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JAKAIRÁ

Neimar Machado de Sousa1


O calendário tradicional guarani na região do Mato Grosso do Sul aponta o mês de
março como o tempo do jerosy, o ritual do batismo do milho saboró, chamado de
Milho Jakairá. O ritual foi realizado em diversas aldeias guarani do estado.
O aparecimento dos deuses e deusas expressam que Nhanderu Guasu, o criador, não
queria ficar só. Da vitalidade primordial, o Jasuka, aos pés do Xiru, procederam Pa’i
Tambeju, Jakaira Guasu, Jakaira Mirῖ, Tupã Guasu e muitos outros deuses e deusas.
Jakairá, o pai verdadeiro, e seu filho, Jakairá Guasu, foram designados como os
guardiões, jára, da bruma de onde nascem as belas palavras. É ele quem espalha a
bruma pelo leito da terra para que o bem-viver e os alimentos germinem todos os
anos. Esta bruma é reproduzida na fumaça do tabaco, petῖngua, dos rezadores,
mediante a qual comunicam-se com as divindades.
O ritual do Jerosy (mborahéi itymbýry rete rehegua), dividido em canto longo (jerosy
puku) e canto menor (jerosy mbyky) é uma canto-dança-reza sobre as plantas que
brotam do corpo de Jakaira.
Jakaira foi a divindade que criou o milho branco (Avati Jakairá), amarelo (Avati Tupi),
a mandioca (mandi’o) e a batata (jety). Ele é o guardião que proporciona uma boa
produção de todos os produtos agrícolas e alimentos tradicionais. O resultado do
jerosy puku, seu canto ritual, é a purificação dos produtos agrícolas de todas as
impurezas, trazendo equilíbrio social. O Jerosy conta como surgiram os produtos
agrícolas e quando o nhanderu, sacerdote indígena, o canta novamente junto aos
seus auxiliares, yvyra’ija, o tempo recomeça. O tempo histórico põe-se a caminhar
(oguata) no mesmo ritmo do tempo sagrado e o calendário inicia renovado um novo
ciclo terreno como no princípio da criação.
O jerosy é a benção cantada (jehovasa) da colheita e dos alimentos maduros (aguije)
antes de seu consumo. Durante este canto cada divindade é buscada do lugar de sua
plenitude e em cada palavra dita com perfeição o jakairá é incorporado na sua força
vital que provém do jasuka, princípio vital.
A semente do milho saboró foi retirada da vestimenta de Jakaira, o ku’akuaha, seu
cinto, germinada magicamente pela reza. O milho deve ser cultivado segundo as
mesmas etapas de jakairá, do cultivo à colheita. Assim crescerá livre das pragas até
ser colhido verde (avati kyry) e abençoado. O ritual é conduzido pelo sacerdote,
nhanderu, o primeiro a consumi-lo ritualmente sob a forma de chicha, o jakairárary.
Esta é a bebida preferida de todos os deuses.
Jakairá guasu, irmão mais velho, e jakairá mirῖ, o mais novo, garantem a fecundidade
da produção agrícola mediante a invocação, no início do ritual, da força vital que
fecunda as plantas, ytymby jasuka, a partir da base do Xiru.
Jakaira foi quem plantou a primeira roça (kokuê). O primeiro alimento que plantou
foi o milho branco, saboró ou avati jakairá. Um dia depois de plantar a roça, pediu
que Pa’i Tambeju fosse buscar o milho. Este pediu que sua esposa fosse buscar, mas
esta perguntou se já estava maduro porque o milho havia disso plantado no dia
anterior e não podia estar pronto para a colheita. Jakairá entristeceu-se e aumentou
o tempo de crescimento do milho nas próximas roças para cinco meses. O milho é
semelhante ao corpo de uma pessoa e se funde com o corpo de quem o consome,
sendo o xamã, nhanderu, o primeiro a fazê-lo ritualmente.
Jakairá tornou-se grande aliado de Nhanderu guasu em reconhecimento pelo seu
trabalho na roça.

1
Doutor em educação pela UFSCar. E-mail: neimar.machado.sousa@gmail.com
Segundo a narrativa coletada na aldeia Limão Verde (Mbo’ehara Delfino), Amambai,
MS, e aldeia Jaguapiru (Yvyra’ija Marciel), Dourados, MS, o pai de Jakaira, Xiru
Jakaira, protetor das sementes, estava apaixonado pela filha de Nhanderu Guasu,
mas era muito velho, desarrumado e sua aparência desagradava a moça. Tinha
bichos de pé, piolhos, feridas pelo corpo e cheirava muito mal. Após algum tempo
frequentando a casa de Nhanderu Guasu, percebeu que a moça nunca se casaria com
ele.
Um dia foi ao rio onde a moça costumava tomar banho com as amigas, mas quando
chegaram o expulsaram da água, pois não se banhariam no mesmo lugar em que
aquele homem tão feio e sujo estivesse. Ao sair, retirou um pedaço de seu cinto, o
ku’akuaha, e deixou no meio das roupas deixadas por ela na margem do rio. Após
um tempo, engravidou e deu à luz um menino sem saber quem era o pai.
Nhanderu organizou uma grande reunião para a qual convidou todos os homens-
divinos da aldeia e descobrir quem era o pai de seu neto. Apenas o Anhãy não foi
convidado, pois era um demônio malvado. Cada um deles deveria fazer e enfeitar
um pequeno arco de brinquedo, guyrapa’i, e oferecer ao garoto, que reconheceria o
pai aceitando o presente.
Quando chegou o dia da reunião o menino recebia os participantes que passavam
diante da porta da grande casa, a ongusu. Depois que todos os homens passaram
diante do menino, mas nenhum deles foi reconhecido como pai, restava apenas
Jakairá, que passou a tardezinha depois das três da tarde, cujo arco foi aceito
alegremente pelo menino. Ao aceitar o seu arco disse para a mãe: - Hu’i, pai.
Contando que passaria no dia seguinte pela manhã. Naquele dia seu pai plantou a
primeira roça com as sementes que brotavam de seu corpo, ficando magicamente
rejuvenescido, livre do peso de todas aquelas sementes.
Quando chegou à casa de Nhanderu, foi muito bem recebido, convidado para entrar
e sentar-se na rede e colocar os pés sobre um banco. Nhanderu e Nhandesy, os avós
do menino vieram conversar com ele e as irmãs tiveram ciúme uma da outra. A mãe
perguntou a Jakairá se podia ir à sua roça. Este disse que ela podia ir com o Mynaku,
cesto, buscar o milho, mas ela perguntou como podia estar maduro se havia plantado
no dia anterior.
Com este arco, Jakairá entoou o canto de Xiru Pa’i Kuara e a história dos gêmeos:
Pa’i Kuará e Jasy. Este canto, guahu, é reproduzido até hoje ao final do ritual do
Jerosy. Jakairá teve seu corpo purificado pela reza de Xiru Marangatu, sendo aceito
posteriormente pela filha de Nhanderu Guasu.

REFERÊNCIAS E FONTES:
CLASTRES, P. A Fala Sagrada. Campinas: Papirus, 1990.
ELIADE, M. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
JOÃO. I. Jakairá Reko Nheypyrũ Marangatu Mborahéi. Dourados: UFGD, 2011.

IMAGENS:
EMI PA’I CHIQUITO PEDRO, Professores e Estudantes. Calendário Tradicional.
Dourados, 2018.
BENITES, Josemar. Temitỹ Jára. Aldeia Te’ýikue, 2019.

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