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DECÁLOGOS DE PALAVRAS INÚTEIS E EM VOGA

Adolfo Montejo Navas

para quem merece

“Só o que se torna tonto se torna malvado. Sob o regime


identificatório e fusional, inclusive o espetáculo da virtude torna-se criminal,
tal como o da beleza pode dar lugar à pior fealdade. Esta é a verdadeira
violência, a morte do pensamento pelas imaginárias titânicas.”
Marie-José Mondzain

“O inomeável atual.”
Roberto Calasso
3 DECÁLOGOS E MEIO DE PALAVRAS INÚTEIS
“Não podemos apreender ao mesmo tempo o real e seu signo:
jamais poderemos dominar simultaneamente ambos.”
Jean Baudrillard

“Não se irritem: é anti-higiênico.”


Joan Fuster
AGRADECIMENTO, pode ser o último a se fazer, ou então para ser com a
boca pequena: qualquer coisa menos agradecer, dar ao outro algo simbólico,
significativo. Se pratica muito mais o agradecimento protocolar, funcional, por
exigências de roteiro, aquele obrigatório e instrumental. Mais perto da
atualidade está a desvalorização do provérbio: “quem não é agradecido, não é
bem-nascido”, ou seja, reconhecer ou presentear ao outro, valorizando
magistério, experiência, poética, como uma concessão de pontos pode
representar, no caso, sentido então como tormento, alergia, indisposição
espiritual.

ALTERIDADE, ou o outro, a outridade, toda uma aventura para a frágil e


narcisista condição do sujeito contemporâneo; entre o inferno são os outros
de Sartre e a necessidade de sair da identidade obrigatória se dirime o conflito,
que também se religa com a polaridade fundamentalismo versus politeísmo;
verdadeiro cavalo de batalha dos últimos tempos nos estudos culturais, pós-
colonialismo, mas muito mais fácil de conjugar em teoria e no plural que na
prática e no singular. As distâncias curtas, como você sabe, são as mais difíceis.
Reconhecido antídoto contra o ensimesmamento e o narcisismo e outras
manias que buscam lucrar com o eu como absoluto, e sua quimera de alma fixa.
Em caso de gravidade, veja-se, leia-se Fernando Pessoa.

ALTRUÍSMO, tido como um desinteresse pelo egoísmo, o negócio, o lucro,


o dar-se bem de qualquer forma, é conceito raro de uso. Contraeconômico.
Tido, portanto, como loucura da vontade e não riqueza do ser como poderia
ser entendido. O Leviatã contemporâneo não o considera imprescindível.
AURA, o preceito enigmático sobre o qual se debruçou tanto Walter Benjamin
vive sua crise desde sempre, como reservatório essencialista, cognitivo-
perceptivo de algo que rodeia alguma coisa, mas com alguma distância que não
sabemos medir; fruto disso, a época dita que a aura econômica (financeira) é
mais poderosa que qualquer outra.

COLETIVO, designação secundária que abrange o público, o que pertence a


todos, valor social que os políticos disfarçam entender ou se preocupar, com
fins de marketing populista, faz de conta eleitoral, engano naif; verdadeira linha
divisória que funciona para separar interesses, preferências, atitudes.

CONTEMPLAÇÃO, atividade restringida aos períodos de férias ou então


aos exercícios próximos à meditação, já no limite perigoso da não produção,
anátema, portanto; permitida em parte no campo da arte e em êxtases místicos
como provocação exótica, prévio certificado ou salvo-conduto.

CULTURA, último bastião a ser conquistado pelas forças factuais que lidam
com o imaginário. Campo de guerra das imagens, de litígio nada tranquilo entre
cultura e arte, arte e visualidade, cultura e sociedade, até o ponto de alguns
governos eliminarem seu Ministério ou então instrumentalizá-lo. Com a
institucionalização e bienalização da cultura, a chegada do funcionalismo
cultural, o cavalo de Troia entrou no antigo recinto simbólico, cujos efeitos já
começam a ser conhecidos (turismo cultural, parques temáticos, ditadura do
espectador, audiências…). Palavra que toma o caminho de estar na boca de
todos e no coração de ninguém.

DE BOA VONTADE, de motu proprio, algo proveniente da natureza, sem


segundas intenções (econômicas, políticas, instrumentais), uma ética em estado
de praxe, cada vez mais rara, portanto, suspeitosa.

DELICADEZA, próximo da gentileza, mas com campo próprio, pois talvez


a delicadeza trate de um ponto extremo mais íntimo, uma característica que
esbanja sutileza, elegância, requinte ético e estético, quase sem querer.
Entendida como ponto fraco, quase fatal, como se o verso de Rimbaud: “pela
delicadeza perdi minha vida” tivesse feito uma grande marca.

DIFERENÇA, nome do recuo que representa qualquer ataque ao diferente,


em sintonia e obediência ao politicamente correto, outra patente de corso.
Batalha esgrimida pelo igual, o verdadeiramente permitido, ou pelo reino do
consenso e suas obrigatoriedades.

DISSENSO, o contrário de consenso, do new ideal quando a história se


converte em gestão, administração, ponto morto. Dissenso vira assim palavra
maldita, criadora de problemas, termo de suspeita, incômodo para qualquer
status quo que se venda como única e exclusiva normalidade. A falta de
concordância está tão malvista pela racionalidade política que o dissenso só
pode ser um desvio feliz disso, outro patrimônio do sensível, biopolítico.

DISTÂNCIA, ou não distância, outro dilema com cheiro hamletiano, pois


também pertence às situações proscritas com as novas tecnologias, redes,
comunicações, que não permitem estar longe, fora do rádio, manter distância.
A redução dos paraísos (não os fiscais), exílios e retiros tem a ver com isso,
com a invasão programada da proximidade, essa imposição obscena que reduz
o espaço a um não lugar como uma violação sistemática.

EMPATIA, sinônimo de sintonia, frequência, afinidade, mas que vive penando


no limiar de sua orientação definitiva, sem saber se é meramente um aspecto
instrumental, pedágio das meras relações públicas ou signo que revelaria ainda
uma comunicação interna, uma experiência interior que precisa de um diálogo
maior. Termo em suspensão, criador de suspense.

ENTROPIA, o termo derivado da termodinâmica já fez sucesso socialmente


e foi palavra em voga para explicar a desordem ou falha constitutiva das partes
da sociedade no capitalismo “avançado” (que ótimo eufemismo!) que nos
desabita; agora a carência que representa a entropia ficou mais óbvia, até inútil
(ironia e justificativa de estar aqui nesta parte), pois está interiorizada na
sobredose da comunicação que incomunica. Até ela foi sacrificada no altar da
efetividade, da não efetividade, alternadamente.
ESPAÇO, mito definitivamente perdido depois de ser engolido pelo império
atomizador do tempo, e este pela ditadura da velocidade. Reino melancólico
das coordenadas físicas, reais, da distância, conservado como relíquia e pretexto
para exercitar as outras duas referências (tempo, velocidade) como vassalagem,
mero contrapeso, sem maior valorização específica. Aspecto decadente de uma
ex-característica da realidade.

ESPÍRITO, palavra quase proibida no uso comum, de impressão decadente,


infelizmente atualizada só pelas religiões (vejam-se logos e ícones visuais de
novas igrejas onde um pássaro de surpresa costuma sair de um coração ou ler
algo num livro aberto ou vice-versa, uma mão abre-se a uma luz do globo do
mundo e de uma chama então sai uma cruz flamejante, por exemplo, entre
outras prestidigitações icônicas), de quem é muitas vezes refém, banal
simulacro, falsaria, impostura, ponto de fuga, ângulo cego de luz, palavrório,
inverdade.

ESSENCIAL, agora se descuida o essencial e se acerta no supérfluo, suas


antípodas. Com o abandono paulatino e necessário de certo essencialismo que
oprimia como absoluto, e a queda de maximalismos e grandes relatos
explicativos, ironicamente, depois de uma recuperação dos problemas mais
subjetivos, se caiu escada abaixo nos bass fonds do intranscendente, do mais
pueril e do banal quase como idolatria de consumo, de prazer. Descobrimento
da superfície como El Dorado. O crescimento hedonista da cultura light,
bobagem e curtição como único horizonte ontológico, com sua paulatina e
anunciada derrota do pensamento, entronca também com a despreocupação
pelas mais atemporais questões da condição humana.

GENEROSIDADE, política de gênero abandonada que primava agradecer


ou presentear ao outro, sem ânimo de lucro ou vantagem, por puro afeto ou
dedicação humana. Modo de correspondência espiritual. Presente que pertence
mais ao passado das relações e ao futuro das políticas.

GENTILEZA, gesto cotidiano perdido como signo de debilidade, fraqueza,


perda de rentabilidade, desgaste, dispêndio de energia, desforra. Elegância
muitas vezes comportamental e cotidiana cada vez mais incomum na corrida
desbocada dos direitos particularizados e hábitos em consequência, e muitas
vezes já mal-entendida até nos mais nímios detalhes.

HUMOR, em oposição às aparências, em decadência, pois nunca significa o


mesmo rir que tem humor. Se confunde inclusive com a alegria. Por se tratar
de um estado de consciência, de uma leitura angular com outra casuística da
realidade, uma elaboração intuitiva e perceptiva da inteligência, não tem nada a
ver com programas de auditório e sim com outro élan vital ou a filosofia, outra
atividade difamada.

IDIOTIA, ainda que reconhecida como sinônimo de estupidez, é tabu, coisa


contagiosa a não reconhecer, pois maiormente declara que o rei está nu, outra
causa e efeito regidos pela pobreza ou indigência espiritual trasvestida de
absurdo, o que não é para qualquer um. Quintessência da burrice.

INVISÍVEL, o diríamos a imagem que nos falta, quase a parte maldita,


imaterial, por reconhecer na encarnação da imaginação, fora do controle das
simples visibilidades, do sequestro que fazem idólatras e iconoclastas, duas
estratégias interpretativas erradas que instrumentalizam o ser irredutível da
imagem, seu desejo operante, de alteridade, sempre a partir da mirada, da
distância que se cria, de seu entremundo, criado entre as coisas e os sonhos que
diria Marie-José Mondzain.

ISONOMIA, ninguém quer ser governado por esta lei de igualdade, paridade,
pois, no fundo, ninguém quer ser tão igual ante a lei horizontal, democrática,
quer privilégios, diferenças a favor, não estar na mesma situação. O desejo de
se safar é maior que o de compartilhar. O imaginário do capitalismo garante
com seus folhetos atualizados a sua triunfal pedagogia de vícios privados, via
marketing e estadística.

LEITURA, gesto cada vez mais estranho, ainda mais se o suporte é de papel
e em público. Digno de suspeita, inconveniente, até quando a luz de leitura dos
aviões se pode acender. Melhor se contempla a leitura instrumental ou em tela.
Em breve, além de relíquia, fará parte da arte degenerada.
LOCKDOWN, prova de fogo do confinamento para quem não acredita na
realidade pandêmica de vírus mortais, prefere verificar o labor terrível de
thanatos, favorecendo a sua tarefa, estadisticamente e nas camadas mais
humildes, colaborando, idolatrando genocídio e, em última instância, resolveu
aquele outro dilema da bolsa ou a vida, a favor do primeiro – mercado dixit.

LUTO, quase proibido como tal, e em tempo e duração, pior, já que não se
quer reconhecer nenhuma coisa que represente um ritual de perda, dor,
ausência numa época que quer a qualquer preço a realização hedonista, nada
que signifique algo negativo, vazio, cor negra, o contrário do mainstream
obrigatório vitalista, sua imposta banalização do carpe diem. Derrota por goleada
da transcendência como signo de importância vital e de interrogação
metafísica, também como lugar de interregno, de intercomunicação.

MANUSCRITO, escrever caligraficamente, algo démodé, digno de suspeita se


se faz em público. O teclado vem substituindo a superfície do papel, da caverna,
criando-se já outro mito digital para nossos sinais.

MEIO AMBIENTE, eufemismo de sucesso social, como verdadeiro triunfo


verbal, que alude à precariedade climática, tão dramática e cada vez mais
escancarada, apesar dos negacionismos de plantão. Expressão totalmente
errada ou ironicamente certa – ato falho ou mea culpa – já que o ambiente não
se pode dividir pelo meio. Escapismo linguístico, imaginário em xeque.
NOBREZA, ordem de grandeza, tipo de ética pessoal, prática de honra, estilo
em desuso pela leitura equivocada que se faz sempre de qualquer entrega, gesto,
doação, contrário à rentabilidade política e econômica do eu. Transparência
mal-entendida.

PRIVACIDADE, uma das palavras mais hermafroditas ou jânicas que existem,


pois se fazem odes a seu imaginário e encantamento, mas se pratica o contrário.
Duas máscaras ou duas cabeças. Fronteira do ser, no limite tenso com a solidão
e a transparência, tão exigida mediática, socialmente.

REALIDADE, o maior mistério inventado junto ao tempo, e que sempre teve


com o universo da técnica seus inveterados litígios, mas com o advento
miraculoso das mais avançadas tecnologias, vive uma das maiores crises de sua
existência, sendo cada vez mais substituída com sucedâneos, extensões,
simulacros, simulações. A chegada da realidade virtual ainda está por ser
dimensionada e equacionada. O chamado núcleo duro da realidade nomeado
por Lacan, em nossos tempos líquidos, não participa nem como princípio de
realidade. Um dos maiores labirintos da época. De território em crise
permanente passou-se a um cul-de-sac, metamorfose sem metabolizar.

RECÍPROCO, significa paridade, troca, igualdade, estado ou sentimento que


privilegia a horizontalidade, o respeito e consideração ao outro, às semelhanças
ou compartilhamentos como valores. Palavra política, que faz a verdadeira
divisão nas preferências ideológicas. Vade-retro do reacionarismo.

REPRESENTAÇÃO, um coquetel molotov ou bomba-relógio nominal, na


medida em que a representação se assenta numa delegação da qual não se
conhecem os limites. A sua falta de ilação e cobertura social, política virou uma
situação de perversão democrática, um jogo no campo do domínio e do poder.
A crise da representação, sempre vivida pela arte, demorou muito em passar,
indefectivelmente, à política. Palavra tão sedutora quanto maldita; armadilha
genérica.

SERVIDÃO, herança da escravatura, sinônimo de emprego e ocupação,


colocada no painel crítico da história por Étienne de La Boétie em um feroz
alegato sobre a servidão voluntária, razão que explica muita sociologia e
antropologia contemporânea.

SILÊNCIO, tabu cada vez mais estendido, até o ponto de se converter em um


luxo asiático, budista, ou de consumo, de spa ou, todavia, ter que criar o silêncio
com barulhos para se defender de outros ruídos. A música calada do silêncio é
temida como espelho de reflexão, transcendência, daí o temor, quase pânico
que se tem dele, a ênfase no império da programação, as atividades, o
entretenimento, qualquer catalogação de ruídos.
TRANSCENDÊNCIA, exigência profunda requerida a algumas coisas
chamadas atemporais, pois faz parte do valor e potência das perguntas
incontestadas da condição humana, às vezes quase sinônimo de metafísica e
outras de religiosidade no sentido amplo; em suma, de inquietação pelo ignoto
e o inefável. Religare importante. Termo contestado por se confundir com
essencialismos tanto quanto com os antípodas do lúdico, de um carpe diem
abaratado como receita de vida igual a inércia, consumo, entretenimento,
diversão.

VALOR, depende muito seu estado, potência e direção, se é no plural


(decadência) ou no singular (movimento), ou se se contrapõe a preço, outra
valência. O poeta e pensador Antonio Machado dizia que “todo néscio
confunde valor e preço”. Na guerra pela escolha dos valores está o valor. Ou
então, o valor se comeu aos valores.

VAZIO, outro verdadeiro vade-retro Satã, quaisquer trabalhos, atividades e


programações do tempo livre sabem de que se trata com tal de não divisar esse
monstro do Lago Ness. Toda a cultura do ócio e do espetáculo parece estar em
oposição à observação de Pascal, de que o problema do homem é não saber
estar tranquilo entre quatro paredes. Pânico de reality shows. Fora de leituras
budistas, se confunde com o tédio, a melancolia, o sem sentido.

[13 e 25 de fevereiro de 2021]


Nota cúmplice

Devo registrar aqui que houve uma licença poética no número de textos, sendo
38, algo mais que 3 Decálogos e meio, mas decidi manter o título como está, em
parte por não ser de ciências exatas.
Meu agradecimento a Mauro Espíndola, Camila Mello, Ronald Polito e Jardel
Dias Cavalcanti.
Sumário

Agradecimento
Alteridade
Altruísmo
Aura
Coletivo
Contemplação
Cultura
De boa vontade
Delicadeza
Diferença
Dissenso
Distância
Empatia
Entropia
Espaço
Espírito
Essencial
Generosidade
Gentileza
Humor
Idiotia
Invisível
Isonomia
Leitura
Lockdown
Luto
Manuscrito
Meio ambiente
Nobreza
Privacidade
Realidade
Recíproco
Representação
Servidão
Silêncio
Transcendência
Valor
Vazio
Capa: Ronald Polito

Edição de 30 exemplares
produzida pela
Galileu Edições
Londrina, PR, abril de 2021.

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