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Ação política em Maquiavel: a herança medieval encontra a modernidade1

Guilherme Stolle Paixão e Casarões

O objetivo deste trabalho é realizar uma apreciação da forma como Maquiavel


desenvolve, em “O Príncipe”, sua explicação da ação política, adotando como
fundamentos o par conceitual fortuna e virtù, herança de uma tradição política
medieval, ou recorrendo ao conceito mais moderno de interesse próprio (self-interest).
Esta exposição buscará dar conta de como o autor florentino constrói e articula tais
elementos ao longo da obra em tela.
Este texto será dividido em três partes. A primeira tratará dos conceitos de
fortuna e virtù utilizados por Maquiavel ao longo de sua obra. Em seguida, faremos uma
breve consideração sobre a idéia de interesse próprio em “O Príncipe”. Por fim, uma
conclusão buscará dar conta da discussão prévia.

Idéias pré-humanistas são responsáveis por informar, diretamente, a concepção


maquiaveliana de fortuna e virtù. Antes de mais nada, há uma questão semântica a ser
discutida: optou-se por adotá-las em sua forma original, desde o princípio – por isso o
itálico – para se evitar entrar num debate meramente tangencial aos propósitos deste
trabalho. Fortuna não encontra no homógrafo em português, relativo à pujança material,
um correspondente plausível: aproxima-se, por outro lado, da idéia de destino, acaso;
remonta à deusa Fortuna, que tem a roda do destino em suas mãos e pode retirar dos
homens tudo aquilo que antes conquistaram, ao mudar o curso das coisas sem prévio
aviso (BIGNOTTO, 2003, p. 26). É digno de nota que Maquiavel não utiliza esse termo
remetendo diretamente à deidade, mas sim de uma forma laica, descritiva, mas sempre
conferindo-lhe um tom dramático: “em um contexto (...) compara fortuna a um rio
violento, em outro, a uma tempestade repentina” (KNUTSEN, 1997, p. 43).
O que se percebe é que a acepção do pensador florentino sobre a fortuna, isto é,
sobre a forma como a natureza dita as regras da vida e o destino dos homens, afasta-se
da idéia medieval e retoma o pensamento humanista dos antigos. Se durante a Idade

1
Trabalho apresentado à disciplina “Fundações do Pensamento Político Moderno”, ministrada pela Profa.
Dra. Adriana Vidotte, como requisito para obtenção de créditos.
Média a idéia de fortuna estava “vinculada à noção mais abrangente de Providência
divina, o governo terrestre de Deus” (JASMIN, 2002, p. 184), assumindo a
característica de um poder cego e inabalável (SADEK, 2006, p. 21), a deusa Fortuna
cultuada no período clássico era marcantemente feminina, devendo ser seduzida para
garantir a concessão de bens essenciais ao homem – a honra, a riqueza, a glória e o
poder (idem, p. 22). Assim, tem-se que, para Maquiavel, o cidadão de virtù seria capaz
de conquistar a simpatia da fortuna, e fazer dela aliada em seus empreendimentos. A
roda da fortuna, elemento que pairava sobre toda incerteza e submissão divina
características da Idade Média, daria lugar em “O Príncipe” ao antigo símbolo da
cornucópia, representante da abundância na terra.
Fortuna em Maquiavel, contudo, não era somente reviver uma concepção
clássica. Femia (1997) nos aponta para a utilização de um elemento fundamentalmente
moderno na formulação maquiaveliana. Para ele,

“O elemento cristão é retirado na descrição de Maquiavel [da deusa fortuna].


Ele revive a concepção pagã de uma deusa irracional e essencialmente
incontrolável, que pode no entanto sorrir para o vir, o homem de verdadeira
hombridade (manliness), o bastião da coragem e da audácia. Ainda assim,
por outro lado, Maquiavel introduz um elemento moderno. Fortuna, em seus
escritos, não é tanto uma figura sobrenatural quanto um dispositivo literário
para descrever a lógica de eventos, os constrangimentos externos sobre o
comportamento humano” (FEMIA, 1997, p. 22, tradução livre)

Por que Maquiavel, então, eventualmente descreveria em seu texto a deusa


Fortuna a partir de uma ótica cristã medieval? Bignotto (2003) e Sadek (2006)
concordam que aceitar o argumento vigente no mundo medieval foi fundamental para
que o autor pudesse, à frente, desenvolver sua própria linha de raciocínio, unindo o
medieval e o clássico numa síntese moderna: a fortuna, ainda que irascível, seria
responsável por metade das ações do homem, fazendo com que o próprio homem fosse
árbitro da outra metade.
À feminilidade da idéia de fortuna contrapõe-se à masculinidade da concepção
de virtù. Ela, por sua vez, é igualmente passível de debate. O próprio Maquiavel evita
traduzi-la para o italiano para que não se confunda com as virtudes cristãs: o termo é
proveniente da palavra latina vir, que remete ao homem, à masculinidade, e evoca o
ideal masculino do cavalheiro da Renascença (BIGNOTTO, 2003; SKINNER, 2006).
Diferentemente da idéia de fortuna, virtù em Maquiavel vai além tanto da concepção
medieval quanto da humanista. Para os cristãos, virtude estaria relacionada
fundamentalmente à bondade e seu exercícios. Os humanistas não viam virtù de uma
forma muito diferente, sendo praticamente equivalente a ‘virtude’ como a
compreendemos – um bem moral, indicando uma forma de comportamento humana,
prudente e sábia. Para Maquiavel, por sua vez, virtù era mais como uma força da
natureza, das quais faziam parte sentimentos como ‘ambição’, ‘direcionamento’,
‘coragem’, ‘energia’, ‘força de vontade’ e ‘astúcia’ (FEMIA, 1997, p. 15).
É importante ressaltar que, ainda que Maquiavel concordasse com os humanistas
no sentido de que o príncipe deveria personificar a virtù, ele não via virtù e falta de
escrúpulos como elementos contraditórios. Afinal de contas, no mundo dos homens, “o
poder, a honra e a glória, típicas tentações mundanas, são bens perseguidos e
valorizados” (SADEK, 2006, p. 22), cabendo ao homem de virtù conquistá-los. Para o
príncipe que almeja ser bem-sucedido em seu governo, portanto, alguns vícios são
virtudes – não devendo, portanto, temer

“incorrer na fama de ter certos defeitos, defeitos estes sem os quais


dificilmente poderia salvar o governo, pois que, se se considerar bem tudo,
encontrar-se-ão coisas que parecem virtudes e que, se fossem praticadas, lhe
acarretariam a ruína, e outras que poderão parecer vícios e que, sendo
seguidas, trazem a segurança e o bem-estar do governante” (MAQUIAVEL,
1991, p. 64).

No limite, é mais importante para Maquiavel que o príncipe aparente ser


virtuoso do que deter de fato a virtù, se necessário for para a manutenção de seu
governo, sendo os vícios, portanto, parte do sucesso do governante. Esse argumento foi
um dos grandes responsáveis pela rejeição a Maquiavel por parte de seus
contemporâneos, muitos dos quais ainda envolvidos em uma concepção cristã da
política. Ao separar a moral da política, nosso autor dá o primeiro passo em direção ao
pensamento político moderno.
Já foi dito, aqui, que fortuna e virtù representam um “par conceitual”, ou seja,
são indissociáveis na medida em que perdem o sentido se analisados isoladamente.
Juntos, tais conceitos representam “os pólos em torno dos quais giram o sucesso e o
insucesso das ações humanas” (BIGNOTTO, 2003, p. 24). O homem sem virtù encontra
seu fim inexorável nas mãos imprevisíveis da fortuna; incapaz de seduzi-la, torna-se
pouco apto para dar conta de seu próprio destino. Por outro lado, a virtù por si só não é
capaz de solucionar questões relativas à vida – no caso do príncipe, ao poder e ao seu
reinado: é possível reduzir os efeitos deletérios do acaso, mas não extingui-lo.
II

Um conceito mais tipicamente moderno na explicação da ação política, o


interesse próprio, é desenvolvido concomitantemente ao par conceitual de fortuna e
virtù. Ele permeia a segunda parte de “O Príncipe”, que trata do poder militar como
elemento fundacional do Estado2. Esse conceito apresenta-se notadamente vívido na
discussão dos diversos tipos de forças armadas, e para explorá-lo vale aqui retomar o
argumento maquiaveliano da composição dos exércitos, que podem ser constituídos por
mercenários, tropas auxiliares ou nacionais – ou qualquer combinação destes. As tropas
mercenárias, tratadas no Capítulo XII, são sempre perigosas porque “não têm outro
amor nem outra força que as mantenha em campo, senão uma pequena paga, o que não
basta para fazer com que queiram morrer por ti” (MAQUIAVEL, 1991, p. 49). Tropas
auxiliares, mandadas por outrem para auxiliar um príncipe, “não são mais do que armas
inúteis (...) [já que] quase sempre acarretam prejuízos ao que as solicita, pois, se
perderem, estará anulado, se vencerem, estará seu prisioneiro” (idem, p. 55). A tropas
nacionais, por sua vez, são as mais seguras e confiáveis, uma vez ligados ao território
que defendem e dependentes da vitória para sua sobrevivência. Knutsen (1997) aponta
que essa exposição de Maquiavel é distintivamente moderna, uma vez que toma tais
indivíduos como racionais e auto-interessados (p. 44).
A mesma lógica do interesse próprio estende-se aos príncipes bem-sucedidos.
Tomando como convergentes os interesses do príncipe e do Estado, Maquiavel aponta
que o sucesso de um governo está na conjugação sensata do interesse do próprio
príncipe ao que ele acredita ser melhor para seu principado. Dessa forma, cumprir ou
não com a palavra dada torna-se meramente uma questão de julgamento e de bom
senso, não sendo o cumprimento o que distingue o bom do mau governante. Meinecke
(1957), ao estudar a lógica da ragione di stato baseando-se na obra de Maquiavel,
conclui que para o autor florentino, na política – e em especial na política entre Estados
ou principados – há uma moralidade que se afasta dos preceitos católicos, e é
fundamentalmente governada pelo interesse próprio e pela necessidade de sobrevivência
do príncipe e do Estado.

2
Naturalmente, Maquiavel não tratava da concepção moderna de Estado nacional, mas sim das cidades-
estado e principados.
III

Se Maquiavel assume a importância de um autor clássico no pensamento político


ocidental, é porque ele foi capaz de, numa época ainda dominada por idéias
características da Idade Média, introduzir conceitos fundamentais que abriram caminho
para o desenvolvimento da política em sua acepção moderna. Este breve texto buscou
demonstrar isso ao analisar os três conceitos fundamentais lançados por Maquiavel em
sua explanação da ação política – o par conceitual virtù e fortuna e a idéia de interesse
próprio – e a forma como eles são equacionados de forma a se esboçar uma nova forma
de se pensar a política.
Ainda que remetam a elementos pré-modernos, sejam eles medievais ou
clássicos, virtù e fortuna são desconstruídos por Maquiavel na roupagem anterior que
assumiam, para serem então remontados a partir de uma ótica fundamentalmente laica –
ainda que a imagem da deusa Fortuna seja por vezes evocada, alegou-se que trata-se
tão-somente de um recurso literário. Elementos da natureza, como os instintos que
compõem a virtù, também são trazidos à tona de forma a se estabelecer um par de
conceitos que iniciaria, nos séculos seguintes, um frutífero diálogo com teoria e prática
política no ocidente. Pela primeira vez, moral e política se separavam – pelo bem da
própria política.
O conceito de interesse próprio também é fundamental na obra de Maquiavel.
Sua idéia de que o príncipe, tendo seus interesses conjugados aos do Estado, deveria
prezar única e exclusivamente pela seu próprio êxito político é fator-chave para que,
atualmente, se compreenda Maquiavel como precursor – ou mesmo iniciador – do
realismo político.
Espera-se, assim, que essa breve exposição e discussão sobre os conceitos
fundamentais de “O Príncipe” tenha sido capaz de jogar luz, ainda que modestamente,
no papel crucial representado por Maquiavel na passagem de uma tradição política
medieval para uma tradição moderna.
Referências Bibliográficas

BIGNOTTO, Newton. Maquiavel Republicano. Belo Horizonte: Edições Loyola, 1998.

BIGNOTTO, Newton. Maquiavel. Coleção Passo a Passo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 2003.

KNUTSEN, Tobjorn L. A History of International Relations Theory. Manchester:


Manchester University Press, 1997.

JASMIN, Marcelo et al (orgs.). Modernas Tradições. Rio de Janeiro: Access Editora,


2002

MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural,


1991.

SADEK, Maria Tereza. “Nicolau Maquiavel: o cidadão sem fortuna, o intelectual de


virtù”. In: WEFFORT, Francisco (org.). Os Clássicos da Política. São Paulo: Ática,
2006.

SKINNER, Quentin. As Fundações do Pensamento Político Moderno. São Paulo:


Companhia das Letras, 2005.

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