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Comprei uma chaleira elétrica

Comprei uma chaleira para colocar no escritório, em cima de um livreiro de pouco mais de um
metro e meio também recentemente comprado. Pela primeira vez meus livros tinham um
lugar certo, nesse apartamento que também recentemente passamos a morar, Brendo e eu.
Comprara também uma lixeira pra ficar ao lado, sobretudo pra jogar papéis, embalagens de
tabaco, seda e comida e, agora, filtros descartáveis de café. Um cantinho de um cômodo se
monta pra uma produção: um quase-escritório.

Essa “armação” ocupa 1/4 do cômodo. No quadrante da frente está uma arara dupla,
comprada pra camisas gola-polo, calça jeans, meia e tênis, almejando trocar de roupa quando
chegasse do trabalho; no outro quadrante, caixas ainda não desmontadas da mudança de 4
meses atrás. Considerando a função, talvez já seja um escritório.. na escrivaninha escrevo no
diário, em folhas avulso anotando as sessões online, escrevo na agenda; e simulo uma escrita
pelo computador: blog, artigo, dissertação, e-mail, projeto, relatório, pesquisa, comentário em
instagram, mensagem no zap… mas considerando um ideal de escritório, ainda não cheguei lá.

A escrivaninha foi uma das primeiras coisas na ordem de prioridade de montagem do


“enxoval”, logo depois do fogão e da geladeira. “Vamos comprar 2 escrivaninhas e 2 cadeiras
primeiro, porque com elas é que vamos conseguir a grana para o resto”. A chaleira entra nessa
montagem do escritório, sucedendo a lixeira. Passei a desejá-la depois de começar a usar o
conjunto escrivaninha-cadeira-livreiro-pc..

Eu fazia o café “tradicionalmente”, com coador de pano e água no fogão. Mas isso trazia vários
inconvenientes: ora não havia panelas disponíveis, já que nosso enxoval tem “o mínimo do
mínimo”; ora a água demorava muito pra ferver e eu usava pelo menos meia hora pra fazer o
café, sem contar a louça; e ora – e isso era mais frequente – eu esquecia a água fervendo no
fogão, imerso em alguma leitura, escrita ou videochamada e só lembrava quando
interrompido pelo aviso do Brendo ou pelo retorno da vontade de tomar café.

Talvez possa chamar essa situação de um pequeno drama, não sei. O fato é que me aborrecia
muito esperar água ferver, encontrá-la fervendo mas quase secando, ouvir reclamação do
Brendo. Já conhecia chaleira elétrica de outro trampo, e lembrava que ela desligava sozinha.
Ela se encaixaria perfeitamente aqui: ela pararia quando fervesse e eu faria o café aqui,
justamente onde tomo. Escolhi a mais barata no aplicativo do Marcado Livre e com alguns dias
ela chegou.

Como a chaleira, tem também a cortina e os varões; instalar a lousa, comprar uma passadeira
pras gotas de café que caem no móvel; talvez aquelas maquininhas que varrem, para o tabaco
que cai no chão. Pra mim o escritório dos sonhos é aquele da personagem da Thais Araújo na
novela Amor de Mãe. Poderia morar só naquela entrada. Mas aí logo depois da montagem
viriam as trocas: talvez um PC de duas telas, pra fichamento de texto ou relatório de banco de
dados, uma cadeira mais ergonômica porque já não sou tão jovem… É sem fim?

Bom, se o lá do meu escritório é um horizonte que nunca se chega eu não sei; se essa
montagem terá fim, eu não sei. Mas eu sei que minha vida orgânica tem; e o mundo também.
A relação entre minha chaleira elétrica e o fim-do-mundo é uma das coisas que tem me
intrigado, entre outras sobre esse objeto fascinante. Sim, há muito que se pode dizer de minha
chaleira elétrica… ela tem muitas qualidades – como qualquer coisa, “não tem paz” [1]…

A primeira delas que diria é que é banal. Não é o fio de Ariadne nem a ânfora de Salomão;
tampouco o revólver com o qual Getúlio atira no próprio peito, nem a faca de Adélio em
Bolsonaro; tampouco uma bomba atômica ou um nano robô. É minha chaleira elétrica da
Unitermi. Não define eleições presidenciais nem define se o país será rachado em dois; não diz
da razão nem desrazão, nem aprisiona demônios; não define guerra e nem é a tecnologia mais
avançada. É minha vulgar chaleira elétrica. Como ela, são produzidas milhares, milhões?

É certo que do ponto de vista da representação, podem existir n chaleiras idênticas à minha.
Mas só a minha suja meu chão, requenta café, faz o chá de camomila que me ajuda a dormir
cedo. Esta aqui é que compõe concretamente a montagem deste escritório aqui. Mas me
escapa sua história de antes disso. Como terá sido produzida? Em Manaus, São Paulo? Fora do
Brasil, na China ou um pedacinho em cada lugar do mundo?

O caso é que quando comprei minha chaleira elétrica, desejei com sua história e geografia. A
chaleira conecta minha vontade de produzir por meio do escritório com qualquer que seja o
processo de produção dela. Seria moralismo dizer que desejei este próprio processo de
produção ao desejar a chaleira na cena do escritório? Mas pelo menos e certamente desejei
com o “big data” navegando pelo app, com o sistema de entregas “uberizado”, com o efeito da
cafeína no meu corpo…

É, talvez o drama da chaleira elétrica, meu drama com ela, o drama da montagem do escritório
seja menos o de uma apraxia em relação às atividades de vida diária, ou a construção de um
lar e mais com o modo de vida que o uso dessa chaleira atualiza.. ferve água em muito menos
tempo que panela no fogão, e sobra mais tempo para render mais. A cafeína com que a água
fervente se agencia me mantém alerta, acordado. Com ela, a minha lixeira fica cheia mais
rápido, quer dizer, menos eventos se passam entre um enchimento e outro.

Mesmo não sendo um objeto extraordinário, minha chaleira faz parte do farfalhar da história,
e atualiza aqui o que se diz sobre sociedade do cansaço, diagrama de rendimento,
capitalismo… Talvez ela tenha algumas virtualidades mais próximas de se atualizar, dadas pela
sua própria constituição técnica: espera-se que ela esquente água; que o biquinho ajude a
derramar a água com maior precisão; que a tampa não deixe escapar água quente onde não se
queira… não entendo de design e tampouco de mecatrônica, e nisto ela também me
ultrapassa. Caixa-preta.

Talvez sua produção também tenha sido feita a partir do estudo das “dores” da potencial
clientela, e isso compõe a precisão almejada. A ciência ou tecnociência lida bem com
probabilidades que são virtualidades mais próximas de se atualizar. Talvez tenham até previsto
que outras utilidades, como a vez em que nosso chuveiro estragou e usamos pra esquentar a
água do banho “de cuia”. Mas o banho é uma virtualidade menos próxima do que um café ou
chá. E menos ainda seria esquentar água pra jogar num invasor.. desmontá-la para compor um
sistema de aquecimento pra uma estufa..

A chaleira se liga à minha satisfação, quando acerto no café, e a todo um regime afetivo do
meu escritório. Mas também a um modo de vida sem-futuro… talvez sua maior infelicidade
seja não ser considerada. “Que tristes são as coisas consideradas sem ênfase”. As coisas não
têm paz, mas também não têm crueldade.

Notas

1.

Letra "As coisas", de Arnaldo Antunes

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