Este conceito é originalmente usa- HARDIN, Garret. The tragedy of commons.
recursos. do para o estudo eminentemente físico, mas In: DALY, H. Econ. ecol. ethics. San Francisco:
2. Lowy identifica esta compreensão de passou a ser adotado no estudo dos fenôme- W N Freeman, 1980.
progresso nos textos de Marx de 1853 sobre nos sociais. JORNAL DO BRASIL. Humanidade vem sa-
a Índia. 9. “Concorrentes são eliminados (de ma- queando a Terra. Rio de Janeiro, 08.11.2011,
3. Esta dialética do progresso é identificada neira simples ou comovente) na medida em caderno internacional, p. 12.
em várias obras, inclusive em O Capital, onde que lhe são retiradas as bases vitais: concor- LOWY, Michel - a. A dialética marxista do
afirma que o progresso técnico é ao mesmo rentes que não conseguem se defender, progresso. In: LOWY, Michel, e BENSAÏD, Da-
tempo uma calamidade social, que a produ- povos indígenas, espécies de animais e vege- niel. Marxismo, modernidade e utopia. São
ção capitalista agride ao mesmo tempo tanto tais. Quando se extingue uma espécie de ave, Paulo: Xamã, 2000.
os homens quanto a natureza: “a produção extingue-se (pela estatística) meia espécie de LOWY, Michel - b. De Marx ao ecossocialis-
capitalista desenvolve, portanto, a técnica e a mamíferos, duas espécies de peixes, 35 espé- mo. In: LOWY, Michel, e BENSAÏD, Daniel.
combinação do processo de produção social cies de plantas e 90 espécies de insetos. Marxismo, modernidade e utopia. São Paulo:
esgotando ao mesmo tempo as duas fontes Deste modo o curso da evolução é influencia- Xamã, 2000.
donde brota toda riqueza, a terra e o trabalha- do por uma espécie, precisamente pelo homo MARX, Karl. O Capital. Livro I. Rio de Janeiro:
dor” (Marx in Lowy, 2000-A). sapiens, em uma velocidade jamais ocorrida Bertrand Brasil S.A, 1988.
4. Coelho se refere ao espaço urbano por antes na história da vida na Terra.” (Altvater, O GLOBO. Caderno de Economia, p. 21. Rio
ser sobre este sua reflexão neste momento. idem). de Janeiro, 17.11.2001.
Podemos estender esta interpretação para as 10. O presidente do Bird, James Wolfen- SACHS, Ignacy. Caminho para o desenvolvi-
outras formas de espaço. sohn, na reunião do G-20 (7 países mais e os mento sustentável. Rio de Janeiro: Garamond,
5. “O impacto ambiental é indivisível. No países em desenvolvimento mais importan- 2000.
estágio de avanço da ocupação do mundo, tes) defendeu o documento assinado pelo SOUZA, André Luiz Lopes de. Meio ambien-
torna-se cada vez mais difícil separar impacto Banco em que afirma que os países mais ricos te e desenvolvimento sustentável: uma refle-
biofísico de impacto social. Na produção dos terão que estabelecer compromisso de au- xão crítica. Papers do Naea. Belém, Naea.
impactos ambientais, as condições ecológicas mentar e harmonizar a ajuda aos demais paí- VAYDA, Andrew P, e WALTERS, Bradley B.
alteram as condições culturais, sociais e histó- ses. Estes países teriam ainda, segundo o pre- Against political ecology. Human ecology, vol.
ricas, e são por elas transformadas. Como um sidente, que abrir inteiramente seus mercados 27, n. 1, 1999.
processo em movimento permanente, o à exportações dos países em desenvolvimen- WALLERSTEIN, I. Análise dos sistemas mun-
impacto ambiental é, ao mesmo tempo, pro- to (O Globo, 17.11.01). Toda a polêmica em diais. In: GIDDENS, A. e TURNER, J. (orgs.)
duto e produtor de novos impactos”. Assim, torno das regras da OMC sobre o comércio Teoria social hoje. São Paulo, Unesp.
ele não é apenas resultado, mas também rela- mundial (e a política protecionista dos países
ção. Mais: “Os impactos ambientais são mu- centrais) demonstra o quanto é enganosa Gilberto Marques é professor da Univer-
danças de relações ecológicas e sociais que esta defesa. Além do que este tipo de defesa sidade Federal do Pará
precisam ser interrogadas incessantemente” não vem de agora, sem contudo deixar o
(Coelho, op. cit.). campo puramente da retórica para a prática.
6. Mesmo quando “não autoritárias” muitas
proposições ainda redundam no controle da
natalidade. O Relatório 2001/FNUAP, já cita-
do, propõe maior poder às mulheres. Faz isso
por querer enfrentar uma sociedade machista
e opressora? Não. O faz por acreditar que com

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Homem e Sociedade

Aluízio Lins Leal *

Os Estados Unidos:
começo do fim
O maior atentado terrorista da história dos
Estados Unidos, como a imprensa, na sua
vulgaridade, o rotulou, acontecido em Nova
Iorque e Washington, no dia 11 de setembro,
na verdade já se tornou, de facto, um dos
mais importantes marcos da própria História:
não só foi a ação impossível contra o maior
império de todos os tempos, como também
revelou a que nível chegou a decisão dos
que o desafiaram, num caminho sem volta.
Se a coerência fosse um atributo próprio dos
impérios, os Estados Unidos procurariam en-
tender o que os levou a serem tão odiados,
assim como o que levou os que o odeiam a
essa atitude extrema. Mas a coerência não é
o atributo dos impérios, e, sim, a sua antíte-
se - a arrogância - pois se fossem coerentes
não seriam os impérios que são.

Mas muito além da rasteira lengalenga quem imola a própria vida nesse ato. lutava movido pelo puro desespero. O
dos jornais, das emissoras de rádio e da Essa atitude é própria dos que têm uma suicídio representa o sacrifício supremo,
televisão, que convidam todo mundo a causa que lhes justifica o sacrifício, e quando já estão inteiramente esgotadas
ser imbecil e a limitar-se a constatar que mais: um motivo que justifique esse sa- todas as demais possibilidades da luta
nada mais houve do que um atentado crifício pela causa. Embora o inegável im- em igualdade de condições. Portanto,
terrorista e pronto, e que daqui pra fren- pacto da brutalidade da ação, um ato rotular árabes ou muçulmanos como ter-
te o mundo não mais será o mesmo - re- desses tem uma natureza distinta da do roristas, sem outra razão que a de serem
petindo ad nauseam esse chavão idiota, ato que visa simplesmente infundir pa- eles os inimigos é repetir a atitude mani-
sem sequer saberem o que quer dizer o vor na parte atacada. Em um caso assim, queísta dos norte-americanos, que, du-
que repetem- é preciso reagir a esse a entrega da própria vida atende, clara- rante a Segunda Guerra Mundial, logo
convite imbecilizador, e questionar as mente, a uma causa coletiva e maior. criaram a categoria do japonês fanático
origens e os desdobramentos do ocorri- Talvez - ressalvadas, é claro, as circuns- para caracterizar os kamikaze. Uma atitu-
do, para que amanhã não se alegue tâncias e os motivos que determinaram de dessas não revela nem explica a ver-
ignorância sobre o que mudou desse isso - sejam os kamikase japoneses os dadeira profundidade do problema; pe-
momento em diante, nem da responsa- mais claros exemplos desse ato extremo, lo contrário, a falsifica. E é cada vez mais
bilidade comum de todos perante o pois representaram a entrega do que crescente o número de jovens militantes
futuro. mais valioso havia na sociedade japone- árabes que se têm imolado em atenta-
Em primeiro lugar, vale perguntar sa em guerra contra os Estados Unidos - dos ligados à causa palestina, que é a lu-
quem primeiro foi terrorista, pois é difícil a nata da sua juventude - no estágio em ta por um espaço de identidade natal,
inserir no quadro do terrorismo vulgar que o Japão, exaurido materialmente, já como também de jovens árabes - irania-

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 129


Homem e Sociedade

nos, libaneses, iraquianos, etc. - unidos


por um sentimento comum de luta con- Esse castigo pode surgir pelas mãos das polícias ou dos
tra uma indesejável tutela imperial sobre
exércitos dos governos sabujos, dos seus helicópteros, das
seus países, sua raça e sua cultura. Lan-
çar mão dos rótulos do terrorismo e do esquadrilhas das coalizões, ou, simplesmente, da máquina
fanatismo para esses casos apenas serve, de guerra dos Estados Unidos, carrascos implacáveis contra
isso sim, para dar apoio ao intolerante
arbítrio dos Estados Unidos em punir
os que não se submetem à ordem imposta aos dominados.
quem bem entenderem, como melhor
lhes convier. Unir-se à claque que olha as tnam, por exemplo -, e nos corruptos re- quer governante, de que os seus atos te-
coisas dessa maneira indica ou a imbeci- gimes abertamente apoiados por ele, rão que se cingir à ordem que ele esta-
lização produzida pela adesão irrespon- como o de Syngman Rhee (uma das cir- belece ou serão derrubados, existe - e
sável à ação ideológica dos jornais, cunstâncias que agravaram o clima asso- como! - a prática contumaz do massacre
rádios e televisão ou à fidelidade acaba- ciado ao início da Guerra da Coréia), ou contra os povos que não se enquadram
da dos países-cachorros, cujos governan- de Ferdinand Marcos, das Filipinas (cuja nessa ordem. Todo e qualquer povo ou
tes se submetem de modo indiscutido e substituta, Corazón Aquino, sucessora nação que se recuse a seguir as suas
dócil à vontade do Império. dele, teve o seu nome examinado e regras, mesmo contra seguidas ameaças,
Além disso, é emblemático como o aprovado dentro do próprio território ou resista - mesmo que passivamente -
governo e a própria sociedade norte- norte-americano); manteve o apoio es- às intervenções destinadas a fazê-lo en-
americanos admitem, como se isso fosse tratégico indispensável a ditadores insti- trar na linha, será, afinal, alvo do massa-
a mais natural das coisas, que a presi- tucionais como Fujimori, no Peru, atra- cre, que é o estágio punitivo reservado
dência do país usa a CIA ou quaisquer vés ou da colaboração direta à elimina- aos que se mostraram rebeldes a todas
outros meios para “neutralizar” - isto é, ção de opositores, como no caso da em- as demais medidas. Esse castigo pode
eliminar gente, em outros países e ou- baixada japonesa, em Lima, ou de gor- surgir pelas mãos das polícias ou dos
tros povos indesejáveis para os interesse das dotações em dinheiro aos seus ór- exércitos dos governos sabujos, dos seus
dos EUA. Salvador Allende, o general gãos de repressão chefiados por gente helicópteros, das esquadrilhas das coali-
chileno René Schneider, Fidel Castro, corrupta e sanguinária, como um Mon- zões, ou, simplesmente, da máquina de
Muhammar Khadaffi - para citar apenas tesinos; financiou governos desregrada- guerra dos Estados Unidos, carrascos im-
uns pouquíssimos - foram alvos disso, e, mente genocidas, como os de El Salva- placáveis contra os que não se subme-
em vários desses casos, a eliminação do dor e Guatemala, garantiu todos os sub- tem à ordem imposta aos dominados.
condenado foi realizada com absoluto sídios necessários à agressão genocida a Quaisquer que possam ser as conse-
sucesso (a do general René Schneider um país, como aos contra, na Nicarágua, qüências desses corretivos, elas sequer
teve o envolvimento direto do então Se- financiou grupos terroristas destinados a são levadas em conta por esse matador
cretário de Estado norte-americano, desestabilizar governos, como aos gusa- exemplar, o Império: os seus soldados,
Henry Kissinger). Embora não seja ape- nos, contra Cuba, subvenciona até hoje seus helicópteros ou seus aviões, ou os
nas através da CIA que age o governo a dura re pressão do governo mexicano dos seus aliados ou mandados, despe-
norte-americano, como também essas contra os zapatistas e os índios em geral, jam metal e fogo sobre gente inocente
não foram - nem são - as únicas ações mantém o corrupto e assassino regime dos miseráveis povos agredidos que,
em que ela, CIA, é empregada por ele, colombiano contra o seu próprio povo, sem condições materiais para socorro,
ele age através dela sobre outros países criou Israel como Estado-Tampão para na sua pobreza, morrem à míngua. E o
comprando funcionários, financiando a garantir o controle militar e político dos pior: esses atos não são ocorrências iso-
repressão, corrompendo governantes, países produtores de petróleo, e por aí ladas ou eventuais; são, isso sim, prática
subvencionando golpes de Estado, se- afora. Em suma: sob uma imagem de in- freqüente, a ponto de fazer esses pobres
qüestrando e assassinando gente inde- teira isenção e naturalidade, produziu povos indefesos entrarem em surtos de
sejável, como se viu acima, e outras mais golpes, ditaduras, repressão e tortura per- puro terror ao ouvirem o silvo de uma
ações do gênero. Foi através desse mo- manentes e outros elementos e situações turbina ou o barulho das pás de um heli-
dus operandi que ele impôs ditaduras de dominação contra uma enorme quan- cóptero. E esse é o quotidiano dos po-
terríveis, como as de Videla et caterva, tidade de povos ao redor do mundo. vos e países pobres do Oriente, da Amé-
na Argentina, de Pinochet, no Chile, o Quem dera, porém, que essa fosse a rica Latina, da Ásia - enfim, de todos os
pavoroso golpe de Suharto, na Indoné- única forma de intervenção praticada pe- continentes - pois é sobre todos os can-
sia, e manteve à força ditaduras institu- lo Império. Além dessas claras agressões, tos do mundo que se estendem as asas
cionais, como a coreana, isso sem falar que servem de aviso preventivo, em assustadoras da Pax Americana. E fazem
nos governos-fantoches - como o do Vie- qualquer quadrante do globo, a qual- isso desde que ascenderam à condição

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de governantes absolutos do mundo; irritado pela reação chinesa, que pôs os sino William Cayley. E o que dizer da Ni-
aliás, até mesmo antes disso. Durante a norte-americanos quase de joelhos, o carágua, El Salvador, Honduras, Guate-
Segunda Guerra Mundial, quando se feroz general Mac Artur pretendeu reagir mala e outros, onde o poder do Império
preparavam para assumir a direção do a esse inaceitável atrevimento amarelo, garantiu um horroroso banho de sangue,
planeta, já davam mostras claras de que despejando nada menos que vinte e seis fartamente documentado pelos telejor-
estavam dispostos a botar no chinelo a bombas atômicas contra a Coréia, a nais? E a Etiópia? A Somália? O Sudão? E
barbárie nazista:o bombardeio cirúrgico Manchúria e a União Soviética, coisa os palestinos? E o Iraque, onde a morta-
de Tóquio, planejado em minúcias pelo que só não levou a cabo porque o mes- lidade infantil disparou a um nível insu-
general Curtis Le May, depois chefe do mo Truman, o - até hoje - único verdu- portável - mais de meio milhão de crian-
célebre Comando Aéreo Estratégico da go nuclear da História, sabendo que ças mortas -, devido ao bloqueio que o
Guerra Fria, é um dos mais acabados agora os soviéticos também dispunham impede de importar alimentos e remé-
exemplos de crime de guerra e peça de poderio atômico, recuou cauteloso. E dios?
clássica do mais cruel genocídio contra a - claro -, nem é preciso falar do que foi
inocente população civil: foram 140.000 o Vietnam, onde o número de vítimas foi Ora, se isso não é terrorismo,
pessoas mortas em uma só noite; isso quase duas vezes maior que os três o que é, então?
para não se falar dos holocaustos de Hi- milhões de mortos da Coréia, com a Bem, para o arrogante modo norte-
roshima e Nagasaki, ordenados por um humanitária ajuda do napalm para que o americano de ver as coisas não é; afinal
presidente americano que, sob a alega- Império levasse a cabo a asséptica tarefa de contas, trata-se apenas de ações contra
ção de que uma eventual invasão do a que se havia proposto - submeter o governos, pessoas ou sociedades que os
Japão por tropas norte-americanas resul- povo vietnamita em nome da Demo- incomodam, ou, pelo menos, eles acham
taria no risco de baixas não desejadas cracia e contra o Comunismo - na qual assim - e pronto. É fácil a tradução dessa
entre os seus rapazes, resolveu, por pre- não faltaram demonstrações explícitas postura: terrorismo nosso não é terroris-
caução, mandar matar mais 120 mil civis de selvageria (?!) por parte de represen- mo; o dos outros é. E o que é mais inte-
inocentes, apenas para evitar uma inva- tantes da saudável juventude norte-ame- ressante é que os Estados Unidos patro-
são que poderia vir a “colocá-los em ricana que, mais tarde, viriam até mes- cinaram vários dos que hoje condenam
perigo”. E daí por diante, essa faina não mo a tornar-se senadores, levando con- como inimigos apenas porque deixaram
parou: na agressão contra a Coréia, os sigo para o seu Congresso a mesma fé de ser seus colaboradores. Noriega, Sad-
Estados Unidos, além de outros crimes, inabalável na Democracia que os havia dam Hussein e Osama Bin Laden são
pulverizaram Pyongyang, numa devasta- feito degolar impiedosamente pacíficos três exemplos desse caso: foram, em di-
ção que, incrivelmente, superou até camponeses, como foi o caso do hoje ferentes níveis e momentos, usados por
mesmo a ferocidade do cerco nazista a senador norte-americano Robert Kerrey, eles sem qualquer prurido moral ou res-
Stalingrado, que se especula ter sido de- cujo passado homicida contra pobres quício disso, em função dos seus objeti-
vastada em 98% - ao passo que os da- camponeses de uma aldeia vietnamita vos imperiais. Enquanto os tinham como
dos atestam que Pyongyang foi inteira- veio recentemente à luz - isso sem falar, aliados, os chamavam de lutadores da
mente arrasada. Imagens patéticas desse é claro, das inúmeras My Lai em núme- liberdade, defensores da democracia -
massacre, que constam dos próprios do- ro ainda não corretamente conhecido - ou outra qualquer daquelas baboseiras
cumentários norte-americanos, mostram apenas porque os massacres lá ocorridos maniqueístas, tão ao gosto ideológico
cenas terríveis pela desumanidade - por ainda não foram dados a público como o dos norte-americanos; quando eles pas-
exemplo, um casal de crianças coreanas do senador Kerrey e do exemplar assas- saram a seguir o caminho próprio que já
chorando de pavor, o menor, desespera- tinham, diverso do que queria o Império,
do, tentando aos gritos animar o cadá- viraram de imediato traficantes, terroris-
ver da mãe morta pelo bombardeio as- tas, ou coisa assim - e passaram a ser
sassino; outra, ainda, mostra pilhas ina- submetidos ao martelamento sistemáti-
creditáveis de cadáveres - inacreditáveis, co que a imprensa americana impõe
mesmo, em tamanho igual ou maior do contra quem quer que tenha a audácia
que qualquer outra produzida pelos de desafiar o poder dos EUA. Os agora
campos de concentração nazistas - exi- chamados acampamentos terroristas do
bindo, porém, como traço ainda mais Afeganistão, cuja destruição os apologis-
amargo, cadáveres de crianças em imen- tas da retaliação e da vingança querem
sa quantidade, como resultado do cruel para já, são os mesmos - os mesmíssi-
furor do Império em castigar aquele mos - que foram largamente subvencio-
povo indefeso. E por pouco esse genocí- nados pelos dólares norte-americanos
dio não foi, ainda, mais pavoroso, pois quando serviam a fustigar a presença da

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União Soviética - o que interessava aos pelas forças do Capital e pelo Estado no
Estados Unidos - e se tornaram os núcle- seu país. Embora a sociedade norte-
os guerrilheiros “especializados” de hoje. americana seja uma das mais privilegia-
Vale dizer, também, que esse hábito das de toda a História, ela ainda concen-
de recrutar aliados convenientes é, igual- tra dentro de si uma profunda desigual-
mente, uma prática contumaz que não é dade, que atinge as suas camadas popu-
de hoje:uma prova inconteste do respei- lares. Nessas camadas, são significativas
to dos Estados Unidos por aquilo que as parcelas de negros, índios e latinos,
costumam proclamar ser um dos seus como expressão do resultado da sua for-
maiores valores - o amor à Democracia - mação histórica e da repartição, entre as
veio à tona em 1987, quando começou diversas camadas sociais, das tarefas e
o julgamento do temível Carniceiro de dos benefícios da produção social. Prin-
Lyon, o famoso Klaus Barbie, responsá- cipalmente nos Estados do Sul, onde se
vel pelo massacre de um número incal- concentrou historicamente o latifúndio,
culável de pessoas durante a ocupação próximos do território mexicano, os ne-
nazista da França. Ali começou, também, gros e mestiços formam um significativo
a ficar claro porque ele tinha demorado de que entre todos os grandes países ca- contingente deserdado que se confunde
tanto tempo a ser encontrado e julga- pitalistas ele é o único que já nasceu co- com a faixa pobre e miserável da popu-
do:é que os militares norte-americanos, mo projeto capitalista acabado, pois já lação. A sua falsa emancipação como mi-
tendo-o encontrado antes que os france- vinha desenhado na cabeça protestante norias, falsa porque se deu pelo seu
ses, acobertaram-no, contrataram-no pa- dos peregrinos, munidos do Individualis- acesso à impiedosa competição capita-
ra os seus serviços de inteligência, pa- mo como parâmetro do comportamento lista que premia os “competentes” e re-
gando-lhe salário, e ajudaram-no a esca- social filtrado dos anseios de uma Eu- lega os “perdedores” à exclusão, mante-
par da justiça da França, cujos maquis ropa contestatória e reformista. É a es- ve os excluídos identificados pelas suas
haviam ajudado decisivamente os Esta- sência individualista da sociedade norte- caras étnicas. Esses excluídos represen-
dos Unidos a ganhar a Guerra e torna- americana como exemplo da sociedade tam a mais absurda expressão de pobre-
rem-se a potência que hoje são. Barbie burguesa que explica a reação implacá- za em uma sociedade reconhecida
havia sido o responsável sobretudo pelo vel dos norte-americanos em arredar a sobretudo pela sua extraordinária rique-
massacre de um número imenso de pa- ferro e a fogo quem quer que se coloque za, bem como são a afirmação incontes-
triotas franceses, aliados e amigos dos no caminho da expansão do Capitalismo te do caráter profundamente desigual da
norte-americanos. Pois membros do Ser- como seu projeto histórico. E a sua histó- sociedade capitalista, da qual a norte-
viço de Inteligência do Exército norte- ria comprova amargamente isso: primei- americana é o seu mais acabado exem-
americano ouvidos a respeito, declara- ro, os índios; depois, os mexicanos; daí plo. Essa distinção é necessária, porque,
ram que sabiam, sim, que Barbie havia por diante, qualquer um que se atraves- neste momento, não se podendo deixar
sido da Gestapo, que ele era procurado sasse no meio dele: o Japão do shoguna- de levar em conta a terrível brutalidade
pela justiça francesa; mas que nada dis- to, a Espanha de Cuba e Filipinas, e por que foi o ataque em si contra o Centro
so lhes importava, pois a sua “competên- aí afora. É esse aspecto histórico que ex- Mundial de Comércio, os mortos resul-
cia”, para eles, era mais importante; e plica toda a sua brutalidade, toda a sua tantes dele representam uma perda so-
quando ele, afinal, cumpriu o seu “pe- arrogância imperial; para os norte-ameri- cial inaceitável e uma agressão contra
ríodo útil”, deram-lhe uma identidade canos, o Capitalismo é o mais perfeito toda a Humanidade como dividendo fi-
falsa, para que fugisse para a América do sistema de toda a História, e - por terem nal do processo que culminou nesse ato.
Sul - e continuaram a garantir-lhe a co- sido fruto dele como projeto histórico - Porém, em contrapartida, não se pode,
bertura necessária, pagando-lhe regular- têm consigo a tarefa messiânica de pro- também, deixar de considerar que isso
mente uma “aposentadoria” pelos “servi- pagá-lo. Essa mentira que serviu admira- derivou da violência representada na
ços” prestados. velmente aos primeiro momentos da sua desigualdade e na exploração social con-
Tudo isso, pois, mostra que estamos expansão, cristalizou-se como ideologia, tra o caráter pacífico não só do povo
diante de um império que assume, antes durante o seu processo de consolidação norte-americano - mas de todos os po-
de qualquer outra coisa, um estrito com- como nação imperialista, e os persegue vos submetidos a ela. O pacífico povo
promisso amoral com os seus interesses, até hoje como a mentira que deu certo norte-americano, vítima do belicismo da
mesmo que isso tenha diante de si o seu com o auxílio da violência. sociedade norte-americana, sofreu, nos
compromisso com os seus aliados, e Por outro lado, não se pode esquecer seus mortos, uma perda irreparável para
mais que isso - o compromisso com os que o povo norte-americano também é todos os que desejam realmente a Paz.
seus amigos. Isso é o resultado do fato um alvo das condições desiguais criadas Por isso é preciso que se tenha um

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retrato mais próprio dessa sociedade. E mentos dessa História, portanto, a vio- a fazer dos belicistas os seus maiores
para se ter isso, é necessário que se ava- lência foi usada como método por esses heróis, e pôr no ostracismo aqueles que
lie como se manifestam os elementos colonizadores contra esses povos ou não o são - pois os seus belicistas sem-
essenciais que destacam a natureza do raças, fazendo dela um dos marcos mais pre apoiarão a guerra do Bem (que são
imperialismo norte-americano - o seu próprios da sua cultura. É por isso que eles) contra o Mal (que serão todos os
maniqueísmo e a sua arrogância - atra- expressões derivadas da violência - por que se tornarem obstáculo às suas inten-
vés dos dois canais de expressão que exemplo, a repressão e a vingança - sem- ções). E é por isso, por exemplo, que
mostram mais claramente como ela pre foram referenciais de fundo para a Theodore Roosevelt, agressivo e belico-
pensa e como ela age:a sua opinião opinião pública nos Estados Unidos. De so, que tomou Cuba à Espanha e o Pa-
pública e a imprensa. par com isso, a sua prática expansionis- namá à Colômbia, é cultuado como um
A opinião pública norte-americana, ta formou neles, para sempre, uma obs- dos maiores heróis americanos - senão o
como fruto da sua formação histórica, tinada paranóia: a de que nunca deixaria maior de todos eles; é por isso que Mac
incorpora consigo toda a propensão à de haver, contra a sua missão messiâni- Artur foi transformado em herói nacional
violência que marcou a formação dos ca de propagar o Capitalismo, um inimi- por querer a destruição dos comunistas -
Estados Unidos à sombra do Capitalismo go à espreita. Por isso mesmo, os pró- e é também por isso que Carter, que de-
como projeto social: foi sempre através prios norte-americanos conscientes da fendia um desajeitado e inconsistente
da violência que os colonizadores do ter- sua História reconhecem que em todos projeto de Direitos Humanos, apesar de
ritório norte-americano trataram todos os momentos dela sempre esteve pre- ter tentado uma (desastrada) operação
os povos e raças cuja cultura não se sin- sente entre eles a sensação da existência de força contra o Irã, foi defenestrado
tonizava com esse projeto, e que foram ameaçadora de um inimigo embuçado, por essa mesma opinião pública, por ser
aqueles que lhes serviram para isso na pronto a atacá-los; portanto, eles nunca considerado um governante fraco, que
qualidade de força de trabalho - os ne- deixaram de identificar esse inimigo nos não sabia ter pulso firme para usar o chi-
gros - , aqueles cuja existência represen- grupos sociais que se opunham ao seu cote como instrumento da vontade ame-
tava um obstáculo à continentalização projeto, ou que, simplesmente, eram ricana. O Macartismo, portanto, só po-
do território como espaço para o Capi- “estranhos” a eles: no século XVII, os ín- deria ter nascido de uma sociedade com
talismo - os índios - ou ainda aqueles cu- dios; no século XIX, os imigrantes; no sé- uma opinião pública como essa, com a
jos territórios eram cobiçados como es- culo XX, os comunistas. Deste modo, a qual se identifica de modo ideal: agressi-
paço de expansão desse projeto - os lati- opinião pública norte-americana, ao vo e intolerante contra valores que não
nos, representados nos mexicanos. So- longo da sua História, amalgamou um sejam os seus, maniqueísta a ponto de
bre todos eles, a violência foi exercida sentimento latente de legitimidade da logo tomar a providência de caracterizar
como necessário:sobre os mexicanos, agressão preventiva contra um “inimigo” o inimigo sob a dicotomia do Mal contra
fazendo-lhes a guerra, expropriando-os que sempre deve estar escondido em o Bem - assim como negando a ele qual-
do seu território e convertendo-os numa algum lugar, pronto a atacar de surpresa quer valor positivo, o que a faz assumir
extensão subordinada, um armazém de - e que ela elege quem é de acordo com uma postura discriminadora e segrega-
gente inferior, relegada ao quintal contí- o momento e conforme a sua conveni- cionista, que produz a arrogância como
guo ao território principal; sobre os ín- ência. É claro que a necessidade de agir sua extensão natural. Esses traços fun-
dios, impondo-lhes o mais sanguinário desse modo para garantir esse propósito damentais da opinião pública norte-ame-
genocídio, para liberar para o Capital o - a expansão do Capitalismo como proje- ricana orientam a sua maneira de ver e
território que ocupavam; sobre os ne- to social - exige um vigoroso pretexto julgar, sobretudo se os seus interesses
gros, incluindo-os na sociedade sob a ideológico para suportá-lo; então, a es- são parte envolvida no processo.
amarga violência da exclusão, confinan- tratégia mais eficiente é passar a ima- Do mesmo modo, estimulam, tam-
do-os a um redil social que se destinava gem de que os agentes desse projeto bém, o preconceito contra os que ela
a tê-los como um verdadeiro estoque de representam o Bem - e quem se opõe a passa a considerar inferiores. O famoso
bestas humanas mantidas exclusivamen- ele representa o Mal. Foi isso que fize- general William Sherman, festejado he-
te para o trabalho e submetidos à condi- ram, e isso os levou, por conseqüência, rói nacional, dizia, sem meias palavras,
ção de gente inferior. Em todos os mo- a considerar legítima a violência gratuita, em 1867: “cada vez que eu vejo esses
índios mais me convenço de que eles
todos devem ser mortos, ou mantidos
Theodore Roosevelt, agressivo e belicoso, que tomou Cuba à como uma espécie indigente”. Amostra
explícita de um traço próprio da cultura
Espanha e o Panamá à Colômbia, é cultuado como um dos
americana, uma postura dessas também
maiores heróis americanos - senão o maior de todos eles. explica porque um Clinton - por exemplo
- não teve qualquer escrúpulo em orde-

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Homem e Sociedade

nar ataques aéreos contra inocentes nes, inçado de instrumentos de detec-


etíopes, sudaneses e afegãos, apenas ção capazes de identificar qualquer tipo
para livrar-se dos baixos índices de apro- de aeronave, alegando, como fizeram,
vação que os seus compatriotas lhe con- que o inocente avião comercial foi con-
feriram. É esse desprezo que os norte- fundido com um avião atacante - isso
americanos dedicam aos povos que eles sem falar que o referido cruzador estava
classificam na condição de meras sub- estacionado no litoral do Irã, por si só
raças que lhes faz achar normais atitudes um ato de clara provocação à sua condi-
que eles próprios considerariam nada ção de país soberano. Além disso - não
menos que genocidas em outros que ofende perguntar -, em que país se abri-
não eles, e - principalmente - se toma- gavam os terroristas que explodiram em
das contra eles. Colin Powell, atual pleno vôo um avião da empresa aérea
secretário de Estado, quando foi coman- Cubana de Aviación, matando todos os
dante das tropas norte-americanas na atletas olímpicos de Cuba, passageiros
guerra do Golfo, declarou, a respeito do dele?
que iam perpetrar contra o Iraque: ”a pelos Estados Unidos como a mais torpe O status de superioridade que cons-
nossa estratégia é bem simples:primeiro das agressões e um ataque insidioso à truíram ao longo da sua transformação
nós vamos cercar; depois, vamos matar”, Democracia. No entanto, eles sempre em império, tornou-se um parâmetro pa-
numa previsão tão fria quanto natural consideraram seu direito natural, em no- ra avaliar o que consideram ousadia,
sobre as centenas de milhares de vítimas me dessa mesma Democracia, manter desrespeito ou ameaça. Sempre que se
do massacre que os seus meios de vôos regulares de espionagem, devas- vêem superados por alguém em algum
comunicação tomariam a providência de sando território soviético e chinês, tanto aspecto considerado por eles como es-
esconder, transmitindo as imagens dessa que três deles foram derrubados - um, sencial, passam a ver isso logo como
“guerra” como se se tratasse apenas de recentemente, sobre a China; e dois so- uma vantagem inaceitável da outra parte,
um videogame, e não de uma chacina; bre a União Soviética - sendo que dos que, dependendo de quem é, pode ser
é como se para eles os povos da perife- dois abatidos pelos soviéticos, um era encarada como concorrente, adversário,
ria não passassem de algo impreciso e um avião comercial da Coréia do Sul, pi- ou inimigo - e isso pode levá-los a atitu-
difuso que vive além da cerca do fundo lotado por dois coronéis da força aérea des de confronto para desfazer a “des-
do quintal, e cuja maior serventia é po- sul-coreana, numa “missão civil” (a Co- vantagem” que consideram uma afronta,
derem estar à mão como um rebanho de réia do Sul é um dos mais exemplares caso resolvam achar que foram passados
animais a ser usado como alvo das suas países-cachorros dos Estados Unidos) para trás. E quando isso subentende uma
armas - e contribuírem, por exemplo, que serviria de sombra no radar soviéti- disputa política ou militar, a situação se
para melhorar os índices de aprovação co, para injetar (termo do jargão da es- agrava na dimensão do clima que ela en-
de um presidente acossado pela hipócri- pionagem militar aérea) um avião militar volve. A bomba atômica soviética, em
ta e puritana opinião pública do seu país, norte-americano de espionagem(com o 1949, foi logo alardeada pela sua im-
escandalizada pelas estrepolias nada qual ele foi confundido), deixando à mal- prensa como uma ameaça à paz mun-
ortodoxas do seu charuto no salão oval dade comunista dos soviéticos o crédito dial. Por quê?! A sua não havia sido?!
da Casa Branca. pela morte dos passageiros empurrados Mas é que a bomba soviética, além de
Essa mistura incendiária de maniqueís- para essa tragédia pela criminosa deci- criar uma resposta de equilíbrio à bomba
mo, intolerância, propensão à violência e são de usá-los como uma isca inocente. atômica norte-americana, se agravava
preconceito sempre produziu, da parte O mesmo cotejo pode ser feito em rela- por dois motivos: o primeiro - e mais im-
deles, reações raivosas contra qualquer ção a outros dois aviões abatidos: até portante - era significar a detenção de
atitude que eles identifiquem como uma hoje, os Estados Unidos apresentam a poder de resposta, por uma sociedade
provocação contra si. Tomemos um caso queda do avião da Pan Am sobre Lo- socialista, ao seu agressivo militarismo,
emblemático: nunca - nunca - em toda a ckerbie, na Escócia, como um ato do que havia inaugurado a Guerra Fria como
História, durante a Guerra Fria ou depois mais abominável terrorismo, aproveitan- uma provocação preventiva contra o
dela, houve qualquer vôo de avião sovié- do, todas as vezes em que o caso volta à Socialismo (a bomba atômica norte-ame-
tico ou chinês em missão de espiona- baila, para lembrar como o Mal sempre ricana não significava tanto o fim da guer-
gem sobre território norte-americano. está à espreita; mas silenciam, como se ra contra o Japão, mas sobretudo o anún-
Aliás, se isso tivesse acontecido, prova- isso jamais tivesse ocorrido ou fosse caso cio da guerra contra a União Soviética);
velmente o mundo teria assistido a uma digno de nota, sobre a derrubada crimi- mas, em segundo lugar, também signifi-
Terceira Guerra Mundial, pois esse epi- nosa de um Airbus iraniano repleto de cava o acesso de um povo visto por eles
sódio não teria deixado de ser explorado passageiros pelo seu cruzador Vincen- como um bando de camponeses rudes a

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uma tecnologia que consideravam priva- marido, comutou-lhe a pena de enforca- dade norte-americana, o patriotismo tem
tiva de uma sociedade evoluída, como a mento em fuzilamento, foi imposta ao uma conotação maniqueísta extremada
sua. Enquanto isso, a bomba norte-ame- povo japonês, como coroamento dessa que chega às raias da ferocidade, por-
ricana fora criada, cinco anos antes, sem humilhação, uma Constituição de raiz que se confunde com os valores do ex-
que houvesse, mesmo estando em guer- norte-americana, redigida nos escritórios pansionismo e do messianismo burguês.
ra contra o Japão, qualquer ameaça con- da missão de ocupação norte-america- Ser patriota significa apoiar incondicio-
creta aos Estados Unidos; mas mesmo na, que foram convertidos no Congresso nalmente - e mesmo estimular - todos os
assim, não foi considerada uma ameaça onde se reuniu a Assembléia Constitu- atos externos do Estado norte-america-
à paz, ao contrário, foi considerada - e inte norte-americana que a redigiu, cujos no, mesmo que isso signifique o massa-
usada - segundo a sua compulsiva visão constituintes, norte-americanos, eram os cre de pobres civis inocentes, nos países
maniqueísta, como uma arma para a paz, funcionários dessa missão escolhidos a famintos, em nome da segurança nacio-
porque foi usada contra um inimigo que, dedo e nomeados para esse fim pelo nal. Isso facilita a produção de inimigos
naquele momento, representava o opo- próprio Mac Artur. Nos casos em que que os meios de comunicação se encar-
sitor da Paz que eles encarnavam. não puderam exercer essa vingança - co- regam de fabricar do modo mais conve-
Se algo que os norte-americanos con- mo foi o daqueles atrevidos macaqui- niente, inclusive porque converte a notí-
sideram como “ousadia” vier das sub- nhos asiáticos subnutridos que os puse- cia em uma mercadoria de vendagem
raças, a sua resposta é ainda mais viru- ram para correr do Vietnam com o rabo extraordinária. Caçam incansavelmente,
lenta. O ataque do Japão ao Havaí se entre as pernas - ficaram com a humilha- em todos os lugares, os menores sinais
deu contra alvos exclusivamente milita- ção da derrota tão atravessada na gar- de contestação aos seus valores, inter-
res; mas isso não amenizou a revolta da ganta que tomaram uma providência pretam qualquer atitude um pouco mais
opinião pública norte-americana; os drástica:convocaram logo John Wayne, o suspeita como intencionalmente lesiva
japoneses, sendo asiáticos, eram dife- Rambo, o Vingador e sabe-se lá mais aos Estados Unidos, fazem de pequenos
rentes dos ocidentais. Assim, logo após quem, e produziram enxurradas de fil- acontecimentos um cavalo-de-batalha,
o ataque, os imigrantes japoneses nos mes nos quais - em todos - sempre ven- invocam com uma rapidez e solércia
EUA foram confinados, com todo o rigor, cem a guerra perdida. É de se entender, impressionantes qualquer atitude do la-
em campos de concentração para os então, porque depois da destruição des- do contrário como um ataque à Demo-
quais também foram logo enviados os ses símbolos americanos - o Centro cracia e à Liberdade (que, obviamente,
norte-americanos de ascendência nipô- Mundial do Comércio e o Pentágono - na os Estados Unidos são os encarregados
nica; e imediatamente começou a ser semana passada, essa intolerância e de encarnar), torcem fatos, fabricam
articulada uma resposta punitiva terrível recusa à condição de perdedores desen- acontecimentos fictícios segundo fontes
contra alvos civis japoneses que não cadeou uma onda de agressões violen- bem informadas que nunca se sabe
imporia limites à sua fúria cega contra tas, incêndios, atentados - e mesmo as- quais são e demonizam impunemente
aquele atrevimento do Japão. Logo to- sassinatos - contra pessoas, suas casas e líderes políticos e chefes de Estado cuja
maram a providência de transformar a seu patrimônio, que fossem ou pareces- transformação em agentes do Mal de-
data do ataque em O Dia da Infâmia, e sem árabes, naquele hábito contumaz pende da sua obediência ou não aos di-
a derrota atômica que impuseram a ele de atirar primeiro e perguntar depois, tames do Império. Como mais de 95%
terminou por levar à execução os que tendo, entre os agredidos, um brasilei- do total da massa de informações em
foram escolhidos como culpados pela ro, selvagemente surrado e com fraturas todo o mundo é controlado por agências
guerra, em um tribunal internacional tão e morto um indiano, por usar turbante. noticiosas controladas por capital norte-
“isento” que expurgou de si um jurista O efeito conjunto desses dois elemen- americano, é fácil imaginar-se o resulta-
indiano que levantou a preliminar de tos nos seus meios de comunicação do disso: uma censura implacável regu-
que antes de acusar os japoneses de cri- também é um indicador significativo, lada pela classificação do examinado
mes de guerra, seria necessário exami- porque esses meios nem só refletem a como aliado ou inimigo. Além disso, fa-
nar as origens do conflito, porquanto o opinião pública, como também a indu- zem uma filtragem ideológica preventiva
Japão havia sido empurrado para ele zem. E a importância disso está no cará- de qualquer acontecimento em que seja
pela política externa dos Estados Unidos. ter ideológico do papel deles que é a possível estar envolvido esse inimigo:
Mas além de serem condenados à difusão de um verdadeiro terrorismo da durante vários dias, o atentado terrorista
morte, os generais considerados respon- informação, da contra-informação e da no Estado americano de Oklahoma foi
sáveis por esses crimes, caso em que, desinformação, subvertendo por com- taxativamente apresentado como obra
aliás, MacArtur, Imperador supremo, de- pleto a interpretação dos fatos. É aí que dos árabes e de Osama Bin Laden, até
monstrou o seu caráter magnânimo, pois o seu maniqueísmo age com toda a sua que se tornou conhecido, por fim, o
procurado pela esposa do general Ya- força, favorecendo à visão chauvinista do americano que era o seu verdadeiro au-
mashita, que pedia clemência para o patriotismo norte-americano. Na socie- tor. Caso as pistas que levaram a ele

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 135


Homem e Sociedade

tivessem permanecido desconhecidas, a o massacre, como aconteceu na Guerra atacar de todos os lados inimigos tão
máquina noticiosa norte-americana já do Golfo, ou porque simplesmente dei- pobres de meios materiais para respon-
havia decidido quem era o culpado. Co- xam de noticiá-lo, garantindo o silêncio der ao seu poderio? Bem, parte da res-
mo essa máquina não só atua em fun- sobre os crimes do Império. Devido à sua posta está no acontecido do dia 11.
ção do consumo da notícia como merca- inspiração maniqueísta, o papel dos me- Bastaria isso como prova de o quanto
doria pela opinião pública, como tam- ios de comunicação é um dos mais aca- esses inimigos poderiam vir a ser capa-
bém é induzida por ela ao mesmo bados pilares do terrorismo norte-ameri- zes, para justificar todas as precauções
tempo em que a induz, o seu potencial cano. que levam à defesa do Império através
ideológico é tremendo e a sua ação tam- do ataque preventivo a eles. Está inteira-
bém. Acaba, portanto, funcionando sob mente descartada a convivência pacífica
o Efeito Goebbels, repetindo mil vezes a com os povos atrasados, porque as rela-
mentira até ela transformar-se em verda- ções entre os Estados Unidos e eles é
de, utilizando a notícia como instrumen- regulada pela lógica do Capital; logo, os
to de dominação e elemento de terror, agentes dessas relações, do lado dos
manipulando a paranóia e o pânico co- norte-americanos, são as suas multina-
mo elementos do comportamento so- cionais que mantém esses povos sob o
cial, atendendo às expectativas da opi- férreo poder de subsunção dos mecanis-
nião pública norte-americana e contri- mos de mercado que estão sob seu con-
buindo para imbecilizar e manipular a trole, ou o Estado, cujo agente direto -
opinião pública ao redor do mundo. O afora, é claro, a diplomacia do dólar - é
fato de dois terroristas árabes que ha- o seu temível aparelho militar, marcado
viam morrido nos ataques ao Centro por uma capacidade técnica que deixa
Mundial do Comércio e ao Pentágono cada vez mais distantes as possibilidades
terem sido descobertos, dez dias depois de resistência por parte deles. A opinião
de ser divulgado que tinham participado pública se surpreenderia se ao menos
do ato, vivos, nos seus países de origem pudesse saber da quantidade de con-
(um deles piloto de linha aérea na Arábia Ambas essas manifestações mostram, quistas técnicas postas à disposição do
Saudita) mostra o grau potencial do ter- portanto, que o maniqueísmo norte- aparelho de guerra norte-americano,
rorismo concentrado nesse aparelho e o americano jamais permitirá, quer ao Es- algumas apenas vistas quando aparecem
grau de risco que ele cria para os povos tado quer à sociedade, uma autocrítica em ação nos conflitos em que os Estados
e países que atinge como suspeitos, honesta do seu papel de império e do Unidos se envolvem diretamente como
devido à manipulação tendenciosa da seu caráter intolerante. Jamais os norte- polícia do mundo:aviões “invisíveis”,
notícia. Mas, quando as vítimas das agres- americanos conseguirão entender que bombas “inteligentes”, mísseis de preci-
sões do Império são - como são, na sua não podem ser sempre os vencedores - são milimétrica. O resultado disso? O dis-
maioria - países periféricos, ou, pior ain- condição que manterão enquanto dispu- tanciamento cada vez maior do “comba-
da, países desconhecidos, miseráveis e serem de superioridade material que tente” americano dos combatentes do
famintos - sub-raças -, isso garante um lhes garanta isso -, porque o seu avanço outro lado. Ele manda os seus autôma-
alto grau de impunidade a esse aparelho humanístico estagnou nos parâmetros tos matarem o “inimigo” sem que sequer
ideológico, permitindo-lhe torcer os fatos culturais da ocupação do Oeste, da luta precise chegar perto dele - isto é, sem se
com total cinismo. Foi isso que fez com contra os índios, e da usurpação dos ter- arriscar sequer a ser ferido, pois estão
que a opinião pública mundial estivesse ritórios do México. Assim, quando come- em desenvolvimento armas muito mais
do lado das forças da justiça que os çarem a se ver confrontados com os eficientes - e muito mais letais. Tanques
Estados Unidos mandaram para pulveri- revezes que a História lhes reserva, não feitos de um plástico muito mais leve e
zar uma fábrica de armas químicas a ser- só não irão conseguir entender-lhes as mais forte que o aço (portanto com
viço do terrorismo, no Sudão, que depois razões, como sempre irão procurar fazer muito maior capacidade de transporte
- isso ficou pateticamente constatado - um retrato ideológico da derrota, tentan- de armas e de fogo), navios “invisíveis”,
não passava de uma fábrica de leite em do transformá-la em vitória - como até projetados a partir da mesma tecnologia
pó. Assim, o genocídio contra os desas- hoje fazem com o Vietnam - para não dos aviões, sistemas de detecção eletrô-
sistidos da periferia aparece de modo perderem a segurança que sempre pro- nica que permitem saber qualquer movi-
amargamente diferente, ou porque os curam encontrar nos seus mitos. mento da parte contrária sem que ela
meios de comunicação tratam de reduzir Mas os Estados Unidos detêm um saiba disso - e, em todos esses desen-
as notícias do massacre a coisa de abso- complexo extraordinário de poder. Por volvimentos, a presença da automação
luta desimportância, ou porque ocultam que, então, essa mania compulsiva de e do controle remoto: veículos teleco-

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Homem e Sociedade

mandados de reconhecimento de terre- mar as armas mais primitivas em verdu- lá. Porém, não é necessário que seja
no e de ataque, autômatos-insetos go implacável da tecnologia mais infalí- religiosa a revolta extrema para lançar
para limpeza de terreno e observação vel. Isso os ajudaria a entender como qualquer povo consciente à reação
aérea, que podem ser produzidos em os povos que sofrem, hoje, todo o pe- mais extrema contra a humilhação que
séries de centenas de milhares, apare- so do poderio militar ianque como ins- lhe é imposta. O terrorismo que os
lhos aéreos de observação miniaturiza- trumento de força, sabendo o que o Estados Unidos acusam, na verdade, é
dos, telecomandados e inteiramente a futuro lhes reserva - e percebendo, de filho natural e legítimo do terrorismo
salvo da detecção contrária, e - é verda- modo igualmente claro, que estão lu- norte-americano.
de! - aviões de combate sem piloto, tando em uma desigualdade de condi- Se o império norte-americano, com
isto é, pilotados por “pilotos” sentados ções materiais impossível de ser muda- todo o seu impressionante poderio ma-
confortavelmente em terra, em salas da - não podem senão recorrer às terial, pudesse ao menos ter a capacida-
protegidas, “vendo” todo o cenário do armas que têm à mão - o que, nas cir- de de entender a História, lhes seria útil
combate em tempo real através dos cunstâncias atuais, significa passarem a examinar um caso muito próximo do
olhos eletrônicos dos seus aviões, em acuar o maior império da História no atual, embora separado dele por dois mil
telas tridimensionais, à sua frente. Tudo seu próprio território. Portanto, a cam- anos quando o general Quintilius Varius
isso está, hoje, sob intensa experimen- panha que tenta passar o terrorismo assumiu o comando do exército romano,
tação pelos laboratórios da pesquisa como fruto exclusivo do Mal e dos submeteu a Germânia à mais revoltante
militar norte-americana. Isto significa apóstolos do Mal não passa, mais uma das ocupações. Tratava os germânicos
que daqui a algum tempo o aparelho vez, de uma lengalenga recorrente e como escravos, tomava-lhes o que ti-
de guerra norte-americano poderá vir a rasteira do seu maniqueísmo, tão alar- nham, e impunha sobre eles o punho
travar batalhas inteiras sem qualquer mista e manipuladora quanto proposi- de ferro do mais intolerante jugo impe-
envolvimento físico dos seus “comba- tal e consciente. Se os Estados Unidos rial. Sem o saber, estava preparando a
tentes” com o “inimigo”, com, obvia- não tivessem promovido um cerco ter- mais deprimente das derrotas da história
mente, uma possibilidade in-finita de rorista contra todos os povos sobre os do Império - um amargo revés provoca-
destruição contra o lado contrário, sem quais se estende o seu poder em nome do por quem, para os romanos, lhes era
quaisquer baixas para o seu. Através da dos interesses do Capital, cujo projeto inferior -, marcando, com isso, o início
tecnologia, os Estados Unidos projetam de mundialização conduzem a ferro e a do processo da sua derrocada e produ-
a guerra do futuro como um massacre fogo, o que eles chamam terrorista não zindo um dos mais fulgurantes exemplos
covarde e impiedoso a seu favor. existiria. O terrorismo que eles acusam históricos de triunfo sobre o dominador -
Mas o que é pior é que a superiorida- tem origem nas condições que eles e da humilhação da sua arrogância - pelo
de convertida em arrogância os seduziu impuseram aos países e povos que sub- dominado.
a ponto de fazê-los pressupor que essa metem - e é fácil alegar o fanatismo Quintilius Varius, como todo bom ro-
condição é absoluta, e que, por causa daqueles a quem se culpa, quando se mano, via os germânicos como um povo
dela, são invencíveis. Esqueceram-se de culpam os povos atingidos pela ação inferior, que, no seu entender, merecia
que embora a sua superioridade técni- feroz do Imperialismo. Quanto mais po- até agradecer a dominação que Roma
ca no Vietnam não fosse tão terrível bre ou miserável um povo é, mais igno- lhes impunha - e os tratava assim. Isso
quanto agora, já o era o suficiente para rante também - e é sobre a ignorância fez com que um guerreiro nativo - Ar-
estabelecer uma distância astronômica que o caráter primário da religião mais mínio, o Germânico - revoltado contra o
entre eles e os bravos patriotas vietna- lança raízes. E quanto mais primária é soez regime dos procônsules, preparas-
mitas, que tinham sobre eles uma van- uma religião, mais fanática ela tende a se-lhe uma resposta bem ao estilo dos
tagem ainda muito maior: uma cons- ser - basta ver o que o fundamentalis- que lutam em condições de inferiorida-
ciência política que os levava a enten- mo protestante, vindo dos Estados de, num terreno que os germânicos co-
der a dimensão daquela guerra em uma Unidos, tem feito em sociedades como nheciam com a autoridade que só os na-
perspectiva histórica que um americano a nossa - e até mesmo o que já fez por tivos sabem ter com a intimidade da sua
comum jamais conseguiria alcançar. O
resultado a História mostrou: uma das
maiores derrotas imperiais - senão a A obstinação irresponsável dos Estados Unidos, movida
maior - de todos os tempos. Está aí a
fraqueza, a grande fraqueza resultante
unicamente pela sua sede irracional de vingança, fruto da
da conjunção de todos os traços essen- sua arrogância imperial, não atenta para o tamanho da
ciais do imperialismo americano: a
armadilha que a sua irresponsabilidade produziu.
impossibilidade de entender quanto a
compreensão da História pode transfor-

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Homem e Sociedade

terra, armou-lhes uma cilada na Floresta tinação irresponsável dos Estados Uni- a enfrentar um império tem que ter
de Teutoberg, e fez com eles o que eles dos, movida unicamente pela sua sede consciência de que é preciso ser tão im-
costumavam fazer com aqueles a quem irracional de vingança, fruto da sua arro- placável contra ele quanto ele é implacá-
submetiam pela guerra:massacrou-os gância imperial, não atenta para o tama- vel contra os que subjuga ou, do contrá-
um a um, muito bem massacrados. Ao nho da armadilha que a sua irresponsa- rio, não terá sucesso. O dominado que
final da brincadeira, de dez legiões roma- bilidade produziu. É patético ver os seus assume uma atitude pacifista perante a
nas inteiras, não sobrou ninguém vivo. ferozes soldados, armados até os dentes violência do dominador, está, na verda-
Todos - até os cavalos - foram degolados. para atacar um inimigo como o Afega- de, assumindo a mais violenta das atitu-
A derrota foi tão terrível que só nessa nistão, um país sem indústrias, miserável, des contra si mesmo. E nunca seria de-
batalha foi perdido um décimo de todo inacessível e - devido a isso - sem qual- mais lembrar que o que aconteceu em
o exército de Roma - e os biógrafos de quer sentido, pelos padrões de guerra Nova Iorque e Washington mostrou que
Augusto, o grande imperador da Pax Ro- que o Império sempre cultivou a seu fa- os que enfrentaram naquele dia os
mana, contam que, depois de receber a vor. A intolerância desse império o livra Estados Unidos sabiam muito bem que
notícia do desastre, ele vagava em deses- dos efeitos imediatos - mas não conse- estavam seguindo um caminho que foi
pero, às madrugadas, pelos corredores guirá fazê-lo escapar dos que virão a construído sem o percurso de volta.
do palácio imperial, batendo a cabeça longo prazo, pois em vez de os Estados A lição, portanto, está aí. Caberia
nas paredes e bradando “Quintilius Va- Unidos caírem em si (coisa completa- aprendê-la. Mas tudo mostra o contrá-
rius, eu quero de volta as minhas le- mente impossível para eles), mergulham rio:a opinião pública pede a vingança e
giões!”. Armínio e os seus guerreiros ti- ainda mais fundo nela. Atitudes como a a guerra; os meios de comunicação
nham acabado de dar ao - até então - do Congresso que, recentemente, im- espicaçam a veia vingativa da opinião
mais odiado império da História uma prensou um presidente tão primário pública; o governo declara, com a cer-
lição extraordinária que Roma poderia como Bush para criar uma lei - a Lei de teza de quem tem a verdade da força a
ter aprendido, se os impérios pudessem Proteção dos Membros das Fôrças Ar- seu favor, de que o culpado será quem
aprender a ser coerentes. Mas, como vi- madas - cujo objetivo é neutralizar os ele apontar. Começa uma campanha
mos acima, é a arrogância e não a coe- efeitos da criação próxima do TPI - o Tri- raivosa pela punição de culpados que
rência que faz parte da sua lógica - e a bunal Penal Internacional - que julgará não se sabe quem são, nem sequer se
arrogância costuma fazê-los pensar que crimes de guerra nos quais, com certeza, tem qualquer indício de quem possam
estão acima da própria História. Assim, estariam enquadrados militares norte- ser; mas que, ao final, serão aponta-
Roma continuou a se recusar a aprender americanos, revela o desvairio desse ma- dos - ah, isso serão, custe o que cus-
essa lição, até acabar destruída pelos niqueísmo que faz com que os Estados tar. A intolerância se afirma sobre o que
bárbaros que tanto desprezava. Unidos exijam a entrega e o julgamento quer que seja. Coerência seria sinôni-
O fim de Roma ainda consumiu três de Milosevich como criminoso - mas exi- mo de recuo - e recuar seria uma
séculos - afinal, as forças produtivas gem que os seus criminosos fiquem a desonra para o Império; portanto, ne-
àquela época, ainda bastante primitivas, salvo de qualquer julgamento. Não fa- nhuma menção no sentido de procurar
retardaram o processo de transformação zem - ou farão? - idéia de como essa in- entender as raízes que fizeram surgir,
das relações de produção; hoje, porém, tolerância funciona como fermento do nos dominados, o ódio mortal a ele,
o seu extraordinário avanço é um ele- ódio para os que o combatem. talvez o mais odiado império da História
mento de impulso a elas. E, junto com Se pudessem, portanto, aprender essa - mais ainda que o Império Romano.
ele, o impulso dado pela intolerância do lição oferecida a Roma, veriam que as- Só há, portanto, uma intenção: a vin-
Império. O que ocorreu em Nova Iorque sim como Armínio, o Germânico, os ter- gança. Como sempre, o Império está ma-
e Washington é uma manifestação inicial roristas de hoje nada mais fizeram do nietado pela sua própria arrogância;
daquele sintoma implacável, que anun- que intuir três princípios não escritos, como sempre, o Império se acha supe-
cia a chegada da doença histórica que porém tão simples quanto objetivos, que rior à História. Como sempre, o Império
faz os tigres perderam as garras e os sempre estarão presentes nas relações é prisioneiro de si mesmo. Portanto, é
dentes - e serem devorados pelo isola- entre dominadores e dominados: pri- inevitável que a História o condene à sua
mento que criam contra todos os demais meiro:a luta contra um império é sempre pena máxima:aprendê-la do modo mais
- e que acaba por isolá-los. É claro que movida pelo ódio que todo império pro- amargo.
isso tem uma dimensão histórica e a voca contra si entre aqueles que agride e E ele, quer queira quer não - e mesmo
História tem uma tendência secular - domina; segundo: quem enfrenta um que à custa da sua arrogância -, forçosa-
mas o seu curso é inexorável. É claro império sempre luta em condições ma- mente, daqui por diante vai ter que
que se sabe que a agonia de um Tira- teriais de concreta inferioridade, e, pois, aprendê-la desse modo.
nossaurus Rex estraçalha quem estiver ao terá que lutar com as armas que tem à
alcance dos seus estertores. Mas a obs- mão; portanto, terceiro:quem se dispõe

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Homem e Sociedade

ANEXO:

Um sumário das notícias de Juventud Rebelde


sobre a homenagem à memória dos 25 anos
do primeiro atentado terrorista aéreo da história
Compilação e interpretação:
Aluizio Lins Leal

No início de outubro, Juventud Re-


belde noticiou que Fidel Castro, discur-
sando em uma cerimônia na Plaza de
La Revolución, em La Habana, onde se
homenageava a memória de 73 víti-
mas do trágico holocausto de um inde-
feso avião comercial abatido em vôo,
lembrava que há vinte e cinco anos
atrás, na mesma praça, estavam sendo
velados os caixões com pequenos frag-
mentos de restos humanos e objetos
pessoais dos inocentes passageiros da-
quele avião, ceifados por um atentado
incrível e brutal, que inaugurou, aí - e
para sempre - o terrorismo aéreo. Nes-
se avião, da Cubana de Aviación, mor-
reram todos os integrantes da equipe
olímpica juvenil de esgrima masculina
e feminina de Cuba, que regressavam
ao seu país após haverem conquistado
todas as medalhas de ouro do Cam-
peonato Centro-americano daquela ta igualmente repugnante, que custaria E o uso sistemático dessas práticas
modalidade. a vida de milhares de pessoas inocen- cruéis e terríveis na esfera política -
Fidel lembrou que, na ocasião, nin- tes nos Estados Unidos? E que agora, disse Fidel - se inaugurou precisamen-
guém - ninguém, salvo um grupo de tal como à época do atentado contra o te contra Cuba. E foi precedida pela
personalidades e instituições amigas - avião cubano, apenas restaram, das ví- prática de seqüestrar e desviar aerona-
compartiu com Cuba a sua dor, nem timas, alguns poucos despojos. ves em vôo. De 1959 até agora nada
houve qualquer comoção, nem reuni- Contudo - disse Fidel - há algumas menos que 51 aviões cubanos foram
ões na ONU, nem movimentos de diferenças essenciais entre o que ocor- seqüestrados, e, quase sem exceção,
guerra iminente. Assinalou que, no reu em Barbados (onde se deu a sabo- desviados para os Estados Unidos.
mundo todo, talvez somente uns pou- tagem do avião cubano) e o de Nova Muitos desses aviões jamais foram
cos tivessem compreendido o terrível Iorque:o crime de Barbados foi obra de devolvidos, isso sem contar as inúme-
significado do que se passara. E que mercenários com o objetivo puro e ras pessoas feridas ou assassinadas no
bastou um simples desmentido dos simples de matar os passageiros; em decurso desses seqüestros, bem como
poderosos meios de informação dos Nova Iorque e Washington, eram gente da destruição de inúmeras dessas ae-
Estados Unidos, que inundaram o disposta a perecer junto com as víti- ronaves pelos seqüestradores.
mundo com notícias destinadas a neu- mas. A angústia dos passageiros nos Logo essas práticas se estenderam
tralizar a horrenda realidade daquele seus minutos finais, nas aeronaves se- aos próprios Estados Unidos, onde co-
fato, para que tudo caísse no esqueci- qüestradas, deve ter sido tão terrível meçaram a seqüestrar aviões com o uso
mento. E adiantou, ainda: quem pode- quanto a dos cubanos em Barbados. de armas de fogo, armas brancas e co-
ria prever que, quase vinte e cinco anos Também - assinalou ele - dos horríveis quetéis molotov. Mas, graças ao empe-
depois, estaria a ponto de iniciar-se fatos de Nova Iorque restaram imagens nho das autoridades cubanas, não se
uma guerra de conseqüências imprevi- visuais comovedoras; da explosão de produziu um só acidente ao aterrissa-
síveis por causa de um ataque terroris- Barbados, nenhuma só foto. rem as aeronaves seqüestradas. Preo-

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 139


Aparelho de Estado, Homem e Sociedade

cupado com a disseminação dessa prá- terrorismo, na Plaza de La Revolución,


tica, o governo cubano tomou a iniciati- Fidel ainda comentou que foi convocado não apenas como tribu-
va de propor aos Estados Unidos, à to aos irmãos cubanos mortos em Bar-
época presididos por Nixon, um acordo inúmeras foram as publicações bados - mas, também, como expressão
para tratamento desses casos, que foi que destacaram a vinculação da de solidariedade com os milhares de
aceito e assinado em 15 de fevereiro de pessoas inocentes que morreram em
1973. Por causa disso, foram estabeleci- CIA com esses grupos terroristas Nova Iorque e Washington, e de conde-
das sanções pesadas contra seqüestros nação ao crime brutal, buscando cami-
anticubanos, que se moviam
de aeronaves e navios - e, a partir daí, nhos para a erradicação real e dura-
essas ações diminuíram. Mas esse con- com inteira liberdade em doura do terrorismo, para a paz e não
vênio eficiente e exemplar recebeu um uma guerra sangrenta e interminável.
território norte-americano.
golpe demolidor e brutal ao ser explo- Asseverou que tem a mais profunda
dido em pleno vôo o avião cubano em convicção de que as relações dos gru-
Barbados. Em razão dessa agressão Lugo, após haverem descido em To- pos terroristas criados contra Cuba nos
cruel e insólita, Cuba denunciou o acor- bago, onde haviam deixa do a bomba Estados Unidos nos primeiros 15 anos
do, mesmo que mantendo inalteradas no avião, regressaram a Trinidad, onde da Revolução com as autoridades
as medidas de proteção contra o se- foram presos; e lá confessaram não só norte-americanas nunca se romperam.
qüestro de aeronaves norte-america- a sua participação no atentado, como, Mais adiante, questionou: em um dia
nas. também, que trabalhavam para a CIA como o de hoje temos o direito de per-
Porém, durante 42 anos, o governo americana. Fidel ainda comentou que guntar que medidas se tomaram con-
norte-americano não mudou a sua po- inúmeras foram as publicações que tra Posada Carriles e Orlando Bosch,
lítica agressiva contra Cuba, apesar de destacaram a vinculação da CIA com responsáveis pelo monstruoso ato de
que, entre setembro de 1968 e de- esses grupos terroristas anticubanos, Barbados, assim contra os que planeja-
zembro de 1984, em que foram regis- que se moviam com inteira liberdade ram e financiaram as bombas coloca-
trados 71 seqüestros de aviões desvia- em território norte-americano. Os au- das nos hotéis da capital cubana e as
dos para lá, 69 participantes desses tores intelectuais desse crime bárbaro, tentativas de assassinato contra diri-
seqüestros tenham sido julgados e Luís Posada Carriles e Orlando Bosch, gentes cubanos, que nunca se detive-
sentenciados a penas de prisão como só acabaram por ser colocados na pri- ram um minuto nestes mais de 40
resultado das medidas preventivas são na Venezuela, para onde se ha- anos.
tomadas pelo governo cubano contra viam evadido, devido à atitude firme Sublinhou Fidel que não é demais
a pirataria aérea, e de que há dezesse- do General Elio Garcia Barrios, presi- pedir que se faça justiça aos profissio-
te anos não se tenha qualquer caso de dente da Corte Marcial daquele país, nais do terrorismo, que nunca cessa-
desvio, para Cuba, de aeronave norte- onde, afinal, haviam sido capturados, ram de aplicar seus métodos terríveis
americana. julgados e condenados. Apesar disso, para semear em Cuba o terror e des-
Fidel também lembrou que não só Posada foi resgatado pela Fundación truir sua economia. E que, já que Cuba
essas, mas outras formas de agressão Nacional Cubano Americana, que arre- está comprometida na luta contra o
foram, também, usadas contra Cuba: cadou 50 mil dólares para a sua fuga - terrorismo em escala mundial, junto
por exemplo, os bandos armados - a e em questão de horas ele apareceu, com a comunidade internacional e a
maioria deles recrutada pelo governo depois, em El Salvador. Fidel ainda res- ONU, assiste-lhe toda a autoridade
dos Estados Unidos nos dias da inva- saltou que os americanos melhor moral e o direito de reclamar que ces-
são da Baía dos Porcos e da Crise de compreenderiam o que se passou sem as ações terroristas e o bloqueio
Outubro, para atuarem em ações ter- com eles se comparassem isso com o contra ela. E, ainda, destacou que os
roristas de todo tipo; e que após o as- que sofreu a nação cubana 25 anos irmãos mortos em Barbados não são
sassinato de Kennedy, a CIA decidiu atrás. Disse ele: ”Tudo quanto eu de- apenas mártires; são símbolos da luta
aperfeiçoar ainda mais a qualidade do nuncio aqui não está inspirado em contra o terrorismo, se erguem hoje
pessoal terrorista envolvido, criando sentimentos de ódio ou rancor; com- como gigantes para erradicar esse mé-
grupos ainda mais bem treinados e preendo que os funcionários norte- todo repugnante que tanto sofrimento
experientes. Por isso, disse Fidel, surgi- americanos não desejam nem ouvir fa- causa. Não foi em vão o sacrifício; a
ram organizações como a CORU, cujas lar destes temas embaraçosos, dizem injustiça começa a tremer ante o povo
ações contra Cuba sempre foram as que é preciso olhar para a frente”. Mas que há vinte e cinco anos chorou de
mais diversas: ataques de lanchas pira- considera aziago não voltar a vista para indignação e dor, e hoje chora de
tas contra pescadores, bombas em as causas das tragédias humanas, das emoção, esperança e orgulho ao re-
embaixadas cubanas e na missão cu- guerras e outras calamidades que po- cordá-los.
bana na ONU, nas oficinas cubanas deriam ser evitadas, e sublinhou que
em Barbados, no aeroporto de Kings- não há porque haver mortes inocentes Aluízio Lins Leal é professor da Universi-
ton. E, sobretudo, como se tratavam os em qualquer lugar do planeta. dade Federal do Pará.
terroristas: Hernán Ricardo e Freddy Fidel disse que aquele ato contra o

140 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


Memória do MD
Memória do MD

Memória do Movimento Docente

Raul Guenther
por Antônio Ponciano Bezerra
Arquivo pessoal

Raul Guenther, professor do Departamento de Engenharia


Mecânica e coordenador do Laboratório de Robótica da Univer-
sidade Federal de Santa Catarina (UFSC), integrou o quadro dos
militantes pioneiros do Movimento Docente (MD).
Para além de ter assumido posições-chave na liderança do
movimento sindical local e regional, este professor exerceu as
funções de 1º Secretário e Secretário Geral, nas gestões 82/84 e
84/86, respectivamente, do ANDES-SN. Nesta entrevista, o Prof.
Guenther nos fala de suas experiências como militante sindical.

Universidade e Sociedade - Como Acadêmicos, constituindo uma instân- ram um dia nacional de discussão des-
iniciou as suas atividades políticas no cia denominada Conselho de Repre- se tema, e aqui, em Santa Catarina, to-
MD local, regional e nacional? sentantes (de cada Departamento). dos os Departamentos paralisaram
Raul - Minhas atividades políticas Eu, com três anos de Universidade, suas atividades para fazê-lo. No meu
foram iniciadas no movimento docen- num Departamento na época muito Departamento, a discussão foi polari-
te. A primeira assembléia geral da mi- influente e muito conservador (o Rei- zada entre o Reitor (professor do De-
nha vida foi do movimento docente. tor nomeado era do meu Departa- partamento), que veio à reunião para
Bem nos seus primórdios quando, ao mento), disputando uma eleição com defender a proposta e a representação
nível nacional, começava a articulação três candidatos, fui eleito pelos meus do movimento docente. No final, o De-
entre as ADs e, ao nível local, muda- colegas para representá-los no Conse- partamento tirou posição rejeitando a
mos o carácter da Associação dos Pro- lho de Representantes. Esta foi minha transformação em “autarquia espe-
fessores da UFSC (APUFSC), construin- iniciação política. cial”, o que, pelas circunstâncias, teve
do-a como uma entidade autônoma e A articulação do movimento docen- uma grande repercussão. A posição da
de luta em defesa dos professores e te, ao nível nacional, permitiu que de- nossa Assembléia foi na mesma dire-
de uma universidade democrática vol- senvolvêssemos uma atuação muito ção, assim como a do movimento na-
tada para os interesses da maioria da consistente na rejeição do principal cional.
população. projeto do governo na época: a trans- Creio que foram esses fatos que le-
Nesta época, foi eleita a diretoria da formação das universidades federais, varam um conjunto de Colegas a pro-
APUFSC presidida pelo Prof. Oswaldo organizadas na forma de autarquias, por que eu, integrasse a chapa enca-
Maciel, depois primeiro presidente da em “autarquias especiais”, com maior beçada pelo Prof. Maciel, na sua reelei-
ANDES, que estimulou a organização “autonomia” e possibilidade de buscar ção, como vice-presidente. Um mês
do movimento a partir de cada local recursos em outras fontes que não o após termos sido empossados, foi de-
de trabalho, aqui os Departamentos orçamento nacional. As ADs organiza- flagrada a primeira greve nacional, diri-

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 143


Memória do MD

gida pela Coordenação Nacional das perspectiva mais geral para a Univer- em Cuiabá e foi implementada em
Ads. E o Prof. Maciel, então Secretário sidade brasileira. âmbito nacional.
dessa Coordenação, licenciou-se da Talvez elas existam, mas eu desco- Realizamos o único debate público
APUFSC para trabalhar no movimento nheço nossas propostas para a inver- do qual o candidato Tancredo Neves
nacional e eu assumi a presidência da são desse quadro de expansão calami- participou, num auditório da UnB, com
nossa entidade. A primeira assembléia tosa das escolas particulares. Não te- uma ampla participação de professo-
que presidi deflagrou a greve. nho notícia da ação do MD nas esco- res e das ADs. Essa atitude definiu nos-
Depois da greve, fundamos a ANDES, las particulares da minha região. sa postura perante o futuro governo,
em Campinas. Assim cheguei ao movi- ao qual muitos dos nossos colegas
mento nacional. US - Na ocasião do Colégio Eleitoral professores eram simpáticos, garantin-
a ANDES teve uma posição autônoma do a possibilidade da continuidade da
US - Como avaliar o Movimento Do- no que diz respeito ao apoio a Tan- luta, logo na seqüência.
cente dos anos 80 em comparação credo Neves. Como apoiar um candi- Assim, como, naquela ocasião, creio
com os anos 90? dato a Presidente hoje? que não cabe ao nosso sindicato apoi-
Raul - Acho muito difícil fazer uma Raul - Creio que o momento mais ar nenhum candidato. Construimos
avaliação comparativa, não só pelas al- importante que tive oportunidade de nosso sindicato autônomo e desatrela-
terações na conjuntura como pela vivenciar dentro do MD foi na defini- do do Estado e de partidos políticos.
alteração de perspectiva. Nos anos 80, ção do apoio a Tancredo Neves, no Co- Em conjunto com a democracia inter-
eu fui militante (desde 79), dirigente légio Eleitoral. Concorrendo com Paulo na, essas são as fontes vitais da sua
local (entre 80 e 84) e dirigente nacio- Maluf que, além de seu autoritarismo combatividade. Creio que devemos
nal (entre 82 e 86). Nos anos 90, eu e de ser o representante da ditadura, apresentar nossas reivindicações aos
iniciei afastado para fins de formação teve uma atuação nefasta em relação à candidatos e discuti-las com eles, di-
e, no retorno, participei como militan- Universidade, como governador de SP, vulgando essas discussões para que
te nos momentos mais agudos. Tenho, Tancredo Neves tinha a simpatia de nossos colegas professores tenham
claro, visões diferenciadas dos dois pe- grande parcela dos docentes do país. mais esses elementos para fazer sua
ríodos que acredito não podem ser Talvez por isso havia uma forte corren- escolha.
comparadas. te (majoritária até um certo momento)
Hoje, como participante, vejo que o dentro da diretoria da ANDES, a favor US - Que avaliação faz da última
MD manteve, apesar de um breve in- de a entidade manifestar seu apoio ao greve das universidades federais?
tervalo, seu carácter democrático e sua então Governador de Minas Gerais. Raul - Uma greve amplamente vito-
autonomia, fonte da sua combativida- Considero-me o segundo signatário riosa.
de desde sua criação. da formulação apresentada pelo Prof. Uma greve de diversos setores do
Talvez a maior diferença esteja hoje Carlos Martins (então vice-presidente) serviço público, em que todos os seto-
na amplitude do movimento. Nos pela qual a ANDES não deveria apoiar res que conseguiram resistir às investi-
anos 80, tive a oportunidade de parti- nenhum candidato. Deveria, sim, rejei- das governamentais tiveram vitórias
cipar de um processo de elaboração tar Paulo Maluf, por tudo que ele re- políticas e conquistas parciais.
coletiva, realizada a partir dos locais de presentava de nefasto para a Univer- Uma greve que desnudou, perante a
trabalho, de uma proposta para a Uni- sidade e para a sociedade brasileira. opinião pública, o tratamento perverso
versidade brasileira. Construimos a Deveriamos também, como entidade do Ministério da Educação para com
proposta do “padrão único de qualida- autônoma e independente, formular as Universidades Públicas.
de” para a Universidade, a partir do nossas reivindicações ao candidato Uma greve que fortaleceu a coesão
qual era articulado o conjunto de lutas Tancredo Neves e convidá-lo a vir de- interna dos docentes manifestada pela
das federais (divididas em autarquias e batê-las públicamente conosco. Na ampla participação nas Assembléias.
fundações), das estaduais e das parti- primeira votação na diretoria essa pro- Uma greve que interrompeu a políti-
culares). posta teve dois votos a favor e dezese- ca salarial do governo de reajustes so-
Nos anos 90, o MD manteve seu te contra (daí eu ser o segundo signa- mente na GED.
carácter propositivo, mas a luta ficou tário). Uma greve que trouxe uma conquis-
com uma perspectiva mais voltada pa- Na continuidade da discussão, a pro- ta salarial com isonomia.
ra as federais. Creio que perdemos a posta foi vitoriosa no CONAD realizado

144 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


Depoimentos
Depoimentos

Por que a Revolução dos


Cravos deixou de ser socialista

Fotos: Paula Alambre


Entrevista com o tenente-coronel Otelo Saraiva de Carvalho 1

Waldir José Rampinelli2 - Uma das


grandes causas que motivaram os
acontecimentos de Abril/74 foi a guer-
ra colonial. No entanto, dentro do país
a hegemonia da burguesia agrária
era substituída pela burguesia indus-
trial-financeira. Portugal trocava a Áfri-
ca pela Europa. Até que ponto esta
burguesia industrial-financeira tam-
bém buscava a mudança do regime?
Tenente-coronel Otelo Saraiva de
Carvalho: A grande burguesia indus-
trial-financeira se sentia limitada em
um país pequeno como Portugal e,
ao mesmo tempo, sufocada pelo regi-
me. Salazar foi sempre um homem
voltado para a ruralidade, não acom-
panhou (ou não quis acompanhar) a
evolução dos tempos e, portanto, im-
pediu o crescimento da indústria por-
tuguesa. Claro que para os industriais,
principalmente aqueles que queriam
se afirmar como grandes, mesmo no
campo financeiro (o caso Champali-
mon é paradigmático), era necessário
buscar novas fronteiras de negócios. E
a Europa era o campo natural. Prefe- dualidade ultrapassada. burguesia industrial e financeira.
riam muito mais a integração em Sem dúvida havia um certo domí- W. J. R. - Mas isso não derrubaria o
uma comunidade européia e voltada nio do poder econômico sobre o po- regime por si só?
para o Ocidente - como os Estados lítico, embora acima de tudo pairas- O. S. C. - Podia pressionar o regime.
Unidos - do que manter o país sufo- se o ditador Salazar. Na verdade, ha- Mas Salazar ia controlando e dominan-
cado naquele “cinzentismo” de uma via uma movimentação por parte da do esta burguesia.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 147


Depoimentos

W. J. R. - O senhor, durante as movi- O. S. C. - Os princípios do programa revolução socialista, levando os traba-


mentações do 25 de Abril, ficou encer- do Movimento das Forças Armadas lhadores ao poder, isso assusta enor-
rado entre quatro paredes comandan- (MFA), anunciado ao país, em 26 de memente a classe média portuguesa,
do as operações. Em que exato mo- abril de 1974, apontavam para a revo- toda a burguesia e, conseqüentemen-
mento sentiu que a vitória estava as- lução burguesa. A origem de classe dos te, os próprios oficiais que tinham fei-
segurada e por quê? oficiais que formavam o MFA (o MFA, to o 25 de Abril. Estes eram progressis-
O. S. C. - A partir do momento em que estava presente nas três armas, tas, mas não revolucionários ao ponto
que tive conhecimento de que o presi- constituía 17% de oficiais, não mais) de buscar um suicídio em termos pro-
dente do Conselho de Ministros3 - prof. era, na sua maioria, proletária, mas fissionais.
Marcelo Caetano - se havia refugiado muito deles já tinham passado para a Por isso foi levado a efeito uma con-
com alguns ministros no Quartel do classe burguesa. certação - com mais de 90% dos ofici-
Carmo4, que era o Comando Geral da Logicamente que, ao derrubar um ais que constituíam as Forças Armadas
Guarda Nacional Republicana (GNR). regime ditatorial de direita e fascista, a - no sentido de travar o processo evo-
Eu não esperava que ele fosse para lá. tendência nunca seria para uma revo- lutivo de uma revolução socialista para
Havia esta hipótese, no entanto, ela lução socialista, mas burguesa. Foi de fazê-lo voltar ao que chamaram de re-
era remota. fato o que aconteceu e estava expres- gresso à pureza inicial do 25 de Abril,
Na verdade, pensava que ele fosse so no próprio programa político do MFA. expresso no programa do MFA.
para Monsanto, onde há uma unidade Tentava-se destruir os mecanismos de Por sua vez, o mundo ocidental não
da Força Aérea, sobre uma colina que uma ditadura fascista, salazarista e tinha o menor interesse em um foco
domina Lisboa, já que dali ele poderia continuada por Marcelo Caetano para de revolução socialista em Portugal..
resistir melhor e até buscar uma fuga substituí-la por uma democracia de ti- Isso porque, sendo Portugal um país
aérea. Mas por se sentir perto da Po- po ocidental, burguesa, parlamentaris- pequeno, poderia alastrar a chama re-
lícia Política5, foi metido naquela arma- ta, pluripartidária etc. volucionária como um incêndio por to-
dilha do quartel do comando geral da O que sucedeu mais tarde foi um re- da a Europa, apaixonando os trabalha-
GNR. Quando eu tive certeza através trocesso. A generalidade dos oficiais dores nos demais países e gerando
de nossos meios de escuta de que ele que constituíam o MFA, posteriormen- conflitos sociais gravíssimos. Por isso,
se encontrava ali, eu sabia que ele es- te, com a adesão de outros milhares os governos de toda a Europa ociden-
tava perdido. que não tinham participado ativamen- tal, juntamente com os Estados Uni-
Então mandei a coluna de blindados te do 25 de Abril mas que estavam in- dos, não interessados no sucesso de
do capitão Salgueiro Maia avançar e tegrados às Forças Armadas, todos eles uma revolução socialista, procuraram
cercar o quartel do Carmo. Sabia que aderiram ao espírito democrático-bur- travá-la.
havia uma coluna da GNR que estava guês. Assim, enviaram para Portugal, em
fora e que poderia eventualmente cer- Quando o processo entra no estado janeiro de 1975, em substituição ao
car a nossa.. Mas ao ocupar, por pri- evolutivo que pode apontar para uma embaixador estadunidense Stuart Scott,
meiro, os arredores do quartel do Car- o senhor Frank Carlucci. Jovem ainda e
mo, era difícil que uma outra força de- que havia estado no Brasil por ocasião
le se aproximasse. do golpe de 1964, tinha experiência
Portanto, no exato momento em de como travar um processo revolucio-
que soube que Marcelo Caetano esta- nário. Por isso, quando Carlucci põe os
va refugiado no quartel do GNR do pés em Portugal, começa a desenvol-
Carmo, tinha certeza de que eles esta- ver uma missão - felizmente para os
vam perdidos. portugueses e Portugal acabou sendo
não a tarefa catastrófica que havia sido
W. J. R. - O golpe de Estado se trans- delineada pelo secretário de Estado
formou em um processo revolucioná- Henry Kissinger, que planejava a des-
rio para logo depois voltar a ser uma truição de nossa economia para que o
revolução burguesa. Que fatores inter- país se transformasse na vacina da
nos e externos possibilitaram que isso Europa contra o socialismo - que con-
acontecesse? sistia na idéia de que a união de algu-

148 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


Depoimentos

de um Estado autoritário que durara


quase 50 anos. Como se explica que,
depois de todo o trabalho feito, se per-
mitisse que o general António de Spí-
nola, que representava a hierarquia
das Forças Armadas e os conservado-
res de modo geral, tomasse conta do
processo? Ingenuidade, espírito de
hierarquização, falta de estratégia po-
lítica?
O. S. C. - O general António de Spí-
nola teve sempre como meta atingir a
presidência da República. E todo o ca-
minho que percorre, como militar, é
para isso. Esteve em Angola, em 1961
ou 1962, onde se tornou notável como
Otelo Saraiva de Carvalho e Waldir José Rampinelli chefe militar em combate. Ganhou,
portanto, prestígio na guerra e faz pro-
mas forças conjugadas poderia levar a te-coronel Ramalho Eanes, que logo a paganda de sua ação como chefe mili-
um processo de democracia ocidental seguir foi eleito presidente da Repú- tar. Regressa a Portugal e, posterior-
burguesa. blica, o que aconteceu em 25 de abril mente, vai cumprir novas funções, já
E então Carlucci serviu-se destas for- de 1976. na condição de general de duas estre-
ças. Tais forças foram essencialmente o Buscou-se um pretexto para que las, como comandante-chefe das For-
Partido Socialista, com o Dr. Mário Soa- não se acusasse o grupo dos nove de ças Armadas da Guiné, acumulando o
res, e os militares, com o grupo dos no- haver estrangulado a revolução popu- cargo de governador-geral.
ve - nove camaradas das Forças Arma- lar, e este mesmo grupo, com o apoio Durante cinco anos, embora tenha
das que integravam o Conselho da Re- do partido socialista, pôs fim aos avan- mandato de seis, rodeia-se de um gru-
volução, que fizeram com que germi- ços revolucionários. Não se fez resis- po de excelentes oficiais das Forças Ar-
nasse, no interior das Forças Armadas, tência a isso, pois não se estava prepa- madas - sobretudo do exército -, e o
um movimento que acabou travando a rado para tal. seu quartel general é todo constituído
revolução socialista, pondo-a nos cami- por pessoas de elite. Cria um staff que
nhos da revolução burguesa. W. J. R. - Os capitães - Movimento vai torná-lo uma figura lendária em Por-
W. J. R. - E qual era o plano especí- das Forças Armadas (MFA) - coman- tugal. Deste modo, granjeia um enorme
fico de Kissinger para Portugal? daram todo o processo da derrubada prestígio como chefe militar e vai ga-
O. S. C. - Houve um plano específi- nhar uma dimensão muito grande co-
co. Nesta altura, o ditador Francisco mo político.
Franco ainda estava vivo e foi utilizado Na condição de governador-geral,
nesta travagem. Mário Soares também ele adota os congressos do povo da
aderiu a este processo, já que seu pro- Guiné, dos quais aparentemente vão
jeto era o de um socialismo democrá- resultar enormes benefícios para a po-
tico dentro de uma perspectiva de pulação. Toda a sua estratégia durante
democracia burguesa ocidental. Aliás, os cinco anos de Guiné é a de ganhar
tornou-se muito amigo de Carlucci e um prestígio incontrolável para conse-
este serviu-se politicamente de Soares guir a presidência da República.
para esta travagem da revolução, Quando ele vem a Portugal passar
como também da parte moderada do férias, em agosto de 73, a situação mi-
MFA. Isso se deu graças a um plano litar na Guiné estava muito má. A guer-
militar preparado por um grupo de ex- ra estava praticamente perdida pelas
celentes oficiais, liderados pelo tenen- Forças Armadas portuguesas. E o ge-

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 149


Depoimentos

neral Spínola não aceitava isso, já que havia possibilidade de uma revolução
dentro da estratégia delineada não socialista. O que vai alterar as minhas
poderia ficar mais um ano por lá e ter convicções é exatamente o processo
de aceitar a derrota como chefe militar revolucionário, dominado em grande
após cinco anos brilhantes. parte por pessoas de partidos, quer do
Nesse momento, Marcelo Caetano comunista, quer de movimentos de
teve uma enorme dificuldade de ajus- esquerda e da própria esquerda do
tar um posto para o Spínola. Então Partido Comunista, que galvanizaram
promove-o a general de quatro estre- as massas populares perdedoras e lhes
las e cria funções de vice-chefe geral deram motivo para uma luta que elas
do Estado Maior das Forças Armadas. começaram a desenvolver.
Não contente com isso, Spínola quer Então surgiram líderes de trabalha-
afirmar-se politicamente para cativar a dores e populares que fizeram um
oposição portuguesa. Então publica, grande trabalho, mas também muita
em fevereiro de 74, um livro chamado asneira. As coisas magníficas feitas por
Portugal e o futuro. O livro apresenta eles passaram a idéia de que seria
uma tese, ultrapassada já naquela altu- Forças Armadas, como também demitir possível sair de uma revolução burgue-
ra, de que dentro do espírito da portu- o chefe geral das Forças Armadas - sa para uma socialista. Aqueles milita-
galidade, ou seja, do mundo que fala general Costa Gomes -, que havia dado res de esquerda que não se viam no
português, avança uma proposta tipo cobertura à publicação do livro. Partido Socialista haviam se ligado ao
do Commenwelth à portuguesa. Deste A partir daí, origina-se a terceira fase Partido Comunista.
modo, o chefe de Estado seria o presi- do movimento dos oficiais das Forças A mim, particularmente, não interes-
dente da República portuguesa e todos Armadas. sava uma sociedade com um partido
os demais Estados seriam independen- único, acima do Estado. Mas, sim, uma
tes com seus governos próprios e elei- W. J. R. - Vinte e sete anos depois de sociedade mais livre, onde os trabalha-
tos. No entanto, os comandantes dos abril de 1975, qual é sua avaliação do dores tivessem voz ativa através de
movimentos de libertação - MPLA em movimento dos capitães? Não há uma seus organismos populares de base.
Angola, PAIGC na Guiné e outros - já grande frustração pelos desvios dos Tipo a revolução russa de 1917, com os
exigiam a independência total. objetivos iniciais do MFA? conselhos operários, com assembléias
Spínola, ao defender esta tese, afron- O S. C. - Eu tenho, a posteriori, uma para discutir os problemas da comuni-
ta o governo fascista de Marcelo Cae- visão clara e serena dos acontecimen- dade. Deste modo, se poderia chegar a
tano que já vinha da época de Salazar tos. No dia 24 de abril de 1974, havia uma Assembléia Nacional Popular da
com a idéia do império, onde a situa- aderido ao programa político do MFA. qual saísse o governo. Era de fato a
ção de Portugal não poderia ser discu- Colocava-me na categoria dos progres- perspectiva da construção pelo MFA e
tida. Era assim e ponto final. A guerra sistas, mas percebia logo que não pelas Forças Armadas de uma demo-
precisava continuar, já que fazia parte cracia direta, a que eu chamei de po-
integrante da política colonial, embora der popular.
Salazar, a partir de 1961, adotasse a es- Quando as Forças Armadas recua-
tratégia de um povoamento e desen- ram e os os objetivos iniciais do movi-
volvimento das colônias para mantê- mento político do MFA se esvanece-
las, depois de séculos entregues a um ram, perdeu-se a possibilidade única
certo torpor, tanto que o desenvolvi- de aproveitarmos aquele momento
mento econômico em Angola crescia histórico para irmos muito mais longe
em média 6% na década de 70. na construção de uma democracia
Spínola, neste seu livro, afrontava o participativa, efetiva. Enfim, uma de-
governo, pois apresentava uma outra mocracia melhor do que esta na qual
saída. Marcelo Caetano não teve outra nos encontramos.
saída senão exonerá-lo da condição de A minha frustração reside apenas
vice-chefe geral do Estado Maior das nisto: em considerar que tivemos nas

150 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


Depoimentos

mãos a possibilidade de criar um mo- ria “quem são estes jovens?” Tais jo- missão.
delo novo de regime, um novo tipo vens seriam ótimos como revolucioná- Muitos pensam que o general Spí-
de sociedade em que houvesse me- rios, mas para as posições políticas nola foi o chefe da revolução. Na ver-
nos hipocrisia, menos violência, me- pensantes não. Isto seria motivo de dade, ele foi chamado por nós porque
nos materialismo, menos dinheiro, boicote por parte de todo o mundo precisávamos dele para prestigiar a re-
mais fraternidade; em que o nível das ocidental. volução e levar o mundo ocidental a
populações pudesse aumentar e as A nossa perspectiva era a de criar reconhecer o mais rapidamente possí-
grandes decisões políticas viessem da uma rápida saída para a independên- vel o novo governo.
base para o topo. cia das antigas colônias e, ao mesmo
Tudo isso não foi possível por causa tempo, manter o seu apoio, já que ne-
das contingências do mundo e do do- cessitávamos de suas matérias-primas. Notas:
mínio do Ocidente, e tivemos que ficar Ao deixarmos estas colônias seguirem 1. Otelo Saraiva de Carvalho, um dos capi-
neste cinzentismo da revolução. Na o seu caminho, tínhamos que nos in- tães do Movimento das Forças Armadas de
verdade, a revolução nos trouxe valo- tegrar em outro espaço político estra- Abril de 1974, teve uma participação proemi-
res que estão aí, como a liberdade, a tégico, que era a Europa. Ora, para ter nente na queda do regime ditatorial portu-
dignidade, a representação dos traba- o apoio da Europa à qual queríamos guês. Com o codinome de Óscar comandou,
lhadores etc. integrar o nosso país, precisávamos do desde um centro de operação clandestino,
reconhecimento imediato do mundo todo o desenrolar da ação militar, tornando-se
W. J. R. - Quando se deram os acon- ocidental e dos Estados Unidos. posteriormente governador militar de Lisboa.
tecimentos de 25 de abril de 1974, Por isso, fomos buscar estes gene- É autor de Alvorada em Abril, bem como de
obviamente que se pensou no reco- rais que deram confiança ao mundo inúmeras entrevistas publicadas.
nhecimento internacional do movi- ocidental. Assim não apareceríamos 2. Entrevista concedida a Waldir José Ram-
mento. E o que se pensou em termos como um país em que persistia um pinelli no escritório do tenente-coronel Otelo
de Brasil, já que vivíamos ainda em terceiro-mundismo e onde os capitães Saraiva de Carvalho, em Lisboa, no dia 26 de
uma ditadura onde se começava a queriam ser generais, e deste modo junho de 2001. A transcrição e as notas expli-
dar os primeiros sinais de democrati- aceitamos dois destes generais, com cativas são do entrevistador.
zação. Como dizia o general-presiden- muito prestígio, que foram o António 3. Cargo criado pela Constituição de 1933 e
te Ernesto Geisel, uma abertura lenta, Spínola e o Costa Gomes. que corresponde à função de primeiro-minis-
gradual e segura. No entanto, como Spínola tinha uma tro no regime parlamentarista. No entanto,
O. S. C. - Tivemos uma preocupação ambição de poder muito grande, nós Oliveira Salazar havia transformado esta posi-
com o Brasil, sobretudo devido a uma fomos travando esta ânsia, até que, ção de mando em um verdadeiro poder dita-
grande massa de portugueses radica- em 28 de setembro de 1974, ele re- torial.
dos no Brasil, onde tinham feito toda a nunciou à Presidência. Restou o Costa 4. Este quartel está localizado no centro de
sua vida. O mesmo aconteceu com o Gomes, um homem sem a ambição da Lisboa, com poucas possibilidades de saída,
arquipélago dos Açores, já que o con- Presidência, levando até o fim a sua em caso de emergência.
servadorismo, juntamente com o cato- 5. A sede geral da Polícia Política, conheci-
licismo - como também na Madeira - da por Pide (Polícia Internacional e de Defesa
aqui possibilitara o surgimento dos in- do Estado), ficava nas cercanias do Quartel do
dependentistas. Carmo. Além de muito conhecida por sua vio-
Mas nós tínhamos necessidade do lência e maus tratos aos opositores do regi-
imediato reconhecimento internacio- me, ela dispunha de um grande arsenal de
nal da revolução. Por isso, foram esco- armamentos.
lhidos para a Junta de Salvação Nacio-
nal elementos do antigo regime. Já
que os capitães de abril tomaram o
poder, por que não formaram eles a
Junta de Salvação Nacional? Na reali-
dade, nós sabíamos que, se integrás-
semos esta junta, o país se pergunta-

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 151


Depoimentos

A Europa, os Estados Unidos e


o Brasil de JK apoiaram
a ditadura de Oliveira Salazar
Entrevista com o professor Fernando Rosas1

Fotos: Waldir José Rampinelli

Waldir José Rampinelli2 - É um pra- gunda Guerra Mundial, quando o pro- político-militar - sobretudo militar - de
zer conversar com o senhor que, além blema da subsistência das ditaduras possível contenção ou resposta ao blo-
de professor universitário, é um res- começa a jogar em termos internacio- co soviético. Portugal, exatamente
peitado pesquisador do Estado Novo nais, a recuperação de Portugal para a devido a esta posição estratégica, é
português. Como o senhor explica as comunidade das nações do Ocidente convidado a pertencer ao Pacto do
boas relações mantidas pela ditadura vai se dar, em grande parte, sob o Atlântico Norte - a OTAN - e desta for-
salazarista com algumas democracias ponto de vista externo - da sua não-se- ma recebe uma caução internacional.
burguesas, entre elas, o governo bra- gregação - no ambiente da guerra fria Embora a OTAN declarasse no seu
sileiro de Juscelino Kubitschek? e se utiliza da valorização dos Açores, preâmbulo estar somente aberta a re-
Fernando Rosas - Logo após a Se- como território essencial na estratégia gimes de natureza democrática, e ape-

152 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


Depoimentos

sar de Portugal manifestamente não o W. J. R. - Como a oposição portu- aspectos marcantes da ideologia oficial
ser e de o governo português não pre- guesa via o apoio que o Brasil presta- do regime. Ideologia imperial não no
encher as exigências expostas naquele va a Salazar durante o governo de sentido expansionista de alargamento
preâmbulo, tais condições não são le- Juscelino Kubitschek? do território, mas sim de defesa e ma-
vadas em conta e isso traz muito mais F. R. - A oposição liberal portuguesa nutenção do império colonial.
vantagens que desvantagens para o dos anos 50 até a administração de Jâ- A ideologia colonial não foi inventa-
governo português, que é recebido, na nio Quadros é, apesar de tudo, pru- da pelo Estado Novo, pois já a Primeira
OTAN, como um país de regime seme- dente em relação ao Brasil. Isso por- República, embora fosse liberal, apre-
lhante aos demais membros. A razão que o considera um aliado histórico e sentava uma ideologia acentuada-
se deve, sobretudo, à valorização polí- um irmão de sangue. Daí que essa mente nacionalista-colonialista. Um
tico-militar dos Açores, que já na Se- oposição veja, com pesar, mas não dos grandes argumentos de combate
gunda Guerra Mundial tinham sido uti- propriamente com críticas explícitas, as à Monarquia por parte da Primeira Re-
lizados como base militar - primeiro, boas relações do governo brasileiro pública foi o fato de a Monarquia estar
pelos ingleses e, depois, pelos estadu- com o regime salazarista. vendendo ou entregando o patrimônio
nidenses -, sendo, no final da mesma, As coisas mudam positivamente pa- colonial aos ingleses. Por isso o nacio-
devolvida aos portugueses. ra a oposição com a eleição de Jânio nalismo anti-britânico e anti-monár-
Portugal nunca recebeu nenhuma Quadros. Jânio é um homem, naquela quico tem tradicionalmente um con-
compensação financeira pela cedência altura, de esquerda e inclusive ao pas- teúdo colonialista muito afirmado.
dos Açores. Mas o que acontece é que, sar por Lisboa - antes de tomar posse A oposição portuguesa liberal, de-
quando se começa a anunciar a cria- na Presidência da República - se en- mocrática, não-comunista, e mesmo a
ção da OTAN, os Açores são um ele- contra com grupos de oposição e, ao comunista teve, durante muito tempo,
mento imprescindível para as tropas mesmo tempo, se nega a ser recebido uma posição de grande ambigüidade
estadunidenses, sendo uma espécie pelos representantes oficiais do gover- em relação à questão colonial, bem
de porta-aviões no meio do Atlântico no, sendo este um ato de grande sig- como em relação à guerra, porque fez
(e ainda hoje o são essencial para as nificado. Isso é muito mal visto pelo parte de seu patrimônio anterior um
manobras militares dos Estados Uni- governo português, mas granjeia uma nacionalismo de cunho colonialista
dos). Esta situação foi muito importan- enorme popularidade nos meios da muito acentuado. Portanto, não foi o
te para uma integração rápida e fácil oposição. Estado Novo que inventou esta ideolo-
do regime português à comunidade Já anteriormente as atitudes do em- gia. Ele apenas a reelaborou num sen-
ocidental, apesar de o governo de Sa- baixador Álvaro Lins, bem como o asilo tido imperial, em que Portugal como
lazar não sair da Segunda Guerra Mun- concedido a Humberto Delgado e a re- Nação tinha uma missão providencial:
dial numa situação de isolamento se- cepção de Henrique Galvão4, após a a de evangelizar e colonizar.
melhante ao regime de Franco, em Es- tomada do navio Santa Maria, em Portugal era uma nação que a Pro-
panha. Pelo contrário. 1960, mostraram atitudes de simpatia vidência Divina tinha encarregado da
Do início da guerra fria ao começo da com a oposição portuguesa. Daí que o missão de levar a fé, e o Estado Novo
guerra colonial3, a ditadura portuguesa regime de Lisboa tenha visto com in- quer difundir a religião. A idéia de civi-
é considerada pela Inglaterra e pelos disfarçável satisfação o golpe de Es- lização era uma idéia mais republica-
Estados Unidos como uma ditadura tado e a conseqüente queda do presi- na. Mas no fundo é uma substituição
bondosa, tolerante, dirigida por um ve- dente João Goulart, em 1964, man- dentro do mesmo paradigma.
lho professor universitário. Portanto, há tendo, a partir de então, relações cor- O império era apresentado pelos
claramente um fechar de olhos deriva- diais com a ditadura militar brasileira. republicanos como uma obra civiliza-
dos da política de guerra fria. dora e passou a ser visto pelo Estado
W. J. R. - Como o Estado Novo usou
a idéia do expansionismo marítimo
português no mundo? As festas henri-
quinas5 em 1960, por exemplo, tive-
ram como co-anfitrião o governo bra-
sileiro de JK.
F. R. - A ideologia imperial foi um dos

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Depoimentos

Novo como uma obra evangelizadora. dos hospitais, isto é, a Igreja recebe, no
Ele é um todo orgânico com a cabeça conjunto da sociedade, uma espécie
na metrópole e com uma missão pro- de monopólio da vida religiosa. A Igre-
videncial no mundo. A ideologia impe- ja tem um regime absolutamente pri-
rial está baseada em um certo darwi- vilegiado no pagamento dos impostos
nismo social, numa teoria da superio- e ainda hoje ela não paga, assim como
ridade da raça até os anos 50. Já com os membros do clero, e dispõe de um
o início do processo de descoloniza- regime de religião oficiosa, ainda que
ção, tenta-se evoluir para a aceitação não oficial.
oficiosa da idéia luso-tropicalista do A Constituição de 1933, que sofre
Gilberto Freyre. Deste modo, a supe- uma emenda em 1935, confere à Igre-
rioridade rácica dos portugueses que ja Católica o papel de religião da nação
conferiam a si próprios a missão de portuguesa. Embora não seja uma reli-
evangelizar, começa a ser substituída gião do Estado - já não estamos no re-
por uma certa manipulação do luso- galismo - é contudo uma religião ofi-
tropicalismo do Gilberto Freyre. Portu- ciosa. Portanto, é dado à Igreja Cató-
gal passa a ser um povo especial que lica o monopólio do exercício do mun-
tem uma tendência inata, que nos do espiritual, juntamente com privilé-
outros não existe, de se “misturar”, de gios administrativos e financeiros sin-
se “crioulizar”, de se juntar aos demais, gulares. E, em contrapartida, a Igreja
de formar uma sociedade crioula, ori- passa a idéia de que este regime é o
ginal e mestiça. Seria a forma própria desejado pela Providência Divina, é o
de Portugal estar no mundo e que desejado por Deus, é o que estabele-
conferiria à colonização portuguesa hegemonia dos valores cristãos tradi- ceu a paz com a Igreja, é o que restau-
uma marca completamente limpa e cionais e o segundo garantia uma rou a Igreja e os católicos, e, portanto,
distinta das demais. despolitização da população por con- é o regime de Portugal.
Por isso, na década de 50, essa já é ta de um messianismo de Salazar? No entanto, Salazar nunca permitirá
claramente a ideologia oficial. O Gil- F. R. - O Estado Novo estabelece um que a Igreja entre diretamente na polí-
berto Freyre vem a Portugal e se pres- pacto de governação com a Igreja Ca- tica. Tanto que, em 1933, o partido po-
ta inteiramente a este papel. É levado tólica que é plasmado na Concordata lítico da Igreja - o Centro Católico - é
às universidades, à metrópole, às colô- e no Acordo Missionário de 19407. O dissolvido. Como o Estado concedia à
nias6, como o ideólogo de uma doutri- pacto é mais ou menos o seguinte: es- Igreja grandes regalias, entendia-se que
na que, na época da descolonização, tabelece-se um regime de separação não havia necessidade de ela manter o
convém inteiramente ao colonizador concordatado entre o Estado e a Igreja seu próprio partido, prescindindo total-
português - que defende a concepção - ou seja, a Concordada consagra o mente de fazer política diretamente.
de que somos diferentes dos france- regime de separação. O Estado Novo Mas a Igreja faz política indiretamente,
ses, dos ingleses, dos holandeses, ou guarda ciosamente para si o monopó- ou seja, cultiva e fomenta, no seu reba-
seja, nós não andávamos a explorar as lio da política, não deixando a Igreja nho, a aceitação da ordem estabelecida
populações das colônias, mas sim a intervir. Por outro lado, há um acordo como algo natural, providencial, a qual
criar civilizações no ultramar - não co- que consiste em conceder à Igreja pri- deve ser aplaudida pelos portugueses.
loniais, mas luso-tropicais, que é um vilégios absolutos no domínio da edu- Por isso, a Igreja apoiou explicita-
prolongamento da nossa própria na- cação, da assistência, do regime fiscal, mente a guerra colonial na África. No
cionalidade, justificando a individuali- da evangelização das Forças Armadas, entanto, não se deve confundir esta
dade de Portugal como nação. posição oficial com a de muitos católi-
cos, especialmente a partir da Carta do
W. J. R. - Pode-se dizer que, entre a Bispo do Porto em 19588, já que a
Igreja Católica e o Estado Novo, havia mesma motivou a formação e o alas-
um pacto de dominação cívico-espiri- tramento de uma oposição católica
tual onde a primeira assegurava uma muito importante.

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Depoimentos

W. J. R. - Pode-se afirmar que a tual ao Estado Novo dura quase 40 dade e outros procuram o exílio, prin-
Carta do Bispo do Porto foi uma ruptu- anos. Na verdade, a intelectualidade cipalmente na Argélia, na França e no
ra por parte de um setor da Igreja com portuguesa, na sua grande maioria, foi Brasil.
o regime salazarista? sempre rebelde ao Estado Novo. Esta
F. R. - É, sem dúvida, um sinal para a intelectualidade mais criativa, que está W. J. R. - Uma das grandes causas
oposição católica. Já existiram antes, na origem dos grandes movimentos que motivaram a Revolução de Abril
durante os anos 40, alguns casos pon- culturais e artísticos, do neo-realismo, de 1974 foi a guerra colonial que poli-
tuais de religiosos oposicionistas. Mas do surrealismo, do presencismo nos tizou as Forças Armadas. No entanto,
sem dúvida a Carta do Bispo do Porto anos 30, 40 e no pós-guerra, se posi- dentro do país, a hegemonia de uma
é uma espécie de sinal para as novas ciona basicamente contra o regime burguesia agrária era substituída por
gerações de católicos se organizarem que, por sua vez, se utilizava da censu- outra, industrial-financeira, que deixa-
na luta contra a ditadura. A partir daí ra e da polícia política para fazer frente va de olhar para a África e punha seus
começa uma oposição católica. a esta rebeldia. interesses na Europa. E, em nível inter-
A Igreja hoje se pronuncia sobre o Portanto, ao longo destes 40 anos, a nacional, tínhamos a derrota dos Es-
Estado num regime de inteira liberda- fina flor da intelectualidade portugue- tados Unidos no Vietnã. Como estes
de, o que não havia no tempo do Sa- sa conspira contra o regime, milita no fatores influenciaram os acontecimen-
lazar. Aliás, a Igreja nunca criticou o re- Partido Comunista contra o regime, e tos de abril/74?
gime de Salazar. Passou-se também muitos deles vão parar na cadeia e até F. R. - Sem dúvida, houve fatores in-
uma coisa interessante com a Igreja, já na ação clandestina. A intelectualidade ternos e externos que os influencia-
que ela não foi de todo afetada pela tem um papel muito forte, sobretudo, ram. Os fatores externos não tinham
Revolução do 25 de Abril, porque a em um país onde o analfabetismo é condições de derrubar o regime, mas
esquerda não queria criar uma ques- muito acentuado e o atraso econômi- atuaram no sentido de potencializar e
tão religiosa, como acontecera na Pri- co é grande. Boa parte dela vinha das agudizar as contradições internas. O
meira República. Ademais, a Igreja fora universidades e passou a liderar moral, ambiente geral da descolonização, das
prudente, soube afastar-se do regime
salazarista no momento certo, ou seja,
uma vez assegurados seus interesses
imediatos. Isso se deu com a substitui-
ção do cardeal Cerejeira por D. Antó-
nio no Patriarcado de Lisboa.
Entretanto, as posições do Papa Pau-
lo VI contra a guerra colonial também
ajudaram a Igreja a afastar-se direta-
mente do regime no seu período final.
Deste modo, ela tem com a Revolu-
ção de Abril uma dupla vantagem: não
perdeu nada do que tinha ganhado
durante o Estado Novo e conquistou a
liberdade política que não possuía,
além de acrescidos privilégios, desig-
nadamente no campo das isenções
fiscais. espiritual e ideologicamente a luta. guerrilhas na América Latina, da guerra
Até a própria oposição comunista do Vietnã são todos acontecimentos
W. J. R. - Como se deu a oposição tem como líder um intelectual: Álvaro que contribuem para alimentar dentro
dos intelectuais ao Estado Novo? Tive- Cunhal. António Sérgio, Jaime Corte- de Portugal, especialmente na juven-
ram de sair do país ou organizaram- são, enfim, todas as grandes figuras da tude, uma grande corrente contra a
se internamente para fazer frente a intelectualidade pagam um preço alto: guerra colonial e contra o regime.
Salazar? alguns ficam em Portugal e vão para a No entanto, por Portugal pertencer à
F. R. - A história da oposição intelec- cadeia; outros militam na clandestini- OTAN, os países ocidentais mais próxi-

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Depoimentos

mos - EUA, França, RFA, Inglaterra - se apoio a Portugal. Principalmente a guarda, por causa destas pressões. Em
negavam ou se abstinham de conde- França e a Alemanha que são forne- Portugal a guerra colonial durou 13
nar o nosso governo mais do que ver- cedoras de armas, enquanto que a anos porque a opinião pública não po-
balmente nas votações da ONU. Na Inglaterra se distancia um pouco da dia se expressar livremente.
prática, foi possível manter a guerra posição dos Estados Unidos. A dife- Agora, Salazar tinha consciência de
colonial porque a França e a Alemanha rença se encontra nos países nórdi- que esta era uma guerra que provavel-
abasteceram Portugal com armas. A cos, que apóiam a guerrilha africana mente o povo português não agüenta-
administração republicana nos Estados e, simultaneamente, não cortam suas ria por mais tempo. Franco Nogueira,
Unidos, Nixon-Kissinger, no início dos relações com o governo português. ministro dos Negócios Estrangeiros e
anos 70, começou a evoluir para a seu grande confidente, afirma que Sa-
contenção do comunismo na África. W. J. R. - O senhor, que tem investi- lazar duvidava que os portugueses
Para tanto começou a apoiar, discreta gado o Estado Novo, nunca chegou a conseguissem moralmente manter a
mas nitidamente, na questão da guer- pensar que, com a intensificação da guerra por muito tempo9.
ra, o governo português. Os Estados guerra nos anos 60 e o conseqüente Na verdade, a guerra colonial era o
Unidos chegaram até a desbloquear aprofundamento da crise política, não nó górdio da questão. Marcelo Caeta-
alguns tipos de armamentos que eram terá o ditador Salazar pensado ou dito no, quando chega ao poder em 1969,
proibidos de usar na África, notada- a alguém que “depois de mim o dilú- tem esta disjuntiva: ou resolve o pro-
mente os mísseis para combater os vio”? blema da guerra e comanda um pro-
cesso de liberalização controlada do
regime, ou não resolve e é obrigado a
acabar com a idéia de liberalização.
Optou pela segunda alternativa e le-
vou o regime a um impasse.
O descontentamento nas Forças
Armadas não se vai manifestar na hie-
rarquia, mas no setor intermédio. Os
generais e os brigadeiros - à excepção
de dois, Spínola e Costa Gomes - estão
com o governo. Quem conspira são os
oficiais, aqueles que conduzem a guer-
ra, mais especificamente os capitães.
A noção de que para acabar com a
guerra é preciso derrubar o regime, os
terra-ar que a guerrilha da Guiné usava. F. R. - Publicamente não, mas Sala- capitães adquirem em um espaço cur-
Embora nas Nações Unidas haja um zar era um homem que sabia que a tíssimo de tempo: entre setembro de
claro isolamento de Portugal, por ou- guerra colonial só poderia ser mantida 1973 e março de 1974. A conspiração
tro lado os países membros da OTAN sem as liberdades fundamentais den- evolui de uma resistência corporativa
mantêm o apoio à guerra colonial atra- tro do país. Historicamente, as guerras para a idéia de que é preciso, através
vés da reposição de armamento às coloniais se tornam vitoriosas para os de um movimento militar, acabar com
Forças Armadas portuguesas. movimentos de libertação porque o regime. Mas é um movimento militar
obrigam os governos coloniais a que não tem um único general, ne-
W. J. R. - Mas estes países conde- mudarem, fruto do cansaço e da ero- nhum brigadeiro e apenas um coronel.
nam o colonialismo no foro das Na- são sempre provocados por guerras E ainda assim um da administração:
ções Unidas e, ao mesmo tempo, ven- intermináveis, com a pressão da opi- Vasco Gonçalves. Os demais são capi-
dem armas a Portugal? nião pública expressa através da im- tães, majores, enfim, a oficialidade
F. R. - Eles condenam para manter prensa ou de eleições livres. Aliás, to- intermédia. Esta oficialidade rompe a
boas relações com os países do Ter- das as guerras coloniais feitas pelas cadeia das Forças Armadas e vai per-
ceiro Mundo, mas na prática a Eu- potências européias foram derrotadas, mitir que um golpe militar seja transfor-
ropa Ocidental tem uma posição de quando não no terreno, na sua reta- mado em um processo revolucionário.

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W. J. R. - O golpe de Estado de 24 de memorações de uma colonização ex-


abril, que posteriormente avançou tremamente penalizante para as popu-
para um processo revolucionário, foi lações que viviam no que hoje é o
revertido pelas reformas constitucio- Brasil e que não apenas a desintegrou,
nais. Ao que se deveu esta reversão: como também os dizimou. Neste sen-
às forças internas conservadoras ou à tido, o governo português deveria ter
opção pela Europa? alguma sensibilidade e respeito para
F.R. - Na realidade, a revolução é tra- com aqueles que hoje são minorias,
vada em 25 de novembro de 1976. É mas que têm uma visão mais crítica de
exatamente aí que as coisas se deci- todo este processo.
dem. O resto é apenas uma questão
de tempo. Simplificando, mas reduzin- W. J. R. - Isso teve algum reflexo na
do as coisas ao que elas foram, o país Assembléiia da República?
tem dois grandes blocos. Um deles F.R. - Lá o que os deputados do Blo-
com influência dominante do Partido co de Esquerda fizeram (naquele mo-
Comunista, ainda que bastante heteró- mento eu não era deputado) foi rece-
clito, com participação de uma parte berem o representante do Brasil - sena-
da extrema esquerda e uma parcela dor Antônio Magalhães - com as cami-
do exército, o COPCON10, que são par- setas dos Sem-Terras vestidas. Nossos
tidários de uma idéia de sociedade deputados usaram da tribuna para
revolucionária, ainda que diferente- defender o movimento e criticar a polí-
mente concebida pelas várias forças tica de Fernando Henrique Cardoso. E,
que o compunham. É um campo sem contra o protocolo, Magalhães usou da
grande unidade tática, sem direção, foi o massacre de uma cultura sobre a palavra para responder aos nossos de-
apesar do peso do PCP. O outro bloco outra. Já dizia o grande Neruda que putados naquele tom já tão conhecido.
é composto pelo Partido Socialista, “a espada, a cruz e a fome iam dizi- Na realidade, Portugal deveria fazer
grande vencedor das eleições para a mando a família selvagem”. E Todorov um balanço crítico e real, ouvindo as
Assembléia Constituinte, em abril de fala que nenhum massacre do século várias posições que há sobre o tema e
1975, por uma parte das Forças Ar- XX foi tão grande quanto o perpetrado não uma visão nacionalista unilateral
madas, por toda a direita e também por portugueses e espanhóis na con-
por um setor minoritário da extrema quista e devastação da América. Co- W. J. R. - O governo português, ao se
esquerda. Este bloco, com uma dire- mo fica um deputado/intelectual e associar às comemorações dos 500
ção e uma tática unificada e clara, ven- historiador diante desta situação? anos, não está se utilizando de um
ce o embate e cria-se uma democracia F. R. - Tive oportunidade de manifes- discurso expansionista, saudosista e
do tipo ocidental. tar minha opinião sobre o assunto em modernizado de seu passado?
Alguns chamam isso de um proces- artigo na imprensa portuguesa a pro- F. R. - As comemorações dos desco-
so contra-revolucionário, outros de pósito da visita do nosso presidente ao brimentos dos portugueses, a propósi-
uma normalização democrática da re- Brasil para se associar às comemora- to do caminho para as Índias e do
volução. Não há embate sangrento, ções oficiais dos 500 anos. E como se achamento do Brasil, de uma forma
ainda que se verifiquem prisões e per- sabe os índios e os negros não pude- geral, foram marcadas por um discurso
seguições. Portugal adere à democra- ram se manifestar e foram corridos à oficial extremamente parcialista e re-
cia do tipo ocidental e obviamente a matracadas e com gás lacrimogêneo. tro, como a valorização das virtudes da
opção é a Europa, já que ali está o seu Lamento que o governo e o Presi- expansão, com raras abordagens com
mercado viabilizador. dente da República portuguesa se te- uma visão crítica e plural.
nham associado a estas comemora- O segundo responsável pela Comis-
W. J. R. - O governo português pre- ções cujo espírito eu repudio. Não se são dos Descobrimentos - professor
tendeu comemorar juntamente com o trata de saber se os portugueses têm António Hespanha - procurou dar uma
brasileiro e suas elites “os 500 anos” ou não culpa. Trata-se, isso sim, sob o visão diferente e plural sobre o outro
de Brasil. Na verdade, o que ocorreu ponto de vista histórico, de serem co- que foi achado, tentando levar esta

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 157


Depoimentos

idéia para o Encontro de Culturas. Mas do caso. Já o coronel Henrique Galvão, deti- carta a Oliveira Salazar, carta esta que se tor-
recebeu críticas violentíssimas do do em um hospital de Lisboa, consegue ludi- nou pública, na qual faz uma série de críticas
briar a polícia e pede asilo à Embaixada Ar- às políticas do Estado Novo, tendo como pres-
mundo conservador e, na realiade, não
gentina. Uma vez na América do Sul, junta- suposto um discurso do próprio presidente do
teve o apoio do governo do PS que o
mente com um grupo, seqüestrou o navio Conselho, pronunciado em 31 de maio de
nomeara, mas não o defendeu.
Santa Maria, chamando a atenção do mundo 1958. Na missiva D. António analisa, por
Tudo isso significa que este assunto para a falta de liberdade existente em Por- exemplo, o corporativismo e a falta de liberda-
continua controverso, mesmo na his- tugal. Finalmente, a embarcação aporta em de de organização de classe; a preocupação
toriografia portuguesa e nas mentali- águas brasileiras e o presidente Quadros con- com o equilíbrio financeiro e a miséria em
dades dominantes. cede asilo a ele e aos seus. que se encontra o povo, isto é, “o já exclusivo
5. As festas comemorativas do V Centenário privilégio português do mendigo, do pé des-
NOTAS: da morte do Infante D. Henrique foram reves- calço, do maltrapilho, do farrapão”; as rela-
1. Fernando Rosas é doutor em História tidas de uma oficialidade singular. Repre- ções entre o operariado e o patronato, estan-
Contemporânea pela Faculdade de Ciências sentantes de Estado e de governos de vários do o Estado ao lado deste; a falta de organi-
Sociais e Humanas da Universidade Nova de países se fizeram presentes. O Padrão dos zação partidária; enfim, para a época, uma
Lisboa. Autor de diversos trabalhos sobre o Es- Descobrimentos, monumento pós-moderno carta de afrontamento ao regime e seus obje-
tado Novo português. Escreveu e organizou, construído no bairro de Belém, de onde larga- tivos. D. Antônio finaliza sua missiva remeten-
entre outros, os seguintes livros: As Primeiras ram as caravelas para a conquista de terras e do quatro questionamentos a Salazar: a) tem
eleições legislativas sob o Estado Novo - povos, foi inaugurado durante estas festivida- o Estado objeção a que a Igreja ensine livre-
16/12/1934 (1987); O Estado Novo nos anos des. mente?; b) tem o Estado objeção a que os
trinta (1928-1939) (1987); O Salazarismo e 6. A viagem começa em agosto de 1951 e católicos façam a sua formação cívico-política
a aliança luso-britânica (1988); O Impacto se prolonga até fevereiro do ano seguinte. e tomem plena consciência dos problemas da
econômico e social da II guerra mundial em Freyre visita todas as colônias portuguesas, à nação?; c) tem o Estado objeção a que os
Portugal (1939-1945); Portugal e a guerra civil exceção de Timor e Macau. Embora as razões católicos definam publicamente e propaguem
de Espanha (1998); Portugal e a transição pa- apresentadas para não conhecê-las fossem o seus programas?; e d) tem os Estado objeção
ra a democracia - 1974-1976 (1999). Atual- problema da distância, na verdade, tratava-se a que os católicos participem das eleições
mente, além de professor é deputado na As- meramente de questões políticas. Enquanto o com programa e candidatos? Carta do Bispo
sembléia da República, em forma de rodízio, Timor se encontrava em fase de reconstrução, do Porto a Salazar (13.07.1958). In: ALVES, Pe.
pelo Bloco de Esquerda (BE). em Macau, o poder real estava nas mãos dos José da Felicidade (Org.). Católicos e política.
2. Entrevista concedida a Waldir José Ram- comunistas chineses. 2a edição, Lisboa: Tipografia Leandro, s. d., p.
pinelli na Universidade Nova de Lisboa, no dia 7. Acordos firmados entre Portugal e a San- 33-64.
25 de junho de 2001. A transcrição e as notas ta Sé, em 7 de maio de 1940, no Vaticano, 9. Possivelmente tratava-se da seguinte
explicativas são do entrevistador. pondo fim à questão religiosa que começara frase: “Não quero, repito que não quero mor-
3. A guerra colonial, que Portugal desenca- com o liberalismo (1820) e se agravara com a rer neste lugar. E também não quero viver
deia na África para impedir o processo de in- Revolução Republicana (1910). Mediante es- muito tempo depois de sair, porque não
dependência de suas antigas possessões, co- tes Tratados, o Estado reconhece direitos e quero ver as desgraças e a confusão em que
meça no início de 1961 e se prolonga até a concede privilégios à Igreja, que por sua vez o mundo vai mergulhar, e o país”. NOGUEIRA,
Revolução de Abril de 1974. se submete aos interesses do governo em Franco. Um político confessa-se. 3a edição,
4. Delgado, desafiando o Estado Novo, se vários aspectos, como por exemplo a aceita- Porto: Civilização, 1987, p. 268.
apresentara como candidato à Presidência da ção de objeção por parte deste na escolha Ou talvez esta outra: “Sinto-me caminhar
República, em 1958. Além de aglutinar as dos futuros bispos. Tanto que, entre outras cada vez mais para a morte e estou funda-
oposições em torno da idéia de mudança de coisas, caberá ao presidente da República a mente preocupado com a minha sucessão (. .
regime, fez visitas memoráveis em algumas entrega do chapéu cardinalício a qualquer . ) Não sei o que hei de fazer. Preocupa-me o
cidades do país, como a do Porto, na qual reu- futuro “príncipe” da Igreja. futuro. Temos feito coisas, a ponte sobre o
niu mais de 200.000 pessoas. Apelidado de 8. D. António Ferreira Gomes escreveu uma Tejo, outras lérias. Mas o país é o mesmo. Pro-
“general sem medo”, ajudou que os portugue- curo, procuro alguém cuja firmeza assegure a
ses o perdessem também diante da ditadura. defesa do ultramar. Mas não encontro nada,
Prevendo sua iminente detenção, solicitou não encontro ninguém.” Idem, p. 214.
asilo na Embaixada do Brasil, em 12 de janei- 10. O COPCON (Comando Operacional do
ro de 1959, concedido imediatamente por Continente) foi constituído imediatamente
Álvaro Lins. No entanto, as negociações se tor- após o 25 de Abril, com o objetivo de centra-
naram longas e difíceis com o governo portu- lizar todas as operações que se vieram a efe-
guês - no final Delgado viaja para o Brasil e tuar, tais como a descoberta de esconderijos
Lins se demite da função de embaixador por com armamento, a prevenção a atos de van-
se sentir desprestigiado por JK, no desfecho dalismo e o controle de distúrbios de rua.

158 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


Depoimentos

Ronald J. Laréz *

A Escola latino-americana
frente ao neoliberalismo
Entrevista do Presidente da Associação de Educadores
da América Latina e Caribe (AELAC) realizada por Jaume Martinez Bonafé.1
Tradução de Maria da Graça N. Bollmann.2
O Presidente Internacional da AELAC, muito amplos. Também havia lá uma meu país é que fomos descobertos
Ronald J. Lárez, manifesta o seu disciplina rígida. Cada vez que volto ao por pessoas muito sábias. Nessa histó-
interesse por ampliar e consolidar meu povoado, dou um passeio pelo ria oficial se elogiavam a conquista e a
uma rede de professores que Instituto, que mantém, há 40 anos, a colonização. O dia 12 de outubro, que
apresente alternativas à ofensiva mesma estrutura física e me reencontro marca o início dessa conquista, nas es-
neoliberal. Sociólogo e Doutor em com minhas memórias como aluno, colas, é de grande festa. Sem dúvida,
Ciências Econômicas, este ativo como criança, como adolescente. nós afirmamos o contrário, o que ocor-
militante desenvolveu numerosas reu, na verdade, foi um genocídio de
investigações sobre a identidade J. M. B. - Por que decidiu estudar So- caráter cultural. Violentou-se a cultura
cultural e sobre os sistemas ciologia? pré-hispânica, onde se encontravam
educacionais latino-americanos. R. L. - Eu tive um processo de estu- princípios fundamentais de dignidade
do muito irregular. Tive de me transfe- e solidariedade, com uma avançada
Jaume M. Bonafé - Que recorda- rir com minha família e meus irmãos cultura de cooperação. Tudo isso foi
ções você guarda de sua primeira es- para Puerto de La Cruz, onde meu pai destroçado por uma imposição cultu-
cola, de seu primeiro(a) professor(a). trabalhava como barbeiro e seu salário ral que acabou com aquelas importan-
Ronald Larez - Eu nasci num po- não dava para nosso sustento. Co- tes contribuições pré-hispânicas.
voado de pescadores ao norte da Isla mecei a trabalhar em uma marcenaria.
Margarita. Ali morei até os 14 anos. Logo depois de motorista e estudava, à J. M. B. - Desejo que nos fale sobre
Como todas as crianças, não freqüen- noite, no ginásio. Como em Puerto de a AELAC, para a qual faz pouco tempo
tei a pré-escola, tendo iniciado meus La Cruz não podia prosseguir para a você foi reeleito Presidente Interna-
estudos aos 7 anos. Era uma escola educação superior, me inscrevi, em Ca- cional. Que significado tem esta Asso-
muito pequena, junto ao mar. Minha racas, na Licenciatura de Educação e, ciação na América Latina?
primeira professora nos iniciou na de dia, assistia, na Escola de Saúde R. L. - Nosso objetivo principal é pos-
alfabetização e dali passamos para o Pública, a um curso de inspeção sani- sibilitar um frutífero intercâmbio entre
terceiro ano com a Professora Albina tária. os docentes da América Latina e do
que era bastante exigente. Se nos por- Terminei meus estudos em Educa- Caribe para confirmar uma proposta
tássemos mal, batia-nos com uma ré- ção e o Ministério da Educação me alternativa de Educação oposta a essa
gua muito grande e nos obrigava a contratou como inspetor de Saúde Pú- pedagogia transnacionalizadora que
nos ajoelharmos no chão, frente ao blica. Então comecei, simultaneamen- integra o projeto neoliberal em nossos
quadro, durante uma hora. Era “a letra te, a trabalhar e estudar Sociologia, na países. Em 1990, observávamos sinais
com sangue entra”, característica, au- Universidade de Oriente. muito fortes de penetração do projeto
toritária e primitiva da escola que, na- neoliberal na América Latina. Nessa
quele tempo, suponha-se, dava “me- J. M. B. - Tenho lido seus textos so- década, introduz-se, na América Latina,
lhores resultados”. bre a forte denúncia do genocídio cul- o Plano Keller, a instrução programa-
Da pequena casa da minha primeira tural e o espólio econômico que sofre da, como parte fundamental do de-
escola, passei para um Instituto, em um a América Latina. senvolvimento curricular baseado nu-
edifício grande, com salas e corredores R. L. - A história oficial que passa em ma racionalidade pedagógica de cará-

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 159


Depoimentos

ter tecnológico e tecnocrático. E orien- nalmente, formamos grupos de inves- está-se desnacionalizando o processo
tou-se a formação dos docentes como tigação em cada país com a perspecti- educativo e destroçando a identidade
se este fosse um técnico acrítico e não va de contribuir para uma nova visão cultural vinculada à América Latina. No
um trabalhador da cultura. Frente a educativa para a América Latina. México, está-se aplicando uma violên-
essa situação, propusemos que a edu- cia cultural contra os grupos étnicos.
cação deveria ter um conteúdo social e J. M. B. - Uma das atividades princi- Como pode ver-se o problema é grave
político e, para isso, participamos da pais que a AELAC organiza são os e a resistência é necessária.
criação de um movimento de base de Congresso bianuais de Pedagogia em
professores para enfrentarmos a ofen- Cuba, a que assistem milhares de J. M. B. - Como sociólogo e investi-
siva neoliberal. educadores. gador, pode nos explicar como você vê
R. L. - O mais importante desses en- nesse momento a situação da Amé-
J. M. B. - Como se organiza essa pla- contros, que se realizam desde 1986, é rica Latina?
taforma docente? o que está estruturando um grupo de R. L. - Está-se produzindo um pro-
R. L. - Em cada país, constitui-se um educadores de todo mundo, com uma cesso muito interessante porque, em
grupo dirigente formado majoritaria- visão e um horizonte totalmente dis- quase todos os países, estão emergin-
mente por docentes da educação pré- tinto da educação hegemônica oficial do e desenvolvendo-se movimentos
escolar, fundamental e média, técnico- em nossos países, mediante políticas sociais organizados, de muita profun-
profissional e superior. Esse grupo or- educativas propostas pelo modelo didade e muito consolidados. Está se
ganiza conferências, seminários, even- neoliberal. É a possibilidade de articu- formando um novo espectro sóciopolí-
tos pedagógicos e projetos de investi- lar um movimento conjunto em torno tico que permite pressagiar que, den-
gações, tudo isso, orientado para pos- de objetivos comuns. tro de muito pouco, nossos países
sibilitar um espaço de divulgação cul- sofrerão processos de mudança e de
tural e de confrontação com os proble- J. M. B. - Qual esse objetivo comum? transformação orientados e consegui-
mas mais agudos da educação latino- R. L. - Desenvolver uma base episte- rão maiores níveis de justiça social. No
americana . mológica que permita sustentar uma México, por exemplo, o movimento
pedagogia diferente para a América dos Chiapas possibilita um impacto in-
J. M. B. - Quais são as principais ati- Latina, uma pedagogia que se firme questionável,complementado, agora,
vidades da AELAC? em nossa matriz societária, que reco- com a luta do Estado de Guerrero. É
R. L. - Há 11 anos, a AELAC desenvol- nheça nossa memória coletiva, que um movimento emergente que, me-
ve atividades em diferentes direções. A defenda nosso patrimônio cultural lati- diante a inssurreição indígena, preten-
primeira é a de formar grupos de aná- no-americano e que seja capaz de re- de conquistar mudanças substanciais
lise sobre os problemas educativos da valorizar os elementos étnicos que es- para o povo mexicano. Na Bolívia, ob-
América Latina. Durante meses de tra- tão presentes em nossa racionalidade serva-se, também, uma forte resposta
balho, promovem-se discussões, cujos latino-americana. dos mineiros às políticas neoliberais e,
resultados se publicam e difundem. no Peru, após a saída de Fujimori, con-
Também se propõe seminários (cur- J. M. B. - Quais foram as questões figura-se novo cenário.
sos) de formação permanente de didá- mais debatidas no último Congresso?
tica e processos de aprendizagem nas R. L. - Os debates principais foram J. M. B. - E o que me diz da Venezue-
escolas, avaliação educacional, planeja- o impacto educativo da globalização la?
mento e gestão educacional, adminis- e do neoliberalismo, e o modo como R. L. - A Venezuela é o caso mais cha-
tração educacional... A intenção é pos- essas políticas determinam a orien- mativo, com uma singular revolução
sibilitar ao docente ferramentas concei- tação das políticas educativas latino- sociopolítica dirigida por Hugo Chávez,
tuais, instrumentais e metodológicas americanas. Esse foi o grande debate: em que se está construindo um novo
relacionadas com o seu trabalho. a resistência frente à agressividade de pacto político com a aprovação da
Outro objetivo do trabalho da AELAC um processo de globalização neolibe- Constituição, que permite orientar a
é a organização de encontros nacio- ral no campo educativo. Numa mesa economia numa perspectiva humanis-
nais e internacionais para discutir os redonda na rede de televisão, discuti- ta, autogestionária voltada para uma
problemas mais relevantes. No caso da mos os efeitos das políticas neoliberais economia social que apóie a pequena
Venezuela, foram celebrados seis even- na educação em nossos países. Na Ar- e média indústrias, os pequenos em-
tos que reuniram delegados de mais gentina, essas políticas se expressam presários, as entidades de poupança e
de 28 países, com a presença da Es- no cerne da escola e na privatização crédito, as associações civis, e que per-
panha, Portugal, Canadá e França. Fi- dos espaços escolares. Em Porto Rico, mita reativar o aparato produtivo e ge-

160 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


Depoimentos

rar uma maior capacidade de emprego ressonância da comunidade, um cen- dade de cooperação econômica, social
para o país. Também existe um projeto tro de participação comunitária que er- e inclusive política com a Espanha. Essa
educativo nacional que nada tem a ver radia o saber acadêmico e o comple- reorientação, na Argentina, no Brasil,
com as propostas “desnacionalizantes” menta com o saber popular. no México e no Chile integra a política
anteriores e que recupera para o país, de globalização que tenta homogenei-
essa matriz societária como povo lati- J. M. B. - E, nesse sentido, a escola zar um único discurso educativo para a
no-americano, solidário e cooperativo. bolivariana se faz pública? América Latina. Creio que isso é muito
R. L. - Sim, claro. Objetiva-se que a ruim para nossos povos, porque o im-
J. M. B. - Admite que você está espe- escola se aproxime da sociedade, que portante é que a América Latina se per-
rançoso com este projeto? adote uma nova “finalidade” no seu ceba em sua unidade, porém com di-
R. L. - O suporte fundamental do entorno social. versidade, que a identidade cultural la-
projeto educativo nacional sustenta-se A escola é o centro da atividade na tino-americana tenha sua própria ex-
na “construção” da escola bolivariana, comunidade onde convivem alunos, pressão e não se descentralize.
distinta dos modelos convencionais. professores, administração, pais, asso-
No primeiro ano de governo, em 1999, ciações civis, grupos ecológicos e cul- J. M. B. - Você tem estudado e co-
foram criadas 5.289 escolas bolivaria- turais. O currículo se sustenta no co- nhece bem o sistema educacional cu-
nas. Entre 2000 e 2001, estão sendo nhecimento científico, não apenas co- bano. Quais são os resultados que
criadas outras 4000 e pretende-se, em mo o constroem os especialistas, mas destacaria neste modelo?
5 anos, chegar a que todas elas sejam se baseia na participação dos coletivos R. L. - Em 1998, um diagnóstico so-
bolivarianas. sociais. bre a América Latina do Laboratório
Educativo da UNESCO mostrou resul-
J. M. B. - O que significa em termo J. M. B. - Parece que a Venezuela se tados surpreendentes. No rendimento
de currículo a escola bolivariana? distancia de outros países latino-ame- educacional de linguagem e escrita,
R. L. - É um desenho curricular to- ricanos que estão incorporando o mo- Cuba ocupou o primeiro lugar, muito à
talmente distinto do convencional. delo de proposta curricular baseada frente de outros países como a Argen-
Dá-se ênfase à defesa de valores pá- na Reforma Espanhola... Como defini- tina, Brasil, México e Chile. Esses resul-
trios, no fortalecimento dos princí- ria essas políticas reformistas na Amé- tados demonstram que Cuba, que já
pios de soberania, autodeterminação, rica Latina? erradicou o analfabetismo e dispõe de
dignidade como povo... Oferece-se aos R. L. - A Reforma Venezuelana tomou uma educação permanente e de uma
docentes uma renovação profissional da Reforma Espanhola os temas trans- educação socializada que forma o indi-
com cursos, para que se integrem na versais, o construtivismo, o projeto pe- víduo para a vida e não só para o tra-
escola bolivariana, para que tenham dagógico de centro e aula... Agora, a es- balho, é o país mais adiantado em ma-
um horário distinto. Os professores re- cola bolivariana está tentando um outro téria de educação da América Latina.
cebem 60% a mais do salário do que desenho curricular com a finalidade de
os professores da escola tradicional e proceder a uma reforma integral do sis- J. M. B. - Sobre o sistema da Nicará-
às crianças é garantida alimentação tema. Quer-se partir de bases concre- gua você também escreveu um inte-
das 7h da manhã às 4h da tarde, como tas, tanto da experiência da escola boli- ressante livro.
café da manhã, almoço e merenda e a variana como dos resultados da avalia- R. L. - No livro “Ditadura na Nicará-
possibilidade de fazer tarefas no pró- ção da Reforma iniciada em 1996. gua, Ditadura, Revolução, Neoliberalis-
prio centro educacional. “Creio que o importante é que a mo e Educação” expresso a articulação
Na escola tradicional, trabalha-se em América Latina leve em conta a sua entre esses quatro processos, porque a
dois períodos: de 7h às 12h e de 13h unidade, porém com diversidade”. Nicarágua viveu uma etapa dura de
às 17h, e a criança leva as tarefas para ditadura desde o seu processo históri-
sua casa. A escola tradicional é uma J. M. B. - Por que a Reforma Espa- co, e logo passa por um processo revo-
escola aberta à aprendizagem signifi- nhola tem influenciado tanto os siste- lucionário “sui generis”, com a incor-
cativa, à aprendizagem por descoberta, mas educativos latino-americanos? poração do pensamento sandinista.
à relação comunicativa totalmente di- R. L. - Creio que tem muito a ver Analisou-se as profundas diferenças
ferente. Porém, o mais importante é com as políticas de globalização e, em do sandinismo em relação ao modelo
que a escola está articulada com dis- primeiro lugar, com a relação histórica neoliberal e expressaram-se os efeitos
tintos setores: sociais, ambulatoriais, que temos com a Espanha, nossa “- dessa dicotomia. O sandinismo, no âm-
desportivos, culturais e de comunica- pátria-mãe”. bito cultural e educativo, expressava
ção. E a escola é como uma caixa de Os governos têm visto uma possibili- toda a diversidade cultural desse país e

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 161


Depoimentos

desenhou um projeto educativo cultu- versitários participaram da política do América Latina e Caribe por meio de
ral que respeitava o caráter multiético governo e estão dando uma nova ori- educação;
da Nicarágua, inclusive o processo de entação à plataforma social e política. - Defender os sistemas pedagógicos
alfabetização se deu, respeitando as de cada região que contribuam para a
línguas do país. J. M. B. - Adivinho o seu otimismo preservação de uma identidade cultu-
Com o regime sandinista, chegou-se nesse particular... ral;
a um processo de alfabetização de qua- R. L. - Vejo os universitários na Amé- - Trabalhar intensamente em favor
se 88%. Agora se retrocedeu, e o anal- rica Latina com grande alento, com das meninas e meninos e dos educa-
fabetismo ocupa, hoje, mais de 30% da grande esperança, porque estão cola- dores;
população. São exemplos de como o borando ativamente para o fortaleci- - Propiciar que docentes e investiga-
projeto neoliberal colocou por terra as mento da consciência e participam dores se organizem em grupos de inter-
conquistas sociais e educativas do mo- nos processos de mudanças e transfor- câmbio de experiências pedagógicas;
delo sociopolítico sandinista. mações sociais. São autênticos intelec- - Participar, junto com os Sindicatos,
tuais orgânicos, como diria Antônio particularmente daqueles formados
J. M. B. - Como você vê a Universi- Gramsci, porque escrevem e expres- por educadores, da luta pela educação
dade e os Intelectuais na nova forma- sam o seu mal-estar ante às graves pública e gratuita para todos em todos
ção da consciência social e educativa contradições que percebem. os níveis.
latino-americana? - Estimular a realização de investiga-
R. L. - Eu tive a oportunidade de ser J. M. B. - Tem pensado na possibili- ções pedagógicas entre os países da
professor visitante na Universidade dade de ampliar o raio de ação da região.
Central do Equador, em Quito, e ali se AELAC além da América Latina?
vive uma efervescência social impor- R. L. - Creio que é importante que Nota:
tante. Estão dando uma resposta sin- nossa organização, que agora está pre- 1. Essa entrevista foi realizada pelo Pro-
fessor Jaume Martinez Bonafé, professor de
gular aos seus problemas, fazem pro- sente em 19 países, se aproxime dos
Didática e Organização Escolar da Univer-
postas na rua sobre como orientar o educadores da Espanha e Portugal. Os
sidade de Valença (Espanha) para a Revista
país frente à agressão do projeto neo- laços históricos, culturais e políticos
Cuadernos de Pedagogia, nº 305 (setembro
liberal. Existe um grupo de universida- têm de impulsionar essa aproximação de 2001), sendo as transcrições feitas por
des latino-americanas que constituem porque possuímos perspectivas muito Dolo Molina e editada por Rafa Mirolles.
a reserva moral para um processo de próximas da problemática educativa Foi autorizada a reprodução total na revista
mudança e de transformação em nos- podendo, portanto, confrontar nossas Universidade e Sociedade, pelo próprio autor.
sos países, e o professor universitário análises pedagógicas, sociais e cultu- 2. Tradução: Maria da Graça N. Bollmann -
tomou consciência do seu papel como rais. Creio que é necessário e urgente 1ª Vice-Presidente Regional Sul do ANDES-SN
ator fundamental nesse processo de que saudemos a possibilidade de apro-
transformação e mudança social. ximação da AELAC com os movimen- Perfil Bibliográfico
* Ronaldo J. Laréz é professor titular da
tos de educadores críticos da Espanha,
Universidade Pedagógica Experimental Li-
J. M. B. - Este processo se estende a que estudemos as possibilidades de
bertador da Venezuela. Foi professor visi-
toda a América Latina? cooperar em publicações conjuntas e
tante nos seguintes locais: Universidade
R. L. - Na Universidade Argentina, de intercambiar experiências para criar Central e Pontifícia Universidade Saleziana
observa-se outra orientação. O profes- uma rede comprometida e forte. de Cuenca (Equador), Universidade de Cal-
sor universitário percebe os problemas cutá (Peru), Universidade Pedagógica de
políticos e sociais, o cotidiano dos pro- J. M. B. - Que é AELAC? Honduras e México.
blemas em seu entorno, e é um pro- R. L. - A Associação de Educadores Em 1990, obteve o Prêmio Internacional
fessor comprometido para a luta e a da América Latina e Caribe (AELAC) de Pedagogia 90, outorgado pelo governo
organização na rua, na universidade, agrupa instituições e educadores de de Cuba. É membro do Conselho Científi-
para as mudanças sociais. 19 países latino-americanos interessa- co do Instituto Pedagógico Latinoameri-
cano e Caribenho (IPLAC) com sede em
Por outro lado, o protagonismo do dos em estudos e solução de seus pro-
Havana e dirige a revista pedagógica e in-
professor da Universidade de San Sal- blemas educativos e culturais. A AELAC
ternacional “Encrucijada Educativa”. É au-
vador se manifesta em sua posição de se constituiu no Congresso Pedago-
tor, entre outros trabalhos, de: “Dependên-
vanguarda frente à situação sociopolíti- gia’90 e sua sede permanente é em cia Econômica e Identidade Cultural da
ca do país e na Venezuela o papel dos Havana. América Latina”, “Cuba um Perfil de Na-
universitários foi fundamental para a Os principais objetivos da AELAC são: ção Assediada” e “Educação e Crise Cul-
ascensão de Chávez ao poder. Os uni- - Contribuir para a integração da tural na América Latina”.

162 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


Resenha
164 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE
Resenha

A lei contra a justiça


um mal-estar na cultura brasileira

Morgado, Maria Aparecida. Editora: Plano, Brasília. 2001. 175p.

Por Roberto Boaventura da Silva Sá *

L
ogo após a veiculação de pla, um qualificado debate político Mas não é apenas o fato de debater
denúncias de espionagens, sobre determinantes facetas da cultura aspectos de nossa cultura que lhe dá a
semelhantes às que eram brasileira. Em nível mais restrito, pode oportunidade de produzir e publicar
feitas durante a ditadura mi- contribuir com discussões localizadas, um texto original e inquietante. Isto
litar, por parte do Exército como a proliferação despolitizada de ocorre porque, um pouco na esteira
brasileiro, que chegara a sugerir em convênios de reitorias de universida- do país de Macunaíma, aquele “herói”
suas cartilhas a possibilidade de “arra- des públicas com Polícias Militares es- marioandradino sem nenhum caráter,
nhar direitos civis” e, até, se necessá- taduais para segurança dos campi uni- partindo de pressupostos teóricos da
rio, “eliminar” líderes ligados a movi- versitários; fato que, por si, deveria psicanálise freudiana, a autora tem a
mentos populares, principalmente ao causar, no mínimo, repulsa veemente. coragem acadêmica de apontar e sus-
MST, a profª. Maria Aparecida Morga- Contudo, tais convênios vêm ocorren- tentar a presença concreta de um ver-
do, doutora da pós-graduação em do com a omissão generalizada. dadeiro mal-estar nessa cultura; ou
Educação da UFMT, lançou, em São seja, por meio de processos identifica-
Paulo, no final de 2001, seu livro A lei tórios, que se dão ora com as vítimas,
contra a justiça - um mal-estar na cul- ora com os agressores, entrelaçando
tura brasileira. fatores socioculturais com psicológi-
Resultado de sua tese de doutora- cos, mas universalizantes, problemati-
mento em Psicologia Social, defendida za aprovações populares de execuções
em 1997, na PUC-SP, a professora Mor- civis realizadas por policiais militares
gado proporciona um texto, absoluta- em nosso país.
mente interdisciplinar, que, antes de As manifestações públicas de apro-
tudo, provoca, numa perspectiva am- vações a assassinatos cometidos pela

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 165


Resenha

PM, para a escritora, são resultados plicidade entre o Estado e a socie- do muito, possibilitar alguma dificulda-
“...da predominância da vertente do dade civil. Antes, porém, preludiado de pontual, principalmente na terceira
superego, regida por processos psíqui- por uma epígrafe simplesmente parte, ao leitor pouco acostumado com
cos primários, sobre a vertente edipia- poética, extraída de Guimarães Ro- textos da psicanálise.
na, regida por processos psíquicos se- sa - “Sertão é isto, o senhor sabe: Todavia, se esse mesmo leitor tiver
cundários” (p. 167). Daí percebe que a tudo incerto, tudo certo” -, faz um clareza da dinâmica da sociedade bra-
nossa cultura, sendo por vezes despó- pertinente resgate histórico da polí- sileira, inserido aí, com destaque, o pa-
tica, por vezes permissiva, impossibilita cia e o Estado brasileiro. Localiza pel dos media, essas dificuldades ten-
a interdição das descargas destrutivas, sua origem em 1831, buscando re- dem a ser minimizadas, seja pela cu-
conforme preceitos extensivos à coleti- primir os movimentos populares riosidade da teorização aplicada, seja
vidade. Como o arcabouço legal não é que se opunham ao status quo vi- pelo grau de didatismo do texto como
aplicado universalmente, conclui que a gente da época até chegar às suas um todo, mas com especial destaque
interdição e a transgressão sempre es- ações mais atuais. ao da segunda parte, na qual descreve,
tão vinculadas, na dinâmica da arbitra- com riqueza de detalhes, ambos os fa-
riedade, às conveniências de interes- Nesse resgate, os comentários sobre tos escolhidos para o trabalho.
ses restritos; o que encaminha à per- a atuação da polícia política no perío- Também e nessa parte do livro que
sonalização da lei, que, por sua vez, do ditatorial, iniciado com o golpe de se encontra uma das centralidades de
acaba se opondo à própria justiça. Estado em 1964, são de extrema im- sua problematização: mostrar justa-
Para sustentar seu trabalho, Morga- portância, pois aquele momento da mente o mal-estar em nossa cultura
do elege discursos produzidos e repro- história brasileira permanece dando a toda vez que ocorrem aprovações civis
duzidos na mídia local sobre o assassi- tônica de continuidade a muitas das às barbáries cometidas por policiais
nato do jovem da classe média Chris- ações policiais, mesmo após o que se militares. E esse mal-estar acentua-se
tian Eduardo Tupiná, 18 anos, filho úni- convencionou chamar, na superficiali- na comprovação de que tais manifes-
co da professora universitária Heloísa dade de algumas análises conjuntu- tações não têm delimitação de classes
Marques rais, de abertura política no Brasil. sociais, dentro deste perverso sistema
Tupiná, ocorrido, em 30 de maio de Ainda nessa etapa do livro, Morgado capitalista, podendo, pois, virem inclu-
1991 em Cuiabá-MT, e na mídia nacio- expõe também o papel das institui- sive das camadas historicamente opri-
nal, em torno do massacre dos 111 de- ções estatais e das autoridades consti- midas; fato que se torna em verdadei-
tentos do Carandiru, ocorrido em ou- tuídas. Faz o mesmo em relação à ras cruzes a serem carregadas no dia-
tubro de 1992 em São Paulo. atuação dos meios de comunicação. É a-dia na terra dos brasis e dos fuzis.
Na estrutura, o livro encontra-se claro que os programas televisivos do
* Roberto Boaventura da Silva Sá é pro-
dividido em três partes, distribuídas tipo “Cadeia Neles”, “Cidade Alerta” fessor de Literatura Brasileira da UFMT-
em seis capítulos, possibilitando à são lembrados e, naturalmente, refuta- Universidade Federal do Mato Grosso e
doutorando em Jornalismo pela ECA/USP-
professora aprofundar discussões, dos, por apresentarem uma formata- Escola de Comunicações e Artes da Uni-
no início, sobre as relações de cum- ção que contribui na propagação e so- versidade de São Paulo..
lidificação de desrespeitos elementa-
res a direitos humanos.
Entretanto, não são apenas esses es-
paços da mídia os abordados. O leque
é bem mais amplo, abrangendo de
manchetes de jornais, reportagens de
revistas e artigos assinados a cartas en-
viadas a diferentes redações de meios
e veículos; de tal forma que fica difícil
qualquer reparo à sua mostra. Como
também não são fáceis observações
que não sejam positivas quanto à me-
todologia utilizada, bem como à apli-
cação do quadro teórico. Pode, quan-

166 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


ENSAIO FOTOGRÁFICO

Trabalhadores em luta:
cenas da democracia brasileira nas ruas.
Por Antônio Ponciano Bezerra
Fotos: Daniel Garcia, Arquivo ANDES e Folha Imagem

Experimentamos, por algum tempo, a ilusão de que tornam) lugares de convergência de figuras (atores so-
o Brasil estava livre das marcas mais profundas da re- ciais), mais imediatamente ligados aos diferentes seg-
pressão, da violência e dos conflitos policiais contra a mentos do trabalho, nos diversos espaços das grandes
população civil. No entanto, as imagens deste ensaio cidades, mas também se apresentam como campo do
espantam e causam pânico ao dar visibilidade social da terror policial e de delitos cometidos a militantes das
repressão, na praça pública, aos movimentos sociais or- lutas sociais e políticas.
ganizados do país. As fortes imagens veiculadas pelas fotos apuram a
A repressão ordinária é protagonizada, de maneira es- violência que se manifesta e é simbolizada de diferen-
petacular, por policiais civis e militares que reassumem, tes formas, em cada perfil da repressão policial no Bra-
escandalosamente, os seus lugares de exercício de força sil e na cultura contemporânea.
para inibir as massas em atos de mobilização social. Os A seqüência de fotos, portanto, enquadra as relações
episódios públicos de insatisfação política do povo, o entre espaço urbano público, democracia e sujeitos so-
desespero aberto dos excluídos, dos injustiçados, dos ciais, quando atravessadas pelo espetáculo policial cuja
explorados, todos captados pela câmera fotográfica, re- repressão eclode como realidade alheia e hostil à reali-
velam a tolerância do poder e as tendências da demo- zação mais plena das tentativas de livre arbítrio da so-
cracia brasileira nas ruas de nossas metrópoles. ciedade em todos os níveis e como ameaças à convi-
As cenas de repressão e violência, envolvendo agen- vência pública e democrática. O intenso policiamento
tes policiais, aliás, uma herança maldita das últimas dé- da vida e das ações do homem citadino delimita as
cadas em estreita conexão com a política de segurança suas possibilidades de agir, deixa-o acuado, pois a polí-
da ditadura militar, não se restringem a quadros isola- cia circula entre a multidão portando armas de fogo po-
dos ou alvos específicos e direcionados. A brutalidade derosas - a qualquer momento - podem ser sacadas e
policial irrompe, no coração das metrópoles, contra a disparadas - às vezes - por necessidade - quase sempre
população civil ou contra a agenda do cidadão comum, - por equívoco ou fúria.
dos representantes do poder político, da sociedade civil As manifestações populares que ganham as ruas, re-
e se estende até as manifestações pacíficas organizadas presentam, de algum modo, uma espécia de “síndrome
pelo meio acadêmico. de esperança”, uma versão antecipada do desespero
Mais que um mero registro de ocorrências, estas agudo, da infelicidade, da descrença absoluta no poder
imagens nos dão a anatomia da repressão policial bra- público. Essa síndrome subverte mesmo a vida do ho-
sileira em consonância com o que nos permitem no mem e se faz acompanhar de uma desvalorização do
campo das liberdades democráticas da nação. As ruas, próprio ato de viver para se mergulhar nas teias da so-
os largos, as avenidas e as praças públicas são (ou se brevivência.

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 167


Arquivo ANDES-SN

Marcha da Educação

Arquivo ANDES-SN

Aparato de vigilância
para intimidação dos manifestantes

Daniel Garcia

A carga da cavalaria: policiais em


ação reprimem manifestantes

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE
Daniel Garcia

Cruzada policial: “não avancem


que eu atiro”

Daniel Garcia

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 169


Daniel Garcia

- “Sou professora de seus filhos”


- Cumprimos a ordem.

Folha Imagem

Vão passar sobre meu cadáver?

Arquivo ANDES-SN

Policiais civis e militares


trancando uma vítima
na mala de um veículo

170 - Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


Daniel Garcia

A polícia transforma
uma passeata em praça de guerra

Folha Imagem

Lar doce lar - a segurança do imperador

UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 171


DIRETORIA DO SINDICATO NACIONAL DOS DOCENTES
DAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR - ANDES-SN
BIÊNIO 2000 - 2002
PRESIDENTE: Roberto Leher - ADUFRJ S.Sind REGIONAL RIO DE JANEIRO
1º VICE-PRESIDENTE: Fernando Molinos Pires Filho - ADUFRGS S. Sind 1º VICE-PRESIDENTE REGIONAL RJ: Marcelo Badaró Mattos - ADUFF S.Sind; 2ª VICE-
2ª VICE-PRESIDENTE: Maria Lia Silva e Reis - ADUCSal S.Sind PRESIDENTE REGIONAL RJ: Maria Cristina Miranda da Silva - ADUFRJ S. Sind; 1ª SECRETÁRIA
3ª VICE-PRESIDENTE: Marina Barbosa Pinto - ADUFF S. Sind REGIONAL RJ: Gelta Terezinha Ramos Xavier - ADUFF S.Sind; 2º SECRETÁRIO REGIONAL RJ:
SECRETÁRIO GERAL: Edmundo Fernandes Dias - ADUNICAMP José Eustáchio Bruno - ASDUERJ; 1º TESOUREIRO REGIONAL RJ: Frederico José Falcão -
1ª SECRETÁRIA: Lena Lúcia Espíndola Rodrigues Figueirêdo - ADUFC S.Sind ADUR RJ S. Sind; 2º TESOUREIRO REGIONAL RJ: Delson Lima Filho - ADUR RJ S.Sind
2ª SECRETÁRIA: Ana Lúcia Barbosa Faria - SINDCEFET
3ª SECRETÁRIA: Cláudia Gonçalves de Lima - ASDUERJ REGIONAL SUL
1º TESOUREIRO: José Domingues de Godoi Filho - ADUFMAT S.Sind 1ª VICE-PRESIDENTE REGIONAL SUL: Maria da Graça Nóbrega Bollmann - APUFSC
2º TESOUREIRO: Antônio Luiz de Andrade - ADUNESP S.Sind S.Sind; 2º VICE-PRESIDENTE REGIONAL SUL: Luiz Allan Kunzle - SINDOCEFET PR S.
3ª TESOUREIRA: Celi Zulke Taffarel - APUB S. Sind Sind; 1ª SECRETÁRIA REGIONAL SUL: Maria Suely Soares Leonart - APUFPR S.Sind; 2º
SECRETÁRIO REGIONAL SUL: Fábio Luiz Lopes da Silva - APUFSC S.Sind; 1º TESOUREI-
REGIONAL NORTE RO REGIONAL SUL: João Francisco Ricardo Kastner Negrão - APUFPR S. Sind; 2º TE-
1ª VICE-PRESIDENTE REGIONAL NORTE: Vera Lucia Jacob Chaves - ADUFPA S. Sind; 2º SOUREIRO REGIONAL SUL: Adelino Carlos Maccarini - SINDOCEFET PR/Pato Branco
VICE-PRESIDENTE REGIONAL NORTE: Antônio José Vale da Costa - ADUA S.Sind; 1ª SE-
CRETÁRIA REGIONAL NORTE: Berenice Carvalho - ADUA - S. Sind; 2º SECRETÁRIO REGIONAL RIO GRANDE DO SUL
REGIONAL NORTE: Henrique dos Santos Pereira - ADUA S.Sind; 1ª TESOUREIRA REGIO- 1º VICE-PRESIDENTE REGIONAL RS: Luiz Carlos Gonçalves Lucas - ADUFPEL S.Sind; 2º
NAL NORTE: Solange Calcagno Galvão - ADUFPA S.Sind; 2º TESOUREIRO REGIONAL VICE-PRESIDENTE REGIONAL RS: Adriano Severo Figueiró - SEDUFSM S.Sind; 1º SECRE-
NORTE: Arnóbio Amanajás Tocantins Neto - ADFCAP S. Sind TÁRIO REGIONAL RS: Luis Fernando Minasi - APROFURG S.Sind; 2ª SECRETÁRIA REGIO-
NAL RS: Laura Souza Fonseca - ADUFRGS - S.Sind; 1º TESOUREIRO REGIONAL RS: Fer-
REGIONAL NORDESTE I nando Rosa Nascimento - ADUFRGS S.Sind; 2ª TESOUREIRA REGIONAL RS: Elaine da
1º VICE-PRESIDENTE REGIONAL NE I: Franci Gomes Cardoso - APRUMA S.Sind; 2ª VI- Silva Neves - ADUFPel S.Sind
CE-PRESIDENTE REGIONAL NE I: Antônio de Pádua Rodrigues - ADUFPI; 1ª SECRETÁ-
RIA REGIONAL NE I: Maria Dulce Souza Castelo - ADUFC S.Sind; 2ª SECRETÁRIA REGIO- SEDE
NAL NE I: Silvana Martins de Araujo - APRUMA S.Sind; 1º TESOUREIRO REGIONAL NE Campus da UnB - Caixa Postal 04470, CEP: 70919-970, Brasília - DF - Brasil. - Fones:
I: Iberê Guimarães Aguiar - ADUFC S.Sind; 2ª TESOUREIRA REGIONAL NE I: Maria da 55-61-347-2028; FAX: 55-61-274-3303; e-mail Geral: andes-sn@andes.org.br; Secreta-
Conceição Lobato Muniz - APRUMA S.Sind ria: secretaria@andes.org.br; Agência de Notícias: andesnac@andes.org.br

REGIONAL NORDESTE II ESCRITÓRIOS REGIONAIS


1ª VICE-PRESIDENTE REGIONAL NE II: Maria Elisabete de Almeida - ADUFPB-JP S.Sind; ESCRITÓRIO REGIONAL NORTE: Av. Augusto Correia, nº 1 - Guamá, Campus Universitá-
2ª VICE-PRESIDENTE REGIONAL NE II: Maria Marieta dos Santos Koike - ADUFEPE rio da UFPA - Setor de Recreações - Altos - Caixa Postal 8603 - CEP. 66075-110 - Belém - PA;
S.Sind; 1º SECRETÁRIO REGIONAL NE II: Almir Serra Martins Menezes Filho - ADURN e-mail: reg-norteandes@uol.com.br
S.Sind; 2º SECRETÁRIO REGIONAL NE II: Geraldo Marques Carneiro - ADFURRN S.Sind;
1º TESOUREIRO REGIONAL NE II: Expedito Baracho Júnior - ADUFERPE S.Sind; 2º TE- ESCRITÓRIO REGIONAL NORDESTE I
SOUREIRO REGIONAL NE II: Josevaldo Pessoa da Cunha - ADUFPB CG S.Sind Rua Juvenal Galeano, 334 -salas 1-3, Benfica - CEP. 60015-340, Fortaleza-CE - FONE:
(85) 283-8751 - e-mail: andesne1@secre1.com.br
REGIONAL NORDESTE III
1º VICE-PRESIDENTE REGIONAL NE III: Rui Belém de Araújo - ADUFS S.Sind; 2ª VICE- ESCRITÓRIO REGIONAL NORDESTE II
PRESIDENTE REGIONAL NE III: Maria Cristina da Rocha Mendes - ADUFAL S.Sind; 1º SE- Rua Quarenta e Oito, 76 1º andar Apt. 03 - Espinheiro, CEP: 52020-060 - RECIFE - PE
CRETÁRIO REGIONAL NE III: Antônio Ponciano Bezerra - ADUFS S.Sind; 2º SECRETÁRIO - FONE/FAX: (81) 3426-8451 - e-mail: andesne2@zaz.com.br
REGIONAL NE III: Carlos Zacarias Figueirôa de Sena Júnior - ADUNEB S.Sind; 1º TESOU-
REIRO REGIONAL NE III: João Pereira Leite - ADUCSAL S.Sind/APUB S.Sind; 2º TESOU- ESCRITÓRIO REGIONAL NORDESTE III
REIRO REGIONAL NE III: Osaná Macedo Reis - APUNI S.Sind Av. Presidente Vargas, 60, Sala 211/Center - CEP. 40146-900 - SALVADOR - BA FONE/
FAX: (71) 264-3164 - FONE: (71) 264-2955
REGIONAL LESTE e-mail: andesvprne3@bahianet.com.br
1ª VICE-PRESIDENTE REGIONAL LESTE: Angela M. S. Ferreira - ASPUV S.Sind; 2º VICE-
PRESIDENTE REGIONAL LESTE: Valter Pires Pereira - ADUFES S.Sind; 1º SECRETÁRIO ESCRITÓRIO REGIONAL LESTE
REGIONAL LESTE: Jairo Justino da S. Filho - SINDCEFET-MG; 2º SECRETÁRIO REGIONAL Rua Patrocínio, 305 - Bairro Carlos Prates - CEP. 30710-140 - BELO HORIZONTE - MG
LESTE: Eunice Maria Godinho Morando - APESJF S.Sind; 1ª TESOUREIRA REGIONAL FONE: (31) 3226-4752 - FAX: (31) 3273-7304; e-mail: regleste@bhnet.com.br
LESTE: Vera Lúcia Tomáz Fróes - APUBH S.Sind; 2º TESOUREIRO REGIONAL LESTE: José
Monserrat Neto - ASPESAL ESCRITÓRIO REGIONAL PLANALTO
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REGIONAL PLANALTO FONE: (62) 202-2044 - e-mail: andesrp@terra.com.br
1º VICE-PRESIDENTE REGIONAL PLANALTO: Cláudio Lopes Maia - ADCAC S.Sind; 2º
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CRETÁRIA REGIONAL PLANALTO: Nádia Maria Farias Vaz - SESDUNIANA S. Sind; 1º TE- FONE/FAX: (65) 322-5484; e-mail: andesvpr@terra.com.br
SOUREIRO REGIONAL PLANALTO: Alcir Horácio da Silva - ADUFG S.Sind; 2º TESOUREI-
RO REGIONAL PLANALTO: André Luiz dos Santos - ADCAJ S.Sind ESCRITÓRIO REGIONAL SÃO PAULO
AV. Prof. Luciano Gualberto, Trav. “J” 374 - Prédio Antiga - Reitoria, sala ADUSP, Cidade
REGIONAL PANTANAL Universitária - CEP. 05508-900 - SÃO PAULO - SP - FAX: (11) 3814-9321 - FONE - (11)
1º VICE-PRESIDENTE REGIONAL PANTANAL: Carlos Roberto Sanches - ADUFMAT 3818-4465 (11) 3818-4466 (011) 3813-5573; e-mail: andes.sp@adusp.org.br
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Sind; 1º SECRETÁRIO REGIONAL PANTANAL: Sérgio Sebastião Négri - ADUFMAT Roo ESCRITÓRIO REGIONAL RIO DE JANEIRO
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ADourados S. Sind. ESCRITÓRIO REGIONAL SUL
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1º VICE-PRESIDENTE REGIONAL SP: José Vitório Zago - ADUNICAMP; 2ª VICE-PRESI-
DENTE REGIONAL SP: Marília Leite Washington - ADUFSCar S.Sind; 1º SECRETÁRIO ESCRITÓRIO REGIONAL RIO GRANDE DO SUL
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marie Andreazza - ADEPM; 2º TESOUREIRO REGIONAL SP: Vandeí Pinto da Silva -
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172 Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 UNIVERSIDADE E SOCIEDADE


Contribuições para a próxima edição:
Enviar por email para andes.sp@adusp.org.br, contendo, no máximo, 15.000 caracteres, (10 laudas), com notas no final do texto
e referências bibliográficas conforme normas da ABNT.
ATENÇÃO: Todas as citações devem ser traduzidas para a língua portuguesa, notas e bibliografia curtas, no máximo 10(dez) refe-
rências e todas no final do texto. Os títulos devem ser curtos e o texto submetido a uma revisão vernacular.Constar um mini-cur-
rículo do autor, no máximo 10 (dez) linhas), com telefones para contato, endereço de domicílio para remessa das revistas, e de
email, para contatos dos editores e leitores.

Objetivos de Universidade e Sociedade:


1. Constituir-se em fórum de debates de questões que dizem respeito à educação superior brasileira, tais como: estrutura da
Universidade, sistemas de ensino, relação entre Universidade e sociedade, política universitária, política educacional,
condições de trabalho, etc.
2. Oferecer espaço para apresentação de propostas e sua implementação, visando a instituição plena da educação pública e
gratuita como direito do cidadão e condição básica para a realização de uma sociedade humana e democrática.
3. Divulgar trabalhos, pesquisas e comunicações de caráter acadêmico que abordem ou reflitam questões de ensino, cultura,
artes, ciência e tecnologia.
4. Possibilitar a divulgação das lutas, os esforços de organização e as realizações da ANDES-SN.
5. Permitir a troca de experiências, espaço de reflexão e discussão crítica favorecendo a integração dos docentes.
6. Oferecer espaço à apresentação de experiências de organização sindical de outros países, especialmente da América Latina,
visando a integração e a conjugação de esforços em prol de uma educação libertadora.

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PROFESSOR(a), informe a instituição e depto. onde leciona)...........................................................................................................
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UNIVERSIDADE E SOCIEDADE Ano XI, Nº 26, fevereiro de 2002 - 173

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