Você está na página 1de 523

Curso de Bíblia

Aprovação Eclesiástica
Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo:

A Constituição Dogmática "Lumen Gentium", referindo-se ao leigo diz:

O apostolado dos leigos é participação na própria missão salvífica da Igreja. A


este apostolado todos são destinados pelo próprio Senhor através do Batismo e
da Confirmação. Os Sacramentos, principalmente a Sagrada Eucaristia,
comunicam e alimentam aquela caridade para com Deus e os homens, que é a
alma de todo apostolado. Os leigos, porém, são especialmente chamados para
tornarem a Igreja presente e operosa naqueles lugares e circunstâncias onde
apenas através deles ela pode chegar como sal da terra. Assim todo leigo, em
virtude dos próprios dons que lhe foram conferidos, é ao mesmo tempo
testemunha e instrumento vivo da própria missão da Igreja "na medida do dom
de Cristo (Ef 4,7) (nº 33)

Por sua vez estabelece a Constituição Dogmática Dei Verbum:

A Sagrada Tradição e a Sagrada Escritura estão portanto entre si estreitamente


unidas e comunicantes. Pois promanando ambas da mesma fonte divina,
formam de certo modo um só todo e tendem para o mesmo fim. Com efeito, a
Sagrada Escritura é a Palavra de Deus enquanto é redigida sob a moção do
Espírito Santo; a Sagrada Tradição, por sua vez, transmite integralmente aos
sucessores dos Apóstolos a Palavra de Deus confiada pelo Cristo Senhor e pelo
Espírito Santo aos Apóstolos para que, sob a luz do Espírito de verdade, eles
por sua pregação fielmente a conservem, exponham e difundam; resulta,
assim, que não é através da Sagrada Escritura apenas que a Igreja deriva sua
certeza a respeito de tudo que foi revelado. Por isso, ambas [Escritura e
Tradição], devem ser aceitas e veneradas com igual sentimento de piedade e
reverência (n.º 9).

Não é outro o motivo que nos move a apresentar o Curso de Bíblia


estruturado de acordo com a Tradição e o Magistério da Igreja, narrando a
História da Salvação desde os primórdios do Antigo Testamento,
acompanhando-a e concluindo-a no Novo Testamento. É fruto do trabalho de
leigos do Movimento Bíblico da Diocese de São João Del-Rei, fundado em 1980,
que tem por objetivo a difusão da Bíblia entre os católicos.

Principalmente porque o uso da Bíblia entre católicos agora muito tem se


intensificado com a Assistência do Magistério da Igreja pelo que não podemos
deixar de aplaudir esta iniciativa laica de se difundir a Sagrada Escritura via
Internet. O Leigo na Igreja não é, como em outras áreas do saber humano, um
ignorante na fé, não tendo por ela nenhuma responsabilidade, pelo contrário, o
leigo também evangeliza e tem a mesma responsabilidade sacerdotal pela
difusão do Evangelho, em virtude do Batismo e da Confirmação, apesar da
diferença apenas funcional que desempenha na Igreja.

Identificando-se com a Nova Evangelização e se incorporando ao mais atual


dos novos meios de comunicação, pela Internet, através do site Mundo
Católico, também por iniciativa e direção de leigos conscientes de seu papel
na Igreja, a quem cumprimentamos e abençoamos, este Curso de Bíblia que
se inicia tem a minha aprovação Eclesiástica e Bênção Apostólica.

São João Del-Rei, 21 de julho de 1997.

D. Waldemar Chaves de Araújo


Bispo Diocesano de São João Del-Rei
Praça Frei 0rlando, 130, Caixa Postal 102
Fones: (032) 371.1060 (Resid.)/371.1011 (Cúria)
36.300-000 SÃO JOÃO DEL-REI - MG
Curso de Bíblia
Autoavaliação

INTRODUÇÃO
1. O que é a Bíblia?
2. Como seria a representação de Gênesis, capítulo 25, para se ler do
versículo 1 até o 15, saltar para o 29 e ler até o 34, letra c?
3. A Bíblia é importante? Por quê?
4. É certo dizer que Jesus é Palavra? Por quê?
5. Existe alguma revelação nova nos dias atuais? Explique.
6. A Inspiração é faculdade ou dom de todas as pessoas? Explique.
7. Cada um pode interpretar autenticamente a Sagrada Escritura?
Explique.
8. O que se entende por Tradição, Magistério e Assistência do Espírito
Santo na Igreja? Descreva-as e destaque as suas diferenças. Existe
alguma relação entre a Escritura, a Tradição e o Magistério da Igreja?
Qual? Explique.

CAPÍTULO 1
1. Como o narrador bíblico concebeu a criação e o mundo criado? Faça
uma descrição breve com su-as palavras.
2. Tudo o que existe foi criado? Por quem? Para o quê?
3. Para quem tudo foi criado?
4. Que é o Homem? Para que foi ele criado? O que é Bênção?
5. O que é o Jardim do Éden? Por que o Homem foi nele colocado?
6. É um lugar ou um estado?
7. Há alguma relação entre Deus e o Homem? Qual ou quais?
8. Por que existe a Morte e o Mal? Há alguma relação entre eles? Foram
criados ou foram ocasionados por alguma coisa? Explique. O Mal é um
ser criado ou uma conseqüência?
9. O Plano de Deus sofreu alguma modificação por causa da Morte?
10. .Para o Homem houve alguma modificação por causa da Morte?
11. .Quais as conseqüências da Morte?
12. .Qual o significado do Sétimo Dia e de sua Bênção?
13. .Qual o sentido de Gn 3,15 e como é conhecido?
14. .Qual a intenção do narrador com a narrativa de Caim e Abel? E com a
do Dilúvio? E com a da Torre de Babel?

CAPÍTULO 2
1. Qual a diferença entre o conceito de POVO no mundo atual e no
mundo antigo? Em outras pala-vras, que é POVO hoje e o que era
POVO no passado bíblico?
2. Que é ALIANÇA? Por que tem este nome?
3. Em que se resumiu a PROMESSA?
4. Por quê Abraão é conhecido como o PAI DOS CRENTES?
5. Qual o significado da frase "Abrão creu em Deus e isso lhe foi creditado
na conta de justiça"?
6. Com se deve julgar o ato de Abrão entregando Sara duas vezes nas
mãos de pagãos, comprome-tendo sua integridade, dizendo-a sua irmã
e para se proteger?
7. Qual o pecado de Sodoma e Gomorra? O que o narrador quis realçar
com o episódio de Sodoma e Gomorra?
8. Por quê eram estéreis as mulheres ligadas à História da Salvação no
tempo dos Patriarcas? Por quê eram elas que davam nome aos filhos?
9. Qual o sinal da ALIANÇA? Em quem ele deve ser aplicado e qual o
compromisso que se assume com ele?
10. Qual a maior prova a que foi submetida a fé de Abraão?
11. O que significou Abraão para a Aliança? E Isaac?
12. Havia algum culto que os Patriarcas praticavam? Se havia, qual era o
seu centro, ou o ato mais importante? Se não, explique.
13. A PRIMOGENITURA antigamente era ambicionada? Por quê?
14. O que significa a mudança do nome de uma pessoa, quando feito por
Deus?
15. Qual a importância de Jacó em termos de Aliança? E Israel? Qual a
diferença entre Jacó e Israel?
16. Qual a origem das Tribos de Israel? Quantas eram? Qual a sua
importância?
17. Existe algum indício da Santíssima Trindade em algum trecho? E do
Purgatório?
18. A fé de Abraão foi vivida por Isaac e Jacó com semelhante firmeza? Os
Patriarcas sofreram como todo homem?
19. Qual o sofrimento por quê passou Isaac juntamente com Abraão?
20. Por quê Deus mudou o nome de Abrão para Abraão?
21. Quem foi José do Egito? Que fez ele de importante para a Aliança?
22. A quem Jacó deu o direito de primogenitura, e por quê?
23. O que é uma glosa? Uma narrativa bíblica vem muitas vezes infiltrada
de elementos de outra épo-ca? Por quê? Esse fato altera a verdade
religiosa? Explique o melhor que puder.
24. Jesus estabeleceu alguma relação entre a Samaritana e o Poço de
Jacó? Explique com detalhes.

CAPÍTULO 3
1. Por que o livro Êxodo se denomina assim? Os livros da Bíblia sempre tiveram
nomes? Que nome receberam dos israelitas? Que formato tinham e como se
denominavam? Eram livros como os atuais? O resumo que consta do primeiro
parágrafo do capítulo 3.º é muito importante. Estude-o bem e memorize este
mínimo que lá está e tente fazer uma descrição enriquecendo-a com palavras e
pesquisa pessoal sua.
2. Que fatores José teve que considerar ao situar seus familiares no Egito e quais
providências tomou para isso? Teve de convencer o Faraó com que argumento?
Foi normal a condição em que os Israelitas se encontraram ao se erradicar de
sua terra para o Egito? Havia antagonismos entre as duas culturas? Mencione
os mais importantes.
3. Que regime econômico José impôs ao povo egípcio? Esse regime atingiu os
Filhos de Israel? Durante a vida de José ou após a sua morte? Os israelitas se
destacavam por alguma qualidade? Deixaram-se abater pelo regime
encontrado, por quê? Qual a principal opressão que sofriam?
4. Por que o Faraó reconheceu que os Filhos de Israel se tornaram em Povo dos
Filhos de Israel? O que o distinguiu do Povo Egípcio? Por que Deus os tornou
em Povo?
5. De que teve medo o Faraó? Que providências tomou para resolver a situação e
superar o medo? Conseguiu algum resultado? Por quê? E os israelitas foram
vencidos ou dominados por elas?
6. Procure fazer um resumo da vida de Moisés mencionando apenas as partes
mais importantes e sua luta para se impor aos seus irmãos de raça, procurando
se identificar com a cultura do tempo.
7. O que lhe aconteceu de grave a ponto de se encontrar pastoreando no Monte
Sinai rebanho de seu sogro? E ali no mesmo lugar o que lhe aconteceu de
notável para a História da Salvação? Qual o sentido certo da denominação de
"profeta"?
8. Por que motivo Deus libertou o Povo dos Filhos de Israel do Egito? Você é
capaz de deduzir por que escolheu Moisés, mesmo sendo de uma tribo não
premiada com a "primogenitura" (o motivo aqui não é aquele do direito de
Deus de escolher a quem quiser, é de ordem mais humana e prática)?
9. Os Israelitas tinham alguma organização mesmo dentro do Egito? Moisés e
Aarão foram procurá-los a mando de Deus? Que recursos usaram para
convencê-los? Por que queriam sair para o deserto?
10. E o Faraó, como foi convencido, ou não foi, ou foi difícil? O que acontecia
com o coração dele? E os magos da corte, como reagiram? Conseguiram os
Israelitas sair do Egito? Os recursos usados para se tentar conseguir eram
naturais ou fenômenos inexplicáveis ainda hoje, a não ser por uma interferência
direta de Deus? O que aconteceu de sério a ponto de influir no resultado final,
pondo um ponto final na resistência do Faraó e dos egípcios? Qual o último
recurso ou prodígio realizado?
11. Por que se diz "e despojareis os egípcios"? Para que e por que Deus escolhe os
Primogênitos do Egito? Para que e por que Deus escolhe os Primogênitos de
Israel?
12. Que é a Páscoa e por que foi instituída? É um sacrifício? De quê? Será um
ótimo exercício descrevê-la com as suas próprias palavras, sem alterar a
essência que lhe é própria e por causa de sua relação com a Obra da Redenção
operada por Cristo. Faça-o, aceite a sugestão. Você entendeu o motivo pelo
qual era comida "cingidos os rins, sandálias nos pés e bordão na mão"?
Entendeu também a finalidade do "sangue nos umbrais das portas e porque ele
não pode ser comido nunca"?
13. Há alguma identidade ou relação dela com a Páscoa Cristã ou com a
Eucaristia?
14. Por que Deus chama o Povo dos Filhos de Israel de "meu filho primogênito"?
Qual o alcance desse qualificativo e qual o significado dele para a História da
Salvação?
15. Qual a finalidade última dos "prodígios" realizados no Egito, além de libertar
os Israelitas? Ela se destinava ao Faraó e aos Magos apenas? Para quê? E para
os Israelitas que significaram? Conseguiu?
16. Por que os Israelitas não seguiram a rota normal da terra dos filisteus?
17. Moisés levou consigo "os ossos de José" por motivo sentimental, político ou
religioso? Teve relação com a Aliança dos Patriarcas?
18. Por que motivo se diz que "o coração do Faraó endureceu"? Por que se
arrependeu por deixar os Israelitas saírem para "servir a Iahweh"? Que
conseqüências trazia para o Egito essa saída?
19. O que levou o povo Egípcio a fazer doações para o povo Israelita quando
saíram? Por que se diz "e despojareis os Egípcios"?
20. O Faraó pensou que o Povo estava desorientado e encurralado no deserto. O
que fez o Povo de Israel quando se viu nessa situação? E Moisés? O que
aconteceu então de extraordinário causando a escapulida de Israel e a
destruição do exército do Faraó?
21. Percebe-se pela narrativa que os Israelitas não estavam preparados para a fuga
e para a vida nômade no deserto; faltando-lhes água foi qual a reação deles?
Foi natural que ocorresse ou Deus usou do fato para os amadurecer no cadinho
do sofrimento tal como com os Patriarcas?
22. Moisés conhecia bem o deserto; seria por isso que fora escolhido para liderar o
povo em seu êxodo? Como ficou conhecendo-o?
23. Os relatos da Bíblia têm sentido político, histórico ou religioso?
24. Mencione alguns "sinais" da presença de Deus conduzindo e mantendo o Povo
de Israel. Por que Deus os dirigia e aonde iam?
25. Que semelhança têm alguns dos "sinais" com instituições cristãs a ponto de
serem denominados "figura" por São Paulo?
26. Que ato de culto praticado pelos Israelitas fora também praticado pelos
Patriarcas e seria o centro do culto da Aliança? Qual o seu significado para
eles?
27. A "chegada" como tal ao Monte Sinai tinha algum sentido especial? Qual o ato
mais extraordinário que aconteceu então? "O Decálogo" foi pronunciado por
quem? Alguém ouviu as palavras? Quem? O Povo teve medo ou temor
reverencial? Por que não fugiu com a exuberância da teofania?
28. Como foram preparados para a cerimônia?
29. Os "mandamentos" foram transmitidos como ordem ou como pedido de
Aliança? Qual a finalidade deles? Ainda hoje são os mesmos cristãos? Pode-se
dizer que ali se plantava a cristandade? Dê uma olhada no Catecismo da Igreja
Católica e veja como ainda se identificam como normas ideais de
comportamento e santificação.
30. Qual a diferença entre "adorar" e "venerar"?
31. Que significa em hebraico "shabbat" que deu origem à palavra "sábado". Como
é o mandamento? Qual a diferença entre o "sábado" e o "domingo"? Quem
trabalha "seis dias e descansa no sétimo o cumpre?
32. Apesar da exteriorização dos atos humanos previstos nos mandamentos vê-se
facilmente que há necessidade de interiorização? Existem alguns em que a vida
interior vem expressa com clareza? Quais?
33. Deu-se o nome aos mandamentos de Lei da Aliança, por quê? Após a sua
promulgação e a apresentação das leis civis e penais, houve um ato solene de
importância fundamental para a História da Salvação, para a Obra da Redenção
e até mesmo para a atualidade; que ato foi esse?
34. Qual a Missão de Israel?

CAPÍTULO 4
1. Qual a utilidade do estudo dos Sacrifícios Israelitas?
2. Quais são os diferentes tipos de Sacrifícios e em que se distinguem?
Qual o mais importante? Por quê?
3. Qual a finalidade de cada um deles?
4. Recorde o n.° 5 e o n.° 8 do Capítulo 3 para compreender melhor ainda
a Eucaristia e, caso queira, faça um resumo para seu aperfeiçoamento
pessoal.
5. Qual a função do "sangue" nos Sacrifícios? Quando podia ser ingerido
ou comido?
6. No Holocausto qual a diferença ritual entre a oferenda de gado maior e
gado menor? E de aves?
7. Em que se distinguem as vítimas dos demais Sacrifícios?
8. Existe alguma relação entre os Sacrifícios Israelitas e o Sacrifício de
Cristo? Quais as diferenças e quais as semelhanças, se existem? O
Sacrifício Israelita teria alguma valor não fora o de Cristo?
9. Em todos os Sacrifícios os Sacerdotes e o Ofertante se alimentam?
Que partes são destinadas a um e a outro? E a Deus? O que é o "Pão
de Deus"?
10. Que se entende por Direitos e Deveres nos Sacrifícios? Procure
memorizá-los.
11. Descreva o Fogo Sagrado, fale sobre ele.
12. Por que as Mulheres dos Sacerdotes e suas descendentes não podiam
"comer" algumas oferendas?
13. Com qual Sacrifício se identificam a Multiplicação de Pães e a Santa
Ceia? Por que?
14. O que já se anunciava com a determinação de "ninguém comparecer à
minha presença de mãos vazias" e o "tributo a Iahweh entregue aos
Sacerdotes"?
15. Existe Sacrifício sem Sacerdócio?
16. Que tipos de Sacrifícios são oferecidos por ocasião da Investidura dos
Sacerdotes? Quem os ofereceu, ou quem foi o celebrante? E nas
Primícias dos Sacerdotes?
17. Faça uma descrição resumida da Investidura dos Sacerdotes.
18. Que relação há entre os Anciãos de Israel, o Sinédrio e os Presbíteros
ou Padres da Igreja?
19. Que significa o oferecimentos das Primícias pelos novos Sacerdotes
Israelitas? Com que termina?
20. É de muita importância que se entenda bem o que se diz no início do
n.° 12 quanto aos títulos e subtítulos da Bíblia e quanto à divisão em
capítulos e versículos? Por quê?
21. Que era Santidade para o Israelita? Tinha o mesmo significado atual?
22. Qual era a Missão de Israel com referência aos povos pagãos?
23. Que é o estado de Pureza Legal, como se perde e como se recupera?
24. Como o Israelita desse tempo entendia que se formava o feto humano
no seio materno?
25. Qual o significado da "impureza" da mulher após o parto ou durante a
menstruação?
26. Por que se separava o leproso do convívio? Qual seria a causa da
lepra? Quantos tipos havia ou não se tratava da lepra propriamente
dita?
27. Qual a finalidade do Dia da Expiação? Por que era importante esse
dia? Descreva-o e memorize o possível, será muito útil para entender a
Expiação de Jesus.
28. Além da "Pureza Legal ou Ritual" que era necessário ao Israelita para
satisfazer a exigência de Santidade da Aliança?
29. Que era necessário para se caracterizar toda a Santidade e não
apenas a física e exterior?
30. Qual o significado de Santo?
31. Que significa a expressão "andou com Deus" ou "andou na presença
de Deus?
32. Por que era necessário que se imolasse a vítima em frente da Tenda
da Reunião?
33. Como se caracterizava o Amor ao Próximo entre os Israelitas? Quem
era o "próximo" para ele e em que se distingue do conceito dado por
Jesus Cristo?
34. Em que se caracterizava o valor do Sacrifício para o Israelita?
35. Qual a diferença entre a Unção de um Sumo Sacerdote e a Unção dos
filhos de Aarão?
36. Quais as diferenças de procedimentos rituais e na vida social entre o
Sumo Sacerdote e o Sacerdote comum?
37. Como se pode dizer que "Iahweh será santificado" se Ele é a única
fonte de toda a santidade?
38. Quais são as Festas Religiosas dos Israelitas e qual o significado geral
de todas e o específico de cada uma?
39. Quais são as celebrações religiosas israelitas que até hoje se celebram
no cristianismo?
40. Qual o significado da Oferta do Movimento?
41. Donde veio a aplicação da palavra "espórtula" na Igreja e como era
praticado o seu ritual?
42. Qual o significado dos Pães da Proposição e quais os seus vários
nomes e como era o seu ritual?
43. Qual a diferença entre o Ano Sabático e o Ano Jubilar? Mencione as
características de cada um.
44. Existe alguma relação entre o Ano Jubilar e o Dia da Expiação?
45. As "Bênçãos e Maldições" que se menciona são um castigo de Deus
ou as conseqüências do rompimento obstinado e definitivo da Aliança
com Iahweh? Em caso de arrependimento havia algum reatamento da
Aliança por parte de Iahweh? Em que condições e o que se exigia?
46. Quais as principais conseqüências que poderiam ocorrer no caso de
desligamento da Aliança?
47. As consagrações com que se finaliza o Livro de Levítico a que se
destinavam? Quais são e quais as suas principais diferenças e
finalidades?
48. Fale sobre os Interditos ou Anátemas e que relação havia entre eles e
a chamada "Missão de Israel"?
49. Que significa o resgate e em que casos se pode aplicar?
50. A que uso se destinavam as oferendas consagradas a Iahweh?
Curso de Bíblia
Por José Haical Haddad

Introdução
1. O QUE É A BÍBLIA?

Digamos à guisa de definição, que a Bíblia é um conjunto de 73 livros com


vários títulos ou denominações: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números,
Evangelhos, várias epístolas etc., os quais podem ser localizados pelo
índice geral dela. Divide-se em duas partes bem destacáveis: o Antigo
Testamento e o Novo Testamento.
Testamento é o nome que se dá à Aliança "contraída" com Abraão e
"cumprida" em Jesus Cristo. Enquanto projeção de Abraão designou-se
por Antigo Testamento aos acontecimentos a ela correlatos; quando afins à
Nova Aliança em Jesus Cristo, tomou o nome de Novo Testamento. É que
um testamento "traz" disposições que devem ser "cumpridas" após a morte
de um dos testadores, no caso, Abraão no Antigo e Jesus no Novo,
"trazendo", para a Homem "cumprir", "disposições de última vontade", e
"uma herança".

A Bíblia vem geralmente dividida em capítulos e versículos (vide tabela


abaixo). Os capítulos são especificados por números maiores colocados
num começo de narrativa parcial e os versículos por algarismos menores
colocados antes das frases que compõem o capítulo. Costuma-se dar
títulos aos vários capítulos, ou a trechos deles, também conhecidos por
"perícopes", que foram ai incorporados pretendendo facilitar a
compreensão e a localização por assuntos, mas não fazem parte integrante
e indestacável do contexto.

Representação de Capítulos e Versículos da Bíblia

Costuma-se representar os livros pelas duas primeiras consoantes ou uma ou duas


consoantes e uma vogal de seu nome (para evitar confusão com outro), por exemplo:

Gn para Gênesis; Ex para Êxodo; Cro (ou Cr) para Crônicas [para não se confundir com
abreviatura de Coríntios - (Cor ou Co)] etc..

Os capítulos são representados pelo seu número seguido de vírgula:

Gn 1, - significa capítulo 1 do livro de Gênesis.

Já os versículos vêm geralmente após a vírgula do capítulo:


Gn 1,2 - significa livro de Gênesis, capítulo 1, versículo 2.

Quando se pretende representar todos os versículos a que se refere, usa-se separá-los por
um hífen (com o significado de = até):

Gn 1,15-20 - significa livro de Gênesis, Capítulo 1, a partir do versículo 15 até o 20.

Colocando-se um ponto após o ultimo versículo e colocando-se outro número significa que
se deve saltar do versículo para o outro:

Gn 1,15-20.25-26 - significa que após o versículo 20 deve-se saltar para o 25 e ler até o
26.

Pode acontecer que um versículo se componha de várias frases, designando-se então


cada uma delas por uma letra do alfabeto:

Gn 1,15-16ab - significa que a citação abrange no versículo 16 apenas as duas primeiras


frases.

Ainda pode acontecer que a citação tenha após o versículo um número seguido de vírgula;
nesse caso se trata de referência a capítulo:

Gn 1,15-2,4a - significa que a citação vai do versículo 15 do capítulo 1 ao versículo 4 do


capítulo 2, primeira frase.

Um número seguido de vírgula corresponde a


capítulo
e um número quando vem seguido de hífen, a
versículo,
e um número quando vem seguido de ponto a
versículo.

2. POR QUÊ A BÍBLIA É IMPORTANTE?

Só há uma razão pela qual se pode dizer que a Bíblia é importante, tal
como São Paulo diz:

"E não somos como Moisés, que punha um véu sobre o rosto, para
que os filhos de Israel não vissem o final da glória que se desvanecia;
e assim o entendimento deles ficou obscurecido. Pois até o dia de
hoje, à leitura do velho testamento, permanece o mesmo véu, não
lhes sendo revelado que em Cristo é ele abolido; sim, até o dia de
hoje, quando Moisés é lido, um véu está posto sobre o coração
deles. Contudo, convertendo-se ao Senhor, é-lhe tirado o véu" (2 Co
3,13-16).

A Bíblia é importante por causa de:

Jesus Cristo

Sem Jesus Cristo, a Bíblia não passa de um dos livros ultrapassados que
por ai existem nos museus ou em uso nos mitos e superstições ou
fossilizados.

Pode-se pretender que ela seja a Palavra de Deus. E é, mas a Palavra de


Deus plenamente revelada por Jesus Cristo. Ele é a Revelação por
excelência, a única Revelação do Pai;

Jesus é a Palavra do Pai

Diz-se que Jesus é a PALAVRA porque manifesta ou revela o Pai, tal como
Ele mesmo o diz:

"Jesus lhe disse: "Filipe, há tanto tempo estou convosco e não me


conheces? Quem me tem visto, tem visto o Pai. Como podes dizer:
mostra-nos o Pai?" (Jo 14,9).

Também Paulo e João o dizem:

"Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda criatura..."


(Col 1,15)

No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus, e a Palavra


era Deus" (...) "Ninguém jamais viu a Deus. o Filho Unigênito, que
está no seio do Pai, é quem o deu a conhecer." (Jo 1,1.18).

É essa a função da PALAVRA: tornar conhecido o que ela significa. Caso


um professor permaneça em silêncio perante um grupo de alunos, eles
nada saberão de seu saber íntimo, pois, sem a palavra nada se sabe.
Quando ele começar a falar, a fazer o uso "da palavra", passará a ser
entendido e os alunos apreenderão o que ensina, por aquilo que ele
"revelar" com a sua palavra. Ora, Jesus "revelou" o Pai; logo, JESUS é a
PALAVRA DO PAI.
2.1 Revelação

Já ficou claro pelo acima exposto que Cristo é a Revelação única e


definitiva, e que somente aquilo que transmitiu aos Apóstolos, que nos vem
pela Tradição e o Magistério da Igreja, pode-se dizer "revelado". É que,
com a morte do último Apóstolo, terminou a transmissão oral da Revelação,
o que se conhece por Tradição, ficando apenas o que foi deixado por eles
como "depósito" (de fé), como o denominou São Paulo (1 Tm 6,20; 2 Tm
1,12-14), que compõe o Magistério da Igreja, aquilo que ela ensina. Melhor
o diz o Catecismo da Igreja Católica, recém promulgado por João Paulo II:

"'Muitas vezes e de muitos modos falou Deus antigamente aos


nossos pais, pelos profetas. Nestes dias, que são os últimos, falou-
nos por seu Filho' (Hb 1,1-2). Cristo, Filho de Deus feito homem, é a
Palavra Única, Perfeita e Insuperável do Pai. Nele o Pai disse tudo, e
não haverá outra palavra além dessa. (...) A Economia Cristã,
portanto, como Aliança Nova e Definitiva, jamais passará, e já não se
há de esperar nenhuma outra Revelação pública antes da gloriosa
manifestação de Nosso Senhor Jesus Cristo" (n.º 64-65).

2.2 Inspiração

Tal como a Revelação, também a Inspiração Bíblica já acabou. O que


ilumina a Igreja em prosseguimento à Obra de Cristo (Jo 20,21) é uma
especial Assistência do Espírito Santo, e não se confunde com a Inspiração
Bíblica, como a própria Igreja define e explica:

"A verdade divinamente revelada, que os livros da Sagrada Escritura


contêm e apresentam, (...). ...escritos sob a Inspiração do Espírito
Santo (cf. Jo 20,31; 1 Tm 3,16; 2 Pe 1,19-21; 3,15-16), eles têm
Deus por autor e nesta qualidade foram confiados à Igreja. Para
escrever os Livros Sagrados, Deus escolheu e serviu-se de homens,
na posse das suas faculdades e capacidades, para que, agindo Ele
neles e por eles, escrevessem, como verdadeiros autores, tudo aquilo
e só aquilo que Ele próprio queria" ("Dei Verbum" n.º 11; Catecismo.
da Igreja Católica n.º 105/106).
"Por isso, a pregação apostólica, que é expressa de modo especial
nos livros inspirados, devia conservar-se por uma sucessão contínua
até a consumação dos tempos. (...). Esta Tradição, oriunda dos
Apóstolos, progride na Igreja sob a Assistência do Espírito Santo..."
(Constituição 'Dei Verbum', Conc. Vat. II, n.º 8).

O que não se deve perder de mira é que tanto a Revelação como a


Inspiração foram dons ou carismas especiais de Deus para a confecção da
Sagrada Escritura, e isto se deu quando dos originais, não se estendendo
às traduções, aos comentários ou mesmo à exegese. Por isso, a missão da
Igreja de interprete única, por causa daquele já mencionado "depósito" (da
fé) que lhe é pertinente:

"O 'depósito' (1 Tm 6,20; 2 Tm 1,12-14) da fé ("depositum fidei"),


contido na Sagrada Tradição e na Sagrada Escritura, foi confiado
pelos Apóstolos à totalidade da Igreja. 'Apoiando-se nele, o Povo
Santo todo, unido a seus Pastores, persevera continuamente na
doutrina dos Apóstolos e na comunhão, na Fração do Pão e nas
Orações, de sorte que na conservação, no exercício e na profissão da
fé transmitida, se crie uma singular unidade de espírito entre os
bispos e os fiéis.' (cfr. Catecismo 84)

'O encargo de interpretar autenticamente a Palavra de Deus escrita


ou transmitida foi confiado unicamente ao Magistério vivo da Igreja,
cuja autoridade se exerce em nome de Jesus Cristo' ("Dei Verbum",
10), isto é, aos bispos em comunhão com o sucessor de Pedro, o
bispo de Roma" (idem 85).

Pode-se desde já perceber a importância da Tradição, que é a transmissão


das verdades reveladas pelos Apóstolos a seus sucessores, no que se
estrutura o Magistério da Igreja.

2.3 Tradição, Magistério e Escritura

Cristo não é um fundador de nova religião, nem o cristianismo é uma


"heresia" do judaísmo. Os Apóstolos e os discípulos continuaram
freqüentando o Templo e seguindo os rituais ali celebrados, até mesmo
após a Sua Morte, Ressurreição e Ascensão (Lc 24,53; At 2,46; 3,1) bem
como após o Pentecostes (At 2,46; 3,1...). Compartilhavam da "visão" de
Jesus de que o cristianismo é o "cumprimento" do judaísmo, o seu ponto de
chegada:

"Não penseis que vim destruir a lei ou os profetas; não vim destruir,
mas cumprir. Porque em verdade vos digo que, até que o céu e a
terra passem, de modo nenhum passará da lei um só "i" ou um só
"til", até que tudo seja cumprido" (Mt 5,17-18).

Entretanto, os primeiros cristãos não conheciam o Novo Testamento tal


como se conhece hoje. Quando muito haviam alguns manuscritos
destinados apenas a registrar as pregações locais. Os cristãos de Roma,
por exemplo, conheciam a pregação de Pedro e, possivelmente, conheciam
também uma ou outra das cartas de Paulo (2 Pe 3,15-16). Vê-se facilmente
que os escritos atuais dos Evangelhos são verdadeiramente o registro
catequético de então, a primeira expressão da Tradição Apostólica, aqueles
que foram escolhidos e aprovados entre tantos outros (Lc 1,1-2 diz
"muitos"):

"A Tradição de que falamos aqui é a que vem dos Apóstolos. Ela
transmite o que estes receberam do ensino e do exemplo de Jesus e
aprenderam pelo Espírito Santo. De fato, a primeira geração de
cristãos ainda não tinha um Novo Testamento escrito, e o próprio
Novo Testamento testemunha o processo da Tradição Viva"
(Catecismo da Igreja Católica, 83).

"Por isso, a pregação apostólica, que é expressa de modo especial


nos livros inspirados, devia conservar-se por uma sucessão contínua
até a consumação dos tempos. (...) Esta Tradição, oriunda dos
Apóstolos, progride na Igreja sob a Assistência do Espírito Santo..."
(Constituição 'Dei Verbum', Conc. Vat. II, n.º 8).

Informa Papias que o primeiro Evangelho foi escrito por Mateus em


aramaico, que o destinou aos judeus. Vieram outros, inclusive a tradução
dele para o koiné, o grego popular de então, que não eram ainda tão
difundidos, nem faziam parte de um cânon definido pela Igreja. Somente
algumas comunidades tinham uma espécie de compilação mais ou menos
aleatória, ao que tudo indica, e não ainda de forma sistemática como hoje:

"Foi a Tradição Apostólica que levou a Igreja a discernir quais os escritos


que deveriam ser enumerados na lista dos Livros Sagrados" ('Dei Verbum,
8,3). Esta lista completa é denominada 'Cânon' das Escrituras. Comporta,
para o Antigo Testamento, 46 (45, se contarmos Jeremias e Lamentações
juntos) escritos e 27 para o Novo:

 Gênesis, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio, Josué, Juízes,


Rute, os dois livros de Samuel, os dois Livros de Reis, os dois Livros
de Crônicas, Esdras e Neemias, Tobias, Judite, Ester, os dois Livros
de Macabeus, Jó, os Salmos, os Provérbios, o Eclesiastes (ou
Coélet), o Cântico dos Cânticos, a Sabedoria, o Eclesiástico (ou
Sirácida), Isaías, Jeremias, as Lamentações, Baruc, Ezequiel,
Daniel, Oséias, Joel, Amós, Abdias, Jonas, Miquéias, Naum,
Habacuc, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias, para o Antigo
Testamento;

 os Evangelhos de Mateus, de Marcos, de Lucas e de João, os Atos


dos Apóstolos, as Epístolas de São Paulo aos Romanos, a Primeira
e a Segunda aos Coríntios, aos Gálatas, aos Efésios, aos Filipenses,
aos Colossenses, a Primeira e a Segunda aos Tessalonicenses, a
Primeira e a Segunda a Timóteo, a Tito, a Filêmon, a Epístola aos
Hebreus, a Epístola de Tiago, a Primeira e a Segunda de Pedro, as
três Epístolas de João, a Epístola de Judas e o Apocalipse, para o
Novo Testamento (Catecismo da Igreja Católica, 120).

Da mesma forma que então, porque inexistente, para os católicos ainda


hoje, "só a Bíblia" não é, nem pode ser, o único fundamento para a fé, eis
que não se partiu dela para o que se crê. O que nela se compôs foi o então
ensinado pelos Apóstolos. Por isso, fundamental ainda lhes é o conjunto
formado por: Tradição + Magistério + Escritura:

"Fica portanto claro que segundo o sapientíssimo plano divino a Sagrada


Tradição, a Sagrada Escritura e o Magistério da Igreja estão de tal maneira
entrelaçados e unidos, que um não tem consistência sem os outros, e que
juntos, cada qual a seu modo, sob a ação do mesmo Espírito Santo,
contribuem eficazmente para a salvação das almas" (Constituição
Dogmática 'Dei Verbum', 10)

3. ALGUMAS REGRAS PRÁTICAS

Feitas essas observações preliminares, é fundamental a todo estudioso da


Bíblia algumas regras práticas que iremos apresentando à medida do
desenvolvimento do curso. A primeira delas é a de se deslocar
abstratamente ao tempo em que foi escrito o livro que se estuda ou se lê,
não se analisando o que está escrito com o aculturamento atual, mas
procurando entender bem o que se escreveu com a mentalidade de então.
Outra delas é que os títulos, subtítulos e a divisão em capítulos e versículos
não fazem parte do escrito em si, não são inspirados, mas foram
idealizados em princípios deste segundo milênio de nossa era, para facilitar
a localização, bem como a leitura, e de acordo com a divisão vigente por
assunto ao tempo do criador do sistema. Por isso mesmo, nem sempre um
capítulo encerra um assunto, como acontece com um livro moderno,
podendo se encontrar a conclusão dele mais adiante ou em local diverso.

Além de tudo isto, é de se considerar que a Bíblia forma uma unidade total
de doutrina, coerente e religiosamente muito lógica. E não se há de
esquecer a necessidade de sempre se recorrer ao ensino da Igreja, que
com seu "depósito" ilumina a interpretação doutrinária dos textos difíceis.
Não é possível se dar ao luxo de interpretações particulares, por mais
sábias que nos possam parecer (2Pe 1,20-21). Assim, é de se ler a Bíblia
tal como foi ela escrita e não como se gostaria que tivesse sido composta.
Qualquer originalidade pode lhe redundar em falsificação grosseira, mesmo
uma simples entonação de voz que se busca interpretar. As Escrituras
foram escritas ao bafejo do Espírito Santo e não Lhe pode ser atribuída
qualquer contradição entre os vários livros que a compõem. Só o Espírito
Santo é o interprete do que inspirou pelo que Jesus fez da Sua Igreja o
único "depósito" (da Fé) (v. Catecismo da Igreja Católica, 109/119):

"E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Paráclito, que fique
convosco para sempre, a saber, o Espírito da Verdade, o qual o
mundo não pode receber; porque não o vê nem o conhece; mas vós
conheceis, porque ele habita convosco, e estará em vós. (...) Naquele
dia conhecereis que estou em meu Pai, e vós em mim, e eu em vós.
(...) Mas o Paráclito, o Espírito Santo a quem o Pai enviará em nome,
esse vos ensinará todas as coisas, e vos fará lembrar de tudo quanto
eu vos tenho dito" (Jo 14,16-20.26)

"Ainda tenho muito que vos dizer; mas vós não o podeis suportar
agora. Quando vier, porém, aquele, o Espírito da Verdade, ele vos
guiará a toda a verdade; porque não falará por si mesmo, mas dirá o
que tiver ouvido, e vos anunciará as coisas vindouras. ..." (Jo 16,12-
15).

Pelos trechos aqui transcritos vê-se que o próprio Jesus diz que seria o
Espírito Santo quem "vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de
tudo quanto eu vos tenho dito", "vos guiará a toda a verdade" e "vos
anunciará as coisas vindouras". Assim sendo, é aquilo e somente o que foi
ensinado pelos Apóstolos que permaneceu na Igreja como o depósito que
São Paulo fala:
"Ó Timóteo, guarda o depósito que te foi confiado, evitando as
conversas vãs e profanas e as oposições da falsamente chamada
ciência; a qual professando-a alguns, se desviaram da fé. A graça
seja convosco" (.I Tm 6,20-21)

"Por esta razão sofro também estas coisas, mas não me envergonho;
porque eu sei em quem tenho crido, e estou certo de que ele é
poderoso para guardar o meu depósito até aquele dia. Conserva o
modelo das sãs palavras que de mim tens ouvido na fé e no amor
que há em Cristo Jesus; guarda o bom depósito com o auxílio do
Espírito Santo, que habita em nós" (2 Tm 1,12-14).

Ainda, quando Jesus estabelece o "primado" de Pedro, deixa clara a


autoridade dele e dos Apóstolos com ele, quando lhes dá o poder de "ligar
e desligar", eis que estará sempre presente, "no meio deles":

(A Pedro) "Disse-lhe Jesus: Bem-aventurado és tu, Simão Barjonas,


porque não foi carne e sangue que to revelou, mas meu Pai, que está
nos céus. Pois também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta
pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não
prevalecerão contra ela; dar-te-ei as chaves do reino dos céus; o que
ligares, pois, na terra será ligado nos céus, e o que desligares na
terra será desligado nos céus" (Mt 16,17-19)
(A todos os Apóstolos 'reunidos' junto com Pedro) "Em verdade vos
digo: Tudo quanto ligardes na terra será ligado no céu; e tudo
quanto desligardes na terra será desligado no céu. Ainda vos digo
mais: Se dois de vós na terra concordarem acerca de qualquer coisa
que pedirem, isso lhes será feito por meu Pai, que está nos céus.
Pois onde se acham dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu
no meio deles" (Mt 18,18-20)

Além disso, essa Sua presença entre os Apóstolos, fica mais clara e eficaz
ainda quando diz que "estarei convosco, todos os dias, até a consumação
dos séculos". É que bastaria ter dito "estarei convosco", mas acentua
acrescentando "todos os dias" e, ainda ratifica "até a consumação dos
séculos". Confirmando tudo isso, vai Marcos nos informar que "quem crer
(na pregação da Igreja) e for batizado será salvo, mas quem não crer será
condenado". Ora, quando Cristo afirma ser condenado quem não crê na
pregação é afirmar a infalibilidade da pregação e a eficácia da Assistência
do Espírito Santo, e quando o diz aos Apóstolos somente, di-lo à Igreja,
depositária do que ensinaram:

"E, aproximando-se Jesus, falou-lhes, dizendo: Foi-me dada toda a


autoridade no céu e na terra. Portanto ide, fazei discípulos de todas
as nações, batizando-os em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito
Santo; ensinando-os a observar todas as coisas que eu vos tenho
mandado; e eis que eu estou convosco todos os dias, até a
consumação dos séculos" (Mt 28,18-20)

"E disse-lhes: Ide por todo o mundo, e pregai o evangelho a toda


criatura. Quem crer e for batizado será salvo; mas quem não crer
será condenado" (Mc 16,15-16)

(Lc 24,27"E, começando por Moisés e por todos os profetas,


interpretou-lhes em todas as Escrituras o que a ele dizia respeito.
(...) '...era preciso que se cumprisse tudo o que está escrito sobre
mim na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos.' Então abriu-lhes a
mente para que entendessem as Escrituras" (Lc 24, 27.44-45)

"Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu
senhor; mas chamei-vos amigos, porque tudo quanto ouvi de meu
Pai vos dei a conhecer" (Jo 15,15).

Outro fator importante a observar é a da sucessão apostólica na Igreja,


para o exercício do mesmo múnus, com os mesmos dons apostólicos,
também ratificado na Escritura:

"Irmãos, convinha que se cumprisse a escritura que o Espírito Santo


predisse pela boca de Davi, acerca de Judas, que foi o guia daqueles
que prenderam a Jesus; pois ele era contado entre nós e teve parte
neste ministério. (...) É necessário, pois, que dos varões que
conviveram conosco todo o tempo em que o Senhor Jesus andou
entre nós, começando desde o batismo de João até o dia em que
dentre nós foi levado para cima, um deles se torne testemunha
conosco da sua ressurreição" (At 1,16-22).
Por outro lado, também São Paulo afirma que Tiago, Pedro e João são
"colunas da Igreja" (Gl 2,9). Ora, esse fato corrobora a existência de
hierarquia no Colégio Apostólico, até mesmo ao tempo de Cristo, eis que
somente eles foram testemunhas de alguns acontecimentos importantes
tais como a Ressurreição da filha de Jairo (Mc 5,37), a Transfiguração (Mc
9,2), a Agonia do Monte das Oliveiras (Mc 14,33), e recomendados ao
silêncio a respeito até a ressurreição (Mc 5,43; 9,9), o que evidencia o
motivo de serem considerados "colunas". Ambas, a sucessão e a
hierarquia, evidenciam a presença da sucessão apostólica caracterizando
a autenticidade do Colégio Apostólico Católico e do "depósito da fé":

"E, aproximando-se Jesus, falou-lhes, dizendo: Foi-me dada toda a


autoridade no céu e na terra. Portanto ide, fazei discípulos de todas
as nações, batizando-as em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito
Santo; ensinando-os a observar todas as coisas que eu vos ordenei;
e eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos
séculos" (Mt 28,19-20).

Outra observação que se deve fazer num começo de estudo da Bíblia é


com base na já mencionada coerência que deve ter tudo o que se deduz
com a totalidade dela, donde a necessidade de sintonia das conclusões
com todo o seu conteúdo. Sempre se buscará, por isso, confirmação na
própria Bíblia daquilo que se concluiu ou se encontrou, ou também no
magistério da Igreja, detentora da Tradição, a única interprete autorizada
por Cristo, como acima se viu.

E é bom nunca se perder de vista que a maioria dos escritos do Novo


Testamento, principalmente os Evangelhos, foram escritos para o uso de
pessoas que já conheciam todo o tema que abordam em seus mínimos
detalhes, não lhes sendo necessário esclarecimentos e explicações como
para nós, que desconhecemos os pormenores, os quais estão na Tradição
e Magistério da Igreja.

AUTO-AVALIAÇÃO

1. O que é a Bíblia?
2. Como seria a representação de Gênesis, capítulo 25, para se ler do versículo 1 até o
15, saltar para o 29 e ler até o 34, letra c?
3. A Bíblia é importante? Por quê?
4. É certo dizer que Jesus é Palavra? Por quê?
5. Existe alguma revelação nova nos dias atuais? Explique.
6. A Inspiração é faculdade ou dom de todas as pessoas? Explique.
7. Cada um pode interpretar autenticamente a Sagrada Escritura? Explique.
O que se entende por Tradição, Magistério e Assistência do Espírito Santo na Igreja?
Descreva-as e destaque as suas diferenças. Existe alguma relação entre a Escritura,
a Tradição e o Magistério da Igreja? Qual? Explique.

Bibliografia
Constituição Dogmática do Concílio do Vaticano II, "Dei Verbum".
Catecismo da Igreja Católica
Curso de Bíblia
Por José Haical Haddad

Capítulo 1

GÊNESIS
A Criação

1. A ORIGEM
O homem é sempre atormentado pela consciência que tem da inexorável
morte; morte, que é o término da existência, a revelar-lhe a vida; vida a
pulular em vários matizes e formas a revelar-lhe um ordenamento;
ordenamento inteligente a revelar-lhe a Criação; Criação a revelar-lhe o
Criador - DEUS:
"Sua realidade invisível - seu eterno poder e sua divindade - tornou-se inteligível,
desde a criação do mundo, através das criaturas..." (Rm 1,20).

A ORIGEM é um desafio à inteligência e a existência é um mistério ainda


não desvendado. O homem quer conhecer a origem de tudo e a finalidade
da existência. Vê que na natureza tudo é cíclico: o dia começa, atinge o seu
clímax e termina, para reiniciar de novo em outro dia, sucessivamente;
igualmente, as fases da lua; também, as estações do ano a anunciar em
cada primavera o reiniciar e a continuidade existencial: novos frutos, novas
ninhadas e novos seres. Tudo recomeça. Tudo lhe inspira um começo novo
e um fim a vista. Tudo lhe inspira um recomeço após a morte e sente o
anseio pela vida eterna. Assim como tudo termina, tudo deve ter um
começo. E então o procura, o começo de tudo e a própria origem. Tem a
esperança de que o conhecimento da origem de tudo venha a lhe revelar
para que existe: só quem sabe de onde vem sabe aonde vai, e a que se
destina. Busca então localizar as minúcias tanto físicas como cronológicas
da sua origem obscura. Também os contornos e detalhes que desconhece
da sua criação, origem e formação. Não só de si mesmo, mas de tudo o
mais que existe e o cerca. Mas, até hoje, só pôde conhecer alguns traços
ainda indecifráveis e complexos de seu pequenos e esparso percurso
histórico, e focalizado nas sucessões cronológicas da sua existência, que
se manifestam aqui e acolá, fossilizados e dispersos no mundo por onde
passa. A origem propriamente dita, real, permanece-lhe um mistério, um
enigma, não conseguindo atingi-la. No âmago de toda a dinâmica
existencial o homem é o mistério do homem: não sabe de onde veio e não
sabe aonde vai; e, não sabendo disto, nada sabe de si mesmo, nem
mesmo o que é.

Ao narrador bíblico, ao hagiógrafo, não existiu tal mistério insondável e nem


lhe preocuparam muitos detalhes e complexidades: para ele a origem e o
fim de tudo é DEUS, O CRIADOR DE TUDO O QUE EXISTE:
"No princípio, Deus criou o céu e a terra. Ora, a terra estava vazia e vaga, as trevas
cobriam o abismo. O Espírito de Deus pairava sobre as águas" (Gn 1,1-2).

Seus conhecimentos, "sua ciência", eram delimitados por aquilo, e somente


por aquilo que lhe informavam os sentidos nus. Não possuía telescópios
nem microscópios, desconhecia qualquer fenômeno físico, químico ou
bacteriológico, bem como desconhecia por completo toda e qualquer
conquista científica. E, com os parcos recursos de que dispunha, traçou a
linha de sua concepção humana da Obra de Deus, culturalmente
condicionada ao seu tempo. Nascia assim a primeira "teoria científica" da
origem de tudo que o envolvia, profundamente mesclada com a concepção
religiosa e doutrinária, condicionada à sua época e mentalidade. Por causa
disso torna-se sumamente injusto avaliar a sua teoria ou o seu
desenvolvimento com base nas conquistas modernas, exigindo dele
conhecimentos que não possuía. É indispensável um deslocar à sua cultura
para melhor compreendê-lo, separando-se ainda a verdade religiosa aí
mesclada por revelação e inspiração de Deus, já que ninguém presenciou a
Obra da Criação. Narra tudo com simplicidade e sem se deixar prender e
perder por mitos, superstições, fantasias ou lendas, apesar de estar tudo
paradoxalmente mesclado nela. Então, quando diz que "Deus criou o céu e
a terra", diz que "Deus criou tudo o que existe", já que era tudo o que
conhecia, todo o seu universo, o qual se resumia ao que seus sentidos lhe
informavam. Não conhecia nem poderia conhecer as galáxias ou outros
astros do sistema solar ou do universo astronômico.

2. A CRIAÇÃO
Para ele nada do que existe, existe sem Deus; no princípio, tudo foi criado
por Deus e caminha inexoravelmente conforme os desígnios de Deus, sem
mistérios e sem complexidades, com a simplicidade inspirada por uma fé
profunda. Diz apenas e vigorosamente que tudo começou a partir do
impulso propulsor e ordenador da Palavra de Deus, mostrando-O assim
onipotente, destacado da Criação, não se confundindo com Ela:
"Deus disse: ‘Haja luz’ e houve luz" (Gn 1,3).

Deus começou a criar afastando as trevas e criando a luz, para poder ver a
obra em andamento e aparecer como estava ela sendo feita, em virtude da
sua concepção rudimentar e ainda antropomórfica. Quando amanhece,
parece-nos à primeira vista que a "luz do sol" precede a "luz do dia", como
se distinguissem. Sabemos que não, a "luz do dia" é a "luz do sol", mas ao
narrador, que não o sabia, havia a distinção tal como se percebe a olhos
nus, sem instrumentos, e sem o menor conhecimento científico. Não sabia
ele, nem poderia saber, que a luz do sol leva aproximadamente oito
minutos para atingir a terra, em virtude do que a ele pareciam coexistir
ambas, distintas e separadas. Por isso, na sua concepção, Deus a cria
antes de criar o sol, qual seja, melhor dizendo, independentemente da
criação dele. Criou "a luz" erradicando "as trevas" (1,2), facilitando assim a
explosão da vida e do calor desenvolvida pelo "Espírito de Deus" (1,2). Daí
então, a Criação se desdobra vertiginosamente, em seqüência
culturalmente lógica para o narrador e em ordem sistemática delimitada em
espaços uniformes de tempo, "em dias", conforme Deus pronunciava "Sua
Palavra" ("...e Deus disse...", "...e Deus chamou"...):

"Deus chamou à luz ‘dia’ e às trevas ‘noite’. Houve uma tarde e uma manhã:
primeiro dia" (Gn 1,5).

O mundo de então era concebido como um grande volume cheio de água,


onde tudo já se encontrava confusamente disposto, que Deus vai formando
e ordenando, tal como se fora um "feto numa placenta":

"Deus disse: ‘Haja um firmamento no meio das águas e assim se fez. Deus fez o
firmamento, que separou as águas que estão sob o firmamento das águas que estão
acima do firmamento, e Deus chamou ao firmamento ‘céu’. Houve uma tarde e uma
manhã: segundo dia" (Gn 1,6-8).

Desconhecendo as leis físicas da evaporação da água, da formação das


chuvas, e vendo-as cair, supunha que tanto havia águas no céu como nos
mares, tal como se "vê" a olho nu, único instrumento disponível:

"Deus disse: ‘Que as águas que estão sob o céu se reunam numa só massa e que
apareça o continente’, e assim se fez. Deus chamou ao continente ‘terra’ e à massa
das águas ‘mares’, e Deus viu que isso era bom" (Gn 1,9-10).

Delimitou Deus a terra e desse modo separou-a dos mares. Estavam assim
preparados os ambientes para a criação, geração e propagação dos
vegetais, ervas e frutos, com o que se daria a erradicação da aridez da
terra virgem:

"Deus disse: ‘Que a terra verdeje de verdura: ervas que dêem semente e árvores
frutíferas que dêem sobre a terra, segundo a sua espécie, frutos contendo a sua
semente’, e assim se fez. A terra produziu verdura: ervas que dão semente segundo
a sua espécie, árvores que dão, segundo sua espécie, frutos contendo sua semente, e
Deus viu que isso era bom. Houve uma tarde e uma manhã: terceiro dia" (Gn 1,11-
13).
A vegetação, as ervas e as árvores que cobrem a superfície da terra não
são imanentismos dela, mas gerados dela e nela pela Palavra de Deus,
fonte de tudo o que existe, nada tendo vindo à existência sem que Ele
chamasse:

"Deus disse: ‘Que haja luzeiros no firmamento do céu para separar o dia e a noite;
que eles sirvam de sinais, tanto para as festas quanto para os dias e anos; que sejam
luzeiros no firmamento do céu para iluminar a terra’, e assim se fez. Deus fez os
dois luzeiros maiores: o grande luzeiro para governar o dia e o pequeno luzeiro para
governar a noite, e as estrelas. Deus os colocou no firmamento do céu para iluminar
a terra, para governarem o dia e a noite, para separarem a luz e as trevas, e Deus viu
que isso era bom. Houve uma tarde e uma manhã: quarto dia" (Gn 1,14-19).

Aquela luz já criada é depositada em receptáculos apropriados a sua


distribuição durante a noite e durante o dia. Não são os luzeiros seres
absolutos a ponto de se tornarem até mesmo em objetos de adoração por
outros povos, eis que são criaturas advindas da Criação de Deus.
Receberam de Deus a missão de comando e direção da luz, principalmente
para as funções fundamentais da vida, indispensáveis à existência:

"Deus disse: ‘Fervilhem as águas um fervilhar de seres vivos e que as aves voem
acima da terra, diante do firmamento do céu’, e assim se fez. Deus criou as grandes
serpentes do mar e todos os seres vivos que rastejam e que fervilham nas águas
segundo sua espécie, e Deus viu que isso era bom" (Gn 1,20-21).

Não bastava criar os seres vivos. Era preciso dotá-los de aptidão para a
propagação e perpetuação da espécie. Deus então os fecunda, tornando-os
férteis, capazes de se reproduzirem. É a bênção:

"Deus os abençoou e disse: ‘Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a água dos


mares, e que as aves se multipliquem sobre a terra’. Houve uma tarde e uma manhã:
quinto dia" (Gn 1,22-23).

Quando Deus abençoa, fecunda, e é de Deus que os seres recebem a vida


e a fecundidade, não da natureza ou do mundo: as vegetações, as ervas e
as árvores frutíferas tiveram por fonte criadora o próprio Deus. Ele lhes
injeta a faculdade de viver e procriar como aptidão imanente a cada uma e
a toda espécie viva, estendendo a bênção à própria terra e ao demais seres
vivos:

"Deus disse: ‘Que a terra produza seres vivos segundo a sua espécie: animais
domésticos, répteis e feras segundo sua espécie’, e assim se fez. Deus fez as feras
segundo sua espécie, os animais domésticos segundo sua espécie e todos os répteis
do solo segundo sua espécie, e Deus viu que isso era bom" (Gn 1,24-25).

E, a Criação prossegue inexorável, aperfeiçoando-se sempre mais e mais,


em cada novo estádio ou etapa, em cada dia, três obras por dia,
caminhando em direção a sua obra prima: a Criação do Homem, o ápice
dela, com o que será ultimada e coroada. É de se notar que vários indícios
evidenciam a forma poética dessa narração, quais sejam, dentre eles, a
repetição sistemática de várias expressões, tais como "Deus disse", "Deus
viu que era bom", "Houve tarde e manhã: ...dia", os números com sua
significação peculiar na criação em seis dias, nas três obras por dia, no
sétimo dia, e a forma ritmada de todo o contexto. Não houve testemunhas
nem a escrita havia sido inventada ainda. Daí compreender-se que essa
narração, para se manter viva na memória, era assim composta em versos,
em virtude de ser declamada sistematicamente, método ainda usado no
Oriente para a retenção e divulgação de acontecimentos importantes. Todo
o Velho Testamento está repleta de outras poesias, como forma de
celebração de fatos destacados na História da Salvação (Gn 49; Ex 15; Nm
23; 24; Dt 32; 33; Jz 5; 1 Sm 2,1-10; Os Salmos; etc.); e, no Novo
Testamento destacam-se dentre muitos trechos dos rituais cristãos dos
primórdios, o Magnificat de Maria (Lc 1,46-55), o Benedictus (Lc 1,67-79)
etc..

Em toda a narração transparece a onipotência e onisciência de Deus, nada


criando ao acaso, mas inteligentemente e obedecendo a uma ordem
determinada e coerentemente disposta com vistas a um fim deliberado: A
Criação do Homem
.

3. O HOMEM
No relato bíblico da Criação registram-se as operações da Palavra de Deus
enquanto criava. O "Disse Deus" evidencia o impulso inicial criador e a
expressão "E Deus viu que era bom" caracteriza cada novo estágio
completo, criado. No segundo dia tal expressão não aparece, eis que
aquela operação só será completada no princípio do terceiro dia, ocasião
em que se completará o mecanismo das águas e a delimitação com a terra
seca, circunscrevendo-a.

Depreende-se da própria narrativa que tudo aquilo que Deus faz é perfeito,
principalmente por ser de sua própria natureza e essência fazer o que faz
perfeito. Descabe, portanto, a expressão "viu que era bom"
sistematicamente repetida à perfeição da obra que Deus cria, ainda mais
quando ela não aparece quando da criação do Homem, sua Obra-Prima:

"Deus disse: ‘Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança, e que
eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas
as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra" (Gn 1,26).

Aí está: Deus cria o Homem "à sua imagem e semelhança" e como tal
tendo poder sobre toda a Criação:
"Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou, homem e
mulher os criou. Deus os abençoou e lhes disse: ‘Sede fecundos, multiplicai-vos,
enchei a terra e submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos
os animais que rastejam sobre a terra’. Deus disse: ‘Eu vos dou todas as ervas que
dêem semente, que estão sobre toda a superfície da terra, e todas as árvores que dão
frutos que dêem semente: isso será vosso alimento. A todas as feras, a todas as aves
do céu, a tudo o que rasteja sobre a terra e que é animado de vida, eu dou como
alimento toda a verdura das plantas’, e assim se fez. Deus viu tudo o que tinha feito:
e era muito bom. Houve uma tarde e um manhã: sexto dia" (Gn 1,27-31).

Num só lance o narrador finaliza o último dia de Criação, o sexto dia. Nele
criou Deus "os animais domésticos, répteis e feras segundo a sua espécie"
e "Deus viu que era bom". Porém, após criar o Homem não diz o mesmo,
"não viu que era bom"; mas, após cuidar da alimentação do que foi criado
nesse último dia, "Deus viu tudo o que tinha feito: e tudo era muito
bom". Só se pode concluir daí que Deus verificava se tudo "era bom" para
o Homem, para quem Deus tudo criava. Um comparação facilitará a
compreensão: é tal como sucede a um profissional, ao selecionar material e
ferramentas para fazer uma mesa de madeira. Ao selecioná-los, um a um,
vai dizendo de si para si mesmo ser bom o que separa, bom para a
finalidade que busca, - a construção da mesa de madeira: separa o martelo
e ao separá-lo "vê que isso era bom"; separa os pregos e ao fazê-lo "vê
que eram bons"; separa a madeira para os pés e "vê que era boa"; separa
as tábuas do tampo e da mesma forma "vê que eram boas"; tudo o que
separou era bom para a mesa que queria construir; e, ao concluí-la mira
toda a mesa pronta e "vê que ficou muito boa". É essa a imagem que se
irradia de toda a narração em análise.

A expressão "e Deus viu que era bom" (1,4.10.12.18.21.25 e 31) traduz
que tudo foi criado para o homem, a ele amoldado e entregue servindo-lhe
até mesmo de alimento, cumprindo-lhe seguir o planejamento em função
ordenadora, sempre em vista da finalidade de tudo e de cada coisa criada.
O Homem é um auxiliar de Deus, um consorte com função executiva, feito
para conviver com Deus, sua Imagem, sucedendo-O e secundando-O. Veio
de Deus, REFLETE DEUS, devendo com Ele conviver e compartilhar, qual
seja, vivendo por, com e para Deus. Por ser Imagem de Deus pode
conhecê-lO, bem como as Suas leis.

Visivelmente Deus trata o homem desde a sua criação com carinho todo
especial, expresso pelo ato de amoldá-lo Ele mesmo com as Suas
Própria Mãos, com arte e afeto especiais, como um oleiro molda
amorosamente no barro o objeto que cria:

"Então Iahweh Deus modelou o homem com a argila do solo, insuflou em suas
narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente" (Gn 2,7).
O Homem recebe de Deus o "hálito de vida e torna-se um ser vivente",
trazendo em si a vida advinda do íntimo de Deus: o Homem tem Vida
Divina em sua natureza de barro, em sua matéria. O Homem é a Matéria
Divinizada. Nasceu diretamente de Deus, é Imagem de Deus, "reflete
Deus", tal como uma imagem reflete aquilo que representa, tal como o
reflexo de um espelho. O Homem, neste estágio da Criação, se identifica a
Deus pelo domínio sobre ela e reflete a Santidade de Deus por sua
integridade pessoal, por isso a "semelhança" e a "imagem".

Para o hagiógrafo, sem Deus o Homem nada é. Não passa de um viajante


que trafega sem direção, sem caminho certo, um navegante que navega
sem rumo. Sem Deus o Homem não encontra o seu trajeto, não parte nem
chega. Perde-se em sua realidade existencial, sem finalidade, desligado de
si mesmo por não se encontrar em Deus, de onde veio, para os fins e
desígnios que lhe foram traçados por Ele. Ocupa um lugar privilegiado no
quadro existencial da Criação e sem Deus fica deslocado
gravitacionalmente, não girando em torno do eixo certo. Só em Deus pode
se encontrar e se orientar, por ter vindo diretamente dEle. Também, ao
narrador não ficou encoberto que na natureza criada existem leis
ordenadoras das coisas e dos seres criados. Porém, necessitam elas da
ação inteligente e catalisadora do Homem para melhor se ordenarem ao
seu fim específico e desdobrarem melhor as suas possibilidades ou
potencialidades naturais. A Obra da Criação traz em si mesma o seu
próprio ordenamento com a fixação de leis próprias, eficazes, imanentes.
Mas, centralizam-se no Homem, cujo desenvolvimento supõe a aptidão de
ocupar o seu lugar no quadro vivo. É que tudo tem uma função peculiar,
obedece determinações específicas e satisfaz até mesmo um conjunto
sistemático e dinâmico. Tudo é segundo a finalidade material e orgânica,
total e parcial, de toda a construção impressa, ordenada e governada por
Deus. O Homem iria conduzir tudo a uma eficácia ideal, mediando entre as
coisas, as criaturas, e Deus. O Homem que é matéria e ao mesmo tempo
sopro de Deus seria o encontro de ambos. A expressão divina da matéria,
eis o Homem, "imagem e semelhança de Deus" e, também, "barro", "pó". O
Homem é a divinização da matéria criada, a expressão máxima da Criação,
sem o quê, a Criação para nada serviria, sem nenhuma finalidade. É no
Homem que a própria natureza das coisas se encontra consigo mesma e se
realiza em plenitude material.

Criação que é uma dádiva de Deus, um transbordar do amor em ato divino.


Ato criador, dom que se irradia em matizes infindos; uma dinâmica que faz
acontecer, desenvolver e ser a vida pululante e bela; uma realidade que se
fundamenta na intimidade de Deus e explode no Homem a "submeter e
dominar" (Gn 1,28) a terra e a todos os seres criados, a tudo ordenando
conforme as leis que lhe são próprias. Leis que descobre como emulsão
das próprias coisas e seres criados. É do Homem o universo todo, assim
Deus o destinou. Não apenas isso. Estabeleceu também um modo
particular de convívio, um relacionamento específico, especial, chamando-o
a uma vida mais íntima e partilhada familiarmente.

4. DEUS E O HOMEM
Desde a origem estabeleceu Deus um distinto e profundo relacionamento, e
singular convívio, com o Homem. Manifesta-se desde então ora como
estreita colaboração mútua ora como profunda comunhão de vidas e
intimidade bem familiar. Em qualquer caso, porém, ocupa o Homem uma
posição ímpar de colaborador e coordenador da Obra de Deus, pelo que se
pode dizer ser ele o catalisador da Criação. É que apesar da perfeição que
coroa cada ato criativo particular ou conjunto de Deus, há sempre presente
uma demanda nas coisas criadas, a exigir um ordenador comum e
inteligente - O HOMEM, "imagem e semelhança de deus" (Gn 1,26). É o
caso da mescla em que se nos apresenta a natureza: tudo misturado e
esparso, gêneros e espécies, a compor determinado ambiente. Cabe ao
Homem separar, ordenar e semear conforme o consumo, separando,
ordenando e semeando por gênero e espécie, função essa bem destacada
na ocasião:
"No tempo em que Iahweh Deus fez a terra e o céu, não havia ainda nenhum arbusto
dos campos sobre a terra e nenhuma erva dos campos tinha ainda crescido, porque
Iahweh Deus não tinha feito chover sobre a terra e não havia homem para cultivar o
solo" (Gn 2,4-6).

Deus tudo criara com aptidão imanente para germinar e propagar-se. Além
disso, oferecia a chuva, cabendo ao Homem o cultivo do solo. Estabeleceu-
se então entre ambos, Deus e o Homem, verdadeiro consórcio de tarefas,
um "co-múnus", uma comunhão num primeiro relacionamento: Deus
propiciava a chuva, e o Homem oferecia o seu trabalho. Ao Homem cabia
cultivar o solo, eis um dos motivos imediatos da sua Criação, e ainda o
deslocamento dele para outra situação em nova dimensão ou novo estado
de vinculação relacional com Deus:

"Então Iahweh Deus modelou o homem com a argila do solo, insuflou em sua
narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente." / "Iahweh Deus
plantou um Jardim em Éden, no oriente, e aí colocou o homem que modelara...
Iahweh Deus tomou o homem e o colocou no Jardim do Éden para o cultivar e
guardar" (Gn 2,7-8.15).

É uma maneira diferente de dizer a mesma coisa já dita com outras


palavras: Ao "insuflar em suas narinas o hálito de vida" Deus cria o Homem
"a sua imagem e semelhança" e ao "colocá-lo no Jardim que Ele mesmo
plantara" modifica a sua situação e o distingue dos outros seres já criados.
Criando o Homem para cultivar o solo, não havia a necessidade de lhe
preparar um local especial para aí o colocar, a não ser que se pretenda
evidenciar a existência de um relacionamento especial preparado pelo
próprio Criador. E, tendo sido preparado e ordenado pelo próprio Deus, só
pode ser uma maior aproximação de ambos, Deus e o Homem, o que traz
para o último uma profunda modificação em seu estado, elevando-o a um
relacionamento sobrenatural. Pode-se vislumbrar sem esforço a existência
de dois campos de relacionamento entre Deus e o Homem, quais sejam:

 o primeiro é aquele em que Deus fornece a chuva e o homem


fornece seu trabalho no cultivo da terra (Gn 2,5-6); e,
 o segundo, onde Ele mesmo planta um "jardim" e nele
"coloca" o Homem para dele "cuidar" (Gn 2,7-15).

Há fundamental diferença entre ambos, eis que no último aprofunda-se a


vinculação entre Deus e o Homem, colocado num jardim especialmente
preparado, com a finalidade de "cultivá-lo e guardá-lo" (Gn 2,15). É como
se fossem dois mundos que se destinavam ao cultivo do homem. Neste
último Deus "passeava à brisa do dia" (Gn 3,8), caracterizando-se com
essa sua "presença física" a elevação do estado do Homem a uma
verdadeira comunhão de vidas entre ambos, fruto de ato exclusivo de Deus.
O Homem de então participa da Criação pelo trabalho e da vida divina pela
comunhão sobrenatural com Deus. Estabelece-se assim, desde o início, um
convívio mais dependente e íntimo, uma profunda familiaridade. Essa
comunhão de vidas foi e é ainda o ápice de toda a Criação, percebendo-se
já o grande privilégio conferido ao Homem, tratado e considerado em
ambas as dimensões como o único centro gravitacional da atenção
generosa, amorosa e objetiva de Deus. Por causa disso é que Adão "dá o
nome" a todas as criaturas (Gn 2,20), eis que nomear biblicamente significa
ser dono:
"... chamei-te pelo teu nome: meu tu és" (Is 43,1).

Desde essa integração e relacionamento comum apresentaram-se os


vários elementos indissociáveis e que compõem a natureza humana e se
destinam à consecução de um desenrolar antecipadamente elaborado,
planejado e estabelecido, apesar de profundamente livre. Uma espécie de
plano geral, tal como uma obra "inteligente e pensada", elaborado pelo
próprio Deus, no qual o Homem se torna participante ativo e consciente.
Goza então da glória e da felicidade de uma vida em estreita comunhão,
intimidade e familiaridade pessoais com o Criador. Estabelece Deus com o
Homem, pessoa a pessoa, um "consórcio de tarefas" (Gn 2,5-6) e uma
"comunhão de vidas" (Gn 2,7-15).

A partir de então Deus sempre quer manter viva e dinâmica essa


intimidade, familiaridade e comunhão de amor com o Homem, sua Criação
predileta, a quem destinou toda a Criação:

"Deus abençoou-os e lhes disse: ‘Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e


submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que
rastejam sobre a terra" (Gn 1,28).
Recebe o Homem diretamente de Deus toda a Criação. O tom imperativo
da entrega denota toda uma dinâmica em que se fundará a atividade
humana e a íntima relação entre Deus e toda a humanidade. È a linha de
toda a História. Este desígnio de Deus é o mesmo até hoje, e será o
mesmo até o fim dos tempos, na culminação de toda a Obra. Nada, nem
mesmo qualquer ato humano, pode alterar ou perturbar a realização dos
Planos de Deus, em si; pode perturbar apenas o recebimento dos
benefícios, retardando-os apenas quanto ao próprio Homem e à Criação,
na História: A Criação é um ato irreversível de Deus.

5. O MAL
Há um fato contraditório que aparece inesperadamente na História da
Criação e retrata uma presença contumaz em toda a História Humana, bem
como na vida particular ou social de cada um: é a presença do mal. Da
mesma forma que a consciência da morte revela a vida, a consciência do
mal revela o bem. Busca o homem ansiosamente conhecer e compreender
a causa, a natureza e a finalidade do mal. Infrutiferamente, porém. Busca e
quer erradicá-lo, ao encontro de um bem total. Para isso precisa conhecer o
bem e o mal, estabelecendo as suas causas, suas naturezas e seus fins. O
mal é a expressão do sofrimento, da dor e da morte, em contraste com o
bem significado na felicidade, na paz e na vida. O mal é a ineficácia do
bem, o desordenamento da Criação e sua conseqüente esterilidade. É a
volta ao estado anterior à ação criadora de Deus, é o deserto, o caos:
"... - ele é Deus, o que formou a terra e a fez, ele a estabeleceu; não a criou como
um deserto, antes formou-a para ser habitada" (Is 45,18).

Para o hagiógrafo, da mesma forma que com a origem, o problema é


simples e teve como fonte a atitude do Homem em face ao seu
relacionamento com Deus. Relacionamento elevado à intimidade,
familiaridade e comunhão que em determinado momento sujeitou o Homem
à dependência de um preceito. Melhor seria dizer o "aviso" de que
determinada forma de comportamento teria como conseqüência o advento
da "morte". Foi no instante em que Deus dotou o Homem do "livre-arbítrio"
e o instituiu. Mostrou-lhe uma situação e deixou-a a sua livre opção,
mostrando-lhe o que lhe adviria caso não a observasse. Deus criou um ser
livre, não um robô. Por inexistir um tom imperativo positivo vê-se que não
se trata de uma ordem, e o "podes" bem como o uso de uma negativa
amenizam e facilitam por demais a opção, como se fosse dito que "a morte
vai vigorar se você a facultar":

"Podes comer de todas as árvores do jardim. Mas da árvore do conhecimento do


bem e do mal não comerás, porque no dia em que dela comeres terás que morrer"
(Gn 2,16-17).
Analisando melhor o trecho vê-se que não se trata de uma "árvore do bem
e do mal", mas de uma "árvore do CONHECIMENTO do bem e do mal".
O "podes" denota a plena liberdade de escolha do Homem; também, a
"árvore" caracteriza uma "fonte", a origem onde se forma o fruto, qual seja,
a "conseqüência" anunciada: A MORTE. Depositava-se só e
exclusivamente nas mãos do Homem a possibilidade da existência da
morte, com todas as suas conseqüências. E, o que é a morte e o que ela
representa? Para nós, que já vivemos no seu império, a experiência nos
dita que é o fim de uma existência física. Mas, qual seria o significado dela
para aquele primeiro Homem, considerando-se o aspecto geral antes e
depois da sua presença na Criação? Para aquele primeiro Homem que a
desconhecia, como lhe teria soado, ou como lhe fora explicada, já que sem
conhecimento prévio inexiste a responsabilidade pessoal? Como lhe seria a
Criação sem ela? Voltando-se abstratamente àquele tempo vejamos como
se dariam os fatos sem a morte. Ora, inexistindo a morte ninguém morreria.
Ninguém perderia a vida por doença, por causas fortuitas, de fome ou por
qualquer outra causa. Não haveria a necessidade da luta pela
sobrevivência, a disputa, as contendas, o ciúme, a inveja e outros males
não apareceriam, bem como a infelicidade humana de tudo isso decorrente,
e o sofrimento.

Percebe-se num relance que a morte é a convergência de todos os males,


e ao homem foi dada a oportunidade de acolhê-la ou rechaçá-la. Só se
pode dizer que violou o aviso e a trouxe, introduziu-a na Criação que a
desconhecia. Somente onde há a possibilidade de escolha consciente
aparece a liberdade e somente onde há a liberdade pode haver um
relacionamento de duas ou mais pessoas, em íntima comunhão de vidas e
de tarefas. O Homem é "imagem e semelhança de Deus", não um
teleguiado seu, donde ser necessariamente responsável e consciente de
seus atos. E, para a eficácia dessa responsabilidade e consciência, deveria
ter tido o mais amplo e pleno conhecimento de tudo, e de todas as
conseqüências de sua livre escolha.
A simbologia de toda a narração nada mais revela que tudo isso, bem como
essa opção livre a qual somente se percebe num vislumbre, quase intuitivo,
o que evidencia a inteligência sagaz do narrador, procurando traduzir para
seus semelhantes fatos que não foram presenciados por ninguém. A
começar pelo nome dela: a "árvore do conhecimento do bem e do mal", que
traduz numa conotação especial o esforço e a habilidade com que impede
qualquer vinculação de Deus com a existência do mal. Coloca-a como a
fonte ("árvore") de uma experiência sensível, que passará a ser de seu
"conhecimento", a "morte". Principalmente porque ali no Paraíso o Homem
só "conhecia" o BEM, e ao fazer ingressar no mundo a "morte",
"conheceria" a diferença entre aquele bem de que gozava e o mal que
adviria da morte, agora já possível. É a figura do "conhecer" bíblico, fruto de
uma percepção sensível em si mesmo. Assim exprime que Deus não é o
autor do mal, mas apenas e tão somente do bem.
Deus dispusera ali também no Éden a "árvore da vida", de que foi o
Homem afastado ao optar pela "do conhecimento do bem e do mal", que
lhe seria um dom perene (Gn 3,22). O Homem, por algum motivo que foge
ao nosso alcance, preferiu o caminho da dor, do sofrimento e da morte ao
da Vida Eterna, assim de imediato e num relance. "Conhecemos" o
resultado dessa infeliz opção, cuja triste iniciativa é atribuída à mulher,
EVA. A causa vem colorida com a expressão tentadora de que "sereis
como deuses" (Gn 3,5):

"A serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos, que Iahweh Deus
tinha feito. Ela disse à mulher: ‘Então Deus disse: Vós não podeis comer de todas as
árvores do Jardim’? A mulher respondeu à serpente: ‘Nós podemos comer do fruto
das árvores do Jardim. Mas do fruto da árvore que está no meio do Jardim, Deus
disse: Dele não comereis, nele não tocareis, a fim de não morrer’. A serpente disse
então à mulher: ‘Não, não morrereis! Mas Deus sabe que, no dia em que dele
comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no
mal" (Gn 3,1-5).

Alguns detalhes dessa narrativa merecem uma análise mais elucidativa, por
causa da farta simbologia empregada. Em primeiro lugar, em virtude da
responsabilidade do Homem pela "guarda" do jardim, a serpente, por ser "o
mais astuto dos animais do campo", não poderia estar ali. Não se pode
culpar apenas a serpente pela queda, eis que a sua responsabilidade se
prende ao fato de dar asas à inclinação humana já alojada no íntimo de
Eva. Vê-se isso da facilidade de íntimo colóquio entre ela e a mulher, bem
como da resposta que esta lhe dá em seguida, já bem reforçada com a
expressão que grifamos "nele não tocareis", que não constou do aviso ou
conselho de Deus. Deus não lhes dissera que "não a tocassem"! Eva
demonstra então seu anseio mais íntimo, qual seja, a inclinação já atuante
no seu "coração" de provar o fruto, a que resistira até aquele momento. A
astúcia da serpente está em ter percebido a tentação a que ela estava se
sujeitando e estimulado a prática do ato vedado com uma alternativa falsa,
uma mentira, de que adviria a grande recompensa de "sereis como
deuses"! Tanto é assim que imediatamente os efeitos da indução
aparecem em Eva:

"A mulher viu que a árvore era boa ao apetite e formosa à vista, e que era, esta
árvore, desejável para adquirir discernimento. Tomou-lhe do fruto e comeu. Deu-o a
seu marido também, e ele comeu" (Gn 3,6).

A conseqüência do ato não tardou, infiltrando-se a morte como um dos


elementos integrantes do mundo criado, por ato de livre opção e
responsabilidade do Homem. Todos os demais imperativos impostos (Gn
1,28; 3,16.18-19) até mesmo à própria natureza (Gn 3,17-18), não traziam
em si mesmos conseqüências advindas de sua violação ou
descumprimento como aqui. Interessante que nenhum deles depende da
vontade humana para se formarem, ou se cumprirem, ou se manifestarem,
ou se concretizarem; e, apesar da rebeldia ocorrida permaneceram ainda
integrados à natureza do Homem, cumprindo a sua função. O Homem
rompeu com Deus; mas, Deus se manteve o mesmo, não rompendo seus
desígnios para o Homem, e, apesar de todas as funções humanas sofrerem
a deformação advinda da perda do centro gravitacional, pelo mau uso da
liberdade que lhes dera, nem por isso a retira. O Homem continua sendo
objeto de cuidados de Deus:

"Iahweh Deus fez para o homem e sua mulher túnicas de pele, e os vestiu" (Gn
3,21).

Deus nada modifica! Toda a estrutura fundamental da Criação permaneceu


em si intocável, se bem que as maldições subseqüentes à serpente e à
terra acarretam sério descontrole e desequilíbrio advindos do rompimento
pelo Homem. Quando o narrador declina as maldições nada mais faz que
significar uma imensa limitação ao controle absoluto do Homem (Gn 3,14-
19). A esse ato de rompimento do Homem com os desígnios de Deus é que
se denomina PECADO ORIGINAL, por ter sido a "árvore", a "fonte", a
"origem" de todos os males e de todos os outros pecados, ou causa
principal. Percebe-se facilmente que todo o desequilíbrio da natureza e até
mesmo as diferenças climáticas têm a sua "origem" e a sua causa naquele
"pecado". Também por ele toda a natureza humana, trazendo sérias
conseqüências como a guerra, o terrorismo, o assalto, as rixas, as
bebedeiras, o sexualismo desordenado, as doenças etc.. Por causa da
maldição da terra, até mesmo as diferenças climáticas, chovendo
copiosamente em algumas regiões e não chovendo de forma alguma em
outras, todo e qualquer desequilíbrio é fruto do primeiro ato livremente
praticado pelo Homem, o ato de rompimento com Deus, dando assim livre
curso à morte. Para que ela atuasse era necessário que isso acontecesse,
e aconteceu.

6. O PLANO DE DEUS, COMO FICA?

Aquele desígnio de Deus em estabelecer com o Homem uma vida íntima e


em comunhão plena não se arrefece, mas, sofre o Homem desde então as
conseqüências de um terrível retardamento e enormes dificuldades, antes
inexistentes. O desejo sobrenatural de Deus de viver em íntima e
consorciada comunhão de vidas com o Homem não sofreu alteração.
Manifesta-se sobremaneira na visão sobrenatural da queda havida e antes
dela na própria estrutura do Paraíso. O Éden, em sua simplicidade
estrutural, é a expressão dessa íntima relação buscada, projetando-se pela
presença de Deus nele:
"Eles ouviram o passo de Iahweh Deus que passeava no jardim, à brisa do dia" (Gn
3,8),
Deus "passeava" no Paraíso que fora entregue a sua criatura predileta,
como um Pai passeia familiarmente no jardim da casa de seu filho
primogênito. O Homem que fora colocado no Jardim do Éden, plantado pelo
mesmo Deus, com isso significando a íntima familiaridade a que fora
destinado e elevado, é dele expulso, significando assim a perda de toda a
familiaridade e de tudo, com a restituição ao estado anterior:

"E Iahweh Deus o expulsou do jardim do Éden para cultivar o solo de onde fora
tirado" (Gn 3,23).

Apesar de desde então ter sido desprovido da Vida em familiaridade com


Deus, da Vida em Graça, Deus não destruiu o "jardim", e "os querubins e a
chama fulgurante" ali dispostos se destinaram exclusivamente "a guardar o
caminho da árvore da vida" (Gn 3,24), para que o homem "não viva para
sempre" (Gn 3,22). Assim afastado perde o acesso imediato à vida eterna,
mas não fica privado dela para sempre tal como fora destinado, pois não
fora destruído o local onde estava. Fora dele nasceriam todos os
descendentes de Adão e Eva, o que evidencia "a conseqüência
propriamente dita do Pecado Original", nascendo todos os seres humanos a
partir de então desprovidos da intimidade e familiaridade com Deus, da
"Vida em Graça", correspondente ao privilégio perdido por uma escolha e
culpa exclusiva do próprio Homem.

O que não se pode pretender é que com essa Queda teria havido o
rompimento de toda e qualquer relação entre Deus e o Homem, selando-se
a sorte humana no que vem nas maldições advindas:

"Porque escutaste a voz de tua mulher e comeste da árvore que eu te proibira de


comer, maldito é o solo por causa de ti! Com sofrimento dele te nutrirás todos os
dias de tua vida. Ele produzirá para ti espinhos e cardos e comerás a erva dos
campos. Com o suor de teu rosto comerás o teu pão até que retornes ao solo, pois
dele foste tirado. Pois tu és pó e ao pó tornarás" (GN 3,17-19).

A atitude do Homem, além do rompimento de sua intimidade com o Criador,


causa também o desequilíbrio e a desarmonia de toda a Criação, em cuja
maldição se exprime a que ficou reduzida daí em diante. Não poderia ser
amaldiçoado o Homem já abençoado anteriormente, mas o seu ato vai
causar a esterilidade de toda a Criação, impedindo que a terra
correspondesse ao que dela deveria advir, não houvesse acontecido o
pecado. Torna o seu trabalho infrutífero, cansativo e penoso, negando-lhe
a terra aquilo que produziria inexistindo a maldição. Colhe daí em diante o
que plantou com o seu ato.

Porém, não ficaria o Homem definitivamente privado da possibilidade de


Vida Sobrenatural a que fora elevado, qual seja, a Vida em Íntima
Comunhão e Familiaridade com Deus. O Criador não muda os seus
desígnios e não teria razão de ser nem poderia ser outro o sentido de suas
palavras à serpente, anunciando-lhe a sua derrota final:

"Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a descendência dela.


Ela te esmagará a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar" (Gn 3,15).

Nessas palavras está o germe de toda a dinâmica salvífica a que fica


condicionada a situação do Homem, que por si só não poderá reencontrar o
caminho de volta, nem restabelecer o relacionamento rompido, bem como a
Criação toda. Deus não muda, não se altera, nem se deixa abalar por um
ato humano. Caso o ato humano tivesse o condão de alterar o Desígnio de
Deus, ou se o Criador tivesse mudado ou modificado seu relacionamento
com o Homem, esse Protoevangelho não poderia ter sido proferido. Deus
continua cuidando do Homem:

"Iahweh Deus fez para o homem e sua mulher túnicas de pele, e os vestiu" (Gn
3,21).

"Iahweh Deus ... os vestiu", como a indicar que não modificara seus
planos para a sua criatura predileta, e assim agasalhados e protegidos pelo
próprio Deus, são reconduzidos ao antigo consórcio de tarefas, agora num
mundo cheio do mal que nele semearam:

"E Iahweh Deus o expulsou o Jardim do Éden, para cultivar o solo de onde fora
tirado" (Gn 3,23).

7. O SÁBADO

O escritor bíblico ao idealizar os acontecimentos do passado mesclou-os


com a cultura de então, levando para a origem ou para a Criação as
instituições vigentes no seu tempo, ai localizando-as, tal como que
justificando-as. É o caso do SÁBADO, como é conhecido o sétimo dia da
semana. Com base no que já vimos podemos compreender o significado
dado originariamente a ele, e qual o seu sentido religioso:
"Assim foram terminados o céu e a terra e todo o seu exército. E no sétimo dia Deus
deu por terminada a obra por ele feita; e no sétimo dia CESSOU DE TODA A
OBRA QUE HAVIA FEITO; e, por isso, DEUS ABENÇOOU O SÉTIMO DIA E
O SANTIFICOU, porque nele cessou de toda a obra que, ele, CRIANDO, tinha
feito. Esta é a geração do céu e da terra na sua CRIAÇÃO" (Gn 2,1-4).

A palavra "cessar" em hebraico pronuncia-se mais ou menos "shabat", de


onde nos veio o nome e a pronúncia do sétimo dia da semana, do sábado,
tal como é conhecido. Nesse trecho não se trata da instituição do respeito
ao sábado, mas de explicar a sua distinção entre os outros dias, a ponto de
se lhe vedar nele todo e qualquer trabalho. Não se trata de um "repouso de
Deus", propriamente falando, Deus não precisa de repouso algum (Jo
5,17), mas do dia em que termina a Criação e lhe dá o acabamento
final, "abençoando-a". E, quando Deus abençoa, fecunda e "energiza"
para que cumpra a sua finalidade, conforme os Seu Desígnios, tal como
abençoara os animais e o homem ao criá-los. Não se trata de fecundar e
"energizar" um dia tornando-o fértil para a "reprodução de outros dias", mas
de imprimir na Obra da Criação as leis que lhe são peculiares,
fecundando-a e "energizando-a" para que prossiga de conformidade com
seus desígnios, abençoando-a toda. Deus CESSA DE CRIAR, apenas, tal
como o próprio Jesus nos revela:

"...: meu pai trabalha sempre e eu também trabalho" (Jo 5,17).

Deus nada criou sem motivo e sem meta a atingir, muito menos para
destruir. Daí porque Deus santificou o sétimo dia, qual seja, num sentido
bíblico, "separou", distinguiu. Aparece então com toda a clareza a
irreversibilidade e inexorabilidade da criação:

"Enquanto durar a terra, semeadura e colheita, frio e calor, verão e inverno, dia e
noite não há de faltar" (Gn 8,22).

8. O PROTOEVANGELHO

O chamado protoevangelho traz nele embutido claramente a maldição da


serpente, formando um só corpo e devem ser analisados em conjunto:

"Porque fizeste isso sê maldita entre todos os animais e entre todas as feras do
campo. Caminharás sobre teu ventre e comerás poeira todos os dias de tua vida.
Porei hos-tilidade entre ti e a mulher e entre a tua descendência e a descendência
dela: ela te esmagará a cabeça e atacá-la-ás no calcanhar” (Gn 3,14-15).

Alguns outros trechos (Is 25,12c; 26,5s; Sl 91/90,13 etc.) distintos mostram
que aí se encontra bem caracterizada a condição de ser a serpente uma
contumaz e conhecida inimiga de Deus, destacan-do-se:

“Diante dele o homem do deserto se curvará e seus inimigos lamberão o pó...” (Sl
72/71,9)

“Que lambam o pó como a serpente, como os animais que rastejam terra” (Mq
7,17).

É clara a referência que se faz aos inimigos vencidos e traduzem o


tratamento que se lhes dirigiam, identificando-se ao início do
protoevangelho, onde consta o que a serpente colherá com sua atitude. Isto
é, além de inimiga teria ela agora outra conseqüência a suportar: a
hostilidade da mulher e da descendência dela, contrastando com aquele
“diálogo amistoso” com que a seduziu no Paraíso. O diabo de agora em
diante deverá temê-la por causa do desate final aí previsto: “ela te
esmagará a cabeça e tu atacá-la-ás no calcanhar”. Não se trata de uma
ameaça apenas futura, mas de um fato que pertence a História de ora em
diante, qual seja, a luta entre o diabo e a mulher. A maldição é proferida
pelo próprio Iahweh e como tal se identifica à outras palavras dele
existentes, tendo necessidade de se identificar a algumas características
para ser reconhecida:

“Talvez perguntes em teu coração: ‘Como vamos saber se tal palavra não é uma
palavra de Iahweh?’ Se o profeta fala em nome de Iahweh, mas a palavra não se
cumpre, não se realiza, trata-se então de uma palavra que Iahweh não disse” (Dt
18,21-22).

A principal característica da Palavra de Deus é a de que se realiza


inexoravelmente, qual seja, a partir de seu pronunciamento, se cumpre. Por
isso a Profecia é reconhecida imediatamente, como advinda de Deus. Há
que ter um primeiro lance, ou uma realização imperfeita imediata e, com ou
sem intermediários, um final definitivo a se esgotar, realizar-se e a se
cumprir em Cristo:

“Não penseis que vim revogar a Lei e os Profetas. Não vim revogá-los, mas dar-lhes
pleno cumprimento...” (Mt 5,17).

O protoevangelho é “uma palavra que Iahweh disse” devendo apresentar


por isso a mesma característica em sua realização, qual seja aquela
ocorrência sempre presente na História, pelo que é sempre reconhecível. A
sua primeira realização se dá com a única mulher presente no momento da
maldição, Eva.

Corporifica-se com o nascimento de Set (Gn 4,25) a quem ela mesma dá o


nome, nomeia (Gn 4,25b), e “dar o nome” tem um significado peculiar de se
assumir todo o destino, ou especifica a missão ou condição dela (Gn 2,20;
4,25; 17,5; Is 43,1; 2Rs 24,17; 2Cro 36,4; Mt 1,21; Lc 1,31 etc.). Quando
Eva dá o nome a Set assume a sua posição no campo de luta com o diabo,
começada pela descendência do mal com Caim (Gn 4,17-24). Já se
manifesta a “hostilidade entre a descendência da serpente e a da mulher”
(Gn 3,15), com a primeira vitória da mulher: Enós, o filho de Set e
descendente dela (neto), é “o primeiro a invocar o nome de Iahweh” (Gn
4,26):

“...seca-se a erva, murcha-se a flor, mas a palavra de Deus subsiste para sempre” (Is
40,8).
Essa atuação perene da palavra de Deus na História aparece também
quando as escrituras re-gistram que todas as mulheres ligadas à Aliança
destinada à redenção humana eram estéreis. Só se engravidavam por uma
ação especial de Deus que as tonava férteis a começar pela mulher de
Abraão, Sara (Gn 18,14); a mulher de Isaac, Rebeca (Gn 25,21); bem como
as mulheres de Jacó, Lia (Gn 29,31) e Raquel (Gn 30,22). Até que, na
“Nova Aliança”, também fertiliza Isabel, a mãe de João Batista (Lc
1,7.13.24.36), “...na velhice... ...aquela que chamavam estéril”, quando se
dá a inaugura-ção da Fecundidade Messiânica e Maria, a mãe de Jesus,
“uma virgem concebe e dá à luz” (Mt 1,23). Resume-se assim o percurso e
o ponto culminante da vitória da mulher sobre a serpente, fecundada por
Deus, com vistas no retorno do Homem ao Paraíso a que fora destinado.

Deus não destruiu o jardim, nem alterou seu desígnio de que o Homem o
habite, e na qualidade de Autor da Salvação, mantém a mesma disposição
de ânimo que teve ao criar o Jardim do Éden. E, por meio do Espírito
Santo, fecunda a “virgem que concebe e dá à luz” ao “Filho do Altíssimo”
(Lc 1,32), para se cumprir o seu Santo Desígnio de levar o homem à
comunhão, intimidade e familiaridade com Ele. Assim, tudo aquilo que
estava significado no Jardim de Deus está no conteúdo do Protoevangelho,
“em germe e figura”, já que na “Árvore da Vida no meio do Jardim” estavam
identificados como pertinen-tes indestacáveis à Obra da Criação tanto a
Encarnação do Verbo, de que é essência, como o meio para a humanação
do Filho, Maria, desde então preservada em plenitude como a mãe do
verbo feito carne, naturalmente adequada a tal missão com todos os dons.

Deus não é um ser criado que esteja sujeito à ação de outrem, fruto de
movimento e condicio-namento a um futuro desconhecido ou incerto e
dependente do acaso. Seus desígnios se cumprem inexoravelmente. A
Criação é um fato irreversível e não seria um ato humano que perturbaria
qualquer pretensão divina, por mínima que fosse. É que o Homem não tem
poder nenhum suficiente para que seus atos venham a alterar ou
comprometer a vontade de Deus. Uma fragilidade assim não se coaduna
com a onipotência e a onisciência de Deus. Assim, esse Jardim de Deus,
tal como preparado para o Homem, aguardaria a redenção “na plenitude
dos tempos” (Gl 4,4) pela Encarnação do Filho. Jesus não é um remendo
improvisado por Deus em virtude de ter havido um comprometimento de
Sua Vontade pelo Pecado Original. Essa Encarnação já era dos desígnios
de Deus e seria como que o prêmio de Vida Eterna caso aceito pelo
Homem, a mesma plenitude (Jo 10,10) a que o reconduz o Messias. O
Pecado Original atingiu tão somente a Criação, mas o Plano de Deus
continua em pleno vigor. O Homem é que sofre uma transformação tal que
lhe retarda e condiciona o gozo da Vida Eterna.
9. AS CONSEQÜÊNCIAS IMEDIATAS DO PECADO

É muito perigoso em Bíblia o precipitar das conclusões sem um exame da


maneira de se expressar, com coerência e de acordo com a mentalidade já
manifestada anteriormente. Não é possível uma palavra ter sido usada em
sentidos diferentes num mesmo contexto, a não ser que ela tenha mesmo
essa propriedade de dualidade de significações. Observa-se a existência de
um novo consórcio de tarefas ou co-munus, agora entre o homem e a
mulher, quando Deus diz:

“Iahweh Deus disse: ‘Não é bom que o homem esteja só. Vou fazer uma auxiliar
que lhe seja igual” (Gn 2,18).

Salta aos olhos a necessidade de muito cuidado no exame desse trecho,


eis que, naquele Jardim, em vida familiar e íntima com Deus, é um absurdo
sentir solidão. Quando se está em íntima comunhão com Deus não se pode
estar “só”, “solitário”. Por isso, aqui é o mesmo diapasão da afirmativa já
analisada anteriormente de que “Deus viu que era bom” (Gn
1,4.10.12.18.21.25.31), ocorrida durante a narrativa inicial, coordenando-a
como um refrão. Vimos então que o sentido era de que aquilo que se criava
era bom para o Homem, na finalidade que lhe foi dada e impressa por Deus
na Criação. Assim o Homem sozinho, sem uma auxiliar que lhe fosse igual,
não atingiria nunca aquele ideal que lhe fora designado por Deus. No
Jardim recém-plantado tudo se desenvolveria no seu sentido natural, qual
seja, viveria a família humana advinda do casal em comunhão plena com
Deus, na glória e felicidade eternas, coordenada e conjuntamente com toda
a Criação:

“O homem deu nomes a todos os animais,... mas... não encontrou a auxiliar que lhe
fosse igual. Então Iahweh Deus..., da costela que retirara do homem... modelou uma
mulher e a trouxe ao homem. Então o homem exclamou: ‘Esta sim, é osso de meus
os-sos e carne de minha carne...’ Por isso um homem deixa seu pai e sua mãe, se
une à sua mulher, e eles se tornam uma só carne. Ora, os dois estavam nus, o
homem e sua mu-lher, e não se envergonhavam” (Gn 2,20-25).

Novamente se torna imperioso o uso do bom-senso para se compreender


essa “procura de uma ‘que lhe fosse igual’ entre os animais” que foram
entregues a Adão. Não se pode pretender que se tratasse apenas de “uma
esposa”, uma fêmea, para a mãe de seus filhos! Não! A atividade
programada por Deus ao Homem não se limitava a isso. A ele cabia
“dominar e cultivar a terra e possuí-la, e submetê-la, dominar sobre os
animais de toda a espécie” (Gn 1,28; 2,5). Era-lhe indispensável uma
“auxiliar” à altura, com as mesmas aptidões naturais para complementar
sua atividade. Foi um ser assim que Adão “não encontrou” entre os
animais, e Deus lhe preparou a Mulher, “que lhe era igual”, pois “não lhe
era bom ficar só” para se conseguir o objetivo traçado por Deus.

Com a Queda Original, rompida a comunhão com Deus, dissolve-se a


unidade gravitacional de todo o sistema, manifestam-se várias desordens.
Começam a se exprimir no relacionamento do casal com o próprio Deus e
entre si mesmo, em atitudes agressivas mútuas e com a própria unidade
total, que perdendo a convergência dinâmica e harmônica em direção ao
Criador por mediação humana, torna-se divergente, sem sentido e
completamente difusa, passa a reinar a confusão total. O Homem e a
Mulher não sabem mais o que fazer, se escondem, um do outro e do
próprio Deus:

“Eles ouviram os passos de Iahweh Deus que passeava no jardim à brisa do dia e o
homem e a mulher se esconderam da presença de Iahweh Deus, entre as árvores do
jardim. Iahweh Deus chamou o homem: ‘Onde estás?’, disse Ele. ‘Ouvi teu passo
no jardim’, respondeu o homem; ‘tive medo porque estou nu, e me escondi’. Ele
reto-mou: ‘E quem te revelou que estavas nu? Comeste, então, da árvore que te
proibi de comer!’ O homem respondeu: ‘A mulher que puseste junto de mim me
deu da árvo-re, e eu comi!’ Iahweh Deus disse à mulher: ‘Que fizeste?’ E a mulher
respondeu: ‘A serpente me seduziu e eu comi” (Gn 3,8-13).

Instala-se a insegurança e a desarmonia. Primeiro, o medo, levando-os a


se esconderem, em virtude da nudez que passaram a sentir, denotando a
insegurança da perda da comunhão com Deus e o profundo sentimento de
culpa advindos. A seguir, inquiridos, o Homem acusa a Deus e a Mulher: “A
mulher que puseste...”, isto é “a culpa é tua e da mulher”: “tua por tê-la
posto junto de mim e dela por me ter seduzido”; por sua vez, a mulher
acusa exclusivamente a serpente. A esta nem é dada a oportunidade de
defesa, não é interrogada nem dá explicações e desaparece do cenário
terrivelmente amaldiçoada, denotando-se assim uma situação de inimizade
já existente e devendo ainda perdurar e prosseguir. A luta com ela apenas
começava e as maldições que lhe foram dirigidas se assemelham às
condições de tratamento dado ao inimigo quando derrotado [cfr. Sl
72(71),9; Mq 7,17; Is 25,12], como se viu.

O consórcio Homem-Mulher continua vigorando mesmo após a expulsão do


Paraíso, eis que os Planos de Deus são irreversíveis e um ato humano,
mesmo o pecado, não os pode comprometer. Porém, agora, passaram à
condição de mortais, seja pelo fato de que “és pó e ao pó tornarás” (Gn
3,19), seja pela presença das “dores de parto” (Gn 3,16), seja “no império
da força a vigorar entre marido e mulher” (Gn 3,16b), seja pelo “sofrimento
advindo do trabalho humano” (Gn 3,17-19b), todos estes fatos e muitos
outros advindos como conseqüências imediatas do Pecado Original. Na
verdade toda a Criação perde o seu eixo central ou gravitacional e perde o
equilíbrio natural (Gn 3,17a), desnorteando-se completamente, caindo, tal
como no-lo diz São Paulo, numa espécie de gestação, até que se “cumpra”
a salvação advinda com a Encarnação do Verbo:

“...a criação em expectativa anseia pela revelação dos filhos de Deus. De fato, a
cri-ação foi submetida à vaidade - não por seu querer, mas por vontade daquele
que a sub-meteu - na esperança de ela também ser libertada da escravidão da
corrupção para en-trar na liberdade da glória dos filhos de Deus. Pois sabemos
que a criação inteira geme e sofre as dores do parto até o presente” (Rm 8,19-22).

Outras conseqüências passam a se manifestar, principalmente no


predomínio do instinto carnal, próprio do animal que é o Homem,
desaparecida a vida sobrenatural a que fora elevado e não o quisera: são
as conseqüências mediatas do pecado.

10. AS CONSEQÜÊNCIAS MEDIATAS DO PECADO

O afastamento do primeiro casal de seu centro gravitacional trouxe,


diretamente e até mesmo sem nenhuma intervenção, as conseqüências
anteriormente descritas. Além delas, trouxe outras advindas de
modificações ocorridas no equilíbrio da natureza do próprio Homem.
Tratando-se de conseqüências de conseqüências podem ser denominadas
de mediatas. No momento em que as descrevermos procuraremos
demonstrar essa ocorrência, pois só são dedutíveis a partir das condições
peculiares de cada narrativa, repletas dos fatos culturais do tempo em que
foram escritas, reproduzin-do as mais das vezes costumes por demais
desconhecidos de nossa época.

Após a expulsão do Paraíso, o narrador narra como que o início da


propagação da espécie destacando no episódio de Caim e Abel os baixos
instintos agora dominantes na natureza humana, usando para tal o mesmo
gabarito cultural, o modo de narrar e a linguagem de seu tempo:

“Quando Deus criou o homem, fê-lo à imagem de Deus. ...Adão... gerou um filho à
sua imagem e semelhança...” (Gn 5,1-3).

O hagiógrafo está dizendo na sua maneira culturalmente condicionada que


o Filho de Adão não poderia mais totalmente “refletir” Deus, por estar
contaminado em sua natureza, agora desfigurada pelo advindo
desequilíbrio causado pelo desligamento de Deus. Ele não mais partilhava
a presença de Deus, tal como no Éden e não mais trazia aquele equilíbrio
original que o tornava “imagem e semelhança de Deus”. Era agora nada
mais que “imagem e semelhança de Adão”, fruto do pecado, não mais
aquela imagem perfeita que era anteriormente. Era a “imagem do homem
decaído” que se transmitiria de ora em diante portadora de todos os efeitos
do rompimento sobrenatural com Deus. Várias situações e acontecimentos
vão se manifestar de então em diante. Não se trata de uma ordem
cronológica de acontecimentos ocorridos, mas de uma ordem lógica, fruto
da cultura religiosa de então.

10.1 CAIM E ABEL

A primeira que o narrador nos oferece é na família, no episódio de dois


irmãos, Caim e Abel, onde o primeiro mata o segundo. Ora, agora, neste
exato momento, por todo o mundo irmãos estão matando irmãos. Não seria
necessário mostrar isso, com tantos detalhes, não fora a presença de um
fato novo advindo, que é a causa principal dessa conseqüência. É a inveja
e os seus iguais impulsos conhecidos como ciúme e despeito, bem ainda a
competição ou qualquer outro antagonismo entre os membros de uma
família, todos ensejadores da rivalidade ou do ódio que a destroi ou a
compromete e ainda vai explodir no meio social.

A desarmonia conseqüente entre o Homem e Deus e entre o Homem e a


Mulher vai agora explodir em outra, a desarmonia entre os irmãos,
ocasionada por uma emoção agora pertinente ao contexto psicológico do
ser humano. Rompidas a unidade, a familiaridade e a intimidade com o
Criador, tornam-se impossíveis a unidade, a concórdia e a paz na família. A
harmonia da Obra da Criação tem por fonte a intimidade de Deus com o
Homem, que explode na coesão e identificação mútua na unidade dinâmica
do conjunto daí formado, tal como fora criado. Rompida essa unidade com
Deus, cai-se no domínio do instinto de sobrevivência e desencadeia-se a
necessidade da luta em busca do sentimento de segurança perdida. Abel,
preferido por Deus, significou para Caim essa insegurança, e eliminá-lo
torna-se uma questão de vida ou morte, a própria sobrevivência:

“..., Caim apresentou produtos do solo em oferenda a Iahweh; Abel, por sua vez,
tam-bém ofereceu dos primogênitos e da gordura de seu rebanho. Ora, Iahweh
agradou-se de Abel e de sua oferenda. Mas não se agradou de Caim e de sua
oferenda, e Caim ficou muito irritado e com o rosto abatido. E Iahweh disse a Caim:
‘Por que estás irado e por que andas cabisbaixo? Se fizeres o bem, há motivo para
erguê-la, mas se não procederes bem, eis que o pecado está à espreita em tua porta;
as suas ganas es-tão voltadas para ti, mas tu podes dominá-lo” (Gn 4,3-7).

Quando fora escrita esta narrativa transferiu-se para o início dos tempos a
necessidade de se cumprirem todas as formalidades rituais então em uso.
Tal como com o sábado, aqui também com o sacrifício e suas normas,
observando-se facilmente algumas das regras que lhe são pertinentes,
quais sejam:
 a distinção das oferendas: “Abel oferece dos primogênitos do
rebanho e os mais gordos e Caim dos produtos do solo”; e,

 a identificação e vinculação da vítima com a pessoa do ofertante:


“Deus agradou-se de Abel e de sua oferenda e não se agradou de
Caim e de sua oferenda”.

Para nós não tem nenhum sentido se estabelecer qualquer diferença entre
uma e outra das oferendas, nada as distinguindo em si. Porém, para os
antigos israelitas, Caim, o filho primogênito, deveria oferecer as primícias
do campo em sacrifício (Dt 26,2). Não o fez, enquanto Abel ofereceu “dos
primogênitos e dos mais gordos” (Ex 22,28s; Dt 15,19), cumprindo as
exigências religiosas do ritual. Por isso “Deus agradou-se de Abel e de sua
oferenda e não se agradou de Caim e de sua oferenda”. Tudo indica que a
narrativa foi adaptada ao tempo em que os israelitas haviam deixado a vida
nômade e se tornado sedentários. Por isso Caim se dedicara ao cultivo da
terra e Abel ao pastoreio (Gn 4,2). Está o narrador fazendo apologia das
exigências rituais do sacrifício, bem como narrando o desenvolvimento do
mal, até mesmo a responsabilidade do Homem por seus atos, caracte-
rizada pela expressão “e tu podes dominá-lo” (Gn 4,7).
Essa busca de segurança que a unidade reflete ainda é intuitiva e
instintivamente buscada pelo Homem, formando os grupos sociais onde se
abriga e, naquele tempo em que se registrou por escrito o acontecimento,
tomara a forma de tribos patriarcais. Por não compreender o regime social
de uma tribo de então é que parece à primeira vista que Caim não fora
castigado por Deus, pelo homicídio que praticara. Não é assim, porém; na
realidade cultural de então, recebe Caim o maior castigo a que poder-se-ia
condenar uma pessoa, excluindo-o do clã, deixando-o exposto à toda
espécie de infortúni-os, hostilidades e, entre estranhos de outras tribos ,
sem a segurança e proteção da própria, bem como de seu Deus tribal:

“Agora, és maldito e expulso do solo fértil que abriu a boca para receber de tua mão
o sangue de teu irmão. Ainda que cultives o solo, ele não te dará mais seu produto:
serás um fugitivo errante sobre a terra.” Então Caim disse a Iahweh: ‘Mi-nha culpa
é muito pesada para suportá-la. Vê! Hoje tu me banes do solo fértil, te-rei de
ocultar-me longe de tua face e serei errante e fugitivo sobre a terra: mas o primeiro
que me encontrar me matará” (Gn 4,11-14).

O grifado evidencia a gravidade do castigo imposto, principalmente o


“gemido” de Caim, lamentando seu afastamento da tribo, tendo de “ocultar-
se longe de tua face e serei errante e fugitivo sobre a terra” e o perigo a que
estaria exposto já que “o primeiro que me encontrar me matará”, tudo isso
por estar desguarnecido, fora da cobertura da tribo. É evidente a intenção
do narrador em mostrar o começo e o crescimento da luta do bem e do mal,
a começar na descendência da mulher, em consonância com a maldição
“redentora” proferida contra a serpente:
“Porei inimizade entre ti e a mulher, entre tua descendência e a descendência dela.
Ela te esmagará a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar” (Gn 3,15).

Ora, biblicamente, a serpente é o símbolo do mal e a personificação do


diabo, autor e fautor da morte, por sua maldade natural (Sb 2,23-24). Era
então o começo da luta entre as duas descendências, a do mal significada
em Caim e a do bem significada em Set, o filho que fora dado à Eva “em
lugar de Abel, morto por Caim” (Gn 4,25). Anunciava-se que o Homem não
estaria para sempre nem total-mente entregue nas mãos do diabo,
abandonado por Deus. Iniciava-se uma luta que culminaria inexoravelmente
com a derrota do mal (com a mulher a “esmagar-lhe a cabeça”).

Mostra inicialmente o narrador o começo e o avanço do mal: Caim, o


primeiro filho da primeira mulher comete o primeiro homicídio e mata o
primeiro justo, Abel (Hb 11,4; 12,24; Mt 23,35): a partir de então ‘o justo é e
será sempre a vítima do pecado’. Daí em diante a hostilidade entre a
descendência da mulher e a descendência do diabo tem a conotação de
uma luta entre o bem e o mal. O mal é representado pela descendência de
Caim e o bem é representado pelo filho que veio para a mulher em lugar de
Abel - Set. Ambos vieram de uma mesma mulher, Eva. Com Caim o mal
progride ao extremo (Gn 4,17-23); com Set o bem começa a frutificar,
sendo o filho dele Enós, “o primeiro a invocar o nome de Iahweh” (Gn 4,25-
26). Com Caim começam a se construir cidades, ‘fontes do mal’ (Gn 13,12-
13). Ainda hoje os simples camponeses temem os habitantes da cidade,
muitas vezes espertos e golpistas. Aparece na mesma linhagem a primeira
poligamia (Gn 4,19.23) e o desenvolvimento dos homicídios, até mesmo de
crianças (Gn 4,23), crescendo cada vez mais a violência, tudo exigindo e
clamando por vingança (Gn 4,24). Surge ainda a arte (Gn 4,21), volta-se ao
nomadismo (Gn 4,20) e aparece a técnica (Gn 4,22), atividades até hoje
muitas das vezes comprometidas pela maledicência popular com a
libertinagem, imoralidade e o banditismo.

Transparece no relato e começando com Eva (Gn 4,1.25) uma fase da


história em que as mulheres davam o nome aos filhos (Gn 21,6; 29,31-
30,24; 35,18) principalmente as descendentes dela, e o fazem com
referência a alguma circunstância ou com algum significado. Ora, dar nome
é assumir a propriedade e o destino, já o vimos, quando Adão nomeou
todos os seres criados ao assenhorear-se deles (Gn 2,19-20). A mulher, ao
dar nome a Set, o pai de Enós, (“quem primeiro invocou o nome de Iahweh”
- Gn 4,25-26) assume assim o seu lugar e de certa forma inaugura a luta
que se instituiu contra o diabo, para a redenção humana, que culminará
com a vitória de Jesus Cristo, a “descendência da mulher” - Maria.

10.2 O DILÚVIO
Para o Homem moderno a Bíblia perdeu o crédito por causa de suas
descrições não muito verosímeis, como é o caso do Dilúvio. É
simplesmente impossível aceitar que um volume de água de chuva, caindo
durante quarenta dias, seja suficiente para cobrir toda a superfície terrestre
acima dos “mais altos montes” (Gn 7,19). Mas, para o Homem antigo não
havia tal dificuldade, eis que a sua concepção física do universo permitia-
lhe isso facilmente. Primeiro porque o mundo todo era o que ele atingia com
o seu olhar, o horizonte; e, segundo porque concebia o mundo como tendo
água em cima e em baixo do firmamento celeste, pois “romperam-se as
fontes do grande abismo e abriram-se as cataratas do céu” (Gn 7,11).

Assim, o máximo que se poderia atualmente aceitar é o fato do dilúvio não


ter passado de uma grande inundação, que aos olhos do passado cobriu
todo o mundo criado. O que se pretende realçar com essa comparação,
mostrando a diferença entre o fenômeno ocorrido naquela realidade e a sua
interpretação pelo narrador, é que os fenômenos tais ainda ocorrentes na
natureza e seus similares (enchentes, furacões, tremores de terra e outros
cataclismos) cada vez mais apavoram o ser humano. Leva-o imediatamente
a pensar em “castigo de Deus”, em virtude da sua pequenez e fragilidade
ante a dimensão catastrófica do fenômeno. Até mesmo nos dias de hoje, e
por mais “civilizado” que seja, qualquer homem sente a presença de algo
bem maior que ele e, apesar de todos os seus avanços técnicos,
incontrolável. Lembra-se então intuitivamente de Deus, assim percebido
como no controle, disposição e direção de toda a natureza do Universo.
Ocorreu uma grande inundação no mundo antigo e o narrador bíblico
busca-lhe uma explicação razoável, conforme sua formação cultural, não
excluin-do Deus, a Obra da Criação e a sua consciência do Pecado
Original. Foi um acontecimento terrível num passado remoto até mesmo
dele, cuja narração oral lhe chegou dos antepassados seus. É como que
parte da história de sua própria tribo, em que Noé seria um deles, tal como
se enunciava que “Noé entrou na arca com seus filhos, sua mulher e suas
noras” (Gn 7,1.7.13), bem como um casal de cada animal, ave ou réptil,
bem como separando “de todos animais puros sete pares, dos animais
impuros um par” (Gn 7,2.8.9.14.15...). Novamente aqui o narrador projeta
no passado rituais do sacrifício usados no seu tempo, acreditando existirem
desde a Criação; por isso também “animais puros e impuros” (Lv 11),
obedecendo normas sacrificiais e de alimentação.

Não se perca de vista nunca que a harmonia de “toda” a Criação tem por
fonte a intimidade e familiaridade do Homem com Deus, e se manifesta na
unidade de todo o conjunto. Daí por que, pensando nas conseqüências do
Pecado Original e localizando num passado ainda lembrado, o
acontecimento do Dilúvio, é ele apresentado como exemplo do crescimento
do mal atingindo também a sua natureza terrestre. Mostra também que todo
o gênero humano, da mesma forma, vai se corrom-pendo, associando-se
cada vez mais com o mal significado na união carnal dos descendentes de
Set com os descendentes criminosos de Caim:
“... os filhos de Deus viram de Deus viram que as filhas dos homens eram belas e
toma-ram como mulheres todas as que mais lhes agradavam” (Gn 6,2).

Novamente se projeta no passado o costume de não se misturar pelo


casamento membros de tribos desconhecidas, pelo perigo que
representavam ao clã (Gn 24,3-4; 26,34-35; Nm 36,6-9), principalmente
pela intromissão de diferentes deuses bem como de costumes
condenáveis. Para o narrador estabeleceu-se daí uma verdadeira confusão
entre o bem e o mal, que não mais se distinguem para o Homem, e essa
presença do mal, conseqüência da desarmonia original na própria natureza,
mesclado e indestacável de toda a ação humana, continua indesejável para
Deus:

“Iahweh disse: ‘Meu espírito não permanecerá para sempre no homem, porque é
carne e os seus dias serão de cento e vinte anos” (Gn 6,3).

Esse trecho aqui disposto faz crer que se trata de uma redução da idade
elevada dos Patriarcas, relatada quando da genealogia de Adão (Gn 5),
onde atingiam até mesmo quase mil anos. Não é bem assim, porém, já que
de Noé, o principal protagonista do Dilúvio, se diz, após essa aparente
restrição, que viveu trezentos e cinqüenta anos (Gn 9,28). Também Abraão,
Isaac e Jacó tiveram respectiva-mente cento e setenta e cinco (Gn 25,7),
cento e oitenta (Gn 35,28-29) e cento e quarenta e sete anos (Gn 47,28),
idades maiores que a limitação aparente aqui imposta. Essa maneira
incomum de relatar idades é para nós muito misteriosa, e não se encontra
uma explicação satisfatória se bem que o sentido religioso dos números é
muito usado pelos antigos, a que se denominou numerologia. Na realidade
existem algumas particularidades interessantes quanto a esses números,
destacando-se:

 Henoc é o que viveu menor tempo e gerou Matusalém, o que mais


viveu. Justificam-se ambas as condições pelo fato de que “andou
com Deus”, contrastando com a pouca vida material de “apenas”
trezentos e sessenta e cinco anos (Gn 5,21-27), número de anos que
tem o mesmo número de designação que o de dias de um ano solar;
e, apesar disso, teve vida mais fecunda gerando Matusalém, o que
mais viveu;

 Lamec, o pai de Noé, registra a idade total de setecentos e setenta e


sete anos, ge-rando um filho com a idade de cento e oitenta e dois
anos, vivendo mais quinhentos e noventa e cinco anos até a morte.
Todos esses anos da vida de Lamec são divisí-veis por sete, o
número religioso por excelência, igualando-se ao de dias da Criação,
e Noé é o Patriarca do Dilúvio, que é apresentado como uma Nova
Criação dentro da Criação propriamente dita;
 Após o Dilúvio continuam as menções de idades avançadas de
outros “patriarcas” (Gn 11,10-32). Há uma indicação clara de que os
clãs diminuíram, ou houve uma modificação cultural na sua estrutura,
influindo na contagem da idade total.

Também:

 a idade de Abraão corresponde a: 7 x 5 x 5 = 175 anos;


 a idade de Isaac corresponde a : 5 x 6 x 6 = 180 anos; e,
 a idade de Jacó corresponde a : 3 x 7 x 7 = 147 anos.

Melhor é considerar que no tempo antigo havia uma profunda relação


cultural entre a fecundi-dade de procriação e a bênção de Deus,
representados pelo número de descendentes. Daí porque, pela redação da
genealogia de cada um deles, a partir do nome do primogênito seguido da
expressão que se repete em todos, “o tempo que viveu (...) após o
nascimento de (...) foi de (...) anos, e gerou filhos e filhas”, reiniciando a
seguir com a genealogia do seu primogênito, seguindo o mesmo diapasão,
logicamente se pode deduzir que a idade então apresentada como sendo
do Patriarca nada mais é que a soma das idades de todos os seus
descendentes e membros, e sua mulher, até a sua morte, formando o seu
clã. Muitas explicações existem e não se deve preocupar com isso. Basta
que se entenda a inexistência de qualquer relação entre essas idades e a
menção dos cento e vinte anos no trecho em exame, mesmo por que não
se pode aceitar idades tão elevadas, principalmente no mundo antigo onde
faltavam os mais elementares recursos para a sobrevivência num ambiente
profundamente hostil. Apesar de tudo isso, o melhor mesmo é que tais
longevidades tinham um significado cultural ainda misterioso para nós, e o
versículo transcrito traduz o fato da perda, com a morte, da “vida divina”
que Deus insuflara no Homem (Gn 2,7), bem como, pelo Pecado Original, a
perda da “vida eterna” a que o destinara no Éden (Gn 2,9 / 3,22).

É como que um recordar de Deus, a se manifestar em cada catástrofe ou


cataclismo que ocorra e atinja o Homem decaído. A corrupção carnal se
generaliza a partir da quebra daquela unidade total com Deus causada pelo
Pecado. A cisão se manifesta cada vez mais completa, a começar na vida
familiar até a natureza, e o pecado, por sua vez, atinge a sua força máxima.
Tudo se corrompe, até mesmo os descendentes de Set, a linhagem dos
bons, tudo descentraliza-se, tudo partiu o vínculo com Deus. Rompido o elo
Homem-Deus tudo descentraliza-se, e desequilibrou-se, não mais se
encontran-do, transparecendo como quê uma repulsa a Deus, outra das
conseqüências do Pecado Original:

“E disse Iahweh: ‘Farei desaparecer da face da terra o homem que criei; e com o ho-
mem também os animais, os répteis e as aves do céu; porque estou arrependido de
tê-los criado” (Gn 6,7).
Ora, Deus não se arrepende nunca, não é alguém que não sabe o que faz.
Não se pode deduzir daí que o narrador esteja se referindo a uma surpresa
ocasionada em Deus, a ponto de se lhe exigir uma providência séria. O que
o narrador manifesta é que Deus, tal como no Jardim do Éden, não se
identifica ao pecado, nem à corrupção geral que se alastrava cada vez
mais:

“Iahweh viu que a maldade do homem era grande sobre a terra, e que era continua-
mente mau todo o desígnio de seu coração. Iahweh arrependeu-se de ter criado o
ho-mem sobre a terra e se afligiu em seu coração, ...” (Gn 6,5-6).

Os cento e vinte anos marcados não passam portanto de um prazo


simbólico, cujo sentido não é mencionado em virtude de ser conhecido
culturalmente pelos demais membros do grupo a que se dirigia a narrativa,
e se referia ao tempo determinado por Deus para o Dilúvio, “eliminando
toda a carne”. Esse prazo centenário também realça como Deus é lento
para manifestar a sua ira, pois “Deus não fez a morte, nem se alegra que
pereçam os vivos” (Sb 1,13) e “criou o homem para a imortalida-de, e o fez
imagem da sua própria natureza” (Sb 2,23). É que Deus não criou o mundo
para a corrupção que agora se apresentara, e o Dilúvio que se descortinava
nada mais era que outra conse-qüência do Pecado Original, aquilo que se
costuma designar como “ira de Deus”. É a repulsa dEle que também se
manifesta na natureza criada, apesar de corrompida, como um protesto
(Rm 8,20-22), assemelhando-se a um verdadeiro “arrependimento de
Deus”:

“Deus não é homem, para que minta, nem filho de Adão para que se arrependa. Por
acaso ele diz e não o faz, fala e não realiza?” (Nm 23,19).

A não ser assim há de se estabelecer uma enorme contradição da narrativa


com o gesto carinhoso de Deus, que “fez para o homem e sua mulher
túnicas de pele e os vestiu” (Gn 3,21), condoendo-se da situação deles (Gn
3,22) ao expulsá-los do Jardim (Gn 3,23). Não é possível que somente
agora Deus iria demonstrar um arrependimento tão tardio, a não ser que
tudo não passe de uma conclusão do próprio narrador em face da
enormidade do cataclismo ocorrido. Tanto é assim que fica claro não
possuir o pecado força suficiente para comprometer ou destruir todo o bem
ainda ali se manifestando e se destacando nitidamente:

“Noé achou graça aos olhos de Iahweh, ...Noé era um homem justo, íntegro entre
seus contemporâneos, e andava com Deus” (Gn 6,8-9). / “Iahweh disse a Noé: ‘... és
o único justo que vejo diante de mim no meio desta geração” (Gn 7,1).

Na linhagem de Set, da qual veio Noé, se encontra ainda um justo, aquele


que andava com Deus, tal como Henoc (Gn 5,24). Ressurge assim, do
abismo de mal que germinara e crescia por demais, a mão de Deus, ainda
em ação na própria Criação corrompida, em busca do Homem para
reconduzi-lo à vida. Mostra-nos o narrador essa atitude do Criador,
protegendo o Homem e, no meio de tanta convulsão, livrando-o de um dos
frutos do rompimento inaugural da harmonia de Sua Obra, coerentemente
com aquele ato de “vestir o casal com as túnicas de peles” (Gn 3,21). No
quadro de desequilíbrio geral em que se debate a natureza decaída
aparece uma esperança amparada pela mão de Deus: o “justo” que adveio
da linhagem de Eva, a Mulher, descendente de Set, a quem Eva “deu o
nome” (Gn 4,25), começando a “pisar a cabeça da serpente”. Em cada
fenômeno da natureza, que traduza a corrupção a que fora reduzida pelo
mal, se refletirá, pela presença de um justo, a vitória preanunciada no
Protoevangelho. Deus é fiel e verdadeiro (Rm 3,4), imutável, e com Noé
mantém ainda, além do consórcio de tarefas (Gn 2,5), bem vivo ainda o
mesmo apelo à intimidade, familiarida-de e comunhão de vidas para o que
foram convidados, em Adão e Eva, todos os Homens.

Não se tratava de uma destruição total da Criação, eis que tivesse Deus
essa intenção, ficaria sem sentido a Arca onde entraram Noé, “teus filhos,
tua mulher e as mulheres de teus filhos” (Gn 6,18), além de “tudo o que
vive, de tudo o que é carne. ... dois de cada espécie, um macho e uma
fêmea, para os conservares em vida contigo” (Gn 6,19-21). Essa a grande
contradição aparente da narrativa que mais se agiganta quando se recolhe
“sete casais de animais puros e um de impuros” (Gn 7,2). A se considerar a
“impureza” como tal seria essa a oportunidade ideal para se acabar com os
“animais impuros”, não os salvando como se fez. Outra conclusão não pode
existir, que a narrativa tem uma conotação subjacente, outra finalidade
paralela, não se limitando apenas a demonstrar o efeito do Pecado Original
também nos desequilíbrios e cataclismos da própria natureza:

“Eu não amaldiçoarei nunca mais a terra por causa do homem, porque os desígnios
do coração do homem são maus desde a sua infância...” (Gn 8,21).

Essa a grande mensagem do Dilúvio: a fonte do mal está no coração do


Homem e não na Criação, essa é outra conseqüência do primeiro pecado.
Mesmo destruindo tudo, e recriando-se tudo de novo, não se resolve o
problema do mal no mundo se ele não for erradicado do coração humano,
essa é uma lição que se pode tirar da narrativa do Dilúvio! Não se pode
perder de vista a condição cultural do narrador já que os seus
conhecimentos da natureza física eram-lhe muito limitados. Realmente ali
aconteceu um grande cataclismo, outros povos antigos o narram. Mas, o
nosso hagiógrafo o coloca como um ato de repulsa de Deus ao pecado que
então se praticava, numa interpretação culturalmente condicionada dele,
além de pretender que se tenha atingido o mundo todo. Traduz a “ira de
Deus” que consiste no abandono a que a própria criatura, por si mesma, se
entrega às forças do mal, e no que mais e mais se afunda. Pareceu-lhe
como uma Nova Criação:
“Deus abençoou Noé e seus filhos, e lhes disse: ‘Sede fecundos, multiplicai, enchei
a terra” (Gn 9,1).

Esta frase é como que um retorno ao ato inicial da Criação e toda a


narrativa nada mais é que, no próprio relato da presença do desequilíbrio
na natureza, o prosseguimento da luta que o bem de Deus trava com o mal
do diabo. E anuncia a vitória com a colocação do Homem na Arca,
protegen-do-o durante todo o percurso e conduzindo-o à terra firme,
culminando com uma Bênção, ratificando a Obra num recomeço total de
uma Nova Criação. É para, pelo e por meio do Justo a Criação, refletindo
sempre os desígnios de Deus para o Homem. Assim, vem o Dilúvio
espelhar em forma de uma “pacificação de Deus” que não tem o desejo de
destruir o mundo, nem o Homem: os atos de Deus são irreversíveis. Retrata
também que apesar do pecado e desenlace havidos não há guerra entre
Deus e o Homem. Tal como um guerreiro depõe seu arco após a guerra,
Deus coloca o seu arco nas nuvens anunciando a paz:

“Eis o sinal da Aliança que instituo entre mim e vós e todos os seres vivos que estão
convosco para todas as gerações futuras: porei o meu arco na nuvem e ele se tornará
um sinal da aliança entre mim e a terra” (Gn 9,12-13).

O arco da guerra entre Deus e o Homem foi deposto e para sempre passa
a escorar, com a sua parte curva, todas as comportas que mantêm no
firmamento as “águas que estão em cima” (Gn 1,6-7). O arco funcionava na
cultura de então como uma espécie de vigorosa viga semi circular que
mantinha para sempre “fechadas as comportas que contêm as águas do
firmamento” (Gn 7,11; 8,2...), passando a ser considerado como um
memorial da aliança universal ali contraída:

“Quando o arco estiver na nuvem, eu o verei e me lembrarei da aliança eterna que


há entre Deus e os seres vivos, com toda a carne que existe sobre a terra” (Gn 9,16).

Novamente o narrador mistura aqui instituições existentes em seu tempo e


coloca nessa pré-história bíblica o ritual do sacrifício, como se já existente e
em uso pelo “justo”, para ser compreendi-do pelos seus contemporâneos.
Assim, quando fala em animais puros refere-se a uma disposição advinda
da Lei de Moisés (mosaica) ou do Código do Sinai (Lv 11), faz a apologia
das instituições religiosas em uso e cuja observância entende ser desde
então condição de efic
Curso de Bíblia
Por José Haical Haddad

Capítulo 2

GÊNESIS
A Aliança
1. A PROMESSA

Aquela disposição de Deus em “plantar um jardim e nele colocar o Homem


que criara” (Gn 2,8) não sofrera solução de continuidade e persiste ativo,
apesar das conseqüências do pecado se manifestarem por toda a Criação.
Mas, Deus é inexorável em seus desígnios, os quais, inicialmente, passam
a tomar forma e vão se corporificar a partir de uma promessa que faz então
a outro justo, Abrão, descendente de Sem (Gn 11,10-32), da linhagem de
Set (Gn 5,3.6.30; 6,9-10).

Josué dirá, quando da conquista da Terra Prometida, que anteriormente


“Abraão servira a ou-tros deuses...” (Js 24,2). Hoje, POVO tem o sentido
peculiar de um agrupamento em uma determinada área, de pessoas que
possuem a mesma cultura, a mesma história, a mesma organização,
obedecem as mesmas leis e seguem costumes semelhantes. Antigamente,
nos tempos bíblicos, não! Um povo se identificava por seu deus ou deuses.
Acreditava-se em vários deuses e cada um ou mais deles tinha um
agrupamento humano que o servia e era por ele ou eles protegido. Assim,
cada clã tinha o seu deus ou deuses e o desvio de sua adoração e serviço
significava o afastamento do "convertido", tal como as palavras acima
indicam ter acontecido com Abrão. Havia sempre uma idéia subjacente de
soberano ditando normas para seus súditos ou vassalos. Isto pode ser
confirmado em outros trechos:

"Pois todos os povos andam, cada um em nome do seu deus; mas nós
andaremos para todo o sempre em o nome de Yahweh nosso Deus" (Mq 4,5)

"Vinde, ó casa de Jacó, e andemos na luz de Yahweh. Mas tu rejeitaste o teu


povo, a casa de Jacó; porque desde tempos antigos está cheio de adivinhos,
como os filisteus, e fazem alian-ças com os filhos dos estrangeiros" (Is 2,5-6).

É de se concluir que houve então uma conversão de Abrão, passando a


adorar e a servir a Iahweh, pelo que não pôde mais permanecer no mesmo
clã:
“Iahweh disse a Abrão: ‘Deixa teu país, tua parentela e a casa de teu pai, e vai
para o país que te mostrarei. Eu farei de ti um grande povo, ...” (Gn 12,1-2).

E, em se convertendo, recebe de Deus uma Promessa:

“Eu farei de ti um grande povo, eu te abençoarei, engrandecerei teu nome; sê


tu uma bênção! Abençoarei os que te abençoarem, amaldiçoarei os que te
amaldiçoarem. Por ti serão benditos todos os clãs da terra” (Gn 12,2-3).

Deus separa Abrão do meio de seu povo, para prepará-lo e conduzi-lo a


uma familiaridade e intimidade de vidas e a partir dele formar um povo, o
Povo de Iahweh - Deus. Apesar de ser grande privilégio ouvir tais palavras,
o obedecê-las foi-lhe sobremaneira penoso, heróico e incomum, verda-
deira provação. Exigiu na verdade enorme esforço e abnegação, que até
mesmo desguarnece cultural-mente Abrão e a sua família. Afastando-se de
seus iguais, de sua família, de seus parentes, de seus amigos e de sua
estabilidade econômica e tribal, fica humanamente desprotegido e expõe-se
à toda a sorte de dificuldades, comprometendo até mesmo a própria
sobrevivência. Naquele tempo afastar-se desses condicionamentos
culturais era ficar sujeito até mesmo à morte, pelo abandono entre
estranhos. Era a insegurança total! Mas, o seu papel na História da
Salvação se destinava, a partir de um especial chamamento, a uma
especial eleição. Abandona as divindades pagãs e a idolatria, converte-se a
Iahweh, que o toma para dele formar um Povo, o Povo de Iahweh. Não há
eleição ou vocação sem motivo, apenas por diletantismo ou sem uma
missão específica. Caberia ao Povo advindo de Abrão reconduzir o Homem
para a vida no Paraíso Perdido, ao Jardim de Deus, a ser significada na
Terra Prometida, agora a Abrão (Gn 12,7.14-17), futuramente ao Povo de
Deus (Ex 3,8), para aquela vida em comunhão e intimidade perdidas com a
Queda Original, tal como Jesus revelar-nos-á:

"...hoje estarás comigo no PARAÍSO" (Lc 23,43).

Humanamente falando, não é outro o Plano de Deus para a libertação do


Homem das desastro-sas conseqüências do seu afastamento da sua
original participação na vida divina. É um ato gratuito e fiel de Deus, fruto de
Sua Misericórdia e Justiça, uma coerência dinâmica que Lhe é imanente,
sem nenhum mérito do Homem. A vocação, a eleição e a missão são
gratuitas, às quais Deus somente su-bordina a Fé, condição de uma
entrega incondicional e obediente, resposta natural do Homem, intuiti-va
mesmo, em direção ao que Deus lhe oferece:

"Pela FÉ Abraão, sendo chamado, obedeceu, saindo para um lugar que havia
de receber por herança; e saiu, sem saber para onde ia. Pela FÉ peregrinou na
terra da promessa, como em terra alheia, habitando em tendas..." (Hb 11,8-9)
"Como está escrito: Por pai de muitas nações te constituí, perante aquele no
qual creu, a saber, Deus, que vivifica os mortos, e chama as coisas que não são,
como se já fossem. O qual, em esperança, creu contra a esperança, para que se
tornasse pai de muitas nações, conforme o que lhe fora dito: Assim será a tua
descendência; e sem se enfraquecer na fé, considerou o seu pró-prio corpo já
amortecido, pois tinha quase cem anos, e o amortecimento do ventre de Sara;
contudo, à vista da promessa de Deus, não vacilou por incredulidade, antes foi
fortalecido na fé, dando glória a Deus, e estando certíssimo de que o que Deus
tinha prometido, também era poderoso para o fazer. Pelo que também isso lhe
foi imputado como justiça" (Rm 4,17-20).

Para Abrão aquela promessa de “nele serem abençoadas todas as nações


da terra” (Gn 12,3), trazia em germe a existência de descendentes seus
com a estéril Sarai (Gn 11,30). Quando se apre-sentou o Protoevangelho
foi demonstrada a posição da mulher na História da Salvação e a
esterilidade habitual de todas as que lhe são vinculadas. (veja Capítulo I,
n.º 8). Deixa-se então conduzir por Deus, abandonando tudo e até mesmo
a sua tribo, familiares e parentes, para fazer-Lhe a vontade. Foi essa fé,
com a atitude que lhe adveio, que lhe valeu, também a qualidade de “justo”;
e, o deslocar-se de seu meio, entregar-se ao Plano de Deus, condicionou-o
a ser “a fonte” do Povo de Deus. Deu um povo para Deus, um agrupamento
humano em torno da Vontade dEle, subordinando-se apenas e tão so-
mente a Seus desígnios, um povo que vivesse em sua familiaridade e lhe
divulgasse a crença e a entre-ga por um testemunho vivo:

“...cumular-te-ei de bênçãos e farei a tua posteridade numerosíssima como as


estrelas do céu, e como a areia da praia do mar..., e na tua descendência dir-se-
ão benditas todas as nações...” (Gn 22,17-18).

Abandonando tudo, toma a sua mulher, seu sobrinho Ló, com tudo o que
possuía, e foi para a terra de Canaã, terra que era destinada "à tua
descendência":

"Partiu, pois Abrão, como o Senhor lhe ordenara, e Ló foi com ele. Tinha
Abrão se-tenta e cinco anos quando saiu de Harã. Abrão levou consigo a Sarai,
sua mulher, e a Ló, filho de seu irmão, e todos os bens que haviam adquirido, e
as pessoas que lhes acresceram em Harã; e foram à terra de Canaã. Passou
Abrão pela terra até o lugar de Siquém, até o carvalho de Moré. Nesse tempo
estavam os cananeus na terra. Apareceu, porém, o Senhor a Abrão, e disse: À
tua descendência darei esta terra. Abrão, pois, edificou ali um altar ao Senhor,
que lhe aparecera. Então passou dali para o monte ao oriente de Betel, e armou
a sua tenda, ficando-lhe Betel ao ocidente, e Hai ao oriente; também ali
edificou um altar ao Senhor, e invocou o nome do Senhor" (Gn 12,4-8).

Os livros da Sagrada Escritura não foram escritos especialmente para nós,


mas para os Israelitas do tempo e resumidamente, os quais conheciam os
fatos e acontecimentos com os detalhes culturais da época, e se
destinavam à finalidades as mais das vezes litúrgicas. Eram apenas
auxiliares à memória ou recordação, dispensando-se os pormenores já
conhecidos. Este trecho é um exemplo característico disso: Abrão ao
percorrer a área que Deus lhe prometera, procura os "lugares altos", sob
uma árvore, um carvalho, onde os antigos cultuavam os seus deuses,
sacrificavam e se doutrinavam, para ali erguer um altar e invocar o Senhor,
e satisfazer as particularidades referentes a um sacrifício, desde então o
centro do culto. Abrão erradica os cultos pagãos ao "edificar um altar ao
Senhor, e invocando o nome do Senhor", continuando assim a "invocar o
Senhor" como se iniciou com Enós, o filho de Set (Gn 4,26).

2. ABRAÃO NO MUNDO DE ENTÃO

Prosseguindo a narrativa registra-se um episódio que mostra as condições


culturais do tempo em que Abrão começa a sua "peregrinação". Mostra-se
outra conseqüência do pecado: "era grande a fome na terra" (Gn 12,10), e
Abrão desce ao Egito, o celeiro do mundo de então, em busca de
sobrevivência:

"Perto de entrar no Egito, disse a Sarai, sua mulher: “Eu sei que és bonita,
vendo-te, os egípcios dirão ‘esta é a mulher dele’ e matar-me-ão, conservando-
te com vida. Dize, te peço, que és minha irmã, para que me tratem bem por tua
causa e graças a ti minha vida seja salva”. Quando Abrão entrou no Egito, os
egípcios viram que sua mulher era ver-dadeiramente muito bonita. Ao vê-la, os
oficiais do Faraó a elogiaram muito diante dele pelo que ela foi levada para o
palácio do Faraó. Quanto a Abrão, foi muito bem tratado por causa dela,
ganhando ovelhas, bois e jumentos, escravos e escravas, mulas e came-los" (Gn
12,11-16).

Essa atitude de Abrão assusta por demais, principalmente o cristão que não
pode concordar com essa entrega da esposa para ser levada ao harém do
faraó. Aqui também se impõe a necessidade de se deslocar mentalmente
ao tempo do acontecido e analisá-lo como então, não como hoje. 0ra,
Abrão estava consciente de sua missão e detentor de uma promessa de
Deus, a que tinha de corresponder eficazmente, ao que se aliam várias
outras situações peculiares. Uma delas é a da luta pela so-brevivência num
país hostil e de cultura diferente, acontecendo exatamente o que Abrão
havia previsto e temido, pelo que teve sua vida não somente poupada mas
enriqueceu-se "por causa dela, ganhando ovelhas, bois e jumentos,
escravos e escravas, mulas e camelos" (Gn 12,16). 0utra delas é a
inexistên-cia do mesmo conceito moral uniforme e organizado que temos
hoje, além de idêntica e adequada hie-rarquia de valores, mas normas de
conduta e comportamento as mais das vezes isoladas e rudimenta-res,
instintivas mesmo, ditadas pela sobrevivência. 0 que nos impõe é não o
condenar pelas nossas leis morais, já que se manifestava uma das
conseqüências do pecado original, sempre em conflito com o "justo",
tateando e debatendo-se, num mundo confuso e desordenado. Conclui-se
que houve uma in-tervenção de Deus em defesa da integridade ameaçada
de Sarai, protegendo-a, porque "o Senhor feriu o faraó e sua corte com
grandes flagelos por causa de Sarai, esposa de Abrão" (Gn 12,17 / Gn
20,4.14.16).

Este fato vai se repetir igualmente em Gerar, com Abimelec (Gn 20), bem
como a intervenção de Deus, salvaguardando de qualquer violação a
integridade de Sarai (Gn 12,17 / 20,3.4.14.16), e em defesa do casal,
protegendo e tutelando seus eleitos, uma vez que Sarai era "meia-irmã"
dele, filha do mesmo pai se bem que de mãe diferente (Gn 20,12-13). O
que se buscava era livrá-los da morte em vista da missão a que os elegera,
pelo que, tal como no Jardim do Éden, a proteção de Deus, que "fez para
eles túnicas de peles e os vestiu" (Gn 3,21), se repete. 0s desígnios de
Deus são irreversíveis, e para conduzir o Homem ao Paraíso, vai formar um
povo a partir de Abrão, que sai do Egito rico (Gn 13,2), retornando à Terra
de Canaã, "ao lugar onde anteriormente erigira um altar, e ali invocou o Se-
nhor" (Gn 13,4). De novo o sacrifício como centro do culto a Deus e da vida
do Patriarca. Da mesma maneira que ocorreu com Abrão, o povo dele
advindo também irá, pelo mesmo motivo da fome, para o Egito e de lá
também será expulso rico, pelo faraó (Gn 15,13 / Ex 12,36.51).

Surge sério problema entre os pastores de Abrão e os de Ló (Gn 13,5-12),


tendo em vista difi-culdades com o pastoreio em virtude da exiguidade das
pastagens, insuficientes para a movimentação de ambos os rebanhos.
Abrão não se deixa perturbar, e em nome da paz deixa ao sobrinho a
faculdade da escolha do local que melhor lhe servisse. Aparece de novo o
"justo" a se debater num mundo que lhe é hostil, atingindo até mesmo a sua
vida familiar, por circunstâncias advindas do desequilíbrio rei-nante na
natureza em conseqüência do pecado, bem como da agressividade até
mesmo de seus pasto-res com os de membro de sua própria família. Não é
outro o motivo por que o narrador inclui aqui esse episódio, em virtude do
que Abrão permanece na Terra de Canaã que lhe foi prometida, enquanto
Ló vai morar numa "cidade", como já se viu, desde Caim, vista como lugar
de perdição:

"Abrão permaneceu no país de Canaã, enquanto Ló se estabeleceu nas cidades


do vale e armava suas tendas até Sodoma. Ora, os habitantes de Sodoma eram
muito perversos e pecavam gravemente contra o Senhor" (Gn 13,12-13).

Abrão é novamente premiado por sua fé, bem evidenciada pelo modo
pacífico de contornar e solucionar a divergência, sem perder ao menos de
leve o equilíbrio, mesmo sofrendo a injustiça do egoísmo de Ló, escolhendo
a melhor porção (Gn 13,10-12), ficando-lhe a da Promessa, pelo que Deus
a ratifica:
"O Senhor disse a Abrão, depois que Ló se separou dele: “Levanta os olhos e,
do lugar onde estás, contempla o norte e o sul, o oriente e o ocidente. Toda essa
terra que vês, darei a ti e à tua descendência para sempre. Tornarei tua
descendência como o pó da terra. Se alguém pudesse contar o pó da terra,
contaria também tua descendência. Levanta-te e percorre este país de ponta a
ponta porque será a ti que o darei”. Abrão levantou as tendas e foi morar junto
ao carvalho de Mambré, perto de Hebron, onde construiu um altar para o
Senhor" (Gn 13,14-18).

"...e à "tua descendência" para sempre" - São Paulo revela a existência


neste trecho de um anúncio de Cristo:

"Ora, as promessas foram feitas a Abraão e à descendência dele. Não diz: “e a


teus descendentes”, como se fossem muitos, mas fala de um só: e a tua
descendência que é Cristo" (Gl 3,16).

Já se percebe que na realidade Cristo é a razão primeira e única das


Escrituras Sagradas, e que o Antigo e o Novo Testamentos na verdade não
passam de um só, o anunciado naquele é cumprido neste, além da clara
presença de dificuldades inúmeras advindas dos desencontros causados
pelas con-seqüências do pecado em toda a criação que irá sanar:

"Porque a criação aguarda com ardente expectativa a revelação dos filhos de


Deus. Porquanto a criação ficou sujeita à vaidade, não por sua vontade, mas
por causa da-quele que a sujeitou, na esperança de que também a própria
criação há de ser liberta do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória
dos filhos de Deus. Porque sabemos que toda a criação, conjuntamente, geme e
está com dores de parto até agora" (Rm 8,19-22).

Abrão se depara com outra situação de fato, uma guerra entre cinco
cidades em virtude do que Ló com as suas posses é levado como parte do
saqueado de Sodoma e Gomorra pelos vencedores (Gn 14,1-12). Avisado,
Abrão vai em socorro do sobrinho, com um grupo de apenas trezentos e
dezoito homens, liberta-o e a todos os prisioneiros bem como recupera
todos os bens saqueados. Aparece aqui o justo em luta com o mundo que
lhe é totalmente avesso, onde não se porta como um covarde nem foge à
luta. Numa espécie de guerrilha ("à noite") vence e liberta tudo e todos,
além do seu sobrinho com seus pertences (Gn 14,15-16). O rei de Sodoma
lhe dá todos os bens e reclama as pessoas liber-tadas. Aparece então uma
figura misteriosa por demais:

"Ora, Melquisedeque, rei de Salém, trouxe pão e vinho; pois era sacerdote do
Deus Al-tíssimo; e abençoou a Abrão, dizendo: bendito seja Abrão pelo Deus
Altíssimo, o Cria-dor dos céus e da terra! E bendito seja o Deus Altíssimo, que
entregou os teus inimigos nas tuas mãos! E Abrão deu-lhe o dízimo de tudo"
(Gn 14,18-20).
Porém, o fato de Abrão receber dele uma bênção e pão e vinho, como
oferendas de sacrifício, e entregue o dízimo dos despojos advindos pela
vitória, evidenciam a identidade de uma fé comum:

"Disse o Senhor ao meu Senhor: Assenta-te à minha direita, até que eu ponha
os teus inimigos por escabelo dos teus pés. (...) Jurou o Senhor, e não se
arrependerá: Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedec.
(Sl 110,1-4).

"Porque este Melquisedeque, rei de Salém, sacerdote do Deus Altíssimo,


que saiu ao encontro de Abraão quando este regressava da matança dos
reis, e o abençoou, a quem também Abraão separou o dízimo de tudo
sendo primeiramente, por interpretação do seu nome, rei de justiça, depois
também rei de Salém, que é rei de paz; sem pai, sem mãe, sem
genealogia, não tendo princípio de dias nem fim de vida, mas feito
semelhan-te ao Filho de Deus, permanece sacerdote para sempre.
Considerai, pois, quão grande era este, a quem até o patriarca Abraão deu
o dízimo dentre os melhores des-pojos (...) Ora, sem contradição alguma, o
menor é abençoado pelo maior". (Hb 7,1-7).

Vê-se que o Antigo Testamento transborda Cristo desde as primeiras


narrativas, prefigurando-O em quase todos os personagens que aparecem.
Assim Melquisedec "é feito semelhante ao Filho de Deus", e tal como Ele
"permanece sacerdote para sempre". É que a família ou tribo a que Jesus
per-tencia, Judá, segundo a sua genealogia, não fora destinada ao
exercício do sacerdócio, mas a tribo de Levi (Ex 29 / Nm 3,5+ e 8,14+). Isso
é o que diz a Epístola aos Hebreus:

"E os que dentre os filhos de Levi recebem o sacerdócio têm ordem, segundo a
lei, de tomar os dízimos do povo, isto é, de seus irmãos, ainda que estes também
tenham saído dos lombos de Abraão; mas aquele cuja genealogia não é contada
entre eles, tomou dízimos de Abraão, e abençoou ao que tinha as promessas"
(Hb 7,5-6).

"e abençoou a Abrão, dizendo: bendito seja Abrão pelo Deus Altíssimo, o
Criador dos céus e da terra! E bendito seja o Deus Altíssimo, que entregou os
teus inimigos nas tuas mãos! E Abrão deu-lhe o dízimo de tudo" (Gn 14,19-
20).

Prosseguindo a narrativa vê-se Abrão novamente se colocando em


contradição com o mundo, rejeitando os despojos a que tinha direito e de
boa vontade oferecidos, num claro reconhecimento de que os merecera.

"Então o rei de Sodoma disse a Abrão: Dá-me a mim as pessoas; e os bens


toma-os para ti. Abrão, porém, respondeu ao rei de Sodoma: Levanto minha
mão ao Senhor, o Deus Altíssimo, o Criador dos céus e da terra, jurando que
não tomarei coisa alguma de tudo o que é teu, nem um fio, nem uma correia de
sapato, para que não digas: Eu enriqueci a Abrão; salvo tão somente o que os
mancebos comeram, e a parte que toca aos homens Aner, Escol e Manre, que
foram comigo; que estes tomem a sua parte" (Gn 14,21-24).

Não há dúvida alguma de que os fatos acontecidos geraram séria


dificuldade em Abrão, que acontecem sempre com aqueles eleitos de Deus,
colocados que são em posição não muito sintonizada com o mundo que os
cerca, pelo que o próprio Deus o busca fortalecer:

"Depois destes acontecimentos veio a palavra do Senhor a Abrão numa visão,


dizendo: Não temas, Abrão; eu sou o teu escudo, o teu galardão será
grandíssimo. Então disse Abrão: Ó Senhor Deus, que me darás, visto que
morro sem filhos, e o herdeiro de mi-nha casa é o damasceno Eliezer? Disse
mais Abrão: A mim não me tens dado filhos; eis que um nascido na minha casa
será o meu herdeiro" (Gn 15,1-3).

Abrão está livre e desapegado dos bens materiais, é o que demonstram a


sua atitude com refe-rência às pastagens reclamadas por Ló e aqui aos
despojos a que tinha direito, mas está consciente de sua eleição e a quer
ver realizada. Mescla ainda à Obra de Deus suas providências humanas e
não se curva a nada, buscando apenas a vontade de Deus. Nem mesmo se
deixa dominar pela cobiça e ambi-ção, já se manifestando livre de uma das
primeiras conseqüências do rompimento do Homem com Deus, fruto do
primeiro lance do orgulho humano. Já se libertara por primeiro do apego
aos bens como um sentimento de segurança, deixando-o repousar apenas
em Deus. Demonstra a sua condição de livre, libertando os seus
semelhantes e não se apegando aos despojos, nem humanos nem
materiais. Só quem é livre liberta. Só liberta da cobiça e ambição quem é
livre da cobiça e ambição. Só liberta do pecado quem é livre do pecado. Ai
Abrão é "pré figura" de Cristo, eis que Cristo liberta do pecado por ser livre
do pecado.

A própria Bíblia quase sempre fornece os subsídios para se compreender


alguma obscuridade que apareça, tal como aqui a causa da reclamação de
Abrão. Num mundo que lhe era terrivelmente hostil, lutando com todas as
suas energias e usando de toda a paciência e controle possíveis, ainda não
vira se concretizar a Promessa que Deus lhe havia feito de que "toda essa
terra que vês, darei a ti e à tua descendência para sempre" (Gn 13,14-18).
Abrão não fora assaltado por aquela dúvida que contradiz a fé. Nunca! Foi
uma espécie de indecisão que lhe imprimiu a natureza, confusa ao avaliar
apenas as condições humanas, enfraquecidas pelas conseqüências do
pecado original, em confronto e em avaliação real em face da entrega
incondicional nas mãos de Deus que operava.

Tendo Deus lhe prometido dar e à descendência dele a terra em que


peregrinava, viu que nessa promessa estava embutida a geração de filhos
dele com sua mulher Sarai, e até aquele momento não vieram. É claro que
sentiu dificuldades em compreender a situação e assim "temeu", vindo
Deus em seu socorro, após ouvir que "morro sem filhos", e a quem deixar a
herança de Deus:

"Ao que lhe veio a palavra do Senhor, dizendo: Este não será o teu herdeiro;
mas aquele que sair das tuas entranhas, esse será o teu herdeiro. Então o levou
para fora, e disse: Olha agora para o e conta as estrelas, se as podes contar; e
acrescentou-lhe: Assim será a tua descendência" (Gn 15,4-5).

Era a recompensa da renúncia, daquela renúncia de si mesmo que


convulsionou e impulsionou a História da Salvação, dessa História que foi e
está sendo escrita exclusivamente por Deus, que pela Aliança refaz o
mesmo apelo do Éden ao coração do Homem. Ao chamado de Deus, Abrão
responde, após tão convulsionada esperança, mostrando o sinal indelével
que marcará a Obra da Redenção, a FÉ:

"Abrão creu em Deus, e isto foi-lhe creditado como justiça" (Gn 15,6).

O sentido aqui é o que se lê: pela fé que teve a sua conta com Deus foi
quitada. Assim, a Fé de Abrão que lhe valeu a "justificação" e o tornar-se "o
Pai de todos os crentes" (Rm 4,11), serve de mo-delo perene para todos os
fiéis de todos os tempos

"Pela fé Abraão, sendo chamado, obedeceu, saindo para um lugar que havia de
receber por herança; e saiu, sem saber para onde ia. Pela fé peregrinou na
terra da promessa, como em terra alheia, habitando em tendas com Isaac e
Jacó, herdeiros com ele da mesma promessa; porque esperava a cidade que
tem os fundamentos, da qual o arqui-teto e edificador é Deus" (Hb 11,8-10).

Também São Tiago na sua Epístola vai a ela se referir, para vinculá-la à
necessidade de expres-são em obras para não ser uma "fé morta":

"Vês que a fé cooperou com as suas obras, e que pelas obras a fé foi
aperfeiçoada; e se cumpriu a escritura que diz: E creu Abraão em Deus, e isso
lhe foi imputado como justiça, e foi chamado amigo de Deus" (Tg 2,22-23).

3. A ALIANÇA ESBOÇADA

Abrão prossegue apresentando as suas dificuldades a Deus com toda a


franqueza e liberdade que caracterizam uma amizade profunda e Deus por
sua vez o vai robustecendo e amadurecendo na fé:

"Disse-lhe mais: Eu sou o Senhor, que te tirei de Ur dos caldeus, para te dar
esta terra em herança. Ao que lhe perguntou Abrão: Ó Senhor Deus, como
saberei que hei de herdá-la? Respondeu-lhe: Toma-me uma novilha de três
anos, uma cabra de três anos, um carneiro de três anos, uma rola e um
pombinho. Ele, pois, lhe trouxe todos estes animais, partiu-os pelo meio, e pôs
cada parte deles em frente da outra; mas as aves não partiu. E as aves de
rapina desciam sobre os cadáveres; Abrão, porém, as enxotava. Ora, ao pôr do
sol, caiu um profundo sono sobre Abrão; e eis que lhe sobrevieram grande
pavor e densas trevas. (...) Quando o sol já estava posto, e era escuro, eis um
fogo fumegante e uma tocha de fogo, que passaram por entre aquelas metades.
Naquele mesmo dia fez o Senhor uma Aliança com Abrão, dizendo: Á tua
descendência tenho dado esta terra, desde o rio do Egito até o grande rio
Eufrates; e o queneu, o quenizeu, o cadmoneu, o heteu, o perizeu, os refains, o
amorreu, o cananeu, o girgaseu e o jebu-seu" (Gn 15,7-12.17-21).

Para melhor compreensão separamos os versículos 13-16 que anuncia um


fato a que já nos re-ferimos no comentário anterior: a identidade de
acontecimentos com o povo advindo de Abrão no Egito:

"Então disse o Senhor a Abrão: Sabe com certeza que a tua descendência será
peregri-na em terra alheia, e será reduzida à escravidão, e será afligida por
quatrocentos anos; sabe também que eu julgarei a nação a qual ela tem de
servir; e depois sairá com muitos bens. Tu, porém, irás em paz para teus pais;
em boa velhice serás sepultado. Na quarta geração, porém, voltarão para cá;
porque a medida da iniqüidade dos amorreus não está ainda cheia" (Gn 15,
13-16).

Esse episódio de repartir animais em duas partes, nos é por demais


estranho e incompreensível. Por isso dissemos acima e na Introdução que
a Bíblia não foi escrita especificamente para nós, mas para pessoas que
tinham familiaridade cultural com o acontecimento e conheciam
detalhadamente to-dos os fatos. Vamos procurar esclarecer a situação
partindo da própria Bíblia, segundo a qual, referin-do-se ao mesmo ritual:

"Entregarei os homens que transgrediram a minha Aliança, e não cumpriram


as palavras da Aliança que fizeram diante de mim com o bezerro que
dividiram em duas partes, passando pelo meio das duas porções - os príncipes
de Judá, os príncipes de Jerusa-lém, os eunucos, os sacerdotes, e todo o povo da
terra, os mesmos que passaram pelo meio das porções do bezerro, entregá-los-
ei, digo, na mão de seus inimigos, e na mão dos que procuram a sua morte. Os
cadáveres deles servirão de pasto para as aves do céu e para os animais da
terra" (Jr 34,18-20).

Verifica-se pelas palavras acima do Profeta Jeremias que se trata de um


juramento a cujo sacri-fício eram entregues os que não o cumprissem,
donde o pavor de Abrão, ouvindo uma referência futu-ra de Deus ao povo a
que dará origem, pelo que teme supondo referir-se a ele, apesar de
somente se evidenciar a presença de Deus significado no fogo a cruzar os
animais oferecidos. É que naquele ceri-monial Deus realmente incluía "a
sua descendência" (Gl 3,8), Jesus Cristo, que iria sofrer a punição pela
original violação humana. Mesmo assim Abrão é partícipe da Aliança de
Deus cujo início já se concretiza, com uso do fogo já representando a
presença de Deus em várias etapas da História da Sal-vação (Ex 3,2;
13,21; 19,18). Fica-lhe claro pelo juramento a vontade de Deus em dar-lhe
uma des-cendência numerosa como as estrelas do céu, e a quem daria
aquela terra em que peregrinava.
Passam-se dez anos e fica positivado que Sarai era estéril, a quem
naturalmente teria sido nar-rada esperançosamente a promessa, e ambos
encontram então uma maneira de resolvê-lo com um arti-fício, como sói
acontecer quando se pretende atender aos desígnios de Deus com uma
solução huma-na:

"Ora, Sarai, mulher de Abrão, não lhe dava filhos. Tinha ela uma serva
egípcia, que se chamava Agar. Disse Sarai a Abrão: Eis que o Senhor me tem
impedido de ter filhos; toma, pois, a minha serva; talvez eu possa ter filhos por
meio dela. E ouviu Abrão a voz de Sarai. Assim Sarai, mulher de Abrão, tomou
a Agar a egípcia, sua serva, e a deu por mulher a Abrão seu marido, depois de
Abrão ter habitado dez anos na terra de Canaã. E ele conheceu a Agar, e ela
concebeu..." (Gn 16,1-4a).

Pelos costumes de então os filhos assim gerados eram considerados filhos


de Sarai, com o que satisfar-se-ia a promessa de Deus, há dez anos
passados. Após o engravidamento de Agar, vários fatos ocorrem,
característicos da cultura da época, mostrando que apesar do
"concubinato" de Abrão com ela, Sarai não perdera sua condição de
legítima, chegando, conforme exigira de Abrão, a oprimir de tal forma sua
escrava que ela fugiu. No deserto em desespero tem a visão do anjo que
determina o seu retorno e submissão à Sarai, com a promessa de fazer de
seu filho Ismael, como será chamado, um grande povo (Gn 16,4b-16).

4. A ALIANÇA ESTABELECIDA

Para Abrão e Sarai a condição básica para a grande posteridade dele ficara
então satisfeita com o nascimento de Ismael (Gn 16,15-16). Deus então se
manifesta e dá à Aliança uma nova dinâmica, até agora não vista:

"Quando Abrão tinha noventa e nove anos, apareceu-lhe o Senhor e lhe disse:
Eu sou El-Shaddai (=o Deus Todo-Poderoso); anda em minha presença, e sê
perfeito; e fir-marei a minha Aliança contigo, e sobremaneira te multiplicarei"
(Gn 17,1).

Até então a Aliança era unilateral, sem nada exigir da conduta e


comportamento do Homem a não ser alguma forma de expressão ritual
qual aquela de "não comer o sangue dos animais" da Aliança do Dilúvio
(Gn 9,4). Desta vez exige e promete: "anda em minha presença, e sê
perfeito; e firmarei a minha Aliança contigo, e sobremaneira te multiplicarei",
e passa a ser um acordo entre duas vontades conscientes. Busca-se assim
recuperar para o Homem a "imagem e semelhança de Deus" (Gn 1,26), que
"deverá refletir como num espelho" (2Cor 3,18), a "perfeição" divina, que
não se confunde com a "corrupção" advinda do mundo profano. "Andar na
'presença' de Deus", diferentemente de Adão e Eva que tiveram de se
'esconder' por causa da desordem que cometeram, é cumprir consciente e
fielmente a Sua Santa Vontade, não causando motivo, por sua conduta,
para dele se afastar. Ora, isso exige fé e tomada de consciência maiores
que o instinto de sobrevivência num mundo hostil e des-viado do seu
Criador. Estamos diante de uma das manifestações majestosas e solenes
de Iahweh (="teofania") que aqui recebe o nome de El-Shaddai (Ex 6,3 = "O
Todo Poderoso"), tanto que: "...Abrão se prostrou com o rosto em terra..."
(Gn 17,3a). O tempo de treze anos decorrido desde o nascimento de Ismael
faz admitir e supor algum motivo sério necessário à Aliança, apenas
esboçada e no seu nascedouro. Tudo indica que a solução humana de
Abrão e Sarai com a geração de Ismael exi-ge um amadurecimento de
ambos no conhecimento de Deus, eis que demonstraram com seu gesto
não compreender-LHE o desígnio, quanto às características e dimensões
dela:

"...e Deus falou-lhe, dizendo: Quanto a mim, eis que a minha aliança é contigo,
e serás pai de muitas nações; não mais serás chamado Abrão, mas Abraão será
o teu nome; pois por pai de muitas nações te hei posto; far-te-ei frutificar
sobremaneira, e de ti farei nações, e reis sairão de ti; estabelecerei a minha
aliança contigo e com a tua descendên-cia depois de ti em suas gerações, como
aliança perpétua, para te ser por Deus a ti e à tua descendência depois de ti.
Dar-te-ei a ti e à tua descendência depois de ti a ter-ra de tuas peregrinações,
toda a terra de Canaã, em perpétua possessão; e serei o seu Deus" (Gn 17,3b-
8).

Quando Abrão "prostra com o rosto em terra" (Gn 17,3) demonstra


eficazmente a sua adesão e fé incondicional em Deus, bem como a
aceitação dos termos da Aliança, agora com a firme e incondi-cional
exigência de obediência, culto e adoração exclusivos, e pelo próprio Deus
traduzido num sinal, o da circuncisão:

"Disse mais Deus a Abraão: Ora, quanto a ti, guardarás a minha aliança, tu e a
tua des-cendência depois de ti, nas suas gerações. Esta é a minha aliança, que
guardareis entre mim e vós, e a tua descendência depois de ti: todo varão
dentre vós será circuncidado. Circuncidar-vos-eis na carne do prepúcio; e isto
será por sinal de aliança entre mim e vós" (Gn 17,9-11).

Tão fundamental é essa instituição que o não cumprimento dela determina


que "...o que não se circuncidar na carne do prepúcio, será extirpado do
seu povo; violou a minha aliança" (Gn 17,13b-14). Todos os homens
estavam subordinados à exigência, até mesmo escravos e estrangeiros (Gn
17,12-14). Deus que lhe muda o nome de Abrão para Abraão (= "pai de
uma multidão"), também muda nome de Sarai (= "minha princesa") para
Sara (= "princesa"). Quando Deus dá o nome a alguém, elegendo-o para
uma missão, assume-lhe o domínio, "...chamei-te pelo nome, meu tu és" (Is
43,1c):

"Disse Deus a Abraão: Quanto a Sarai, tua, mulher, não lhe chamarás mais
Sarai, po-rém Sara será o seu nome. Abençoá-la-ei, e também dela te darei um
filho; sim, abençoá-la-ei, e ela será mãe de nações; reis de povos sairão dela".
"Ao que se prostrou Abraão com o rosto em terra, e riu-se, e disse no seu
coração: A um homem de cem anos há de nascer um filho? Dará à luz Sara,
que tem noventa anos?" (Gn 17,15-17).

A grande dificuldade de Abraão agora se concretizava, eis que o tempo


passava, urgia e não acontecia, e agora, numa idade avançada por demais,
quando não mais se podia esperar uma gravidez normal de Sara, Deus
vem anunciá-la. Por isso Abraão ri! Não um riso de dúvida, riu crendo,
possuí-do por grande alegria e achando graça pelo contraste com que os
fatos se manifestavam. No máximo só poderia ocorrer aquela indecisão que
lhe teria impresso a natureza confusa ao avaliar apenas ambas as
condições humanas, enfraquecidas pelas conseqüências do pecado original
em confronto com a rea-lidade. Renúncia de si que se acentua, indício de
maturidade religiosa, no marco inicial da História da Salvação, história que
foi e está sendo escrita exclusivamente por Deus, seu único Autor. São
desses momentos em que Deus coloca os seus eleitos face a face com a
realidade de Seus Planos e da Missão a que foram eleitos, provando-os e
amadurecendo-os para tal. Pelos costumes de então Ismael era fi-lho de
Sara, e sentindo-o como que rejeitado Abraão se preocupa, quer se
esclarecer e pede por ele: "depois disse Abraão a Deus: Oxalá que viva
Ismael diante de ti!" (Gn 17,18), como se pedisse que se lembrasse dele
também, que era outro filho seu:

" E Deus lhe respondeu: Na verdade, Sara, tua mulher, te dará à luz um filho,
e lhe chamarás Isaque; com ele estabelecerei a minha aliança como aliança
perpétua para a sua descendência depois dele. E quanto a Ismael, também te
tenho ouvido; eis que o tenho abençoado, e fá-lo-ei frutificar, e multiplicá-lo-ei
grandemente; doze príncipes gerará, e dele farei uma grande nação. A minha
aliança, porém, estabelece-rei com Isaque, que Sara te dará à luz neste tempo
determinado, no ano vindouro. Ao acabar de falar com Abraão, subiu Deus
diante dele" (Gn 17,19-22).

Deus insiste em seu desígnio ouvindo o pedido dele pelo filho e


reafirmando a continuidade da Aliança com um filho de Sara, não com o da
escrava. Pelo que Sara também rirá quando ouvir o mesmo anuncio de sua
gravidez (Gn 18,9-15) e quando der à luz e o nome ao filho, significado no
nome Isaac (Gn 21,6), que é derivado da raiz hebraica para a palavra riso.
Assim explicado o riso ai mencionado, verifica-se que não se duvidou de
Deus um instante sequer, tal como São Paulo esclare-ce, evidentemente da
concepção tradicional israelita:
"...a fim de que a promessa seja firme a toda a descendência, não somente à
que é da lei, mas também à que é da fé que teve Abraão, o qual é pai de todos
nós. Como está escrito: Por pai de muitas nações te constituí perante aquele no
qual creu, a saber, Deus, que vivifica os mortos, e chama as coisas que não são,
como se já fossem. O qual, em esperança, creu contra a esperança, para que se
tornasse pai de muitas na-ções, conforme o que lhe fora dito: Assim será a tua
descendência; e sem se enfraque-cer na fé, considerou o seu próprio corpo já
amortecido, pois tinha quase cem anos, e o amortecimento do ventre de Sara;
contudo, à vista da promessa de Deus, não vacilou por incredulidade, antes foi
fortalecido na fé, dando glória a Deus, e estan-do certíssimo de que o que Deus
tinha prometido, também era poderoso para o fa-zer" (Rm 4,17-21).

Houvesse alguma dúvida, Abraão e Sara teriam recebido de Deus o mesmo


tratamento dado a Zacarias, o Pai de João Batista, que ficou mudo como
castigo de sua descrença (Lc 1,19-20). Por fim, Abraão imediatamente
parte para o cumprimento da Aliança e circuncida a todos os homens, a
partir de si mesmo e de seu filho Ismael (Gn 17,23-27). Essa instituição
será observada pelos seus descen-dentes de maneira tão severa e séria
que separar-se-á o mundo para eles em "circuncisos" e "incircun-cisos", e
quando do advento do cristianismo será a causa das crises iniciais de
conflito do judaísmo com a nova doutrina de Cristo.

A Aliança com o Homem é sempre um apelo de amor e comunhão de vidas


que parte de Deus, pois que por si só o Homem se tornou totalmente
impotente para fazê-lo, nada podendo conseguir por causa do abismo
erguido entre ambos pelas conseqüências dramáticas ocasionadas pelo
pecado origi-nal. Daí porque somente por ato livre de Deus é que se pode
conseguir seu cumprimento e eficácia, donde ser obra exclusiva dEle.
Amadurecido na fé e por ela justificado Abraão torna-se "Amigo de Deus"
(2Cro 20,7; Jdt 8,22; Is 41,8; Dn 3,35; Tg 2,23), vivendo então em Sua
intimidade e comunhão. Por isso, recebe a visita de três anjos e os
reconhece (Gn 18,1-33), considerados pelos Santos Padres dos primórdios
do cristianismo como "figuras" ou "anúncios" da Santíssima Trindade. É
que, quando a tradução não é "melhorada" pelo tradutor (que infelizmente
imprime à tradução sua opinião), os três são denominados ora em conjunto
(Gn 18,1), ora dois (Gn 18,20-22), ora um deles (Gn 18,23-33) pelo singular
"Meu Senhor", "tratando-os, de qualquer dos modos em que se
apresentem, como a uma só pessoa". São dois os motivos para a visita:
primeiro, ratificando os termos da Aliança contraída, o anúncio da gravidez
de Sara para o ano próximo. É quando chega a vez de Sara rir, tal como já
nos referimos acima, mais de surpresa e contentamento, nunca de dúvida
de fé, apesar do anjo insistir que "não há nada difícil para Deus" (Gn 18,14).
O segundo motivo foi comunicar a destruição de Sodoma e Gomorra, pois
considera-o tão "amigo" que dele não pode esconder "o que estou para
fazer" (Gn 18,17). Mas, tal comunicação tem outra finalidade, mais ligada à
Aliança:
"E disse o Senhor: Ocultarei eu a Abraão o que faço, visto que Abraão
certamente virá a ser uma grande e poderosa nação, e por meio dele serão
benditas todas as nações da terra? Porque eu o tenho escolhido, a fim de que
ele ordene a seus filhos e a sua casa depois dele, para que guardem o caminho
do Senhor, para praticarem retidão e justiça; a fim de que o Senhor faça vir
sobre Abraão o que a respeito dele tem fa-lado" (Gn 18,17-19).

É que a Aliança não se confinava a Abraão apenas, mas teria


prosseguimento em todos os seus termos com os seus descendentes por
meio dos quais "virá a ser uma grande e poderosa nação, e serão benditas
todas as nações da terra", desde que "seus filhos e a sua casa depois dele
guardem o cami-nho do Senhor, para praticarem retidão e justiça; a fim de
que o Senhor faça vir sobre Abraão o que a respeito dele tem falado". Por
isso a Aliança é conhecida também por Testamento, por causa da
continuidade do "legado" nas gerações subsequentes. Já se anuncia o
prosseguimento e a consecu-ção da Obra da Redenção do Homem na
descendência de Abraão - Jesus Cristo (Gl 3,16 / Mt 1,1):

"Ora, a Escritura, prevendo que Deus havia de justificar pela fé os gentios,


previamente anunciou a boa nova (= o "Evangelho") a Abraão, dizendo: Em ti
serão abençoadas todas as nações. De modo que os que são da fé são
abençoados com o crente Abraão" (Gl 3,8-9).

Dada a notícia, afirma Deus que "descerei para ver se as suas obras
chegaram a ser como o clamor que chegou até mim, e, se não, o saberei",
evidenciando pelo "descerei" o sobrenatural do quadro apresentado, tendo
Abraão sido elevado até Ele. E é nesse estado sobrenatural que Abraão vai
demonstrar a sua "elevação" espiritual (Gn 18,22-33), quando aparece que
"quanto mais Amigo de Deus, mais amigo dos homens". É o efeito natural
da caridade, "o Amor de Deus que se "derrama no coração do Homem pela
Graça" (Rm 5,5), o estado da "elevação" de Abraão, "justificado pela sua
fé". Vai regateando com Deus, paulatinamente se esforçando para salvar a
tudo e a todos da punição iminente e justa. Intercede habilidosamente e
com toda a humildade possível representada pelo modo de se expressar
próprio do tempo, cuidadosa e lentamente vai decrescendo o número de
pessoas boas que possivelmente possam existir nas duas cidades até um
mínimo de dez, bem razoável, ficando claro que existisse uma pequena
quantidade de justos nas localidades, Deus as pouparia por causa deles.
Prefigura esse quadro a Redenção que será operada por Jesus Cristo com
a Nova Aliança (Lc 22,20), unindo definitivamente o Homem a Deus na Sua
Igreja, a comunidade de seus discípulos refle-tindo a Graça e a Misericórdia
de Deus no mundo, que "perdoa a todo o lugar em atenção a eles" (Gn
18,26.28.30.31.32), "justificados" pelo Sangue do Cordeiro de Deus. Essa
comunhão de afetos entre Deus e Abraão, entre Deus e um Homem, é o
arquétipo da Caridade Cristã, tornada virtude humana na ação, mas de
fonte impulsionadora divina. Tal com lá, a caridade é a presença de Deus
entre os homens, em amizade e íntima comunhão de vidas, não mais entre
Criador e Criatura, mas entre Pai e Filho, que se difunde por mediação e
eleição dos "justos" a todos os outros, bons e maus. Repete-se sempre a
presença do "justo", do que faz a vontade de Deus, vivendo nos "caminhos
do Senhor, prati-cando a justiça e o direito" (Gn 18,19). Caridade é isso, é
viver a vontade de Deus para o Homem; começa em Deus e explode
radiante de beleza nos homens. O Homem não a cria, é fruto do amor e
misericórdia de Deus, propagando-se entre os homens assim como a fé e a
esperança. A caridade parte de Deus e não se confunde com nenhuma
ação humana, não se exaure na esmola nem em nenhuma assistência
social e supera qualquer atividade por mais humanitária que seja. A
caridade é a expressão da Aliança de Deus com o Homem:

"Longe de ti que faças tal coisa, que mates o justo com o ímpio, de modo que o
justo seja como o ímpio; esteja isto longe de ti. Não fará justiça o juiz de toda a
terra?" (Gn 18,25)

A confiante e diplomática intervenção de Abraão dá ao contexto a viva e


colorida visão da in-timidade vivencial de ambos. Deus é o único autor do
amor entre os homens, "justos e injustos, bons e maus" (Mt 5,45). Na
prática quando Abraão se referia aos justos, conseguia a salvação "do justo
e do ímpio". Não pediu que afastasse da cidade os justos nem pediu ao
menos por seu sobrinho Ló. Pedin-do que nada destruísse por causa dos
justos intercedeu pelos bons e maus, numa tentativa de salvá-los da
destruição iminente. Sem Deus não há amor fraterno, não há fraternidade,
falta um ponto comum de referência, eis que não há fraternidade sem um
Pai comum.

5. A ALIANÇA E SODOMA E GOMORRA

Jesus nos revela que Sodoma e Gomorra, tal como o Dilúvio, é outra
expressão das conse-qüências do pecado na Criação, e é um anúncio do
quadro revolucionário a ser causado no mundo criado quando da revelação
do Filho do Homem, ao erradicar definitivamente o pecado:

"Como aconteceu nos dias de Noé, assim também será nos dias do Filho do
homem. Comiam, bebiam, casavam e davam-se em casamento, até o dia em
que Noé entrou na arca, e veio o dilúvio e os destruiu a todos. Como também
da mesma forma aconteceu nos dias de Ló: comiam, bebiam, compravam,
vendiam, plantavam e edificavam; mas no dia em que Ló saiu de Sodoma
choveu do céu fogo e enxofre, e os destruiu a todos; assim será no dia em que o
Filho do homem se há de manifestar" (Lc 17,26-30).

O Evangelista coloca num mesmo plano o Dilúvio e Sodoma e Gomorra, e


os evidencia como transformações imprevisíveis, tal como acontecerá nos
dias da manifestação gloriosa do Filho do Ho-mem. É o que Jesus quis
alertar. Cabe-nos uma explicação para essa narrativa, tão idêntica às do
Dilú-vio e também da Torre de Babel, principalmente no colóquio franco e
aberto de Deus. Temos de apli-car novamente a mesma regra de nos
locomover abstratamente no tempo para a cultura do narrador. Que houve
a destruição das cidades houve, não há o que discutir. Porém, o importante
é o que signifi-cou para o narrador bíblico e o que corresponde ao
evidenciado pelos fatos. Estamos nos referindo ao "pecado" praticado nas
cidades e que recebeu a alcunha de "sodomia", formada a partir do nome
de Sodoma, para significar o homossexualismo então reinante (Gn 19,5) a
ponto de Ló reclamar a virgin-dade das filhas e ter coragem de oferecê-las
(Gn 19,8), pelo que foi rechaçado e atacado violentamen-te, sentindo-se
ofendidos pela intervenção e conduta moral dele, um "justo", que não se
contaminara com o mesmo pecado (Gn 19,9). Aparece aqui outra das
conseqüências do pecado original, agora numa manifestação da desordem
carnal e a da imoralidade generalizada na concupiscência advinda pela
inversão surgida do natural e normal.

Por primeiro, chama a atenção o "descerei" (Gn 18,21) tal como no relato
da Torre de Babel (Gn 11,6.7), mostrando a mesma concepção cultural de
um deus em figura de homem (visão "antro-pomórfica" de Deus), habitando
no "alto". Não pode ser diferente aqui a intenção do narrador, que-rendo
também evidenciar a continuidade e a coexistência das conseqüências do
pecado apesar da Ali-ança recém - contraída, vinculando ambos à
lembrança dos descendentes de Abraão para não perturba-rem mais ainda
pela sua conduta o cumprimento dos desígnios de Deus com a Aliança, que
vai recon-duzir o Homem à comunhão, intimidade e familiaridade perdidas:

"E disse o Senhor: Ocultarei eu a Abraão o que vou fazer, visto que Abraão
certamente virá a ser um grande e poderoso povo, e por meio dele serão
abençoadas todas as na-ções da terra? Porque eu o escolhi, para que ele ordene
a seus filhos e a sua casa depois dele que guardem o caminho do Senhor
praticando a retidão e a justiça; para que o Se-nhor cumpra em Abraão o que
lhe foi predito" (Gn 18,17-19).

Como Ló fora morar nas cidades pecadoras seria com elas vítima da
catástrofe. Mas, era ele também um "justo" e o narrador mostra como Deus
vem em socorro de seus fiéis e os protege, res-pondendo à eficaz
intervenção de Abraão em favor dos homens, e só as destrói após libertá-
lo:

"Porque se Deus não poupou (...) reduzindo a cinza as cidades de Sodoma e


Gomorra,
condenou-as à destruição, havendo-as posto para exemplo aos que vivessem
impia-mente; e se livrou ao justo Ló, atribulado pela vida dissoluta daqueles
perversos, por-que este justo, habitando entre eles, por ver e ouvir, afligia
todos os dias a sua alma justa com as injustas obras deles; também sabe o
Senhor livrar da tentação os piedosos, e reservar para o dia do juízo os
injustos, que já estão sendo castigados; especialmente aqueles que, seguindo a
carne, andam em imundas concupiscências, e desprezam toda autoridade"
(2Pe 2,4.6-10).

Pedro retoma a afirmação do narrador que já exprimia neste quadro


também e a seu modo a Obra da Redenção, principalmente quando insiste
com Ló para salvá-lo e a sua família (Gn 19,12-29), em atenção a Abraão:

"Ora, aconteceu que, destruindo Deus as cidades da planície, lembrou-se de


Abraão, e tirou Ló do meio da destruição, enquanto aniquilava as cidades em
que Ló habitara" (Gn 19,29). / Apressa-te, escapa-te para lá; porque nada
poderei fazer enquanto não ti-veres ali chegado..." (Gn 19,22).

Da destruição total somente restou Ló e duas filhas numa caverna, [morta


a mulher que foi pe-trificada em estátua de sal (Gn 19,16.26.30)], onde
praticam um "incesto" (Gn 19,36-37), com a "em-briaguez" do pai,
provocada por elas, supondo a inexistência da outros homens. Não deixa
de ser ou-tra cena isenta de críticas mesmo aos olhos daquela cultura,
apesar de ter sido necessário embriagar o pai para a consumação do ato,
tendo ocorrido uma força impulsionadora atuante por demais naqueles
tempos: a necessidade de descendência para o pai (Gn 19,32), num mundo
onde inexistia outros ho-mens. Não se pode deixar de ver ai atuando com
todas as forças o instinto de conservação da espécie a falar mais alto que
tudo; nem se pode estabelecer um julgamento com o aculturamento atual,
eis que tal necessidade de prole atualmente não tem o mesmo vigor. Da
mesma forma que após o Dilúvio aconteceu com Canaã (Gn 9,18-29),
aparece aqui outra justificativa para a inimizade reinante entre os israelitas
e dois outros povos parentes e vizinhos, os moabitas e os amonitas (Nm
22,1 / 26,3.63), tra-tados como "bastardos" (Dt 23,4), por serem eles
nascidos de um abominável "incesto" (Dt 27,20.23; Lv 18,6-18).

6. A ALIANÇA, ABRAÃO E ISAAC

Após essas situações dramáticas nasce Isaac (Gn 21,1-5), o Filho da


Promessa, causando gran-de alegria e regozijo. A esterilidade era motivo
de grande vergonha (Gn 30,23; 1Sm 1,5-8; 2Sm 6,23; Os 9,11) e a
fecundidade é sinal da presença de bênção de Deus. Por isso Sara se
regozija e manifesta tudo isso com o riso, como se nota das expressões
"Deus me deu motivo de riso e todo o que o ouvir rir-se-á comigo" e "lhe dei
um filho na sua velhice", "vantagens" de que se pode vangloriar. Daí vem
etimologicamente o nome de Isaac, que na sua raiz tem a conotação
indefinida "rir":

"Pelo que disse Sara: Deus me propiciou motivo de riso; todo aquele que o
ouvir, rir-se-á comigo. E acrescentou: Quem diria a Abraão que Sara havia de
amamentar fi-lhos? no entanto lhe dei um filho na sua velhice" (Gn 21,6-7).
Mas, no dia em que se comemorava o seu desmame, Sara viu Ismael
"gracejar" dele, Isaac (Gn 21,9), naturalmente em torno de seu nome...,
alguma piada de mau gosto, por exemplo, dirigida por um já rapazola a um
recém desmamado, uma criança ainda. A antiga tensão familiar (Gn 16,4d-
6) não desanuviara e agora se manifestava tanto no gracejo de Ismael,
conhecedor de tudo o que acontecera e as conseqüências para ele sendo
já pressentidas, como na reação de Sara que, violentamente aproveita a
oportunidade e exige uma atitude definitiva de Abraão (Gn 21,10). Ele, em
obediência a Deus, que já valorizava a esposa legítima, ao impulso de uma
visão e promessa com referência ao futuro do filho se tornando um grande
povo, expulsa-o com Agar (Gn 21,11-14). Tais acontecimentos vão ser
identifi-cados de várias maneiras aos cristãos vindos do paganismo,
quando São Paulo os interpreta conforme a diferença entre Ismael o filho
advindo da vontade e plano do homem e Isaac o Filho da Promessa,
advindo da Vontade e do Plano de Deus:

"Porque está escrito que Abraão teve dois filhos, um da escrava, e outro da
livre. To-davia o que era da escrava nasceu segundo a carne, mas, o que
era da livre, por pro-messa. O que se entende por alegoria: pois essas
mulheres são duas alianças; uma do monte Sinai, que dá à luz filhos para a
servidão, e que é Agar. Ora, esta Agar é o monte Sinai na Arábia e
corresponde à Jerusalém atual, pois é escrava com seus filhos. Mas a
Jerusalém que é de cima é livre; a qual é nossa mãe. Pois está escrito:
Alegra-te, estéril, que não dás à luz; esforça-te e clama, tu que não estás
de parto; porque mais são os fi-lhos da desolada do que os da que tem
marido. Ora vós, irmãos, sois filhos da promes-sa, como Isaac. Mas, como
naquele tempo o que nasceu segundo a carne perseguia ao que nasceu
segundo o Espírito, assim é também agora. Que diz, porém, a Escritura?
Lança fora a escrava e seu filho, porque de modo algum o filho da escrava
herdará com o filho da livre. Pelo que, irmãos, não somos filhos da
escrava, mas da livre" (Gl 4,22-31).

"Não que a palavra de Deus haja falhado. Porque nem todos os que são de
Israel são israelitas; nem por serem descendência de Abraão são todos filhos;
mas: Em Isaac será chamada a tua descendência. Isto é, não são os filhos da
carne que são filhos de Deus; mas os filhos da promessa são contados como
descendência. Porque a palavra da promessa é esta: Por este tempo virei, e
Sara terá um filho" (Rm 9,6-9).

Esses acontecimentos redundam para Abraão em atroz sofrimento,


debatendo-se entre as de-sordens de um mundo corrompido, coexistindo
com o mundo da Aliança no nascedouro. É de se ob-servar a existência de
narrativas muito estranhas para nós quanto aos costumes de então. Não
faz mal repetir que quando se lê a Bíblia deve-se evitar a precipitação de
um julgamento com base nos usos atuais, mas manter a naturalidade e
prestar atenção nesses procedimentos antigos, por demais encros-tados na
vida social e aparentando muitas vezes a forma de leis, dada a obrigação
que é imposta pelas próprias circunstâncias. No regime patriarcal, de
acordo com o conceito que dele se faz, uma mulher não poderia exigir com
a energia de Sara (Gn 21,10) que o marido expulsasse o próprio filho, com
a mãe, uma escrava então libertada, deixando-os sem nada, deserdando-o,
a não ser que o conceito seja precipitado e ao contrário existissem naquele
tempo normas sociais que assim autorizassem. Pode até mesmo parecer
uma espécie de alforria para a libertação da servidão de Agar, mas apesar
de tudo, isso não deixa de perturbar até mesmo o próprio Abraão que só o
fez após a intervenção de Deus com a promessa de protegê-los, já que "vai
tornar o filho um grande povo por ser da posteridade dele" (Gn 21,12-13).
Outra dificuldade aparece quanto ao acontecimento com Abimeleque em
Gerar, e já se analisou fato idêntico quando da estadia do casal no Egito e
a aliança com ele em Bersabéia, para a solução de pendência por causa de
poços de água (Gn 21,22-34), mostrando a continuidade da luta pela
sobrevivência a que se sujeitou até mesmo um "eleito". Cumpre ao leitor da
Bíblia sempre separar os costumes de então, não se deixando influenciar
no julgamento por questões assim acessórias, que não alteram em nada os
desígnios de Deus no desenrolar da História da Salvação, onde o escolhido
nelas vive e se debate. O essencial é que importa, qual seja, a fé vivida de
Abraão e demonstrada efi-cazmente por todos os seus atos:

"Abraão plantou uma tamargueira em Bersabéia, e invocou ali o nome do


Senhor, o Deus eterno. E peregrinou Abraão na terra dos filisteus muito
tempo" (Gn 21,33-34).

Esta presença de hostilidades do mundo contra o que sempre lutou Abraão


vai muito contribuir para a sua maturação e crescimento na fé, solidificando-
o para a missão que apenas se esboçava. Numa luta desigual, Abraão
ainda se vê em sérias dificuldades quanto aos costumes religiosos do tem-
po. São os momentos em que Deus coloca os seus eleitos face à face com
a realidade de Seus Planos e da Missão que lhe cabe, provando-os e
maturando-os para ela, momentos estes que chegam a ser dra-máticos.
Deus pede que lhe ofereça o próprio filho Isaac em sacrifício, o legítimo
herdeiro da Aliança, em quem concretizar-se-ia toda a esperança e solidez
da fé de Abraão:

"Sucedeu, depois destas coisas, que Deus provou a Abraão, dizendo-lhe:


Abraão! E este respondeu: Eis-me aqui. Prosseguiu Deus: Toma agora teu
filho, o teu único filho, Isaac, a quem amas; vai à terra de Moriá, e oferece-o ali
em holocausto sobre um dos montes que te hei de mostrar" (Gn 22,1-2).

A contradição é mais que evidente, pois ainda soavam aos ouvidos de


Abraão aquelas palavras de Deus, quando Lhe apresentara Ismael:

"...e lhe chamarás Isaac; com ele estabelecerei a minha aliança como aliança
per-pétua para a sua descendência depois dele. (...) A minha aliança, porém,
estabele-cerei com Isaac, que Sara te dará à luz neste tempo determinado, no
ano vindouro" (Gn17,18-21).

Porém, apesar disso, Abraão não vacila, crê! A prontidão da obediência de


Abraão, levantan-do-se cedo para cumprir a ordem de Deus e a seqüência
súbita da narrativa o demonstra. A fé o leva à obediência, servindo-lhe de
alicerce. Conduz Isaac imediatamente ao monte determinado para sacrifi-
cá-lo, como uma oferenda a Deus. E, sacrificar Isaac, que já nascera por
obra de Deus, em virtude da esterilidade natural de Sara, que já nascera
consagrado, deveria soar-lhe como um absurdo. E a situa-ção o coloca face
a face com duas posições: de um lado Deus, do outro lado o filho. Abraão
escolheu Deus:

"Levantou-se Abraão de manhã cedo, selou o seu jumento, e tomou consigo


dois de seus servos e Isaque, seu filho; e, cortou lenha para o holocausto, e
partiu para o lu-gar que Deus lhe dissera" (Gn 22,3).

Na opção por Deus é que se encontra a verdadeira libertação do Homem


de tudo que pode es-cravizá-lo, a começar pelo medo de que deve ter sido
assaltado, dada a confusão de emoções que pode ter sentido pela grande
contradição que ocorria. Já estava conformado com a esterilidade de Sara
e com Ismael sendo o seu único filho, quando o próprio Deus lhe acenara
com a felicidade de ter Isaac de sua mulher "legítima" Sara. Não pedira
mais um filho após aceitar o filho de Agar, escrava de Sara. E, agora, após
recebê-lo já quando a natureza lhe negava, vem Deus e exige dele o seu
holocausto, e o quer levar. Alguma coisa não estava nos eixos. Era um ser
humano, e sua reação seria humana, com todo o colorido sobrenatural do
acontecimento. E essa reação bem que poderia ser de medo, que é a
emoção natural que se tem quando se depara com situações contrárias,
contraditórias ou conflitantes, e até mesmo incompreensíveis. Na mente do
Patriarca ainda ressoava a voz de Deus dizendo-lhe ser "de Isaac que
nascerá a posteridade que terá o seu nome" (Gn 21,12); voz que lhe exige
agora a vítima Isaac em oferenda sacrificial. É uma grande dificuldade que
somente uma robusta fé consegue suportar e vencer. Claro lhe fica que
somente ele não entendia o acontecimento, Deus sabe o que faz e a fé de
Abraão completa tudo, apesar da enorme contradição. Para se cumprir o
que Deus afirmara quanto à Aliança, no sacrifício de Isaac a morte seria
vencida pela vida. Deus nele venceria a morte e a vida te-ria
prosseguimento, completamente restaurada. Isaac renasceria ali mesmo,
não morreria. Abraão teve assim em "figura" uma antevisão da
Ressurreição e nela creu, conforme o próprio Cristo dirá:

"Abraão, vosso pai, exultou por ver o meu dia; viu-o, e alegrou-se" (Jo 8,56).

Abraão não vacila e prossegue morro acima, consagrando a cada passo o


próprio filho. Perce-beu assim que já participava da Obra da Redenção do
Homem, e rejubilou-se com a sua proximidade:
"Pela fé Abraão, sendo provado, ofereceu Isaac; ofereceu o seu unigênito
aquele que recebera as promessas, e a quem se havia dito: 'Em Isaac será
assegurada a tua descen-dência', julgando que Deus era poderoso para até dos
mortos o ressuscitar; e daí tam-bém em figura o recobrou" (Hb 11,17-19).

Isaac carregava o lenho para a fogueira, Abraão o fogo sagrado. Morro


acima, ambos cami-nhavam ensimesmando, Abraão mudo de dor, Isaac
mudo de espanto:

"Meu pai!
...
Eis o fogo e a lenha, mas onde está o cordeiro para o holocausto?
...
Deus proverá o cordeiro para o holocausto, meu filho...." (Gn 22,7-8).

Falou a fé. Abraão ainda esperava em Deus e prossegue morro acima,


consagrando a cada pas-so o próprio filho. Sentiu então participar da Obra
da Redenção do Homem, e rejubilou com a proxi-midade da concretização
da promessa de que "por ti serão abençoadas todas as nações da terra"
(Gn 12,3). Quando ultimava os preparativos para imolar o próprio filho
Isaac, cuja submissão à vontade do próprio pai, que o oferece em sacrifício
o identifica a Cristo com a Cruz (cfr. Santos Padres - Tertulia-no, Agostinho,
Cipriano etc.), um anjo o impede:

"Mas o anjo do Senhor lhe bradou desde o céu, e disse: Abraão, Abraão! Ele
respon-deu: Eis-me aqui. Então disse o anjo: Não estendas a mão sobre o
menino, e não lhe fa-ças nenhum mal; porquanto agora sei que temes a Deus,
visto que não me negaste teu filho, o teu único filho. Nisso levantou Abraão os
olhos e olhou, e eis atrás de si um carneiro embaraçado pelos chifres no mato; e
foi Abraão, tomou o carneiro e o ofere-ceu em holocausto em lugar de seu filho.
..." (Gn 22,11-14).

Aqui se corporifica e recebe de Deus a aprovação a "substituição" eficaz do


ser humano por um animal, no caso "o cordeiro", em qualquer sacrifício
oferecido, no qual o ofertante é "substituído" pela vítima imolada,
recebendo ela a penitência dele, pelo que tomou o nome de resgate. Assim,
as palavras de Abraão a Isaac de que "Deus providenciará o cordeiro para
o sacrifício, meu filho" são proféticas e vão se concretizar no mesmo morro,
segundo antiga tradição (2Cro 3,1) no Sacrifício de Jesus Cristo na Cruz.
Maria como o "Novo Abraão", a Mãe dos Crentes, a Mãe da Igreja,
galgando o Calvário ao lado do Filho, tal como Abraão, que, como Isaac,
carregava o "Lenho" da Cruz, "cumpre" a Profecia de Abraão entregando
ao Pai "o cordeiro que o próprio Deus providenciara para o sacrifí-cio".

A prova a que Deus submete não se destina a um exame que Ele faz no
eleito para conhecê-lo, eis que o Deus Onisciente conhece tudo e todos
(1Sm 16,7). Destina-se ao amadurecimento e à toma-da de consciência
que cada um tenha de si mesmo e das dimensões da sua missão, dela
saindo então robustecido, pelo que Deus reforça e ratifica a Aliança.
Termina aqui a prova de Abraão e, não só de Abraão, mas também do
próprio Isaac o qual mudo dela participou, demonstrando ambos, para a
"descendência" deles, aptidão e maturidade para o prosseguimento da
Aliança. E como sempre Abraão remata com o sacrifício do carneiro, de
cujo holocausto a eficácia se comprova nas palavras do Anjo:

"Então o anjo do Senhor bradou a Abraão pela segunda vez desde o céu, e
disse: juro por mim mesmo, diz o Senhor, porquanto fizeste isto, e não me
negaste teu filho, o teu único filho, que te cumularei de bênçãos, e multiplicarei
extraordinariamente a tua des-cendência, como as estrelas do céu e como a
areia que está na praia do mar; e a tua descendência possuirá a porta dos seus
inimigos; e em tua descendência serão bendi-tas todas as nações da terra;
porquanto me obedeceste" (Gn 22,15-18).

Abraão, pela sua Fé, está no fundamento da Aliança, é o seu alicerce


humano e vai orientar sempre o caminho dela, sempre lembrado e sempre
exaltado (Sb 10,5; Eclo 44,19-22; 1Mb 2,52; Tg 2,20-24; Rm 4,1; Hb 11,8-
19), e até os dias de hoje, na Igreja de Cristo:

"Para reunir a humanidade dispersa, Deus escolheu Abrão, chamando-o para


"fora do seu país, da sua parentela e da sua casa" (Gn12,1), para o fazer
Abraão, quer dizer, "pai duma multidão de nações" (Gn 17,5): "Em ti serão
abençoadas todas as nações da Ter-ra" (Gn 12,3 LXX)" (Catecismo Da Igreja
Católica n.º 59; v. também n.°s. 144-147; 422; 1079-1080; 1819; 2570-2572 etc.).

"Desde o princípio, Deus abençoa os seres vivos, especialmente o homem e a


mulher. A aliança com Noé e todos os seres anima-dos renova esta bênção de
fecundidade, apesar do pecado do homem, que leva à maldi-ção da terra. Mas,
a partir de Abraão, a bênção divina penetra história dos homens, que
caminhava em direção à morte, para a fazer regressar à vida, à sua fonte: pela
fé do "pai dos crentes" que recebe a bênção, é inaugurada a história da
salvação" (idem n.° 1080)

Essa fé valer-lhe-á o título de "Pai dos Crentes":

"E recebeu o sinal da circuncisão, selo da justiça da fé que teve quando ainda
não era circuncidado, para que fosse pai de todos os crentes, estando eles na
incircuncisão, a fim de que a justiça lhes seja imputada, bem como fosse pai
dos circuncisos, dos que não somente são da circuncisão, mas também andam
nas pisadas daquela fé que teve nosso pai Abraão, antes de ser circuncidado"
(Rm 4,11-12)

"Sabei, pois, que os cren-tes é que são filhos de Abraão" (Gl 3,7).
7. A ALIANÇA E ISAAC, O FILHO DA PROMESSA

Existem determinados costumes antigos que não se identificam com o


aculturamento atual. Um deles é o de sempre se referir à genealogia das
pessoas de que toda a Escritura está cheia, desde Adão (Gn 5,1-32), Noé
(Gn 10,1-32), outras e assim até mesmo da criação (Gn 2,4).O interesse
principal é o de se conhecer a "origem", problema fundamental para os
israelitas em virtude da Aliança e da pos-sibilidade de conflito com uma
variedade enorme de pagãos com os mais "abomináveis" costumes (Gn
6,1-3) pela vinculação do clã a um ou mais deuses que em seus rituais
chegavam a oferecer em holo-causto até os filhos (Jr 32,35; 1Rs 16,34 2Rs
3,27; 23,10). Por tudo isso era necessário um conheci-mento mais
detalhado de cada um, evitando-se as mais das vezes o desvio ou a perda
definitiva de se-res queridos, ou a diminuição e até mesmo a perda do
patrimônio econômico da tribo pela evasão he-reditária dos bens,
principalmente de propriedades. Daí e por outros motivos importantes para
a pró-pria segurança, para a sobrevivência e para a cultura da época a
necessidade de sempre os observar, como soe encontrar nos entremeios
das narrativas a genealogia dos principais protagonistas. É tão fundamental
essa condição que até mesmo no Novo Testamento, São Mateus, que
escreve aos judeus, começa o seu Evangelho com uma genealogia que
demonstra Jesus como "Filho de Davi, Filho de Abraão" (Mt 1,1-16) e
Lucas, apesar de destinar o seu à Igreja Universal, faz o mesmo,
retrocedendo até Adão, dada a universalidade da salvação, mas levando
em conta a genealogia de Jesus (Lc 3,23-38).

Claro está que com o compromisso que assumira com os termos da Aliança
Abraão, já velho, e após a morte e sepultamento de Sara (Gn 23), se
preocupa com quem seria a futura esposa de Isaac. Solucionou a
dificuldade com uma de sua parentela (Gn 24,3-4), consciente da
genealogia de Nakor (Gn 22,20-24), seu irmão, apresentando o narrador a
"origem" de Rebeca, a futura esposa de Isaac, vinculando-a por sua vez à
linhagem de Set (Gn, 4,25) a progênie da História da Salvação, garantia de
fidelidade a Iahweh e à Aliança já em processo. É bom observar aqui que a
única porção de terra que Abraão possuiu como sua, adquirindo-a e
pagando por ela, foi o terreno onde sepultou sua mulher Sara (Gn 23), cujo
relato da compra mostra o ritual então em uso, que se pode até mesmo
denominar de "escritura pública" da compra, tal como diz o narrador que "foi
assegurado a Abraão por aquisição na presença dos heteus, e de todos os
que se achavam presentes na porta da cidade" (Gn 23,18). A "porta da
cidade" representava naqueles tempos o que hoje representam os cartórios
de registro de aquisição de propriedades, ou seja, a publicização, que é o
tornar de conhecimento público, geral, para não mais se revogar e
reconhecendo-se então a tradição da propriedade.
A principal preocupação de Abraão era a Aliança como manifesta ao exigir
sob juramento ("com a mão sob a coxa" Gn 24,2) para a escolha da noiva,
que não fosse das "filhas dos cananeus, no meio dos quais habito, mas irás
à minha terra natal e aos meus parentes e tomarás dali mulher para meu
filho Isaac" bem como "não tirasse seu filho da terra onde morava, que era
a propriedade que Deus prometera a sua descendência" (Gn 24,3-9). A
narrativa da "conquista" da noiva para Isaac deve ser lida, não com os
critérios da cultura de hoje, mas dentro das perspectivas do aculturamento
de en-tão, num mundo ainda rude, selvagem e bárbaro, onde a
sobrevivência se devia a detalhes hoje míni-mos, sem valor algum, mas
naqueles tempos de uma imposição até mesmo insuperável.

A pretensão do narrador não se limita ao casamento de Isaac, mas destaca


também a fé de Abraão que prevê a ajuda de Iahweh:

"O Senhor, Deus do céu, que me tirou da casa de meu pai e da terra da minha
parente-la, e que me falou, e que me jurou, (...) ele enviará o seu anjo diante de
si, para que to-mes de lá mulher para meu filho" (Gn 24,7).

Não é só isso. Destaca também que Iahweh realmente de tudo participa,


atende e realmente faz com que a noiva seja encontrada na forma
imaginada e pedida pelo servo, junto ao poço onde ela sacia sua sede, a
dos animais e a da comitiva (Gn 24,12-14). Não pode ser simplesmente por
coincidência ou por um golpe de sorte que era uma sobrinha de Abraão,
cuja família acata o pedido e lhe entrega a filha para o casamento (Gn
24,10-61), percebendo os familiares que se tratava da vontade de Iahweh a
que deveriam acatar, significando isso que partilhavam a mesma fé (Gn
24,51), satisfazendo assim à segurança necessária à Aliança. Quando o
servo volta é recebido pelo próprio Isaac, que "saíra para prantear ('ou
meditar' - são válidas as duas traduções) no campo", a quem "narra tudo
que tinha acon-tecido com ele e Isaac introduziu Rebeca na tenda, e
recebeu-a por esposa e a amou" (Gn 24,66-67). Ora, o pranto de Isaac leva
à conclusão que Abraão morrera antes da chegada do servo, cumprida a
missão, motivo porque presta contas a Isaac. Mas, também não é só isso.
Narra dessa maneira que Isaac assumiu a Aliança, a quem "Abraão deu
tudo o que possuía" (Gn 24,36 e 25,5). A morte de Abraão vem em seguida
e em separado. É o modo como a Bíblia traz suas narrativas, terminando
uma e mesmo que algo a tivesse de interromper costuma narrá-lo em
separado.
Outros filhos de Abraão são apresentados destacando-se Madiã, na tribo
de quem Moisés futu-ramente irá se abrigar fugindo do faraó do Egito (Ex
2,15). Enumeram-se vários nomes de povos des-cendentes dele
demonstrando o quanto foi abençoado por Deus, destacando-se "doze
chefes de outros povos" (Gn 25,16) na descendência de Ismael, tal como
lhe prometera (Gn 17,20) e à Agar (Gn 16,10ss e 21,18), e a de Isaac, bem
menor - só dois filhos (Gn 25,24ss). Vai se repetir com Isaac o mesmo
drama por que passou seu Pai também em outros acontecimentos
semelhantes, maneira de se demonstrar escrituristicamente a identidade de
vida, de amadurecimento na fé e de missão (Gn 26,1-33). Frisa assim a
esterilidade de Rebeca e a intercessão de Isaac por ela (Gn 25,21) pelo
que gera dois filhos, cuja hostilidade se manifesta desde o útero:

"Ora, Isaac orou insistentemente ao Senhor por sua mulher, porquanto ela era
es-téril; e o Senhor ouviu as suas orações, e Rebeca, sua mulher, concebeu. E os
filhos lutavam no ventre dela; então ela disse: Por que estou eu assim? E foi
consultar ao Se-nhor. Respondeu-lhe o Senhor: Duas nações há no teu ventre, e
dois povos se dividirão das tuas estranhas, e um povo será mais forte do que o
outro povo, e o mais velho servirá ao mais moço. Cumpridos que foram os dias
para ela dar à luz, eis que havia gêmeos no seu ventre. Saiu o primeiro, ruivo,
todo ele como um vestido de pelo; e chamaram-lhe Esaú. Depois saiu o seu
irmão, agarrada sua mão ao calcanhar de Esaú; pelo que foi chamado Jacó. E
Isaac tinha sessenta anos quando Rebeca os deu à luz" (Gn 25,21-26).

São Paulo verá nesse acontecimento a "figura" da conversão dos pagãos,


tornando-se também "filhos da promessa" pela fé e não por qualquer obra
anterior que a merecesse:

"Isto é, não são os filhos da carne que são filhos de Deus; mas os filhos da
promessa são contados como descendência. Porque a palavra da promessa é
esta: Por este tempo virei, e Sara terá um filho. E não somente isso, mas
também a Rebeca, que havia con-cebido de um, de Isaac, nosso pai, pois não
tendo os gêmeos ainda nascido, nem tendo praticado bem ou mal, para que o
propósito de Deus segundo a eleição permanecesse firme, não por causa das
obras, mas por aquele que chama, foi-lhe dito: O maior servirá o menor. Como
está escrito: Amei a Jacó, e aborreci a Esaú. (...) Que diremos pois? Que os
gentios, que não buscavam a justiça, alcançaram a justiça, mas a justiça que
vem da fé" (Rm 9,8-13.30).

É de se observar a esterilidade sempre presente nas mulheres dos


Patriarcas, contrastando com a fecundidade ou bênção embutida no
Protoevangelho (Gn 3,15) e na Promessa a Abraão de que "sua
descendência seria como as estrelas do céu e como a areia do mar" (Gn
22,17; 15,5). Já se antevê que a História da Salvação é Obra exclusiva de
Deus, o que se manifesta nesses pequenos detalhes da Sua Intervenção,
em atendimento ao pedido do eleito, pois é com Isaac que a Aliança se
confirma:

"E apareceu-lhe o Senhor e disse: Não desças ao Egito; habita na terra que eu
te disser; peregrina nesta terra, e serei contigo e te abençoarei; porque a ti, e
aos que descende-rem de ti, darei todas estas terras, e confirmarei o juramento
que fiz a Abraão teu pai; e multiplicarei a tua descendência como as estrelas do
céu, e lhe darei todas estas terras; e por meio dela serão benditas todas as
nações da terra; porquanto Abraão obe-deceu à minha voz, e guardou o meu
mandado, os meus preceitos, os meus estatutos e as minhas leis" (Gn 26,2-5).
"E apareceu-lhe o Senhor na mesma noite e disse: Eu sou o Deus de Abraão,
teu pai; não temas, porque eu sou contigo, e te abençoarei e multiplicarei a tua
descendência por amor do meu servo Abraão" (Gn 26,24).

E, prosseguindo a mesma missão, o mesmo culto tendo por centro o


sacrifício:

"Isaac, pois, edificou ali um altar e invocou o nome do Senhor; então armou ali
a sua tenda..." (Gn 26,25).

8. A ALIANÇA PROSSEGUE COM JACÓ, O PRIMOGÊNITO

Entre os institutos da Bíblia, cujo sentido se perdeu está também o da


Primogenitura, que manifesta sua influência e observância desde as suas
primeiras páginas. É o caso de Abel que "ofereceu um sacrifício a Deus dos
primogênitos (ou 'primícias' como em algumas Bíblias) de seu rebanho e
dos mais gordos" (Gn 4,4), enquanto Caim ofereceu "dos produtos da terra"
(Gn 4,3). Porquanto a única diferença entre as ofertas seja esta dos
primogênitos, não significando que Caim tivesse ofereci-do maus produtos,
já se evidencia a presença de alguma influência cultural que nos foge, pois
Deus "olhou para Abel e sua oferta e não olhou para Caim e sua oferta" (Gn
4,4-5). Também na relação ge-nealógica dos primeiros descendentes de
Adão (Gn 5) e após a Torre de Babel (Gn 11,10-32) o nome do primogênito
é o único mencionado, prosseguindo-se com a descendência dele. Mesmo
em outras genealogias ele sempre ocupa o primeiro lugar (Gn 9,18-10,32).

A suspeita de que algo de imperioso existe vai se confirmando a partir de


uma observação do narrador criticando o desprezo de Esaú por ela (Gn
25,34c) e da luta que trava com seu irmão Jacó, filhos de Isaac, e gêmeos,
por causa dela (Gn 27,1-28,5). Além disso, Esaú toma por esposas duas
pa-gãs da região (Gn 26,34). Tudo isso vai depor contra Esaú fazendo com
que se justifique sua perda para Jacó do direito de primogenitura, em tudo
gerenciado pela própria mãe, Rebeca. Aconteceu que, em certa ocasião,
Esaú, com fome, trocou com Jacó o seu direito de primogenitura por um
prato de lentilhas, por cujo absurdo é veementemente criticado pelo
narrador (Gn 25,34). Claro que Rebeca tomando disso conhecimento, e
também pelo desgosto por causa do casamento de Esaú com mulheres
hetéias, passa a se dedicar mais ainda a Jacó, o seu já predileto (Gn
25,28). Assim, à promessa do pai em dar a Esaú a denominada "bênção da
primogenitura", age disfarçando Jacó de maneiras a ludibriar Isaac, que já
estava velho e sem visão (Gn 27,1-17). Jacó consegue assim receber a
ambicionada e ir-reversível "bênção" (Gn 27,27-29) em lugar do irmão, que
na verdade a havia desprezado e trocado com ele pelo prato de lentilhas.

A importância desse fato se prende às reações dramáticas que lhe


sucedem, pelas quais se pode dimensionar o alcance cultural (Gn 27,30-
45). Quando chega Esaú da caça onde buscara o "guisado a gosto do pai"
(Gn 27,4) e é descoberta a substituição, "Isaac estremeceu tomado de
enorme terror", declarando ainda que, apesar de assim concedida,
"permanecerá abençoado" (Gn 27,33). Por sua vez " Esaú, ao ouvir as
palavras de seu pai, gritou altíssimo com grande e extremamente
amargurado brado, e disse a seu pai: Abençoa-me também a mim, meu pai!
(...) ...E chorando prorrompeu em altos gritos" e planeja matar o irmão (Gn
27,34.38.41). Tem-se mais conhecimento da importância da instituição com
a resposta de Isaac:

"Respondeu Isaac a Esaú: Eis que o tenho posto por senhor sobre ti, e todos os
seus irmãos lhe tenho dado por servos; e de trigo e de mosto o provi. Que, pois,
poderei eu fazer por ti, meu filho?" (Gn 27,37).

Já se percebe que um dos privilégios outorgados com a "bênção" é a chefia


do clã ou da tribo, fato esse confirmado por outros trechos das Escrituras
(1Cro 26,10), pelo que recebia "dupla porção da herança" (Dt 21,17) pela
responsabilidade que assumia por todos os seus familiares e demais inte-
grantes. O assunto voltará a ser abordado no decorrer do curso eis que
outros elementos que entram na composição desse direito somente
poderão ser examinados futuramente em confronto com outras instituições.
Por enquanto é de se reter apenas o exposto.

Coerente com a bênção correspondente à primogenitura que proferiu, Isaac


confia-lhe o desen-rolar da Aliança, não sem antes admoestá-lo quando às
mulheres pagãs, ou cananéias. De certa manei-ra até se pode suspeitar de
que todo o narrado tenha sido arquitetado pelo casal para "destronar" Esaú
por se comprometer com as mulheres estranhas aos costumes israelitas,
principalmente levando-se em conta a advertência feita em conjunto com a
mesma bênção de Abraão:

"Isaac, pois, chamou Jacó, e o abençoou, e ordenou-lhe, dizendo: Não tomes


mulher dentre as filhas de Canaã. Levanta-te, vai a Mesopotâmia, à casa de
Betuel, pai de tua mãe, e toma de lá uma mulher dentre as filhas de Labão,
irmão de tua mãe. Deus Todo-Poderoso te abençoe, te faça frutificar e te
multiplique, para que ve-nhas a ser uma multidão de povos; e te dê a bênção de
Abraão, a ti e à tua des-cendência contigo, para que herdes a terra de tuas
peregrinações, que Deus deu a Abraão. Assim despediu Isaque a Jacó, o qual
foi a Mesopotâmia, para a casa de La-bão, filho de Betuel, o arameu, irmão de
Rebeca, mãe de Jacó e de Esaú" (Gn 28,1-5).

Vê-se que quando ia para a Mesopotâmia, em busca de esposa e em fuga


de Esaú, Jacó, como seus antepassados Abraão e Isaac, tem uma visão
em que se lhe confirmam tanto a promessa como a Aliança:

"...por cima da escada estava o Senhor, que disse: Eu sou o Senhor, o Deus de
Abraão teu pai, e o Deus de Isaac; esta terra em que estás deitado, eu a darei a
ti e à tua descendência; e a tua descendência será como o pó da terra; dilatar-
te-ás para o ocidente, para o oriente, para o norte e para o sul; por meio de ti e
da tua des-cendência serão benditas todas as famílias da terra. Eis que estou
contigo, e te guardarei onde quer que fores, e te farei tornar a esta terra; pois
não te deixarei até que haja cumprido aquilo de que te tenho falado" (Gn
28,13-15).

Tal como com Abraão (Gn 18), com Isaac (Gn 26,2.24) ocorreu uma
manifestação sensível de Deus, uma teofania, neste episódio da "escada'
por cima da qual estava o Senhor" em que se profere a mesma bênção
para a posteridade de Abraão e a mesma promessa da herança da mesma
terra das suas peregrinações (Gn 12,7; 13,14-17; 22,17-18; 26,4.24), bem
como a mesma resposta do Patriarca eri-gindo um lugar de culto
acompanhado de um sacrifício, se bem que aqui com Jacó trata-se de uma
libação e a unção de uma pedra erigida em cipo, muito usado naqueles
tempos como testemunho ou prova de algum fato profano ou sagrado e
religioso (Gn 31,45; Js 4,9.20; 24,26-27) e até mesmo para as coisas de
Deus:

"Pois os filhos de Israel ficarão por muitos dias sem rei, sem príncipe, sem
sacrifício, sem cipos, e sem éfode ou terafins" (Os 3,4)

Israel é vide frondosa que dá o seu fruto; conforme a abundância do seu fruto,
assim multiplicou os altares; conforme a prosperi-dade da terra, assim fizeram
belos cipos" (Os 10,1)

Tirarei as feitiçarias da tua mão, e não terás adivinhadores; arrancarei do


meio de ti as tuas imagens esculpidas e os teus cipos; e não adorarás mais a
obra das tuas mãos" (Mq 5,12).

Pode-se até mesmo admitir a preferência de Jacó por este tipo de oferenda
dado o seu caráter mais pacífico ("...homem tranqüilo, habitante da tenda"
Gn 25,27c). Aqui com ele a teofania atinge um clímax com a presença da
narrativa de uma "escada", como que aquela da Torre de Babel, aqui
servindo de comprovação do elo de ligação entre os anjos que descem do
céu para seu ministério no mundo, como interpretaram os Santos Padres e
de que apesar da separação ou distância entre o céu e a terra, pode atingi-
lo sempre, aquele que ama a Deus. Vê-se com facilidade que por Jacó viria
o prosseguimento da História da Salvação que culminaria em Jesus Cristo,
motivo por que se caracterizam a "promessa" e a "aliança" com Abraão,
com Isaac e com Jacó (também em Gn 35,11-13 e 46,3-4), como
Messiânicas, e tal como seus antepassados faz do sacrifício o centro do
seu culto, prometendo erguer no local um santuário para o que destinará o
dízimo:

"E temeu, e disse: Quão terrível é este lugar! Este não é outro lugar senão a
casa de Deus; e esta é a porta dos céus. Jacó levantou-se de manhã cedo, tomou
a pedra que pusera debaixo da cabeça, e a pôs como cipo; e derramou-lhe
azeite em cima. E chamou aquele lugar Betel; porém o nome da cidade antes
era Luz. Fez também Jacó um voto, dizendo: Se Deus for comigo e me guardar
neste caminho que vou seguindo, e me der pão para comer e vestes para vestir,
de modo que eu volte em paz à casa de meu pai, e se o Senhor for o meu Deus,
então esta pedra que tenho posto como cipo será casa de Deus; e de tudo
quanto me deres, certamente te darei o dízimo" (Gn 28,17-22).

Jacó recebe de Deus tudo aquilo correspondente ao conteúdo da Aliança


de Abraão, já se an-tevendo a confirmação da Bênção recebida de Isaac,
contrariando assim uma opinião por demais gene-ralizada de que o ato de
Jacó e Rebeca fosse condenável, daqueles que se recusam a ver na
cultura dos antigos uma formação moral ainda rude e até mesmo
rudimentar e selvagem. Mas, mesmo que assim não fora, não se pode
esquecer que Esaú não deu à Primogenitura nem mesmo à Aliança os
valores que mereciam: à Primogenitura por tê-la desprezado (Gn 25,32) e
trocado por um prato de lentilhas com Jacó e à Aliança por contrair
casamento com mulheres hetéias, pagãs, como já se viu amplamente. E as
Escrituras não o condenam, ao contrário o louvam e respeitam:

"Foi ela ("a 'sabedoria") quem conduziu por veredas retas o justo ('Jacó') que
fugia da cólera de seu irmão; mostrou-lhe o reino de Deus e lhe deu a conhecer
os santos; pro-porcionou-lhe êxito nos rudes labores e fez frutificar seus
trabalhos. Esteve a seu lado contra a cobiça dos que o oprimiam e o
enriqueceu. Protegeu-o contra os inimigos e o defendeu daqueles que lhe
armavam ciladas. Atuou como árbitro a seu favor em rude combate, para
ensinar-lhe que a piedade é mais poderosa do que tudo" (Sb 10,10-12)

A bênção de todos os homens e a aliança, ele as fez repousar sobre a cabeça de


Jacó. Confirmou-o nas bênçãos que eram dele, e concedeu-lhe o país em
herança. E ele divi-diu-o em lotes"...(Eclo 44,23).

Até Jesus o aponta junto aos Patriarcas, na bem-aventurança da Vida


Eterna:

"Digo-vos pois: Muitos virão do Oriente e do Ocidente sentar-se à mesa com


Abraão, Isaac e Jacó no reino dos céus" (Mt 8,11).

Por outro lado, também Jesus Cristo usa a mesma imagem da sua visão,
porém a si mesmo se referindo como a "escada", colocando-se como a
união entre Deus e os Homens:

"E acrescentou: Em verdade, em verdade vos digo que vereis o céu aberto, e os
anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do homem" (Jo 1,51).
9. A ALIANÇA E AS DOZE TRIBOS DE ISRAEL (JACÓ)

Da mesma forma que Abraão e Isaac, Jacó também tem necessidade de


amadurecimento e conscientização para o exercício da Aliança,
aperfeiçoando-se para o seu prosseguimento e consecu-ção. Deus não faz
exceções nem mesmo aos seus eleitos e, apesar de terem uma missão a
cumprir, vi-vendo no mundo, têm de sofrer todas as conseqüências do
pecado que lhe aparecem. Assim, Jacó parte, fugindo para a casa de
Labão, o irmão de sua mãe Rebeca, e também em procura de uma mulher
que fosse de sua parentela, tal como lhe aconselharam ambos os pais,
tendo em vista o malogro que Esaú vai tentar corrigir tardiamente (Gn
26,34-35 e 28,6-9).

Seu encontro com Raquel, sua prima e pastora de ovelhas que as traz para
beber água, se dá de imediato num poço (Gn 29,1-14), repetindo, pela
presença de Deus dirigindo os acontecimentos, o mesmo que ocorreu
quando da busca de uma mulher para Isaac. É conduzido para a casa do
tio e lá fixa sua residência e passa a trabalhar, a ser explorado melhor dir-
se-ia. Apaixona-se por Raquel e aceita trabalhar sete anos para então
desposá-la. Mas, o sogro ardilosamente o desposa com Lia ao pretexto de
que não poderia casar a mais nova e permanecer com a mais velha
solteira. Descoberto o embuste, após o cerimonial concluído, introduzida a
esposa em sua tenda à surdina, Jacó reclama mas acaba aceitando
trabalhar mais sete anos para recebê-la daí a uma semana (Gn 29,14c-30).
Aparece então outra vez a esterilidade das mulheres dos Patriarcas e
vinculadas à História da Salvação, que só se tornavam férteis por uma ação
especial de Deus, por ser o Único Autor da Salvação:

"Viu, pois, o Senhor que Lia era desprezada tornou-a fecunda; Raquel, porém,
era es-téril" (Gn 29,31)

"Também lembrou-se Deus de Raquel, ouviu-a e a tornou fecunda" (Gn


30,22).

Dessa união lhe advieram doze filhos e uma filha (Gn 29,32-30,24 / 35,16-
18), que deram ori-gem às doze tribos dos Filhos de Israel, o nome que
Deus dará a Jacó (Gn 32,29; 35,9), donde vai se formar o Povo de Israel.
Não há necessidade de se delongar no relato dos nascimentos de todos
eles, ficando para cada participante o dever de ler aquilo que não for aqui
exposto, completando seu conhe-cimento bíblico com seu próprio esforço,
evitando-se que o curso seja passivo. Basta relatar os nomes dos filhos de
Jacó, com os das mulheres e das concubinas que os geraram (Gn 35,23-
26):
 De Lia vieram: Rubem, Simão, Levi, Judá, Issacar, Zabulon e Dina
(mulher); e,
pela serva dela Zelfa: Gad e Aser.

 De Raquel vieram: José e Benjamim (Gn 35,16-18); e,


pela serva dela Bala: Dan e Neftali.

Vários elementos culturais já conhecidos se repetem, tanto a substituição


da mulher estéril por sua serva para lhe dar filhos, como o fato da mulher
mesma escolher um nome com um significado seu para o filho,
manifestando-se assim o prosseguimento da sua luta contra a serpente,
iniciada por Eva (Gn 3,15 / 4,25 - cfr. no Capítulo 1, sob o título O
Protoevangelho). Jacó tinha em mira principal-mente a Aliança contraída
com Deus, por ela se guia e por causa dela reclama, e pede para retornar à
sua terra, ou seja Terra Prometida a Abraão, a Isaac e a ele próprio. Um
fato normal e até mesmo cor-riqueiro naquele tempo, um filho buscar a
casa do pai, torna-se para ele por demais penoso e de difícil solução
amistosa. Decide-se então e foge "iludindo a vigilância de Labão",
aproveitando-se da ocupa-ção dele na tosquia, que descobrindo a fuga vai
em seu encalço e o alcança (Gn 31,1-23). Somente nessa ocasião é que o
pacífico Jacó esboça uma reação:

"Então irou-se Jacó e contendeu com Labão, dizendo: Qual é a minha


transgressão? qual é o meu pecado, que tão furiosamente me tens perseguido?
Depois de teres apalpado todos os meus móveis, que achaste de todos os móveis
da tua casa? Põe-no aqui diante de meus irmãos e de teus irmãos, para que eles
julguem entre nós ambos. Estes vinte anos estive eu contigo; as tuas ovelhas e
as tuas cabras nunca abortaram, e não comi os carneiros do teu rebanho. Não
te trouxe eu o despedaçado; eu sofri o dano; da minha mão requerias tanto o
furtado de dia como o furtado de noite. Assim andava eu; de dia me consumia
o calor, e de noite a geada; e o sono me fugia dos olhos. Estive vinte anos em
tua casa; catorze anos te servi por tuas duas filhas, e seis anos por teu rebanho;
dez vezes mudaste o meu salário. Se o Deus de meu pai, o Deus de Abraão e o
Temor de Isaque não fora por mim, certamente hoje me mandarias embora
vazio. Mas Deus tem visto a minha aflição e o trabalho das minhas mãos, e
repreendeu-te ontem à noite" (Gn 31,36-42).

Revendo com mais detalhes o acontecimento é de se destacar a firmeza da


fé de Jacó que se traduz em profunda e humilde paciência, que a tudo sofre
resignadamente, sem esboçar reação alguma, confiando em Deus que lhe
prometera, quando iniciou "sua peregrinação" (Gn 47,9), "estou contigo e
proteger-te-ei onde quer que vás, e te reconduzirei a esta terra" (Gn 28,15).
Então, pediu para partir e o seu pagamento (Gn 30,25-28), notando-se que
até aquele momento não trabalhara ainda para si mesmo e reconhecendo
Labão que seus bens aumentaram graças à bênção de Deus a Jacó (Gn
30,29-30). Não se chegava a uma composição justa e Jacó então propõe
voltar ao trabalho do sogro e receber em pagamento os animais do rebanho
que viessem a nascer "malhados e mosqueados" daquela data em diante
(Gn 30,31-34). Tudo assim combinado, Labão imediatamente separa do
rebanho todos os animais "malhados e mosqueados" entrega-os aos filhos,
afastando-os três dias de distância, para impossibilitar Jacó de conseguir
seu pagamento (Gn 30,35-36). É Deus que vem em socorro de seu eleito
em virtude da Aliança que continua com ele (Gn 28,12-15):

"Disse o Senhor, então, a Jacó: Volta para a terra de teus pais e para a tua
paren-tela; e eu serei contigo. Pelo que Jacó mandou chamar a Raquel e a Lia
ao campo, onde estava o seu rebanho, e lhes disse: vejo que o rosto de vosso pai
para comigo não é como anteriormente; porém o Deus de meu pai tem estado
comigo. Ora, vós mesmas sabeis que com todas as minhas forças tenho servido
a vosso pai. Mas vosso pai me tem enganado, e dez vezes mudou o meu salário;
Deus, porém, não lhe permitiu que me fizesse mal. Quando ele dizia assim: Os
salpicados serão o teu salário; então todo o rebanho dava salpicados. E quando
ele dizia assim: Os lis-trados serão o teu salário, então todo o rebanho dava
listrados. De modo que Deus tem tirado o gado de vosso pai, e mo tem dado a
mim. Pois sucedeu que, ao tempo em que o rebanho concebia, levantei os olhos
e num sonho vi que os bodes que cobriam o rebanho eram listrados, salpicados
e malhados. Disse-me o anjo de Deus no sonho: Jacó! Eu respondi: Eis-me
aqui. Prosseguiu o anjo: Levanta os teus olhos e vê que todos os bodes que
cobrem o rebanho são listrados, salpicados e malhados; porque tenho visto
tudo o que Labão te vem fazendo. Eu sou o Deus de Betel, onde ungiste um
cipo, onde me fizeste um voto; levanta-te, pois, sai-te desta terra e volta para a
terra da tua parentela" (Gn 31,3-13).

Percebendo o embuste Jacó reagiu com habilidade para tentar conseguir


recuperar o que lhe pertencia (Gn 30,37-43), mas não conseguiu se libertar
e o seu sogro continua espoliando-o (Gn 31,6-16.36-42), tendo sido ainda
difamado pelos cunhados, que se juntam ao pai para mais ainda o maltra-
tar (Gn 31,1-2). Foi necessário que o próprio Deus lhe manifestasse como
transcrito (Gn 31,3-13), levando-o a trocar idéias com suas mulheres que
lhe demonstraram que, ao contrário do costume, La-bão em vez de dar-lhe
o dote legal, ficara com todo o direito delas, incentivando-o à separação
(Gn 31,4-18). Assim encorajado foge com os seus familiares e bens.

Quando o alcança, Labão a princípio o agride e, após a reação dele, se


contorce todo, fingindo amor estremado pelas filhas e netos, em que não
integra Jacó, nunca incluído (Gn 31,26-28). Após alguma altercação fazem
as pazes e Jacó oferece então um sacrifício do qual participam toda a
família e volta tranqüilo para Isaac (Gn 31,18-54). Não deixa de ser um
incômodo a reclamação de Labão pelos seus "deuses" (Gn 31,30-35), mas
não se deve esquecer de que se acreditava em vários "deuses" bem como
assim se denominavam poderes intermediários, as mais das vezes
imaginários e fruto de su-perstições, espécie de "talismãs", que se
infiltravam na fé ainda em formação, pelo que não se deve assustar nem se
preocupar. Deus não tratou a verdadeira ciência religiosa de maneira
diferente das outras ciências e, do mesmo modo que da alquimia, o homem
caminhou para a Química, do curandeirismo para a Medicina modernas,
assim também caminhou da feitiçaria, da magia e das superstições, que se
mesclavam no campo doutrinário, para a Plena Revelação por Jesus Cristo
que a tudo vai depurar.

Finalmente, Jacó volta à terra do Pai, e então procura Esaú para fazer as
pazes, ato de humil-dade (Gn 33,1-17), muito conforme a sua formação
pacífica e peculiar a um homem que vive em comunhão com Deus. Quando
estava a caminho teve medo e foi assaltado por grande angústia, o que lhe
significou uma luta misteriosa com o próprio Deus, pelo conflito íntimo
ensejado com Sua Vontade, ocasião em que o anjo lhe muda o nome para
Israel (Gn 32,23-32) pelo qual será para sempre conhecido, bem como o
povo formado pelos seus descendentes. Deste fato não há testemunhas,
tendo sido narrado pelo próprio Jacó. Mas, tudo vai sendo confirmado até
mesmo nos contrastes, que não param, e sua luta prossegue incansável:
Dina sua filha é ultrajada e apesar de se acertar com a família do ofen-sor o
casamento com ela, conseguindo até mesmo que se deixassem
circuncidar, convertendo-se ao Deus da Aliança, seus filhos Simão e Levi,
irmãos uterinos dela, atacam e matam todos os varões em vingança,
deixando Jacó em situação difícil perante os habitantes da região e com
grave perigo para a sobrevivência geral (Gn 33,18-34,31). Nem assim há o
mais leve sinal de perda de equilíbrio em Jacó. Recebe logo após, do
próprio Deus, a ratificação de tudo o que lhe foi prometido quando iniciou
sua fuga (Gn 28,11-15) e quando lhe foi mudado o nome (Gn 32,24-29):

"Apareceu Deus outra vez a Jacó, quando ele voltou de Mesopotâmia, e o


abençoou. E disse-lhe Deus: O teu nome é Jacó; não te chamarás mais Jacó,
mas Israel será o teu nome. E chamou-lhe Israel. Disse-lhe mais: Eu sou Deus
Todo-Poderoso; frutifica e multiplica-te; uma nação, sim, uma multidão de
nações sairá de ti, e reis procederão dos teus lombos; a terra que dei a Abraão
e a Isaac, a ti a darei; também à tua descendência depois de ti a darei. E Deus
subiu dele, do lugar onde lhe falara. Então Jacó erigiu um cipo no lugar onde
Deus lhe falara, um cipo de pedra; e sobre ele derramou uma libação e deitou-
lhe também azeite; e Jacó chamou Betel ao lugar onde Deus lhe falara" (Gn
35,9-15).

O sacrifício novamente como o centro do culto dos Patriarcas vai ser


oferecido em cumpri-mento ao prometido por Jacó (Gn 28,10-22), agora
Israel, em Betel, no mesmo local, junto ao carva-lhal onde Abraão já havia
erigido um altar e oferecido sacrifício (Gn 12,6-8; 22,14), dando um sentido
de prosseguimento à Aliança. Porém, em obediência a uma ordem
específica de Deus quanto ao cumprimento do compromisso de Jacó de
erigir ali um santuário, era preciso uma purificação geral de tudo o que
fosse profano, uma conversão geral tal como havia prometido (Gn 28,21 -
"...o Senhor será o meu Deus..."), pelo que determina:
"Depois disse Deus a Jacó: Levanta-te, sobe a Betel e habita ali; e ergue ali
um altar ao Deus que te apareceu quando fugias da face de Esaú, teu
irmão. Então disse Jacó à sua família, e a todos os que com ele estavam:
Lançai fora os deuses estra-nhos que há no meio de vós, e purificai-vos e
mudai as vossas vestes. Levantemo-nos, e subamos a Betel; ali farei um
altar ao Deus que me respondeu no dia da minha angústia, e que foi
comigo no caminho por onde andei. Entregaram, pois, a Jacó todos os
deuses estranhos, que tinham nas mãos, e as arrecadas que pendiam das
suas orelhas; e Jacó os enterrou debaixo do carvalho que está junto a
Siquém. (...) Assim chegou Jacó à Luz (...) Edificou ali um altar, e chamou
ao lugar de "O Deus de Betel"; porque ali Deus se lhe tinha manifestado
quando fugia da face de seu irmão" (Gn 35,1-7).

Com esse gesto Jacó manifesta publicamente e para sempre a sua adesão,
a de sua família e a dos seus descendentes, exclusiva e incondicional a
Deus; do mesmo modo, será objeto de outra ratificação igual, séculos
depois, no mesmo lugar e quando da Conquista da Terra Prometida, por
Josué:

"... temei ao Senhor, e servi-o com sinceridade e com verdade; deitai fora os
deu-ses a que serviram vossos pais dalém do Rio, e no Egito, e servi ao Senhor.
Mas, se vos parece mal o servirdes ao Senhor, escolhei hoje a quem haveis de
servir; se aos deuses a quem serviram vossos pais, que estavam além do Rio, ou
aos deuses dos amorreus, em cuja terra habitais. Porém eu e a minha casa
serviremos ao Senhor. Então respondeu o povo, e disse: Longe esteja de nós o
abandonarmos ao Senhor para servirmos a outros deuses: porque o Senhor é o
nosso Deus..." (Js 24,13-17).

Também foi nesse mesmo local que Jesus Cristo se encontrou com a
Samaritana, "cumprindo" (Mt 5,17) semelhante propósito:

"...achava-se ali o poço de Jacó. Jesus, pois, cansado da viagem, sentou-se


assim junto do poço; era cerca da hora sexta. Veio uma mulher de Samaria
tirar água. Disse-lhe Jesus: Dá-me de beber. Pois seus discípulos tinham ido à
cidade comprar comida. Disse-lhe então a mulher samaritana: Como, sendo tu
judeu, me pedes de beber a mim, que sou mulher samaritana? (Porque os
judeus não se comunicam com os samaritanos.) Respondeu-lhe Jesus: Se
tivesses conhecido o dom de Deus e quem é o que te diz: Dá-me de beber, tu lhe
terias pedido e ele te haveria dado água viva. Disse-lhe a mulher: Senhor, tu
não tens com que tirá-la, e o poço é fundo; donde, pois, tens essa água viva? És
tu, porventura, maior do que o nosso pai Jacó, que nos deu o poço, do qual
também ele mesmo bebeu, e os filhos, e o seu gado?" (Jo 4,6-12).

Jesus repete a mesma atividade de Jacó, confirmada por Josué, de


reconduzir o Homem para Deus pela Aliança, dando-lhe então "pleno
cumprimento" (Mt 5,17), na mesma porção de terra onde Jacó se purificou
com todos os seus, onde também Josué repetiu a operação com o já Povo
de Israel e no mesmo lugar que Jacó doou ao seu filho predileto, José:

"Os ossos de José, que os filhos de Israel trouxeram do Egito, foram enterrados
em Siquém, naquela parte do campo que Jacó comprara aos filhos de Hamor,
pai de Siquém, por cem peças de prata, e que se tornara herança dos filhos de
José" (Js 24,32).

Tanto é assim que a própria Samaritana Lhe diz:

"És tu, porventura, maior do que o nosso pai Jacó, que nos deu o poço, do qual
tam-bém ele mesmo bebeu, e os filhos, e o seu gado?" (Jo 4,12) / "Disse-lhe a
mulher: Se-nhor, vejo que és profeta. Nossos pais adoraram neste monte, e vós
dizeis que em Jerusalém é o lugar onde se deve adorar" (Jo 4,19-20).

Ao que Jesus lhe responde, tal como Jacó e Josué, "definindo toda e
qualquer adoração daí em diante, e revelando a verdadeira natureza do
Deus de Israel", bem como pela primeira vez em todo o Evangelho
confessa-se o Cristo:

"Disse-lhe Jesus: Mulher, crê-me, a hora vem, em que nem neste monte, nem
em Jerusalém adorareis o Pai. (...) Mas vem a hora, e é agora, em que os
verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque o Pai
procura a tais que assim o adorem. Deus é Espírito, e é necessário que os que o
adoram o ado-rem em espírito e em verdade. Replicou-lhe a mulher: Eu sei
que vem o Messias (que se chama o Cristo); quando ele vier há de nos anunciar
todas as coisas. Disse-lhe Jesus: Eu o sou, eu que falo contigo" (Jo 4,21-26)

Claro fica, pela própria Revelação de Jesus à Samaritana, que a reta final
da formação do Povo de Israel começara com aquele ato de Jacó, em
Betel. Esse local é o repositório das mais antigas e sólidas tradições dos
Patriarcas, a começar com Abrão erigindo ali um altar, tornando-o um lugar
sagra-do (Gn 12,6+; 13,3), mais tarde comprado por Jacó erguendo ali
outro (Gn 35,1-15) em cumprimento de sua promessa (Gn 28,10-22). Além
disso foi escolhido pelo próprio Moisés para nele Josué, "atra-vessado o
Jordão", ratificar a Aliança (Js 8,30-35) com o Povo de Israel então formado
(Dt 27,1-10). Jesus retoma todo o acontecimento anterior e, vinculando todo
o passado israelita com a Sua Presença no mesmo monte onde "se
atiraram fora os deuses estranhos", revela o estabelecimento dos "novos
adoradores de Deus em espírito e em verdade", isto é, não mais na carne e
no exterior, mas no coração e a partir do interior do Homem, fruto da Graça.

O quadro a seguir mostra melhor que palavras:

JOSUÉ (Js 24,1.14-16.26-


JACÓ (Gn 35,1-7) JESUS (Jo 4,19-26)
26)
"Disse-lhe a mulher:
"Depois disse Deus a Jacó: Senhor, vejo que és
"Josué reuniu em Siquém profeta. Nossos pais
Levanta-te, sobe a Betel e
todas as tribos de Israel adoraram neste monte,
habita ali; e ergue ali um altar
(...)
ao Deus que te apareceu e vós dizeis que em
quando fugias da face de Jerusalém é o lugar
Esaú, teu irmão. onde se deve adorar"
(Jo 4,19-20).
"E Josué disse a todo o
Então disse Jacó à sua família, povo: (...)Agora, pois,
"Disse-lhe Jesus:
e a todos os que com ele esta-
temei ao Se-nhor, e
vam: servi-o com sincerida-de
e com verdade;
Mulher, crê-me, a hora
Lançai fora os deuses estra- deitai fora os deuses a
vem, em que nem
nhos que há no meio de vós, e que serviram vossos pais
neste monte, nem em
purificai-vos e mudai as vos- dalém do Rio, e no Egito,
Jerusalém adorareis o
sas vestes. e servi ao Se-nhor.
Pai.
(...) Mas a hora vem, e
Mas, se vos parece mal o
Levantemo-nos, e subamos a servir-des ao Senhor, agora é, em que os
Betel; ali farei um altar ao Deus escolhei hoje a quem verdadeiros adorado-
que me respondeu no dia da res adorarão o Pai em
haveis de servir; se aos
minha angústia, e que foi espírito e em verdade;
deuses a quem serviram
comigo no caminho por onde vossos pais, (...). Porém (...)Deus é Espíri-to, e é
andei. necessário que os que
eu e a minha casa
o adoram o adorem em
serviremos ao Senhor.
espírito e em verdade.
Então respondeu o povo,
"Entregaram, pois, a Jacó Replicou-lhe a mulher:
e disse: Longe esteja de
todos os deuses estranhos Eu sei que vem o
nós o abandonarmos ao
(...)e Jacó os enterrou debaixo Messias (que se chama
Senhor para servirmos a
do carvalho que está junto a o Cristo); quando ele
outros deu-ses: porque o
Siquém. Então partiram; vier há de nos anunciar
Senhor é o nosso Deus
(...).todo o povo que estava todas as coisas.
(...)
com ele. Edificou ali um altar
Disse o povo a Josué:
(...) e chamou ao lugar Deus - Disse-lhe Jesus:
Servi-remos ao Senhor
Betel; porque ali Deus se lhe Eu o sou, eu que falo
nosso Deus, e
tinha manifestado..." contigo" (Jo 4,21-26).
obedeceremos à sua voz.

Voltando ao assunto em estudo, surgem então para Jacó dois fatos novos
bem dolorosos. Em primeiro lugar a morte de Raquel ao dar à luz Benjamim
[a quem, antes de expirar, ela deu o nome de "Bennoni (= filho de minha
dor) e que Jacó mudou para "Benyamin" (= filho de minha direita) (Gn
35,16-21)]; e, em seguida, a traição de seu filho primogênito "pernoitando"
com sua concubina Bala (Gn 35,22), ato naquele tempo considerado como
condenável "incesto".

Finalmente, volta Jacó para a "residência oficial" dos Patriarcas, em Mamré,


que se denomina também Hebron, onde e quando falece Isaac (Gn 35,27-
29). Prosseguindo o narrador inclui genealogias a partir da de Esaú que se
mesclou com os gentios ou pagãos da região, comprometendo a Aliança na
sua geração, ficando definitivamente desligado dela.

10. A ALIANÇA E JOSÉ, O "PRIMOGÊNITO" DE JACÓ

José, o filho primogênito de Raquel, a amada de Jacó, é um dos marcos


mais importantes da História da Salvação, cuja significação nunca se
apagará nem da memória Israelita nem da Cristã. Com ele se encerra um
período fundamental, a Era dos Patriarcas, e se abre outro, a Era do Povo
de Israel, em prosseguimento à concretização da Aliança. Manifesta-se a
fertilidade de bênçãos de Deus que se vai avolumando num crescendo e
em uníssono com os seus desígnios, sempre presente, tirando da obra da
maldade humana, fruto do pecado, o bem e a sua consumação. Quer assim
conduzir o Homem para o seu lugar - o Jardim do Éden, qual seja, para a
vida em comunhão com Ele. E os acontecimen-tos que se vão sucedendo,
muitas vezes contraditórios com a lógica que deveria ter um plano de Deus
bem traçado, humanamente falando, parecem comprometer seu sucesso. A
História de José, conhecido como "José do Egito" retrata a verdade de que
nada perturba a concretização de sua vontade e que do mal humano
sempre retira o bem e a Sua Justiça, traduzida na realização dos Seus
Desígnios, como ensina a Igreja:

"Assim, com o tempo, é possível descobrir que Deus, na sua onipotente


Providência, pode tirar um bem das conseqüências dum mal (mesmo moral),
causado pelas criaturas: 'Não, não fostes vós - diz José a seus irmãos - que me
fizestes vir para aqui. Foi Deus. (...) Meditastes contra mim o mal: o desígnio
de Deus aproveitou-o para o bem... e um povo numeroso foi salvo' (Gn 45,8;
50,2). Do maior mal moral jamais praticado, como foi o repúdio e a morte do
Filho de Deus, causado pelos pecados de todos os homens, Deus, pela
superabundância da sua graça (Rm 5,20), tirou o maior dos bens: a glorifi-
cação de Cristo e a nossa redenção. Mas nem por isso o mal se transforma em
bem" (Catecismo da Igreja Católica, n.º 312).

Como toda a família humana, a família de Jacó também tinha seus dramas
e problemas peculiares. É natural que Jacó tivesse uma predileção especial
por José, filho de sua amada, o "primogênito do seu coração" e tanto é
assim que lhe tecera uma "túnica talar" (Gn 37,3c). Este tipo de túnica
caracteriza bem o valor que José tinha aos olhos do pai, uma dessas
túnicas usadas pelos elementos que integravam uma corte real, de mangas
e cavas largas e de longo comprimento, que por si só se impunha como
algo de majestoso e incomum, capaz até mesmo de incentivar o ciúme, e
incentivou, o dos irmãos que tomaram ódio dele (Gn 37,4). Mesmo porque
José também sonhara com os irmãos e os pais lhe prestando reverências
reais (Gn 37,6-11). E, quando Jacó o mandou em procura dos irmãos que
estavam pastoreando o gado em local distante, acertaram atirá-lo numa
cisterna vazia para depois de lá retirá-lo e vendê-lo como escravo aos
Madianitas ou Ismaelitas, ambos descendentes de Abraão, não se sabendo
com exatidão. Cabe aqui uma observação importante: - muitas das
narrações das Escrituras vêm-nos de diferentes tradições e são duplicadas
ou mescladas, até mesmo triplicadas, gerando alguma confusão. Não se
deve rejeitá-las simplesmente, mas somar as informações que nos trazem
sem as desprezar, eis que se referem a um mesmo fato real, alterado as
mais das vezes pela natureza das fontes. Assim a narração de que teriam
sido os ismaelitas ou madianitas não modifica a realidade de que José fora
vendido pelos irmãos, fato confirmado pelo restante da exposição. A Jacó
levaram apenas a sua túnica talar toda embebida em sangue, causando-lhe
mais um sofrimento atroz e levando-o a um luto estremado (Gn 37,31-35).
Já se fala aqui na vida após a morte: "chorando descerei a meu filho
debaixo da terra", tal como se acreditava, lá ficando no estado em que se
falecia (Gn 37,35 / Gn 44,29 / Nm 16,30), sendo ainda uma ofuscada
"figura" do nosso Purgatório, ou Mansão dos Mortos.

Neste ponto a história é cortada intercalando-se uma ocorrência com Judá


digna de nota em virtude de registrar uma instituição, a Lei do Levirato, que
impunha ao cunhado (= "levir") a obriga-ção de casar-se com a viúva do
irmão, para lhe suscitar prole (Gn 38,8), herdeiro, o qual seria descen-
dência do falecido para todos os efeitos legais e religiosos, e não dele. São
costumes que se solidificam em instituições sagradas. Judá não se
importando com a sorte da sua nora fê-la, para salvaguardar os direitos
seus e de seu marido, disfarçar-se de "mulher pública cultual", qual seja
uma mulher que ofe-recia seu corpo à divindade em "prostituição sagrada"
(Dt 23,18; Os 4,14; 1Rs 14,24; 15,12; 2Rs 23,7), conseguindo
ardilosamente uma relação sexual com o sogro Judá, recém enviuvado (Gn
38,12), sabendo-se que, na falta de irmãos do falecido, um parente próximo
(até mesmo o pai) satisfaria o costume, da qual adveio dois filhos gêmeos
(Gn 38,14-30), um dos quais se chamou Farés, que foi antepassado do Rei
Davi (1Cro 2,4-5 / Rt 4,18-21).

Terminado o parêntesis de Judá o narrador volta-se novamente para José,


que no Egito é ven-dido a Putifar, oficial e chefe da guarda do faraó (Gn
37,1-36) e acaba trabalhando na casa dele, gozando de sua plena
confiança pois "Deus estava com ele e por seu meio levava a bom termo
tudo o que empreendia, pelo que pôs em suas mãos todos os seus bens"
(Gn 39,1-6). A mulher pretendeu seduzi-lo, que "por fidelidade ao seu
senhor e a Deus" (Gn 39,9) recusou-a, levando-a a vingar-se acusando-o
falsamente, fato que o leva à prisão, onde se repete a "bênção de Deus em
José" fazendo com que gozasse da confiança do carcereiro (Gn 39,10-23).
Ai na prisão fica conhecendo, presos como ele, o padeiro e o copeiro reais,
dos quais desvendou os sonhos, indo, tal como interpretara, o padeiro para
a forca e o copeiro de volta às suas funções (Gn 40,1-22), "mas o copeiro
se esqueceu de José" a quem prometera pedir ao faraó que o libertasse,
inocente que era de todas as acusações que lhe fizeram (Gn 40,23 / 40,14-
15).

11. JOSÉ PASSA A GOVERNAR O EGITO

Apesar disso, Deus, "que tem os seus caminhos", vem em seu socorro e o
faraó tem dois so-nhos que o incomodam (Gn 41,1-7). Naqueles tempos
acreditar em sonhos como previsões de futuro era muito comum, por
demais valorizados e até mesmo aproveitados por Deus, que sempre se
utiliza da cultura humana para seus desígnios. Vê-se que atua na hora
certa, podendo-se crer que impediu que o copeiro se lembrasse antes da
hora, até que se criasse uma situação favorável, não apenas ao seu eleito
em si, mas ao prosseguimento da Aliança por meio dele. O faraó não
encontra quem o tranqüilize com a solução e então o copeiro se lembra e
sugere o nome de José, a quem se apresentou os sonhos. O famoso sonho
das "vacas magras e das vacas gordas", e o das " espigas mirradas e
queimadas, e espigas granosas e cheias" umas devorando as outras, pelo
que José pressagiou sete anos de fartura e sete anos de escassez.

Manifesta-se então a sabedoria de José que ainda sugeriu um plano de


ação que tanto convenceu que foi promovido a uma espécie de Primeiro
Ministro do Faraó (Gn 41,38-44) para a execução. É realmente ótimo
administrador e durante os anos de fartura José adquiriu e armazenou o
máximo do trigo produzido que pôde, para distribuí-lo no tempo da
escassez e de fome que atingiu o mundo todo de então (Gn 41,53-57). Por
causa disso os filhos de Jacó vão, a mando do pai, ao Egito em busca de
provisões e são reconhecidos por José, mas não o reconhecem. Não há
necessidade de se narrar aqui toda a história com todos os detalhes, mas
deverá ela ser totalmente lida e até mesmo estudada com calma. José foi
visto pelos Padres dos Primórdios como uma "figura" de Jesus, que
vendido pelos irmãos, humilhado e após grande sofrimento, inocente e
resignado, atinge a glória, os perdoa, salva e prepara-lhes um lugar.

José que já demonstrara especial sabedoria e discernimento no governo,


também vai fazê-lo no trato com seus irmãos. Imediatamente após
reconhecê-los, formando eles um grupo coeso de dez "es-trangeiros", os
acusa de espiões, estratagema que usa para forçá-los a se identificarem
totalmente, pelo que fornecem todos os detalhes familiares. Conhecia-os
suficientemente bem pelo que lhe fizeram e até mesmo os motivos, por isso
quis notícias do pai e principalmente da integridade do único irmão uterino,
Benjamim, também filho de Raquel, a amada, fonte dos ciúmes que poder-
lhe-iam ter infligido igual represália. Fez tudo o que pôde até conseguir que
o trouxessem a sua presença para vê-lo e se certificar de sua incolumidade.
Também com tais manobras e não deixando transparecer que entendia o
que conversavam, ouviu quando manifestaram com angústia o
arrependimento do que fizeram com ele, aceitando os dissabores por que
José os fazia passar como se fora um castigo pelo que lhe haviam feito de
mal. Depois de muita peripécia, buscando conhecer e certificando-se da
condição moral e das condições de vida dos irmãos, seu relacionamento
com o pai e principalmente com o seu irmão Benjamim, depois de prová-
los, José se dá a conhecer (Gn 42-45):

"Disse, então, José a seus irmãos: Eu sou José; vive ainda meu pai? E
seus irmãos não lhe puderam responder, pois estavam pasmados diante
dele. José disse mais a seus ir-mãos: Chegai-vos a mim, peço-vos. E eles
se chegaram. Então ele prosseguiu: Eu sou José, vosso irmão, a quem
vendestes para o Egito. Agora, pois, não vos entris-teçais, nem vos
aborreçais por me haverdes vendido para cá; porque para preservar vida é
que Deus me enviou adiante de vós. Porque já houve dois anos de fome na
terra, e ainda restam cinco anos em que não haverá lavoura nem sega.
Deus enviou-me adiante de vós, para conservar-vos descendência na terra,
e para guardar-vos em vida por um grande livramento. Assim não fostes
vós que me enviastes para cá, senão Deus, que me tem posto por pai de
Faraó, e por senhor de toda a sua casa, e como governador sobre toda a
terra do Egito" (Gn 45,3-8).

Aparece aqui além de grande sabedoria de José o seu conhecimento das


coisas de Deus pelo que tranqüiliza os irmãos, com o mesmo sinal da
presença da fé aliada com o amor pelos homens que vimos em Abraão,
reconhecendo em todo o acontecimento o dedo de Deus a tudo dirigindo
(Gn 50,19). Levam a notícia de que estava vivo e de sua posição ao pai,
que demorou a crer e não foi fácil convencê-lo de que José, além de vivo,
governava o Egito:

"Então subiram do Egito, vieram à terra de Canaã, a Jacó seu pai, e lhe
anunciaram, dizendo: José ainda vive, e é governador de toda a terra do
Egito. E o seu coração des-maiou, porque não os acreditava. Quando,
porém, eles lhe contaram todas as palavras que José lhes falara, e vendo
Jacó, seu pai, os carros que José enviara para levá-lo, rea-nimou-se-lhe o
espírito; e disse Israel: Basta; ainda vive meu filho José; eu irei e o verei
antes que morra. Partiu, pois, Israel com tudo quanto tinha e veio a
Bersabéia, onde ofereceu sacrifícios ao Deus de seu pai Isaac"(Gn 45,25-
46,1).

A princípio quis apenas rever seu filho antes de morrer. Chegando a


Bersabéia, local onde residia Abraão, temeu pelo prosseguimento da
Aliança em terra estranha distinta da prometida, até aquele momento
indefinido, o que o levou ao oferecimento do sacrifício, buscando saber qual
seria a vontade de Deus:
"Partiu, pois, Israel com tudo quanto tinha e veio a Bersabéia, onde ofereceu
sacrifí-cios ao Deus de seu pai Isaque. Falou Deus a Israel em visões de noite, e
disse: Jacó, Jacó! Respondeu Jacó: Eis-me aqui. E Deus disse: Eu sou Deus, o
Deus de teu pai; não temas descer para o Egito; porque eu te farei ali uma
grande nação. Eu desce-rei contigo para o Egito, e certamente te farei tornar a
subir; e José porá a sua mão so-bre os teus olhos" (Gn 46,1-4).

O "não temas" da resposta evidencia a indecisão de Jacó, temor que


sempre assalta o eleito face ao contraditório do mundo com os planos de
Deus (Gn 15,1; 26,24c). Após o sacrifício e pela visão que teve fica-lhe
claro que no Egito, em prosseguimento da Aliança, formar-se-ia dele "uma
grande nação" e então desce, não mais para apenas "ver José antes de
morrer", mas com todos os seus familiares e bens, toda a Tribo dos Filhos
de Israel. Lá fixariam residência "em peregrinação", mas desde o início com
certa animosidade, pois "os egípcios detestam todos os pastores de
rebanhos" (Gn 46,33-34), o antigo preconceito aos nômades naturalmente.
Assim previu José, levando-os para a região de Gessem, onde poderiam
permanecer ou se mover sem molestar ou serem molestados, e onde a sua
religião poderia ser preservada incólume, sem se contaminar com a
idolatria egípcia.

12. A ALIANÇA E AS BÊNÇÃOS DE JACÓ NO EGITO

Após tal reviravolta, Jacó, já vivendo no Egito, se volta para a rotina do


passado e passa a se lembrar de vários acontecimentos que lhe exigiram a
atenção na época, agora quase esquecidos, com os quais até se
conformara e que agora se lhe apresentavam novamente com vigor
renovado:

"...viremos, eu e tua mãe, e teus irmãos, a inclinar-nos com o rosto em terra


dian-te de ti? ... seu pai meditava o caso no seu coração" (Gn 37,10-11).

É mais que evidente que "meditava o caso no seu coração" quanto ao que
ocorria com referência à Aliança procurando saber por onde Deus a
prosseguiria. Tudo lhe mostrava então que era por meio de José e sua
descendência que ela se concretizaria, e passa a agir na direção que se lhe
descortinava "o sinal dos tempos". Com o seu desaparecimento tudo
mudara e Jacó passara a viver de acordo com o que Deus dispusera, uma
vez que por si mesmo nada podia fazer. Agora, porém, que "o sonho de
José se realiza" tal como "meditava", exige do filho, por primeiro, que não o
sepulte em terra estrangeira, naquele tempo comparado a uma terrível
maldição, fazendo-o jurar "com a mão debaixo da coxa", comprometendo-
se assim na própria virilidade tal como se usava (Gn 47,29-31). Em
segundo lugar, sabendo para onde caminhava o Plano de Deus com
referência à Aliança, passa a preparar o terreno onde plantar a Bênção da
Primogenitura e onde transplantar a Bênção da Aliança, tal como foi esta
prometida a Abraão, que a deu ao seu pai Isaac e este lha transmitiu, como
vinha de novo "meditando em seu coração" (Gn 37,11). Adoecendo, José
leva-lhe seus dois filhos, Efraim e Manassés, nascidos no Egito de seu
casamento com Asenete (Gn 41,45.50-52). Concluído que é em José que
te-ria prosseguimento, é a ele que destina ambas as bênçãos, e lhe entrega
a dupla parte da herança (Dt 21,17) em forma de adoção dos dois filhos
dele como seus, tornando-os herdeiros como qualquer um dos outros filhos
e com eles concorrendo à herança (Gn 48,5-6):

"E disse Jacó a José: O Deus Todo-Poderoso me apareceu em Luz, na


terra de Canaã, e me abençoou, e me disse: 'Eis que te farei frutificar e te
multiplicarei; tornar-te-ei uma multidão de povos e darei esta terra à tua
descendência depois de ti, em possessão perpétua'. Agora, pois, os teus
dois filhos, que nasceram na terra do Egito antes que eu viesse a ti no
Egito, são meus: Efraim e Manassés serão meus, como Rúben e Simeão;
mas a prole que tiveres depois deles será tua; se-gundo o nome de seus
irmãos serão eles chamados na sua herança. (...) Quem são es-tes?
Respondeu José a seu pai: Eles são meus filhos, que Deus me tem dado
aqui. Continuou Israel: Trazei-mos aqui, e eu os abençoarei. (...) E José
tomou os dois, a Efraim com a sua mão direita, à esquerda de Israel, e a
Manassés com a sua mão es-querda, à direita de Israel, e assim os fez
chegar a ele. Mas Israel, estendendo a mão direita, colocou-a sobre a
cabeça de Efraim, que era o menor, e a esquerda sobre a cabeça de
Manassés, dirigindo as mãos assim propositadamente, sendo embora este
o primogênito. E abençoou a José, dizendo: O Deus em cuja presença
andaram os meus pais Abraão e Isaac, o Deus que tem sido o meu pastor
durante toda a minha vida até este dia, o anjo que me tem livrado de todo o
mal, abençoe estes meninos, e seja chamado neles o meu nome, e o nome
de meus pais Abraão e Isaac; e multipliquem-se abundantemente no meio
da terra" (Gn 48,3-16).

Acreditava-se que pelas mãos se comunicavam estado, poderes ou


virtudes da pessoa (Lv 1,4), mais ainda pela mão direita, que era assim
depositada na cabeça do primogênito, alvo de maior bênção. Há uma
inversão e Jacó abençoa Efraim como se fora o mais velho de José e
Manassés como o mais novo, anunciando a preeminência dele sobre o
irmão maior (Gn 48,17-20). Apesar do protesto do pai deles, encerra esse
primeiro momento praticando o ato a que se propusera, mantendo as mãos
trocadas, repetindo a mesma tônica da bênção de Abraão (Gn 12,2-3) e,
separadamente a José, antecipa uma doação de propriedade (Gn 38,18-20)
antes da conquista e do sorteio que se fará da Terra Prometida:

"Depois disse Israel a José: Eis que eu morro; mas Deus será convosco, e vos
fará tor-nar para a terra de vossos pais. E eu te dou um pedaço de terra a mais
do que a teus irmãos, o qual tomei com a minha espada e com o meu arco da
mão dos amorreus" (Gn 48,21-22).
Essa determinação tem a mesma dimensão da que fará José a seus irmãos
(Gn 50,24-25), o que evidencia a transitoriedade da mudança do tribo para
o Egito. Além disso, consoante a Bênção de Ja-có, a Tribo de Efraim na
realidade será bem mais numerosa e de grande projeção e poder no seio
do Povo de Israel, e irá se destacar durante a Monarquia, quando irá
fundar, constituir e conduzir o Reino do Norte, na sedição das tribos (1Rs
11,26 / 1Rs 12). Sua preeminência será tão notória que o próprio Moisés a
afirmará, já no seu tempo, comparando-a com Manassés:

"...Eis o seu novilho primogênito; ele tem majestade; e os seus chifres são
chifres de boi selvagem; com eles rechaçará todos os povos, sim, todas as
extremidades da terra. Tais são as miríades de Efraim, e tais são os milhares de
Manassés" (Dt 33,17c).

Além disso, aqui nesse trecho, o próprio Moisés trata José como "novilho
primogênito, com majestade e chifres de boi selvagem". Esta narrativa da
Bênção dos filhos de José é um ótimo exemplo daquela Regra oferecida na
Introdução para não se ater aos capítulos e versículos, mas sempre
observar o começo e o fim do assunto que se lê. Observe-se que a divisão
entre capítulo 48 e 49 não tem sentido e é aleatória, não se tratando de
momentos diferentes mas do prosseguimento de um mesmo ato, a Bênção
de Jacó a todos os seus filhos. Então, após confirmar a Aliança de Abraão,
com a distribuição inicial da Bênção para José e seus filhos Efraim e
Manassés, Jacó se volta para seus outros filhos e completa o seu trabalho
com uma locução, que se conhece ora como oráculo (Gn 49,1b) ora como
bênção (Gn 49,28c):

"Depois chamou Jacó a seus filhos, e disse: Ajuntai-vos para que eu vos
anuncie o que vos há de acontecer nos dias vindouros. Ajuntai-vos, e ouvi,
filhos de Jacó; ouvi a Israel vosso pai..." (Gn 49,1-2) / "Todas estas são as doze
tribos de Israel: e isto é o que lhes falou seu pai quando os abençoou; a cada
um deles abençoou segundo a sua bênção" (Gn 49,28).

Ao que tudo indica porém, teria sido proferida próximo da própria morte
que, com o desenrolar da História do Povo de Israel, foi sendo acrescida de
fatos pertinentes às tribos que tinham referência até mesmo remota com as
palavras de Jacó, mantidos no contexto pelo narrador tudo o que lhe
chegou por tradição oral, e na forma de um poema. Isso acontece muito em
Bíblia eis que não se escreve o fato no momento de sua ocorrência, mas
muito tempo após, já mesclado com várias acomodações. Por causa disso,
é necessário que o oráculo de Judá seja examinado, principalmente no seu
conteúdo religioso, destacando-se o seu teor messiânico. Ainda, no aspecto
cultural é de se verificar a existência de detalhes da primogenitura que vai
nos realçar a sua importância, principalmente quando se dirige a Rubem,
que como já vimos traiu o pai, praticando um "incesto" com a concubina
dele, Bala, a serva de Raquel (Gn 35,22):
"Rúben, tu és meu primogênito, minha força e as primícias do meu vigor,
preemi-nente em dignidade e preeminente em poder. Impetuoso como a água,
não reterás a preeminência; porquanto subiste ao leito de teu pai; então o
profanaste. Sim, ele su-biu à minha cama" (Gn 49,3-4).

Este trecho exibe parte da importância do primogênito principalmente


quando o define como "minha força e as primícias do meu vigor", qual seja,
onde se manifesta a força geradora de Jacó com toda a capacidade, no
sentido bíblico de "primícias", como o impulso inicial e o princípio de
fecundidade, anunciando farta colheita. Por isso é por natureza
"preeminente em dignidade e preeminente em poder", sendo assim por si
só, uma qualidade de sua própria constituição (cfr. Gn 43,33). Tudo isso ele
perdeu - "subiste ao leito de teu pai, e o profanaste", "não te pertencerá
mais a preeminência que tens direito de gozar". Essa preeminência
compreende até mesmo a chefia do clã ou da tribo ou da família:

"De Hosa, dos filhos de Merári, foram filhos: Sínri o chefe, ainda que não era o
pri-mogênito, contudo seu pai o constituiu chefe..." (1Cro 26,10).

O pai tinha o direito de ratificar ou retirar o direito do primogênito. Assim,


perdido por Ru-bem, o direito teria de ir logicamente para Simeão e Levi,
mas, por sua vez, também traíram o pai (Gn 34,25-31), no caso de Dina, e
não o recebem, com o ato deles não querendo compactuar Jacó:

"Simeão e Levi são irmãos; as suas espadas são instrumentos de violência. No


seu con-cílio não entres, ó minha alma! com a sua assembléia não te ajuntes, ó
minha glória! porque no seu furor mataram homens, e na sua ira estropiaram
bois. Maldito o seu fu-ror, porque violento! maldita a sua ira, porque cruel!
Dividi-los-ei em Jacó, e os es-palharei em Israel" (Gn 49,5-7).

A frase "dividi-los-ei em Jacó e os espalharei em Israel" mostra a


modificação operada no texto com os acontecimentos que ocorreram após
o seu pronunciamento. Jacó não tinha condições de saber que o seu povo
seria conhecido por "Israel", nem que ambas as tribos seriam tragadas
pelas outras, praticamente desaparecendo. Mas, ambos praticaram juntos o
ato injusto e comprometedor de que se ressente ainda e juntos deveriam
participar das conseqüências e da mesma perda. Assim, além de não gozar
da Primogenitura, Simeão vai se mesclar no território de Judá (Js 19,1-9) e
Levi, apesar do exercício do sacerdócio que lhe adveio pela postura no
episódio do Bezerro de Ouro (Ex 32,26-29), teve suas propriedades
disseminadas por toda a nação (Js 21,1-40). Ora, os vaticínios bíblicos
nunca são mencionados assim com tanta clareza, sem simbologia
adequada e misteriosa. Por causa desse fato, não faz mal repetir, o que se
referiu a cada um e a todos os filhos de Israel, bem como aquilo do vaticínio
de Jacó que se entendeu haver sido cumprido de alguma forma, foi
"esclarecido" por um redator posterior, acrescido e incorporado ao contexto,
o que se denomina de glosa, que os copistas e tradutores respeitaram e
mantiveram como parte do conteúdo.

Percebe-se que deve ter sido um problema difícil para Jacó esse de
desenvolver e conciliar o prosseguimento da Aliança entre os filhos, pois
caso seguisse uma ordem normal e lógica, a primoge-nitura caberia agora a
Judá, que assim esperava, ficando definido o caminho. Não que
necessariamente devesse seguir uma hierarquia determinada pela ordem
cronológica dos nascimentos, mas deve ter se-guido uma qualquer, mesmo
que pensada, planejada e amadurecida no decorrer de sua vida toda. Ago-
ra, o advento de José da forma como aconteceu alterou tudo clamando por
uma revisão, já que um novo elemento vem integrar a disposição racional já
deliberada e pronta. Principalmente por "conser-var na memória os fatos"
(Gn 37,11b), e já lhe "ter urdido uma túnica talar" (Gn 37,3c), e os "sonhos
que teve" (Gn 37,5.9), que naquele tempo eram vistos como presságios do
futuro, o convencerem en-tão do lugar onde iria desaguar a corrente da
Aliança. Sendo assim, o que planejara com o seu desapa-recimento ficaria
alterado não mais se admitindo que seguiria tudo apenas em Judá e, com o
retorno de José, impunha-se uma revisão total, pelo que parece afirmar:

"Judá, a ti te louvarão teus irmãos; a tua mão será sobre o pescoço de teus
inimigos: diante de ti se prostrarão os filhos de teu pai. Judá é um leão novo.
Voltaste da presa, meu filho. Ele se encurva e se deita como um leão, e como
uma leoa; quem o desperta-rá? O cetro não se afastará de Judá, nem o bastão
de comando dentre seus pés, até que venha aquele a quem pertence; e a ele
obedecerão os povos. Atando ele o seu jumentinho à vide, e o filho da sua
jumenta à videira seleta, lava as suas roupas em vinho e a sua vestidura em
sangue de uvas. Os olhos serão escurecidos pelo vinho, e os dentes brancos de
leite" (Gn 49,8-12).

O colorido messiânico desse vaticínio é facilmente visível, onde aparece a


força guerreira (Gn 49,9), fartura e prosperidade (Gn 49,11-12), realçadas
com imagens simbólicas, sem necessidade de muita análise. É preciso,
porém, ler um trecho de um livro bem adiante, para melhor precisar outros
acontecimentos a que se subordinaram esse oráculo de Jacó, modificando-
o:

"Quanto aos filhos de Rúben, o primogênito de Israel, pois ele era o


primogênito; mas, porquanto profanara a cama de seu pai, deu-se a sua
primogenitura aos filhos de José, filho de Israel, de sorte que a sua genealogia
não é contada segundo o direito da primogenitura; pois Judá prevaleceu sobre
seus irmãos, e dele proveio o príncipe; porém a primogenitura foi de José..."
(1Cro 5,1-2).

E é o próprio redator do livro de Crônicas quem nos revela, pela boca de


Davi, o modo como Judá prevaleceu sobre seus irmãos:
"Todavia o Senhor Deus de Israel escolheu-me de toda a casa de meu pai, para
ser rei sobre Israel para sempre; porque a Judá escolheu por príncipe, e na
casa de Judá a casa de meu pai, e entre os filhos de meu pai se agradou de mim
para me fazer rei sobre todo o Israel" (1Cro 28,4).

Assim, em Davi, descendente de Judá, foi cumprido o oráculo:

"Judá, a ti te louvarão teus irmãos; a tua mão será sobre o pescoço de teus
inimi-gos: diante de ti se prostrarão os filhos de teu pai" (Gn 49,8).

Uma comparação mostrará que já nos primórdios se dava a esse oráculo


um sentido profundamente messiânico, como se lê em Apocalipse, que
tirou a denominação de "leão" para Jesus das palavras de Jacó:

Gn 49,9 Ap 5,5
"E disse-me um dentre os anciãos: Não
Judá é um
chores; eis que o
leãozinho. Voltaste da presa, meu
filho.
Leão da tribo de Judá, a raiz de Davi,
Ele se encurva e se deita como
venceu para abrir o livro e romper os seus
um leão,
sete selos."
e como uma leoa; quem o
despertará?"

E é muito aceitável esse conteúdo messiânico por causa de um fato muito


conhecido do Evangelho de Mateus, quando nos narra a visita dos Reis
Magos, onde é digno de nota o que perguntaram e o que aconteceu por
causa disso:

"Onde está aquele que é nascido rei dos judeus? pois do oriente vimos a sua
estrela e viemos adorá-lo. O rei Herodes, ouvindo isso, perturbou-se, e com ele
toda a Jeru-salém; e, reunindo todos os principais sacerdotes e os escribas do
povo, pergunta-va-lhes onde havia de nascer o Cristo. Responderam-lhe eles:
Em Belém da Ju-déia..." (Mt 2,2-5).

Com base neste trecho, pergunta-se:

 "O rei Herodes, ouvindo isso, perturbou-se..." - ora, somente por ter
nascido um menino a quem estrangeiros qualificavam de "rei dos
judeus"?

 Além disso, "os principais sacerdotes e os escribas", por sua vez,


souberam dizer onde nasceria o Cristo (em hebraico, o Messias)?

Essas indagações mostram que ao tempo de Herodes, o Messias (Cristo,


em grego) era esperado, eis que o rei se perturbou e só quis saber "onde
nasceria", do que foi informado, tendo como certa a sua existência. É que
quando Herodes, que não era israelita nem da Tribo de Judá, foi nomeado
rei por Roma, quando o cetro não mais pertenceu à Tribo de Judá, cumpria-
se o vaticínio de Jacó, uma vez que "viria já aquele a quem pertence e a ele
obedecerão os povos" (Gn 49,10cd). Tanto é as-sim, que, com base nas
informações que recebeu, "Herodes mandou matar todos os meninos de
até dois anos" (Mt 2,16), pelo que o Evangelista viu cumprido antigo oráculo
(Jr 31,15).

Tudo mostra que, pelos acontecimentos acrescidos, a Judá foi preservada


a chefia quando Israel se constituísse como os outros povos em reino, já
que fala em "cetro", com um colorido "messiâ-nico". Não é oportuno se
discutir isso aqui mas parece uma glosa para justificar a posse de Judá pela
coroa israelita, eis que impossível para Jacó prever que Israel seria uma
monarquia em certa ocasião histórica, pela imprecisão normal de todos os
vaticínios que a Escritura no oferece (Gn 49,1-10), e a resistência oferecida
por Samuel com base na doutrina quando o povo a pediu (1Sm 8).
Porém, a José é dada a Bênção da Primogenitura, com todos os seus
elementos, "todas as bênçãos", inclusive a indispensável consagração,
prosseguindo-se nele a Aliança:

"José é um ramo frutífero, ramo frutífero junto a uma fonte; seus raminhos
se estendem sobre o muro. Os flecheiros lhe deram amargura, e o
flecharam e perseguiram, mas o seu arco permaneceu firme, e os seus
braços foram fortalecidos pelas mãos do Pode-roso de Jacó, o Pastor, o
Rochedo de Israel, pelo Deus de teu pai, o qual te ajuda-rá, e pelo Todo-
Poderoso, o qual te abençoara, com bênçãos dos céus em cima, com
bênçãos do abismo que jaz embaixo, com bênçãos dos seios e da madre.
As bênçãos de teu pai excedem as bênçãos dos montes eternos, as coisas
desejadas dos eternos outeiros; sejam elas sobre a cabeça de José, e
sobre o alto da cabeça daquele que foi consagrado de seus irmãos" (Gn
49,22-26).

À tribo de Efraim, "pela imposição da mão direita de Jacó", caberia então o


exercício da chefia do clã, após José, na forma da tradição cultural,
correspondente ao equilíbrio tribal em vigor na época. Tudo fica mais claro
com uma revisão sucinta do passado, que agora nos impõe para maior
clareza e necessidade ao raciocínio. É que José era o filho predileto de
Jacó e os seus irmãos o odiavam por isso e por sonhos dele que previam
sua supremacia futura (Gn 37,3-4.5-11), sonhos esses que se cumpri-ram
(Gn 42,6.9). José e Judá são os dois filhos primogênitos de ambas as
mulheres de Jacó, Raquel e Lia. De Lia, Judá seria o primogênito em lugar
de Rúben, Simeão e Levi que perderam o direito (Gn 49,4-6); e, de Raquel,
José, a quem Jacó amava com predileção e a quem devolveu a
primogenitura. Por sua vez fora a tribo de Judá abençoada por Jacó com
um colorido messiânico (Gn 49,8-12), e ca-bia-lhe o direito da primogenitura
na ordem cronológica de nascimento (Gn 29,31-35). Assim como Esaú
odiou de morte a Jacó por causa da primogenitura, pelo mesmo motivo é de
se esperar o ressen-timento de Judá quando seria destinada por predileção
a José. Não se deve perder de mira que foi Judá quem chefiou a venda de
José para os ismaelitas (Gn 37,26-27), contra a vontade de Rúben que o
que-ria restituir ileso ao pai (Gn 37,22), e isso se deu antes da bênção de
Jacó (Gn 49). E, no futuro, tanto com a correspondente bênção, como com
Efraim e Manassés igualados a Rúben e Simeão (Gn 48,5) e na porção
maior dada a José (Gn 48,22), Jacó restabelece a José o seu lugar. A isso
é que Judá não concorda, se propõe e consegue retomá-la. Assim, os
antagonismos familiares fervilhavam, fermentan-do-se uma divisão futura
que irá certamente ocorrer. Não é à toa que em Dt. 21,17 se vai proibir a
preferência do pai pelo primogênito da mulher amada, coincidência demais
com os fatos da tribo de Jacó.

Os demais elementos integrantes do oráculo de Jacó e atinentes a seus


outros filhos, as mais das vezes históricos ou geográficos de cada tribo,
podem ser facilmente verificados na medida em que os demais livros da
Bíblia mencionarem o nome deles, quando então dever-se-á fazer uma
comparação com esse texto. A essa altura é bom que se recorde que nem
sempre é possível conhecer de imediato todos os detalhes integrantes das
Escrituras, eis que condicionando-se à cultura humana com todas as suas
implicações, muitas vezes hoje não se pode compreender com exatidão o
sentido das narrativas escritas para os homens daquele tempo e não para
os atuais. Um exemplo melhor esclarecerá: suponhamos que alguém
nesses dias escreva algo assim: "então embananou o meio do campo e
tudo acabou em samba". Ora, se tal escrito for guardado durante quatro mil
anos e então alguém ler essa frase, se desconhecer a "bananada", o
"futebol" e a "nossa música", entenderá alguma coisa? Claro que não, e
aquilo que hoje não tem nenhum mistério para nós, ele não irá nunca
compreender se não fizer um estudo aprofundado de nossa cultura. E se
não conseguir fazê-lo terá que se contentar com uma compreensão total de
nossa época e enquadrar a afirmação o melhor possível. Assim acontece
muitas ve-zes quando se lê a Bíblia. Jesus Cristo é quem vai esclarecer o
que é essencial, com a Revelação defi-nitiva que faz, e que sem Ele é
impossível, como afirma São Paulo (2Cor 3,14-16).

erminadas as Bênçãos, Jacó se despede:

"Depois lhes deu ordem, dizendo-lhes: Eu estou para ser congregado ao meu
povo; sepultai-me com meus pais, na cova que está no campo de Efrom, o
heteu, na cova que está no campo de Macpela, que está em frente de Manre, na
terra de Canaã, cova esta que Abraão comprou de Efrom, o heteu, juntamente
com o respectivo campo, como propriedade de sepultura. Ali sepultaram a
Abraão e a Sara, sua mulher; ali sepultaram a Isaque e a Rebeca, sua mulher;
e ali eu sepultei a Lia. O campo e a cova que está nele foram comprados aos
filhos de Hete. Acabando Jacó de dar estas instruções a seus fi-lhos, encolheu
os seus pés na cama, expirou e foi congregado ao seu povo" (Gn 49,29-33).
Quando Abraão comprou a gruta onde sepultou Sara (Gn 23,1-20), tal
como se pensava na antigüidade, tomou posse da Terra Prometida, sua
residência para sempre, e é para o mesmo lugar que deverá ser
transportado Jacó, "para ser congregado ao seu povo", tal como se
acreditava na "vida após a morte", como se verá também em outros lugares
da Escritura, o que foi feito (Gn 50,7-14). Sepultado o pai, José é assediado
pelos irmãos, que dele agora temiam uma represália pelo que lhe fizeram,
ao que lhes comunica a isenção de qualquer mágoa e de profunda fé na
direção dos acontecimentos por Deus (Gn 50,15-21). E, quando se
aproxima o fim de seus dias, bem vividos, dita as últimas ordens a seus
irmãos, o que comprova a sua qualidade de "chefe", de "primogênito no
exercício de suas funções" em direção aos compromissos da Aliança:

"Depois disse José a seus irmãos: Eu morro; mas Deus certamente vos visitará,
e vos fará subir desta terra para a terra que jurou a Abraão, a Isaque e a Jacó.
E José fez jurar os filhos de Israel, dizendo: Certamente Deus vos visitará, e
fareis transportar daqui os meus ossos. Assim morreu José, tendo cento e dez
anos de idade; e o embalsamaram e o puseram num caixão no Egito" (Gn
50,24-26).

"Moisés levou consigo os ossos de José, porquanto havia este solenemente


ajuramentado os filhos de Israel, dizendo: Cer-tamente Deus vos visitará; e vós
haveis de levar daqui convosco os meus ossos" (Ex 13,19) / "Os ossos de José,
que os filhos de Israel trouxeram do Egito, foram enterra-dos em Siquém,
naquela parte do campo que Jacó comprara aos filhos de Hamor, pai de
Siquém, por cem peças de prata, e que se tornara herança dos filhos de José"
(Js 24,32) .

Aqui termina o Livro de Gênesis, base de todo estudo da Bíblia, trazendo


gloriosa e santa história dos Patriarcas Abraão, Isaac e Jacó, que lançaram
os fundamentos de nossa fé. Nenhuma menção honrosa será maior que a
da própria Igreja, cujos alicerces lançaram e ergueram:

"Para reunir a humanidade dispersa, Deus escolheu Abrão, chamando-o para


"fora do seu país, da sua parentela e da sua casa" (Gn 12,1), para o fazer
Abraão, quer dizer, "pai duma multidão de nações" (Gn 17,5): "Em ti serão
abençoadas todas as nações da Terra" [Gn 12,3 LXX (cfr. Gl 3,8)]".

"O povo saído de Abraão será o depositário da promessa feita aos patriarcas, o
povo eleito (Rm 11,28), chamado a preparar a reunião, um dia, de todos os
filhos de Deus na unidade da Igreja (Jo 11,52; 10,16). Será o tronco em que
serão enxertados os pagãos tornados crentes (Rm 11,17-18,24)".

"Os patriarcas, os profetas e outras personagens do Antigo Testamento foram,


e se-rão sempre, venerados como santos, em todas as tradições litúrgicas da
Igreja" (Catecismo da Igreja Católica, n s.º 59, 60 e 61 - destaques a
propósito)".
ÊXODO
A Aliança e o Povo de Deus
1. OS FILHOS DE ISRAEL TORNAM-SE UM POVO

O Livro do Êxodo tem esse nome em virtude de narrar a "saída" do Egito,


ou seja, o "êxodo" do então ai formado Povo de Israel. Mas, não narra só
isso e nele se encontram várias importantes instituições que serviram de
fundamento para a estrutura da fé israelita e cristã. Quando foi composta a
Escritura os cinco primeiros livros que a compõem (a "Torah" - "os cinco
livros de Moisés") "não existiam tal como são apresentados", isto é, não
tinham a forma atual, nem títulos que os separasse uns dos outros e
formavam uma unidade, um "livro" só. Tinham a forma de "rolos" a que se
denominavam de "cânon" e, com a separação deles, uns dos outros,
conforme o uso dispondo-os em vasos distintos, acabaram por se impor
assim como nos chegaram e receberam nomes. Assim não há neles uma
disposição específica, que corresponda somente ao título que trazem, mas
se harmonizam num conjunto, e o que se narra num livro as mais das vezes
se iniciou em outro, tem referências com outros adiante ou atrás,
obedecendo uma ordem nem sempre cronológica nem mesmo lógica. A
esse conjunto inicial dos cinco primeiros "livros" deu-se o nome de
"Pentateuco".

Já foi visto como José se revelou verdadeiro sábio como administrador no


trato político, com sua parentela, com as pessoas e na forma como se
conduzia em todas as dificuldades que lhe surgiam. Conhecendo a religião
de seus familiares e também a do Egito, procurou situá-los em região
fronteiriça e afastada, onde não sofressem a influência idólatra e também
evitando desencontros, choques entre seus antagonismos e buscando
sempre a possibilidade de harmonia e conciliação:

"Depois disse José a seus irmãos, e à casa de seu pai: Eu subirei e informarei a
Faraó, e lhe direi: Meus irmãos e a casa de meu pai, que estavam na terra de
Canaã, vieram para mim. Os homens são pastores, que se ocupam em
apascentar gado; e trouxeram os seus rebanhos, o seu gado e tudo o que têm.
Quando, pois, Faraó vos chamar e vos perguntar: Que ocupação é a vossa?
respondereis: Nós, teus servos, temos sido pastores de gado desde a nossa mocidade
até agora, tanto nós como nossos pais. Isso direis para que habiteis na terra de
Gessen; porque todo pastor de ovelhas é abominação para os egípcios" (Gn
46,31-34).

Com essa astuta argumentação soube se impor ao Faraó e conseguir


neutralizar qualquer reação negativa ao seu desejo, pois, sendo nômades,
até certo ponto indesejáveis mas habitando em lugar assim afastado,
deixou transparecer que não fixariam morada nem perturbariam a vida
pastoril dos egípcios. Convencido, o Faraó até recomendou que se
entregasse o seu rebanho à administração de um deles que fosse capaz
(Gn 47,5-6). Vê-se que a Tribo de Israel já se deslocava para o Egito em
situação perigosa, cercada de antagonismos:

"...Respondeu Moisés: Não convém que assim se faça, porque é abominação aos
egípcios o que havemos de oferecer ao Senhor nosso Deus. Sacrificando nós a
abominação dos egípcios perante os seus olhos, não nos apedrejarão eles?..."
(Ex 8,21-23).

Já havia até um antagonismo entre os cultos capaz de impedir a


convivência pacífica deles e, pior que tudo, o cumprimento das exigências
monoteístas da Aliança. Mas, outro problema havia, oriundo da própria
organização econômica do Egito, impressa pelo próprio José. A fome foi
tamanha que os egípcios acabaram por trocar pelo alimento, primeiro o
rebanho e depois as propriedades, transferindo tudo ao Faraó, e o povo foi
reduzido à servidão (Gn 47,13-27). José criou então um sistema econômico
a que todos se sujeitaram com uma única exceção: os sacerdotes. Por tal
sistema todo o solo egípcio passou à propriedade soberana do Faraó, um
regime que não impedia a posse particular (Gn 47,27), e de toda a
produção entregava-se um quinto ao Faraó. Regime este que passou a
vigorar até mesmo após a crise, até o dia em que foi composta a narrativa,
muito tempo depois (cfr. "...até o dia de hoje..."), pelo que a ele os Filhos
de Israel se submeteram quando mudaram:

"José, pois, estabeleceu isto por estatuto quanto ao solo do Egito, até o dia de hoje,
que ao Faraó coubesse o quinto da produção; somente a terra dos sacerdotes não
ficou sendo de Faraó. Assim habitou Israel na terra do Egito, na terra de Gessen; e
nela adquiriram propriedades, e foram fecundos e multiplicaram-se muito" (Gn
47,26-27).

Já vimos que naquele tempo cada povo tinha um deus ou cada deus tinha o
seu povo. Podia se distinguir um povo pelo deus que adorava e servia.
Enquanto vivo José cuidou dos irmãos e suas famílias (Gn 47,11-12), mas:

"Morreu, pois, José, e todos os seus irmãos, e toda aquela geração. Os filhos de
Israel frutificaram e aumentaram muito, multiplicaram-se e tornaram-se
sobremaneira fortes, de modo que a terra se encheu deles. Levantou-se sobre o
Egito um novo rei, que não conhecera a José. Disse ele ao seu povo: Eis que o Povo
dos Filhos de Israel é mais numeroso e mais forte do que nós" (Ex 1,6-9).

Vale a pena repetir: "Eis o Povo dos Filhos de Israel..." - apesar do


regime econômico servil em que todos viviam no Egito, os Filhos de Israel
foram reconhecidos pelo Faraó como um POVO, pois, fecundos, tornaram-
se numerosos, permaneceram fiéis a Deus e não se converteram aos
deuses do Egito. Formaram então o Povo de Deus que se estruturou de
maneira independente até mesmo com o seu próprio Conselho de Anciãos
(Ex 3,16/ Ex 4,29) e inaugurando-se o "cumprimento" da Promessa a
Abrão:

"Eu farei de ti um grande povo..." (Gn 12,2)

"Tornar-te-ei sobremaneira fecundo e de ti farei nações, e reis sairão de ti" (Gn


17,6).

"...mais numeroso e mais forte do que nós", tal a fecundidade já


anunciada a Abrão e impressa por Deus com vistas à Aliança, é agora
concentrada na formação do Povo de Deus. Não se tem registro oficial da
população nem foi praticado nenhum recenseamento, sendo assim o "mais
numeroso do que nós" poderia ter sido uma força de expressão usada
pelo Faraó para seduzir os egípcios à perseguição que se iniciava. Mesmo
assim, teria de se apoiar, e se apoiava, num fato incontestável, pois,
realmente era um povo "mais forte" que eles, pois não abandonaram
Iahweh, para servir aos deuses egípcios nem se deixaram abater nem se
curvaram ante à servidão imposta pelo regime inaugurado por José, pois
até mesmo adquiriram propriedades o que evidencia o seu progresso e
desenvolvimento (Gn 47,27b). Tanto é assim que foi preciso não só aplicar-
lhes mas, aumentar-lhes a opressão (Ex 1,11-14), e iniciar uma sistemática
perseguição para impedir a sua proliferação:

"Eia, usemos de astúcia para com ele, para que não se multiplique, e aconteça que,
vindo guerra, ele também se ajunte com os nossos inimigos, e peleje contra nós e se
retire da terra. Portanto puseram sobre eles feitores, para os afligirem com suas
cargas. Assim os israelitas edificaram para Faraó cidades armazéns, Pitom e
Ramsés. Mas quanto mais os egípcios afligiam o povo de Israel, tanto mais este se
multiplicava e se espalhava; de maneira que os egípcios se preocupavam por causa
dos filhos de Israel. Por isso os egípcios faziam os filhos de Israel servir com
dureza; assim lhes amarguravam a vida com pesados serviços em barro e em tijolos,
e com toda sorte de trabalho no campo, enfim com todo o seu serviço, em que os
faziam servir com dureza" (Ex 1,10-14).

"... os egípcios faziam os filhos de Israel servir com dureza; assim lhes
amarguravam a vida com pesados serviços em barro e em tijolos, e
com toda sorte de trabalho no campo, enfim com todo o seu serviço,
em que os faziam servir com dureza", repetindo propositadamente o final
da transcrição acima, vê-se que o regime de servidão a que foram
submetidos e agravado mais ainda com mais rigor pelo antagonismo criado
atingia toda a extensa faixa em que trabalhavam, não só nos tijolos do
exemplo escolhido pelo narrador (Ex 5,6-8). Mas, mesmo assim, temia o
Faraó que se aliassem a alguma nação estrangeira e, em virtude da sua
localização fronteiriça, lhes facilitasse a saída do país, com a evasão
daquele imposto de um quinto da produção, e do trabalho escravo a que os
submeteram na servidão do regime. Não pode ser outro o motivo de tanta
preocupação e de tanta providência estremada, cuja evasão do país
causaria sério transtorno econômico, pois apesar da opressão, os israelitas
eram bastante produtivos:

" Portanto puseram sobre eles feitores, para os afligirem com suas cargas. Assim os
israelitas edificaram para Faraó cidades armazéns, Pitom e Ramsés" (Ex 1,11).

Mas, como acontece com um povo geralmente perseguido, quanto mais era
oprimido mais se desenvolvia e crescia nele o sentimento de unidade,
fortalecendo-lhe a resistência. Não satisfeito, o Faraó determinou o
extermínio dos meninos nascituros, não o conseguindo em virtude de uma
qualidade das "mulheres hebréias que davam à luz antes que cheguem as
parteiras" (Ex 1,19). Mesmo assim, aumentava e se tornava mais resistente
obrigando o Faraó à medidas extremas (Ex 1,20-22). Contorcendo-se no
mundo de pecado o Povo de Deus amadurecia no sofrimento e cada vez
mais tomava consciência de sua unidade na fé, e mais se fortalecia. Esta
opressão durou muito tempo, o que se comprova pelo decorrido em se
modificarem providências diversas, pela ineficácia constatada (Ex 1,11s /
1,15 / 1,22), e até mesmo suficiente para se poder reconhecer a Bênção de
Deus às parteiras que protegeram a mulher hebréia, "dando-lhes uma
posteridade" (Ex 1,15-21).

2. O POVO DE ISRAEL E MOISÉS

Nesse clima de perseguição, nasce um menino da Tribo de Levi que ficou


escondido enquanto pôde e até quando o colocaram num cesto calafetado
e o deixaram como que à deriva no Nilo, bem no local onde a filha do Faraó
se banhava. Encontrando-o, adotou-o e o entregou, "sem saber", para a
própria mãe o amamentar e o devolver quando desmamasse (Ex 1,1-10).
Recebe o nome de Moisés (= salvo das águas) e foi criado na corte
faraônica após desmamado, fato comprovado pela tradição israelita (Ex
11,3 / At 7,21), mas junto com o leite materno a mãe o "amamentou" com a
sua origem, história e nacionalidade, e, principalmente, com a fé no Deus
de Abraão, o Deus da Promessa e da Aliança:

"Pela fé Moisés, logo ao nascer, foi escondido por seus pais durante três meses,
porque viram que o menino era formoso; e não temeram o decreto do rei" (Hb
11,23)

Moisés, da "Tribo de Levi", muito embora mal vista pelo pai Jacó, com a
destituição da primogenitura (Gn 49,5-7), é quem vai comandar a libertação
de Israel das garras dos egípcios, conduzi-los até a Terra Prometida e
completar assim a Promessa feita a Abraão (Gn 12,7; 13,15; 15,18; 17,8).
Outra tradição israelita viu esse tempo de Moisés com mais profundidade
que a narrativa em tela, oferecendo um pouco mais de detalhes, fruto de
outra fonte:

"Enquanto se aproximava o tempo da promessa que Deus tinha feito a Abraão, o


povo crescia e se multiplicava no Egito; até que se levantou ali outro rei, que não
tinha conhecido José. Usando esse de astúcia contra a nossa raça, maltratou a nossos
pais, ao ponto de fazê-los enjeitar seus filhos, para que não vivessem. Nesse tempo
nasceu Moisés, e era mui formoso, e foi criado três meses em casa de seu pai. Sendo
ele enjeitado, a filha de Faraó o recolheu e o criou como seu próprio filho. Assim
Moisés foi instruído em toda a sabedoria dos egípcios, e era poderoso em palavras e
obras" (At 7,17-22).

Deus não se sujeita às convenções dos homens, mesmo se por vezes elas
se integrem em seus desígnios, e fará sempre o que for preciso para atingi-
los, tal como dirá a Moisés: "...terei misericórdia de quem eu tiver
misericórdia, e me compadecerei de quem me compadecer" (Ex 33,19), e o
escolhe. Moisés sacrifica todo o seu conforto na corte faraônica e se
esforça para se impor como líder israelita:

"Pela fé Moisés, sendo já homem, recusou ser chamado filho da filha de Faraó,
escolhendo antes ser maltratado com o povo de Deus do que ter por algum tempo o
gozo do pecado, tendo por maiores riquezas o opróbrio de Cristo do que os tesouros
do Egito; porque tinha em vista a recompensa. Pela fé deixou o Egito, não temendo
a ira do rei; porque ficou firme, como quem vê aquele que é invisível (Hb 11,24-
27).

A formação dele na corte faraônica facultou-lhe um conhecimento à altura


de sua missão bem como a familiaridade com os inimigos de seu povo,
propiciando-lhe a visão necessária para a libertação dele, para a satisfação
e cumprimento da Aliança de Abraão. Os homens sempre se opondo, por
causa do pecado, aos Planos de Deus: recusaram a liderança de Moisés,
logicamente por não se encaixar na primogenitura dada por Jacó a outra
tribo que não a de Levi. Por isso não foi aceito como líder pelos israelitas,
apesar de sua demonstração de lealdade, arriscando a sua sorte por causa
de um irmão de raça que sofria nas mãos do capataz opressor. Essa
mesma prova foi-lhes dada também por ter abandonado a sua posição de
príncipe, adotado que foi pela filha do Faraó, possível candidato à sucessão
do trono. Envolve-se tanto que, tendo morto um capataz egípcio, acaba por
fugir para a Terra de Madiã (Ex 2,11-15), junto de sua parentela (Gn 25,2),
perseguido pelo Faraó que resolveu matá-lo.:

"Assim Moisés foi instruído em toda a sabedoria dos egípcios, e era poderoso em
palavras e obras. Ora, quando ele completou quarenta anos, veio-lhe ao coração
visitar seus irmãos, os filhos de Israel. E vendo um deles sofrer injustamente,
defendeu-o, e vingou o oprimido, matando o egípcio. Cuidava que seus irmãos
entenderiam que por mão dele Deus lhes havia de dar a liberdade; mas eles não
entenderam. No dia seguinte apareceu-lhes quando brigavam, e quis levá-los à paz,
dizendo: 'Homens, sois irmãos; por que vos maltratais um ao outro?' Mas o que
fazia injustiça ao seu próximo o repeliu, dizendo: 'Quem te constituiu senhor e juiz
sobre nós? Acaso queres tu matar-me, como ontem mataste o egípcio?' A esta
palavra fugiu Moisés, e tornou-se peregrino na terra de Madiã, onde gerou dois
filhos" (At 7,22-29).

Ai, junto a um poço encontra, tal como aconteceu com Isaac e Jacó, as
filhas de um sacerdote, defendendo-as e dando de beber ao rebanho, pelo
que é acolhido e futuramente se casa com uma delas, que lhe deu um filho
Gerson (Ex 16,22) e outro Eliezer (Ex 18,4). Moisés, em virtude da sua
opção, também passa pelas mesmas vicissitudes por que passaram os
Patriarcas, por aquele amadurecer que lhe vem pelo sofrimento, até que
Deus se lembre de sua Promessa e da Aliança:

"Decorrido muito tempo, morreu o rei do Egito; e os filhos de Israel gemiam


debaixo da servidão, clamaram, e subiu a Deus o seu clamor por causa da servidão.
Então Deus, ouvindo-lhes os gemidos, lembrou-se da sua Aliança com Abraão,
com Isaac e com Jacó. E viu Deus os filhos de Israel, e Deus os conheceu" (Ex
2,23-25).

Moisés apascentava o rebanho de seu sogro, atingindo o Monte Sinai


(também conhecido por Monte Horeb) percebe a "sarça que ardia em
chamas, mas não se consumia", mantendo-se com o seu verdor apesar da
voracidade do fogo. Aproxima-se para observar melhor o fenômeno (Ex 3,2-
3), quando então recebe o chamado de Deus para a missão de libertar o
Povo de Deus:

"E vendo o Senhor que ele se virara para ver, chamou-o do meio da sarça, e disse:
Moisés, Moisés! Respondeu ele: Eis-me aqui. Prosseguiu Deus: Não te chegues
para cá; tira os sapatos dos pés; porque o lugar em que tu estás é terra santa. Disse
mais: Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, e o Deus de
Jacó. E Moisés escondeu o rosto, porque temeu olhar para Deus. Então disse o
Senhor: Com efeito tenho visto a aflição do meu povo, que está no Egito, e tenho
ouvido o seu clamor por causa dos seus opressores, porque conheço os seus
sofrimentos; e desci para o livrar da mão dos egípcios, e para o fazer subir daquela
terra para uma terra boa e espaçosa, para uma terra que mana leite e mel... E agora,
eis que o clamor dos filhos de Israel é vindo a mim; e também tenho visto a
opressão com que os egípcios os oprimem. Agora, pois, vem e eu te enviarei a
Faraó, para que tires do Egito o meu povo, os filhos de Israel" (Ex 3,4-10).

Mas, tal como acontece geralmente com o "eleito", a primeira reação de


Moisés foi o temor de sua missão junto de Deus. Assim é. Já era
perseguido pela idéia de libertar o seu povo e agora Deus aparece e a
determina. Assusta-se mais ainda pelo compromisso com Deus,
incompreensível as mais das vezes ao Homem, e aparece aquele temor em
face da missão específica, oriundo do sentimento de impotência pertinente
à dimensão necessária ao seu cumprimento. Ao perceber a envergadura da
Obra Divina a que é convocado, o eleito treme e teme. Há uma enorme
provação, numa difícil e dura fase da vida, um período de dificuldades em
que sente tudo desmoronar dentro e em torno de si, restando-lhe apenas
Deus pela fé, rejeitado que fora pelos seus irmãos de raça e em fuga por ter
"traído" a corte do Faraó. É como um náufrago, sozinho em alto mar e em
plena escuridão noturna, noite tão negra que nada se percebe a não ser um
tênue luz de esperança a lhe apontar uma única e só direção: o chamado
de Deus. É o ponto culminante e crucial da fé. Só lhe resta esta fé num
lance de consciência a lhe manter viva a esperança em um ideal há muito
alimentado e recusado. Começa então sua caminhada no sentido de Deus
e então se equilibra, se salva e se liberta de tudo. Só quem é livre pode
desempenhar uma missão que nasce na intimidade de Deus. Só quem é
livre pode viver em comunhão e unidade com Deus. Deus só entra num
coração livre e vazio de tudo, estabelecendo com o seu eleito um diálogo
íntimo em que se dá a conhecer por inteiro, pelo que até informa seu
próprio nome que o distingue e se dá a conhecer:

" Então Moisés disse a Deus: Quem sou eu, para que vá a Faraó e tire do Egito os
filhos de Israel? Respondeu-lhe Deus: Certamente eu estarei contigo; e isto te
será por sinal de que eu te enviei: Quando houveres tirado do Egito o meu
povo, servireis a Deus neste monte. Então disse Moisés a Deus: Eis que quando eu
for aos filhos de Israel, e lhes disser: O Deus de vossos pais me enviou a vós; e eles
me perguntarem: Qual é o seu nome? Que lhes direi? Respondeu Deus a Moisés:
EU SOU AQUELE QUE SOU. Disse mais: Assim dirás aos filhos de Israel: EU
SOU me enviou a vós. E Deus disse mais a Moisés: Assim dirás aos filhos de Israel:
O Senhor, o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, e o Deus
de Jacó, me enviou a vós; este é o meu nome eternamente, e este é o meu memorial
de geração em geração" (Ex 3,11-15).

"Isto te será por sinal de que eu te enviei: Quando houveres tirado do Egito
o meu povo, servireis a Deus neste monte", foi o sinal dado por Deus a se
realizar no futuro, aceito absurdamente por Moisés, a não ser que se
explique por um ato de profunda fé, cuja simples afirmação de Deus,
"certamente eu estarei contigo", lhe foi suficiente. A mesma fé de Abraão,
Isaac e Jacó prossegue seu caminho na realização da Aliança. Por outro
lado, e da mesma forma, o "...mais numeroso e mais forte do que nós" (Ex
1,9), tornou-se temido pelo Faraó não apenas em virtude do número de
pessoas, mas sobretudo do modo particular, especial e peculiar da fé, da
vida em comum e da unidade de seus membros, no que muito se distinguia.
Realmente. É um povo já organizado, consciente de sua unidade, tinha até
mesmo chefes distintos daqueles do Egito, a quem obedecia, só lhe
faltando a independência oficial para se desmembrar:

" Vai, ajunta os anciãos de Israel e dize-lhes: O Senhor, o Deus de vossos pais, o
Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó, apareceu-me, dizendo: certamente vos tenho
visitado e visto o que vos tem sido feito no Egito; e tenho dito: Far-vos-ei subir da
aflição(...) para uma terra que mana leite e mel. E ouvirão a tua voz..." (Ex 3,16-
18a).

Os Filhos de Jacó tinham uma fé comum, uma única fé, a fé dos pais, criam
e esperavam num único e mesmo Senhor, "o Deus de Abraão, de Isaac e
de Jacó", a quem cultuavam e eram fiéis, fruto de uma tradição oral de
quatrocentos anos, mantida viva e fiel (Gn 15,13). Os hebreus mantiveram
oralmente a fé dos antepassados, vivendo em terra estranha e alheia,
peregrinos. Não sendo assim não teria sentido dizer-lhes, nem ser-se-ia
compreendido, que se tratava d"o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão,
o Deus de Isaac, o Deus de Jacó":

" E ouvirão a tua voz; e ireis, tu e os anciãos de Israel, ao rei do Egito, e dir-lhe-eis:
O Senhor, o Deus dos hebreus, encontrou-nos. Agora, pois, deixa-nos ir caminho de
três dias para o deserto, para que ofereçamos sacrifícios ao Senhor nosso Deus" (Ex
3,18).

Conheciam a própria história e tinham confiança em seu futuro, aguardando


a própria independência, único fator latente para, liberto, tornar-se em um
povo, o Povo da Aliança de Abraão, herdeiros da Terra Prometida:

"Então disse o Senhor a Abrão: Sabe com certeza que a tua descendência será
peregrina em terra alheia, e será reduzida à escravidão, e será afligida por
quatrocentos anos; sabe também que eu julgarei a nação a qual ela tem de servir; e
depois sairá com muitos bens" (Gn 15,13-14).

Juntamente com a Promessa e a Aliança, isso estava mais que enraizado


em sua própria índole e consciência, e integrou-se à sua cultura pela
esperança que depositavam em Deus, causa de sua docilidade e paciência
em toda a servidão que sofriam. Acreditavam que libertá-los-ia ("iria fazê-
los subir da aflição do Egito (...) para uma terra que mana leite e mel" - Ex
3,17), motivo porque apesar de perseguidos e oprimidos sentiam-se
totalmente livres, vivendo "em figura" a "gloriosa liberdade dos Filhos de
Deus" (Rm 8,21). Liberdade que se traduz mais no sentido da vinculação do
Homem ao seu Criador que uma expressão do direito de praticar
soberanamente determinados atos. Quando o Homem se vincula a Deus é
livre, só se submetendo a algo enquanto essa submissão não perturba
aquela comunhão. Quando essa liberdade se apresenta, em um dos grupos
humanos, homogêneo e organizado torna-se um virtual perigo a ameaçar a
tranqüilidade e a segurança de todos os outros. Os hebreus no Egito
chegaram a ameaçar até a própria segurança nacional, pela unidade que
deles emanava, unidade de fé e unidade de esperança, já que se temia a
sua união com os inimigos (Ex 1,10). Constituíram-se em um povo que se
tornou numeroso, poderoso e livre, eis que não se submetiam aos cultos
dos egípcios nem aos seus costumes pagãos. E, não aceitando o culto
idólatra deles, se tornaram incômodos e os constrangiam, cada vez mais se
separavam e já se distinguiam em dois povos distintos. Quando a fé ou o
culto não é comum não pode haver unidade histórica, nem nacional, e a
conseqüência é o antagonismo mútuo, donde a perseguição ensejada. Mais
do que a opressão física e psicológica a que os submetiam, sofriam outra
os israelitas, bem caracterizada no pedido a ser feito ao faraó:

"Agora, pois, deixa-nos ir caminho de três dias para o deserto, para que ofereçamos
sacrifícios ao Senhor nosso Deus" (Ex 3,18).

É que não podiam oferecer seus sacrifícios, pois as vítimas que ofereciam a
Deus eram deuses para os egípcios, o que lhes era "abominável", ofensivo
e ultrajante, pois que adoravam o boi, o carneiro e outros animais, imolados
pelos israelitas:

" Então chamou Faraó a Moisés e a Aarão, e disse: Ide, e oferecei sacrifícios ao
vosso Deus nesta terra. Respondeu Moisés: Não convém que assim se faça, porque
é abominação aos egípcios o que havemos de oferecer ao Senhor nosso Deus.
Sacrificando nós a abominação dos egípcios perante os seus olhos, não nos
apedrejarão eles? Havemos de ir caminho de três dias ao deserto, para que
ofereçamos sacrifícios ao Senhor nosso Deus, como ele nos ordenar" (Ex 8,21-23).

"Sacrificando nós a abominação dos egípcios perante os seus olhos, não


nos apedrejarão eles?" Ai está o fundamento de todo o antagonismo entre
ambos, da perseguição encetada pelos egípcios e da opressão sofrida
pelos israelitas: a liberdade de culto traduzida na impossibilidade de
oferecimento de sacrifícios, centro gravitacional do culto desde os
Patriarcas, torna-se em uma "a abominação dos egípcios". Ocorria ainda
neste particular até mesmo um natural ciúme do Faraó, tido e havido entre
eles como um deus ou o filho de um deus, bem como a necessidade
cultural de se demonstrar qual dos deuses era mais poderoso, se bem que
para o israelita a sua fé já fora comprovadamente demonstrada por uma
esperança alicerçada na paz e na concórdia, pela própria submissão há
tanto tempo sofrendo. Por isso Deus avisa de antemão a dureza da missão
iniciada e da vitória final, deixando claro ser Ele o principal protagonista da
luta a ser travada. Não seria fácil a libertação:

" Eu sei, porém, que o rei do Egito não vos deixará ir, a não ser por uma forte mão.
Portanto estenderei a minha mão, e ferirei o Egito com todas as minhas maravilhas
que farei no meio dele. Depois vos deixará ir. E eu darei graça a este povo aos olhos
dos egípcios; e acontecerá que, quando sairdes, não saireis vazios. Porque cada
mulher pedirá à sua vizinha e à sua hóspede jóias de prata e jóias de ouro, bem
como vestidos, os quais poreis sobre vossos filhos e sobre vossas filhas; assim
despojareis os egípcios" (Ex 3,19-22).

Este final "...despojareis os egípcios", a referência ao "exército" de Israel


(Ex 6,26; 7,4; 12,36.51), bem como as "... jóias de prata e jóias de ouro..."
que servirão para a confecção do "Bezerro de Ouro" (Ex 32,2-4),
provavelmente do tipo daqueles "ídolos" que Raquel tirou de seu pai (Gn
31,19.30c.32.34s) representando "deuses" egípcios, insinuam que se
tratava de uma "guerra santa", pois, não fora assim não seriam "despojos".
Moisés resiste e apesar dos sinais que Deus lhe oferece para fazer e da
vara que lhe dá (Ex 4,17) não adquire coragem (Ex 4,1-10) e é nessa
ocasião que aparece pela primeira vez na Bíblia a função de um "profeta",
cujo significado é por demais deturpado pela deformação que lhe foi
impressa de "ser aquele que é capaz de fazer vaticínios ou previsões
dos acontecimentos futuros", mas não é assim. A língua portuguesa tem
uma palavra que pode auxiliar a compreender etimologicamente o
significado de "pro-feta". É a palavra "pro-nome" que significa "no lugar do
nome", isto é, a palavra que se usa em lugar do nome de uma pessoa: eu,
ele, nós etc.. Dentro dessa mesma estrutura "pro-feta" significa "o que fala
('feta' em grego) no lugar de outro". Moisés tinha razão de ficar temeroso,
"pesado de boca e pesado de língua", por ter de convencer tanto os seus
conterrâneos que o haviam "traído" (Ex 11-15 / At 7,23-25) e a corte
faraônica donde saíra, e "que traiu". É natural que assim se sinta, pelo que
protesta veementemente e insiste com Deus, resistindo, e dessa atitude
transparece o significado de "profeta" quando lhe é afirmado que seria
Deus para Aarão, em cuja boca poria as palavras para ele dizer:

"Então disse Moisés ao Senhor: Ah, Senhor! eu não sou eloqüente, nunca o fui, nem
depois que falaste ao teu servo; porque sou pesado de boca e pesado de língua. (...)
Então se acendeu contra Moisés a ira do Senhor, e disse ele: Não é Aarão, o levita,
teu irmão? eu sei que ele pode falar bem. (...) Tu, pois, lhe falarás, e porás as
palavras na sua boca; e eu serei com a tua boca e com a dele, e vos ensinarei o
que haveis de fazer. E ele falará por ti ao povo; assim e será a tua boca, e tu
serás para ele Deus" (Ex 4,10-16).

Mais claro ainda, em outra narrativa do mesmo fato:

"Então disse o Senhor a Moisés: Eis que te tenho posto como Deus a Faraó, e
Aarão, teu irmão, será o teu profeta. Tu falarás tudo o que eu te mandar; e
Aarão, teu irmão, falará a Faraó, que deixe ir os filhos de Israel da sua terra" (Ex
7,1-2).

"E ele falará por ti ao povo; assim ele será a tua boca, e tu serás para ele
Deus" (Ex 4,16) e "Aarão, teu irmão, será o teu profeta. Tu falarás tudo o
que eu te mandar; e Aarão, teu irmão, falará a Faraó (Ex 7,1-2). Basta a
leitura dos trechos acima transcritos para se perceber que "profeta é a boca
de Deus", "aquele que fala o que Deus coloca na sua boca" e não aquele
que faz vaticínios ou previsões de futuro. Como para Deus não há tempo,
as palavras que coloca na boca do profeta são sempre atuais, sempre se
realizam, parecendo que fez um vaticínio. Mas, é profeta porque fala aquilo,
e só aquilo, que Deus o manda falar, só por isso. Daí porque Aarão era o
profeta de Moisés, falando o que lhe determinava e Moisés funcionara
como deus para ele, colocando na sua boca o que deveria dizer. Assim
convencido e municiado com a "Vara de Deus" (Ex 4,17.20), Moisés parte
de Madiã:

"Tomarás, pois, na tua mão esta vara, com que hás de fazer os sinais. (...) Disse
também o Senhor a Moisés em Madiã: Vai, volta para o Egito; porque morreram
todos os que procuravam tirar-te a vida. Tomou, pois, Moisés sua mulher e seus
filhos, e os fez montar num jumento e tornou à terra do Egito; e Moisés levou a
vara de Deus na sua mão" (Ex 4,17-20).

"...volta (...) porque morreram todos os que procuravam tirar... a vida" - esta
frase servirá de modelo a outra que será dita muitos séculos depois,
"cumprindo" o que aqui se "configurava" - José no Egito com o Menino
Jesus, fugindo de Herodes ouvirá a mesma conotação (cfr. Mt 2,20).
Mateus usará para mostrar com seu Evangelho, Jesus como o Moisés
prometido (Dt 18,15), já que José, parafraseando, "tomou, pois, ...sua
mulher e seu filho, e os fez montar num jumento e retornou à terra..." (cfr.
Mt 2,21).

Moisés parte. No caminho acontece algo misterioso, daqueles mistérios da


Escritura que dependem de um conhecimento da cultura do tempo e que se
perdeu. É o episódio da circuncisão do filho de Moisés por sua mulher
Séfora, cujo desate é incompreensível (Ex 4,24-26), parecendo que por não
ter sido ainda circuncidado Gérson, seu filho, Deus ameaçou tirar-lhe a
vida. Tudo indica porém que o casal se separa por causa da missão de
Moisés e o ritual praticado é sugerido como um compromisso de fidelidade
entre ambos, feito com o sangue do prepúcio do próprio filho, justificando
as palavras então ditas de que "tu és para mim um esposo de sangue",
uma vez que seria "devolvida pelo sogro com seus dois filhos", Gérson e
Eliezer, tempos depois (Ex 18,2-5). A sua importância ritual para a missão
de Moisés ficou destacada por sua inclusão nesse ponto da narrativa, "no
caminho" (Ex 4,24) e antes de iniciá-la, trecho ainda de interpretação difícil,
prevalecendo o critério da circuncisão do filho como indispensável perante
Deus e de garantia, pelo sangue, do reencontro, pela separação temporária
que ocorria de sua família.

3. MOISÉS E A LIBERTAÇÃO DO POVO DE ISRAEL

O marco inicial do cumprimento da missão libertadora de Moisés é o seu


encontro com Aarão, que o procurava também a mando de Deus, a quem
tudo esclarece para juntos procurarem os anciãos e o povo, que só se
convenceram a vista dos sinais:

"Disse o Senhor a Aarão: Vai ao deserto, ao encontro de Moisés. E ele foi e,


encontrando-o no monte de Deus, o beijou. E relatou Moisés a Arão todas as
palavras com que o Senhor o enviara e todos os sinais que lhe mandara. Então
foram Moisés e Aarão e ajuntaram todos os anciãos dos filhos de Israel; e Aarão
falou todas as palavras que o Senhor havia dito a Moisés e fez os sinais perante os
olhos do povo. E o povo creu; e quando ouviram que o Senhor havia visitado os
filhos de Israel e que tinha visto a sua aflição, inclinaram-se, e adoraram" (Ex
4,27-31).

Em seguida deveriam ir ao Faraó, em nome de Deus, não reconhecido por


ele, que recusou-se a deixar sair o Povo para "oferecer-Lhe sacrifícios" ou
"celebrar-Lhe uma festa no deserto" (Ex 5,1.3):

"Depois foram Moisés e Aarão e disseram a Faraó: Assim diz o Senhor, o Deus de
Israel: Deixa ir o meu povo, para que me celebre uma festa no deserto. Mas Faraó
respondeu: Quem é o Senhor, para que eu ouça a sua voz para deixar ir Israel?
Não conheço o Senhor, nem tampouco deixarei ir Israel" (Ex 5,1-2).

"Não conheço o Senhor, nem tampouco deixarei ir Israel" (Ex 5,2). O Faraó,
desconhecendo Deus, não se curvou, pelo contrário, vendo Sua presença
arraigada no coração daquele povo, e vendo também a predileção
generalizada por Ele, enciumado "endureceu-se-lhe" orgulhosamente o seu
"coração" (Ex 3,19; 4,21; 7,3.13.22; 8,11.15; 9,7.12.34s; 10,1.20.27; 11,10;
14,4.8.17). Deus não "endurece o coração" de ninguém a não ser como
efeito do próprio orgulho, opondo-se ou virando-se contra Ele (Ex 3,19), não
O aceitando nos sinais de Sua manifestação. Por isso a multiforme
expressão usada de "endurecer o coração", tendo por autor ora o próprio
Deus (Ex 4,21; 7,3; 9,12; 10,1.20.27; 11,10; 14,4.8.17), ora o próprio
coração (Ex 7,13.22; 8,15; 9,7.35), ora o Faraó (Ex 8,11.28; 9,34), tal como
Moisés fora alertado pelo próprio Iahweh (Ex 3,19). Além disso, para
combater e sabotar o pedido, o Faraó dá ordens para seus capatazes mais
ainda oprimirem os israelitas (Ex 5,6-19), o que causou revolta contra
Moisés e Aarão, fazendo com que Deus fosse invocado (Ex 5,20-23) e
novamente se referisse ao modo como seria vencida aquela obstinação:

"Então disse o Senhor a Moisés: Agora verás o que hei de fazer a Faraó; pois por
uma poderosa mão os deixará ir, sim, por uma poderosa mão os expulsará de sua
terra" (Ex 6,1).

Neste ponto há uma segunda narrativa da vocação de Moisés e da sua


genealogia, bem como uma explicação do nome de Deus, que será objeto
de análise posterior, anteriormente conhecido pelos Patriarcas como El-
Shaddai, agora recebendo por intermédio de Moisés o nome de Iahweh (Ex
6,2-3), que com esse nome ratifica a Aliança, toda a obra decorrente e a
confirma:

"Ademais, tenho ouvido o gemer dos filhos de Israel, que os egípcios escravizam; e
lembrei-me da minha Aliança. Portanto dize aos filhos de Israel: Eu sou Iahweh; eu
vos tirarei de debaixo das cargas dos egípcios, livrar-vos-ei da sua servidão, e vos
resgatarei com braço estendido e com grandes juízos. Tomar-vos-ei por meu povo e
serei vosso Deus; e vós sabereis que eu sou Iahweh vosso Deus, que vos tiro de
debaixo das cargas dos egípcios. Introduzir-vos-ei na terra que jurei dar a Abraão, a
Isaac e a Jacó; e vo-la darei por herança. Eu sou Iahweh" (Ex 6,5-8).

"Tomar-vos-ei por meu povo e serei vosso Deus; e vós sabereis que eu sou
Iahweh vosso Deus" - Deus ratifica a formação de Seu Povo e confirma
toda a esperança que alimentaram de serem "introduzidos na terra que jurei
dar a Abraão, a Isaac e a Jacó; e vo-la darei por herança. Eu sou Iahweh",
condição que irá impregnar a Obra da Redenção:

"Mas Faraó não vos ouvirá; e eu porei minha mão sobre o Egito, e tirarei os meus
exércitos, o meu povo, os filhos de Israel, da terra do Egito, com grandes juízos. E
os egípcios saberão que eu sou o Senhor, quando estender a minha mão sobre o
Egito, e tirar os filhos de Israel do meio deles" (Ex 7,4-5).

"E os egípcios saberão que eu sou o Senhor", essa a finalidade de todos os


"grandes juízos" ou prodígios que faria: - convencê-los de que Iahweh é o
verdadeiro Deus. Deus quer não só libertar e convencer os israelitas (Ex
4,30-31 / Ex 10,2), mas também levar os egípcios a se converterem (Sb
11,15s.23), em virtude do poder que demonstrava com os seus prodígios
"para que saibais que não há ninguém como Iahweh" (Ex 8,6; 9,14). Assim,
os israelitas (Ex 10,2) e os egípcios foram alvos da mesma demonstração,
uma vez que "Deus não faz acepção de pessoas" (Dt 10,17; At. 10,34; Rm
2,11). Assim como adoravam vários répteis, crocodilos, serpentes, lagartos,
rãs, até o escaravelho, Deus lhes demonstra o seu grande poder capaz de
superar e até mesmo destruir os deuses deles, "para levá-los ao
arrependimento" (Sb 11,15; 12,23-24). Os primeiros prodígios foram
repetidos pelos magos do Egito (Ex 7,11.22; 8,3), mas de certo ponto em
diante não mais o conseguem (Ex 8,14; 10,11) e até mesmo admitem:

"... Então disseram os magos a Faraó: Isto é o dedo de (um) Deus... " (Ex 8,15).

Reconheceram assim, os magos, a presença de Iahweh, enquanto o Faraó


mais se obstinava. Porém, a partir desse reconhecimento vai se
enfraquecendo, principalmente quando Iahweh lhe mostra "que distingue
entre o meu povo e o teu povo" (Ex 8,19), excluindo dos efeitos dos
prodígios o Povo de Israel (Ex 8,18-20). Se antes até mais oprimia os
israelitas agora muda de atitude e passa a querer permitir os sacrifícios,
porém mantendo-os sob pleno controle e observação, eis que temia que
fugissem, "deixassem de os servir" (Ex 14,5) e, logicamente, não lhe
agradava ver animais que adorava se tornarem vítimas em oferenda a
Iahweh. Mas, Moisés quer afastar por um espaço de três dias, lembrando-
lhe do antagonismo entre as duas formas de culto sacrificial, pelo que
corriam o risco de serem lapidados pelos egípcios:

"Então chamou Faraó a Moisés e a Aarão, e disse: Ide, e oferecei sacrifícios ao


vosso Deus nesta terra. Respondeu Moisés: Não convém que assim se faça, porque
é abominação aos egípcios o que havemos de oferecer ao Senhor nosso Deus.
Sacrificando nós a abominação dos egípcios perante os seus olhos, não nos
apedrejarão eles? Havemos de ir caminho de três dias ao deserto, para que
ofereçamos sacrifícios ao Senhor nosso Deus, como ele nos ordenar" (Ex 8,21-23).

Prosseguem os prodígios cada vez mais sérios e graves, fazendo com que
o Faraó fosse se enfraquecendo, mas ao sinal de que os israelitas
deixariam o país, novamente endurecia o coração e voltava atrás, até que
os seus próprios servos o advertiram, levando-o a tentar outra alternativa,
sem nada conseguir:

"Então disse Faraó: Eu vos deixarei ir, para que ofereçais sacrifícios ao Senhor
vosso Deus no deserto; somente não ireis muito longe; e orai por mim" (Ex 8,24).

"...e orai por mim" - esta frase do Faraó, em conjunto com as várias
maneiras de se referir ao "endurecimento de seu coração", chama a
atenção e requer uma explicação para uma incoerência assim tão clara.
Ainda mais quando se percebe que não existe uma só referência a um dos
deuses do Egito, tão combatidos, mesmo quando da praga das rãs, tendo
no seu panteão uma "deusa - rã". Nesta luta de Iahweh contra os deuses, o
nome deles não é mencionado, sabendo-se do escrúpulo israelita a esse
respeito, não os mencionando nem mesmo pronunciando o nome deles.
Mas a presença dos magos leva a concluir que estavam sempre
influenciando o Faraó, mesmo quando ele começava a ceder aos hebreus.
Mais se parece com séria dificuldade por que passavam ele, os magos e os
seus oficiais ou servos (Ex 8,4.14.15.24; 9,11.20.30; 10,7.11.16.20.24.27
etc.), debatendo-se entre a crença supersticiosa em seus deuses e no Deus
do Povo dos Filhos de Israel, comprovadamente mais poderoso pelas obras
que realizava. E as concessões que fizeram não passaram de tentativas
para impedir a saída do Egito, já convencidos da sua superioridade de fé.
Em uma das últimas oportunidades, após uma manifestação de medo e
desespero (Ex 10,7), buscaram até mesmo que oferecessem o sacrifício
sem a imolação de animais, alguns sagrados para eles, quando o Faraó
tenta ainda uma forma de conseguir que não saíssem do país, pretendendo
que somente os homens fossem ao sacrifício (Ex 10,7-11). Finalmente,
Iahweh vem, de uma vez por todas, por fim à luta:

"Disse o Senhor a Moisés: Ainda mais uma praga trarei sobre Faraó, e sobre o
Egito; depois ele vos deixará ir daqui; e, deixando vos ir a todos, com efeito vos
expulsará daqui. (...) À meia-noite eu sairei pelo meio do Egito; e todos os
primogênitos na terra do Egito morrerão, desde o primogênito do Faraó, que se
assenta sobre o seu trono, até o primogênito da serva que está detrás da mó, e todos
os primogênitos dos animais. Pelo que haverá grande clamor em toda a terra do
Egito, como nunca houve nem haverá jamais. Mas contra os filhos de Israel desde
os homens até os animais nem mesmo um cão ganirá, para que saibais que o Senhor
faz distinção entre os egípcios e os filhos de Israel" (Ex 11,1-7).
"... todos os primogênitos na terra do Egito morrerão, desde o
primogênito de Faraó, que se assenta sobre o seu trono, até o
primogênito da serva que está detrás da mó, e todos os primogênitos
dos animais" - "todos os primogênitos dos egípcios morrerão" - Por quê os
primogênitos? O resultado seria menos assustador, ou menos devastador,
fossem mortos outros filhos que não os primogênitos? Se Deus houvera
anunciado a morte da totalidade de uma determinada criatura, de um tipo
só e em todo o Egito, seria também assustador o acontecimento. E o
resultado seria o mesmo tal como previsto, até mesmo com a mesma
obstinação seguida ao reconhecimento, condição já se tornando por demais
presente, mas agora com uma esperança de solução derradeira e definitiva:

"Disse o Senhor a Moisés: Ainda mais uma praga trarei sobre Faraó, e sobre o
Egito; depois ele vos deixará ir daqui; e, deixando vos ir a todos, com efeito vos
expulsará daqui (...) Então todos estes teus servos descerão a mim, e se inclinarão
diante de mim, dizendo: Sai tu, e todo o povo que te segue as pisadas. Depois disso
eu sairei. E Moisés saiu da presença de Faraó ardendo em ira. Pois o Senhor dissera
a Moisés: Faraó não vos ouvirá, para que as minhas maravilhas se multipliquem na
terra do Egito. E Moisés e Aarão fizeram todas estas maravilhas diante de Faraó;
mas o Senhor endureceu o coração de Faraó, que não deixou ir da sua terra os filhos
de Israel" (Ex 11,1.8-10).

Não se submeteu o Faraó, apesar da ameaça da eliminação dos


primogênitos, já anunciada e prevista por Deus, bem antes de iniciada a
missão de Moisés. As palavras seguintes teriam sido ditas por Deus no
início do ministério de Moisés, quando ainda estava no exílio em Madiã, e já
lhe resumira tudo o que aconteceria e até mesmo praticamente já lhe
anunciara a "última praga": a morte dos primogênitos:

"Disse ainda o Senhor a Moisés: Quando voltares ao Egito, vê que faças diante de
Faraó todas as maravilhas que tenho posto na tua mão; mas eu endurecerei o seu
coração, e ele não deixará ir o povo. Então dirás a Faraó: Assim diz o Senhor: Israel
é meu filho, meu primogênito; e eu te tenho dito: Deixa partir meu filho para que
me sirva; mas tu recusaste deixá-lo ir; eis que eu matarei o teu filho, o teu
primogênito" (Ex 4,21-23).

Ora, Deus não comunica nada à toa nem sem sentido ou que não seja
compreendido pelo seu "eleito", que sempre pede esclarecimentos quando
não O entende. Então Moisés compreendeu o que Deus quisera dizer com
a eliminação dos primogênitos. O que já se viu a respeito dessa instituição
é que o primogênito se destinava à chefia da tribo ou clã, enquanto
nômades. Mesmo que entre os egípcios isso se aplicasse, já que não o
eram e lhes nutriam antipatia (Gn 46,34c), o único primogênito que a ela
destinar-se-ia seria filho do Faraó. Mas, foram incluídos "todos os
primogênitos na terra do Egito..., desde o primogênito de Faraó, que se
assenta sobre o seu trono, até o primogênito da serva que está detrás da
mó, e todos os primogênitos dos animais", numa ampla generalização.
Alguma outra qualidade existe que tanto valorizava essa instituição,
principalmente fazendo coincidir com a Instituição da Páscoa uma
eliminação em massa dos primogênitos de todo o Egito, tanto de homens
como de animais, e ainda com essa mesma denominação qualificar Israel:

"...Assim diz o Senhor: Israel é meu filho, meu primogênito..." (Ex 4,22)

Mesmo que alguns se insurjam contra as pragas do Egito, julgando-as mais


fruto da lenda popular ou do nacionalismo extremado israelita, bem como
de fatos naturais que ocorrem normalmente na região, muitos dados
existem que comprovam a ocorrência de algo extraordinário levando os
israelitas a conseguirem se libertar. De imediato se destacam dois fatos
sobremaneira estranhos: a aceitação do nome Iahweh como o nome de
Deus pelos Israelitas e a aceitação de Moisés como líder, apesar da tácita
recusa inicial de sua liderança pela exclusão da tribo de Levi da
Primogenitura:

"A este Moisés que eles haviam repelido, dizendo: Quem te constituiu senhor e
juiz? a este enviou Deus como senhor e libertador, pela mão do anjo que lhe
aparecera na sarça. Foi este que os conduziu para fora, fazendo prodígios e sinais na
terra do Egito, e no Mar Vermelho, e no deserto por quarenta anos" (At 7,35-36).

"Foi este que os conduziu para fora, fazendo prodígios e sinais na terra do Egito...",
mesmo que fossem fenômenos naturais como alguns querem, sua ocorrência súbita
e o seu término em momentos determinados por Moisés, mostraram uma origem
bem diferente da de um acontecimento da natureza. Era Iahweh que comandava os
fenômenos tornando-os seus instrumentos, pelo que se impôs como Deus ao Faraó,
que a pouco e pouco, não O reconhecendo de início (Ex 5,2) e respondendo com um
agravamento da opressão (Ex 5,6-19), vai reconhecê-lo ao final com um pedido de
bênção (Ex 12,32). Também aos próprios israelitas, que inicialmente não aceitaram
Moisés e terminaram por se lhe submeter aceitando todas as suas instruções e
liderança durante o cativeiro, para a partida e após a libertação. Por isso é
dispensável discutir quanto a ocorrência ou não dos fenômenos pois um só é o fato
histórico ocorrido "milagrosamente" - a Libertação INCONDICIONAL do Povo de
Deus.

4. A INSTITUIÇÃO DA PÁSCOA

Existe um grande mal entendido que é preciso desde já esclarecer para se


compreender bem a Páscoa em seus fundamentos, significado e objetivo.
Principalmente para nós católicos por causa da Eucaristia a Ela
indestacavelmente unida. Pelo fato de se supor, e São Jerônimo informar
(Ex 12,11), que o significado original da palavra seria "passagem", passou-
se a se entender e definir a Páscoa "exclusivamente" como "passagem".
Mas, uma pequena frase de São Paulo deixa claro que se denomina de
"Páscoa" ao cordeiro que é imolado na cerimônia:

"...Cristo, NOSSA PÁSCOA, já foi imolado" (1Cor 5,7).

Também, os Apóstolos e Jesus, quando se referem à preparação da


Páscoa usam a expressão "comer a páscoa" (Mt 26,17; Mc 14,12; Lc 22,8)
e, como ninguém come "passagem", a Páscoa é o Cordeiro. Tudo indica
que a confusão começa quando se diz na Vulgata de S. Jerônimo:

"Assim pois o comereis: Os vossos lombos cingidos, os vossos sapatos nos pés, e o
vosso cajado na mão; e o comereis apressadamente; ESTA É A PÁSCOA (ISTO É
'PASSAGEM') DO SENHOR" (Ex 12,11).

A inclusão do parêntesis "(isto é 'passagem')", na tradução feita por S.


Jerônimo, após a palavra "páscoa" e no versículo transcrito, levou a se
confundir a solenidade com o significado da palavra que informa. Não
fosse suficiente o que informam os Evangelistas e a frase de São Paulo que
acima se transcreveu, o próprio texto esclarece em vários lugares:

"Mas se a família for pequena demais para um CORDEIRO, (...) na proporção do


que cada um possa COMER..." (Ex 12,4).

"Tomarão do sangue (...) nas casas em que o COMEREM. E naquela noite


COMERÃO... Não COMEREIS DELE cru...(...) Assim pois o COMEREIS: Os
vossos lombos cingidos, as vossas sandálias nos pés, e o vosso cajado na mão; e o
COMEREIS apressadamente; esta é a PÁSCOA (...) DO SENHOR" (Ex 12,7-
11).

"Disse mais o Senhor a Moisés e a Aarão: ESTA É A ORDENANÇA DA


PÁSCOA; NENHUM, ESTRANGEIRO COMERÁ DELA; mas todo escravo
comprado por dinheiro, depois que o houveres circuncidado, COMERÁ DELA. O
forasteiro e o assalariado não COMERÃO DELA. Numa só casa se COMERÁ O
CORDEIRO (...) NENHUM INCIRCUNCISO COMERÁ DELA" (Ex 12,43-
48).

Por outro lado, já se tornou clássica a expressão "Cordeiro Pascal", por


ser "ele, a Páscoa, o cordeiro que se imola e se come", e não se pode
confundir a vítima que se imola com a cerimônia comemorativa. Ela, em si
mesmo considerada, é o sacrifício especial da comunidade de todo o Povo
de Israel, celebrado num mesmo momento, em comemoração ao fato de
que Deus o protege e fere de morte os primogênitos do Egito. Causa com
isso, além de profundo sentimento de unidade, o de "nacionalidade" se
iniciando, e a libertação deles, em cumprimento à Aliança de Abraão,
Isaac e Jacó (Ex 6,7-8). Há entre a Páscoa e a Aliança estreita e
indissolúvel vinculação:

"Então Deus, ouvindo-lhes os gemidos, lembrou-se de sua Aliança com Abraão,


com Isaac e com Jacó" (Ex 2,24).

"E quando vossos filhos vos perguntarem: Que quereis dizer com este culto?
Respondereis: Este é O SACRIFÍCIO DA PÁSCOA DO SENHOR, que passou
as casas dos filhos de Israel no Egito, quando feriu os egípcios, e livrou as nossas
casas" (Ex 12,26-27).

"Este é O SACRIFÍCIO..." Primeiramente, quando se fala em sacrifício se


fala em vítima imolada. A idéia de sacrifício escapa ao homem atual,
culturalmente desligado de seu uso e de sua finalidade. Para o israelita
porem, tinha um sentido religioso muito profundo e essencial à sua fé, como
informa S. Paulo:

"Vede Israel segundo a carne: os que comem dos sacrifícios não estão em
comunhão com o altar?" (1Cor 10,18).

É a ambicionada "Comunhão com Deus", encontrada na santificação da


oferenda do sacrifício ("sacri - ficar" = "ficar sagrado"). O próprio Jesus vai
se referir a ele em várias oportunidades, ratificando o seu valor e não o
excluindo nem condenando seu uso, mas reforçando sua eficácia como
meio de santificação:

"Cegos! Pois qual é maior: a oferenda, ou o altar que santifica a oferenda?" (Mt
23,19)

"Portanto, se estiveres apresentando a tua oferenda no altar, e aí te lembrares de que


teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa ali diante do altar a tua oferenda, e vai
reconcilia-te primeiro com teu irmão, e depois vem apresentar a tua oferenda" (Mt
5,23-24).

A Páscoa portanto é um sacrifício e como tal destinada à comunhão e


santificação, não apenas individual mas de toda a comunidade nacional
israelita, pela imolação conjunta e concomitante, em todas as famílias de
todo o Povo de Israel:

"Ora, o Senhor falou a Moisés e a Aarão na terra do Egito: Este mês será para vós o
princípio dos meses; será o primeiro dos meses do ano. Falai a toda a
congregação de Israel, dizendo: Ao décimo dia deste mês tomará cada um para
si um cordeiro por família, um cordeiro para cada casa. Mas se a família for
pequena demais para um cordeiro, tomá-lo-á juntamente com o vizinho mais
próximo de sua casa, conforme o número de pessoas; na proporção do que
cada um puder comer. O cordeiro será sem defeito, macho e de um ano, o qual
escolhereis entre as ovelhas ou entre os cabritos, e o guardareis até o décimo quarto
dia deste mês; e toda a assembléia da congregação de Israel o matará à
tardinha. Tomarão do sangue, e pô-lo-ão em ambos os umbrais e na verga da
porta, nas casas em que o comerem. E naquela noite comerão a carne assada
ao fogo, com pães ázimos; com ervas amargas a comerão. Não comereis dele
nada cru, nem cozido em água, mas assado ao fogo; a sua cabeça com as suas
pernas e com a sua fressura. Nada dele deixareis até pela manhã; mas o que dele
ficar até pela manhã, queimá-lo-eis no fogo. Assim pois o comereis: Os lombos
cingidos, as sandálias nos pés, e o cajado na mão; e o comereis às pressas: esta
é a páscoa para o Senhor. Porque naquela noite passarei pela terra do Egito, e
ferirei todos os primogênitos na terra do Egito, tanto dos homens como dos animais;
e farei justiça sobre todos os deuses do Egito; eu o Senhor. Mas o sangue vos será
por sinal nas casas em que estiverdes; vendo eu o sangue, passarei adiante, e não
haverá entre vós praga para vos destruir, quando eu ferir a terra do Egito. E este dia
vos será um memorial, e celebrá-lo-eis como uma festa para o Senhor; através das
vossas gerações o celebrareis por estatuto perpétuo" (Ex 12,1-14).

Com a sua instituição introduziu-se uma modificação no calendário,


começando-se o ano no dia daquela comemoração inicial, ainda em uso
entre os judeus. Devia ser imolado um cordeiro por família, ritual que será
modificado posteriormente (Dt 16,1-8 / 2Cro 30,1-13; 35,10-14). Se
pequena, a família unia-se à vizinha, sempre computando-se o que iam
comer, evitando-se a sobra, já que era uma vítima sagrada, e se houvesse
deveria ser queimada totalmente, para não ser profanada. O cordeiro devia
ser macho, sem defeito e de um ano, podendo ser um cordeiro ou um
cabrito, não se podendo quebrar-lhe os ossos (Ex 12,46). Toda a
comunidade israelita o imolaria ao crepúsculo e com o sangue que fora
recolhido em uma bacia (Ex 12,22) ungir-se-iam os marcos e a travessa da
porta onde o comiam. Desde Noé o sangue tem um sentido vinculado à
vida da vítima e não é comido, mas derramado na terra, em torno do altar:

"A carne, porém, com sua vida, isto é, com seu sangue, não comereis" (Gn 9,4).

Comeriam-no numa mesma noite com pães ázimos por causa da saída às
pressas, não dispondo de tempo para levedar a massa, com ervas amargas
para se lembrar do amargor da vida no Egito e assado ao fogo evitando-se
com isso a ingestão de carne crua e de sangue. Seria comido "...às
pressas... cingidos os rins, sandália nos pés e bordão na mão...",
paramentos que sempre lhes lembrarão a libertação do Egito, preparados
assim para caminhar em terreno de difícil locomoção necessitando para
isso de se levantar a túnica e amarrá-la à altura dos rins para não se
prender no chão irregular, de calçar sandálias para a proteção dos pés e do
cajado para auxiliar os passos que dariam em corrida para a liberdade e o
longo trajeto que os esperava. Jesus, quando enviar seus discípulos em
missão (Mt 10), dar-lhes-á instruções baseadas nesse episódio mostrando
a repetição da conquista e identificando-as com as suas diferenças,
dispensando os discípulos dos objetos do despojo que se fez dos egípcios
de objetos de ouro, prata tais como os adornos, brincos etc., das provisões
para a viagem, túnica e alforje, cajado, sandálias nos pés... Por sua vez,
também, insinua uma identidade com a Páscoa dos Israelitas, pelas
mesmas palavras que usa, refletindo uma situação a Ela vinculada, ao
narrar e comparando-as:

"Não leveis ouro, nem prata, nem cobre nos vossos cintos, nem para o caminho,
nem duas túnicas, nem sandálias, nem cajado..." (Mt 10,9-10).

"É assim que devereis comê-lo ('o Cordeiro Pascal'): com os lombos cingidos,
sandálias nos pés e cajado nas mãos..." (...)

"Os filhos de Israel fizeram como Moisés havia dito, e pediram aos egípcios objetos
de prata, objetos de ouro e roupas (...) os egípcios lhes davam o que pediam;..." (Ex
12,11.35-36).

Dispondo-as em duas colunas e remanejando-as para melhor visão, vê-se


a semelhança de palavras e a diferença de situações, tal como desejou
Jesus:

Mt 10,9-10 Ex 12,11.35-36
Não leveis É assim que devereis comê-lo:
cobre nos vossos cintos, os lombos cingidos
nem sandálias, sandálias nos pés
nem cajado. cajado nas mãos.
Os filhos de Israel fizeram como Moisés havia
Não leveis
dito, e pediram aos egípcios
ouro, nem prata Objetos de ouro, objetos de prata
nem cobre nos vossos cintos, nem
para o caminho,
nem duas túnicas. e roupas.

É que, na Páscoa Israelita, o Cordeiro seria "comido às pressas" pelos


israelitas em fuga, já preparados para uma longa viagem (Ex 12,11) e para
a conquista da Terra Prometida (Ex 6,26; 7,4; 12,36.51 / Nm 13-14)
enquanto que, agora, na Páscoa Cristã, iriam em Missão de Paz, "armados"
para uma conquista diferente:

"... proclamai que o Reino dos Céus está próximo. Curai os doentes, ressuscitai
os mortos, purificai os leprosos, expulsai os demônios. De graça recebeste, de
graça dai" (Mt 10,7-8).
Com a diferença do dia de início, no dia seguinte, quase
concomitantemente sem se confundirem, celebrava-se a Festa dos Ázimos
em que durante sete dias só se comia pão sem fermento em comemoração
à saída do Egito (Ex 12,15-20). A Páscoa deverá ser uma Festa Nacional
dos israelitas, comemorada todos os anos e por todas as gerações, sempre
recordando aos filhos o seu significado:

"Porque o Senhor passará para ferir aos egípcios; e, ao ver o sangue na verga da
porta e em ambos os umbrais, o Senhor passará aquela porta, e não deixará o
destruidor entrar em vossas casas para vos ferir. Portanto guardareis isto por
estatuto para vós e para vossos filhos, para sempre. Quando, pois, tiverdes entrado
na terra que o Senhor vos dará, como tem prometido, guardareis este culto. E
quando vossos filhos vos perguntarem: Que quereis dizer com este culto?
Respondereis: Este é o sacrifício da páscoa do Senhor, que passou as casas dos
filhos de Israel no Egito, quando feriu os egípcios, e livrou as nossas casas. Então o
povo inclinou-se e adorou. E foram os filhos de Israel, e fizeram isso; como o
Senhor ordenara a Moisés e a Aarão, assim fizeram" (Ex 12,23-28).

"Esta é uma noite que se deve guardar ao Senhor, porque os tirou da terra do Egito;
esta é a noite do Senhor, que deve ser guardada por todos os filhos de Israel através
das suas gerações" (Ex 12,42).

A explicação do rito, que o pai dá ao filho, parece levar ao nome que se dá


à festa de "passagem" como é conhecida, mais a libertação, o fato de que
"livrou nossas casas", mas a Páscoa propriamente dita é a vítima imolada.
De acordo com a segunda transcrição acima vê-se que o comemorado na
solenidade é "esta é a noite do Senhor, porque tirou os Filhos de Israel da
terra do Egito, que deve ser guardada por todas as gerações" (Ex 12,42).
Comemora-se a libertação do Povo de Israel do Egito onde foi escravo
durante quatrocentos e trinta anos, cumprindo-se o que anunciara quando
da Aliança com Abraão:

"Então disse o Senhor a Abrão: Sabe com certeza que a tua descendência será
peregrina em terra alheia, e será reduzida à escravidão, e será afligida por
quatrocentos anos; sabe também que eu julgarei a nação a qual ela tem de servir; e
depois sairá com muitos bens" (Gn 15,13-14).

"Ora, o tempo que os filhos de Israel moraram no Egito foi de quatrocentos e trinta
anos. E aconteceu que, ao fim de quatrocentos e trinta anos, naquele mesmo dia,
todos os exércitos do Senhor saíram da terra do Egito" (Ex 12,40-41).

E os israelitas celebraram então a primeira Páscoa da História da Salvação,


e aquilo que Deus dissera aconteceu. Recusaram os egípcios a libertar os
israelitas e Deus cumpre o que prometeu:

"E foram os filhos de Israel, e fizeram isso; como o Senhor ordenara a Moisés e a
Aarão, assim fizeram. E aconteceu que à meia-noite o Senhor feriu todos os
primogênitos na terra do Egito, desde o primogênito de Faraó, que se assentava em
seu trono, até o primogênito do cativo que estava no cárcere, e todos os
primogênitos dos animais. E Faraó levantou-se de noite, ele e todos os seus servos,
e todos os egípcios; e fez-se grande clamor no Egito, porque não havia casa em que
não houvesse um morto" (Ex 12,28-29).

Imediatamente o Faraó e os egípcios conheceram a qual Deus deveriam


respeitar (Ex 12,32 - "... abençoai a mim também") e resolve-se
definitivamente e sem mais delongas ou condições a saída dos israelitas
em fuga do Egito:

"Então Faraó chamou Moisés e Aarão de noite, e disse: Levantai-vos, saí do meio
do meu povo, tanto vós como os filhos de Israel; e ide servir ao Senhor, como
tendes dito. Levai também convosco os vossos rebanhos e o vosso gado, como
tendes dito; e ide, e abençoai-me também a mim. (...) E o Senhor deu ao povo
graça aos olhos dos egípcios, de modo que estes lhe davam o que pedia, e
despojaram os egípcios. Assim viajaram os filhos de Israel de Ramsés a Sucot,
cerca de seiscentos mil homens a pé, sem contar as crianças. Também subiu com
eles uma grande mistura de gente; e, em rebanhos e manadas, uma grande
quantidade de gado. E cozeram pães ázimos da massa que levaram do Egito, porque
ela não se tinha levedado, porquanto foram expulsos do Egito; e não puderam deter-
se, nem haviam preparado provisões para o caminho" (Ex 12,30-39).

A Instituição da Páscoa foi fundamental para a Nação Israelita, e sem ela é


possível que a História da Salvação não teria o mesmo traçado,
satisfazendo os desígnios de Deus, nem o Povo de Deus teria consciência
plena de sua condição de "eleito", e da dimensão de "Filho Primogênito".
Para se entender um pouco mais o significado dessa expressão "Filho
Primogênito" pode-se recorrer ao que ensina São Paulo quando usa o
mesmo qualificativo para Jesus Cristo, guardadas as devidas proporções,
comparando-se com a Bênção de Jacó:

"Porque os que dantes conheceu, também os predestinou para serem conformes à


imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos"
(Rm 8,29).

"...nos transportou para o reino do seu Filho Amado, em quem temos a redenção, a
saber, a remissão dos pecados. Ele é a Imagem do Deus invisível, o
PRIMOGÊNITO de toda a criação, porque nele foram criadas todas as coisas nos
céus e na terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam dominações, sejam
principados, sejam potestades, tudo foi criado por ele e para ele. Ele é antes de todas
as coisas, e nele subsistem todas as coisas. Ele é a Cabeça da Igreja, que é o Seu
Corpo. ELE É O PRINCÍPIO, O PRIMOGÊNITO DENTRE OS MORTOS,
para que em tudo tenha a primazia, porque aprouve a Deus que nele habitasse toda a
plenitude..." (Cl 1,13-19).
"Rúben, tu és meu primogênito, minha força e as primícias do meu vigor,
preeminente em dignidade e preeminente em poder" (Gn 49,3).

Uma comparação em colunas vai mostrar melhor as semelhanças e as


diferenças notáveis e que vão nos auxiliar a compreender melhor a História
da Salvação, pelas instituições a que seu povo era ligado culturalmente,
respeitadas e usadas por Deus, e tal como a Bíblia expõe:

Gn 49,3 Cl 1,13-19
nos transportou para o reino do seu Filho Amado, em quem temos a
Rúben, tu és meu
redenção, a saber, a remissão dos pecados. Ele é a Imagem do Deus
primogênito
invisível, o PRIMOGÊNITO de toda a criação
porque nele foram criadas todas as coisas nos céus e na terra, as
minha força visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam dominações, sejam
principados, sejam potestades, tudo foi criado por ele e para ele.
e as primícias do
Ele é antes de todas as coisas, e nele subsistem todas as coisas
meu vigor
preeminente em
dignidade Ele é a Cabeça da Igreja, que é o Seu Corpo. ELE É O
PRINCÍPIO, O PRIMOGÊNITO DENTRE OS MORTOS, para
e que em tudo tenha a primazia, porque aprouve a Deus que nele
preeminente em habitasse toda a plenitude
poder
preeminente em
tudo foi criado por ele e para ele.
poder

Assim a idéia de "Filho Primogênito" num primeiro lance é o de primícia,


fonte e mantenedor de tudo, "anuncio de farta colheita" como já se definiu e
o começo daquilo que já vive e que será vivido por outros em seguida e em
plenitude. Pode-se melhor entender a expressão aplicada a Jesus de
"Primogênito Dos Mortos", como aquele que abriu aos outros que o
seguirem, primícia que é, as portas da eternidade. Imediatamente após a
saída do povo do Egito, Deus a si mesmo consagra os primogênitos. Com a
eliminação daqueles dos egípcios impõe-se a sua substituição pelos
vitoriosos, o que se faz com essa separação, santificando-os, e aparece
mais um dado significativo que oferece uma definição cultural deles ao
tempo, isto é, qual o seu significado cultural:

"E naquele mesmo dia o Senhor tirou os filhos de Israel da terra do Egito, segundo
os seus exércitos" (Ex 12,51)
"Então falou o Senhor a Moisés, dizendo: Santifica-me todo primogênito, todo o
que abrir a madre de sua mãe entre os filhos de Israel, assim de homens como
de animais; porque meu é"

"Também quando o Senhor te houver introduzido na terra dos cananeus, como jurou
a ti e a teus pais, quando ta houver dado, separarás para o Senhor tudo o que
abrir a madre, até mesmo todo primogênito dos teus animais; os machos serão do
Senhor. (...) E quando teu filho te perguntar no futuro, dizendo: Que é isto?
responder-lhe-ás: O Senhor, com mão forte, nos tirou do Egito, da casa da servidão.
Porque sucedeu que, endurecendo-se Faraó, para não nos deixar ir, o Senhor matou
todos os primogênitos na terra do Egito, tanto os primogênitos dos homens como os
primogênitos dos animais; por isso eu sacrifico ao Senhor todos os primogênitos,
sendo machos; mas a todo primogênito de meus filhos eu resgato. (Ex 13,1-2,11-
15).

"Santifica-me todo primogênito, todo o que abrir a madre de sua mãe


entre os filhos de Israel, assim de homens como de animais; porque
meu é" (...) "...separarás para o Senhor tudo o que abrir a madre, até
mesmo todo primogênito dos teus animais; os machos serão do
Senhor" - vê-se daí que primogênito é "todo o que abrir a madre de sua
mãe" e "tudo o que abrir a madre, até mesmo dos teus animais". Trazia
então uma conotação profundamente vinculada à idéia de mediação, vida e
fecundidade, "o que abre ou inaugura a fecundidade da madre", tal como
Jacó disse a Rúben: "minha força e as primícias do meu vigor" e São
Paulo de Jesus Cristo: "Ele é antes de todas as coisas, e nele subsistem
todas as coisas". Por isso também é o Primogênito dos Mortos,
fecundando de vida a morte, abrindo as portas da vida eterna. Essas
referências aos israelitas, a quem foi ratificada a Promessa de Abraão,
embutida na Aliança e que tomaria no futuro o nome de Libertação
Messiânica, está traduzida na "terra que mana leite e mel", presente aqui
na Instituição da Páscoa:

"Quando o Senhor te houver introduzido na terra (...) que ele jurou a teus pais
que te daria, terra que mana leite e mel, guardarás este culto neste mês" (Ex
13,5).

Vai o primogênito desempenhar a função sacerdotal em virtude de sua


mediação e pela consagração ensejada. Tanto é assim que quando for
instituído o sacerdócio auxiliar, este substituirá os primogênitos no exercício
dessa função junto a Casa de Aarão, também da Tribo de Levi, que detinha
o sacerdócio pleno (Ex 29): Além da chefia da tribo ou do clã, detinha o
primogênito o exercício do sacerdócio, tal como mostram as citações
seguintes:

"E disse o Senhor a Moisés: Faze chegar a tribo de Levi, e põe-nos diante de Aarão,
o sacerdote, para que o sirvam; eles cumprirão o que é devido a ele e a toda a
congregação, diante da tenda da reunião, fazendo o serviço do tabernáculo; cuidarão
de todos os móveis da tenda da reunião, e zelarão pelo cumprimento dos deveres
dos filhos de Israel, fazendo o serviço do tabernáculo. Darás, pois, os levitas a
Aarão e a seus filhos; de todo lhes são dados da parte dos filhos de Israel. Disse
mais o Senhor a Moisés: Eu, eu mesmo tenho tomado os levitas do meio dos
filhos de Israel, em lugar de todo primogênito, que abre a madre, entre os
filhos de Israel; e os levitas serão meus, porque todos os primogênitos são
meus. No dia em que feri a todos os primogênitos na terra do Egito, santifiquei para
mim todos os primogênitos em Israel, tanto dos homens como dos animais; meus
serão. Eu sou o Senhor" (Nm 3,11-13).

"Assim separarás os levitas do meio dos filhos de Israel; e os levitas serão meus.
Depois disso os levitas entrarão para fazerem o serviço da tenda da reunião, depois
de os teres purificado e oferecido como oferta de movimento. Porquanto eles me
são dados inteiramente dentre os filhos de Israel; em lugar de todo aquele que
abre a madre, isto é, do primogênito de todos os filhos de Israel, para mim os
tenho tomado. Porque meu é todo primogênito entre os filhos de Israel, tanto
entre os homens como entre os animais; no dia em que, na terra do Egito, feri a
todo primogênito, os santifiquei para mim. Mas tomei os levitas em lugar de
todos os primogênitos entre os filhos de Israel. Dentre os filhos de Israel tenho
dado os levitas a Aarão e a seus filhos, para fazerem o serviço dos filhos de Israel na
tenda reunião, e para fazerem expiação por eles, a fim de que não haja praga entre
eles, quando se aproximarem do santuário" (Nm 8,14-19).

Daí se vê que Deus fulminou os deuses do Egito quando fulminou de morte todos os
primogênitos, acabando com o sacerdócio deles e com as suas vítimas constituídas
pelos primogênitos dos animais, conforme o costume ritual daquele tempo. Para
substituí-los e começarem a funcionar oficialmente Deus agora prepara o Seu
Sacerdócio com os primogênitos poupados dos israelitas, do Povo que é o seu Filho
Primogênito, que tem uma missão de primícia sacerdotal, medianeira.

5. A PÁSCOA E A EUCARISTIA

Será necessário neste item repetir muita coisa já vista e abordar aspectos e
instituições ainda não estudados. Mesmo correndo o risco da prolixidade
prefere-se repetir alguma coisa já estudada, pois aqueles que não têm o
hábito da leitura bíblica terão junto todos os elementos usados no
desenvolvimento do tema abordado, facilitando-lhes a compreensão, e aos
que já estão familiarizados não faz mal repetir. De qualquer maneira deverá
pelo menos ser lido este desenvolvimento por mostrar a unidade dos dois
Testamentos e a fonte de nossas instituições cristãs, bem como esclarecer
alguns elementos fundamentais da nossa Eucaristia e sua raiz no passado.
Alguma referência a alguma instituição que será vista em capítulos adiante
não trará nenhuma dificuldade por que sempre será acompanhada de uma
breve explicação ou a própria solução apresentada, o que concorrerá para
a compreender. Por sua vez uma análise assim irá familiarizar o estudioso
à unidade das Escrituras Sagradas.

A Instituição da Páscoa Israelita, é "figura" da nossa, por causa do Cordeiro


Imolado no centro de uma refeição sagrada "nacional" da qual toda a
comunidade israelita participa, entrando em comunhão uns com os outros e
com Deus, santificando-se através da vítima do sacrifício que se imola e se
come: não é "ela" a nossa Páscoa, a nossa Eucaristia, onde Cristo é "nossa
Páscoa imolada" (cfr. 1Cor 5,7), e não a denominamos genericamente de
"comunhão"? A Páscoa foi instituída quando e em comemoração da saída
do Povo de Deus do Egito e deveria ser comemorada em família, como
uma espécie de refeição sagrada "nacional", por ser uma festa e um
sacrifício (Ex 12,25-28 / Nm 9,13), presidida pelo pai, que atuava como
sacerdote. Posteriormente, com a centralização do culto, na "reforma" de
Josias, passou a ser imolada no Templo pelo sacerdote, que derramava o
sangue no altar, prosseguindo-se o cerimonial em família ou com amigos
ou parentes, em outros lugares (Dt.16,5-7 / 2Cro 30,15-17; 35,10-14), assim
vigorando ao tempo de Cristo. Algumas significações se incorporaram ao
cerimonial tais como, dentre elas, além da de um banquete, a de libertação
e a de Aliança, e até mesmo Messiânica. A libertação que impregna a
celebração da Páscoa não se resume ao aspecto político de um povo em
busca de sua realização nacional, mas tem o sentido especificamente
religioso que inaugura a formação do "Povo de Iahweh - Deus", em
cumprimento da Aliança com Abraão, e ratificada em várias oportunidades:

"Eu farei de ti um grande povo..." (Gn 12,2). "... teus descendentes serão
estrangeiros num país que não será o deles... (...) ... sairão com grandes bens" (Gn
15,13-14). "('Jacó') Não temas descer ao Egito, porque lá eu farei de ti uma grande
nação" (Gn 46,3). ('Egito') "Deus lembrou-se da sua Aliança com Abraão, Isaac e
Jacó" (Ex 2,24)."Eu vi, eu vi a miséria do meu povo que está no Egito... (...) Por
isso desci a fim de libertá-lo..., e para fazê-lo subir daquela terra para uma terra boa
e espaçosa..." (Ex 3,7-8).

Por esse motivo, com Moisés, anuncia a última "praga" para a saída do
Egito:

"Iahweh disse a Moisés: 'Farei vir mais uma praga ainda contra o Faraó e contra o
Egito. Então ele vos deixará partir (...) e ele até mesmo vos expulsará daqui. (...)
Assim diz Iahweh: à meia-noite passarei pelo meio do Egito. E todo o primogênito
morrerá na terra do Egito... Mas, entre todos os filhos de Israel, desde os homens
até os animais, não se ouvirá o ganir de um cão, para que saibais que Iahweh fez
uma distinção entre o Egito e Israel" (Ex 11,1-7).

E imediatamente institui a Páscoa, vinculando os dois acontecimentos em


um só fato:
"Este mês será para vós... o princípio dos meses... : Aos dez deste mês, cada um
tomará para si um cordeiro por família, um cordeiro para cada casa... O cordeiro
será macho, sem defeito e de um ano... (...). ...; e toda a assembléia da comunidade
de Israel o imolará ao crepúsculo. Tomarão do seu SANGUE e pô-lo-ão sobre os
dois marcos e a travessa da porta... (...). ...; o que, porém, ficar até pela manhã,
queimá-lo-eis ao fogo. NÃO ("se lhe") QUEBRARÁ OSSO ALGUM ('cfr. texto
grego e Ex 12,46'). É assim que devereis comê-lo: com os lombos cingidos,
sandálias nos pés e cajado na mão; comê-lo-eis às pressas: é uma PÁSCOA para
Iahweh. E naquela noite eu passarei pela terra do Egito e ferirei na terra do Egito
todos os primogênitos, desde os homens até os animais; e eu, Iahweh, FAREI
JUSTIÇA SOBRE TODOS OS DEUSES DO EGITO. O SANGUE, porém, será
para vós um sinal nas casas em que estiverdes: quando eu vir o SANGUE, passarei
adiante e não haverá entre vós o flagelo destruidor... Este será para vós um
MEMORIAL e o celebrareis como uma festa para Iahweh; ... é um decreto
perpétuo. (...). Quando vossos filhos vos perguntarem: 'Que rito é este?',
respondereis: 'É o SACRIFÍCIO DA PÁSCOA PARA IAHWEH que passou
adiante das casas dos filhos de Israel no Egito, quando feriu os egípcios, mas
LIVROU NOSSAS CASAS..." (Ex 12,2-28).

Mesmo que o texto nada diga, a instituição traz todos os integrantes de


um sacrifício (a vítima imolada em oferenda a Iahweh, o sangue
"derramado nas casas" como "vida" e proteção do Povo de Deus, a refeição
sagrada compartilhada por familiares, a queima do que sobeja por ser
"santo"), e possui duas características fundamentais: foi diretamente
determinada pelo próprio Deus, para ser celebrada como um MEMORIAL
(Gn 9,14-15 "...eu me lembrarei...") e estava vinculada
indestacavelmente à ALIANÇA pela libertação do Povo por Iahweh,
"que se LEMBROU da sua ALIANÇA com Abraão, Isaac e Jacó" (Ex
2,24). Além disso, a expressão "Farei justiça sobre todos os deuses do
Egito" e "a morte dos primogênitos do Egito" têm um significado
profundamente religioso, a partir de uma instituição muito cara aos antigos:
a PRIMOGENITURA, que, evidentemente, era estruturada com base nos
primogênitos, na concepção deles, "aqueles que abrem o seio materno"
(Ex 13,2) e se destinavam ao sacerdócio (Nm 3,45).

Era tão séria a instituição que, por não a respeitar, Caim teve sua oferenda
rejeitada por Deus, que acolheu o sacrifício de Abel por ter oferecido "os
primogênitos de seu rebanho" (Gn 4,4); na relação das genealogias só se
mencionava o nome deles (Gn 5), e quando se mencionavam os outros
nomes o deles era o primeiro (Gn 10); o desprezo de Esaú por ela (Gn
25,29-34) fê-lo perdê-la, ocasionando inimizade mortal entre ele e Jacó,
que usurpou "sua bênção" (Gn 27), muito cobiçada, por sinal. A ameaça de
Deus ao Faraó de eliminar todos eles do Egito (Ex 11,4-10) e o
cumprimento dela ocasionou a expulsão dos israelitas pelo Faraó (Ex
12,31-33), terminando este por dizer: "...parti e abençoai a mim também"
(12,32), por se submeter e se render ao poder de Deus que, ao mesmo
tempo que eliminou os dos egípcios poupou os dos israelitas, vencendo e
assim "fazendo justiça sobre os deuses do Egito". Em conseqüência, foram
os dos israelitas oficialmente "consagrados a Iahweh, homens e animais;
aqueles para seu serviço e estes para o sacrifício" (Ex 13). No deserto,
quando da unificação do sacerdócio, todos os dos homens foram
"substituídos", no sacerdócio que já exerciam, pelos Levitas (Nm 3,45 e
8,14-18). São eles ('inexistia outra possibilidade') os que são mencionados
como "sacerdotes", antes da sua oficialização e unificação nos levitas (Ex
19,22.24) e os "jovens que ofereceram holocaustos e sacrifícios de
comunhão" no Sinai (Ex 24,5), quando da ratificação da ALIANÇA:

"Moisés escreveu todas as palavras de Iahweh; e, levantando-se de manhã, construiu


um altar... Depois enviou alguns jovens dos filhos de Israel, e ofereceram os seus
holocaustos e imolaram a Iahweh novilhos como sacrifício de comunhão.
Moisés tomou a metade do sangue e colocou-a em bacias, e espargiu a outra metade
do sangue sobre o altar. Tomou o Livro da Aliança e leu para o Povo; e eles
disseram: 'Tudo o que Iahweh falou, nós o faremos e obedeceremos.' Moisés tomou
do SANGUE e o aspergiu sobre o Povo, e disse: 'ESTE É O SANGUE DA
ALIANÇA QUE IAHWEH FEZ CONVOSCO, através de todas essas
cláusulas" (Ex 24,1-8)

Viu-se como entre os antigos os PRIMOGÊNITOS eram destinados, além


da chefia do clã, ao exercício do sacerdócio, motivo da "justiça de
Iahweh sobre os deuses do Egito". Com a morte deles estava destruída a
religião egípcia, inexistindo o sacerdócio que era exercido por eles. A
Páscoa então comemora também este fato que caracteriza a perenidade do
sacerdócio israelita (Ex 19,6), "Meu Filho Primogênito" (Ex 4,22s), e em
conseqüência, a da Aliança:

"... Iahweh... lhe disse: 'Assim dirás à Casa de Jacó... Vós mesmos vistes o que eu
fiz aos egípcios... Agora, se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha Aliança,
sereis para mim uma propriedade peculiar entre todos os povos, porque toda a terra
é minha. Vós sereis para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa. (...)
Veio Moisés... expôs diante deles todas estas palavras que Iahweh lhe havia
ordenado. Então todo o povo respondeu: 'Tudo o que Iahweh disse, nós o faremos"
(Ex 19,3-8).

"Tomou o Livro da Aliança e o leu para o povo; e eles disseram: 'Tudo o que
Iahweh falou, nós o faremos e obedeceremos.' Moisés tomou do sangue e o aspergiu
sobre o povo, e disse: 'Este é o Sangue da Aliança que Iahweh fez convosco,
através de todas essas cláusulas" (Ex 24,7-8).

Iahweh havia dito ao Faraó por meio de Moisés:

"Assim falou Iahweh: 'o meu primogênito é Israel'. E eu te disse: 'Faça partir meu
filho, para que me sirva!' Mas, uma vez que recusas deixá-lo partir, eis que farei
perecer o teu filho primogênito" (Ex 4,22-23).
E é o próprio Jesus que ao instituir a Eucaristia, após o ritual da PÁSCOA
DOS JUDEUS, vincula tudo isto ao que denominou Nova Aliança, institui o
Sacerdócio dela e inclui o Memorial. É Ele que as relaciona, mostrando
assim o "pleno cumprimento" (Mt 5,17) que Ele mesmo lhes imprimiu:

"Bebei dele todos, pois isto é o MEU SANGUE, O SANGUE DA ALIANÇA,


que é derramado por muitos para a remissão dos pecados" (Mt 26,27-28; Mc
14,24; Lc 22,20; 1Cor 11,25).

"Este cálice é a NOVA ALIANÇA EM MEU SANGUE; todas as vezes que dele
beberdes, fazei-o em MEMÓRIA DE MIM" (1Cor 11,25).

É por isso tudo que São Paulo, São João e São Pedro têm condições para
dar a Jesus o título de CORDEIRO identificando-O ao PASCAL:

"Pois NOSSA PÁSCOA, Cristo, foi imolada" (1Cor 5,7).

Em São João é preciso combinar o brado de João Batista com a conclusão


do Evangelista quando Jesus morre na Cruz, partindo-se da "figura" do
cordeiro anunciado pelo Servo de Deus (Is 53,7.12), vai-se num
"crescendo" até atingir a do Cordeiro Pascal na Cruz:

"No dia seguinte, ele ('João Batista') vê Jesus aproximar-se e diz: 'Eis o Cordeiro
de Deus, que tira o pecado do mundo' (Jo 1,29). "Ao ver Jesus que passava, disse:
'Eis o Cordeiro de Deus'" (Jo 1,36).

"Chegando a Jesus e vendo-o já morto, não lhe quebraram as pernas (...), pois isto
sucedeu para que se cumprisse a Escritura: 'Nenhum osso lhe será quebrado' (Jo
19,33-37).

"Porque isto sucedeu para que se cumprisse a escritura: Nenhum dos


seus ossos será quebrado" - São João Evangelista identifica Jesus com o
Cordeiro Pascal. Este fato nos leva à Instituição da Eucaristia feita após a
Ceia Pascal Israelita:

"E, chegada a hora, pôs-se Jesus à mesa, e com ele os apóstolos. E disse-lhes: Tenho
desejado ardentemente comer convosco esta páscoa, antes da minha paixão; pois
vos digo que não a comerei mais até que ela se cumpra no reino de Deus " (Lc
22,14-16).

Vê-se que após a Ceia Pascal dos judeus, com as palavras "tenho
desejado ardentemente comer convosco esta páscoa, antes da minha
paixão; pois vos digo que não a comerei mais até que ela se cumpra no
reino de Deus", Jesus encerra a Páscoa tradicional e logo a seguir institui a
Cristã, a Eucaristia:
"Então havendo recebido um cálice, e tendo dado graças, disse: Tomai-o, e reparti-o
entre vós; porque vos digo que desde agora não mais beberei do fruto da videira, até
que venha o reino de Deus. ("aqui termina a Páscoa dos judeus") E tomando um
pão, e havendo dado graças, partiu-o e deu-lho, dizendo: Isto é o meu corpo, que é
dado por vós; fazei isto em memória de mim. Semelhantemente, depois da ceia,
tomou o cálice, dizendo: Este cálice é a nova aliança em meu sangue, que é
derramado por vós" (Lc 22,17-20).

Para realçar o fato da identidade de Jesus como o Cordeiro Pascal, é que


os Evangelistas que narram a Instituição da Eucaristia, mostram-na
acontecendo no mesmo dia da Sua Morte, levando-se em conta que o dia
para o judeu começava à tarde e terminava na tarde seguinte. É o próprio
Jesus que vinculou todas, - Páscoa e Aliança, Eucaristia e Morte na Cruz, -
tornando-as inseparáveis:

Mt 26,26-28 Mc 14,22-24 Lc 22,19-20 1Cor 11,23-25


"Enquanto
"...: na noite em
comiam,
"Enquanto comiam, Jesus "E que foi entregue,
ele
tomou um pão e, tomou um pão, o Senhor Jesus
tomou um
tendo-o abençoado, tomou o pão e,
pão,
abençoou,
depois de dar
deu graças,
graças,
partiu-o
partiu-o partiu partiu-o
e distribuiu-
e, distribuindo-o aos e distribuiu-o
lhes,
discípulos, a eles,

dizendo: Dizendo: e disse:


disse:
Tomai,
Tomai e comei,
isto é o meu 'Isto é o meu 'Isto é o meu
isto é o meu corpo.'
corpo.' corpo corpo,
que é dado por Que é para vós;
vós. fazei isto em
Fazei isto em memória de
minha memória.' mim.'
Depois, E, depois de
Depois, após a ceia,
dando graças, comer,
dando graças, Do mesmo modo,
e, tomou um fez o mesmo
tomou um cálice , também tomou o
cálice com o cálice,
e deu-lho cálice,
deu-lhes
dizendo: 'Bebei dele todos,
e todos dele
pois dizendo:
beberam. dizendo:
E disse-lhes:
'Isto é o meu
isto é o meu sangue, 'Este cálice é a 'Este cálice é a
sangue,
o sangue Nova Aliança Nova Aliança
o sangue
da Aliança, em meu sangue, em meu sangue;
da Aliança,
todas as vezes que
que é
que é derramado por dele beberdes,
derramado que é derramado
muitos para remissão dos fazei-o em
em favor de em favor de vós."
pecados." memória de
muitos."
mim."

Apesar de cada narrador pretender abordar um ângulo diferente, existem


detalhes que lhes são comuns. Destaca-se, para este exame, o Sangue da
Aliança, em Mateus e Marcos, e a Nova Aliança em Meu Sangue, em
Lucas e Paulo. Em si dizem a mesma coisa, eis que, em Mateus e Marcos,
Jesus é apresentado como aquele que "não veio revogar a Lei e os
Profetas, mas dar-lhes pleno cumprimento" (Mt 5,17), enquanto Lucas e
Paulo, ao se referir à Nova Aliança, dizem o mesmo, naturalmente já se
reportando às profecias, dentre as quais se destaca: "Eis que virão dias -
oráculo de Iahweh - em que selarei com a casa de Israel (e a casa de Judá) uma
Nova Aliança. Não como a Aliança que selei com seus pais, no dia em que os
tomei pela mão para fazê-los sair do Egito - minha Aliança que eles mesmos
romperam, embora eu fosse o seu Senhor... Porque esta á a Aliança que selarei com
a casa de Israel depois desses dias,... Eu porei a minha lei no seu seio e a escreverei
em seu coração. Então eu serei o seu Deus e eles serão o meu povo. (...). Porque
todos me conhecerão,(...), perdoarei a sua culpa e não me lembrarei mais de seu
pecado" (Jr 31,31-34). "Selarei com eles um Aliança Eterna..." (Jr 31,39). Ao
que se percebe, a Nova Aliança já era um termo conhecido da Sagrada
Escritura, com o que Cristo era familiarizado e pretendeu inaugurá-la
durante aquela cerimônia e determinando a sua repetição. Também, vários
outros Profetas referiram-se ao advento do Messianismo (Ez 16,62; 34,23s;
36,26s; 37,24.26-28 etc.) com tal anúncio, traduzindo a consolidação da
Aliança com a expiação dos pecados e, dentre outros fatos, como que
coroando sua obra, a vinda do Espírito Santo, tão bem revelado por São
Pedro no dia de Pentecostes (At 2,16-21 / Jl, 3,1-5). Da mesma forma,
confirmando o seu "cumprimento" em Cristo, "São Paulo" a ela se refere
categoricamente:

"Eis por que Ele é mediador de uma Nova Aliança. A sua morte aconteceu para o
resgate das transgressões cometidas no regime da Primeira Aliança; e, por isso,
aqueles que são chamados recebem a herança ETERNA que foi prometida. (...)
Ora, nem mesmo a Primeira Aliança foi inaugurada sem efusão de sangue. De
fato, depois que Moisés proclamou a todo o povo cada mandamento da lei, ele
tomou o sangue de novilhos e de bodes (...) e aspergiu o próprio livro e todo o
povo, anunciando: Este é o Sangue da Aliança que Deus vos ordenou. Segundo a
Lei, quase todas as coisas se purificam com sangue; e sem efusão de sangue não
há remissão" (Hb 9,15-22).

Cristo, na Ceia Eucarística, confirmando o que anunciara na Multiplicação


dos Pães, estabelece indissolúvel união dEla com o sangue derramado na
Cruz e o sangue aspergido por Moisés no Sinai:

"Moisés tomou do sangue e o aspergiu sobre o povo, e disse: -'Este é o SANGUE


DA ALIANÇA que Iahweh fez convosco...'" (Ex 24,8).

É a esse Sangue da Aliança que Cristo se identifica, como Cordeiro


Pascal, na Instituição da Eucaristia, tornando-o "o cálice da Nova Aliança
em meu Sangue", tal como apresentam uniformemente Mateus e Marcos
de um lado, Lucas e São Paulo de outro:

MATEUS MARCOS LUCAS PAULO


E, depois de
Do mesmo modo,
Depois, tomou um Depois, tomou um cálice comer, fez
após a ceia, também
cálice e dando e, dando graças, deu-lhes o mesmo com
tomou o cálice,
graças deu-lho e todos dele beberam. E o cálice,
dizendo:
dizendo: 'Bebei dele disse-lhes: dizendo:
todos, pois 'ESTE
ESTE CÁLICE É A
CÁLICE
ÉA
ISTO É O MEU ISTO É O MEU
NOVA ALIANÇA
SANGUE, SANGUE, NOVA
EM MEU
O SANGUE O SANGUE ALIANÇA
SANGUE;
DA ALIANÇA, DA ALIANÇA, EM MEU
SANGUE,
que é
que é derramado Todas as vezes que
que é derramado derramado
por muitos para dele beberdes,
em favor de muitos." em favor de
remissão dos fazei-o em memória
vós."
pecados." de mim

Para Mateus, Jesus deveria se identificar com Moisés, e assim, com "a Lei
e os Profetas" (Mt 5,17), motivo por que o sangue deveria ser "derramado
por muitos para a remissão dos pecados", ou "bebido em sua
memória", lembrando os sacrifícios levíticos, bem como o da própria
Páscoa após Josias, em que "sem efusão de sangue não há remissão"
(Hb 9,22):
"Porque a vida da carne está no sangue. E este sangue eu vo-lo tenho dado para
fazer o rito da expiação sobre o altar, pelas vossas vidas; pois é o sangue que faz
expiação pela vida" (Lv 17,11 / Hb 9,22).

"O sacerdote fará por ele o rito da expiação diante de Iahweh, e ele será perdoado,
qualquer que seja a ação que ocasionou a sua culpa" (Lv 5,26).

O derramar o sangue, a que Cristo em Mateus se refere, é o rito de


expiação:

"Se a sua oferenda consistir em holocausto de animal grande, oferecerá um macho


sem defeito... Porá a mão sobre a cabeça da vítima e esta será aceita para que se
faça por ele o rito de expiação. Em seguida imolará o novilho diante de Iahweh, e
os filhos de Aarão, os sacerdotes, oferecerão o sangue. Eles o derramarão ao
redor sobre o altar..." (Lv 1,3-5.11-12).

Mas, esta expiação se dá na Cruz:

"..., se alguém pecar, temos como advogado, junto do Pai, Jesus Cristo, o justo. Ele
é a vítima de expiação pelos nossos pecados..." (1Jo 2,1-2)."Nisto consiste o
amor: não fomos nós que amamos a Deus, mas foi ele quem nos amou e enviou-nos
o seu filho como vítima de expiação pelos nossos pecados" (1Jo 4,10)

Jesus ao dizer-se SANGUE E SANGUE DA ALIANÇA durante a cerimônia


da Ceia Eucarística, antecipa a expiação do sacrifício da Cruz. Esse é o
motivo por que nos Sinóticos a Instituição da Eucaristia e o Sacrifício da
Cruz são situados no mesmo dia, fazendo de ambos um só fato; e, São
João, a aditar no seu Evangelho a menção de que ao pretenderem quebrar
os ossos dos crucificados, não o fizeram com Jesus que já estava morto.
Revela o Evangelista que se cumpria a prescrição referente ao Cordeiro
Pascal, de que "nenhum osso lhe será quebrado" (Ex 12,46), e assim
identifica-o com Jesus. Também, tão clara como a relação sacrificial, é a
"memória" dessa vinculação indestacável ao Calvário:

Depois, tomou um cálice e dando graças deu-lho dizendo: 'Bebei dele todos, pois
ISTO É O MEU SANGUE, O SANGUE DA ALIANÇA, que é derramado por
muitos para remissão dos pecados." "...fazei-o em memória de mim" (Mt
26,26-28/Mc 14,22-24/Lc 22,19-20/1Cor 11,23-25).

Além da relação sacrificial e de comunhão de uma refeição sagrada, e


como bebendo o seu sangue recebe-se sua vida (Dt 12,23; Lv 17,11a), a
EUCARISTIA É O SACRIFÍCIO PERFEITO DA NOVA ALIANÇA E FONTE
DE VIDA, SACRAMENTO, FONTE DE SANTIFICAÇÃO, tal como dissera,
"Eu vim para que tenham vida e a tenham em plenitude" (Jo 10,10). A
Eucaristia atualiza e realiza todos aqueles valores que em "figura" eram
pertinentes à Páscoa dos Judeus, que pela Aliança libertou o Povo de Deus
do Egito e o conduziu à Terra Prometida; e, agora, "se cumprindo" na
Páscoa Cristã, pela Nova Aliança, liberta o Homem do pecado e o conduz à
Vida Eterna.

6. A PÁSCOA E A PASSAGEM DO MAR VERMELHO

Povo que já nascia em comunhão com Deus, os Israelitas inauguram a sua nação
estabelecendo-a concomitantemente com a instituição do Sacerdócio dos
Primogênitos (Ex 13,1-16). Além da Páscoa, outros sacrifícios constituiriam a base
do seu culto e, identificando-se com a Aliança dos Patriarcas, estabelece o seu
Sacerdócio, "primícias do poder de Deus" (Gn 49,3). Sem sacerdócio não há
sacrifícios (Hb 5,1-3; 8,3). Assim organizados, ou expulsos ou fugindo, saem do
Egito após a celebração da Páscoa, sabendo que "naquele mesmo dia o Senhor tirou
os filhos de Israel da terra do Egito, segundo os seus exércitos" (Ex 12,51),
"levando-os não pelo caminho habitual da terra dos filisteus" (Ex 13,17), para que,
despreparados para uma guerra contra os egípcios que iriam em sua captura, não
fugissem. Apesar de "subirem armados da terra do Egito" (Ex 13,18b), do seu
manejo não tinham prática nem consciência estratégica nem estavam preparados
para defender a nacionalidade nascente. Além disso, como "Moisés levou consigo
os ossos de José" (Ex 13,19), evidenciando a tônica religiosa de tudo o que
acontecia, tendo por fulcro a Aliança dos Patriarcas, não se prepararam para uma
guerra nem estavam assim conscientizados (Ex 13,17-19), e aproveitando-se da
permissão que o Faraó dera para "servir a Iahweh como tendes dito" (Ex 12,31),
escaparam, fugiram:

"Quando, pois, foi anunciado ao rei do Egito que o povo havia fugido, mudou-se o
coração de Faraó, e dos seus servos, contra o povo, e disseram: Que é isso que
fizemos, permitindo que Israel saísse e deixasse de nos servir? E Faraó aprontou o
seu carro, e tomou consigo o seu povo; tomou também seiscentos carros escolhidos
e todos os carros do Egito, e capitães sobre todos eles. Porque o Senhor endureceu o
coração de Faraó, rei do Egito, e este perseguiu os filhos de Israel; pois os filhos de
Israel saíam afoitamente. Os egípcios, com todos os cavalos e carros de Faraó, e os
seus cavaleiros e o seu exército, os perseguiram e os alcançaram acampados junto
ao mar, perto de Piai0rot, diante de Baal-Sefom" (Ex 14,5-9).

"Que é isso que fizemos, permitindo que Israel saísse e deixasse de nos servir?" -
retrata uma situação que não se pode deixar de lado quando se examina esse quadro.
O Povo do Egito, apesar de várias vezes mencionado como partícipe da opressão
aos israelitas, não poderia estar participando dela, eis que, da instrução dada por
Deus constata-se a existência de uma situação peculiar:

"Fala agora ao povo, que cada homem peça ao seu vizinho, e cada mulher à sua
vizinha, jóias de prata e jóias de ouro. E o Senhor deu ao povo graça aos olhos dos
egípcios. Além disso o varão Moisés era muito importante na terra do Egito, aos
olhos dos servos de Faraó e aos olhos do povo" (Ex 11,2-3)

"Fizeram, pois, os filhos de Israel conforme a palavra de Moisés, e pediram aos


egípcios jóias de prata, e jóias de ouro, e roupas. E Iahweh deu ao povo graça aos
olhos dos egípcios, de modo que estes lhe davam o que pedia; e despojaram aos
egípcios" (Ex 12,35-36).

Este comentário do narrador é suficiente para se entender bem a situação dos


israelitas, pois não é de se estranhar essa demonstração de amizade dos egípcios que
se encontrou. Principalmente quando se lembra que o sistema econômico instalado
por José, no início de seu governo, ainda vigorava (Gn 47,13-27). Pelo menos não
há registro bíblico de nenhuma revogação e o regime de servidão a que os israelitas
estavam sujeitos era compartilhado pelos cidadãos egípcios, também vítimas. Então
os que perseguiam os israelitas eram os soldados, serviçais do Faraó e sua corte, não
o povo egípcio em si. Outros originavam-se de vários outros povos aproveitando a
oportunidade fugiram também, pois "subiu com eles uma multidão com ovelhas,
gado e muitíssimos animais" (Ex 12,38). E os perseguiam a todos exclusivamente
por causa da crise econômica que seria causada com a perda do "quinto de
produção" estabelecidos (Gn 47,26) e da mão de obra barata e competente que
"construiu para Faraó as cidades armazéns de Pitom e Ramsés" (Ex 1,11). Não é de
hoje que a economia justifica a tirania e o imperialismo dos poderes do mundo
profano.

Ainda outro fato digno de nota é que "Deus ia adiante deles, de dia numa coluna de
nuvem para os guiar pelo caminho, e de noite numa coluna de fogo para os
alumiar", assim protegendo e conduzindo o Seu Povo. E estrategicamente o conduz
fazendo até mesmo o Faraó pensar que estivessem perdidos e desorientados no
deserto e se animasse a perseguí-los, com a intenção de os encurralar em frente ao
Mar Vermelho, onde mais uma vez manifestaria o Seu Poder:

"Assim partiram de Sucot, e acamparam-se em Etam, à entrada do deserto. E o


Senhor ia adiante deles, de dia numa coluna de nuvem para os guiar pelo caminho, e
de noite numa coluna de fogo para os alumiar, a fim de que caminhassem de dia e
de noite. Não desaparecia de diante do povo a coluna de nuvem de dia, nem a
coluna de fogo de noite. Disse o Senhor a Moisés: 'Fala aos filhos de Israel que se
voltem e (...) assentareis o acampamento junto ao mar. Então Faraó dirá dos filhos
de Israel: "Eles estão desorientados na região, o deserto os encerrou." Eu
endurecerei o coração de Faraó, e ele os perseguirá; glorificar-me-ei em Faraó, e em
todo o seu exército; e saberão os egípcios que eu sou o Senhor'. E eles fizeram
assim" (Ex 13,20-14,4).

Foi um momento por demais dramático em que o Povo dos Filhos de Israel,
despreparado, percebeu que apesar da "coluna de nuvem e fogo" estava
entrincheirado entre o mar e o exército do Faraó, e mesmo assim é muito natural
que temesse e se amedrontasse. Anuncia-se uma séria dificuldade a enfrentar, o
Povo clamou a Deus e, se bem que protestando energicamente, procurou o próprio
Moisés para uma solução e a resposta que lhe deu mostra a fé que se depositava em
Deus. Não se tem notícia de alguma deserção nem de que alguns se entregassem ao
Faraó, que teria recebido de braços abertos os que voltassem. Moisés não perde a
calma e o controle da situação, o Povo a recupera e também crê, percebendo-se que
propositadamente "se tomou outro caminho que o dos filisteus" (Ex 13,17):

"Quando Faraó se aproximava, os filhos de Israel levantaram os olhos, e eis que os


egípcios marchavam atrás deles; pelo que tiveram muito medo os filhos de Israel e
clamaram ao Senhor! E disseram a Moisés: 'Foi porque não havia sepulcros no
Egito que de lá nos tiraste para morrermos neste deserto? Por que nos fizeste isto,
tirando-nos do Egito? Não é isto o que te dissemos no Egito: Deixa-nos, que
sirvamos aos egípcios? Pois melhor nos fora servir aos egípcios, do que morrermos
no deserto'. Moisés, porém, disse ao povo: 'Não temais; permanecei firmes e vereis
o que o Senhor hoje fará para vos livrar; porque os egípcios que hoje vedes, nunca
mais tornareis a ver; o Senhor pelejará por vós; e vós vos tranqüilizareis" (Ex 14,10-
14).

Ali onde o Faraó pensara que os israelitas estavam perdidos acontece então um fato
ou fenômeno que permanece humanamente inexplicável, conhecido como a
"passagem milagrosa do Mar Vermelho", que se abriu para os israelitas e se
fechou afogando os egípcios:

"Então disse o Senhor a Moisés: Por que clamas a mim? dize aos filhos de Israel
que marchem. E tu, levanta a tua vara, e estende a mão sobre o mar e fende-o, para
que os filhos de Israel passem pelo meio do mar em seco. Eis que eu endurecerei o
coração dos egípcios, estes entrarão atrás deles; e glorificar-me-ei em Faraó e em
todo o seu exército, nos seus carros e nos seus cavaleiros. E os egípcios saberão que
eu sou o Senhor, quando me tiver glorificado no Faraó, nos seus carros e nos seus
cavaleiros. Então o anjo de Deus, que ia adiante do exército de Israel, se retirou e se
pôs atrás deles; também a coluna de nuvem se retirou de diante deles e se pôs atrás,
colocando-se entre o campo dos egípcios e o campo dos israelitas; assim havia
nuvem e trevas; contudo aquela clareava a noite para Israel; de maneira que em toda
a noite não se aproximou um do outro. Então Moisés estendeu a mão sobre o mar; e
o Senhor fez retirar o mar por um forte vento oriental toda aquela noite, e fez do
mar terra seca, e as águas foram divididas. E os filhos de Israel entraram pelo meio
do mar em seco; e as águas foram-lhes qual muro à sua direita e à sua esquerda. E
os egípcios os perseguiram, e entraram atrás deles até o meio do mar, com todos os
cavalos de Faraó, os seus carros e os seus cavaleiros. Na vigília da manhã, o Senhor,
na coluna do fogo e da nuvem, olhou para o campo dos egípcios, e alvoroçou o
campo dos egípcios; embaraçou-lhes as rodas dos carros, e fê-los andar
dificultosamente; de modo que os egípcios disseram: Fujamos de diante de Israel,
porque o Senhor peleja por eles contra os egípcios" (Ex 14,15-25).

Pela narrativa percebe-se que Moisés não titubeou um instante sequer, chegando a
dizer que "os egípcios que hoje vedes, nunca mais tornareis a ver" (Ex 14,13), e "
estendeu a mão sobre o mar; e o Senhor fez retirar o mar por um forte vento oriental
toda aquela noite, e fez do mar terra seca, e as águas foram divididas". Não foi um
acontecimento instantâneo como pode parecer, eis que o mar foi açoitado "por um
forte vento oriental toda aquela noite" e não se tratava de um pequeno grupo de
pessoas que passou a "pé enxuto". Mas, o retorno das águas ao seu nível normal foi
sem demora, a ponto de atingir o exército faraônico de surpresa:

"Nisso o Senhor disse a Moisés: Estende a mão sobre o mar, para que as águas se
tornem sobre os egípcios, sobre os seus carros e sobre os seus cavaleiros. Então
Moisés estendeu a mão sobre o mar, e o mar retomou a sua força ao amanhecer, e os
egípcios fugiram de encontro a ele; assim o Senhor derribou os egípcios no meio do
mar. As águas, tornando, cobriram os carros e os cavaleiros, todo o exército de
Faraó, que atrás deles havia entrado no mar; não ficou nem sequer um deles. Mas os
filhos de Israel caminharam a pé enxuto pelo meio do mar; as águas foram-lhes qual
muro à sua direita e à sua esquerda. Assim o Senhor, naquele dia, salvou Israel da
mão dos egípcios; e Israel viu os egípcios mortos na praia do mar. E viu Israel a
grande obra que o Senhor operara contra os egípcios; pelo que o povo temeu ao
Senhor, e creu no Senhor e em Moisés, seu servo" (Ex 14,26-31).

Para o fenômeno ocorrido não se encontrou até hoje uma explicação natural que
fosse satisfatória ou exata ou definitiva, e tudo indica que nunca se conseguirá,
principalmente porque os israelitas estavam encurralados e conseguiram passar o
Mar Vermelho sem uma baixa sequer. Algo de miraculoso aconteceu e sua
descrição minuciosa se mesclou com o nacionalismo nascente e poético não
permitindo outra visão que a descrita. A título ilustrativo conta-se:

"A mãe pergunta a seu filho o que está estudando no Catecismo Paroquial. O
menino responde que "o Padre ensinou que quando Moisés tirou o Povo de Deus do
Egito, fez construir uma baita ponte de concreto armado para o povo passar.
Quando os egípcios vieram atrás dos israelitas, Moisés dinamitou a ponte, caíram
no mar e morreram todos." Assustada a mãe retorna: "Meu Deus! É isso mesmo que
o Padre está ensinando, meu filho?!" Responde o menino, assustado com a reação
da mãe: "Não mamãe, não foi isso o que o Padre ensinou. Mas se eu contar o que o
Padre ensinou a senhora não vai acreditar"!!!

Há pouco tempo num filme de Jesus Cristo, desses que a única coisa que faz é
falsificar tudo, em determinado momento fictício, apresenta Pilatos dizendo a
Caifás: "Vocês chegam a pensar que Deus abriu o mar para vocês passarem". Ao
que Caifás respondeu: "É, mas nós passamos". Nessa resposta do roteiro está uma
explicação sucinta do fenômeno: alguma coisa aconteceu para que ficasse tão
impregnada na História de Israel:

"E viu Israel a grande obra que o Senhor operara contra os egípcios; pelo que o
povo temeu ao Senhor, e creu nEle e em Moisés, seu servo" (Ex 14,31).

"... o povo temeu ao Senhor, e creu nEle e em Moisés, seu servo" - da mesma
forma que com as "pragas" repete-se o reconhecimento do Povo de Deus pelo
acontecimento ou fenômeno, que não pode ter sido algo assim normal ou
costumeiro, pois foi suficiente para incutir um temor reverencial e ao mesmo tempo
fé, tanto em Deus como em Moisés. Isso é o que importa, não a procura de
explicação para um fenômeno, nunca se conseguindo a contento e além disso por
demais desnecessário a não ser aquilo que prefigurava a "se cumprir" em Cristo (Mt
5,17). É São Paulo quem mostra esse "cumprimento":

"Pois não quero, irmãos, que ignoreis que nossos pais estiveram todos debaixo da
nuvem, e todos passaram pelo mar; e, na nuvem e no mar, todos foram batizados
em Moisés, e todos comeram do mesmo alimento espiritual; e beberam todos da
mesma bebida espiritual, porque bebiam da pedra espiritual que os acompanhava; e
a pedra era Cristo" (1Cor 10,1-4).

Outra confusão que é muito freqüente é a da Páscoa com essa "passagem" do Mar
Vermelho. Apesar de próximos ambos os acontecimentos a referência entre eles é
apenas cronológica ou as mais das vezes "figura" pela semelhança fática entre a
"libertação do Egito" (pela água) e a "libertação do pecado" pelo "batismo na água".
Fenômeno semelhante irá acontecer e se repetir nas águas do Jordão quando o Povo
de Israel passar "pelo seco" e entrar com os Sacerdotes carregando a Arca da
Aliança na Terra Prometida (Js 3,14-17).

7 - DEUS CONDUZ O SEU POVO

Após tal façanha os Israelitas se inflamam com a grandeza do acontecido e junto


com Moisés, com o acompanhamento de sua irmã Maria e todas mulheres, entoaram
e dançaram um poema tal como é muito comum ainda no Oriente Médio (Ex 15,1-
21). Entoam um canto a Iahweh reconhecendo Seu Poder e Soberania, bem como a
força do Seu Espírito ("sopro"), "entre todos os deuses", como se fora um Hino da
Independência, mencionando sua santidade, forma de caracterizar biblicamente a
transcendência de Deus, separado e distinto dos seres que criou e tendo sobre eles
ainda pleno domínio:

"Ao sopro das tuas narinas amontoaram-se as águas, as correntes pararam como
montão; os abismos coalharam-se no coração do mar. O inimigo dizia: Perseguirei,
alcançarei, repartirei os despojos; deles se satisfará a minha alma; arrancarei a
minha espada, a minha mão os destruirá. Sopraste com o teu vento, e o mar os
cobriu; afundaram-se como chumbo em águas profundas. Quem entre os deuses é
como tu, ó Senhor? Quem é como tu poderoso em santidade, admirável em
louvores, operando maravilhas? Estendeste a mão direita, e a terra os tragou." (Ex
15,8-12).

Realçam a misericórdia de Deus libertando e conduzindo o Povo de Israel para a


Terra Prometida, aqui referenciada com uma frase que fora introduzida no poema
para esclarecimento tempos depois. Isso aconteceu quando se assumiu a posse dela,
nela residindo e estabelecido, já com uma organização ritual do Templo, aqui
denominado de santuário, e tendo sido derrotados e dominados os pagãos ou
gentios, tal como se lê:

"Na tua bondade guiaste o povo que remiste; na tua força o conduziste à tua santa
habitação. Os povos ouviram e estremeceram; dores apoderaram-se dos a
habitantes da Filistéia. Então os príncipes de Edom se pasmaram; dos poderosos de
Moab apoderou-se um tremor; derreteram-se todos os habitantes de Canaã. Sobre
eles caiu medo, e pavor; pela grandeza do teu braço emudeceram como uma
pedra, até que o teu povo passasse, ó Senhor, até que passasse este povo que
adquiriste. Tu os introduzirás, e os plantarás no monte da tua herança, no
lugar que tu, ó Senhor, aparelhaste para a tua habitação, no santuário, ó
Senhor, que as tuas mãos estabeleceram. O Senhor reinará eterna e perpetuamente"
(Ex 15,13-18).

Não se pode deixar de registrar essa inclusão de esclarecimentos com fatos


ocorridos no futuro que mostra algo muito comum na confecção das Escrituras
Sagradas e que muitas das vezes confunde o estudioso. Um exemplo claro disso foi
a frase usada na narrativa da "saída" do Egito em que se diz que Deus "levou-os não
pelo caminho habitual da terra dos filisteus" (Ex 13,17), sabendo-se que a esse
tempo os filisteus ainda não habitavam na Palestina. Narra-se o acontecimento com
a cultura e os conhecimentos que se tem na ocasião da narrativa e não conforme a
ocasião em que aconteceram realmente. Também, costuma o narrador mesclar
algum versículo estranho ao contexto e fora do assunto, tal como nesse poema,
acrescentado muito tempo depois, trechos fora de lugar e entrecortados por uma
espécie de parêntesis, destinados à satisfação de algum esclarecimento exigido por
tradição oral distinta da narrada. Neste ponto parece que se extravia do assunto para
outro aspecto da viagem, abrindo-se uma espécie de "parêntesis", dizendo:

"Depois Moisés fez partir a Israel do Mar Vermelho, e saíram para o deserto de Sur;
caminharam três dias no deserto, e não acharam água. E chegaram a Mara, mas não
podiam beber das suas águas, porque eram amargas; por isso chamou-se o lugar
Mara. E o povo murmurou contra Moisés, dizendo: Que havemos de beber? Então
clamou Moisés ao Senhor, e o Senhor mostrou-lhe uma árvore, e Moisés lançou-a
nas águas, as quais se tornaram doces. Ali Deus lhes deu um estatuto e uma
ordenança, e ali os provou, dizendo: Se ouvires atentamente a voz do Senhor teu
Deus, e fizeres o que é reto diante de seus olhos, e inclinares os ouvidos aos seus
mandamentos, e guardares todos os seus estatutos, sobre ti não enviarei nenhuma
das enfermidades que enviei sobre os egípcios; porque eu sou o Senhor que te sara.
Então vieram a Elim, onde havia doze fontes de água e setenta palmeiras; e ali,
junto das águas, acamparam" (Ex 15,22-27).

Não se pode deixar de lado e esquecer a presença na vida humana das


conseqüências do pecado e se manifestar sempre, mesmo com os eleitos, os
escolhidos por Deus para uma missão. Deus usa delas para os amadurecer, "prová-
los" (Ex 15,25), em outras palavras mais adequadas à realidade, "temperá-los" ou
mesmo "prepará-los", para aquilo que deles espera; pois, já os conhece bem e não
necessita submeter ninguém à prova, para saber com quem lida (1Sm 16,7; 11,20;
Jó 10,4; Jr 17,10; Is 55,8-9; Jo 2,25). Também não se pode deixar de lado que a
Bíblia não é um livro especializado em História ou em Psicologia ou em qualquer
ciência e que o centro gravitacional dela é a fé em Iahweh. Além de tudo isso não se
pode analisar um fato do passado apressadamente sem considerar o situação real do
acontecimento, ou com a cultura atual. Principalmente ainda pelo fato de que a
Bíblia teria sido escrita não para o homem atual mas para os israelitas daquele
tempo e a disposição lógica dos fatos do que se narra se adequava a eles, com a sua
cultura e modo de raciocinar. As narrativas daquele tempo nem sempre se
identificam ao sistema atual de relatar fatos ou acontecimentos nem seguem a
mesma ordem lógica ou cronológica.

Tomando-se em consideração todos esses fatores pode-se agora examinar o que se


refere ao clima originário entre os israelitas por causa da falta de água. Tudo indica
que a reclamação teria sido séria e até mesmo quase próxima ao desespero. Mas, é
isso mesmo que soe acontecer a um povo sedentário que de uma hora para outra vai
"às pressas" para a vida nômade, completamente despreparado para ela. Na
realidade vivia no Egito na amargura de uma servidão, mas tinham água para beber
e comida com a fartura necessária para manter-se e a própria família. Não era um
regime de escravidão plena como se pensa e muitas vezes se propaga mas um
sistema econômico que reduziu todo o povo a um regime de servidão semelhante ao
que se denomina "corvéia", onde não lhes faltava o alimento necessário à
subsistência, para manter o ritmo do trabalho e da produção (Ex 14,12; 16,3).
Agora, porém, sem esse conforto, caminhando errante num deserto com todos os
familiares, expostos a toda a sorte de intempéries, tendo que encontrar uma fonte de
água para se dessedentar, com o pão ainda sem o fermento mal preparado e agora
esgotado, sem mais alimentos e não conhecendo ainda a vida no deserto, é muito
natural que se desesperem. De novo se observa que não desertaram, procuraram
Moisés e Aarão e reclamaram. É essa transformação de vida que o narrador quer
mostrar e a situação em que se encontravam, demonstrando pelo resultado
alcançado que não houve uma sedição propriamente dita, mas uma situação de
emergência contornada da qual o povo saiu amadurecido e preparado para o
prosseguimento da "peregrinação" em busca da consumação da Promessa da Terra
Prometida que apenas se iniciava. Deus os prepara desde já e tal como com os
Patriarcas pelo sofrimento, pelo que recebem de Deus a aprovação:

"...Ali Deus lhes deu um estatuto e uma ordenança, e ali os provou, dizendo: Se
ouvires atentamente a voz do Senhor teu Deus, e fizeres o que é reto diante de seus
olhos, e inclinares os ouvidos aos seus mandamentos, e guardares todos os seus
estatutos, sobre ti não enviarei nenhuma das enfermidades que enviei sobre os
egípcios; porque eu sou o Senhor que te cura" (Ex 15,25-26).

Essas palavras não se aplicariam a um povo rebelde que tivesse realmente se


revoltado contra Deus. Recorreram a quem deveriam recorrer e pelo fato da prática
adquirida por Moisés da vida no deserto, onde aprendeu os seus segredos e as
condições necessárias para a sobrevivência nele e nas mais adversas, foi tudo
solucionado. É que o Povo de Israel seguia o mesmo trajeto, que lhe era muito
familiar, até atingir o Monte Sinai, onde Deus lhe aparecera e onde apascentava o
rebanho de seu sogro (Ex 3,1). No local onde Deus seria "adorado" (Ex 3,12)
quando fosse libertado, comprovando-se assim o cumprimento da promessa de Deus
de libertá-lo, em que acreditavam, ele e o Povo. Por causa disso é que Moisés soube
que tipo de madeira colocar na água para a "adoçar". Aqui é que não se pode
analisar como se fora uma narração comum, mas deve-se levar em conta a fé, já que
tanto a "água amarga" como seu "adoçante" são como que figuras das muitas
dificuldades encontradas trazendo o amadurecimento dos israelitas no contato com a
vida selvagem e rude:

"Então vieram a Elim, onde havia doze fontes de água e setenta palmeiras; e ali,
junto das águas, acamparam" (Ex 15,27)

Quando muitas vezes não se entende o que se lê na Bíblia é que foi deixado de lado
o sentido religioso que, por excelência, foi escrito com primazia. Também, o Povo
Israelita não era apenas um amontoado de pessoas com costumes, sentimentos,
ambições, história e normas comuns, mas um povo organizado em torno de uma
religião comum, centro irradiador de todos os demais elementos constitutivos de sua
realidade. Então o significado imediato do versículo acima transcrito não se limita a
um relato apenas cronológico ou seqüencial da peregrinação. É que as doze fontes
são como que representação das doze tribos dos filhos de Israel, frutos das setenta
pessoas que desceram ao Egito (Ex 1,5 / Gn 46,27), representadas pelas setenta
palmeiras, onde fertilmente se proliferaram e "acamparam junto das águas" ("rio
Nilo"), qual seja de seu Senhor, recebem a Sua Bênção, a "fonte" da fecundidade,
motivo da grande proliferação dos Filhos de Israel (Ex 1,7.12).

Inegavelmente a libertação do Povo de Israel do Egito é um mistério insondável.


Por isso, muitas das vezes se diz que aquelas "pragas" não passaram de fenômenos
naturais elevados ao grau máximo pelo nacionalismo e que seriam lendas. Porém,
com a "passagem do Mar Vermelho", não se tem outro recurso e não se pode deixar
de reconhecer a presença ativa de Deus que o liberta. Da mesma forma se diz das
"águas amargas" que Moisés "adoçou" com um pedaço de madeira (Ex 15,23-24),
do fenômeno das codornizes atravessando o mar em busca de terra firme (Ex 16,13)
com que se fartaram de carne e da "água do rochedo" (Ex 17,1-7) com que saciaram
a sede; e, também, quando se esbarra com o Maná, impõe-se o reconhecimento da
mesma presença ativa de Deus (Ex 16,9-35):

"Depois disse Moisés a Aarão: Dize a toda a congregação dos filhos de Israel:
Chegai-vos à presença do Senhor, porque ele ouviu as vossas murmurações. E
quando Aarão falou a toda a congregação dos filhos de Israel, estes olharam para o
deserto, e eis que a glória do Senhor apareceu na nuvem" (Ex 16,9-10).

São relatos do que a vida dura no deserto esculpiu na personalidade e no caráter do


Povo de Deus amadurecendo-o para a envergadura da missão que o aguardava
assumindo a Aliança de Abraão, Isaac e Jacó. Deus levou-o com uma pedagogia
apropriada à tomada de consciência de sua tarefa de Povo Primogênito, "as
primícias da fecundidade do Senhor" (Gn 49,3), sustentado e alimentado pelo
próprio Deus, com o Maná, "figura" da Eucaristia, do mesmo modo que irá
alimentar o Povo da Nova Aliança com o Corpo e Sangue de Seu Filho:

"Ora, os filhos de Israel comeram o maná quarenta anos, até que chegaram a uma
terra habitada; comeram o maná até que chegaram aos termos da terra de Canaã"
(Ex 16,35).

A significação messiânica desses fenômenos religiosos será constatada de várias


formas, tal como fez São Paulo (1Cor 10,1-4), quando "se cumprirem" em Jesus (Mt
5,17), destacando-se o Maná:

"Pois não quero, irmãos, que ignoreis que nossos pais estiveram todos debaixo da
nuvem, e todos passaram pelo mar; e, na nuvem e no mar, todos foram batizados em
Moisés, e todos comeram do mesmo alimento espiritual; e beberam todos da
mesma bebida espiritual, porque bebiam da pedra espiritual que os acompanhava; e
a pedra era Cristo" (1Cor 10,1-4).

8.O MANÁ E A EUCARISTIA

"... todos comeram do mesmo alimento espiritual..." - São João Evangelista


dispõe, significativamente, o Anúncio da Eucaristia logo em seguida à
Multiplicação dos Pães, após a qual ocorreu sério e drástico desencontro e desenlace
(Jo 6,60.66-71). Ora, os Evangelistas não escreveram nada à toa, nem a disposição
dos assuntos foi aleatória, sem motivo. Assim, quando João registra que os
opositores de Jesus o desafiaram com o Maná, indica o motivo, o teor e a evocação
do debate, e qual o significado que a Multiplicação dos Pães adquiriu para os
Apóstolos, tal como lhes foi ensinado pelo próprio Jesus. É que, após o milagre,
alimentando a multidão a partir de "cinco pães de cevada e dois peixes" (Jo 6,9.22-
58.59-71), protestaram os dissidentes, com evidente desprezo:

"...: Que sinal realizas, para que vejamos e creiamos em ti? Que obra fazes? Nossos
pais comeram o maná no deserto, como está escrito: ‘Deu-lhes Pão do Céu a
comer’ " (Jo 6,30-31).

Queriam dizer com isso que Moisés fizera muito maior milagre, alimentando o
Povo de Deus no deserto, durante quarenta anos, do que "uma simples distribuição
de pães e peixes para cinco mil pessoas", tal como acontecera ali. Jesus lhes dá a
resposta e, como de seu costume, contesta-os doutrinando:

"Em verdade, em verdade, vos digo: não foi Moisés quem vos deu o Pão do Céu,
mas é meu Pai quem vos dá o verdadeiro Pão do Céu; porque o pão de deus é o
Pão que desce do Céu e dá vida ao mundo" (Jo 6,32-33).

Assim Jesus identifica o verdadeiro pão do céu como o pão de deus, que desce do
céu e dá vida ao mundo, o que não deixa de ter referência clara com o Maná, agora
se aperfeiçoando pelo "pleno cumprimento" (Mt 5,17) que Ele próprio lhe imprime,
por cujo meio dá vida ao mundo. O Maná, por si só, não possuía essa virtude
vivificante, tendo sido dado para alimentá-los, tão somente, mesmo que material e
espiritualmente, como resposta de Iahweh às murmurações do Povo de Israel:

"Antes fôssemos mortos pela mão de Iahweh na terra do Egito, quando (...)
comíamos PÃO com fartura! (...) Iahweh disse a Moisés: ‘Eis que vos farei
chover PÃO DO CÉU; sairá o povo e colherá a porção de cada dia..." (...) "Isto é o
Pão que Iahweh vos dará para vosso alimento" (Ex 16,3-4.15).

"Todos comeram o mesmo alimento espiritual" (1Cor 10,3).

Assim, tal como o Maná é o pão do céu e alimento, da mesma forma a vítima do
sacrifício recebe a mesma denominação, tal como se vê na recomendação de Iahweh
com respeito aos sacerdotes:

"Serão consagrados a seu Deus e não profanarão o nome do seu Deus, porque são
eles que apresentam as oferendas queimadas a Iahweh, o pão do seu deus, e
devem estar em estado de santidade. (...) "Tu o tratarás como santo, pois oferece o
pão do teu deus" (Lv 21,6-8).

Ora, quando se fala em "alimento e pão" se fala em "sacrifício ou refeição


sagrada", donde se deduz a que Jesus também se refere ao mencionar o "pão do
céu ou pão de deus", manifestando quem Deus daria para ser vítima para a vida do
mundo, recordando-se da missão dos sacerdotes desde sua instituição, ainda no
deserto, agora os substituindo (Hb 9,11-14). Pois, a vítima imolada num sacrifício
(ou a "oferenda queimada a Iahweh") era considerada "Pão ou Alimento de
Deus", aqui e em outros lugares (destacando-se: Lv 1,9; 3,3.11.16; 21,17.21; Nm
9,13;28,1). Também o Maná, da mesma forma que a Vítima dos Sacrifícios, era
conhecido simplesmente por "pão do céu" ou "alimento" (‘espiritual’, diz são
Paulo), como nos textos acima transcritos. Não foi sem motivo que Jesus faz
referências ao Pão de Deus e ao Pão do Céu (Jo 6,33.58), na discussão que travou,
identificando-se com ambos e mostrando as diferenças "cumpridas" por Ele (Mt
5,17):

"Este é o pão que desceu do céu, ele não é como o que os pais comeram e
pereceram; quem come este pão viverá para sempre" (Jo 6,58).

"... quem come este pão viverá para sempre" - Existem aspectos na narrativa da
Multiplicação dos Pães em São João (6,1-15) que a tornam bem distinta da dos
demais Evangelhos, seja situando-a "próxima à Páscoa, a festa dos judeus" (6,4),
seja tratando os que se alimentavam como convivas de uma refeição, seja pelo
debate ocorrido a respeito do Maná, seja pelo gesto de Jesus que, "tomando os pães,
dá graças" (6,11), tal como na Instituição da Eucaristia (Lc 22,19 / 1Cor 11,24).
Também, no que evidencia se tratar de um banquete ou de refeição sagrada, o
"convite" que transparece quando Jesus diz "onde compraremos pão para alimentá-
los" (6,5) e "fazei que se acomodem pelo chão" (6,10), numa acomodação para os
"amesendados" [6,10.11 () ], - ‘fala como um anfitrião’; na ação de graças peculiar
a uma refeição comum ou sagrada ou ao sacrifício de comunhão; bem como, "no
recolhimento dos doze cestos do que restou", por se tratar de "coisa santificada"
(Ex 29,37 / Jo 6,12-13). Não há outro motivo para se recolher a sobra de uma
refeição!

Por outro lado, João também relata que:

"Os judeus murmuravam, então, contra ele, porque dissera: ‘Eu sou o pão descido
do céu" (Jo 6,41).
Fosse alguma figura de linguagem não haveria motivo para isso. "Murmuravam"
porque a afirmação foi muito séria, Jesus se referia a si mesmo e eles o entenderam.
Jesus nada corrige e ainda prossegue mais incisivo:

"Eu sou o pão vivo descido do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. o
pão que eu darei é a minha carne para a vida do mundo" (Jo 6,51).

Jesus usa o futuro "DAREI a minha carne para a vida do mundo", anunciando
a futura doação, seja na Instituição da Eucaristia seja na Cruz, pelo que, da
mesma forma, falando sempre numa concretização a se realizar, após a altercação
novamente advinda (6,52), é mais incisivo:

"Em verdade, em verdade, vos digo: se não comerdes a carne do Filho do Homem
e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós. Quem come a minha
carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna e eu o ressuscitarei no último dia.
Pois a minha carne é verdadeira comida e o meu sangue, verdadeira bebida.
Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele.
Assim como o Pai, que vive, me enviou e eu vivo pelo Pai, também aquele que
comer de mim viverá por mim" (Jo 6,53-57).

Neste ponto e ao finalizar o debate, diz especificamente e se identifica ao Maná, o


Pão que desceu do Céu:

"Este é o pão que desceu do céu. Ele não é como o que os pais comeram e
pereceram; quem come este pão viverá para sempre" (Jo 6,58).

Quando João narra tal acontecimento com tantos detalhes e diz que "estava próxima
a Páscoa, a festa dos judeus" (6,4), relaciona-o diretamente com Ela. É que Jesus
estava anunciando e começando então o que iria se "cumprir" nela. Só se pode
concluir então que a Multiplicação dos Pães é o "Anúncio da Eucaristia", um
sacrifício em que a vítima "será" o próprio Jesus, de que o Maná foi "figura".

Nota do Autor: ( ) Seria uma tradução "literal" mais conforme à palavra do "koiné" ("anapesein")
ou latina ("discumbere") usada, pelo Evangelista ou pela Vulgata, referindo-se aos "assentados" ou
"presentes", como se usa traduzir. Já, a Bíblia de Jerusalém e a TOB, de edições francesas, melhor
traduzem por "convives", que em português significa "convivas ou convidados".
9.A LEI DA ALIANÇA

Porém o Maná não livrara os Israelitas de problemas outros e com os amalecitas


repete-se outro milagre com a "Vara de Deus", aquela que foi entregue a Moisés e
Aarão para a execução dos prodígios (Ex 4,17 / 14,16 / 17,6): "enquanto Moisés
mantinha as mãos que a empunhava suspensas Israel prevalecia" obrigando Aarão e
Hur a forçar a sustentação delas nessa posição até que Josué os vence em definitivo
(Ex 17,8-16), e se tornam inimigos irreconciliáveis e tradicionais, por ordem do
próprio Deus (Ex 17,14 / 1Sm 15):

"As mãos de Moisés, porém, ficaram cansadas; por isso tomaram uma pedra, e a
puseram debaixo dele, e ele sentou-se nela. Aarão e Hur sustentavam-lhe as mãos,
um de um lado e o outro do outro; assim ficaram as suas mãos firmes até o pôr do
sol. Josué prostrou a Amalec e a seu povo, ao fio da espada. Então disse o Senhor a
Moisés: Escreve isto para memorial num livro, e relata-o aos ouvidos de Josué; que
eu hei de riscar totalmente a memória de Amalec de debaixo do céu. Pelo que
Moisés edificou um altar..." (Ex 17,12-15).

Como ação de graças pela vitória Moisés oferece um sacrifício, "pelo que Moisés
edificou um altar...", prosseguindo a tradição dos Patriarcas que o têm como centro
do culto. Cumprida a sua missão libertadora, Moisés recebe a visita de Jetro, seu
sogro, trazendo-lhe de volta a esposa e os filhos (Ex 4,24-26). Tomando
conhecimento de tudo o que acontecera (Ex 18,8) parece se converter reconhecendo
"Iahweh como o maior de todos os deuses" (Ex 18,9-11) e aconselha Moisés a
distribuir funções para administrar a justiça entre os israelitas e a manutenção da
ordem (Ex 18,17-26):

"E alegrou-se Jetro por todo o bem que o Senhor tinha feito a Israel, livrando-o da
mão dos egípcios, e disse: Bendito seja o Senhor, que vos livrou da mão dos
egípcios e da mão de Faraó; que livrou o povo de debaixo da mão dos egípcios.
Agora sei que o Senhor é maior que todos os deuses; até naquilo em que se
houveram arrogantemente contra o povo. Então Jetro, o sogro de Moisés, tomou
holocausto e sacrifícios para Deus; e veio Aarão, e todos os anciãos de Israel, para
comerem pão com o sogro de Moisés diante de Deus" (Ex 18,9-12).

"... Jetro, o sogro de Moisés, tomou holocausto e sacrifícios para Deus; e veio
Aarão, e todos os anciãos de Israel, para comerem pão com o sogro de Moisés
diante de Deus" - novamente o sacrifício compondo o culto israelita em que todos
participam "comendo o pão diante de Deus", santificando-se pela comunhão
estabelecida. Aqui se trava contato com a expressão "comento o pão" que é o modo
como se denominava a vítima imolada e consumida no sacrifício e se estabelecia a
comunhão com Deus ("...o pão de seu Deus..." - Lv 21,6.8 / 1Cor 10,18). Além
disso ofereceu-se "holocausto e sacrifícios", o holocausto como oferenda toda
queimada (Lv 1) e os sacrifícios como refeições sagradas (Lv 3-5). O clima
religioso e místico atingia o seu ápice e caminhava para o "servir a Deus no monte
Sinai" tal como anunciado por Deus (Ex 3,12). A presença ai do sacrifício, antes de
sua regulamentação ritual, demonstra o uso anterior de tudo o que agora se
ordenava.

Aquele desígnio de Deus de estabelecer com o Homem uma vida em comunhão,


intimidade e familiaridade, retardado pelo Pecado Original, e que se renovou na
Aliança com Abraão, deverá se realizar "numa grande nação" (Gn 12,2) que agora
se torna o Povo de Deus. E é nesse Monte Sinai que o Povo dos Filhos de Israel se
torna oficialmente Povo de Deus, cujos compromissos com os Patriarcas deverão
ser ratificados e assumidos por ele. Para isso, por primeiro, Deus se propõe:

"Então subiu Moisés a Deus, e do monte o Senhor o chamou, dizendo: 'Assim


falarás à casa de Jacó, e anunciarás aos filhos de Israel: Vós tendes visto o que fiz
aos egípcios, como vos levei sobre asas de águia, e vos trouxe a mim. Agora, pois,
se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha Aliança, sereis a minha propriedade
peculiar entre todos os povos, porque minha é toda a terra; e vós sereis para mim
um reino de sacerdotes e uma nação santa. São estas as palavras que falarás aos
filhos de Israel" (Ex 19,3-6).

"...se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha Aliança..." - A Aliança


contraída com Abraão, Isaac e Jacó deveria ser ratificada com os Povo dos Filhos de
Israel. Então, na condição de profeta e medianeiro, "veio Moisés e, tendo
convocado os anciãos do povo, expôs diante deles todas estas palavras, que o
Senhor lhe tinha ordenado" (Ex 19,7), e o Povo de Deus assume sua missão:

"Então todo o povo respondeu a uma voz: Tudo o que Iahweh disse, nós o faremos"
(Ex 19,8a).

"E relatou Moisés ao Senhor as palavras do povo" (Ex 19,8b). Pode-se imaginar
o suspense que se estabeleceu no momento, a emoção que deve ter tomado conta de
todos, num clima de profunda comunhão, um Povo que ali se formava no seio de
Deus, o "Primogênito de Deus" (Ex 4,22), "as primícias da fecundidade salvífica de
Deus" (parodiando Gn 49,3):

"Então disse o Senhor a Moisés: 'Eis que eu virei a ti em uma nuvem espessa, para
que o povo ouça quando eu falar contigo e também sempre creia em ti.' E Moisés
relatou a Iahweh as palavras do seu povo" (Ex 19,9).

De algum modo esta cena lembra a "Transfiguração de Jesus", principalmente pela


presença da "nuvem", característica de toda teofania:

"Seis dias depois, tomou Jesus consigo a Pedro, a Tiago e a João, irmão deste, e os
conduziu à parte a um alto monte; e foi transfigurado diante deles; o seu rosto
resplandeceu como o sol, e as suas vestes tornaram-se brancas como a luz. E eis que
lhes apareceram Moisés e Elias, falando com ele. Pedro, tomando a palavra, disse a
Jesus: 'Senhor, bom é estarmos aqui; se queres, farei aqui três cabanas, uma para ti,
outra para Moisés, e outra para Elias.' Estando ele ainda a falar, eis que uma nuvem
luminosa os cobriu; e dela saiu uma voz que dizia: 'Este é o meu Filho amado, em
quem me comprazo; a ele ouvi.' Os discípulos, ouvindo isso, caíram com o rosto
em terra, e ficaram grandemente atemorizados" (Mt 17,1-6).

Momento dramático da vida de Jesus logo após haver anunciado a sua Paixão
necessitando os apóstolos então muito mais fortalecimento da fé, em que Deus se
manifesta "na nuvem" e lhes afiança: - "Este é o meu Filho amado, em quem me
comprazo; a ele ouvi", pelo mesmo motivo com Moisés em que "eu virei a ti em
uma nuvem espessa, para que o povo ouça quando eu falar contigo e também
sempre creia em ti."

Aqui também foi um momento dramático em que Deus e o Povo de Israel selariam
uma Aliança para todo o sempre e passa Moisés a preparar os Filhos de Israel para a
teofania que iria selar a Aliança aceita:

"Disse mais o Senhor a Moisés: "Vai ao povo, e santifica-os hoje e amanhã; lavem
eles as suas vestes, e estejam prontos para o terceiro dia; porquanto no terceiro dia
descerá o Senhor diante dos olhos de todo o povo sobre o monte Sinai. Também
marcarás limites ao povo em redor, dizendo: Guardai-vos, não subais ao monte,
nem toqueis o seu termo; todo aquele que tocar o monte será morto. Mão alguma
tocará naquele que o fizer, mas ele será apedrejado ou flechado; quer seja animal,
quer seja homem, não viverá. Quando soar a buzina longamente, subirão eles até o
pé do monte." Então Moisés desceu do monte ao povo, e santificou o povo; e
lavaram os seus vestidos. E disse ele ao povo: "Estai prontos para o terceiro dia; e
não vos unais a mulher" (Ex 19,10-15).

"... santifica-os hoje e amanhã...", "...lavem eles as suas vestes..." e "... não vos unais
a mulher" - são três expressões muito vinculadas entre si, formando um todo. No
termo "santificar" está clara a "separação do profano", o sentido da consagração a
Deus, depois a purificação simbolizada no "lavar suas vestes". Já na determinação
de "... não vos unais a mulher" não se há de entender que a união com a mulher em
si teria sido tida como impura, eis que a mulher fazia parte do povo ali em
congregação, mas no sentido de que no ato de separação, ou santificação, inclui-se a
relação sexual pelo respeito à vida que gerava, tal como o respeito ao sangue (Lv
15,18; 1Sm 21,5), num gesto de consagração total, e nunca de repulsa. Assim
preparados, manifesta-se Deus:

"Ao terceiro dia, ao amanhecer, houve trovões, relâmpagos, e uma nuvem espessa
sobre o monte; e ouviu-se um som de trombeta mui forte, de maneira que todo o
povo que estava no acampamento estremeceu. E Moisés levou o povo fora do
acampamento ao encontro de Deus; e puseram-se ao pé do monte. Nisso todo o
monte Sinai fumegava, porque o Senhor descera sobre ele em fogo; e a fumaça
subiu como a fumaça de uma fornalha, e todo o monte tremia fortemente. E, o som
da trombeta cada vez mais forte, Moisés falava, e Deus lhe respondia. E, tendo o
Senhor descido sobre o monte Sinai, sobre o cume do monte, chamou Moisés; e
Moisés subiu. Então disse o Senhor a Moisés: "Desce, adverte ao povo, para não
suceder que traspasse os limites até o Senhor, a fim de ver, e muitos deles pereçam.
Ora, santifiquem-se também os sacerdotes, que se chegam ao Senhor, para que o
Senhor não se lance sobre eles". Respondeu Moisés ao Senhor: "O povo não poderá
subir ao monte Sinai, porque tu nos tens advertido, dizendo: 'Marca limites ao redor
do monte, e santifica-o". Ao que lhe disse o Senhor: "Vai, desce; depois subirás tu,
e Aarão contigo; os sacerdotes, porém, e o povo não traspassem os limites para
subir ao Senhor, para que ele não se lance sobre eles". Então Moisés desceu ao
povo, e disse-lhes isso" (Ex 19,16-25).

A presença de Deus foi de tal majestade que apesar do povo estremecer, não fugiu,
sendo até necessário impor-lhe limites de acesso ao lugar sob pena de lapidação.
Então a descrição do fenômeno não se limita ao natural que ocorre com um vulcão
que a tudo destrói e a todos amedronta. Não houve tal reação, ao contrário, aqui a
teofania atraiu. Deus preparava uma solenidade à altura do que ali se consumava: a
Aliança de Deus com o Homem, em que as condições são todas pronunciadas e
claramente ouvidas, uma a uma:

"Então falou Deus todas estas palavras, dizendo: Eu sou o Senhor teu Deus, que
te tirei da terra do Egito, da casa da servidão. Não terás outros deuses diante de
mim. Não farás para ti imagem esculpida, nem figura alguma do que há em cima no
céu, nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. Não as adorarás nem as
servirás; porque eu, o Senhor teu Deus, sou Deus zeloso, que vingo a iniqüidade dos
pais nos filhos até a terceira e quarta geração daqueles que me odeiam e uso de
misericórdia até mil gerações com os que me amam e guardam os meus
mandamentos. Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão; porque o Senhor
não terá por inocente aquele que tomar o seu nome em vão. Lembra-te do dia do
sábado, para o santificar. Seis dias trabalharás, e farás todo o teu trabalho; mas o
sétimo dia é o sábado do Senhor teu Deus. Nesse dia não farás trabalho algum, nem
tu, nem teu filho, nem tua filha, nem o teu servo, nem a tua serva, nem o teu animal,
nem o estrangeiro que está dentro das tuas portas. Porque em seis dias fez o Senhor
o céu e a terra, o mar e tudo o que neles há, e ao sétimo dia descansou; por isso o
Senhor abençoou o dia do sábado, e o santificou. Honra a teu pai e a tua mãe, para
que se prolonguem os teus dias na terra que o Senhor teu Deus te dá. Não matarás.
Não adulterarás. Não furtarás. Não dirás falso testemunho contra o teu próximo.
Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o
seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma do
teu próximo. Ora, todo o povo presenciava os trovões, e os relâmpagos, e o som da
trombeta, e o monte a fumegar; e o povo, vendo isso, estremeceu e pôs-se de longe"
(Ex 20,1-18).

É a Lei da Aliança: Assim denominar-se-á aqui "o decálogo" ou as "dez palavras"


ou os "dez mandamentos", pois a sua referência com a Aliança de Abraão é mais
que clara. Tudo o que o Povo Israelita faz está resumido nela e se projeta em casos
particulares já amontoados conforme um uso costumeiro e enraizado culturalmente,
a que uma divisão mais voltada para a didática deu o nome de Código da Aliança
(Ex 21-24). Apesar de toda a cerimônia e majestade presente ali e de toda a
dramaticidade a voz de Deus ecoou firme principalmente no coração de todos.
Quando se diz que Deus falou e pronunciou todas as palavras, se diz que se revelou
e que aquilo que disse é de si mesmo tendo todos os seus atributos, até mesmo a
santidade. E, partindo de seu íntimo revela principalmente o amor que devota ao
Povo de Israel. Só a Palavra revela o íntimo daquele que fala, Deus falando Se
Revela no mais íntimo de Seu Ser. Não se pode concluir diferentemente, tendo-se
em vista a presença de todo o povo até o final de todas as palavras que Deus
pronunciou, sem que fugissem. Por mais que se esforce não se pode dizer que se
trate de uma espécie de constituição, das que compõem a estrutura "política" de
uma nação moderna, eis que não se trata da luta do povo contra um poder que teve
por resultado uma carta de direitos do cidadão, que o delimitasse. Nada desvirtua
mais o Decálogo que essa comparação absurda. Não foi uma conquista, foi uma
dádiva, um dom de Deus que Se "abriu" e ofereceu uma orientação e um
chamamento dirigido a cada um e a todo o Seu Povo para se conseguir uma norma
de conduta e comportamento, com que se identificasse ao Criador, de quem é
"imagem e semelhança" (Gn 1,26s) a fim de se estabelecer uma comunhão de vidas:

"2085 - O Deus único e verdadeiro revela, primeiro, a sua glória a Israel (cf. Ex
19,16-25; 24,15-18). A revelação da vocação e da verdade do homem está ligada à
revelação de Deus. O homem tem a vocação de manifestar Deus pelo seu agir, em
conformidade com a sua Criação, "à imagem e semelhança de Deus" (Catecismo da
Igreja Católica).

Ainda e por outro lado as "palavras" então pronunciadas diretamente por Deus não
se confinavam apenas a um grupo de israelitas ali presentes assistindo a uma
teofania, mas traçavam normas destinadas à unificação e comunhão de vidas em
torno de uma fé comum, mantendo-o em todas as suas gerações e para sempre coeso
em vista de um objetivo bem maior do que poder-se-ia ao menos imaginar. Tudo o
que ali se plantava se destinava à Obra da Redenção, era a semente da cristandade
que se esboçava em linhas ainda tímidas, mas que seriam provadas no cadinho do
peregrinar pelo deserto e em toda a História do Povo Primogênito de Deus,
"primícias da glória de Deus" anunciando a farta colheita "de uma multidão de
outros povos de que seria pai Abraão" (Gn 17,3):

"Agora, pois, se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha Aliança, sereis a minha
propriedade peculiar entre todos os povos, porque minha é toda a terra; e vós sereis
para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa. São estas as palavras que
falarás aos filhos de Israel" (Ex 19,5-6).

Por causa disso, da missão irradiadora de seu "sacerdócio e nação santa", a


severidade das determinações e muitas vezes as punições até mesmo dramáticas em
caso de violação dos preceitos (Ex 21,14.17.23-25...), passando a ser conhecidas
como Os Dez Mandamentos. Era necessário, em vista das vicissitudes por que
passaria e que o amadureceria, povo ainda em gestação, levando-o à tomada de
consciência de sua própria identidade e missão. Necessário também tendo em vista
a paz e a segurança de todos bem como a da própria nacionalidade nascente.
1º) "... falou Deus todas estas palavras..." - Moisés no futuro ficará preocupado
com o Povo de Israel depois de sua morte e pronuncia uma série de discursos que
lhe serviria de orientação. Em um deles vai lembrá-lo de que:

"Chamou, pois, Moisés a todo o Israel, e disse-lhes: Ouve, ó Israel, os estatutos e


preceitos que hoje vos falo aos ouvidos, para que os aprendais e cuideis em os
cumprir. O Senhor nosso Deus fez uma Aliança conosco em Horeb. Não com
nossos pais fez o Senhor essa Aliança, mas conosco, com todos nós que hoje
estamos aqui vivos. Face a face falou o Senhor conosco no monte, do meio o
fogo. Estava eu nesse tempo entre o Senhor e vós, para vos anunciar a palavra do
Senhor; porque tivestes medo por causa do fogo, e não subistes ao monte, dizendo
ele: Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da
servidão. Não terás outros deuses diante de mim" (Dt 5,1-7).

"Não com nossos pais fez o Senhor essa Aliança, mas conosco, com todos nós
que hoje estamos aqui vivos. Face a face falou o Senhor conosco no monte, do
meio o fogo..." - Moisés lembra-lhes a teofania por todos presenciada, vista e
ouvida que indicava, pela demonstração de majestade e poder, a origem do que se
convencionou denominar de Decálogo (= Dez Palavras), ou de Dez Mandamentos,
vinculando-o, e também todo o episódio, à Aliança, donde a denominação que lhe
seria mais apropriada de Lei da Aliança. É um desses fatos espantosos que
compõem a História do Povo de Israel, e se tornou um legado do cristianismo, que
evidenciam por si só a presença de um Deus Pessoal e Dinâmico a conduzir
inexoravelmente a história humana para Seu Desígnio, para aquela intimidade,
familiaridade e comunhão de vidas do Jardim do Éden. O mesmo Deus que
"passeava pelo Jardim à brisa do dia" (Gn 3,8) agora se manifesta no Monte Sinai
(ou Horeb) num encontro inesquecível com o mesmo Homem e lhe diz:

"Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão. Não
terás outros deuses diante de mim" (Ex 20,2-3).

É necessário um exame dessa frase para dimensionar o que fora transmitido e


recebido pelos Israelitas ao ouvi-la. Em primeiro lugar é um Deus que demonstrou
amar os "Filhos de Abraão" ali remanescentes libertando-os de uma servidão e que
por isso merece uma demonstração de amor como resposta. Em seguida começam-
se as formas de se dar a resposta, como reconhecimento e que só pode ser outra
demonstração de amor e de fidelidade em retribuição. Por isso ela vem expressa em
uma forma negativa do imperativo, após uma expressão tangencial, deixando de ser
assim uma ordem imperativa positiva e direta, como aquelas da Criação ou aquelas
após o pecado, tal como se pode observar:

"...Frutificai e multiplicai-vos; enchei a terra e sujeitai-a; dominai..." (Gn 1,18)

"...em dor darás à luz filhos (...) e ele te dominará. E ao homem disse: (...) maldita
é a terra por tua causa; em fadiga comerás dela (...) comerás das ervas do campo.
(...) comerás o teu pão, até que tornes à terra, porque dela foste tomado; porquanto
és pó, e ao pó tornarás" (Gn 3,16-19).
"Frutificai..., multiplicai..., enchei... sujeitai...; dominai" "darás...,
...dominará..., ...maldita é..., comerás..., ao pó tornarás" são expressões
imperativas positivas, enquanto que no Decálogo há uma maneira diferente de
ordenar, da forma "... não terás...", após uma ampla e carinhosa exposição de
motivos tal como um pai dizendo ao seu filho:

"Eu sou o teu pai que te sustento e paguei a tua escola com muita dificuldade e
trabalho; não me trairás, não darás ouvidos a estranhos e não te desviarás de mim,
não perderás o ano escolar."

Seria isso uma ordem? Parece mais um pedido, um apelo de amor, feito após a
prática de um ato que o tenha demonstrado, como se dissesse:

"Fui Eu quem livremente te libertou da escravidão: não me troques por outro Deus,
que nada fez por ti: Não terás outros deuses diante de mim. Não farás para ti
imagem esculpida, nem figura alguma do que há em cima no céu, nem em baixo na
terra, nem nas águas debaixo da terra. Não te encurvarás diante delas, nem as
servirás..."

Eis ai o motivo do pedido, no perigo de desvio do Israelita para a prática de então de


se adorar vários ídolos, de servir a vários deuses, entre os quais Iahweh não deveria
ser incluído "porque eu, o Senhor teu Deus, sou Deus ciumento, que vingo a
iniqüidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração daqueles que me
odeiam e uso de misericórdia até mil gerações com os que me amam e guardam os
meus mandamentos". Esta última frase causa certa repulsa por transparecer que
Deus vinga nos filhos o erro dos pais, mas não é assim. Lançando a semente do
monoteísmo, Deus está dizendo que enquanto os deuses dos pagãos não se
incomodam em se enfileirar junto com outros num "panteão", Iahweh não aceita
outro ao seu lado como igual ou ser considerado outro dentre os deuses. Soava
então para o Israelita a obrigação de adorar somente a Ele, lembrando-se de que
enquanto as conseqüências de um ato "dos que me odeiam" (um pecado) atingem
"três ou quatro gerações", a "sua misericórdia com aqueles que o amam atinge mil
gerações", isto é, vai até o infinito, naquele tempo representado pelo número mil. É
uma demonstração da dimensão da misericórdia de Deus, que não é atingido e não
se altera, em si, face ao desvio por causa do pecado; e, cujo efeito somente ao
próprio Homem atinge e é ele mesmo quem o provoca, repercutindo nos
descendentes por causa de uma solidariedade mais sensível naquele tempo por estar
alicerçada numa dinâmica tribal e patriarcal. O israelita de então não vivia só e
numa comunidade sempre se correlaciona, e os efeitos danosos de um ato contra
Deus não se limitam a quem o praticou apenas, mas atinge os seus contemporâneos,
pela violação das Leis da Aliança e seus efeitos sociais. Mesmo assim porém a
relação proporcional entre a "vingança" e a "misericórdia" de Deus é infinita, que
em números seria de mil para três ou quatro unidades. É a impossibilidade de se
conjugar outro deus juntamente com Iahweh por ser "ciumento", cujas
conseqüências deste ato de infidelidade ou fidelidade respectivamente não ficará
impune ou sem recompensa, mas se refletirá para sempre, seja pelo cultivo e
colheita dos efeitos do pecado, seja pela libertação do mesmo pecado, conduzindo a
própria vida a atingir a sua vocação natural. Para um grupo humano permanecer
unido e coeso é indispensável uma fé comum, unida e exteriorizada em uma
codificação comum de procedimento moral, ligada a um só Deus e um só
"Mandamento", principalmente pela missão de "povo de sacerdotes e nação santa"
que era. Nenhuma infidelidade poderia ocorrer, seja ela individual seja coletiva.

É necessário destacar aqui que este "Primeiro Mandamento" ou "Primeira Palavra"


vai crescer, transformar e se tornar bem mais aprofundado após a peregrinação dos
israelitas pelo deserto, a ponto de registrar no livro de Deuteronômio amplo
desenvolvimento enriquecendo-se o sentido de se "amar a Deus" (Dt 5-11), que com
Jesus foi ratificada nesses termos:

"Os fariseus, quando souberam, que ele fizera emudecer os saduceus, reuniram-se
todos; e um deles, doutor da lei, para o experimentar, interrogou-o, dizendo: Mestre,
qual é o grande mandamento na lei? Respondeu-lhe Jesus: Amarás ao Senhor teu
Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento. Este é
o grande e primeiro mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás ao teu
próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a lei e os
profetas" (Mt 22,34-40).

Esse fato comprova a qualidade de Mandamentos de Amor, dando-lhe validade


perene para a salvação, tal como confirmada pelo mesmo Jesus:

"E eis que se aproximou dele um jovem, e lhe disse: Mestre, que farei para
conseguir a vida eterna? Respondeu-lhe ele: (...) se queres entrar na vida, guarda
os mandamentos..." (Mt 19,16-19).

Não é diferente o que ensina a Igreja ainda atualmente:

"2083 - Jesus resumiu os deveres do homem para com Deus nesta palavra: "Amarás
o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma, com toda a tua
mente (Mt 22,37; cf. Lc 10,27: "e com todas as tuas forças"). Esta palavra é o eco
imediato ao apelo solene: "Escuta, Israel: o Senhor nosso Deus é o único" (Dt 6,4-
5).

"Deus foi o primeiro a amar. O amor do Deus único é lembrado na primeira das
"Dez Palavras". Em seguida, os mandamentos explicitam a resposta de amor que o
homem é chamado a dar ao seu Deus" (Catecismo da Igreja Católica).

2.º) O CULTO DAS IMAGENS - Muitos cristãos, até mesmo entre os católicos,
têm séria dificuldade com o que se entende ser uma proibição de veneração de
imagens, principalmente em uso na Igreja Católica, pelo que se impõe uma análise
mais detida a partir do texto original:

"Não farás para ti imagem esculpida, nem figura alguma do que há em cima no céu,
nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra" (Ex 20,4).
Analisando-se este versículo apenas, isoladamente, só se pode deduzir que não se
pode reproduzir numa imagem qualquer objeto, seja ele o que for. Nessas condições
vai se chegar ao absurdo de que nem mesmo uma fotografia com a imagem dos pais
ou de uma paisagem poder-se-ia confeccionar. E, atualmente seria de se precaver
até mesmo contra as imagens da tela de um televisor, assim como os heróis ou as
figuras da história de um povo não poderiam ter nem mesmo o seu busto em praça
pública. Porém, quando se analisa o referido versículo em conjunto com todo o
contexto em que foi escrito e considerando-se o que lhe antecede e o que lhe segue a
conclusão muda de perspectiva, ou seja:

 "Não terás outros deuses diante de mim"


 "Não farás para ti imagem esculpida, nem figura alguma do que há
em cima no céu, nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo da
terra"
 "Não as adorarás nem as servirás..."

Assim dispostos vê-se que a preocupação de Deus é a confecção de ídolos que


fossem objeto de adoração juntamente com Ele ou em Seu lugar ("Não terás outros
deuses diante de mim"). Não se pode deixar de lado que já fora fixada a aceitação
do Povo de Israel pela Aliança em resposta ao que Deus lhe dissera: "Tudo o que
Iahweh disse, nós o faremos" (Ex 19,5-8).

Assim, a principal norma da Aliança era essa de fidelidade impar e exclusiva ao


Deus que os libertou do Egito, "não adorando nem servindo" a outro deus que além
de estranho nada por eles fizera ("Não farás para ti imagem esculpida, nem figura
alguma do que há em cima no céu, nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo
da terra. Não as adorarás nem as servirás...").

Tanto é assim que nem mesmo em Israel essa disposição era assim tão radical ou
pacífica, existindo exemplos de confecção de imagens por determinação do próprio
Iahweh tanto na representação dos querubins na Arca da Aliança (Ex 25,18-21)
como na da serpente de bronze no deserto (Nm 21,8s). Existem também de outras
imagens no Templo construído por Salomão em Jerusalém tais como as de
querubins (1Rs 6,23-29), as dos doze touros do Mar de Bronze (1Rs 7,25); e, várias
imagens de querubins, bois, romãs, botões e flor de amêndoa esculpidos e dispostos
em muitos outros locais (Ex 25,31; 1Rs 6,29.32.35; 7,18s.29.36.42; 1Cro 28,18;
2Cro 3,10) e as dos leões do trono do próprio Salomão (1Rs 10,19s). Também, a
confecção por Gedeão de um éfode, que tinha quase sempre a forma de uma
imagem cultual, usada para adivinhação (Jz 8,24-27), existindo também outro junto
da espada tomada de Golias (1Sm 21,10a) e até mesmo um tipo para se tirar a sorte
(1Sm 14,3.18s.37.41; 23,6.9s; 30,7s) . Destaca-se até mesmo o caso de uma imagem
(éfode e terafim) colocada em um nicho, que foi servida por um sacerdote levita,
que vale a pena reproduzir, eis que, apesar de alguns comentários do narrador,
indicam o seu uso entre os israelitas:
"Quando ele restituiu o dinheiro a sua mãe, ela tomou duzentas moedas de prata, e
as deu ao ourives, o qual fez delas uma imagem esculpida e uma de fundição, as
quais ficaram em casa de Mica. Ora, tinha este homem, Mica, um santuário e fez
um éfode e terafins, e consagrou um de seus filhos, que lhe serviu de sacerdote.
Naquelas dias não havia rei em Israel e cada qual fazia o que parecia bem aos seus
olhos. E havia um jovem de Belém de Judá, da família de Judá, que era levita, e
peregrinava ali. Este homem partiu da cidade de Belém de Judá para ir estabelecer-
se onde pudesse. Seguindo ele o seu caminho, chegou à região montanhosa de
Efraim, à casa de Mica, o qual lhe perguntou: Donde vens? E ele lhe respondeu:
Sou levita de Belém de Judá, e vou peregrinar até me estabelecer onde achar
conveniente. Então lhe disse Mica: Fica comigo, e sê-me por pai e sacerdote; e cada
ano te darei dez moedas de prata, o vestuário e o sustento. E o levita entrou.
Consentiu, pois, o levita em ficar com aquele homem, e lhe foi como um de seus
filhos. E Mica consagrou o levita, que lhe serviu de sacerdote, e ficou em sua casa.
Então disse Mica: Agora sei que o Senhor me fará bem, porque tenho um levita por
sacerdote" (Jz 17,4-13).

Apesar de dizer que "naqueles dias não havia rei em Israel e cada qual fazia o que
parecia bem aos seus olhos", em virtude de não se haver ainda definido o local do
"único santuário" (Dt 12,4-9 / Ex 20,24; 25,8s), as imagens aqui erigidas eram
anteriormente servidas pelo sacerdócio segundo o costume, pelo "primogênito", é
claro ("e consagrou um dos seus filhos"), e depois por um sacerdote levita
(domiciliado em Judá), tal como então oficializado para o culto (Nm 8,15-18). Estes
ídolos e imagens foram apropriados pelos danitas e levados a Silo (Jz 18,15-31). Por
ai se vê que mesmo em Israel a questão não tinha uma conotação tão literal e não se
pode deixar de lado a dos Bezerros de Ouro (Ex 32), que serão futuramente erigidos
por Jeroboão um em Betel e outro em Dã (1Rs 12,26-33), apesar da crítica ferrenha
de vários profetas quanto aos últimos, causada as mais das vezes por uma
indignação política, provocada pela separação havida do Reino do Norte,
desligando-se da Nação Israelita (cfr. Am 4,4; 5,5s; 7,9; Os 8,5; 13,2).

Assim a proibição do Decálogo só pode ser a de se confeccionar imagens para se


"adorar", isto é, "prestar-lhes culto no lugar de Deus", reconhecendo-se um criador e
senhor diferente (Ex 20,23; 22,19; 23,24s.32s), na condição "servo", em franca e
ostensiva violação da Aliança. Já a "veneração" tem o sentido de se honrar a
santidade, obra de Deus pela Redenção em Seu Filho, melhor esclarecido pelo
Catecismo da Igreja Católica, nºs. 2129 - 2132:

"IV. "Não farás para ti qualquer imagem esculpida"

"2129 - Esta disposição divina comportava a interdição de qualquer representação


de Deus por mão do homem. O Deuteronômio explica: "Tomais cuidado convosco;
não vistes figura alguma, no dia em que o Senhor vos falou do meio do fogo, no
Horeb. Evitai, pois, perverter-vos, fabricando qualquer ídolo como representação ou
símbolo do que quer que seja" (Dt 4,15-16). Deus que Se revelou a Israel é
absolutamente transcendente. "Ele é tudo", mas, ao mesmo tempo, "está acima de
todas as suas obras" (Eclo 43,27-28). Ele é "a própria fonte de toda a beleza
criada" (Sb 13,3).

2130 - No entanto, já desde o Antigo Testamento Deus ordenou ou permitiu a


instituição de imagens, que conduziriam simbolicamente à salvação pelo Verbo
Encarnado: por exemplo, a serpente de bronze (cfr. Nm 21,4-9; Sb 16,5-14; Jo
3,14-15), a arca da aliança e os querubins (cfr. Ex 25,10-22; 1Rs 6,23-28; 7,23-
26).

2131 - Com base no mistério do Verbo Encarnado, o sétimo Concílio Ecumênico,


de Nicéia (ano de 787) justificou, contra os iconoclastas, o culto dos ícones: dos de
Cristo, e também dos da Mãe de Deus, dos anjos e de todos os santos. Encarnando,
o Filho de Deus inaugurou uma nova "economia" das imagens.

2132 - O culto cristão das imagens não é contrário ao primeiro mandamento, que
proíbe os ídolos. Com efeito, "a honra prestada a uma imagem remonta ao modelo
original" (S. Basílio, Spir. 18,45) e "quem venera uma imagem venera nela a
pessoa representada" (Conc. II de Nicéia: DS 601; cf. Concílio de Trento: DS
1821-1825; Concílio do Vaticano II: SC 126; LG 67). A honra prestada às
santas imagens é uma "veneração respeitosa", e não uma adoração, que só a Deus se
deve:

"O culto da religião não se dirige às imagens em si mesmas como realidades, mas olha-as
sob o seu aspecto próprio de imagens, que nos conduzem ao Verbo Encarnado. Ora, o
movimento que se dirige à imagem enquanto tal não se queda nela, mas passa à realidade de
que é imagem (S. Tomás de Aquino, Summa Theologica, 2-2,81,3,ad3)."

A imagem se torna então um meio material e até mesmo didático ou pedagógico,


principalmente durante a oração, que usa o sensível para se atingir mentalmente a
Santidade que o Verbo Encarnado trouxe ao Homem. Seria como que um meio
sensível de se vislumbrar "imagi"nariamente o sobrenatural e santo, obra exclusiva
de Deus, pois "Deus é que santifica" (Lv 19,2 / 20,8). O culto assim não se fixa
nela, mas se dirige desde o início da invocação, a Deus, ao único Autor da
Santidade ali representada. E, até mesmo o próprio Jesus se identifica com a
imagem da serpente de bronze confeccionada no deserto, ao dizer a Nicodemos:

"E como Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do
homem seja levantado; para que todo aquele que nele crê tenha a vida eterna"
(Jo,3,14-15).

Ao dizer isso quis significar mentalmente a imagem de Sua Morte Redentora Na


Cruz, para que Nicodemos A unisse didaticamente à imagem da serpente que
Moisés levantou no deserto para curar os israelitas, Ele que curaria o Homem das
chagas do pecado:

"Porque os que dantes conheceu, também os predestinou para serem conformes à


imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos..."
(Rm8,29)

"Ele nos tirou do poder das trevas, e nos transportou para o reino do seu Filho
amado; em quem temos a redenção, a saber, a remissão dos pecados; o qual é
imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação..." (Col 1,13-15).

3.º) - "Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão; porque o Senhor não terá
por inocente aquele que tomar o seu nome em vão" - Emprega-se o nome de Deus
em vão quando for "à toa", sem motivo, ou por razões fúteis e sem nenhuma
necessidade. Mas, para o Israelita, além disso, como são indestacáveis e
inseparáveis da pessoa o nome e a palavra, no que se refere a Iahweh Deus, o Seu
Nome detém Sua Santidade e, Sua Palavra o Seu Poder, e ambos a Sua Majestade.
Assim, "tomar-lhe o nome em vão" é um indesculpável desrespeito que Deus "não
terá como sendo fruto de inocência, sem culpa". A causa principal disso é o mau uso
que se pode fazer em juramentos falsos em que Deus é colocado como
"testemunha" para afiançar aquilo que falsamente se afirma (Lv 19,12), além do uso
supersticioso do Seu Nome para a prática da magia, ou pelos necromantes, em
busca de efeitos fantasiosos até mesmo nos ritos pagãos pelo poder de que se
apodera e adquire quem O pronuncia (Lv 19,31; 20,6.27; Nm 23,23; Dt 18,10-12).
Tais costumes seriam intoleráveis para o Povo dos Filhos de Israel pela corrupção
que produziriam no meio comunitário em formação, ferindo com uma insuperável
desunião ou conflitos de sérias conseqüências a fé e a Aliança.

4.º) "Lembra-te do dia do sábado, para o santificar. Seis dias trabalharás, e farás
todo o teu trabalho; mas o sétimo dia é o sábado do Senhor teu Deus. Nesse dia
não farás trabalho algum, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem o teu servo,
nem a tua serva, nem o teu animal, nem o estrangeiro que está dentro das tuas
portas. Porque em seis dias fez o Senhor o céu e a terra, o mar e tudo o que neles há,
e ao sétimo dia descansou; por isso o Senhor abençoou o dia do sábado, e o
santificou" - O respeito pelo dia de sábado já existia antes da promulgação das Leis
da Aliança, como se vê por ocasião do Maná (Ex 16,22-30). No entanto, aqui, vai se
vincular à Aliança, base de toda a estrutura do Decálogo:

"Disse mais o Senhor a Moisés: Falarás também aos filhos de Israel, dizendo:
Certamente guardareis os meus sábados; porque isso é um sinal entre mim e vós
pelas vossas gerações; para que saibais que eu sou o Senhor, que vos santifica.
Portanto guardareis o sábado, porque santo é para vós; aquele que o profanar
certamente será morto; porque qualquer que nele fizer algum trabalho, será
exterminado do meio do seu povo. Seis dias se trabalhará, mas o sétimo dia será
o sábado de descanso solene, santo ao Senhor; qualquer que no dia do sábado
fizer algum trabalho, certamente será morto. Guardarão, pois, o sábado os filhos
de Israel, celebrando-o nas suas gerações como aliança perpétua. Entre mim e
os filhos de Israel será ele um sinal para sempre; porque em seis dias fez o
Senhor o céu e a terra, e ao sétimo dia descansou, e achou refrigério" (Ex 31,12-
17).
Pela consagração do sábado é testemunhado por Israel a sua fé em Iahweh,
separando-o dos outros dias e assim santificando, e principalmente demonstrando
por um ato externo que lhe atingia a vida material, deixando de trabalhar junto com
os seus serviçais e até mesmo escravos, a sua fidelidade à Aliança. O sábado vai
assim juntar-se à circuncisão como sinal visível de uma adesão ao Povo dos Filhos
de Israel. Por ai se vê a seriedade da instituição pelo que a sua violação seria sinal
de quebra de unidade nacional trazendo sério perigo de ordem até mesmo social,
pelo que a reação do meio deveria ser mesmo extremada.

Para melhor compreensão da origem e significado da "instituição da consagração do


sábado" é oportuno aqui a transcrição do que consta do Capítulo 1 deste Curso,
quando da narrativa da Criação:

"O escritor bíblico ao idealizar os acontecimentos do passado mesclou-os com a


cultura de então, levando para a origem ou para a Criação as instituições vigentes no
seu tempo, ai localizando-as, tal como que justificando-as. É o caso do sábado,
como é conhecido o sétimo dia da semana. Com base no que já vimos podemos
compreender o significado dado originariamente a ele, e qual o seu sentido
religioso:

"Assim foram terminados o céu e a terra e todo o seu exército. E no sétimo dia
Deus deu por terminada a obra por ele feita; e no sétimo dia cessou de toda a
obra que havia feito; e, por isso, deus abençoou o sétimo dia e o santificou,
porque nele cessou de toda a obra que, ele, criando, tinha feito. Esta é a geração
do céu e da terra na sua criação" (Gn 2,1-4).

A palavra "cessar" em hebraico pronuncia-se mais ou menos "shabbat", de onde


nos veio o nome e a pronúncia do sétimo dia da semana, do sábado, tal como é
conhecido. Nesse trecho não se trata da instituição do respeito ao sábado, mas de
explicar a sua distinção entre os outros dias, a ponto de se lhe vedar nele todo e
qualquer trabalho. Não se trata de um "repouso de Deus", propriamente falando,
Deus não precisa de repouso algum (Jo 5,17), mas do dia em que termina a
Criação e lhe dá o acabamento final, "abençoando-a". E, quando Deus abençoa,
fecunda e "energiza" para que cumpra a sua finalidade, conforme os Seus
Desígnios, tal como abençoara os animais e o homem ao criá-los. Não se trata de
fecundar e "energizar" um dia tornando-o fértil para a "reprodução de outros dias
iguais", mas de imprimir na Obra da Criação as leis que lhe são peculiares,
fecundando-a e "energizando-a" para que prossiga de conformidade com seus
desígnios, abençoando-a toda. Deus cessa de criar, apenas, tal como o próprio
Jesus nos revela, mas não cessa de governar:

"...: meu pai trabalha sempre e eu também trabalho" (Jo 5,17).

Deus nada criou sem motivo e sem meta a atingir, muito menos para destruir. Daí
porque Deus "santificou" o sétimo dia, qual seja, num sentido bíblico, "separou",
distinguiu. Aparece então com toda a clareza a irreversibilidade e inexorabilidade
da criação:
"Enquanto durar a terra, semeadura e colheita, frio e calor, verão e inverno, dia e
noite não há de faltar" (Gn 8,22)."

Pelo exposto se pode deduzir Deus "cessou" de criar no "sétimo dia", no início dos
tempos quando ainda não se dera nomes aos dias da semana e nem se denominava
"sábado", tendo por origem etimológica o verbo hebraico "shabbat", cujo
significado é "cessar de fazer o que se está fazendo e retornar ao anterior estado",
motivo que levou a se dizer que Deus "repousou". Por isso, o Homem, "imagem e
semelhança de Deus" também "repousa", "cessa o que faz e volta ao estado
anterior", "descansa e guarda o sétimo dia", passando para a fé praticada essa
terminologia e ficando assim conhecido.

DOMINGO OU SÁBADO? - "Seis dias trabalharás, e farás todo o teu


trabalho; mas o sétimo dia é o sábado do Senhor teu Deus" - Pelo fato de muitos
adotarem a guarda do domingo em vez do sábado, alguns cristãos ficam com
escrúpulo, entendendo que não se observa o mandamento. Mudando-se para o "dia
do senhor" (que é o significado da palavra "domingo") não se desrespeita o
preceito eis que se trabalha "seis dias e se cessa no sétimo", cumprindo-o na
íntegra. De maneira mais clara verifica-se que se trabalha segunda (1.° dia), terça
(2.° dia), quarta (3.° dia), quinta (4.° dia), sexta (5.° dia) e sábado (6.° dia), isto é,
"seis dias" como manda o estatuto e se "cessa" o trabalho no domingo (7.° dia) -
isto é, "trabalha-se seis dias e "descansa-se" no sétimo".

É que, em virtude de ocorrer no "Primeiro Dia da Semana" a Ressurreição de Cristo


(Mt 28,1; Mc 16,1-2; Lc 24,1; Jo 20,1) e o Dia de Pentecostes (At 2,1-40 / Lv
23,15-16) os primeiros cristãos passaram a guardá-lo como "o dia do senhor", em
lugar do sábado dos israelitas, não sem luta e relutância de alguns, que a isso se
opunham. Não é outro o motivo por que existem tantos episódios nos Evangelhos
onde se narram várias atitudes de Jesus ocasionando os desencontros com os chefes
religiosos dos judeus, acusando-o de violá-lo (Mt 12,1-8.9-21; Mc 1,21-28; 2,23-28;
3,1-6; Lc 4,31-37.38-39; 6,1-5.6-11; 13,10-17; 14,1-6; Jo 5,7-15; 9,13-25), que nada
mais são que justificações da permissibilidade da mudança, pois "o Filho do
Homem é Senhor do sábado" (Mt 12,8).

Por outro lado, há uma narrativa que nos mostra um acontecimento muito útil para
se entender o que ocorria naqueles dias dos primórdios quando do entrechoque das
duas culturas:

"No primeiro dia da semana, tendo-nos reunido a fim de partir o pão, Paulo,
que havia de sair no dia seguinte, falava com eles, e prolongou o seu discurso até a
meia-noite" (At 20,7).

"No primeiro dia da semana, tendo-nos reunido a fim de partir o pão..." -, isto
é, "reuniram-se no domingo (=primeiro dia da semana) para a Eucaristia (= a fim de
partir o pão)", tendo Paulo " prolongado o seu discurso até a meia-noite" - Ora, o
horário dos judeus difere do nosso, eis que contam o dia a partir da nossa dezoito
horas até as dezoito horas do dia seguinte. Então partiam o pão à noite do nosso
sábado que já era domingo para eles, única possibilidade de Paulo haver
"prolongado o seu discurso até a meia noite". Outras referências existem que
confirmam a existência da reunião festiva no domingo (1Cor 16,2 e Ap 1,9-11).

Um outro dispositivo existe que evidencia outro aspecto da visão cristã do sábado,
identificando-se com o que dissera Cristo: "o sábado existe para o homem e não o
homem para o sábado" (Mc 2,27), manifestado por São Paulo:

"Portanto, ninguém vos julgue por questões de comida e de bebida, ou a respeito de


festas anuais ou de lua nova ou de sábados, que são apenas sombra de coisas que
haviam de vir, mas a realidade é o corpo de Cristo" (Col 2,16-17).

Também não é outro o ensino do Catecismo da Igreja Católica que doutrina e


explica suficientemente:

"2174 - Jesus ressuscitou de entre os mortos "no primeiro dia da semana (Mt 28,1;
Mc 16,2; Lc 24,1; Jo 20,1). Enquanto "primeiro dia", o dia da Ressurreição de
Cristo lembra a primeira Criação. Enquanto "oitavo dia", a seguir ao shabbat (Mc
16,1; Mt 28,1), significa a nova Criação, inaugurada com a Ressurreição de Cristo.
Este dia tornou-se para os cristãos o primeiro de todos os dias, a primeira de todas
as festas, o dia do Senhor ("Hé kuriaké hémera", "dies dominica"), o "Domingo":

"Reunimo-nos todos precisamente no dia do Sol, não só porque foi o primeiro dia em que
Deus, transformando as trevas e a matéria, criou o mundo, mas também porque Jesus
Cristo, Nosso Salvador, nesse dia ressuscitou dos mortos (São Justino, Apol. 1,67)"

"2175 - O Domingo distingue-se expressamente do shabbat, ao qual sucede


cronologicamente, em cada semana, e cuja prescrição de caráter cerimonial substitui
para os cristãos. O Domingo completa, na Páscoa de Cristo, a verdade espiritual do
shabbat judaico e anuncia o descanso eterno do homem em Deus. Porque o culto da
Lei preparava para o mistério de Cristo e o que nela se praticava era figura de algum
pormenor relativo a Cristo (1Cor 10,11):

Os que viveram segundo a Antiga Aliança alcançaram uma nova esperança, não
guardando já o sábado mas celebrando o dia do Senhor, porque nesse dia surgiu a
nossa vida, fruto da sua morte (Santo Inácio de Antioquia, Mgn 9,11).

2176 - A celebração do Domingo é o cumprimento da prescrição moral,


naturalmente inscrita no coração do homem, de "prestar a Deus um culto exterior,
visível, público e regular, sob o signo do seu benefício universal para com os
homens" (S. Tomás de Aquino, Summa Theologica 2-2, 122,4). O Culto
Dominical cumpre o preceito moral da Antiga Aliança, cujo ritmo e espírito retoma,
ao celebrar em cada semana o Criador e o Redentor do Seu Povo."
Facilmente se constata que o Culto do Domingo é o mesmo Culto do Sábado, não
havendo motivo para o receio de descumprimento do conhecido "mandamento" da
Lei de Deus.

5.º) " Honra a teu pai e a tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que
o Senhor teu Deus te dá" - Até aqui o Decálogo gira em torno da adoração a Deus
com a exclusão de qualquer outro, cujo nome nem ao menos pronunciar era lícito ao
Israelita (Ex 23,13). O seu culto só poderia se dirigir a Iahweh a quem invocaria
conforme as especificações dos quatro mandamentos já examinadas, cuja finalidade
e missão era mais ampla ainda:

"Porque o meu anjo irá adiante de ti, e te introduzirá na terra dos (..."outros
povos"...) e eu os aniquilarei. Não adorarás os seus deuses, nem os servirás, nem
imitarás as suas obras; antes os destruirás totalmente, e quebrarás de todo as suas
colunas. Servireis, pois, ao Senhor vosso Deus, ... (...) Não farás aliança alguma
com eles, nem com os seus deuses. ...pois se servires os seus deuses, certamente
isso te será uma armadilha" (Ex 23,23-25.31-33).

Após aquelas disposições de fidelidade a Iahweh o Decálogo vai começar a ordenar


o relacionamento das pessoas umas com as outras, com vistas na paz social e
comunitária, a começar com os pais, qual seja, em família, mesmo nômades e no
peregrinar a que se sujeitaram. Também fator indispensável para a paz num regime
tribal e patriarcal, onde tudo se centraliza no pai, chefe da tribo. Com referência a
esse mandamento São Paulo vai lembrar aos filhos:

"Vós, filhos, sede obedientes a vossos pais no Senhor, porque isto é justo. Honra a
teu pai e a tua mãe, que é o primeiro mandamento com promessa, para seres feliz e
teres uma longa vida sobre a terra" (Ef 6,1-3).

O mesmo regime patriarcal impõe as normas que são capazes de manter a paz
interna e de que depende para a própria sobrevivência, e elas passam a reger
coercivamente a conduta do grupo. Porém, nesse caso a coerção é mais interior,
vem de dentro da pessoa, de sua própria consciência religiosa e se impõe, se bem
que com uma promessa de recompensa. Basta para se comprovar isso o fato de que
não se diz "amar pai e mãe", mas se diz "honrar pai e mãe". Ora, o "amar" é uma
ação normal e natural no ser humano, mas o "honrar" vai mais longe e
independentemente do "amar" exige uma interiorização, concentração racional e um
esforço pessoal, algo mais que a própria natureza sentimental a agir. Mas isso não
acontece somente na vida nômade e mesmo quando do assentamento do Povo de
Israel na Terra Prometida não haverá modificação sensível nesse nem no conjunto
dos demais dispositivos, sofrendo apenas e tão somente aperfeiçoamentos.

Muitos destes dispositivos, que se manifestam no grupo social, não passaram a ser
observados somente após a sua promulgação, como se demonstrou com a existência
dos sacrifícios, mas já eram costumeiramente usados, com base na própria
experiência do grupo, fenômeno que ocorre com toda a legislação escrita. Assim,
quanto aos dispositivos "não matarás", "não cometerás adultério", "não furtarás" e
"não dirás falso testemunho contra o teu próximo" (Ex 20,13-16) dizem respeito aos
atos exteriores do homem, que ferem em cheio o próximo, prejudicando-o e com
isso sabotando a Paz Social, dispensando-se maiores comentários a respeito, cujos
efeitos danosos são sobejamente conhecidos. O que é necessário notar é a
necessidade de uma base comum centrada no espírito para a harmonia de um grupo
humano, sem o quê ela é impossível. É de se registrar porém que o adultério vai
sofrer modificação com Cristo que vai acabar com a poligamia dos judeus e instituir
a monogamia cristã, pelo que o adultério vai atingir também o homem, antes um dos
"privilégios" exclusivos da mulher.

Resta o Décimo Mandamento que diz "não cobiçarás a casa de teu próximo... nem
coisa alguma que lhe pertença," onde há uma originalidade que fere o preconceito
que se tem da cultura antiga, de ser assim como que superficial e sem profundidade.
Preste-se-lhe a devida atenção e ver-se-á que este mandamento procura atingir o
íntimo do Homem, seu recanto mais privado, onde alimenta as mais das vezes os
seus mais queridos sonhos e ideais e lhe diz: "não cobiçarás...!!! Vai falar-lhe no
mais íntimo de seu ser e evitar-se-á muitos males oriundos de uma cobiça
desenfreada e inescrupulosa.

Diferença notável é aqui o conceito de "próximo" aplicado a outro Israelita, que


Jesus irá estender a qualquer ser humano.

10. A ALIANÇA CONSUMA-SE COM O POVO DE ISRAEL

Terminada a exposição e promulgação pública dos dez mandamentos, o Povo de


Israel se manifesta e pede:

"Ora, todo o povo presenciava os trovões, e os relâmpagos, e o sonido da trombeta,


e o monte a fumegar; e o povo, vendo isso, estremeceu e pôs-se de longe. E
disseram a Moisés: Fala-nos tu mesmo, e ouviremos; mas não fale Deus conosco,
para que não morramos. Respondeu Moisés ao povo: Não temais, porque Deus veio
para vos provar, e para que o seu temor esteja diante de vós, a fim de que não
pequeis. Assim o povo estava em pé de longe; Moisés, porém, se chegou às trevas
espessas onde Deus estava. Então disse o Senhor a Moisés: Assim dirás aos filhos
de Israel: Vós tendes visto que do céu eu vos falei. Não fareis outros deuses de prata
junto a mim, nem deuses de ouro fareis para vós" (Ex 20,18-23).

Constata-se inicialmente a presença da expressão "...NÃO TEMAIS...", expressão


que surge sempre que um eleito se vê face a face com uma missão a que Deus o
convoca, tal como com Abraão, Isaac e Jacó, aqui com os Filhos de Israel e em
várias oportunidades no Novo Testamento (Gn 15,1; 26,24; 46,3; 50,19-21; Ex
20,20;...; Mt 1,20; 10,26.28.31; Lc 1,13.30;...), bem como quando da oposição que
as mais das vezes surge do desencontro da fé com as coisas do mundo. Aconteceu
isso com Abraão, ao recusar os despojos a que tinha direito (cfr. Gn 15,1), e que
desde a sua conversão teve que enfrentar inúmeras dificuldades, tendo que se afastar
de seu clã, garantia de sua segurança e sobrevivência naquele tempo. Numa época
em que se acreditava em vários deuses, cada clã ou tribo se formava em torno de um
deles. Já foi visto anteriormente e é até bom repetir, que quando Abraão deixa de
adorar o deus do clã (Jos 24,2) e passa a adorar Iahweh ou El Shaddai (Ex 6,3),
não poderia mais nele permanecer. São coisas da cultura do tempo em que se deram
tais fatos. Atualmente, e para qualquer pessoa, não é um problema insuperável se
afastar da família, do convívio dos conterrâneos ou da terra natal, e até mesmo da
religião. Pode-se viver praticamente em segurança em qualquer lugar do mundo.
Mas, nos dias de Abraão, era-lhe por demais comprometedora a sobrevivência.
Basta se lembrar que foi esse o castigo imposto por Deus a Caim (Gn 4,11-14), e, o
mesmo Abraão, sentiu-se obrigado a pedir que sua mulher Sara dissesse ser sua
irmã, por causa do perigo de ser morto para dela se apropriarem (Gn 12,10-13; 20,1-
7). Da mesma forma, não reteve os despojos advindos da sua vitória, libertando Lot
e os Reis reduzidos à escravidão (Gn 14,21-24). Se bem que, além da prudência,
havia também a sua consagração a Deus (Gn 14,22-23 / 2Rs 5,16) e, não
pertencendo a um clã que lhe servisse de suporte, adorando um deus desconhecido e
impotente face aos olhos do mundo de então, temeu. O próprio Deus vem então em
seu socorro, ocasião em que Abraão exala a sua ansiedade mais íntima: faltava-lhe
um filho, um herdeiro (Gn 15,1-6), a quem pudesse deixar os despojos como
herança. Sua consagração a Deus o situava em conflito com o mundo de então.

Quando o narrador situa essa manifestação de Iahweh "depois desses


acontecimentos..." a está situando após todos os fatos narrados desde a conversão
de Abraão, que modificara e dificultara por demais a sua vida. Não tendo filho, teria
que se contentar com um herdeiro que não era de sua descendência, como lhe exigia
a cultura do tempo. De tudo isso e da entrega incondicional, adveio-lhe o temor
seguido do consolo, que o próprio Deus lhe traz com o "não temas". Essa expressão
aparece também tanto na Anunciação de João Batista (a Zacarias) como na
Anunciação de Jesus Cristo (a Maria):

"Não temas, Abrão! Eu sou "Não temas, Zacarias, "Não temas, Maria!
o teu escudo, tua recompensa porque a tua súplica foi Encontraste Graça junto de
será muito grande" (Gn 15,1). ouvida..." (Lc 1,13). Deus..." (Lc 1,30).

Agora também ao Povo de Israel, ali no Monte Sinai, Moisés lhe dirige o "não
temas" vocacional, esclarecendo-se assim o motivo do "temor" então reinante face
a impressionante teofania (Ex 19,16-21), sem que ocorresse uma debandada geral. É
que não foi um temor ocasionado pelos mesmos motivos de um medo irracional,
que tudo submete ao instinto de conservação e provoca o desespero, o pânico e a
fuga. Era sim, aquele temor reverencial face ao sagrado do acontecimento e da
seriedade do compromisso para o que foram todos os Filhos de Israel
conscientizados, preparados e conduzidos, tal como nos casos dos demais eleitos.
Era o remate final de uma longa e difícil trajetória, marcada ainda pela
responsabilidade de outra tão espinhosa como a primeira missão, que se inicia com
duas novas situações. A primeira coloca Moisés como o interlocutor oficial dos
israelitas com Deus, quando se inicia como profeta (Dt 18,16-17):

"E disseram a Moisés: Fala-nos tu mesmo, e ouviremos; mas não fale Deus
conosco, para que não morramos" (Ex 20,19).

"Assim dirás aos Filhos de Israel (Ex 20,22) (...) Eis as leis que lhes proporás..." (Ex
21,1) - Moisés em nome de Deus, de acordo com o pedido deles, passa a descrever
alguns procedimentos costumeiros, firmando-os como normas de comportamento.
Com elas regulamenta oficialmente o relacionamento geral, a partir de sua
experiência como "juiz" (Ex 18,13-16), e cuja principal finalidade é a de manter a
paz comunitária, fruto da comunhão com Deus que se estabeleceria pelos sacrifícios
oferecidos e pela obediência aos preceitos delineados. É de se destacar a instituição
oficial de uma pena, mencionada desde Caim (Gn 4,14) e Lamec (Gn 4,14), espécie
de vingança legal que se resume em "tal dano tal punição", donde o nome de talião:

"Mas se resultar dano grave, então darás vida por vida, olho por olho, dente por
dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe
por golpe" (Ex 21,23-25).

Jesus vai revogar esse dispositivo, estabelecendo:

"Ouvistes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu, porém, vos digo que
não resistais ao homem mau; mas, a qualquer que te bater na face direita, oferece-
lhe também a outra; e ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica, larga-lhe
também a capa; e, se qualquer te obrigar a caminhar mil passos, vai com ele dois
mil" (Mt 5,38-41).

Os demais dispositivos se agrupam em ordenações acerca dos escravos (Ex 21,1-


11), leis contra os homicídios e lesões corporais (Ex 21,12-32), leis contra os danos
à propriedade privada (Ex 21,33-22,5), regulando o crédito e o empréstimo (Ex
22,6-14), quanto à violação de uma virgem (Ex 22,15-16), deveres para com os
inimigos e estrangeiros (Ex 23,1-9) e as leis morais e religiosas (Ex 22,17-30 /
23,10-33). Uma simples leitura será suficiente para se dimensionar a forma
rudimentar dos costumes de então principalmente no campo que atualmente se diz
dos direitos civil e penal. O que não se deve fazer é analisar tais dispositivos
confrontando-os com as conquistas modernas e definições ideológicas ou até
mesmo religiosas atuais, mas situá-los no seu devido tempo e procurar compreender
a cultura de então, para melhor penetrar nos meandros dos desígnios de Deus ali se
debatendo para se deixar conhecer, além de conduzir a História. Assim vão se
destacar as leis morais e religiosas como arremate final, iniciando com a
condenação da feiticeira, a morte do que praticar ato sexual com um animal, o
anátema para quem sacrificar a outros deuses, modo de se comportar com os
estrangeiros, a viúva ou órfão e principalmente com o "próximo", que naquele
tempo era outro Israelita (Ex 22,17-27). Quase ao final dessa minuciosa exposição
legal aparece uma frase aqui colocada como demonstração da finalidade de tudo:
"Ser-me-eis homens santos" (Ex 22,30).

Há uma relação legal entre o comportamento e a santidade, modo do Homem se


posicionar tal como "no princípio", "imagem e semelhança de Deus". Vai prosseguir
assim na casuística moral até desaguar, após os sábados (passa a se mencionar o
Ano Sabático junto com o dia do Sábado) nas festas religiosas de ordem pública,
obrigando os homens ao comparecimento diante do Senhor Deus, pelo que não se
menciona a Páscoa, que era uma festa mais íntima, familiar (Ex 23,13-19). Tudo se
encaminha para um desfecho em que transparece a missão de Israel junto aos povos
que seriam derrotados na conquista a que se destinam:

"Porque o meu anjo irá adiante de ti, e te introduzirá na terra dos ("nomeiam-se sete
povos") e eu os aniquilarei. Não te inclinarás diante dos seus deuses, nem os
servirás, nem farás conforme as suas obras; antes os derrubarás totalmente, e
quebrarás de todo as suas colunas. Servireis, pois, ao Senhor vosso Deus, e ele
abençoará o vosso pão e a vossa água; e eu tirarei do meio de vós as
enfermidades. (...) Não habitarão na tua terra, para que não te façam pecar contra
mim; pois se servires os seus deuses, certamente isso te será uma armadilha"
(Ex 23,20-33).

"Não te inclinarás diante dos seus deuses, nem os servirás, nem farás conforme
as suas obras; antes os derrubarás totalmente, e quebrarás de todo as suas
colunas...": Eis aqui a principal missão de Israel, a erradicação do culto a outros
deuses destruindo-os completamente juntamente com a fidelidade a Iahweh a quem
"servireis, pois, ao Senhor vosso Deus, e ele abençoará o vosso pão e a vossa
água; e eu tirarei do meio de vós as enfermidades". Tudo isso bem definido
Moisés se encaminha para a ratificação da Aliança, agora com o Povo dos Filhos de
Israel, a quem apresenta as condições ditadas por Deus:

"Veio, pois, Moisés e relatou ao povo todas as palavras do Senhor e todos os


estatutos; então todo o povo respondeu a uma voz: "Faremos tudo o que o Senhor
disse" (Ex 24,3).

Após a apresentação de todo o Código da Aliança, em adendo ao Decálogo, e a


adesão incondicional do Povo dos Filhos de Israel, o compromisso mútuo é selado
com o sangue de um sacrifício:

"Então Moisés escreveu todas as palavras do Senhor e, tendo-se levantado de


manhã cedo, edificou um altar ao pé do monte, e doze colunas, segundo as doze
tribos de Israel, e enviou certos jovens dos filhos de Israel, os quais ofereceram
holocaustos, e imolaram bois ao Senhor em sacrifícios pacíficos. E Moisés tomou
a metade do sangue, e a pôs em bacias; e a outra metade do sangue espargiu sobre
o altar. Também tomou o Livro da Aliança e o leu perante o povo; e o povo disse:
Tudo o que o Senhor disse nós faremos, e obedeceremos. Então tomou Moisés
aquele sangue, e espargiu-o sobre o povo e disse: Eis aqui o Sangue da Aliança
que o Senhor fez convosco através de todas estas cláusulas. (...) ... depois comeram
e beberam" (Ex 24,4-8.11c).
Aquela Aliança iniciada com Abraão é agora ratificada com os seus descendentes,
com aspersão de sangue num sacrifício com os Filhos de Israel (ou Jacó),
cumprindo-se a Promessa e continuando a busca do mesmo desígnio de Deus em
busca de estabelecer com o Homem a comunhão de vidas do Jardim do Éden:

"Eu farei de ti um grande povo, abençoar-te-ei, e engrandecerei o teu nome; e tu,


sê uma bênção" (Gn 12,2) / "...não mais serás chamado Abrão, mas Abraão será o
teu nome; pois te faço pai de muitas nações; far-te-ei frutificar extraordinariamente,
e de ti farei nações, e reis sairão de ti; estabelecerei a minha Aliança contigo e com
a tua descendência depois de ti em suas gerações, como Aliança perpétua, para ser o
teu Deus e de tua descendência depois de ti. Dar-te-ei a ti e à tua descendência
depois de ti a terra de tuas peregrinações, toda a terra de Canaã, em perpétua
possessão; e serei o seu Deus" (Gn 17,5-8).

É essa Aliança que se consumará definitivamente com Jesus Cristo:

"Semelhantemente também, depois de cear, tomou o cálice, dizendo: Este cálice é a


Nova Aliança em meu Sangue; fazei isto, todas as vezes que o beberdes, em
memória de mim" (1Cor 11,25).
ÊXODO
O Culto a Deus

1. FUNDAMENTOS GERAIS

O Povo dos Filhos de Israel foi denominado pelo próprio Deus de "meu filho
primogênito" (Ex 4,22), cujas características e implicações pertencentes ao
Instituto da Primogenitura de "primícia" e "sacerdócio" já se traduzia e lhe
conferia uma missão específica que a pouco e pouco se amplia e se esclarece:

"Assim fala o Senhor: Israel é meu filho, meu primogênito" (Ex 4,22)

"Agora, pois, se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha Aliança, sereis


a minha propriedade peculiar entre todos os povos, porque minha é toda a
terra; e vós sereis para mim um reino de sacerdotes e uma nação
santa..." (Ex 19,5-6)

"Quando o anjo marchar na tua frente e te introduzir na terra dos (..."vários


povos"...), e eu os exterminar, não adorarás os seus deuses, nem lhes
prestarás culto, imitando seus costumes. Ao contrário derrubarás e quebrarás
as suas colunas. Servireis ao Senhor vosso Deus, e ele abençoará teu pão e
tua água, e afastará do teu meio as enfermidades. (...) Não farás aliança com
eles nem com seus deuses. ...te fariam pecar contra mim: Servirias aos seus
deuses, e isso seria uma armadilha para ti" (Ex 23,23-33).

"... vós sereis para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa" conjuga-se com
"...não adorarás os seus deuses, nem lhes prestarás culto, imitando seus costumes;
ao contrário derrubarás e quebrarás as suas colunas; servireis ao Senhor vosso
Deus..." - com tais desígnios é fixada a mesma Missão da Difusão do Nome de
Deus, com e exclusão e eliminação de quaisquer outros. Assim, tal como desde
Abraão, para o testemunho da adoração a Iahweh, forçosamente é indispensável a
presença constante de um Altar de Sacrifício. Fazendo do Culto o Centro
Gravitacional da Aliança contraída, agora que ela se consuma no Monte Sinai e se
corporifica com o Povo de Deus, ratifica-se e recorda-se tanto a Missão como a
assumida fidelidade absoluta e exclusiva:

"Do nome de outros deuses nem fareis menção, nem se ouça da vossa boca"
(Ex 23,13)
"... se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha Aliança, sereis a minha
propriedade peculiar entre todos os povos, porque minha é toda a terra; e vós
sereis para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa..." (Ex 19,5-6).

Já não se trata de um relacionamento individual ou de uma tribo num regime


patriarcal, mas de estrutura mais ampla, como a de um povo, o Povo de Israel,
"separado" dentre outros povos que também são de Deus ("porque minha é toda a
terra"). Por isso, dadas as novas dimensões e exigências coletivas, estabelecem-se
normas para o culto principal da Aliança contraída, descrevendo-se inicialmente as
exigências básicas para a construção de um Altar de Sacrifícios, a mesma tradição
de Centro Gravitacional do Culto, agora do Povo dos Filhos de Israel:

"...Não me coloqueis entre os deuses de ouro ou de prata, deuses que não


devereis fabricar para vós. Deverás fazer para mim um altar de terra, sobre o
qual me oferecerás os holocaustos, os sacrifícios pacíficos, as ovelhas e os
bois. Em qualquer lugar em que fizer recordar o meu nome, virei a ti e te
abençoarei. Se me construíres um altar de pedra, não o faças de pedras
lavradas, porque ao manejar o cinzel contra a pedra, tu a profanarias..." (Ex
20,21-26).

"...Não me coloqueis entre os deuses de ouro ou de prata, deuses que não devereis
fabricar para vós" - é como de Deus dissesse: "não me incluam entre outros deuses
como num panteão, eu sou "o Deus verdadeiro e o Único Deus para vocês"; e, "um
altar de terra me farás..." (...) "E se me fizeres um altar de pedras, não o construirás
de pedras lavradas..." - Pode-se até ser denominado de "altar de campanha" ou de
"santuário peregrino" tal a forma rudimentar de sua construção para o uso durante a
peregrinação que fariam pelo deserto. Só poderia ser erguido havendo prévia
manifestação de Deus, em forma de "bênção" - algo de "fecundo ou fértil" que
acontecendo deixasse clara a Sua presença no local, agindo em benefício de todo o
povo. Moisés, então, em nome de Deus ("Estes são os estatutos que lhes proporás..."
- Ex 21,1), apresenta ao Povo ali reunido normas de comportamento em forma de
leis de aplicação quotidiana, oficializando o que já se praticava. Como todas elas
estão desordenadas e as mais das vezes mescladas com outros dispositivos é preciso
separá-las para melhor entendimento. Um exemplo explica melhor:

"Não deixarás com vida uma feiticeira. Quem tiver relações com um animal,
será punido de morte. Quem oferecer sacrifícios aos deuses, e não
unicamente ao Senhor , será condenado ao extermínio. Não maltrates o
estrangeiro nem o oprimas, pois vós fostes estrangeiros no Egito. Jamais
oprimas uma viúva ou um órfão. Se os oprimires, clamarão a mim e eu lhes
ouvirei os clamores. Minha cólera se inflamará e eu vos matarei à espada.
Vossas mulheres se tornarão viúvas, e órfãos os vossos filhos. Se
emprestares dinheiro a alguém de meu povo, a um pobre que vive ao teu
lado, não sejas um usurário. Não lhe deveis cobrar juros. Se tomares como
penhor o manto do próximo, deverás devolvê-lo antes do pôr-do-sol. Pois é
a única veste para o corpo, e coberta que ele tem para dormir. Se ele recorrer
a mim, eu o ouvirei, porque sou misericordioso. Não blasfemarás contra
Deus, nem injuriarás o príncipe do povo.28 Não atrasarás a oferta de tua
colheita e do teu lagar. Deverás dar-me o primogênito de teus filhos" (Ex
22,19-28).

Neste pequeno trecho que se escolheu para o exemplo, facilmente se destacam os


seguintes versículos que se referem estritamente ao relacionamento com Deus e ao
culto, sendo os demais de cunho moral, referindo-se ao comportamento individual,
inseparáveis para o Israelita:

"Não deixarás com vida uma feiticeira. (...) Quem oferecer sacrifícios aos
deuses, e não unicamente ao Senhor , será condenado ao extermínio. (...)
Não blasfemarás contra Deus, nem injuriarás o príncipe do povo. Não
atrasarás a oferta de tua colheita e do teu lagar. Deverás dar-me o
primogênito de teus filhos " (Ex 22,19-28).

Da mesma forma são inseridas aqui também normas para o culto tais como a
consagração dos "primogênitos dos filhos" para o sacerdócio, a oferenda dos "das
vacas e das ovelhas" (v. tb. Ex 13,12) e "as primícias dos primeiros frutos da tua
terra trarás à casa do Senhor teu Deus" (Ex 23,19), costume e sistema que será
oficializado futuramente para a manutenção do sacerdócio, destacando-se também
as "oferendas" e o "dízimo":

"Não atrasarás a oferta de tua colheita e do teu lagar. Deverás dar-me o


primogênito de teus filhos. O mesmo farás com o primogênito das vacas e
das ovelhas: ficará sete dias com a mãe, e no oitavo tu o entregarás a mim.
Sede homens santos para mim. Não comais carne de animal dilacerado no
campo, mas lançai aos cães" (Ex 22,28-30).

Todas essas normas foram integradas indestacavelmente na ratificação da Aliança


(Ex 24,3-8), destacando-se ainda as festas religiosas já então constando como
instituídas, eis que já do uso costumeiro, insistindo-se na exclusividade de Iahweh:

"Do nome de outros deuses nem fareis menção; nunca se ouça da vossa
boca. Três vezes no ano me celebrarás festa: A Festa dos Ázimos guardarás:
durante sete dias comerás pães ázimos como te ordenei, ao tempo apontado
no mês de Abibe, porque nele saíste do Egito. Ninguém apareça perante
mim de mãos vazias. Guardarás a Festa da Messe, a das Primícias do teu
trabalho de semeadura no campo; e, igualmente guardarás a Festa da
Colheita no fim do ano, quando tiveres recolhido do campo os frutos do teu
trabalho. Três vezes no ano todos os teus homens aparecerão diante do
Senhor Deus. Não oferecerás o sangue do meu sacrifício com pão levedado,
nem ficará da noite para a manhã a gordura da minha festa. As primícias dos
primeiros frutos da tua terra trarás à casa do Senhor teu Deus. Não cozerás o
cabrito no leite de sua mãe" (Ex 23,13-19).

Aparecem aqui três das festas religiosas dos Israelitas:

1.º) "A Festa dos Pães Ázimos" (Ex 23,15), criada à saída do Egito juntamente com
a Instituição da Páscoa (Ex 12,1-13 - 'Páscoa' / Ex 12,14-20 - 'Ázimos' = 'sem
fermento'):

"...Quando o Senhor te houver introduzido na terra (...) que ele jurou a teus
pais que te daria, terra que mana leite e mel, guardarás este culto neste mês.
Sete dias comerás pães ázimos, e ao sétimo dia haverá uma festa ao Senhor.
Sete dias se comerão pães ázimos..." (Ex 13,3-12).

2.º) "Guardarás a Festa da Messe ou De Pentecostes ou da Colheitas, e a das


Primícias do teu trabalho de semeadura no campo..." (Ex 23,16) - Esta festa agora
oficializada (cfr. tb. Ex 34,22) será regulamentada mais tarde, quando já na Terra
Prometida (Lv 23,15-22). O seu nome lhe advém do espaço de "sete semanas" ou
"cincoenta dias" ("Pentecostes", em grego), contados do início da colheita até o dia
da festa. Para os cristãos esta festa marcará o início das atividades missionárias da
Igreja com o "Batismo dos Apóstolos" (At 1,5) na "Vinda do Espírito Santo":

"Chegando o Dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar.


De repente veio do céu um ruído, como de um vento impetuoso, que encheu
toda a casa em que estavam sentados. E viram, então, uma espécie de
línguas de fogo, que se repartiram e foram pousar sobre cada um deles.
Ficaram todos cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras
línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia" (At 2,1-4).

3.º) "Guardarás a Festa da Colheita (Festa dos Tabernáculos Ex 23,16) no fim do


ano, quando tiveres recolhido do campo os frutos do teu trabalho" (Lv 23,33-44).
Esta festa também ficará para sempre ligada à História Cristã, durante a qual
ocorreu aquilo que se comemora como a Entrada Triunfal de Jesus em Jerusalém no
Domingo de Ramos, desenvolvido e esclarecido por São João:

"Depois disso, Jesus andava pela Galiléia. Não queria andar pela Judéia
porque os judeus dali o queriam matar. Estava perto a festa dos judeus,
chamada das Tendas (...) No último dia, o mais importante da festa, Jesus
falou de pé e em voz alta: "Se alguém tiver sede venha a mim e beba. Quem
crê em mim, como diz a Escritura, do seu interior correrão rios de água
viva". Referia-se ao Espírito que haviam de receber aqueles que cressem
nele. De fato, ainda não tinha sido dado o Espírito, pois Jesus ainda não
tinha sido glorificado" (Jo 7,1-39)
"...Eu sou a luz do mundo. Quem me segue não andará nas trevas, mas terá a
luz da vida" (Jo 8,12).

Nesta festa os israelitas habitavam durante sete dias em tendas ou cabanas, donde o
seu nome (Festa das Tendas ou Festa das Cabanas), para comemorar o tempo de
peregrinação no deserto:

"No primeiro dia tomareis folhagem de árvores ornamentais, ramos de


palmeiras, galhos de árvores frondosas, de salgueiros da torrente, e vos
alegrareis durante sete dias diante do Senhor vosso Deus. Celebrareis esta
festa em honra do Senhor cada ano durante sete dias. É uma lei perpétua,
válida para vossos descendentes. Celebrareis a festa no sétimo mês. Sete
dias morareis em cabanas. Todos que forem naturais de Israel morarão em
cabanas, para que vossos descendentes saibam que eu fiz morar os israelitas
em cabanas quando os tirei do Egito. Eu sou o Senhor vosso Deus" (Lv
23,40-43).

Com o tempo e por causa da simbologia da água e da luz usadas no cerimonial essa
festa vai tomar um sentido messiânico (Ex 17,1-7; 1 Cor 10,4; Zc 14,8; Ez 47,1-2;
Is 9,1-6; 60,19-21) que Jesus reivindicará ao se comparar com a "água viva que dará
e com a luz do mundo que é" (Jo 7,39 e 8,12). As festas tinham o colorido de um
banquete, duravam uma semana, e eram celebradas com o seu memorial e objetivo,
onde tudo girava em torno de verdadeiro culto e sacrifício ("...vos alegrareis durante
sete dias..."):

"Estas são as solenidades do Senhor nas quais convocareis assembléias


litúrgicas para oferecer ao Senhor sacrifícios pelo fogo, holocaustos e
oblações, vítimas e libações, prescritos para cada dia, além dos sacrifícios ao
Senhor aos sábados, dos dons, votos e todas as ofertas voluntárias que
apresentareis ao Senhor" (Lv 23,37-38)

"Três vezes ao ano, todos os teus homens deverão apresentar-se perante o


Senhor teu Deus, no lugar que ele tiver escolhido: na festa dos Ázimos, na
festa das Semanas e na festa dos Tabernáculos. Ninguém aparecerá perante o
Senhor de mãos vazias mas cada qual fará suas ofertas conforme as bênçãos
que o Senhor teu Deus lhe houver concedido" (Dt 16,16-17).

Para todas elas a regra básica era a exigência de "ninguém apareça perante mim de
mãos vazias 'mas cada qual fará suas ofertas conforme as bênçãos que o Senhor teu
Deus lhe houver concedido" (Ex 23,15; Dt 16,16-17), cujas oferendas seriam
elevadas à santificação sacrificial. Assim, consoante esse dispositivo, pode-se
compreender a consagração dos primogênitos dos animais e das primícias que já se
viu, os quais se destinavam ao culto litúrgico de então. Além disso aparecem os
sábados de anos, uma novidade legal para o "repouso" da terra, não mandamental. O
Sábado do Decálogo será para sempre como um Sinal da Aliança, e vai desaguar
com essa tônica principalmente no judaísmo (Ne 13,15-22; 1Mc 2,32-41):

"Durante seis anos semearás a terra e recolherás os produtos. No sétimo ano,


porém, deixarás de colher e de cultivar a terra, para que se alimentem os
pobres de teu povo, e o resto comam os animais do campo. O mesmo farás
com a vinha e o olival. Seis dias trabalharás, e no sétimo descansarás, para
que descansem também o boi e o jumento, o filho de tua escrava e o
estrangeiro possam tomar fôlego. Guardai tudo o que vos disse: Não
invocareis o nome de outros deuses; que o seu nome não se ouça em tua
boca" (Ex 23,10-13).

Após a ratificação da Aliança e de todas essas admoestações, de ordem religiosa


mescladas com as de outra ordem, começa-se a estruturar especificamente o culto
com os seus ornamentos e aparatos indispensáveis. Era preciso ali mesmo e ainda
no deserto buscar regulamentar todo o cerimonial com a mesma pompa com que
eram ornados os rituais dos deuses pagãos, de cuja lembrança ainda se retinha na
memória. Não que se copiasse ou plagiasse o culto egípcio, mas aquilo que lá se
usava nos cultos era culturalmente comum a todos os povos. Apesar das variações
naturais e peculiares de cada povo, havia muita coisa em comum, fruto de uma
mesma cultura histórica.

2. O SANTUÁRIO - PLANEJAMENTO GERAL

Moisés vai para o Monte Sinai, em retiro e contemplação, onde fica "quarenta dias
e quarenta noites", duração de ordem bíblica para significar tempo necessário e
completo para o preparo de uma missão:

"Moisés subiu ao monte e a nuvem cobriu o monte. A glória do Senhor


pousou sobre o monte Sinai, e a nuvem o cobriu durante seis dias. No sétimo
dia chamou Moisés do meio da nuvem. A glória do Senhor aparecia aos
israelitas como um fogo devorador sobre o cume do monte. Moisés, porém,
penetrou dentro da nuvem, enquanto subia a montanha, e permaneceu ali
quarenta dias e quarenta noites" (Ex 24,15-18).

Findo este tempo, passará Moisés a reivindicar oferendas voluntárias (Ex 37,5-29) e
independentes daquelas já pertinentes e advindas das consagrações mencionadas
anteriormente, agora destinadas à ornamentação e adorno do culto oficial a Iahweh,
apresentando o narrador inicialmente uma descrição do projeto objetivamente
delineado:
"O Senhor falou a Moisés: "Dize aos israelitas que ajuntem ofertas para
mim. Recebereis a oferta de todos os que derem espontaneamente. Estas são
as ofertas que recebereis: ouro, prata, bronze, tecidos de púrpura violácea,
vermelha e carmesim, linho fino e crinas de cabra, peles de carneiro tintas de
vermelho e peles de golfinho, madeira de acácia, azeite de lâmpada, bálsamo
para o óleo de unção e para o incenso aromático, pedras de ônix e outras
pedras de engaste para o efod e o peitoral. Eles me farão um santuário, e eu
habitarei no meio deles. Fareis tudo conforme o modelo da habitação e seus
utensílios que vou te mostrar" (Ex 25,1-9).

"Eles me farão um santuário..." - com a realização desse objetivo ratifica-se toda a


Aliança nos mesmos fundamentos dos Patriarcas para a comunhão de vidas, pelo
fato de Iahweh "habitar no meio deles". Então o ato de Abraão, Isaac e Jacó
edificando sempre um altar para o culto (Gn 12,6-9; 13,3; 26,25; 28,10-22; 35,1-15)
há de ser também o objetivo principal da atividade israelita que se inicia. Enquanto
em peregrinação, porém, haverá um "santuário peregrino" (Ex 20,24-25) ou até
mesmo um "santuário portátil" (Ex 25-26; 27,1-8), em torno do qual serão
reunidos, em comunhão de vidas pelo sacrifício, Deus e os Filhos de Israel, ou
também comparecendo em sua presença para consultas pessoais (Ex 29,42s / 33,7).
Em verdadeira contemplação ["Fareis tudo conforme o modelo de habitação e todos
os seus utensílios que te mostrarei" (Ex 25,9)], Moisés, em Nome de Deus e por Ele
assistido, planejou toda a composição material do culto com base nos costumes já
em prática até mesmo no Egito (Ex 5,3-9; 8,21-24; 10,24-26), regulamentando-o
objetivamente nos mínimos detalhes, para apresentar todo o planejamento aos
Filhos de Israel, para cuja realização concorreriam voluntariamente. Já se
prefigurava e se anunciava a continuidade daquele mesmo desígnio de Deus de
conduzir o Homem para a vida partilhada e íntima do Jardim do Éden.

É preciso aqui notar que Moisés está ainda no seu retiro e contemplação no Monte
Sinai, e registra a descrição do que viu (Ex 25-31) para a construção futura (Ex 35-
40). Em geral os móveis e utensílios seriam ou feitos ou recobertos ou forrados ou
tecidos ou bordados com ouro puro e ornados com pedras preciosas (Ex 25,1-9) por
causa da santificação que a presença de Deus lhes imprime principalmente na Arca,
no Propiciatório (Ex 25,10-22) e no Altar de Incenso (Ex 37,25-28), significada na
colocação neles das "tábuas de pedra contendo o Decálogo" (Ex 25,16.21), dos
"dois querubins", onde Deus pousava (Ex 25,18-20 / Ex 25,17-21), dos Pães da
Proposição e do Incenso para o Dia da Expiação. Isto porque para o israelita a
palavra é inseparável da pessoa que a pronuncia, com todos os seus atributos,
donde o Decálogo (Dez Palavras "de Deus"), escrito pelo próprio Deus em "tábuas
de pedra", ser o sinal da presença da Santidade de Deus no Santuário ou Habitação
a ser construído. Daí, pela Santidade presente, compreende-se também o motivo da
"fixação dos varais às argolas nos pés (ou cantos)" para o transporte (Ex 25,15),
evitando-se que tocasse o solo assim como o contato manual. Mesmo nos varais não
tocava pessoa profana, alheia ao sacerdócio, função reservada aos levitas (Nm 8,5-
25). Moisés registra todas as medidas, a disposição e a forma da confecção dos
utensílios e apetrechos, a começar com a Arca que receberá o nome de Arca da
Aliança (Ex 25,10-16) e do Propiciatório (Ex 25,11-22); também, as da Mesa dos
Pães da Propiciação ou Apresentação (Ex 25,23-30 / Lv 24,5-9; 1Sm 21,5); e, do
Candelabro e seu óleo ou azeite (Ex 25,31-39 / 27,20-21). Foi com respeito a esses
Pães da Propiciação que Jesus retrucou a acusação dos fariseus de que os discípulos
desrespeitavam o sábado comendo as espigas (Mt 12,1-4), lembrando-lhes que Davi
os comera quando teve fome, mesmo "sendo reservado aos sacerdotes" (1Sm 21,5).

A seguir vem a menção do "tabernáculo", que será também conhecido por "tenda
da reunião" (Ex 29,42-43 / 33,7), ou ainda em algumas traduções "habitação". Era
um volume retangular todo coberto com tábuas e séries de cortinas ligadas e
trançadas umas às outras, dividido interiormente em duas partes por uma cortina ou
véu. Denominou-se de Santíssimo ou Santo dos Santos à parte antes do véu onde
ficaria a Arca e o Propiciatório com os Querubins e de Santo, o local após o véu,
onde seriam colocados os demais utensílios mencionados e o "altar de incenso ou
de perfumes" (Ex 30,1-10 / 37,25-28). Foi defronte um desse altar de incenso que
o Anjo apareceu a Zacarias quando anunciou o nascimento de João Batista (Lc
1,11). E, o véu é aquele que "rasgou no momento da Morte de Cristo" (Mt 27,51;
Mc 15,38; Lc 23,45), construído no Templo de Jerusalém tal como o que fora
planejado no "Tabernáculo da Peregrinação":

"Farás também um véu de púrpura violácea, vermelha e carmesim e de linho


fino torcido, bordado de querubins. Suspenderás o véu em quatro colunas de
madeira de acácia recobertas de ouro, providas de ganchos de ouro, e
apoiadas em quatro bases de prata. Pendurarás o véu debaixo dos colchetes,
e ali, por trás do véu, introduzirás a arca da aliança. O véu servirá para
separar o lugar Santo do Santíssimo. Sobre a arca da aliança porás o
propiciatório, no lugar Santíssimo. Do lado de fora do véu colocarás a mesa
e diante dela o candelabro. Este ficará do lado sul da morada, e a mesa porás
ao norte. Para a entrada da tenda farás uma cortina de púrpura violácea,
vermelha e carmesim e de linho fino torcido, artisticamente bordada. Para a
cortina farás cinco colunas de madeira de acácia, revestidas de ouro e com
ganchos de ouro, e fundirás para elas cinco bases de bronze" (Ex 26,31-37)

"No mesmo instante a cortina do Santuário rasgou-se de alto a baixo,


em duas partes, a terra tremeu e fenderam-se as rochas" (Mt 27,51).

Em redor da "habitação" ou do "tabernáculo" (Ex 26,1-37 / 33,7-11 / 36,8-19) será


construído o "átrio" (Ex 27,9-19 / 38.9-20), ampla área em cujo interior, na frente e
fora do "tabernáculo", se disporá a "bacia de bronze" (Ex 30,17-21 / 38,8 / 1Rs
7,23-28) e o "altar dos holocaustos" (Ex 27,1-8 / 38,1-7 / 1Rs 8,64). Tomando-se
por base o "côvado", unidade de medida então usada, de cincoenta centímetros em
média, os vários móveis teriam a descrição resumida e a medida aproximada:

1. A Arca (Ex 25,1-22), um baú de madeira de acácia, forrada de ouro, onde


colocar-se-iam as Duas Tábuas da lei escritas pelo dedo de Deus, as Tábuas
do Testemunho (Ex 25,16.21 / Dt 10,2-5), com 1,25 m. de comprimento,
0,75 m. de largura e 0,75 m. de altura; em cima da qual colocar-se-ia uma
tampa de ouro puro, o Propiciatório, com as mesmas medidas de
comprimento e largura da arca, onde se ergueriam Dois Querubins (Ex
25,17-18). Diante dela seria colocada uma urna com o Maná (Ex 16,32-34);
2. A Mesa dos Pães da Proposição ou da Apresentação (Ex 25,23-30) de
madeira de acácia, medindo 1 m. de comprimento, 0,5 m. de largura e 0,75
m. de altura, toda revestida e adornada em ouro puro, os vários utensílios
necessários, e com argolas nos cantos onde se fixaram os varais, tudo
revestido em ouro puro, para o transporte;
3. O Candelabro (Ex 25,31-40) de ouro puro, em forma de árvore com sete
ramos, três de cada lado e um no centro, com o pedestal em forma de caule,
e os ramos terminando em formato de amêndoas, flores e botões, dispondo
nele sete lâmpadas. Será disposto de forma a projetar luz para a frente (Ex
25,27); sinal da presença de Deus na Arca da Tenda da Reunião, oferecendo
aos Israelitas a luz para se orientarem nas trevas, brilhando toda a noite,
donde nas Igrejas católicas manter-se acesa a luz do Sacrário, que se
denomina também, por causa da presença de Cristo Eucarístico, de
Tabernáculo (Ex 27,20-21).
4. O Tabernáculo (Ex 26,1-30) constituído de séries paralelas de cortinas
ligadas por colchetes de ouro e prata e coberturas de pelos de cabra,
formando uma Tenda, e por fora todo cercado por tábuas de acácia (Ex
26,16.18), tendo o véu (Ex 26,31-37) separando a área denominada de
Santíssimo ou Santo dos Santos, da denominada Santo, medindo
respectivamente o Santíssimo 5 m. e o Santo 10 m. de comprimento o que
dará para todo o tabernáculo o comprimento de 15 m. e 4,5 m. ou 6 m. de
largura (Ex 26,22-25 - trecho de difícil compreensão), que será disposto no
sentido norte - sul, dentro do átrio, que será descrito em seguida;
5. O Altar dos Holocaustos (Ex 27,1-8), de tábuas de madeira de acácia,
formando um quadrado medindo 2,50 m. de comprimento e largura,
revestido de bronze, oco no centro, ornado com recipientes para cinzas, pás,
trinchantes e braseiros de cobre, colocando-se nos seus quatro cantos chifres
simbolizando força e poder (Dt 33,17; Sl 22,22), que serão purificados com
sangue com a instituição do sacerdócio de Aarão (Ex 29,12; 30,10); e,
finalizando a descrição "do que viu" (Ex 25,9.40; 26,30; 27,8). O Átrio (Ex
27,9-19), uma área medindo 50 m. de comprimento (Ex 27,9.18) por 25 m.
de largura (Ex 27,13), erguido na direção norte - sul (Ex 27,9-10), com
entrada a este (Ex 27,13-14).

3. O PREPARO DO SACERDÓCIO

Ainda na fase descritiva do que lhe "foi mostrado e Moisés viu" nos dias de seu
retiro e contemplação no Monte Sinai, cuida-se da organização do Sacrifício
Israelita, herança dos Patriarcas, cuja fidelidade havia já sido posta à prova em
séculos de perseguição religiosa no Egito, tendo sido o principal motivo da evasão
geral havida. Agora que se estruturava em culto definitivo de um povo organizado
tornava-se, em conseqüência, necessário e até mesmo essencial, a instituição de um
Sacerdócio Oficial, não mais aquele cultural, familiar e mais de acordo com os
costumes, exercido até então pelos Primogênitos, devendo a partir de então ser
outorgado a Aarão e seus filhos (Ex 28,1), completando-se com o seguinte:

1. O Óleo para as lâmpadas do Candelabro de "azeite de oliveira puro que os


israelitas deveriam trazer para arder continuamente na Tenda da Reunião
onde os filhos de Aarão o deveriam preparar a partir de toda a tarde até a
manhã" (Ex 27,20-21):
2. Os Paramentos Sacerdotais (Ex 28,1-43): "mandarás fazer vestes litúrgicas
para teu irmão Aarão, em sinal de honra e distinção. Incumbirás por isso
artistas bem preparados, que dotei do espírito de sabedoria, de confeccionar
as vestes de Aarão, para consagrá-lo como sacerdote a meu serviço. Estas
são as vestes que deverão fazer: um peitoral, um efod, um manto, uma túnica
bordada, uma mitra e um cinto. Assim farão vestes litúrgicas para teu irmão
Aarão e seus filhos para que sejam meus sacerdotes. Utilizarão ouro,
púrpura violácea, vermelha e carmesim e linho fino" (Ex 28,2-5). Não é
necessário uma descrição detalhada além de uma leitura pessoal, lembrando-
se de que a Igreja Católica e outras confissões cristãs aqui se inspiram para o
uso dos seus paramentos litúrgicos, principalmente nas Cerimônias
Eucarísticas;
3. A Consagração de Aarão e seus Filhos para o Sacerdócio Perene (Ex 29,1-
37 / Ex 30,30), com a responsabilidade do oferecimento do Sacrifício
Cotidiano ao amanhecer e ao entardecer, "será um holocausto perpétuo para
vossas gerações a ser oferecido à entrada da tenda de reunião, diante do
Senhor , lá onde me encontrarei contigo para te falar. É lá que me
encontrarei com os israelitas, lugar que será consagrado por minha glória.
Consagrarei a tenda de reunião e o altar, bem como Aarão e filhos para que
me sirvam como sacerdotes. Habitarei no meio dos israelitas e serei o seu
Deus. Eles reconhecerão que eu, o Senhor , sou o seu Deus, que os libertei
do Egito para habitar no meio deles. Eu, o Senhor, seu Deus" (Ex 29,42-46);
4. O Altar dos Perfumes (Ex 30,1-10), todo de ouro puro, motivo que leva a ser
também conhecido como o Altar de Ouro (Ex 39,38; 40,5.26), um quadrado
de 0,50 m. de lado, com chifres no quatro cantos, revestidos de ouro puro e
objeto da expiação sangüínea (Ex 30,10), com as varas de madeira, também
revestidas de ouro, presas às argolas para o transporte, onde "Aarão
queimará incenso aromático cada manhã e cada entardecer", vedado outro
perfume que o descrito juntamente com o Óleo da Unção (Ex 30,34-38);
5. Far-se-á um recenseamento de homens aptos para a guerra (Nm 1), ocasião
em que os de vinte anos para cima que forem alistados deverão pagar em
resgate o valor de meio siclo, conforme o siclo do santuário eleito como
padrão, "como contribuição ao Senhor a ser aplicado no serviço da Tenda da
Reunião" (Ex 30,11-16). Um único valor para "ricos e pobres" esboçando-se
aqui a igualdade de todos perante Deus e as futuras oferendas que lhe serão
acrescidas para a manutenção do culto e do sacerdócio; foi cobrado de Jesus
Cristo e São Pedro (Mt 17,24);
6. A Bacia de Bronze colocada entre a Tenda da Reunião e o Altar dos
Holocaustos para as abluções das mãos e dos pés de Aarão e seus filhos
"quando entrarem no Tabernáculo ou se aproximarem do Altar, para oficiar"
(Ex 30,17-21); e,
7. O Óleo para a Unção:

"O Senhor falou a Moisés, dizendo: "Recolhe aromas de primeira


qualidade: (...) Farás disto um óleo para a unção sagrada, uma
mistura de especiarias preparada segundo a arte da perfumaria. Será
este o óleo para a unção sagrada. Ungirás a tenda de reunião, a arca
da aliança, a mesa com todos os apetrechos, o candelabro com os
utensílios, o altar do incenso, o altar dos holocaustos com os
utensílios, bem como a bacia com o suporte. Assim os consagrarás
e serão santíssimos; tudo o que os tocar será santo. Ungirás
também Aarão e os filhos, consagrando-os para me servirem
como sacerdotes. Assim falarás aos israelitas: esse será para mim o
óleo da unção sagrada por todas as gerações. Ele não será derramado
sobre o corpo de nenhuma pessoa, nem fareis outro parecido, da
mesma composição. É coisa sagrada, e devereis considerá-lo como
tal. Quem fizer outra mistura semelhante, ou usá-lo sobre um
estranho, será eliminado do meio de seu povo" (Ex 30,22-33).

Ao que se vê a Unção com este óleo sagrado santificava e aquilo que tocasse o que
fora santificado seria santo. Em primeiro lugar seriam santificados o Tabernáculo
com todos os utensílios e objetos usados nos cultos e rituais litúrgicos de então; e,
em seguida, Aarão e os Filhos, santificando-os para o exercício do sacerdócio. Além
dos sacerdotes futuramente serão ainda ungidos alguns profetas, os reis de Israel
(1Sm 24,7; 26,9.11.23; 2Sm 1,14.16; 19,22) que por causa disso serão conhecidos
por Messias ou em grego "Cristos". Por tudo isso este Óleo da Unção vai
desempenhar o mais importante papel da vida religiosa de Israel atingindo em cheio
o Cristianismo, a partir do que passou a ser o nome de Jesus Cristo, que significa
Jesus, o Ungido. Cristo não é o sobrenome de Jesus, o nome de sua família, mas um
predicado, ou melhor, o seu atributo de ser o "Ungido do Senhor". Assim, o
verdadeiro sentido da frase usada por Pedro quando da revelação de que fora alvo
(Mt 16,16) é: "Tu és o 'Ungido', o Filho de Deus Vivo".

E, como um remate de toda a obra são apresentadas as essências aromáticas e


incenso para "perfumar" o ambiente onde seria ritualmente aspergido ou derramado
freqüentemente o sangue, purificando assim o odor advindo:

"O Senhor disse a Moisés: "Arranja essências aromáticas: resina, âmbar,


galbano, substâncias aromáticas e incenso puro em partes iguais. Prepararás
um incenso perfumado, composto segundo a arte da perfumaria, bem
dosado, puro e santo. Parte dele reduzirás a pó a fim de pôr diante da arca da
aliança na tenda de reunião, onde me encontrarei contigo. Haveis de
considerá-lo como algo de santo e consagrado. Não deveis fazer para vós
outro incenso da mesma composição. Deverás considerá-lo como
consagrado ao Senhor. Quem preparar outro semelhante para sentir-lhe o
aroma, será eliminado do meio de seu povo" (Ex 30,34-38).

Terminando os preparativos e para a execução de toda a Obra assim mostrada a


Moisés, Deus "infunde de Seu Espírito alguns artífices", como se faz referências em
outros lugares (Gn 41,38; Nm 11,17) verdadeira antecipação da presença do
Espírito Santo caracterizando já "em figura" a finalidade cristológica das escrituras
(1Cor 10,3-4.11; Gl 3,24; Rm 15,4):

"O Senhor falou a Moisés, dizendo: "Olha, eu chamei especialmente


Beseleel filho de Uri, filho de Hur, da tribo de Judá. Enchi-o do espírito de
Deus: sabedoria, habilidade e arte para qualquer tipo de trabalho (...) Pus
também no coração de todos os artesãos habilidosos a sabedoria para que
executem tudo o que te mandei: a tenda de reunião, a arca da aliança, o
propiciatório que a encobre e todos os acessórios da tenda; a mesa com os
utensílios, o candelabro de ouro puro com os utensílios e o altar do incenso;
o altar do holocausto com os utensílios e a bacia com o suporte; as alfaias
com as vestes litúrgicas do sacerdote Aarão e de seus filhos, para exercerem
o ministério sacerdotal; o óleo da unção e o incenso aromático para o
santuário. Eles farão tudo conforme te mandei" (Ex 31,1-11).

Mesmo nos trabalhos destinados ao Santuário, continuava em vigor a disciplina


rígida e severa quanto ao Sábado, punindo com a morte qualquer infrator,
considerando-se a sua violação como sendo à Aliança Perpétua de que é sinal (Ex
31,12-17). Por fim, entrega a Moisés as "tábuas de pedra escritas pelo dedo de Deus
('Elohim')" (Ex 31,18).

4. "O BEZERRO DE OURO"

Moisés continuava no Monte Sinai e o Povo de Israel sem o seu comando e controle
sentiu como se fora abandonado e como tal reage:

"Vendo que Moisés demorava a descer do monte, o povo reuniu-se em torno


de Aarão e lhe disse: "Vamos! Faze-nos "deus" ("Elohim", no texto
hebraico) que "caminhe" à nossa frente. Pois quanto a Moisés, o homem que
nos tirou do Egito, não sabemos o que lhe aconteceu" (Ex 32,1-2).
Esta frase "vamos! faze-nos "deus" que "caminhe" à nossa frente..." e a reação de
Moisés quanto ao fato (Ex 32,19-28), insinuam a existência de uma "idolatria" pois
Aarão, de posse de objetos de ouro, fundira um Bezerro de Ouro:

"Aarão lhes disse: "Tirai os brincos de vossas mulheres, vossos filhos e


vossas filhas, e trazei-os a mim". Todo o povo arrancou os brincos de ouro
que usava, e os trouxe para Aarão. Recebendo o ouro, ele o moldou com o
cinzel e fez um bezerro fundido. Então eles disseram: "Aí tens, Israel,
"Elohim" (= "deuses") que te fez sair do Egito!". Ao ver isto, Aarão
construiu um altar diante dele e proclamou: "Amanhã haverá festa em honra
do Senhor". Levantando-se na manhã seguinte, ofereceram holocaustos e
apresentaram sacrifícios pacíficos. O povo sentou-se para comer e beber, e
depois levantou-se para se divertir" (Ex 32,2-6).

"Elohim" é um dos nomes com que era conhecido o Deus dos hebreus e é dele que
se faz a imagem. Não se tratou de uma simples representação pois "levantando-se
na manhã seguinte, ofereceram holocaustos e apresentaram sacrifícios pacíficos;
o povo sentou-se para comer e beber, e depois levantou-se para se divertir" (Ex
32,6). O Povo ofereceu-lhe um Sacrifício do tipo denominado "pacífico", uma
"refeição sagrada", pelo que é incriminado por Iahweh (Ex 32,7-8). Ao que tudo
indica, houve ai uma causa muito séria eis que culminou com a morte de "cerca de
três mil homens" (Ex 32,28). Moisés, ao "ver o Bezerro de Ouro e as danças, num
acesso de cólera, arroja e quebra as tábuas de Pedra" escritas por "Elohim" (Ex
32,19), "queimou o Bezerro, triturou-o, reduziu-o a pó e, misturando-o na água,
obriga o povo a bebê-la". Em virtude do conflito aqui manifestado entre o nome
Iahweh e Elohim, impõe-se uma análise cultural dos nomes de Deus, que aparece
nesse trecho como "Elohim", de quem se fez a imagem (Ex 32,4.8), contra quem se
insurge "Iahweh" (Ex 32,7-8).

Com já se viu quando da análise feita por ocasião da Bênção de Jacó (cfr.: Capítulo
2, n.º 12, Gn 49), à tribo de Efraim, após José, caberia o exercício da chefia do clã
na forma da tradição cultural correspondente ao equilíbrio entre as tribos em vigor
na época.

Nesse episódio do Bezerro de 0uro manifestam-se aspectos daquela hostilidade


latente no seio do povo, a que lá se referiu, desde quando ainda se resumia na Tribo
de Jacó somente. Como se viu, e não faz mal repetir, José era o filho predileto de
Jacó e os seus irmãos o odiavam, seja por causa disso seja por causa de sonhos dele,
que previam sua supremacia futura (Gn 37,3-4.5-11). José e Judá são os dois filhos
primogênitos de ambas as mulheres de Jacó, Raquel e Lia. De Lia, Judá seria o
primogênito em lugar de Rúben, Simeão e Levi que perderam o direito (Gn 49,4-6);
e, de Raquel, José, a quem Jacó amava com predileção e a quem deu a
primogenitura (Gn 49,22-26). Por sua vez, foi a tribo de Judá abençoada por Jacó
com um colorido messiânico (Gn 49,8-12), cabendo-lhe o direito da primogenitura
na ordem cronológica de nascimento (Gn 29,31-35), pela destituição de Rúben e
Simeão (Gn 49,5-7). Assim como Esaú odiou Jacó por causa da primogenitura, pelo
mesmo motivo é de se esperar o ressentimento de Judá quando foi ela destinada a
José, tanto com a correspondente bênção, como com Efraim igualado a Rúben (Gn
48,5) e na porção maior dada a José (Gn 48,22). Não se deve perder de mira que foi
Judá quem chefiou a venda de José para os ismaelitas (Gn 37,26-27), contra a
vontade de Rúben que o queria restituir ileso ao pai (Gn 37,22), e isso se deu antes
da bênção de Jacó (Gn 49). Também Rúben, que detinha o direito, não deve ter
aceito a destituição sem em contrapartida devotar alguma ojeriza por perdê-lo.
Assim, os antagonismos familiares fervilhavam, fermentando-se uma divisão futura.
Esses fatos são confirmados biblicamente:

"A descendência de Rúben, o primogênito de Israel: Ele era na realidade o


primogênito, mas porque profanou o leito do pai, o direito da primogenitura
foi conferido aos filhos de José filho de Israel, e assim os rubenitas não
foram registrados como primogênitos. Na verdade, Judá veio a predominar
entre os irmãos e dele saiu um príncipe; mas a primogenitura ficou com
José" (1Cor 5,1-2)

"Hosa, da descendência de Merari, tinha filhos: Semri era o chefe; o pai o


nomeara chefe, embora não fosse o primogênito" (1Cor 26,10).

Uma análise, mesmo superficial como esta, mostra que nesse episódio se
concentram, dentre outros, esses conflitos e tradições tribais. Em primeiro lugar,
algumas traduções falam em "deuses" quando traduzem Ex 32,1.4.8 e 23, segundo a
Septuaginta e a Vulgata, que é a tradução literal de "Elohim" no hebraico. Sabe-se
que "Elohim" era um dos nomes hebraicos de Iahweh por que em Gn 1,1 a
tradução literal seria "no princípio 'deuses (= 'Elohim')' 'criou (= 'bara') 'os céus e
a terra". Pelo fato de se colocar o verbo no singular se conclui que "Elohim" aqui é
o nome do Deus - Criador e não o plural da palavra hebraica "El (=deus)". Hoje se
reconhece na contextura das Escrituras Sagradas a existência de narrativas oriundas
de várias tradições documentárias, destacando-se dentre elas as denominadas de
"Eloísta" e "Javista", conforme o texto se refira à tradição de Elohim ou à tradição
de Iahweh, tal o nome dado a Deus. É muito fácil saber qual o nome se encontra no
texto original pela tradução: - se o nome no texto traduzido for "Senhor" no original
está "Iahweh", se o nome traduzido for "Deus" então no original se encontra
"Elohim". No trecho em exame (Ex 32) nota-se uma espécie de simbiose, fazendo
com que alguns especialistas o atribuam às duas tradições documentárias. Não se
pretende participar aqui destes debates, destinando-se o comentário apenas a
confirmar o raciocínio exposto.

Só se pode concluir que Moisés seja o patrono do nome "Iahweh" (Ex 3,13-15; 6,2-
3), cabendo-lhe a sua "apresentação" ao Povo de Israel que o designava com outros
nomes: Elohim e Iahweh (Gn 1,1; 4,6.26; 12,1; Ex 6,2-4), El-Shaddai (Gn 17,1;
28,3; 43,14; Ex 6,3), El Elyon (Gn 14,18-24), El '0lam (Gn 21,33), El Ro'i (Gn
16,13), Iahweh Yir'el (Gn 22,14), El Bete (Gn 31,13; 35,7), Adonai (Gn 15,2.8)
etc.. Pelos prodígios do Egito o nome Iahweh se impôs aos Filhos de Israel bem
como Moisés, o seu Profeta, superando-se a rejeição ocorrida no início da luta (Ex
2,14). Não pertencia a nenhuma das tribos que detinham o direito advindo da
primogenitura e a de Levi, que era a dele (Ex 2,1-2.10), fora dele excluída por Jacó
(Gn 49,5-7), não lhe cabendo o encargo. Grande vantagem lhe adveio em virtude de
pertencer à corte faraônica (Ex 2,10) fazendo com que em parte o fato fosse
contornado, aliando-se a isso os prodígios de Iahweh, realizados por seu intermédio
e Aarão, bem como o "ministério" de Josué, habilmente lotado como um seu
"primeiro ministro" (Ex 24,13), membro da Tribo de Efraim: essa escolha parece ser
uma evidência da exigência do direito da tribo que assim teria sido pacificada, além
do fato de ser destinado a substitui-lo, confirmando-lhe a preeminência (Nm 28,18-
23 / Dt 31,3-8 / Js 1,1-9).

Quando Moisés subiu ao monte e lá permaneceu "quarenta dias e quarenta noites"


(Ex 24,18), levando consigo Josué (Ex 24,13), o povo sentiu-se desguarnecido e
abandonado por Yahweh e seu profeta e buscaram apoio em Elohim, tal como
registra a Bíblia Hebraica:

"Moisés, porém, entrou no meio da nuvem, depois que subiu ao monte; e


Moisés esteve no monte quarenta dias e quarenta noites" (Ex 24,18).

"Mas o povo, vendo que Moisés tardava em descer do monte, acercou-se de


Arão, e lhe disse: Levanta-te, faz-nos "Elohim" (= deuses, - cfr.: consta
"Elohim" na Bíblia Hebraica) que vá adiante de nós; porque, quanto a esse
Moisés, o homem que nos tirou da terra do Egito, não sabemos o que lhe
aconteceu..." (Ex 32,1.23).

Sabe-se que quando se usa a quantidade bíblica de "quarenta dias e quarenta noites"
não se trata de uma numeração exata, mas simbólica, caracterizando-se "um tempo
necessário para algum ato". Tal ausência se dá após a promulgação do Decálogo e a
ratificação da Aliança, antes da instituição do Tabernáculo ou Santuário e do
Sacerdócio. Tanto é assim que a alegação "não sabemos o que lhe aconteceu"
caracteriza bem que não se tratava de uma ausência pequena, mas de muito tempo a
ponto do povo sentindo-se desguarnecido e abandonado voltar a buscar apoio no
antigo Deus tribal: Elohim. Com isso manifestou-se o que se deu a entender ser
uma espécie de sedição, aparecendo então aquela divisão já latente no seio do povo
desde a sua condição tribal, tendo agora por estopim a violação do direito de
primogenitura. A sedição teve por fulcro a volta a Elohim, para que assumisse a
posição de comando a que tinha direito, naturalmente sob o comando de Efraim, o
detentor do direito advindo da primogenitura e adoção que recebera pelas mãos de
Jacó. Tanto está certa esta conclusão que, descoberta a sedição, coloca-se Moisés "à
entrada do acampamento exclamando:

"Quem for de Iahweh venha a mim" (Ex 32,26).

Esta frase só tem sentido no contexto se a sedição se deu contra a Aliança contraída
com Iahweh e concluída no Sinai por meio de Moisés. É por isso que Moisés quebra
as Tábuas de Pedra (Ex 32,19), escritas "pelo dedo de Elohim" (Ex 31,18, texto
hebraico). Também a frase: "Moisés viu que o povo estava abandonado, pois que
Aarão o abandonara, expondo-o à zombaria dos adversários" (Ex 32,25) só tem
sentido em referência aos que permaneceram fiéis a Iahweh e Moisés. Tudo isso
confirma que o episódio do Bezerro de Ouro não se refere a uma idolatria, isto é, à
adoração de um ídolo. Vem em favor dessa conclusão o fato de Aarão não ter sido
punido, tendo ele fundido a imagem (Ex 32,4), apesar da sedição não ter sido da
Tribo de Levi à qual pertencia. Foram os levitas que apoiaram Moisés (Ex 32,26),
correspondendo bem à fama que desfrutavam de sanguinários, motivo da recusa
deles na escala descendente da substituição de Rúben pelo próprio Jacó (Gn 34,25-
31 / 49,5-7), matando naquele dia "três mil homens" (Ex 32,28). A frase de Moisés:
"Cinge, cada um de vós, a espada sobre o lado, passai e tornai a passar pelo
acampamento, de porta em porta, e mate, cada qual, a seu irmão, a seu amigo, a
seu parente" (Ex 32,27), só teria sentido e melhor se identifica se dirigida também
a Josué, "braço direito de Moisés", responsável pela pacificação e sendo da tribo de
Efraim, por força do cargo a ele cabia também a reação, até mesmo por uma questão
de ordem e disciplina.

Mas, o exercício do sacerdócio, como já foi amplamente disposto, vinculava-se


indestacavelmente à primogenitura, pelo que pertenceria exclusivamente à tribo de
Efraim. 0 próprio Moisés reconhece:

"De José disse: Abençoada pelo Senhor seja a sua terra, (...)...venha tudo
isso sobre a cabeça de José, sobre o alto da cabeça daquele que é
consagrado entre seus irmãos. Ele é o seu touro primogênito; ele tem
majestade; e os seus chifres são chifres de búfalo; com eles ele fere todos os
povos, todas as extremidades da terra de vez. Tais são as miríades de Efraim,
e tais são os milhares de Manassés" (Dt 33,13-17).

Vincula-se este trecho ao constante de Gn 49,22, cuja tradução não é pacífica e é


cheia de controvérsias. Atualmente a "Edition Intégrale TOB, 1978", rompe com
uma vertente "tradicional" de interpretação e o traduz:

"Joseph est un jeune taureau, un jeune taureau près d'une source..." que se
pode traduzir para o português por - "José é um bezerro, um bezerro junto
de uma fonte..." (Gn 49,22).

A controvérsia que se observa existir nas traduções deste trecho vem exatamente do
fato de se desconhecer ou se desprezar a instituição da primogenitura, não se
levando em conta a sua influência no meio social de então. Pela "Traduction
OEcuménique de la Bible" identifica-se por isso mesmo e com facilidade José com
a "consagração" e com o "touro primogênito", ou com o "touro consagrado",
advindo então da estreita relação entre a tribo de José com o sacerdócio e é de se
deduzir que o "bezerro" é uma representação de "Elohim" o nome de Deus para a
tribo de Efraim. Ora, pelo fato de Moisés ser da tribo de Levi, os levitas vieram em
socorro de Iahweh, que se pretendeu impor com exclusividade ao povo israelita e
dominou a pretensa sedição formada. Apesar de ter ela sido excluída da
primogenitura pelo próprio Jacó (Gn 49,5-7) seria premiada por isso com o
Sacerdócio Pleno por meio da consagração da Casa de Aarão (Ex 29,1-46) e com o
Sacerdócio Auxiliar pela substituição dos primogênitos por eles, os levitas (Nm
3,5-51 e 8,5-26). As rivalidades já existentes favorecem a união de Levi com Judá,
contra Efraim, em virtude da preferência de Jacó por José desde os tempos
passados, tal como o Profeta Isaías registra:

"Também cessará o ciúme de Efraim, e os adversários de Judá serão


eliminados; Efraim não terá mais ciúme de Judá e Judá não será mais o
adversário de Efraim" (Is 11,13).

As frases "cessará o ciúme" e "não será mais adversário" caracterizam a existência


de sentimentos hostis muito enraizados, não transitórios. Quando se estudar a
origem do Reino do Norte, desligando-se de Judá (1Rs 12), ver-se-á ainda
fervilhante tais antagonismos tribais, confirmando o que se demonstra aqui. Algo
que foi fruto de dor culturalmente sentida e mergulhada no âmago do sentimento
tribal, no seu orgulho, que não pode ter outra origem que a luta pelo direito da
primogenitura, tal como ocorrera entre Jacó e Esaú, vai prosseguir na História de
Israel, até mesmo na revolta de Absalão, que vai aproveitar a divergência
levantando essas tribos tradicionalmente descontentes, contra seu pai Davi, da tribo
de Judá (2 Sm 15-19).

Finalizando é de se dizer que não é possível concordar com o episódio do Bezerro


de Ouro, tal como vem narrado em Ex 32, após tal teofania ou manifestação
sensível de Deus ocorrida no Sinai (Ex 19,16-25), de tão vigorosas expressões
dinâmicas do poder divino ao então recém-formado Povo de Deus. É simplesmente
inacreditável. Após tão violenta manifestação "do meio do fogo" não é crível que se
seguisse uma idolatria, tão colorida de aspectos gentílicos, mais apropriada aos
outros povos cuja cultura religiosa o povo israelita rejeitara até mesmo no Egito.
Nem mesmo é crível que após ratificar a Aliança de Yahweh com Abraão (Ex 24,1-
8), viesse a violá-la com uma imagem esculpida de "outro deus" (Ex 20,4-5), o
mesmo que "pronunciou o Decálogo" (Ex 20,1). Isto sem falar nos demais episódios
que convenceram os Israelitas a deixarem uma vida já acomodada "comendo as
cebolas e carnes no Egito" para se aventurarem em uma vida nômade num deserto
desconhecido para eles, sem falar nos prodígios presenciados, na morte dos
primogênitos do Egito com a poupança dos de Israel, no Maná, nos Codornizes e na
Passagem do Mar Vermelho. Esses motivos concorreram para não fugirem e
voltarem ao Faraó que os teria recebido com a satisfação de colorido bem
econômico, recuperando a "mão de obra" servil e barata que perdera (Ex 14,5).

5. A RATIFICAÇÃO DA ALIANÇA COM IAHWEH - OPÇÃO


DEFINITIVA

Qualquer que seja a posição tomada em face do acontecimento do Bezerro de Ouro,


idolatria ou sedição, ferindo substancialmente a fidelidade e a unidade tribais, agora
corporificadas em torno de um só nome de Deus, mortos os insurretos, outro
caminho não se poderia trilhar que a ratificação dos termos da Aliança, agora
exclusivamente com Iahweh. Porém, o que não se pode desprezar são as
conseqüências do acontecimento em Moisés, que sofre em virtude de ver o seu ideal
frustrado, lutando para permanecer-lhe fiel. Assim transparece confusamente em
todo o relato, colorido com muita privacidade e disfarce proposital das muitas
dificuldades em sua alma, até que encontra o caminho que o equilibra de novo, o
que acata por lhe significar a vontade de Deus (Ex 34,1-23). Tira de tudo algumas
conclusões e amadurece mais ainda para o encargo e missão de levar todo o Povo de
Israel à Terra Prometida aos Patriarcas, os seus antepassados Abraão, Isaac, Jacó e
José. Tudo isso vem disposto após a ocorrência desastrosa de maneira bem confusa
e mesclada muitas vezes de colóquios muito íntimos e pessoais que denotam uma
indecisão causada. Nesse estado de alma, a primeira conclusão a que chega é a da
fidelidade de Deus:

"O Senhor falou a Moisés e lhe disse: "Vamos! sai daqui, com o povo que
fizeste sair do Egito, para a terra que prometi a Abraão, a Isaac e a Jacó,
dizendo: ‘Eu a darei à tua descendência’. Enviarei na tua frente um anjo,
para expulsar os cananeus, os amorreus, os hititas, os fereseus, os heveus e
os jebuseus. Sobe para a terra onde corre leite e mel. Mas eu não subirei
contigo, porque és um povo de cabeça dura; do contrário acabaria contigo no
caminho". Ao ouvir esta ameaça, o povo pôs-se de luto e ninguém mais usou
enfeites. É que o Senhor tinha dito a Moisés: "Dize aos israelitas: Sois um
povo de cabeça dura; se por um instante subisse convosco, eu vos
aniquilaria. Despojai-vos, pois, dos enfeites, e eu saberei o que fazer
convosco". Os israelitas despojaram-se dos enfeites ao partir do monte
Horeb" (Ex 33,1-6).

"O Senhor falou a Moisés e lhe disse: "Vamos! sai daqui, com o povo que fizeste
sair do Egito, para a terra que prometi a Abraão, a Isaac e a Jacó, dizendo: ‘Eu a
darei à tua descendência’. Enviarei na tua frente um anjo..." - Deus permanecerá
sempre fiel à Promessa e à Aliança com os Patriarcas mesmo com a ocorrência da
infidelidade de "um povo de cabeça dura", a quem se impõe uma nova
demonstração de arrependimento no abandono dos ornamentos que desde o Egito
ainda usavam. Não compreende tal serenidade de Iahweh e, até que serenassem os
ânimos e ressentimentos, Moisés ergueu o "tabernáculo" fora do acampamento dos
Israelitas a que deu o nome de "Tenda da Reunião":

"Moisés pegou a tenda e montou-a fora, a certa distância do acampamento, e


deu-lhe o nome de tenda de reunião. Assim todo aquele que ia consultar o
Senhor , saía para a tenda de reunião que estava fora do acampamento.
Quando Moisés se dirigia à tenda, o povo todo se levantava e ficava de pé à
porta da própria tenda, seguindo Moisés com os olhos até este entrar na
tenda. Depois que Moisés entrava na tenda, a coluna de nuvens baixava,
ficando parada à entrada da tenda, enquanto o Senhor falava com Moisés.
Ao ver a coluna de nuvens parada à entrada da tenda, todo o povo se
levantava e cada um se prostrava à entrada da própria tenda. O Senhor falava
frente a frente com Moisés, como alguém que fala com seu amigo. Depois
Moisés voltava para o acampamento. Mas seu ajudante, o jovem Josué filho
de Nun, não se afastava do interior da tenda" (Ex 33,7-11).

Claro está que foi uma instalação provisória onde o povo poderia "consultar o
Senhor" e onde principalmente Moisés o fazia "entrando nela enquanto uma nuvem
baixava até a entrada e dela o Senhor falava com ele, frente a frente", mantendo-se
Josué no interior dela, numa espécie de prontidão. Numa dessas consultas quis
Moisés, no estado de ânimo em que se encontrava, ainda atordoado pela sedição
ocorrida, "conhecer quais os desígnios de Deus" que não reagira:

"Moisés disse ao Senhor: "Ora, tu me dizes: ‘Faze subir este povo’; mas não
me indicaste ninguém para me ajudar na missão. No entanto me disseste:
‘Eu te conheço pelo nome e tu mesmo gozas do meu favor’. Se é, pois,
verdade que gozo de teu favor, faze-me conhecer teus caminhos, para que te
conheça e assim goze de teu favor. Considera que esta nação é o teu povo".
O Senhor respondeu-lhe: "Eu irei pessoalmente e te darei descanso". Moisés
respondeu-lhe: "Se não vens pessoalmente, não nos faças subir deste lugar.
Do contrário, como se saberia que eu e teu povo gozamos de teu favor,
senão pelo fato de caminhares conosco? Assim, eu e teu povo, seremos
distinguidos de todos os povos que vivem sobre a terra". O Senhor disse a
Moisés: "Farei também isto que pediste, pois gozas de meu favor, e eu te
conheço pelo nome" (Ex 33,12-17).

"Moisés disse ao Senhor: "Ora, tu me dizes: ‘Faze subir este povo’; mas não me
indicaste ninguém para me ajudar na missão" - isso não poderia ser afirmado em
estado de normalidade mental, após Iahweh lhe haver dito que "enviaria na tua
frente um anjo..." (Ex 33,2). E é até natural que Moisés esteja assim atordoado e
confuso, eis que estava no Monte Sinai em êxtase ou em contemplação recebendo
os detalhes do Santuário a ser erguido para Iahweh, quando explode o ato de
sedição ou idólatra ("faze subir este povo, mas não me indicaste ninguém para me
ajudar na missão; se é verdade que gozo de teu favor faze-me conhecer teus
caminhos..."). Nada mais irreal e contrariando todos os fatos havidos desde que foi
vocacionado no episódio da Sarça ardente, em que Deus claramente lhe mostrara
todos os seus desígnios e em que Moisés depositara tanta fé. O diálogo parece ser
somente mental de Moisés que o continua até que se recompõe, reconhecendo os
desígnios de Deus se realizando inexoravelmente, e desejoso de penetrar mais ainda
no mistério da natureza e divindade pede para "conhecer teus caminhos" e "a tua
glória", mas recebe só o que Deus lhe pode dar:

"Moisés disse: "Mostra-me a tua glória!" E o Senhor respondeu: "Farei


passar diante de ti toda a minha bondade e proclamarei meu nome, 'Iahweh',
na tua presença, pois favoreço a quem quero favorecer, e uso de misericórdia
com quem quero usar de misericórdia". E acrescentou: "Não poderás ver
minha face, porque ninguém me pode ver e permanecer vivo". O Senhor
disse: "Aí está o lugar perto de mim! Tu estarás sobre a rocha. Quando a
minha glória passar, eu te porei na fenda da rocha e te cobrirei com a mão
enquanto passo. Quando eu retirar a mão, verás as minhas costas. Minha
face, porém, não se pode ver" (Ex 33,19-23).

Isto é, Moisés não quer mais "falar com Deus face a face", estando Deus na forma
da nuvem (Ex 33,9-11), nem na forma de um fogo devorador (Ex 16,7.10;
24,16.17), mas sem mistérios e intermediários, em que não pode ser atendido
("verás as minhas costas, minha face não se pode ver"), o Homem não pode "ver
Deus e permanecer vivo", mas o que se pode dEle ver ser-lhe-á mostrado em toda a
sua justiça e imparcialidade:

"Farei passar diante de ti toda a minha bondade e proclamarei meu nome,


'Iahweh', na tua presença, pois favoreço a quem quero favorecer, e uso de
misericórdia com quem quero usar de misericórdia" (Ex 33,19).

O que um homem pode ver da glória de Deus, até mesmo Moisés, que "lhe falava
face a face" (Ex 33,9-11) é só o efeito de Sua Passagem ("verás as minhas costas;
minha face, porém, não se pode ver"), significado em "toda a minha bondade com o
que proclamarei meu nome, 'Iahweh', na tua presença". Confirma-o como o Seu
Enviado, sempre e livremente, sem que ninguém O manipule, "pois favoreço a
quem quero favorecer, e usa de misericórdia com quem quer usar de misericórdia",
a misericórdia que usou com os Israelitas no episódio não os punindo com pensava
que deveria ter feito. Pelo menos é assim que São Paulo vai aplicar este trecho:

"Que diremos pois? Haverá injustiça em Deus? De modo algum. Porque


disse a Moisés: Terei misericórdia de quem me aprouver ter misericórdia.
Terei compaixão de quem eu quiser ter compaixão. Desta forma a escolha
não depende de quem a quer nem de quem corre, mas da misericórdia de
Deus. Por isso diz a Escritura ao Faraó: Precisamente para isso te suscitei,
para mostrar em ti o meu poder e para dar a conhecer meu nome a toda a
terra. Assim Deus tem misericórdia de quem quer e é duro para quem quer"
(Rm 9,14-18).

Assim é que nesse sofrimento Moisés teve o seu quinhão de penitência e recebe
também a incumbência de "cortar duas tábuas de pedra iguais à primeiras" para que
Deus escrevesse nelas o mesmo Decálogo das anteriores (Dt 10,3-4), e subiu
sozinho o Monte levando-as. Novamente em retiro e contemplação no Monte Sinai,
Moisés vai conhecer atributos de Deus, crescendo cada vez mais:

"O Senhor desceu na nuvem, parou junto dele e proclamou o nome do


Senhor. Enquanto o Senhor passava diante dele, exclamou: "Senhor, Senhor!
Deus compassivo e clemente, paciente, rico em misericórdia e fiel. Ele
conserva a bondade por mil gerações, e perdoa culpas, rebeldias e pecados,
mas não deixa impunes, castigando a culpa dos pais nos filhos e netos até a
terceira e quarta geração" (Ex 34,5-7).

" Deus compassivo e clemente, paciente, rico em misericórdia e fiel" - são os


atributos de Deus que Moisés passa a "conhecer", fruto de sua vivência nos últimos
acontecimentos a que alia aquela mesma proporção entre a misericórdia e os
possíveis castigos de sua inflexível justiça, quando a quiser aplicar, ou seja, na
relação de mil para três ou quatro. Ao que se percebe Moisés lutava também com o
receio de que a atitude do Bezerro de Ouro, que lhe soava como um ato por demais
pecaminoso, trouxesse um rompimento da Aliança:

"Imediatamente Moisés curvou-se até o chão e prostrou-se em adoração.


Depois disse: "Senhor, se é verdade que gozo de teu favor, que o Senhor
caminhe no meio de nós, porque esse é um povo de cabeça dura. Perdoa-nos
as culpas e os pecados, e recebe-nos como propriedade tua" (Ex 34,8-9).

E Iahweh ratifica a Aliança, apesar de tudo o que acontecera. Assim é a


misericórdia inflexível e justa do Deus que dirige a História e não se sujeita às
contingências humanas, confirma a Missão de Israel com a difusão de Seu Nome e
tanto corresponde como atende a esperança de Moisés que temia o abandono:

"O Senhor respondeu: "Olha, eu vou fazer uma aliança! Diante de todo o
teu povo farei prodígios como nunca se fizeram em nenhum país ou nação,
para que todos os povos que te cercam vejam como são terríveis as obras do
Senhor , que estou para fazer contigo. (...) O Senhor disse a Moisés:
"Escreve estas palavras, pois baseado nelas faço aliança contigo e com
Israel". Moisés ficou ali com o Senhor quarenta dias e quarenta noites, sem
comer pão nem beber água, e escreveu nas tábuas as palavras da aliança, os
dez mandamentos da Lei" (Ex 34,10-28).

Deus não muda, é sempre o mesmo. Apesar de tudo, as determinações a que se


sujeitarão os Israelitas se equiparam às anteriores e são como se fossem uma
repetição resumida delas, qual seja a mesma exigência de fidelidade à Iahweh
mantendo-se a mesma Missão de Israel de erradicar o culto pagão:

"Guarda bem o que hoje te ordeno. Eu expulsarei da tua frente os amorreus,


os cananeus, os hititas, os fereseus, os heveus e os jebuseus. Guarda-te de
fazer aliança com os habitantes do país que invadirás, para que não se
tornem uma armadilha. Ao contrário derrubareis os altares, quebrareis as
estelas e cortareis os troncos sagrados. Porque não deverás adorar nenhum
outro Deus, pois o Senhor se diz ciumento e de fato é. Não faças aliança
com os habitantes do país! Senão, quando se prostituírem com os deuses e
lhes oferecerem sacrifícios, eles te convidariam e tu comerias dos seus
sacrifícios; tomarias suas filhas para casarem com teus filhos, e quando elas
se prostituíssem com seus deuses, levariam também teus filhos a se
prostituírem com eles. Não farás para ti deuses de metal fundido" (Ex 34,11-
17).

Também a fidelidade aos princípios concernentes à celebração e manutenção do


culto, à entrega das oferendas, "não se apresentando nunca no santuário de mãos
vazias", e às datas das comemorações religiosas, aos sábados, aos primogênitos etc.,
prescrições essas que são ratificações das já anteriores (Ex 23,12.15.16.17.18.19.23-
33; 20,4.5.23; 22,28-29):

"Guardarás a festa dos ázimos. Durante sete dias comerás pão sem fermento,
como te mandei, no tempo marcado do mês das Espigas. Pois foi no mês das
Espigas que saíste do Egito. Todo primogênito é meu: todos os primogênitos
machos de teu rebanho, das vacas e ovelhas. Resgatarás o primogênito do
jumento, com uma ovelha; se não o resgatares, deverás quebrar-lhe a nuca.
Resgatarás o primogênito de teus filhos. Não te apresentarás diante de mim
de mãos vazias. Durante seis dias trabalharás e no sétimo descansarás, tanto
na época do plantio como na da colheita. Celebrarás a festa das Semanas no
início da colheita do trigo, e a festa da Colheita no fim do ano. Três vezes
por ano todos os homens deverão comparecer diante do Senhor, o Senhor
Deus de Israel. Eu expulsarei diante de ti as nações e dilatarei tuas
fronteiras; assim ninguém cobiçará a tua terra enquanto estiveres subindo,
três vezes por ano, para te apresentares diante do Senhor teu Deus. Não
oferecerás o sangue de minhas vítimas com pão fermentado. O sacrifício da
festa da Páscoa não deve sobrar para o dia seguinte. 26 Levarás à casa do
Senhor teu Deus, o melhor dos primeiros frutos do teu solo. Não cozinharás
um cabrito no leite de sua mãe" (Ex 34,18-26).

Iahweh - Deus é quem agora vai escrever os Dez Mandamentos nas tábuas de pedra
lavradas por Moisés (Ex 34,1 / Dt 10,3-5, não como sugere 34,27-28). O que
Moisés escreve são as demais prescrições. Essas tábuas irão para a Arca da Aliança.
Moisés ao descer do Monte com as Tábuas da Lei nas mãos irá "brilhar / lançar
raios de seu rosto" a ponto de amedrontar os Israelitas, motivo que o leva a "cobrir o
rosto que apresentava a semelhança de trazer chifres resplandecentes na cabeça", tal
como constava da Vulgata de São Jerônimo (Ex 34,29-35). Tanto o "brilho" como
os "chifres" traduzem a união com Iahweh, tal como a significação de estar
representado em Moisés o Poder e a Glória de Deus fortalecendo a posição de seu
eleito apesar da insurreição havida:

"Quando Moisés desceu da montanha do Sinai, trazendo na mão as duas


tábuas da aliança, não sabia que a pele de sua face resplandecia (lançava de
si uns raios) por ter falado com o Senhor. Aarão e os israelitas todos, ao
verem como resplandecia (ou "lançava de si os raios") a face de Moisés,
tiveram medo de aproximar-se. Então Moisés os chamou, e Aarão com os
chefes da comunidade voltaram-se, e ele lhes falou. Depois aproximaram-se
os demais israelitas, e Moisés lhes transmitiu todas as ordens que o Senhor
lhe tinha dado no monte Sinai. Quando Moisés acabou de falar, pôs um véu
sobre o rosto. Quando Moisés se apresentava ao Senhor para falar, retirava o
véu, até sair; depois saía e dizia aos israelitas o que lhe tinha sido mandado.
Os israelitas viam a face radiante (ou "que lançava de si uns raios") de
Moisés, e Moisés tornava depois a cobrir o rosto com o véu, até ir falar de
novo com o Senhor" (Ex 34,29-35).
São Paulo irá se referir a esse fato quando analisar a causa da incredulidade dos
judeus quanto à messianidade de Jesus Cristo, vinculando-a como condição para se
compreender as Escrituras:

"Tal é a confiança que temos em Deus por Cristo. Não que por própria força
sejamos capazes de pensar alguma coisa como de nós mesmos. Nossa
capacidade vem de Deus. Ele é que nos capacitou como ministros da nova
aliança, não da letra mas do Espírito. Pois a letra mata e o espírito dá vida.
Pois, se o ministério da morte, gravado em letras de pedra, se revestiu de tal
glória que os israelitas não podiam fixar os olhos no rosto de Moisés, por
causa do esplendor de sua face, que era transitório, como não será de maior
glória o ministério do Espírito? Se o ministério da condenação já foi
glorioso, muito mais o ultrapassará em glória o ministério da justiça. E, em
verdade, o que foi glorioso de modo parcial, deixa de o ser, comparado com
esta outra glória eminente. Porque, se o transitório foi glorioso, muito mais o
será o que permanece. De posse de tal esperança, procedemos com plena
franqueza. Não fazemos como Moisés, que cobria o rosto com um véu para
que os israelitas não vissem o fim da glória que se desvanecia. Em
conseqüência, a inteligência deles permaneceu obscurecida. Ainda agora,
quando lêem o Antigo Testamento, esse mesmo véu permanece cerrado,
porque só em Cristo é que deve ser aberto. Por isso até o dia de hoje, quando
lêem Moisés um véu lhes cobre o coração. Tal véu só lhes será tirado
quando se converterem ao Senhor. O Senhor é o Espírito e onde está o
Espírito do Senhor, há liberdade. Todos nós, de face descoberta, refletimos a
glória do Senhor, como um espelho, e nos vemos transformados nesta
mesma imagem, sempre mais gloriosa, pela ação do Senhor, que é Espírito"
(2Cor 3-18).

6. A EREÇÃO E CONSAGRAÇÃO DO SANTUÁRIO E DO


SACERDÓCIO

A envergadura dos homens que compõem a História da Salvação é respeitável por


demais. As personalidades até agora vistas, começando com Abraão, passando por
Isaac e pelo vigor de um manso Jacó, com a inflexível obstinação comum por Deus,
vão ecoar num José do Egito e agora vêm explodir num Moisés. A luta que
travaram contra tudo e contra todos, sozinhos e perseguidos as mais das vezes, e as
suas vitórias à sombra da proteção de Deus, que lhes abonou o vigor e a tenacidade,
deu-lhes como resposta à fé que nEle depositaram a capacidade de suportar tudo
sem esmorecer. Fibra invejável, santidade indiscutível e fé inabalável. Creram e, tal
como creram, viveram. Eram já a expressão prévia do próprio Povo a que dariam
origem, os seus descendentes que compartilhariam a mesma obstinação, até mesmo
quando aqui e acolá muitas vezes fossem julgados "um povo de dura cerviz" (Ex
32,9.22; 33,3; 34,9). Mas essa "dureza" tinha as mais das vezes duas alternativas ou
dois gumes uma vez que se manifestava também pela unicidade de fé e fidelidade a
Iahweh, até mesmo quando postas à prova em simples lances de desprendimento
material:

"Moisés falou a toda a comunidade dos israelitas e lhes disse: "Foi isto o que
o Senhor mandou: Fazei entre vós uma coleta para o Senhor . Quem for
generoso levará uma oferenda ao Senhor: ouro, prata, bronze, púrpura
violácea, vermelha e carmesim, linho fino, crinas de cabra, peles (...) Todos
os artesãos habilidosos venham para executar tudo o que o Senhor mandou:
a morada com a tenda e a cobertura, as argolas, (...); o altar dos holocaustos,
com a grelha de bronze, os varais e todos os utensílios; a bacia e (...), as
vestes litúrgicas para o sacerdote Aarão, e as vestes dos filhos para as
funções sacerdotais". Então toda a comunidade dos israelitas se retirou da
presença de Moisés. Em seguida vieram todos cujo coração os movia, e
cujo ânimo os impelia, trazendo ofertas ao Senhor para as obras da
tenda de reunião, para o culto em geral, e para as vestes litúrgicas.
Vieram homens e mulheres, e todos generosamente traziam broches,
brincos, anéis, colares e toda sorte de objetos de ouro, que cada um
apresentava como oferta ao Senhor. Todos quantos tinham consigo púrpura
(...) Os que desejavam fazer ofertas de prata ou de bronze, trouxeram-nas ao
Senhor . O mesmo fizeram os que tinham madeira de acácia para as várias
obras da construção. Todas as mulheres que tinham habilidade para a
tecelagem, teceram e trouxeram os tecidos: a púrpura violácea, vermelha e
carmesim, e o linho fino. Todas as mulheres bem dispostas e dotadas para
tanto, teceram crinas de cabra. Os chefes do povo trouxeram pedras de ônix
e pedras de engaste para o efod e o peitoral, os perfumes e o azeite para o
candelabro, para o óleo de unção e para o incenso aromático. Todos os
israelitas, homens e mulheres, dispostos a contribuir para as obras que
o Senhor tinha mandado executar por meio de Moisés, trouxeram ao
Senhor contribuições espontâneas..." (Ex 35,4-35).

A generosidade com que se apresentaram os Israelitas das várias especialidades


evidencia a sua fidelidade "obstinada" a Iahweh, mostrando também que a atitude
tomada com o Bezerro de Ouro não pode ter sido um ato de absoluta rebeldia e
rejeição a Deus, mas uma sedição de colorido cultural de projeção apenas "política".
Essa generosidade foi tamanha que exigiu um pedido de interrupção das oferendas
para o Santuário:

"...Mas cada manhã o povo continuava trazendo a Moisés ofertas


espontâneas, de modo que os artífices que faziam as obras do santuário
deixaram o trabalho e vieram dizer a Moisés: "O povo traz muito mais que
o necessário para executar a construção que o Senhor mandou fazer".
Então Moisés mandou que se publicasse no acampamento a seguinte
ordem: "Ninguém mais, nem homem nem mulher, promova campanhas
para a coleta do santuário". E o povo deixou de trazer ofertas. O
material já era suficiente para todos os trabalhos que se deviam executar, e
até sobrava" (Ex 36,3-7).
Assim é que começam os trabalhos conforme projetados e apresentados por Moisés,
findo o seu retorno ao retiro contemplativo, descrevendo-os na ordem cronológica
de sua apresentação. A começar com as cortinas do Tabernáculo (Ex 36,8-19 / Ex
26,1-13), a coberta de peles e as tábuas (Ex 36,20-34 / Ex 26,14-30), o Véu e as
colunas (Ex 36,35-38 / Ex 26,31-37), a Arca da Aliança (Ex 37,1-5 / Ex 25,10-16),
o Propiciatório e os Dois Querubins (Ex 37,6-9 / Ex 25,17-22), a Mesa e seus
utensílios (Ex 37,10-16 / Ex 25,23-30), o Candelabro de ouro puro (Ex 37,17-24 /
25,31-40), o Altar do Incenso (Ex 37,25-28 / Ex 30,1-10), o Óleo Sagrado da Unção
e o Incenso Santo (Ex 37,29 / Ex 30,22-38), o Altar dos Holocaustos (Ex 38,1-7 /
Ex 27,1-8), a Bacia de Bronze (Ex 38,8 / Ex 30,17-21), o Átrio (Ex 38,9-20 / Ex
27,9-19), completando a Obra do Santuário com um Inventário final do material
gasto e finalmente as Vestes e os Paramentos dos Sacerdotes (Ex 39,1-31 / Ex 28,1-
43). Apresentou-se toda a Obra a Moisés que a determinara (Ex 39,32-43 / Ex
35,10-19):

" Os israelitas executaram todos os trabalhos exatamente como o Senhor


tinha ordenado a Moisés. Moisés examinou toda a construção e viu que a
fizeram exatamente como o Senhor tinha mandado a Moisés, e os abençoou"
(Ex 39,42-43).

Esta última frase nos faz lembrar outra que tem a mesma conotação de se atingir
determinada finalidade a que toda a obra se destinava:

"E Deus viu tudo quanto havia feito e achou que estava muito bom" (Gn
1,31)

" Moisés examinou toda a construção e viu que a fizeram exatamente como
o Senhor tinha mandado" (Ex 39,42).

Tudo o que de material era necessário para a construção do Santuário, Tabernáculo


ou "Habitação do Senhor" estava pronto e foi por Moisés entregue a Iahweh, que
determina a sua ereção, consumando a Obra:

"O Senhor falou a Moisés, dizendo: "No primeiro dia do primeiro mês
levantarás a morada, a tenda de reunião. Porás ali a arca da aliança, e a
cobrirás com o véu. Introduzirás a mesa, e a deixarás posta; levarás o
candelabro, e colocarás as lâmpadas; porás o altar de ouro para o incenso
diante da arca da aliança, e pendurarás a cortina na entrada da morada. Porás
o altar dos holocaustos diante da entrada da morada, da tenda de reunião.
Colocarás a bacia entre a tenda de reunião e o altar, e porás água; disporás o
átrio em torno, e porás a cortina na entrada do átrio" (Ex 40,1-7).

Porém, a parte material apenas não basta, falta a parte principal, o objetivo de toda a
Obra: - prepará-la para atingir a Santificação pela comunhão com Iahweh,
organizando-se o Sacrifício. É o que vem a seguir:
"Pegarás o óleo de unção, ungirás a morada e tudo o que nela estiver,
consagrando-a assim com todos os pertences, e ela será santa. Ungirás o
altar dos holocaustos e todos os utensílios, consagrando assim para que
seja santíssimo. Ungirás a bacia com a base, para consagrá-la" (Ex 40,9-
11).

Bom será repetir o significado dessa Unção com o Óleo Sagrado, a "consagração do
que for tocado por ele para que seja santíssimo", incluindo então o Sacerdócio para
o qual foi "separado" "Aarão e seus filhos":

"Farás disto um óleo para a unção sagrada, uma mistura de especiarias


preparada segundo a arte da perfumaria. Será este o óleo para a unção
sagrada. Ungirás a tenda de reunião, a arca da aliança, a mesa com todos os
apetrechos, o candelabro com os utensílios, o altar do incenso, o altar dos
holocaustos com os utensílios, bem como a bacia com o suporte. Assim os
consagrarás e serão santíssimos; tudo o que os tocar será santo. Ungirás
também Aarão e os filhos, consagrando-os para me servirem como
sacerdotes" (Ex 30,25-30).

Agora atinge-se o ponto central de toda a Obra, a investidura dos sacerdotes, sem os
quais não há sacrifício (Hb 8,3) e nada do que se fez poderia levar à comunhão com
Deus pela Santidade ensejada:

"Mandarás Aarão e seus filhos aproximar-se da entrada da tenda de reunião


e os lavarás com água. Depois revestirás Aarão com as vestes litúrgicas, e
o ungirás consagrando-o para que me sirva como sacerdote. Farás os
filhos aproximar-se e, depois de revesti-los com as túnicas, os ungirás
como ungiste o pai, para que me sirvam como sacerdotes. Esta unção
conferir-lhes-á o sacerdócio perpétuo por todas as gerações" (Ex 40,12-
15).

"...revestirás Aarão com as vestes litúrgicas, e o ungirás consagrando-o para


que me sirva como sacerdote; e, farás os filhos aproximar-se e, depois de
revesti-los com as túnicas, os ungirás para que me sirvam como sacerdotes.
Esta unção conferir-lhes-á o sacerdócio perpétuo por todas as gerações" - após
o que o narrador afirma o término da Obra da Habitação, qual seja, a "montagem"
de todo o Tabernáculo, juntando-se uma a uma as peças e dispondo os móveis e os
utensílios nos respectivos locais planejados, tudo feito a partir de Moisés:

"No dia primeiro do primeiro mês do segundo ano, foi erigida a morada.
Moisés levantou a morada, colocou as bases e as tábuas, assentou as
travessas e ergueu as colunas. Estendeu a tenda sobre a morada e pôs por
cima a cobertura da tenda, como o Senhor lhe havia mandado. Pegou o
documento da aliança e o colocou dentro da arca, meteu os varais na arca e
pôs por cima dela o propiciatório. Introduziu a arca na morada e pendurou o
véu de proteção, ocultando a arca da aliança, como o Senhor tinha mandado
a Moisés. Depois instalou na tenda de reunião a mesa, no flanco norte da
morada, do lado de fora do véu; e arrumou sobre ela os pães consagrados ao
Senhor , assim como o Senhor tinha mandado a Moisés. Pôs o candelabro na
tenda de reunião, defronte da mesa, no flanco sul da morada. Em cima
acendeu as lâmpadas diante do Senhor , assim como o Senhor havia
mandado a Moisés. Colocou o altar de ouro na tenda de reunião, diante do
véu, e queimou o incenso aromático, assim como o Senhor havia mandado a
Moisés. Pendurou a cortina na entrada da morada" (Ex 40,17-28).

"Pegarás o óleo de unção, ungirás a morada e tudo o que nela estiver,


consagrando-a assim com todos os pertences, e ela será santa. Ungirás o altar
dos holocaustos e todos os utensílios, consagrando assim para que seja
santíssimo. Ungirás a bacia com a base, para consagrá-la" (Ex 40,9-11) -
"Moisés executou tudo exatamente como o Senhor lhe havia ordenado" (Ex 40,16) -
Isto feito, tendo "ungido" toda "a morada e tudo o que nela estava" (Ex 40,9),
Moisés inaugura e oficializa o culto, com um holocausto e a oblação que oferece:

"Diante da entrada da morada, da tenda de reunião, colocou o altar dos


holocaustos, e ofereceu o holocausto e a oblação, assim como Senhor
tinha mandado a Moisés. Instalou a bacia entre a tenda de reunião e o altar,
e pôs a água para as abluções, onde Moisés, Aarão e os filhos lavavam as
mãos e os pés. Lavavam-se toda vez que entravam na tenda de reunião e se
aproximavam do altar, assim como o Senhor havia mandado a Moisés.
Levantou o átrio em torno da morada e do altar, e pendurou a cortina na
entrada do átrio. Assim Moisés deu por concluída a obra" (Ex 40,20-33).

"Assim Moisés deu por concluída a obra" (Ex 40,33) e tão logo isso sucede,
Iahweh se manifesta e se exterioriza na "nuvem" (Ex 13,21-22) e toma posse do
santuário:

"Então a nuvem envolveu a tenda de reunião, e a glória do Senhor tomou


conta da morada. Moisés não podia entrar na tenda de reunião, porque sobre
ela repousava a nuvem, e a glória do Senhor ocupava a morada. Em todas as
etapas da viagem os israelitas punham-se em movimento sempre que a
nuvem se elevava de cima da morada; nunca partiam antes que a nuvem se
levantasse. De fato, a nuvem do Senhor ficava durante o dia sobre a morada,
e durante a noite havia um fogo visível a todos os israelitas, ao longo de
todas as etapas da viagem" (Ex 40,16-38).

Nuvem (Ex 13,21-22; 24,15-18 / Nm 9,15-23) que conduzirá o Povo de


Deus à Terra Prometida - mais uma etapa completada no desígnio de Deus
reconduzindo o Homem para o lugar dele no Paraíso, estabelecidos os
princípios básicos do Culto a Iahweh. Este Culto vai já desaguar no
Sacrifício, o Centro Gravitacional desde os Patriarcas, "figura" do definitivo
de Jesus Cristo, cujo cerimonial Eucarístico nas Igrejas Orientais, Anglicana
e Católica, e em outras denominações Cristãs, é ainda cercado e
ornamentado de paramentos, de utensílios e até mesmo de rituais aqui
inspirados. Sem o seu conhecimento não se vai entendê-los "parecendo"
tudo uma encenação fora de época e sem sentido. Principalmente pelo
desconhecimento do Sacrifício, que será objeto principal e tema central do
Livro que estudar-se-á em seguida.
LEVÍTICO
Este livro da Bíblia recebeu este nome a partir da Tribo de Levi principal protagonista do Sacerdócio
instituído em duas ramificações: por primeiro a Casa de Aarão a quem foi outorgado o Sacerdócio
Pleno e por segundo os demais levitas para o Sacerdócio Auxiliar. Nele se descrevem os principais
sacrifícios e as festas com seus rituais e com as funções sacerdotais bem delineadas, bem como
regras morais e de purificação ou santificação. Por isso o nome derivado de Levi - Levítico.

7. O SACERDÓCIO

Antes de se adentrar mais detalhadamente nos Sacrifícios é bom que se complete o


que foi anunciado a respeito do Sacerdócio, sem o qual não se realizam. Desde a
"eleição" dos primogênitos, "consagrados a Iahweh" após a libertação do Egito (Ex
13,1-2), o Sacerdócio passa a ser uma instituição definitiva que vai ser ratificada
com a construção e ereção do Santuário:

"Depois manda que do meio dos israelitas se aproximem a ti o teu irmão


Aarão e seus filhos Nadab, Abiú, Eleazar e Itamar, para que me sirvam
como sacerdotes. Mandarás fazer vestes litúrgicas para teu irmão Aarão, em
sinal de honra e distinção. Incumbirás por isso artistas bem preparados, que
dotei do espírito de sabedoria, de confeccionar as vestes de Aarão, para
consagrá-lo como sacerdote a meu serviço. Estas são as vestes que deverão
fazer: um peitoral, um efod, um manto, uma túnica bordada, uma mitra e um
cinto. Assim farão vestes litúrgicas para teu irmão Aarão e seus filhos para
que sejam meus sacerdotes. Utilizarão ouro, púrpura violácea, vermelha e
carmesim e linho fino (...) Para os filhos de Aarão farás túnicas, cintos e
turbantes em sinal de honra e distinção. Destas vestimentas revestirás teu
irmão Aarão e seus filhos e os ungirás, investindo-os e consagrando-os para
que me sirvam como sacerdotes. Faze-lhes calções de linho para cobrirem a
nudez, da cintura até as coxas. Aarão e seus filhos os usarão quando
entrarem na tenda de reunião ou quando se aproximarem do altar para servir
no santuário, a fim de não incorrerem em falta e não morrerem. Esta é uma
lei perpétua para Aarão e seus descendentes" (Ex 28,1-43).

A investidura obedeceria ritual próprio (Ex 29), durante o qual, além da Unção de
Aarão e seus filhos, vários ritos de purificação seriam executados para a
indispensável Santificação geral e deles, oferecendo-se durante o cerimonial os
seguintes tipos de Sacrifícios:

 Sacrifício pelo Pecado (Ex 29,10-14);


 Holocausto (Ex 29,15-18); e,
 Sacrifício Pacífico (Ex 29,19-26).
Quando da ereção do Santuário (Ex 35-40) o Sacerdócio deveria ter sido
também então estruturado junto:

"Pegarás o óleo de unção, ungirás a morada e tudo o que nela estiver,


consagrando-a assim com todos os pertences, e ela será santa.
Ungirás o altar dos holocaustos e todos os utensílios, consagrando
assim para que seja santíssimo. Ungirás a bacia com a base, para
consagrá-la. Mandarás Aarão e seus filhos aproximar-se da entrada
da tenda de reunião e os lavarás com água. Depois revestirás Aarão
com as vestes litúrgicas, e o ungirás consagrando-o para que me sirva
como sacerdote. Farás os filhos aproximar-se e, depois de revesti-los
com as túnicas, os ungirás como ungiste o pai, para que me sirvam
como sacerdotes. Esta unção lhes há de conferir o sacerdócio
perpétuo por todas as gerações". Moisés executou tudo exatamente
como o Senhor lhe havia ordenado" (Ex 40,9-16).

O que se observa porém, é Moisés oferecendo os sacrifícios e cometendo os


atos litúrgicos pertinentes à ordenação sacerdotal de Aarão e seus filhos:

"Diante da entrada da morada, da tenda de reunião, colocou o altar


dos holocaustos, e ofereceu o holocausto e a oblação, assim como
Senhor tinha mandado a Moisés. Instalou a bacia entre a tenda de
reunião e o altar, e pôs a água para as abluções, onde Moisés, Aarão
e os filhos lavavam as mãos e os pés. Lavavam-se toda vez que
entravam na tenda de reunião e se aproximavam do altar, assim como
o Senhor havia mandado a Moisés. Levantou o átrio em torno da
morada e do altar, e pendurou a cortina na entrada do átrio. Assim
Moisés deu por concluída a obra" (Ex 40,29-33).

Somente após a apresentação sistemática dos Sacrifícios é que se dará a


Investidura Oficial de Aarão e seus filhos no Sacerdócio, praticando-se
então todas as operações já delineadas para a "consagração ou santificação"
exigida (Ex 29):

"O Senhor falou a Moisés, dizendo: "Toma contigo Aarão e seus


filhos, as vestes, o óleo da unção, o bezerro para o sacrifício
expiatório, os dois carneiros e o cesto de pães sem fermento, e reúne
toda a comunidade à entrada da tenda de reunião". Moisés fez como
o Senhor lhe tinha mandado e a comunidade se reuniu à entrada da
tenda de reunião. Moisés disse à comunidade: "É isto que o Senhor
mandou fazer". Depois mandou que se aproximassem Aarão e seus
filhos, e os lavou com água. Vestiu Aarão (...).Depois Moisés pegou
o óleo da unção, ungiu o tabernáculo e tudo o que nele havia, para
consagrá-lo. Aspergiu sete vezes o altar, e ungiu-o com todos os
utensílios, bem como a bacia com o suporte, consagrando-os.
Derramou óleo de unção sobre a cabeça de Aarão, e ungiu para
consagrá-lo. Depois mandou aproximarem-se os filhos de Aarão,
vestiu-lhes as túnicas, cingiu-lhes o cinto e lhes pôs os turbantes,
como o Senhor havia mandado a Moisés. Mandou trazer o bezerro
para o sacrifício pelo pecado. Aarão e seus filhos impuseram as
mãos sobre a cabeça deste bezerro. Depois de imolá-lo, Moisés
pegou sangue e untou com o dedo as pontas em volta do altar,
purificando-o. Derramou o sangue ao pé do altar, e o consagrou,
fazendo sobre ele a expiação. Moisés pegou toda a gordura que
envolve as vísceras, a camada gordurosa do fígado e os dois rins com
a respectiva gordura, e queimou tudo no altar. O bezerro, com pele,
carne e excrementos, queimou-o fora do acampamento, como o
Senhor lhe tinha mandado. Mandou trazer o carneiro do holocausto,
para que Aarão e os filhos impusessem-lhe as mãos sobre a cabeça.
Moisés o imolou, e derramou o sangue em volta do altar. Depois de
esquartejar o carneiro, Moisés queimou a cabeça e os pedaços com a
gordura. Moisés lavou com água as vísceras e as patas, e assim
queimou o carneiro inteiro no altar. Era um holocausto de suave
odor, um sacrifício feito pelo fogo ao Senhor, como o Senhor tinha
mandado a Moisés. Mandou trazer o segundo carneiro, o carneiro da
consagração, e Aarão e seus filhos impuseram as mãos sobre a
cabeça do animal. Depois de imolá-lo, Moisés pegou o sangue e
untou o lobo da orelha direita de Aarão, o polegar da mão direita e o
polegar do pé direito. Mandou aproximarem-se os filhos de Aarão, e
untou-lhes com sangue o lobo da orelha direita, o polegar da mão
direita e o polegar do pé direito, e depois derramou o sangue em
torno do altar. Pegou a gordura, a cauda, toda a gordura que cobre as
vísceras, a camada gordurosa do fígado, os dois rins com a gordura, e
a perna direita. Do cesto dos ázimos, posto diante do Senhor, tomou
um pão sem fermento, uma torta sem fermento amassada com azeite
e um bolinho, e colocou sobre as partes gordurosas e sobre a perna
direita. Entregou tudo isso nas mãos de Aarão e de seus filhos, para
que apresentassem com um gesto de oferta ao Senhor. Depois, tomou
tudo das mãos deles e queimou no altar, em cima do holocausto. Era
o sacrifício consecratório de suave odor, um sacrifício pelo fogo ao
Senhor. Depois Moisés pegou o peito do carneiro e o apresentou com
um gesto de oferenda ao Senhor. Esta foi a porção do carneiro da
consagração, pertencente a Moisés, como o Senhor lhe tinha
mandado. Moisés tomou um pouco do óleo de unção e do sangue que
estava sobre o altar, aspergiu Aarão e suas vestes, bem como os
filhos de Aarão e suas vestes. Assim consagrou Aarão, seus filhos e
as respectivas vestes. Moisés disse para Aarão e seus filhos:
"Cozinhai a carne à entrada da tenda de reunião. Ali mesmo a
comereis com o pão que está na cesta das ofertas da consagração,
conforme eu mandei, dizendo: Aarão e seus filhos hão de comê-la. O
que restar da carne e do pão, devereis queimá-lo" (Lv 9,-32).

Durante a Investidura foi seguido o ritual já estabelecido e próprio (Ex 29),


durante o qual, além da Unção de Aarão e seus filhos, vários ritos de
purificação foram executados para a indispensável Santificação geral e
deles, oferecendo-se durante o cerimonial os seguintes tipos de Sacrifícios:

 Sacrifício pelo Pecado (Lv 8,14-17 / Ex 29,10-14);


 Holocausto (Lv 8,18-21 / Ex 29,15-18); e,
 Sacrifício Pacífico (Lv 8,22-32 / Ex 29,19-26).

Limitar-se-á por enquanto apenas à ordenação sacerdotal, necessária por


causa dos rituais dos vários Sacrifícios narrados no início, antes dessa
investidura simplesmente porque o Sacerdote oficiante de toda esta
cerimônia foi Moisés, o Sacerdote da Aliança, que a completa com o
Preparo .e a Oferta das Primícias Sacerdotais, assumindo assim as funções
Aarão e os seus filhos (Ex 8,33-9,24).

"Durante sete dias não saireis da entrada da tenda de reunião, até se


completarem os dias da vossa consagração, pois ela durará sete dias.
O que se fez no dia hoje, o Senhor ordenou que se fizesse para expiar
por vós. Ficareis durante sete dias, dia e noite, à entrada da tenda de
reunião, e observareis o que o Senhor mandou, para não morrerdes,
pois esta é a ordem que recebi". Aarão e seus filhos fizeram tudo o
que o Senhor lhes mandou por meio de Moisés" (Lv 8,33-36).

Toda a cerimônia se completará com as Primícias dos Novos Sacerdotes:

"No oitavo dia Moisés chamou Aarão, seus filhos e os anciãos de


Israel, e disse para Aarão: 'Escolhe um bezerro para o sacrifício
expiatório pelo pecado, e um carneiro para o holocausto, ambos sem
defeito, e apresenta-os ao Senhor. Falarás aos israelitas, dizendo:
Tomai um bode para o sacrifício expiatório, um bezerro e um
cordeiro, ambos de um ano e sem defeito, para o holocausto, um
touro e um carneiro para o sacrifício pacífico, a fim de sacrificá-los
perante o Senhor, e uma oblação amassada com azeite, porque hoje o
Senhor vos aparecerá". Trouxeram diante da tenda de reunião o que
Moisés tinha mandado. A comunidade toda aproximou-se e se pôs de
pé diante do Senhor. Moisés disse: "É isto que o Senhor mandou que
fizésseis para que vos apareça a glória do Senhor ". Moisés disse
para Aarão: "Aproxima-te do altar. Oferece o teu sacrifício pelo
pecado e o holocausto, e faze a expiação por ti e pelo povo.
Apresenta também a oferta do povo, e faze por eles a expiação,
conforme o Senhor mandou (...) Levantando as mãos para o povo
Aarão os abençoou. Tendo oferecido o sacrifício expiatório, o
holocausto e o sacrifício pacífico, desceu, e Moisés e Aarão entraram
na tenda de reunião. Ao sair, abençoaram o povo. Então a glória do
Senhor apareceu a todo o povo, e um fogo enviado pelo Senhor
consumiu no altar o holocausto e as gorduras. Vendo, o povo inteiro
prorrompeu em gritos de alegria, e prostraram-se todos com o rosto
por terra'" (Lv 9,1-24).

Pode-se até mesmo atrever-se um pouco e dizer que aqui deve ser o lugar
certo do fenômeno da tomada de posse com a habitual teofania final:

"Então a nuvem envolveu a tenda de reunião, e a glória do Senhor


tomou conta da morada. Moisés não podia entrar na tenda de
reunião, porque sobre ela repousava a nuvem, e a glória do Senhor
ocupava a morada. Em todas as etapas da viagem os israelitas
punham-se em movimento sempre que a nuvem se elevava de cima
da morada; nunca partiam antes que a nuvem se levantasse. De fato,
a nuvem do Senhor ficava durante o dia sobre a morada, e durante a
noite havia um fogo visível a todos os israelitas, ao longo de todas as
etapas da viagem" (Ex 40,34-38).

8. O SACRIFÍCIO

Muitas religiões giram em torno do sacrifício, cujo significado atual cada vez mais
se afasta do original. É que, culturalmente, mudou tanto de sentido que não mais
reflete a mesma realidade. Por causa disso, nem mesmo um dicionário atual registra
aquilo que correspondia ao seu significado, principalmente entre os judeus ou
israelitas. Pelo menos biblicamente tem um sentido bem mais profundo até mesmo
que o, "a grosso modo" perceptível, sentido de "sacri-ficar" = "ficar-sagrado". E
nem pode se limitar à uma "renúncia" ou à uma "privação", dolorosa para quem a
faz, a cujo sentido é reduzido vulgarmente.

Quando Jesus a ele se referiu ou o insinuou, confundiu os chefes religiosos e os de


seu povo, seja por ocasião da "expulsão dos vendilhões do Templo" (Jo 2,13-22),
seja por ocasião do Anúncio da Eucaristia, ao dizer-se "comida" (Jo 6,50-52). No
primeiro caso Jesus não tinha nenhum direito de fazer o que fez, eis que, não
pertencendo à Tribo de Levi ou à Casa de Aarão, não era sacerdote e assim não lhe
competia a administração do Templo. Além de tudo isso, aquela área fora destinada
para o que lá se praticava, qual seja, a troca de moeda estrangeira ou a venda de
animais para as oferendas, a fim de que os judeus em peregrinação pudessem
cumprir os seus votos e deveres religiosos. Em si, fora os abusos, nada havia de
errôneo no que lá se fazia e, por causa disso, em face de sua atitude, dois fatos
acontecem. Primeiro, "os sacerdotes e escribas" perguntam a Jesus "com que
autoridade fazia estas coisas" (Mt 21,23), e "que sinais lhes mostraria para assim
agir" (Jo 2,18), e, por segundo, o Evangelista "recorda que os discípulos pensaram"
que agia assim porque "o zelo pela casa de seu Pai o dominara" (Jo 2,17 / Sl 69,10).
A resposta de Jesus foi por demais desconcertante, tanto que os seus discípulos só a
compreenderam após a sua Ressurreição. Desafiara a "destruição do Templo e a sua
reconstrução por Ele em três dias" ... "referindo-se ao seu próprio Corpo" (Jo 2,18-
22), com o que iria se tornar o único sacrifício. Por causa disso tornava-se tudo
aquilo obsoleto, sem sentido e, então, "fazendo da Casa do Pai uma casa de
comércio" (Jo 2,16), pela perda do objetivo a que se destinara. No segundo caso, ao
dizer que "meu corpo é verdadeiramente comida", confunde os judeus de tal forma
que, após dizerem "como pode este homem nos dar a sua carne para comer" (Jo
6,52), "o abandonam" (Jo 6,66).

O sacrifício tanto fazia parte da compreensão cultural israelita, que estava


impregnado em seus hábitos ou costumes, até mesmo os especificamente não
religiosos. Mesmo quando participavam de uma refeição comum ou trivial, era-lhes
necessário "derramar o sangue na terra" (Lv 17,13s; Dt 12,16.23), a abster-se do
"impuro" (Lv 11,1) e a seguir determinadas normas de "purificação" (Mc 7,4), sem
o que não deveriam tomar alimento. Percebe-se que toda refeição tinha algo de
sagrado e a idéia de sacrifício era-lhe vinculada pelo comer que nela se pratica. O
seu uso, mesmo ao tempo de Cristo, já era milenar, eis que a Bíblia, apesar de não
informar a sua origem, relata ter sido ele a causa da desgraça de Caim, que matou
Abel porque "Deus agradou-se da oferenda dele (em "sacrifício") e não da sua" (Gn
4,3-8). Relata também que Noé o ofereceu quando do término do Dilúvio (Gn 8,20)
e, a partir de Abrão, desde a Promessa, registra o seu uso como forma de expressão
da adesão da fé em Iahweh (Gn 12,7 e 12,8). Prossegue com a Aliança então
contraída com Abraão, e com os demais Patriarcas Isaac e Jacó (Gn 17,4-14; 26,3-
24; 28,13-15) que a ratificaram oferecendo-o (Gn 12,7.8; 26,25; 28,17-22). E, em
virtude dessa mesma Aliança, torna-se o centro gravitacional do culto. De Jacó
adveio o povo israelita, formado pelas doze tribos oriundas de seus doze filhos.
Moisés, descendente de um deles, da Tribo de Levi, confirma e repete essa Aliança,
agora com todo o povo, no Monte Sinai, selando-a também com o sangue de um
sacrifício (Ex 24,1-8). Tudo isto já foi examinado e estudado, repete-se para
facilitar a memorização e o entendimento da exposição.

O sacrifício torna-se essencial ao culto, para significar, realizar e atualizar a união


de Iahweh - Deus com o Seu Povo pela Aliança. Após a Instituição da Páscoa (Ex
12), que era inicialmente uma comemoração familiar, institui-se o sacerdócio,
indispensável e até mesmo essencial para a celebração dele (Hb 8,3), oficializando-
se para o seu exercício os Primogênitos (Ex 13,1-2) e, depois, a Casa de Aarão (Ex
28-29), "figura" do que Cristo fará quando da Instituição da Eucaristia, na
inauguração da Páscoa Cristã, instituindo os Apóstolos para que a celebrassem "em
sua memória" (Lc 22,19-20 / 1Cor 11,23-25). O Sacerdócio Pleno da Casa de Aarão
e o Auxiliar constituído pelo restante da mesma Tribo de Levi (Nm 8,14-19),
completam a organização religiosa e de cúpula de Israel, e se tornam um centro de
unidade de todo o Povo de Deus pela consagração, significação e difusão da
Santidade de Iahweh entre as demais tribos, por meio deles (Lv 21,8), medianeiros
entre o Povo e Iahweh.

Em outra ocasião Jesus se refere ao sacrifício ao dizer que "é o altar que santifica a
oferenda" (Mt 23,19). É que, desde o Sinai, o altar era "ungido", tal como os
"sacerdotes", com o "Óleo da Unção" (Ex 30,25-30), preparado de acordo com
normas do próprio Iahweh, em virtude do que "santificava tudo que o tocasse":
"Oferecerás pelo altar um sacrifício pelo pecado, quando fizeres por ele a
expiação ("com sangue"), e o ungirás para consagrá-lo. (...); assim o altar
será santíssimo e tudo que o tocar, será santificado" (Ex 29,36-37).

Um novo elemento aparece aqui, com o rito do sacrifício pelo pecado, a expiação,
que tem como integrante essencial o sangue que expia (Lv 17,11), sem o qual não
há remissão (Hb 9,22). Ao que se conclui que, pela unção sagrada se santifica o
altar e o sacerdote, completando-se a eficácia do ato com o sangue do sacrifício pelo
pecado (Lv 6,17-22 / Hb 9,22). E, a partir desta Aliança, organizou-se um ritual,
sabendo-se que sem altar, sacerdote, sangue e vítima (= hóstia) não há sacrifício,
nem se consegue a santificação (Hb 9,19-22), um de seus objetivos. Jesus resume
tudo isso numa frase apenas. ("é o Altar que santifica a Oferenda")

Também, somente poderia participar do sacrifício quem estivesse em estado de


pureza legal (Lv 7,20-21; 11,44-45) e de santidade. Caso algo as comprometesse, o
israelita deveria purificar-se antes, conforme os rituais legais (Lv 11,25.28.32.40).
No caso da santidade comprometida havia os sacrifícios para a remissão: o
holocausto e o sacrifício de expiação ou de reparação ou pelo pecado. Têm em
comum que o ofertante impunha as suas mãos na cabeça da vítima, praticando assim
a substituição dele por ela (instituída pelo próprio Deus em Gn 22,13), imolava-a e
a esquartejava, e o sacerdote, após queimá-la, completava o ritual com o
oferecimento do sangue (Lv 1,4-5). No holocausto a vítima (ou hóstia) era toda
queimada, nenhuma de suas partes era "comida" por ninguém; já, nos sacrifícios
pelo pecado, algumas partes eram comidas pelo sacerdote apenas (Lv 6,19-23), e
outras queimadas, significando a "participação e satisfação" do próprio Deus (Lv
7,1-10 / Gn 15,17). Havia ainda o sacrifício de comunhão ou refeição sagrada, do
qual todos "comem" (Lv 3,1-7), cada qual a sua parte: o ofertante e seus familiares
ou amigos, o sacerdote e o próprio Deus, "aspirando a oferenda queimada em
perfume de suave odor a Iahweh" (Lv 3,5):

"Iahweh falou a Moisés e disse: ‘Ordena aos filhos de Israel o seguinte:


Tereis cuidado de me trazer no tempo determinado a minha oferenda, o
meu manjar, na forma de oferenda queimada de perfume agradável"
(Nm 28,1-2).

É São Paulo quem melhor nos esclarece do fundamento teológico de toda a


instituição, ao dizer:

"Aqueles que comem as vítimas sacrificadas, não estão em comunhão


com o altar?" (1Cor 10,16-18).

Deduz-se destas palavras que pelo sacrifício se estabelece íntima comunhão entre o
Ofertante, o Altar e Deus, pelo Sacerdote e com a expiação do pecado pelo sangue.
Assim, quando se fala em "altar", se fala em "vítima" e em "sacerdote"; quando se
fala em "sacerdote" se fala em "Deus" e no "sangue que expia"; quando se fala em
"sangue que expia" se fala em "vítima ou hóstia" de que se alimenta em comum e
em "santificação"; e, quando se fala em "santificação", se fala em "comunhão" de
pessoas, a partir da "comunhão" com "altar" formando-se uma "comunidade" de
todos com "Deus".

Além da substituição há outra conotação cultural do sacrifício israelita que é


necessário mencionar. É que não deixa de ser muito curiosa a distribuição das partes
da vítima do sacrifício (a serem "comidas"), entre o Ofertante, o Sacerdote e
Iahweh, com a queima do "Pão de Deus" (Lv 21,8; Nm 28,1). Até mesmo as
oferendas ou dízimos estavam sujeitos a essa distribuição sacrificial, sendo
entregues num ritual onde uma parte apenas era "comida":

"Em relação a Iahweh, vosso Deus... buscá-lo-eis somente no lugar...


escolhido... para aí colocar o seu nome e fazê-lo habitar. Levareis para lá
os vossos holocaustos e vossos sacrifícios, vossos dízimos e os dons de
vossas mãos, vossos sacrifícios votivos e vossos sacrifícios espontâneos, os
primogênitos de vossas vacas e das vossas ovelhas. E comereis lá, diante de
Iahweh, vosso Deus,... vós e vossas famílias... (...). Não poderás comer em
tuas cidades o dízimo do teu trigo, do teu vinho novo e do teu óleo, nem os
primogênitos das tuas vacas e ovelhas, nem algo dos sacrifícios votivos
que hajas prometido, ou dos sacrifícios espontâneos, ou ainda dons da tua
mão. Tu os comerás diante de Iahweh, teu Deus, somente no lugar que
Iahweh, teu Deus, houver escolhido, tu, teu filho, tua filha..." (Dt 12,4-18;
leia-se ainda Dt 12,11-12; 14,22-26).

Da citação acima vê-se que somente no lugar indicado por Deus é que se podia
comer os sacrifícios, incluído como um deles as oferendas constituídas pelos
primogênitos do gado, pelas primícias das plantações, vinho, óleo, pão, pelos dons
etc. É de se observar que as oferendas ou dízimos não podiam ser "totalmente
comidos", mas apenas "uma parte deles", pois pertenciam por direito aos sacerdotes
(Nm 18,9.20.23-24). Fossem "todos comidos" nada se lhes entregaria. Somente
"uma parte" era objeto da "santificação sacrificial", entregando-se o "todo" no
Templo. Nessa perspectiva, é São Paulo quem esclarece da outra concepção vigente,
fazendo com que se entenda melhor o alcance do sacrifício, qual seja a existência de
uma solidariedade da parte com o todo, de modos que "à santificação da parte
corresponde a santificação do todo":

"E se as primícias são santas, a massa também o será; e se as raízes são


santas, os ramos também o serão" (Rm 11,16).

Fundamentou-se naturalmente no que se prescreveu a respeito das primícias da


massa do primeiro pão a ser preparado em Israel, qual seja:

"Quando tiverdes entrado na terra para a qual eu vos conduzo, devereis


oferecer uma oferenda a Iahweh, tão logo comais do pão dessa terra. Como
primícias da vossa massa separareis um pão; fareis esta separação como
aquela que se faz com a eira. Dareis a Iahweh uma oferenda do melhor das
vossas massas" (Nm 15,18-21).
"Cada dia de sábado serão colocados, permanentemente, diante de Iahweh.
...; pertencerão a Aarão e seus filhos, que os comerão no lugar santo, pois é
coisa santíssima para ele, ..." (Lv 24,8-9).

Atinge-se assim ao âmago do que poder-se-ia denominar de Teologia do Sacrifício,


qual seja o fato de que " santificação de uma parte corresponde a santificação do
todo":

"Eles me farão um santuário, e eu habitarei no meio deles" (Ex 25,8)

10. O SACRIFICIO E OS DIREITOS, FUNÇÕES E DEVERES DOS


SACERDOTES

Apresenta o narrador a seguir disposições relacionadas com os sacrifícios já


descritos, especificando-se que partes seriam comidas pelos ofertantes, pelos
sacerdotes oficiantes e sua família, pelo ofertante e seus familiares e quais seriam
o "Pão de Iahweh" (Lv 21,6.8). Também a maneira de como se apresentar no
Santuário e como manter-se na Santidade necessária ao seu ministério
sacerdotal, na Pureza funcional dos Sacerdotes. Delas se deduz o que se
denomina aqui de "direitos e deveres dos Sacerdotes", conforme os Sacrifícios a
que se vinculam certas práticas racionalmente bem distribuídas. Por "direitos" ver-
se-á aquelas porções que lhes sejam destinadas nos Sacrifícios e por "deveres"
aqueles elementos constitutivos dos rituais litúrgicos a que dever-se-iam vincular
cumprindo-os religiosamente. Seguindo a mesma ordem em que já foram
apresentados:

1.°) - No Holocausto Cotidiano - Desde Abraão excita a curiosidade o fato de


Isaac, "enquanto caminhavam" (Gn 22,7a) e ao reclamar a ausência da vítima,
mencionar a presença de um "fogo" (Gn 22,7c), já referido antes pelo narrador (Gn
22,6 - "...tomou na mão o fogo e o cutelo..."), indicando a existência e a exigência
de um fogo especial, uma espécie de fogo sagrado que deveria ser mantido
aceso. Quando da investidura de Aarão e seus filhos para o exercício do
Sacerdócio, o Holocausto então oferecido foi consumido por um fogo do céu:

"...e um fogo enviado por Iahweh consumiu o holocausto e as gorduras que estavam
sobre o altar. Vendo, o povo inteiro prorrompeu em gritos de alegria, e prostraram-
se todos com o rosto por terra" (Lv 9,24).

Este fato vai se repetir outras vezes (Jz 6,21; 1Cro 21,26; 2Mac 2,10) e também
quando da inauguração do Templo por Salomão, o que não deixa de ser um fato
bem significativo pela freqüência com que ocorre:
"Quando Salomão terminou a oração, caiu fogo do céu e devorou o holocausto e os
sacrifícios; e a glória do Senhor encheu o templo. Os sacerdotes não puderam entrar
no templo do Senhor, pois a glória do Senhor o enchia. Todos os filhos de Israel,
quando viram o fogo descer e a glória do Senhor sobre o templo, se ajoelharam,
com o rosto em terra, sobre o pavimento, adoraram e louvaram o Senhor: "Sim, ele
é bom e eterno é seu amor". E Salomão com todo o povo ofereceu sacrifícios diante
do Senhor . O rei Salomão imolou vinte e dois mil bois e cento e vinte mil ovelhas.
Assim o rei e todo o povo inauguraram o templo de Deus" (2Cro 7,1-4).

A existência desse tipo de fogo vem confirmada por um dos livros de Macabeus:

"Estamos para celebrar, no dia 25 do mês de Casleu, a purificação do templo. Por


isso julgamos necessário dar-vos esta informação, para que também vós a celebreis
a modo da festa das Tendas, e em memória do fogo que foi reencontrado quando
Neemias ofereceu sacrifícios, depois de ter reconstruído o templo e o altar. Com
efeito, quando nossos pais foram levados à Pérsia, os piedosos sacerdotes de então
tiraram o fogo do altar e o ocultaram secretamente no fundo de um poço de água
seco, resguardando-o de tal modo que o lugar permaneceu desconhecido de todos.
Passados muitos anos, quando aprouve a Deus, Neemias, enviado pelo rei da Pérsia,
determinou que os descendentes dos sacerdotes que haviam ocultado o fogo, o
fossem procurar. Quando eles nos informaram que não tinham encontrado o fogo,
mas sim um líquido espesso, ordenou-lhes que apanhassem daquele líquido e o
trouxessem. Estando tudo disposto para o sacrifício, Neemias ordenou aos
sacerdotes que aspergissem com o líquido a lenha e o que se encontrava sobre ela. A
ordem foi executada. Quando o sol, antes recoberto por nuvens, recomeçou a
brilhar, acendeu-se grande fogo, causando admiração em todos" (2Mac 1,18-22).

Este fogo deve ser do tipo mantido sempre aceso pelos Sacerdotes num
Holocausto Cotidiano (Ex 29,38-42; Nm 28,3-8), isto é, segundo uma antiga
tradição, "o fogo vindo do céu" (Lv 9,24 / Ex 40,38), que dever-se-ia manter
sempre aceso:

"O Senhor falou a Moisés: "Manda dizer a Aarão e a seus filhos: Esta é a lei do
holocausto: o holocausto ficará sobre a lareira do altar a noite inteira, até a manhã
seguinte, e o fogo do altar será mantido aceso. (...) O fogo, porém, que arde sobre
o altar, jamais se deve extinguir. Todas as manhãs o sacerdote o alimentará com
lenha, porá sobre ela o holocausto, e queimará a gordura dos sacrifícios pacíficos. O
fogo deve arder continuamente no altar, sem jamais se apagar" (Lv 6,1-6).

Há tão grande respeito e veneração pela Santidade do Santuário que o Sacerdote


que cuidava deste fogo sagrado deveria trocar a roupa que usava para levar as
cinzas para fora do acampamento, evitando assim a contaminação com o profano
(Lv 6,4). É que tanto o santificado como o impuro contaminavam as pessoas bem
como os objetos que os tocavam (Lv 6,11c.18-23; Ex 29,37; Lv 11,24-28.31-40):

" O sacerdote, vestindo túnica e roupa de baixo de linho, removerá as cinzas


deixadas pelo fogo que consumiu o holocausto, e as depositará ao lado do altar.
Depois de despir essas vestes e vestir outras, levará as cinzas para fora do
acampamento, a um lugar não contaminado" (Lv 6,3-4).

2.°) - Nas Oblações (Lv 2,1-16 / 6,7-11):

"Esta é a lei da oblação: Os filhos de Aarão devem apresentá-la ao Senhor diante do


altar. O sacerdote pegará um punhado de flor de farinha da oblação com azeite, bem
como todo o incenso posto sobre a oferenda, e queimará no altar como memorial de
suave odor ao Senhor. O restante da oblação, Aarão e seus filhos o comerão; deverá
ser comido sem fermento, em lugar santo, no átrio da tenda de reunião. Não será
assado com fermento. É a parte que lhes destinei dos sacrifícios que me são
oferecidos pelo fogo. É coisa santíssima, da mesma forma como o sacrifício de
expiação e o de reparação. Dela poderão comer todos os filhos de Aarão do sexo
masculino. É uma lei perpétua para vossos descendentes, referente aos sacrifícios
pelo fogo ao Senhor: tudo que os tocar fica sagrado" (Lv 6,7-11).

Parte da Oblação constituída por "um punhado de flor de farinha com azeite, bem
como todo o incenso posto sobre a oferenda" seria "queimada no altar como
memorial de suave odor ao Senhor; e, o restante dela, Aarão e seus filhos
comeriam sem fermento" no Santuário e "no átrio da Tenda de Reunião". Só
Aarão e os seus filhos e descendentes masculinos dela poderiam comer, no Átrio
em frente da Tenda da Reunião, nesse lugar sagrado, por ser Santíssima, dela
"comendo" também Deus queimando-se uma parte "como memorial de suave odor
ao Senhor" (Lv 6,8). Somente os homens comeriam dessas oblações pelo fato das
mulheres da Casa de Aarão não terem sido "ungidas", e assim, "não santificadas
para o múnus sacerdotal", não as poderiam tocar "por serem oferendas
santíssimas" pelo que as profanariam pelo contagio.

Apresenta-se a seguir uma Oblação especial que os filhos de Aarão deveriam


oferecer no dia em que fossem "ungidos", distribuindo-a "metade de manhã e
metade de tarde", instituída de forma perpétua e sempre que ocorresse a
consagração para o exercício do Sacerdócio. O Sacerdote que a oferece,
diferentemente de outros, dela não se beneficiaria comendo, pois pertence
inteiramente a Iahweh:

"O Senhor falou a Moisés, dizendo: "Esta é a oferta que Aarão e seus filhos farão no
dia em que forem ungidos: quatro litros e meio de flor de farinha, como oblação
perpétua, metade de manhã e metade de tarde. Será preparada na chapa e apresentá-
la-ás embebida em azeite. Triturando-a em pedacinhos, oferecê-la-ás em suave odor
ao Senhor. A mesma oblação fará o sacerdote que entre os filhos for ungido em seu
lugar. É uma lei perpétua: será inteiramente queimada em honra ao Senhor. Toda
oblação de um sacerdote será total, e não se comerá" (Lv 6,13-16).

3.°) - Nos Sacrifícios Expiatórios ou Pelo Pecado (Lv 6,17-23 / Lv 4) - Esse ritual
destaca a Santidade da vítima seja pelo lugar onde se dá a imolação, seja por
onde se deve comê-la, seja pelos efeitos de qualquer contato com a carne ou com
o sangue, seja pela parte reservada apenas aos Sacerdotes, seja por não comer
dela o Ofertante que pecou, para não se beneficiar de seu pecado e em
penitência. É imolada, após a imposição das mãos pelo Sacerdote em nome do
Ofertante, no mesmo local do Holocausto e após a efusão do Sangue no
Santuário, tornando-se assim Santíssima, pelo que qualquer contato com ela
infunde Santidade, donde somente o Sacerdote celebrante e os colegas
masculinos que permitir podem dela comer. No caso do oferecido pelo pecado do
Sumo Sacerdote ou da Comunidade, ninguém dela comerá, devendo ser
totalmente queimada, pois o sangue é derramado em lugar santo (Lv 6,23):

"O Senhor falou a Moisés, dizendo: "Fala para Aarão e seus filhos: Esta é a lei do
sacrifício expiatório. No lugar onde se imola o holocausto, também será imolada
diante do Senhor a vítima pelo pecado. É coisa santíssima. O sacerdote que oferecer
a vítima pelo pecado, dela poderá comer. Deve ser comida em lugar santo, no átrio
da tenda de reunião. Tudo que tocar esta carne, ficará consagrado. Se o sangue
respingar alguma veste, lavarás a mancha em lugar santo. A vasilha em que for
cozida, será quebrada, se for de barro. Se for de bronze, será esfregada e lavada em
água. Todo indivíduo de sexo masculino entre os sacerdotes poderá comer desta
carne. É coisa santíssima. Mas não se poderá comer nenhuma vítima expiatória da
qual se levou sangue à tenda de reunião para fazer a expiação no santuário; será
queimada no fogo" (Lv 6,17-23).

3.1. - Nos Sacrifícios Pelo Delito ou de Reparação (Lv 7,1-10) - Há aqui como
que uma espécie de complemento delineando-se outros ritos a serem também
observados no caso de ofensas mais simples, os delitos (Lv 5,14-26). A vítima será
imolada no mesmo local do Holocausto e segue o mesmo ritual do Sacrifício de
Reparação, podendo assim ter o seu dano avaliado, acrescido de um quinto e
então pago ao Sacerdote que fará a expiação por ele (Lv 5,16.23-26). A vítima
após a efusão do sangue torna-se "coisa santíssima" entregue ao sacerdote que
fará a reparação pelo ofertante obedecendo as regras seguintes, dispensando-se
comentários pela simplicidade do ato:

"Será oferecida toda a gordura da vítima: a cauda, a gordura que envolve as


vísceras, os dois rins com a gordura que os cobre na região lombar, e a camada de
gordura do fígado que será separada com os rins. O sacerdote queimará tudo no
altar, como sacrifício pelo fogo ao Senhor. Trata-se de um sacrifício de reparação.
Dele poderá comer, em lugar santo, toda pessoa do sexo masculino entre os
sacerdotes. É coisa santíssima" (Lv 7,3-6).

Tanto aqui como no anterior a vítima é do sacerdote que faz a expiação, isto é,
daquele que oferece a gordura queimando-a e derrama o sangue:

"Vale a mesma lei tanto para o sacrifício expiatório, como para o sacrifício de
reparação: A vítima pertence ao sacerdote que faz a expiação. Ao sacerdote que
oferece o holocausto de alguém, pertence a pele da vítima que ofereceu. Toda
oblação assada ao forno ou preparada em panela ou chapa, pertence ao sacerdote
que oferece. Toda oferenda amassada com azeite ou seca, será para todos os
descendentes de Aarão, sem distinção" (Lv 7,6-10).
Destacam-se nos versículos finais a propriedade do Sacerdote que faz a expiação,
da pele dos animais e das Oblações peculiares a estes tipos de Sacrifícios, se
assada ao forno ou na panela, ou se amassada com ou sem azeite, pertencerá
então a todos os filhos de Aarão indistintamente.

4.°) - Nos Sacrifícios Pacíficos, ou Salutares ou Refeições Sagradas (Lv 3,1-17


/ Lv 7,11-21) - Pela sua relação com a Multiplicação dos Pães e com a Ceia
Pascal, unidas por Cristo na Eucaristia, este ritual é muito importante para os
Cristãos. Completando-se o que já foi apresentado a respeito, aparece um tipo
especial de Oblação que se incorpora à vítima (Lv 7,12-14) bem como regras
atinentes ao consumo da carne (Lv 7,15-21). Divide-se conforme a finalidade
pretendida em Sacrifícios de Ação de Graças ou de Louvor ou de Reconhecimento
(Lv 7,12-15) e o Sacrifício Votivo ou Espontâneo por qualquer motivo (Lv 7,16-17).
Por primeiro vem o Sacrifício de Ação de Graças, que em grego se diz
"Eucaristia":

"Esta é a lei do sacrifício pacífico que se oferece ao Senhor: Se for oferecido em


ação de graças, além da vítima de ação de graças, serão oferecidos pães ázimos
amassados com azeite, bolos ázimos untados de azeite, e flor de farinha embebida
em azeite. Além destes, com o sacrifício pacífico de ação de graças, será oferecido
pão fermentado" (Lv 7,11-13)

Não pode haver outro motivo para assim se denominar a Ceia Eucarística das
Missas, vendo nela a Oblação de Cristo, "atualizada" no "Pão Ázimo" da Hóstia
da Comunhão, que é o Seu Corpo, tal como a ela se refere o Catecismo da Igreja
Católica, no n.° 610:

"Jesus fez a manifestação suprema da Oblação Livre de Si mesmo na refeição que


tomou com os doze Apóstolos (cf. Mt 26,20), na "noite em que foi entregue" (1Cor
11,23). Na véspera da sua Paixão, quando ainda era livre, Jesus fez desta última
Ceia com os Apóstolos o memorial da Sua Oblação Voluntária ao Pai (cf. 1Cor
5,7) para a salvação dos homens: "Isto é o meu Carpo, que vai ser entregue por vós"
(Lc 22,19). "Isto é o meu 'Sangue de Aliança', que vai ser derramado por uma
multidão, para a remissão dos pecados" (Mt 26,28) (negritos propositais).

Prossegue o Catecismo n.°s. 1328 a 1332 referindo-se ao Sacramento da


Eucaristia:

1328 - II. Como é chamado este sacramento?

A riqueza inesgotável deste sacramento exprime-se nos diferentes nomes que lhe
são dados. Cada um destes nomes evoca alguns dos seus aspectos. Ele é
chamado:

Eucaristia, porque é ação de graças a Deus. As palavras "eucharistein" (Lc 22,19;


1Co 11,24) e "eulogein" (Mt 26,26; Mc 14,22) lembram as bênçãos judaicas que
proclamam - sobretudo durante a refeição - as Obras de Deus: a Criação, a
Redenção e a Santificação.

1329 - Banquete do Senhor (1Co 11,20), porque se trata da Ceia que o Senhor
tomou com os discípulos na véspera da sua Paixão e da antecipação do banquete
nupcial do Cordeiro (Ap 19,9) na Jerusalém Celeste.

Fração do Pão, porque este rito, próprio da refeição dos judeus, foi utilizado
por Jesus quando abençoava e distribuía o pão como chefe de família (Mt
14,19; 15,36; Mc 8,6.19), sobretudo aquando da última Ceia (cf. Mt 26,26; 1Co
11,24). É por este gesto que os discípulos O reconhecerão depois da Ressurreição
(cf. Lc 24,13-35) e é com esta expressão que os primeiros cristãos designarão as
suas Assembléias Eucarísticas (cf. At 2,42.46; 20,7.11). Querem com isso significar
que todos os que comem do único pão partido, Cristo, entram em comunhão com
ele e formam um só corpo nEle (cf. 1Co 10,16-17).

Assembléia Eucarística ("synaxis"), porque a Eucaristia é celebrada em


Assembléia de Fiéis, expressão visível da Igreja (cf. 1Co 11,17-34).

1330 - Memorial da Paixão e Ressurreição do Senhor.

Santo Sacrifício, porque atualiza o único Sacrifício de Cristo Salvador e inclui


a oferenda da Igreja; ou ainda Santo Sacrifício da Missa, "Sacrifício de Louvor"
(Hb 13,15) [cf. Sl 116,13.17], Sacrifício Espiritual (1Pe 2,5), Sacrifício Puro e Santo
(cf. Ml 1,11), pois completa e ultrapassa todos os Sacrifícios da Antiga
Aliança.

Santa e Divina Liturgia, porque toda a Liturgia da Igreja encontra o centro e a sua
expressão mais densa na celebração deste Sacramento; no mesmo sentido
também se lhe chama celebração dos Santos Mistérios. Fala-se igualmente do
Santíssimo Sacramento, porque é o Sacramentos dos Sacramentos. E, com este
nome, se designam as Espécies Eucarísticas guardadas no Sacrário.

1331 - Comunhão, pois é por este Sacramento que nos unimos a Cristo, o qual nos
torna participantes do Seu Corpo e do Seu Sangue, para formarmos um só Corpo
(cf. 1Co 10,16-17); designa-se ainda as coisas santas ("ta hagia"; "sancta") (Const.
App. 8, 13, 12; Didaké 9,5; 10,6) - é o sentido primário da "Comunhão dos Santos"
de que fala o Símbolo dos Apóstolos -, pão dos anjos, pão do céu, remédio da
imortalidade (Santo Inácio de Antioquia, Ef 20,2), viático...

1332 - Santa Missa, porque a Liturgia em que se realiza o Mistério da Salvação


termina pela despedida dos fiéis ("missio"), para que vão cumprir a vontade de
Deus na sua vida quotidiana" (negritos a propósito).

A comunhão em "figura" que se buscava vai se "cumprir" no Sacrifício Eucarístico


que "atualiza o único Sacrifício de Cristo Salvador e inclui a oferenda da
Igreja". Não seria possível essa afirmação do Catecismo se não tivesse seu
fundamento na Instituição da Eucaristia por Jesus. É preciso se lembrar que se
necessitamos de estudar a Lei dos Sacrifícios, com os Apóstolos não acontecia o
mesmo, eis que, vinculados à mesma cultura de seu tempo, conheciam a Teologia
das Oferendas o suficiente para não lhes parecer um mistério. Compreenderam
desde então que na Festa dos Pães Ázimos (Ex 13,3-7), terminada a Ceia Pascal
judaica (Lc 22,18), Jesus toma o Pão e se faz a Oblação Eucarística (Lc 22,19):

"Chegou, pois, o dia da Festa dos Pães Ázimos, em que se devia matar o Cordeiro
Pascal. Jesus enviou Pedro e João, dizendo-lhes: "Ide preparar-nos a Ceia da
Páscoa"... (...) ... Ao chegar a hora, Jesus se pôs à mesa com os apóstolos e lhes
falou: "Desejei ardentemente comer esta Ceia da Páscoa convosco antes de sofrer.
Pois eu vos digo: Nunca mais a comerei, até que ela se realize no reino de Deus".
Tomando um cálice, deu graças e disse: "Tomai este cálice e distribuí entre vós.
(18) Pois eu vos digo: Não mais beberei deste vinho até que chegue o reino de
Deus". (19) E tomando um pão, deu graças, partiu-o e deu-lhes dizendo: "Isto é o
meu corpo, que é dado por vós. Fazei isto em memória de mim". Do mesmo modo,
depois de haver ceado, tomou o cálice, dizendo: "Este cálice é a nova aliança em
meu sangue, derramado por vós" [Lc 22,7-8.14-20 - versículos (18) e (19)
destacados a propósito].

Enquanto que Cristo se faz o Único Sacerdote, o Único Ofertante,. a Única Vítima
e a Única Oblação, do que todos participam, no Sacrifício Israelita há uma
distribuição da vítima imolada, destacando-se aqui a parte que pertencerá ao
Sacerdote Celebrante, que é aquela que se destina a Iahweh:

"Além destes, com o sacrifício pacífico de ação de graças, será oferecido pão
fermentado. Uma parte de cada uma destas oferendas será oferecida como tributo ao
Senhor, e pertencerá ao sacerdote que derramou o sangue da vítima do sacrifício
pacífico" (Lv 7,13-14).

Já a carne desse tipo de Sacrifício, por ser mais santa que a dos Pacíficos, dever-
se-á cuidar para não se tornar impura ou corrompida, motivo pelo qual comer-se-á
toda no mesmo dia. Já a dos votivos ou espontâneos poderá permanecer até o dia
seguinte, após cujos intervalos deverão ser totalmente queimadas, sob pena de
ineficácia da oferenda:

"A carne da vítima do sacrifício pacífico de ação de graças será comida no próprio
dia em que for oferecida; dela nada se deverá deixar para o dia seguinte. Se a oferta
do sacrifício for em cumprimento de um voto, ou for espontânea, será comida no dia
em que se oferecer. O que sobrar poderá ser comido no dia seguinte. Mas o que
sobrar da carne do sacrifício para o terceiro dia, deverá ser queimado. Se alguém ao
terceiro dia comer do sacrifício pacífico, o ofertante não será aceito, nem lhe será
levado em conta o que ofereceu. É carne infecta e a pessoa que dela comer carregará
o peso da sua culpa" (Lv 7,15-18).
O cuidado com a carne imolada como vítima exigia que se evitasse o menor
contato com aquilo que fosse considerado impuro (Lv 11-15), sob pena de ser
queimada, para não comprometer a sua Santidade, e, pelo mesmo motivo, os
participantes "impuros" não poderiam dela comer:

"A carne que tiver tocado qualquer coisa impura não se deverá comer. Será
consumida pelo fogo. Mas da outra carne poderá comer quem estiver puro. Mas
quem comer carne do sacrifício pacífico oferecido ao Senhor, apesar de estar
impuro, será eliminado do seu povo. Quem tocar qualquer imundície de homem ou
animal, ou qualquer outra imundície abominável, e comer carne do sacrifício
pacífico pertencente ao Senhor, será eliminado do seu povo" (Lv 7,19-21).

Por tudo isso se vê o cuidado com o Sagrado e a Santidade daí emanadas,


caráter especificamente Israelita quanto aos Sacrifícios. Tudo aquilo que a ele se
referia, pessoas, objetos e coisas, eram Santificadas pela "unção" ou pelo contato
com o que o fosse, devendo assim permanecer. Este zelo pelo sagrado faz da
Aliança muito mais do que um simples compromisso de boa conduta e
comportamento, mas leva a traduzir em gestos e atitudes de reconhecimento
interior, a majestade de Deus convertido em cuidadosa e elaborada adoração, em
que Deus é o centro de tudo e tudo o mais gira em seu redor. Nos Sacrifícios
traduzia-se um profundo respeito pelo que Lhe concernia, assim como no modo de
se alimentar, abstendo-se da gordura e do Sangue de animais, mesmo abatidos
por acidente, sendo muito mais rigorosa a sanção em se tratando de Sangue:

"O Senhor falou a Moisés: "Fala aos israelitas: Não comereis gordura alguma de
boi, ovelha ou cabra. Da gordura de um animal morto ou estraçalhado, podereis
servir-vos para qualquer uso, mas de maneira alguma a comereis. Pois todo aquele
que comer gordura de animal que se oferece pelo fogo ao Senhor, será eliminado do
povo. Não comereis sangue algum, nem de ave, nem de animal, em nenhuma de
vossas moradias. Aquele que comer qualquer espécie de sangue, será extirpado do
povo" (Lv 7,22-27).

"... É um alimento oferecido pelo fogo, de suave odor. Toda a gordura pertence ao
Senhor. Esta é uma lei perpétua, válida para vossos descendentes, onde quer que
habiteis: Não devereis comer nenhuma gordura ou sangue" (Lv 3,16-17).

Coerentemente com toda a estrutura básica do Santuário, finaliza-se então a


regulamentação de todos os Sacrifícios com a previsão das partes dos
sacerdotes, as parte de Iahweh:

"O Senhor falou a Moisés, dizendo: "Fala aos israelitas: Aquele que oferecer ao
Senhor um sacrifício pacífico, levará ao Senhor a oferta tirada do sacrifício pacífico.
Levará com as próprias mãos o que se oferecer pelo fogo ao Senhor: levará a
gordura além do peito a ser agitado ritualmente diante ao Senhor. O sacerdote
queimará a gordura no altar, e o peito ficará para Aarão e seus filhos. Dareis
também ao sacerdote a coxa direita, como tributo de vossos sacrifícios pacíficos.
Aquele dentre os filhos de Aarão que oferecer o sangue do sacrifício pacífico e a
gordura, é que terá a coxa direita como parte. Pois dos sacrifícios pacíficos dos
israelitas reservei para mim o peito agitado ritualmente e a coxa do tributo, e dei-os
a Aarão e a seus filhos, como lei perpétua a ser observada pelos israelitas. Essa é a
parte de Aarão e de seus filhos nos sacrifícios oferecidos pelo fogo ao Senhor, desde
o dia em que foram promovidos a exercer o sacrifício diante do Senhor. Foi o que o
Senhor lhes mandou dar da parte dos israelitas, desde o dia da unção, como lei
perpétua para todas as gerações". Esta é a lei para o holocausto, a oblação, o
sacrifício pelo pecado, o sacrifício de reparação, o sacrifício da consagração e o
sacrifício pacífico. Foi o que o Senhor ordenou a Moisés no monte Sinai, no dia em
que mandou os israelitas oferecerem oblações ao Senhor no deserto do Sinai" (Lv
7,28-38).

"Pois dos sacrifícios pacíficos dos israelitas reservei para mim o peito agitado
ritualmente e a coxa da elevação, e dei-os a Aarão e a seus filhos, como lei
perpétua a ser observada pelos israelitas" (Lv 7,34) - este cerimonial será sempre
observado entendendo-se pela agitação feita da parte a destinação dela a Iahweh
pelo primeiro lance do movimento e a sua destinação ao Sacerdote passando
pelas mãos do ofertante, no seu retorno de Iahweh, e da mesma forma o ritual da
elevação da coxa:

"Dareis também ao sacerdote a coxa direita, como tributo de vossos sacrifícios


pacíficos. Aquele dentre os filhos de Aarão que oferecer o sangue do sacrifício
pacífico e a gordura, é que terá a coxa direita como parte. Pois dos sacrifícios
pacíficos dos israelitas reservei para mim o peito agitado ritualmente e a coxa do
tributo, e dei-os a Aarão e a seus filhos, como lei perpétua a ser observada pelos
israelitas. Essa é a parte de Aarão e de seus filhos nos sacrifícios oferecidos pelo
fogo ao Senhor, desde o dia em que foram promovidos a exercer o sacrifício diante
do Senhor. Foi o que o Senhor lhes mandou dar da parte dos israelitas, desde o dia
da unção, como lei perpétua para todas as gerações". Esta é a lei para o holocausto,
a oblação, o sacrifício pelo pecado, o sacrifício de reparação, o sacrifício da
consagração e o sacrifício pacífico. Foi o que o Senhor ordenou a Moisés no monte
Sinai, no dia em que mandou os israelitas oferecerem oblações ao Senhor no deserto
do Sinai" (Lv 7,35-38).

Desde o Sinai, em várias ocasiões, a Lei da Aliança quando determinava que


"ninguém compareça à minha presença de mãos vazias" (Ex 23,15...) e também
com a distribuição aos Sacerdotes de partes da vítima, "como tributo a Iahweh", já
se anunciava uma das finalidades das "Oferendas", agora como meio provisório
de manutenção do culto, o que posteriormente receberá grande modificação
cultual, em cuja composição situar-se-á o "Dízimo", que é uma delas.
11. OS SACRIFÍCIOS E A INVESTIDURA SACERDOTAL

Regulamentados os vários tipos de Sacrifícios principia-se a constituição do


elemento fundamental de sua existência, sem o qual não há possibilidade de sua
concretização: a investidura de Aarão e dos seus filhos para o exercício perene do
Sacerdócio, tal como delineado o seu "projeto" no n.° 7 do Capítulo 4, referente a
Ex. 28-29:

"O Senhor falou a Moisés, dizendo: "Toma contigo Aarão e seus filhos, as vestes, o
óleo da unção, o bezerro para o sacrifício expiatório, os dois carneiros e o cesto de
pães ázimos, e reúne toda a comunidade à entrada da tenda de reunião". Moisés fez
como o Senhor lhe tinha mandado e a comunidade se reuniu à entrada da tenda de
reunião. Moisés disse à comunidade: "É isto que o Senhor mandou fazer". Depois
mandou que se aproximassem Aarão e seus filhos, e os lavou com água. Vestiu
Aarão com a túnica, cingiu-lhe o cinto, revestiu-o com o manto, colocou-lhe o véu
umeral e o prendeu, atando-o com o respectivo cinto. Pôs-lhe o peitoral com os urim
e os tumim. Colocou-lhe na cabeça a mitra, e na parte dianteira a lâmina de ouro, o
diadema sagrado, conforme o Senhor havia mandado a Moisés. Depois Moisés
pegou o óleo da unção, ungiu o tabernáculo e tudo o que nele havia, para consagrá-
lo. Aspergiu sete vezes o altar, e ungiu-o com todos os utensílios, bem como a bacia
com o suporte, consagrando-os. Derramou óleo de unção sobre a cabeça de
Aarão, e o ungiu, para o consagrar. Depois mandou aproximarem-se os filhos de
Aarão, vestiu-lhes as túnicas, cingiu-lhes o cinto e lhes pôs os turbantes, como o
Senhor havia mandado a Moisés" (Lv 8,1-13).

"Moisés fez como o Senhor lhe tinha mandado e a comunidade se reuniu à


entrada da Tenda de Reunião. Moisés disse à comunidade: 'É isto que o Senhor
mandou fazer'": coube a Moisés, em virtude de sua condição de "eleito" já
comprovada desde o Egito e com as qualidades atinentes, advindas conforme a
cultura religiosa de então, conduzir e celebrar a consagração do Sacerdócio
Pleno. A investidura de Aarão caracteriza desde aqui a função principal do Sumo
Sacerdote, conhecido como "o Sacerdote da Unção" por ser o que recebe o
"óleo de unção sobre a cabeça". Somente após a conclusão de todo o ritual de
Consagração do Santuário total e de Aarão é que se dá a unção de seus filhos,
agora em conjunto com Aarão e por aspersão (cfr. Ex 29,5-8.21). Com isso fica
clara a unidade e indissolubilidade colegial do Poder Sacerdotal fundamentado em
Aarão, o Sumo Sacerdote, o Chefe da Família Sacerdotal:

"Derramou óleo de unção sobre a cabeça de Aarão, e o ungiu, para o consagrar.


Depois mandou aproximarem-se os filhos de Aarão, vestiu-lhes as túnicas, cingiu-
lhes o cinto e lhes pôs os turbantes, como o Senhor havia mandado a Moisés" (Lv
8,12-13).

Após a "unção sobre a cabeça de Aarão", vem outra por aspersão, com uma
separação sintomática, de "Aarão e suas vestes, e seus filhos e suas vestes":
"Moisés tomou um pouco do óleo de unção e do sangue que estava sobre o altar,
aspergiu Aarão e suas vestes, bem como os filhos de Aarão e suas vestes. Assim
consagrou Aarão, seus filhos e as respectivas vestes" (Lv 8,30).

Jesus vai manter esse caráter de unidade e indissolubilidade sacerdotal no


Colégio Apostólico que instituir. Tal como aconteceu com Aarão, ungido por
primeiro, e depois a Aarão junto com os seus filhos, também a Pedro foi dado por
primeiro o poder de "ligar e desligar" (Mt 16,19) e depois o mesmo poder foi dado
a Pedro junto com os demais Apóstolos (Mt 18,18).

Como já se expôs (n.° 7 do Capítulo 4), "durante a Investidura foi seguido o ritual
já estabelecido e próprio (Ex 29), durante o qual, além da Unção de Aarão e seus
filhos, vários ritos de purificação foram executados para a indispensável
Santificação geral e deles, oferecendo-se durante o cerimonial os seguintes
Sacrifícios:

 Sacrifício pelo Pecado (Lv 8,14-17 / Ex 29,10-14);


 Holocausto (Lv 8,18-21 / Ex 29,15-18); e,
 Sacrifício Pacífico (Lv 8,22-32 / Ex 29,19-26)".

Resta agora uma explanação mais ampla da utilização desses tipos de rituais na
consagração sacerdotal de Aarão e seus filhos, Sacrifícios oferecidos por Moisés,
o mediador da Aliança, a começar com o Sacrifício Pelo Pecado, o primeiro
oferecido:

"Mandou trazer o bezerro para o sacrifício pelo pecado. Aarão e seus filhos
impuseram-lhe as mãos sobre a cabeça. Depois de imolá-lo, Moisés pegou sangue e
untou com o dedo os chifres em volta do altar, purificando-o. Derramou o sangue ao
pé do altar, e o consagrou, fazendo sobre ele a expiação. Depois tomou toda a
gordura que envolve as vísceras, a camada gordurosa do fígado e os dois rins com a
sua gordura, e queimou tudo no altar. O bezerro, sua pele, carne e excrementos,
queimou-os fora do acampamento, como o Senhor lhe tinha mandado" (Lv 8,14-
17).

Como visto no número anterior (n.° 9, 3.°) este ritual tem por finalidade a
Santificação em geral, tanto das pessoas como dos objetos, para uma perfeita
união com Deus, pelo que são purificados pelo Sangue da Vítima imolada por
Moisés que "unge" os chifres com o dedo embebido e o derrama em redor do
Altar, fazendo a devida expiação e purificação, após a imposição das mãos por
Aarão e seus filhos. Queima as gorduras no Altar e o bezerro, seu pelo, a sua
carne e os excrementos fora do Santuário, nada indo para o celebrante para não
se aproveitar de sua própria falta, por quem também é oferecido [(cfr. Lv 6,17-23 /
Lv 4, conforme dito alhures que "no caso do oferecido pelo pecado do Sumo
Sacerdote ou da Comunidade, ninguém dele comerá, devendo ser totalmente
queimado, pois o sangue é derramado em lugar santo (Lv 6,23)]". Ao que se vê
este Sacrifício se destina à Santificação do Santuário, de seus pertences e
objetos, do oficiante, dos ofertantes que são consagrados e da vítima.
Vem em seguida o Holocausto:

"Mandou trazer o carneiro do holocausto, para que Aarão e os filhos impusessem-


lhe as mãos sobre a cabeça. Moisés o imolou, e derramou o sangue em volta do
altar. Depois de esquartejar o carneiro, Moisés queimou a cabeça e os pedaços com
a gordura. Moisés lavou com água as vísceras e as patas, e assim queimou o
carneiro inteiro no altar. Era um holocausto de suave odor, um sacrifício feito pelo
fogo ao Senhor, como o Senhor tinha mandado a Moisés" (Lv 8,18-21).

Moisés oferece aqui este tipo de Sacrifício, o mais perfeito ato de culto de então,
traduzindo o nada do Homem na destruição total da vítima toda queimada "em
suave odor" a Deus, ato de reconhecimento da soberania de Deus de que o
Sacerdote é medianeiro. Com este Holocausto a purificação atinge a plenitude
pela expiação conseguida e Aarão e seus filhos ficam então em condições de
Santidade para o exercício do Sacerdócio, pela imposição das mãos sobre a
vítima que praticaram (Lv 8,18) e da renúncia de si face a majestade e soberania
de Iahweh significadas no aniquilamento da vítima totalmente destruída pelo fogo.

Terminada esta fase do ritual passa Moisés à final, ao Sacrifício Pacífico, à


Refeição Sagrada, todos estando agora em condições de Santidade para se
alimentar, entrando em comunhão com Deus, e tendo então condições para o
Sacerdócio ensejado oferecendo o que se denominou "Carneiro da Consagração
ou da Investidura":

"Mandou trazer o segundo carneiro, o carneiro da consagração, e Aarão e seus


filhos impuseram as mãos sobre a cabeça do animal. Depois de imolá-lo, Moisés
pegou o sangue e untou o lóbulo da orelha direita de Aarão, o polegar da mão
direita e o polegar do pé direito. Mandou aproximarem-se os filhos de Aarão, e
untou-lhes com sangue o lóbulo da orelha direita, o polegar da mão direita e o
polegar do pé direito, e depois derramou o sangue em torno do altar" (Lv 8,22-24).

Este Sacrifício toma aqui uma conotação diferente pela sua específica finalidade
de se destinar à consagração sacerdotal pelo uso do Sangue da Vítima, antes de
derramá-lo no Altar, para banhar por primeiro "o lóbulo direito, o polegar da mão
direita e o do pé direito" de Aarão e depois de seus filhos, como que a prepará-los
para o exercício do Sacerdócio. Tinha essa unção o mesmo sentido purificador
dos chifres do Altar e somente após é que era o Sangue derramado.

Também as partes destinadas aos Sacerdotes aqui sofrem modificação estrutural,


indo, após o rito da agitação perante Iahweh, para Moisés o peito, o celebrante, e
a perna direita com a gordura e outras partes, e a oblação, passando tudo pelas
"mãos de Aarão e seus filhos", para o "gesto de oferta a Iahweh", sendo então
queimadas:

"Pegou a gordura, a cauda, toda a gordura que cobre as vísceras, a camada


gordurosa do fígado, os dois rins com a gordura, e a perna direita. Do cesto dos
ázimos, posto diante do Senhor, tomou um pão sem fermento, uma torta sem
fermento amassada com azeite e um bolinho, e colocou sobre as partes gordurosas e
sobre a perna direita. Entregou tudo isso nas mãos de Aarão e de seus filhos, para
que apresentassem com um gesto de oferta ao Senhor. Depois, tomou tudo das mãos
deles e queimou no altar, em cima do holocausto. Era o sacrifício de consagração,
um sacrifício pelo fogo de suave odor ao Senhor. Depois Moisés pegou o peito do
carneiro e o apresentou com um gesto de oferenda ao Senhor. Esta foi a porção do
carneiro da consagração, pertencente a Moisés, como o Senhor lhe tinha mandado"
(Lv 8,25-29).

Com a "unção sagrada" completa-se a consagração de Aarão e seus filhos, e suas


vestes, Santificando-se para o Sacerdócio:

"Moisés tomou um pouco do óleo de unção e do sangue que estava sobre o altar,
aspergiu Aarão e suas vestes, bem como os filhos de Aarão e suas vestes. Assim
consagrou Aarão, seus filhos e as respectivas vestes" (Lv 8,30).

Santificação que se consuma com a Refeição Sagrada, "entrando então em


comunhão com o Altar", como ensina São Paulo (1Co 10,18), cujo cerimonial vai
se repetir durante "sete dias" tempo em que Aarão e seus filhos permanecerão "à
entrada da Tenda da Reunião" (Ex 29,35-37), no local onde "cozinhai a carne"
com o que se manifesta o caráter religioso e não alimentar de toda a consagração:

Moisés disse para Aarão e seus filhos: "Cozinhai a carne à entrada da tenda de
reunião. Ali mesmo a comereis com o pão que está na cesta das ofertas da
consagração, conforme eu mandei, dizendo: Aarão e seus filhos hão de comê-la. O
que restar da carne e do pão, devereis queimá-lo. Durante sete dias não saireis da
entrada da tenda de reunião, até se completarem os dias da vossa consagração, pois
ela durará sete dias. O que se fez no dia hoje, o Senhor ordenou que se fizesse para
expiar por vós. Ficareis durante sete dias, dia e noite, à entrada da tenda de reunião,
e observareis o que o Senhor mandou, para não morrerdes, pois esta é a ordem que
recebi". Aarão e seus filhos fizeram tudo o que o Senhor lhes mandou por meio de
Moisés" (Lv 8,30-36).

11.1. As Primícias dos Sacerdotes

Terminada a "sagração" e com o decurso dos sete dias perante a Tenda da


Reunião, "no oitavo dia", são oferecidas as "primícias" da Investidura Sagrada,
qual seja o "Primeiro Ofício Sagrado" dos Primeiros Sacerdotes, Aarão com a
assistência de seus filhos:

"No oitavo dia Moisés chamou Aarão, seus filhos e os Anciãos de Israel, e disse
para Aarão: "Escolhe um bezerro para o sacrifício expiatório pelo pecado, e um
carneiro para o holocausto, ambos sem defeito, e apresenta-os ao Senhor. Falarás
aos israelitas, dizendo: Tomai um bode para o sacrifício expiatório, um bezerro e
um cordeiro, ambos de um ano e sem defeito, para o holocausto, um touro e um
carneiro para o sacrifício pacífico, a fim de sacrificá-los perante o Senhor, e uma
oblação amassada com azeite, porque hoje o Senhor vos aparecerá" (Lv 9,1-4).

Em primeiro lugar é de se ver que "... Moisés chamou Aarão, seus filhos e os
Anciãos de Israel..." - reaparecendo os Anciãos de Israel, como que num retorno
ou numa renovada atuação representativa do povo e para participarem da
"entrega" que Moisés fazia de sua função sacerdotal. São destacados como
homens maduros que participam de uma espécie de Conselho Diretor, gozando
de respeitosa autoridade moral, judiciária, de governo e representativa do povo, já
nos dias do Egito e após a Aliança do Sinai (Ex 3,16.18; 4,29; 12,21; 17,5-7;
18,12.13-26; 19,7; Lv 4,15):

"Disse então o Senhor a Moisés: Ajunta-me setenta homens dos anciãos de Israel,
que sabes maduros e aptos para o governo e os trarás perante a tenda da reunião,
para que estejam ali junto de ti. Então descerei e ali falarei contigo, e tirarei do
espírito que está sobre ti, e o porei sobre eles; e contigo levarão eles o peso do povo
para que tu não o leves só. ...(...)... Saiu, pois, Moisés, e relatou ao povo as palavras
do Senhor; e ajuntou setenta homens dentre os anciãos do povo e os colocou ao
redor da tenda. Então o Senhor desceu na nuvem, e lhe falou; e, tomando do espírito
que estava nele, infundiu-o nos setenta anciãos; e aconteceu que, quando o espírito
repousou sobre eles profetizaram, mas depois nunca mais o fizeram" (Nm 11,16-25)
/ "Diante das cãs te levantarás, e honrarás a face do ancião, e temerás o teu Deus.
Eu sou o Senhor" (Lv 19,32) / "Os anciãos da congregação porão as mãos sobre a
cabeça do novilho perante o Senhor; e imolar-se-á o novilho perante o Senhor" (Lv
4,15).

Sempre irão compor a organização religiosa e política de Israel desaguando


futuramente como um dos elementos constitutivos do Sinédrio judaico e no
Cristianismo ao lado dos Apóstolos como os Presbíteros (At 11,30; 15,2-6; 20,17;
Tt 1,5), assim conhecidos em diversas confissões cristãs, e como Padres no Clero
da Igreja Católica. Presbítero é palavra de origem grega significando "ancião" e
também "senior > senhor" do latim com o mesmo significado de "o mais velho"
(donde a referência de "senhor" dirigida a um Padre não ser um pronome de
tratamento). É uma das Instituições da cultura antiga, não só dos Israelitas, mas
até mesmo de outros povos (Gn 50,7; Nm,22,4.7) e cujo significado se perdeu,
não se sabendo ao certo as dimensões exatas de sua atuação, em virtude da
amplitude de esferas em que são mencionados, da consultiva à diretiva.

Então, prosseguindo, Aarão com a assistência de seus Filhos e em obediência


ainda a Moisés, assumem sua função:

"Então trouxeram até a entrada da tenda da reunião o que Moisés ordenara, e


chegou-se toda a congregação, e ficou de pé diante do Senhor. E disse Moisés: 'Isto
o que o Senhor ordenou que fizésseis; para que a glória do Senhor vos apareça'.
Depois disse Moisés a Aarão: 'Chega-te ao altar, e apresenta a tua oferta pelo
pecado e o teu holocausto, e faze expiação por ti e pelo povo; também apresenta a
oferta do povo, e faze expiação por ele, como ordenou o Senhor" (Lv 9,5-7).
Aarão dá então início ao Cerimonial das Primícias, composto das diversas
oferendas e celebrando todos os Sacrifícios, a começar pelo Holocausto e o
Sacrifício Expiatório, ou Pelo Pecado, por si mesmo, por sua casa e pelo povo:

"Aarão, pois, chegou-se ao altar, e imolou o bezerro que era a sua própria oferta
pelo pecado. Os filhos de Aarão trouxeram-lhe o sangue; e ele molhou o dedo no
sangue, e o pôs sobre os chifres do altar, e derramou o sangue à base do altar; mas a
gordura, e os rins, e o redenho do fígado, tirados da oferta pelo pecado, queimou-os
sobre o altar, como o Senhor ordenara a Moisés. E queimou fora do acampamento a
carne e o couro. Depois imolou o holocausto, e os filhos de Aarão lhe entregaram o
sangue, e ele o espargiu sobre o altar em redor. Também lhe entregaram o
holocausto, pedaço por pedaço, e a cabeça; e ele os queimou sobre o altar. E lavou
os intestinos e as pernas, e as queimou sobre o holocausto no altar" (Lv 9,8-14).

Seguem os mesmos sacrifícios pelo povo ali reunido em comunidade, seguido da


Oblação e do Sacrifício Pacífico observando-se fielmente todos os rituais, até
mesmo a movimentação da vítima e entrega ao celebrante, em tudo buscando na
Refeição Sagrada a amizade e a reconciliação com Iahweh:

"Então apresentou a oferta do povo e, tomando o bode que era a oferta pelo pecado
do povo, imolou-o e o ofereceu pelo pecado, como fizera com o primeiro.
Apresentou também o holocausto, e o ofereceu segundo o ritual. E apresentou a
oblação e, tomando dela um punhado, queimou-a sobre o altar, além do holocausto
da manhã. Imolou também o boi e o carneiro em sacrifício de oferta pacífica pelo
povo; e os filhos de Aarão entregaram-lhe o sangue, que ele espargiu sobre o altar
em redor, como também a gordura do boi e do carneiro, a cauda gorda, e o que
cobre a fressura, e os rins, e o redenho do fígado; e puseram a gordura sobre os
peitos, e ele queimou a gordura sobre o altar; mas os peitos e a coxa direita,
ofereceu-os Aarão por oferta movida perante o Senhor, como Moisés tinha
ordenado" (Lv 9,15-21).

Então vem a Bênção de Aarão, seguida de outra conjunta com Moisés, após
permanecerem na Tenda da Reunião, com o gesto estendido traduzindo a
Imposição das Mãos, manifestando-se então a Glória de Deus com o Fogo
Sagrado consumindo as vítimas:

"Depois Arão, levantando as mãos para o povo, o abençoou e desceu, tendo acabado
de oferecer a oferta pelo pecado, o holocausto e as ofertas pacíficas. E Moisés e
Aarão entraram na tenda da reunião; depois saíram, e abençoaram o povo; e a glória
do Senhor apareceu a todo o povo, pois saiu fogo de diante do Senhor, e consumiu o
holocausto e a gordura sobre o altar; pelo que todos os presentes aclamaram e
prostraram-se com os seus rostos em terra" (Lv 9,22-24).

Não pode ser outro o teor dessa Bênção que o determinado pelo próprio Iahweh:

"Disse mais o Senhor a Moisés: Fala a Aarão, e a seus filhos, dizendo: Assim
abençoareis os filhos de Israel; dir-lhes-eis: O Senhor te abençoe e te guarde; o
Senhor faça resplandecer o seu rosto sobre ti, e tenha misericórdia de ti; o Senhor
levante sobre ti o seu rosto, e te dê a paz. Assim porão o meu nome sobre os filhos
de Israel, e eu os abençoarei" (Nm 6,22-27).

"... todos os presentes aclamaram e prostraram-se com os seus rostos em terra"


(Lv 9,24), assim se consumava, com a Instituição do Sacerdócio, o Santuário,
"figura" que "cumprir-se-á com Jesus:

"Eles me farão um Santuário, e Eu Habitarei no meio deles" (Ex 25,8).

"E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós... " (Jo 1,14).

Tal como no Jardim do Éden Deus continua conduzindo o Homem para uma vida
em comunhão agora significada nos efeitos dos Sacrifícios tal como era visto
pelos Israelitas, "figura" do que se "cumprirá" com Jesus. Cristo Jesus é o retorno
do Homem ao Jardim de Deus:

"Disse então ("o Bom Ladrão"): 'Jesus, lembra-te de mim, quando entrares no teu
reino.' Respondeu-lhe Jesus: 'Em verdade te digo que hoje estarás comigo no
paraíso" (Lc 23,42-43).

Cabe aqui uma observação importante a respeito das vestimentas dos Sacerdotes
Israelitas: os Ofícios Religiosos eram celebrados por eles descalços, sem
calçados de espécie alguma nos pés, apesar de toda a pompa de seu paramento,
eis que se moviam em "lugar santo", o Santuário, em obediência à ordem de
Iahweh a Moisés:

"Prosseguiu Deus: Não te aproximes e tira os sapatos dos pés, porque o lugar em
que tu estás é terra santa" (Ex 3,5).

12. O SACERDÓCIO E A SANTIDADE

Uma observação aqui se impõe quanto ao cuidado que se deve ter com a divisão
em capítulos e versículos das Escrituras Sagradas, para não se tornar uma fonte
de equívocos. Assim, a presença súbita do capítulo dez pode levar à suposição de
que no capítulo nove, que tratou das primícias de Aarão e seus filhos, se
encerrasse o assunto. Não é bem assim porém, pois ocorreu um acidente fatal
com Nadab e Abiú (Lv 10,1-7), antes do consumo das partes das oferendas que
eram dos sacerdotes (Lv 10,12-15), completando os Sacrifícios então oferecidos, e
a narrativa do fato faz com que se dê às perícopes do capítulo dez títulos com
significações distintas do tema ali desenvolvido, como se tratasse de um
acréscimo às normas que deveriam seguir os Sacerdotes. Porém, o que se narra
nele e a seguir faz parte do tema do capitulo nove anterior, que não exauriu o
assunto. Isso é muito comum em Bíblia, devendo sempre se lembrar que os
títulos, subtítulos, capítulos e versículos não fazem parte dela, nem foram
inspirados nem revelados, são divisões feitas conforme a visão de quem as dispôs
para facilitar a localização.

Por causa do episódio de Nadab e Abiú aparecem, fora de lugar, normas rituais
novas e repetidas, destacando-se como centro nevrálgico a Santidade plena do
Sacerdócio ao exercer a celebração do Sacrifício, necessária "porque está sobre
vós o óleo da unção do Senhor" (Lv 10,7), bem como "para fazer separação entre
o santo e o profano, e entre o imundo e o limpo, e ensinar aos filhos de Israel
todos os estatutos que o Senhor lhes tem dado por intermédio de Moisés" (Lv
10,10-11). Ao que tudo indica Nadab e Abiú quiseram queimar a Oblação da
Investidura Sacerdotal e o incenso que a acompanhava, com um fogo que não o
sagrado e não como estabelecido (Lv 6,14-18 / Lv 9,4b), "um fogo estranho
perante o Senhor, o que ele não lhes ordenara". Por causa disso foram
atingidos e fulminados por um fogo tão violento que "os devorou e morreram
diante do Senhor" (Lv 10,2), o que se tomou como um "castigo de Iahweh", em
virtude de não se conduzirem com a dignidade sacerdotal necessária. Não pode
ser outro motivo por que Moisés recorda e alerta Aarão das palavras de Iahweh de
que "serei santificado naqueles que se chegarem a mim, e serei glorificado diante
de todo o povo" (cfr. Ex 19,22). Também, ainda em conseqüência do acontecido,
Iahweh proíbe o uso de vinho ou de bebidas inebriantes no ofício religioso,
exigindo coerência de conduta e comportamento no modo de se conduzirem os
Sacerdotes ("serei santificado...serei glorificado...não somente para separar o
santo e o profano ... mas também para ensinar..."):

"Falou também o Senhor a Aarão, dizendo: Não bebereis vinho nem bebida forte,
nem tu nem teus filhos contigo, quando entrardes na Tenda da Reunião, para que
não morrais; estatuto perpétuo será isso pelas vossas gerações, não somente para
fazer separação entre o santo e o profano, e entre o imundo e o limpo, mas também
para ensinar aos filhos de Israel todos os estatutos que o Senhor lhes tem dado por
intermédio de Moisés" (Lv 10,8-11).

Essa interdição direta de Iahweh a Aarão e seus filhos do "vinho ou bebida forte",
quando da celebração sacerdotal, em conseqüência, impõe-se como norma
disciplinar, evitando-se possível embriaguez durante o ministério religioso, não
apenas por uma questão de Santidade e Pureza pessoais, mas como condição
necessária para o ensino religioso a partir do exemplo e mantida a sobriedade ou
lucidez da mente. Assim, após a punição, várias observâncias são mencionadas a
começar pela retirada para fora do Santuário e do acampamento dos cadáveres,
"com as suas vestes", por estarem contaminadas pela impureza dos corpos (Lv
10,4-5). É vedado a Aarão e seus filhos manifestar sua dor, numa antecipação do
modo dos Sacerdotes se comportarem no luto (Lv 10,6-7 / Lv 21,1-6.10-12) e
impedindo-os de o fazerem então, para não transparecer qualquer reprovação à
punição imposta por Iahweh e para infundir o respeito aos formalismos rituais
pelos Sacerdotes, os quais devem ser muito mais responsáveis que os demais
membros da comunidade:

"Disse Moisés a Aarão: Isto é o que o Senhor falou, dizendo: Serei santificado
naqueles que se chegarem a mim, e serei glorificado diante de todo o povo. Aarão
calou-se" (Lv 10,3).

Com estas palavras Aarão se cala e Moisés passa a insistir nas instruções
relativas ao consumo das Oferendas advindas da Investidura Sacerdotal, aos
filhos de Aarão remanescentes, em virtude do justificado temor que se apossou
deles pelo acontecido, reafirmando-as e encorajando-os, apesar do golpe
profundo que receberam. O resto da Oblação queimada (Lv 9,4b / Lv 6,14-18 / Lv
10,12-13) seria comida pelo celebrante e familiares "sem fermento junto ao Altar,
pois é coisa Santíssima"; e, no que se refere ao peito e à perna do Sacrifício
Pacífico (Lv 9,21 / Lv 7,30-34 / Lv 10,14-15) a que tinham direito junto com seus
familiares, deveriam ser comidos em lugar puro, sem profanação com a impureza
legal, limpo por assim dizer conforme as normas de então. O temor de Aarão e
seus Filhos faz com que viessem a evitar até mesmo de comer a parte que lhes
cabia no Sacrifício Pelo Pecado do bode (Lv 9,15 / Lv 6,24-30 / Lv 10,16-18), em
vista do estado emotivo em que se encontravam por causa do acontecido, assim
explicado a Moisés que compreendeu e aprovou:

"Então disse Aarão a Moisés: Eis que hoje ofereceram a sua oferta pelo pecado e o
seu holocausto perante o Senhor, e tais coisas me aconteceram; se eu tivesse comido
('triste como estou') hoje a oferta pelo pecado porventura teria sido isso coisa
agradável aos olhos do Senhor? Ouvindo Moisés isto, pareceu-lhe razoável" (Lv
10,19-20).

13. A PUREZA LEGAL

Terminada a cerimônia da Investidura Sacerdotal tem início a apresentação das


condições de Pureza Legal para aproximar-se de Iahweh, principalmente para a
participação nos Sacrifícios, seja como Vítima, seja como Ofertante e seja como
Celebrante, destacando-se uma classificação de animais em "puros e impuros",
cuja observância far-se-á até mesmo nas refeições cotidianas:

"(1) Falou o Senhor a Moisés e a Aarão, dizendo-lhes: Dizei aos filhos de Israel:
Estes são os animais que podereis comer dentre todos os animais que há sobre a
terra ...(...)... Os seguintes, contudo, não comereis...(...)... (8) Da sua carne não
comereis, nem tocareis nos seus cadáveres; esses vos serão imundos ...(...)... (44)
Porque eu sou o Senhor vosso Deus; portanto santificai-vos, e sede santos,
porque eu sou santo; e não vos contaminareis ...(...)... porque eu sou o Senhor,
que vos fiz subir da terra do Egito, para ser o vosso Deus, sereis pois santos,
porque eu sou santo. Esta é a lei sobre os animais e as aves, e sobre toda criatura
vivente que se move nas águas e toda criatura que se arrasta sobre a terra; para
fazer separação entre o imundo e o limpo, e entre animais que se podem comer
e os animais que não se podem comer" (Lv 11,1-4.8.44-47).

Cabe observar que, ao contrário do que possa parecer, são cuidados a serem
observados pelos Israelitas para se conseguir a santidade necessária para a
participação nos Sacrifícios, só se aproximando de Iahweh aquele que fosse
santo:

"Porque eu sou o Senhor vosso Deus; portanto santificai-vos, e sede santos,


porque eu sou santo ...(...)... eu sou o Senhor, que vos fiz subir da terra do Egito,
para ser o vosso Deus, sereis pois santos, porque eu sou santo" (Lv 11,44-46).

"Esta é a lei sobre os animais e as aves ...(...)... para fazer separação entre o
imundo e o limpo, e entre animais que se podem comer e os animais que não
se podem comer" - apesar dessas palavras não se pode concluir que se trate de
normas de higiene e limpeza físicas propriamente ditas, tais como são concebidas
atualmente. Coerentemente com toda a estrutura já montada, o Israelita mantém-
se fiel a Iahweh em torno do compromisso assumido na Aliança a que se incluiu a
Missão de Israel:

"...e eu os exterminar, não adorarás os seus deuses, nem lhes prestarás culto,
imitando seus costumes. Ao contrário derrubarás e quebrarás as suas colunas.
Servireis ao Senhor vosso Deus, e ele abençoará teu pão e tua água, e afastará do
teu meio as enfermidades. (...) Não farás aliança com eles nem com seus deuses.
...te fariam pecar contra mim: Servirias aos seus deuses, e isso seria uma armadilha
para ti" (Ex 23,23-33).

Esta Missão de Israel é várias vezes ratificada (cfr. Ex 34,13; Lv 18,3.24-30; Nm


33,52; Dt 7,5; 12,3.29-31) e foi ela que serviu de orientação ao legislador para a
elaboração das leis atinentes ao "puro e impuro", donde se conclui que se evitou
principalmente as práticas dos pagãos que os rodeavam seja nos vários sacrifícios
seja na alimentação cotidiana (Os 9,3; Ez 4,13; Tb 1,10-12; Dn 1,8-12; Jdt 12,2-4; Lv
18,2-5). Israel deveria se distinguir de outros povos pela conformação de sua
conduta e de seu comportamento com a vontade de Iahweh, que não aceita de
forma nenhuma a "impureza" (Dt 23,13-15), o que o leva a se "santificar (em
hebraico = 'separar')" e a todos os objetos ou seres que o rodeiam para poder
assim apresentá-los e a si mesmo perante Deus (Ex 19,6.10.22; Lv 11,44s; 19,2;
20,7; 21,1-8; 22,1-9.31-33; Nm 31,19-24). Por causa dessa "impureza" que a Iahweh
repugna, a Missão de Israel era destruir os altares e santuários pagãos (Dt 7,5.25).
Tal repugnância vai crescer sobremaneira até que vedar-se-á qualquer contato
com eles (Jo 18,28; At 10,28; 11,3). Vê-se facilmente que essa "pureza" se relaciona
com o homem como um todo carnal e não se limita a uma higiene física nem se
identifica apenas com norma moral nem com a castidade. Tem referências
exclusivamente com o religioso, nas suas relações com Iahweh e a Aliança,
proveniente do interior e não se restringe ao exterior do Homem apenas, apesar
de só a ele se referir:

"Advertireis os filhos de Israel da sua impureza, para que não morram por causa
dela, contaminando o minha Habitação que está no meio deles" (Lv 15,31).

Então retirar a "impureza" é santificar-se e a "pureza" é a condição que torna apto


a aproximar-se de Iahweh e não contaminando o Santuário. Por outro lado, é
interessante observar que se tivesse sido instituída por motivos de higiene física
ou de moral ou de castidade, não teria sido abolida ou modificada pelo
Cristianismo:

"Respondeu-lhes ele: Assim também vós estais sem entender? Não compreendeis
que tudo o que de fora entra no homem não o pode contaminar, porque não lhe entra
no coração, mas no ventre, e é lançado fora? Assim declarou puros todos os
alimentos" (Mc 7,18-19)

"...subiu Pedro ao eirado para orar, cerca de hora sexta. E tendo fome, quis comer;
mas enquanto lhe preparavam a comida, sobreveio-lhe um êxtase, e via o céu aberto
e um objeto descendo, como se fosse um grande lençol, sendo baixado pelas quatro
pontas sobre a terra, no qual havia de todos os quadrúpedes e répteis da terra e aves
do céu. E uma voz lhe disse: Levanta-te, Pedro, mata e come. Mas Pedro respondeu:
De modo nenhum, Senhor, porque nunca comi coisa alguma profana e imunda. Pela
segunda vez lhe falou a voz: Não chames tu profano ao que Deus purificou.
Sucedeu isto por três vezes; e logo foi o objeto recolhido ao céu" (At 10,9-16).

Assim é que, perde-se a "pureza legal" até mesmo por um simples contato,
principalmente com cadáveres (Lv 11,24-28.29-38.39-40) e a sua recuperação não
se dá pela prática de atos virtuosos ou morais ou de higiene, podendo-se destacar
várias maneiras de se adquirir novamente a Santidade:

1) Pelo desaparecimento da "impureza" por si mesma e no decurso do


tempo:

"Também por eles vos tornareis imundos; qualquer que tocar nos seus
cadáveres, será imundo até a tarde, e quem levar qualquer parte dos seus
cadáveres, lavará as suas vestes, e será imundo até a tarde" (Lv 11,24-25).

2) Pela ablução do corpo ou das vestes:

"Disse mais o Senhor a Moisés: Vai ao povo, e santifica-os hoje e amanhã;


lavem eles os seus vestidos (...) Então Moisés desceu do monte ao povo, e
santificou o povo; e lavaram os seus vestidos" (Ex 19.10.14)

"E todo homem, quer natural quer estrangeiro, que comer do que morre por
si ou do que é dilacerado por feras, lavará as suas vestes, e se banhará em
água, e será imundo até a tarde; depois será limpo. Mas, se não as lavar, nem
banhar o seu corpo, levará sobre si a sua iniquidade" (Lv 17,15-16).

3) Pelo Holocausto e pelo Sacrifício Expiatório ou Pelo Pecado:

"E, quando forem cumpridos os dias da sua purificação, seja por filho ou por
filha, trará um cordeiro de um ano para holocausto, e um pombinho ou uma
rola para oferta pelo pecado, à porta da tenda da reunião, ao sacerdote, o
qual o oferecerá perante o Senhor, e fará expiação por ela; então ela será
limpa do fluxo do seu sangue. Esta é a lei da que der à luz menino ou
menina" (Lv 12,6-7).

4) No Grande Dia da Expiação e, durante essa festa, pelo "Bode Expiatório


ou Emissário":

"Disse, pois, o Senhor a Moisés: Dize a Arão, teu irmão ...(...)... da


congregação dos filhos de Israel tomará dois bodes para oferta pelo pecado
e um carneiro para holocausto ...(...)... assim fará expiação pelo santuário;
também fará expiação pela tenda da reunião e pelo altar; igualmente fará
expiação e pelos sacerdotes e por todo o povo da congregação. Isto vos será
por estatuto perpétuo, para fazer expiação uma vez no ano pelos filhos de
Israel por causa de todos os seus pecados. E fez Aarão como o Senhor
ordenara a Moisés" (Lv 16,1-34, só as partes inicial e final pois será objeto
de estudo).

O valor fundamental dessa Instituição da Pureza Legal foi o de evidenciar a


fidelidade à Aliança (Lv 11,44-45) entregando-se ao martírio vários fiéis para não
desrespeitá-la nem profaná-la (2Mc 6,18-31; 7,1-42). Concorreu para se
caracterizar e se firmar paulatinamente o monoteísmo e manter firme o Povo de
Deus na obediência a Iahweh e no caminho da renúncia de si mesmo como base
para uma moralidade que irá se "cumprir" na perfeição da disciplina cristã, que
condenará o formalismo a que se reduziu (Mt 15,2; 23,24-25). Não há necessidade
de se delinear todos os animais puros e impuros, e todos os casos em que se
contrai a "impureza" ou se perde a "pureza", dada a facilidade com que vêm
narrados, bastando um estudo atencioso da narrativa (Lv 11-15).

13.1 A Pureza Legal e a Mulher

Quando se narrou as conseqüências do Dilúvio foi dito que ao tempo acreditava-


se que ao se frustrar a menstruação da mulher era concebido o nascituro,
entendendo-se que o sangue materno coagulava-se ao desaparecer, em virtude
da mescla com o esperma, gerando-se o feto (Jó 10,10; Sb 7,2; Lv 17,11):
"No seio de minha mãe, no espaço de dez meses em carne fui formado do sangue
coagulado, por força do sêmen viril e do prazer que acompanha o sono" (Sb 7,1-
2)

"Não me verteste como leite e me coalhaste como queijo?" (Jó 10,10).

Por outro lado, é de se recordar o que Deus disse à mulher, quando do Pecado
Original:

"...Multiplicarei o teu sofrimento na tua gravidez; em dor darás à luz filhos..." (Gn
3,16).

Já Adão recebe, além das conseqüências pessoais e as da natureza, aquelas que


penalizavam o seu trabalho pessoal, tendo sido amaldiçoada a terra (Gn 3,17-19),
percebendo-se facilmente que Eva foi mais responsabilizada pelo acontecido (Gn
3,6.12.13.16). Além da maior culpa pelo Pecado Original, é identificada com a
geração da vida, tendo até recebido de Adão o nome de "Eva, a mãe de todos os
viventes" (Gn 3,20). Além disso, as palavras "...darás à luz filhos entre dores..."
caracterizam que o parto já era de sua constituição física, acontecendo que o seu
"sofrimento foi-lhe multiplicado" (Gn 3,16). Ocorrem também nela, tanto na
menstruação, como quando dá à luz, duas efusões do sangue em decorrência
dessa geração de vida, sangue que é alvo de profundo sentido religioso (Lv 17,11).
Juntando-se tudo isto com a concepção de que "a vida da carne está no sangue" e
que "...a carne com sua vida, isto é, com seu sangue, não comereis" (Gn 9,4),
estabelece-se um profundo respeito e veneração por ele, por estar vinculado
inseparavelmente com a vida:

"Porque a vida da carne está no sangue; pelo que vo-lo tenho dado sobre o
altar, para fazer expiação pelas vossas almas; porquanto é o sangue que expia
em virtude da vida. Portanto tenho dito aos filhos de Israel: Nenhum de vós
comerá sangue; nem o estrangeiro que peregrina entre vós comerá sangue.
Também, qualquer homem dos filhos de Israel, ou dos estrangeiros que peregrinam
entre eles, que apanhar caça de fera ou de ave que se pode comer, derramará o
sangue dela e o cobrirá com terra. Pois, a vida de toda a carne está no seu
sangue; por isso eu disse aos filhos de Israel: Não comereis o sangue de nenhuma
carne, porque a vida de toda a carne é o seu sangue; qualquer que o comer será
extirpado" (Lv 17,11-14).

O trecho fala por si, correndo-se o risco de atrapalhar o entendimento claro com
qualquer tentativa de explicação, cabendo apenas frisar a noção então bastante
difundida do sangue "expiar em virtude da vida", fazendo acreditar que por cada
uma de suas efusões se exigisse um restabelecimento de vitalidade que teria sido
perdida em conseqüência: assim aconteceria no Parto, assim aconteceria na
Menstruação. Pode-se concluir que o Israelita de então via tanto a menstruação
como o parto da mulher como fontes de vida, donde o respeito e verdadeira
veneração religiosa por esses estados físicos. E é esse o ponto central da posição
da mulher na vida social, familiar e moral de então. Por isso a mulher
desempenhava uma função de grande projeção na vida religiosa do Povo dos
Filhos de Israel donde a existência de alguns capítulos especiais que tratam da
"impureza" dela tanto quando da menstruação (Lv 15,19-30) como quando do parto
(Lv 12,1-8). Nunca se deve perder de vista que a "impureza" não é tal qual se
entende atualmente no tocante à higiene, com se fora uma "sujeira", mas se
resumia na impossibilidade de comparecimento ao Santuário, bem como para
qualquer ofício religioso, aqui por causa do sangue por ela perdido, "sangue que
foi a vida que gerou", no parto ou "em vias de gerar", na menstruação. Tanto é
assim que a oferenda no Holocausto e no Sacrifício de Expiação, no parto, busca
restituir-lhe a "pureza do fluxo do seu sangue", não se tratando de perdão de
qualquer falta como nos rituais típicos (Lv 5, 10.13.16-19.25-26), eis que o narrador
é explícito ao dizer que ela "será limpa do fluxo do seu sangue" e não que ela
"será perdoada do fluxo do seu sangue":

"E, quando forem cumpridos os dias da sua purificação, seja por filho ou por filha,
trará um cordeiro de um ano para holocausto, e um pombinho ou uma rola para
oferta pelo pecado, à porta da tenda da revelação, ao sacerdote, o qual o oferecerá
perante o Senhor, e fará expiação por ela; então ela será limpa do fluxo do seu
sangue. Esta é a lei da que der à luz menino ou menina. Mas, se as suas posses não
bastarem para um cordeiro, então tomará duas rolas, ou dois pombinhos: um para o
holocausto e outro para a oferta pelo pecado; assim o sacerdote fará expiação por
ela, e ela será limpa" (Lv 12,6-8).

Cabe levar em conta também que o respeito pelo sangue que devotava o Israelita,
vem manifestado de várias formas destacando-se algumas dentre elas:

1. É proibido na alimentação sob pena grave de exclusão do meio social (Gn


9,3-4; Lv 7,26-27; 17,10-12; Dt 12,16.23; 15,23; 1Sm 14,32-35).
2. É "escorrido no chão e coberto com terra", "como água" (Lv 17,13; Dt 12,24).
3. É derramado em torno do Altar em oferenda a Iahweh (Lv 1,5.11.15; caps. 3-
5).
4. Nas Alianças de Sangue, estabelece laço vital (Gn 15,10-12; Ex 24,4-8; Hb
9,18-21).
5. Proteção (Ex 12,7.23.27).
6. Era usado para aspergir o Altar (Ex 29,16; Lv 3,2); o Sumo Sacerdote (Ex
29,21); o véu do Templo (Lv 4,6); para "untar / ungir" ('limpar') os chifres dos
Altares" (Lv 4,7.18; 8,15).
7. O sangue do Sacrifício purifica (Lv 14,6-7.14; Nm 19,4); expia (Lv 16; Lv 17;
Lv 18); santifica (Ex 29,30-31).

Com ele se consagra (Ex 29,20-21; Lv 8,23-24.30; Ez 43,20).

Assim, com tal respeito pelo Sangue animal, o Israelita não poderia deixar de
tratar com maior veneração ainda o Sangue da Mulher, "a mãe de todos os
viventes" (Gn 3,20). E, conclui, de maneira imediata, que ocorre a morte quando o
sangue se esvai e que de sua vida é que exala o vapor naturalmente quente
quando escorre. Assim, como "o sangue expia enquanto é vida" (Lv 17,11) e em
cada parto ocorre uma geração, há uma perda de vitalidade da mulher, eis que
logicamente se então "perdeu sangue, perdeu vida". Necessita ela então de mais
tempo para a recuperação de sua integridade vital e, então "purificada do fluxo
do seu sangue" (Lv 12,7), comparecer perante Iahweh legalmente Santificada.
Ocorre a necessidade de mais tempo também quando o nascituro é do sexo
feminino, outra "mãe de viventes", outra "geradora de vida pelo fluxo do sangue"
(Lv 12,5-6), influindo também nesse critério a maior responsabilidade da Mulher
pelo desate do Pecado Original.

Já no caso do Homem, e do Homem e da Mulher no relacionamento sexual, em


virtude de emissão seminal normal, a impureza de ambos desaparece pelo
decurso do tempo "até a tarde" (Lv 15,16-17), e da mesma forma a Mulher na
menstruação demandará o decurso do tempo de sete dias (Lv 15,19), pelos
mesmos motivos já delineados no caso de parto. Exigem o Holocausto e o
Sacrifício Expiatório os casos de emissão seminal ou de sangue quando enfermos
pelo que, ao oitavo dia após os sete dias de purificação, buscarão a intervenção
do Sacerdote para a purificação sacrificial (Lv 15,13-15.28-30). De qualquer
maneira o aspecto da reprodução humana no que se refere ao genital e suas
manifestações é objeto de instituição especial no tocante à Santidade exigida para
o Povo de Deus:

"Assim separareis os filhos de Israel da sua impureza, para que não morram por
causa delas, contaminando o meu tabernáculo, que está no meio deles. Esta é a lei
daquele que tem o fluxo e daquele de quem sai o sêmen, de modo que por eles se
torna impuro; como também da mulher enferma com a sua impureza e daquele que
tem o fluxo, tanto do homem como da mulher, e do homem que se deita com
mulher impura" (Lv 15,31-33).

Maria, fiel cumpridora dos compromissos religiosos, após os sete dias de sua
purificação, no oitavo dia, quando da circuncisão de Jesus, cumpre este preceito
junto com a "consagração de 'seu filho primogênito'" (Ex 13,1.11 / Lc 2,7), com a
oferta de pobre que era e como exigia a lei (Lv 12,8):

"Terminados os dias da purificação, segundo a lei de Moisés, levaram-no a


Jerusalém, para apresentá-lo ao Senhor, como está escrito na Lei do Senhor: 'Todo
primogênito será consagrado ao Senhor', e para oferecerem um sacrifício
segundo o disposto na lei do Senhor: 'um par de rolas, ou dois pombinhos'" (Lc
2,22-24).

Ainda no Evangelho há, a cura que Cristo operou da hemorroíssa:

"E eis que certa mulher, que havia doze anos padecia de fluxo de sangue, chegou
por detrás dele e tocou-lhe a orla do manto; porque dizia consigo: Se eu tão somente
tocar-lhe o manto, ficarei curada. Mas Jesus, voltando-se e vendo-a, disse: Tem
ânimo, filha, a tua fé te salvou. E desde aquela hora a mulher ficou curada" (Mt
9,20-22).
Por estar assim profundamente vinculado indestacavelmente à vida é que
ingerindo o Sangue de Cristo na Ceia Eucarística, ingerimos a Sua Vida, tal como
anunciara:

"Disse-lhes Jesus: ...(...)... Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a
vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia. Porque a minha carne
verdadeiramente é comida, e o meu sangue verdadeiramente é bebida. Quem
come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele. Assim
como o Pai, que vive, me enviou, e eu vivo pelo Pai, assim, quem de mim se
alimenta, também viverá por mim" (Jo 6,53-57).

"...eu vim para que tenham vida e a tenham em plenitude" (Jo 10,10).

13.2 A Pureza Legal e a Lepra

A Bíblia, escrita sob a Inspiração do Espírito Santo, tem nEle um só e único Autor,
pelo que mantém entre os livros que a compõem uma coerência inflexível. Assim
entendido, quando se esbarra com algo inexplicável, é de se procurar em outras
de suas partes o esclarecimento necessário. É o caso da Lepra aqui narrada, que
tanto pavor instilava antigamente, observando-se inicialmente que não se narra
em lugar nenhum os sintomas mais drásticos e conhecidos da falta de
sensibilidade em locais do corpo bem como de decomposição e deformação de
extremidades. Além disso, pelos vários sintomas descritos (Lv 13 e Lv 14),
evidencia-se que não se deve tratar de uma mesma doença, bastando a menção
de sintomas de úlceras, feridas e manchas de pele, até mesmo de Lepra de Casas
(Lv 14,33-53) e de Vestes (Lv 13,47-59) para confirmar esta afirmação. Além disso,
sabendo-se que a lepra propriamente dita era incurável naquele tempo, não deixa
de ser contraditório um ritual para o caso de sua cura. Acontece, porém, que,
conforme afirmado, vê-se em vários outros trechos da Escritura a mesma
denominação aparecendo como sendo fruto de "um castigo de Iahweh" e com os
mais variados nomes:

"Então disse o Senhor a Moisés e a Aarão: Tomai mancheias de cinza do forno, e


Moisés a espalhe para o céu diante dos olhos de Faraó; (...) e ela se tornou em
tumores que arrebentavam em úlceras nos homens e no gado" (Ex 9-10).

"Assim se acendeu a ira do Senhor contra eles; e ele se retirou; também a nuvem se
retirou de sobre a tenda; e eis que Miriã se tornara leprosa, branca como a neve; e
olhou Aarão para Miriã e eis que estava leprosa. (...) Clamou, pois, Moisés ao
Senhor, dizendo: Ó Deus, rogo-te que a cures" (Nm 12,9-13)

"O Senhor te ferirá com as úlceras do Egito, com tumores, com sarna e com
coceira, de que não possas curar-te (...) Com úlceras malignas, de que não possas
sarar, o Senhor te ferirá nos joelhos e nas pernas, sim, desde a planta do pé até o alto
da cabeça" (Dt 28,27.35).
"Tendo o rei de Israel lido a carta, rasgou as suas vestes, e disse: Sou eu Deus, que
possa matar e vivificar, para que este envie a mim um homem a fim de que eu o
cure da sua lepra? (...) Desceu ele, pois, e mergulhou-se no Jordão sete vezes,
conforme a palavra do homem de Deus; e a sua carne tornou-se como a carne dum
menino, e ficou purificado" (2Rs 5,7-14).

"...e se opuseram ao rei Uzias, dizendo-lhe: A ti, Uzias, não compete queimar
incenso perante o Senhor, mas aos sacerdotes, filhos de Aarão, que foram
consagrados para queimarem incenso. (...) Então Uzias se indignou; e tinha na mão
um incensário para queimar incenso. Indignando-se ele, pois, contra os sacerdotes,
nasceu-lhe a lepra na testa, perante os sacerdotes, na casa do Senhor, junto ao altar
do incenso. (...) pois Iahweh o ferira. Assim ficou leproso o rei Uzias até o dia da
sua morte..." (2Cr 26,18-23 / 2Rs 15,5).

O que se constata de tudo isto é que tanto a lepra propriamente dita era incurável
como o exame das feridas, úlceras, manchas na pele, mofo e bolor nas casas e
nas vestes etc., conhecidos também pelo mesmo nome de lepra, se destinavam a
localizá-la no início, isolando-se o portador do contato "impuro" com o Santuário e
com os demais membros da comunidade Israelita, por causa da sua "impureza",
até que fosse curado e voltasse ao convívio. Dois fatores se destacam: Primeiro,
não se buscava o doente para curá-lo, mas para isolá-lo; e, segundo, localizado,
se não se constatou ter sido contaminado, ou se foi curado, após o exame pelo
Sacerdote, um ritual todo especial o reintegrava na comunidade. O fato é que a
lepra propriamente dita era um sinal de castigo divino tal como transcrito pelo que
tudo era feito para se evitar a presença do impuro no Santuário ou qualquer ofício
religioso, na mesma perspectiva já encontrada anteriormente em todos os casos.
O ritual de sua reintegração era muito mais solene que os demais dada a
seriedade das conseqüências da presença do mal e dos meios usados para se
evitar o contágio da impureza. Tanto é assim que o primeiro ato do Sacerdote em
qualquer caso é o isolamento do chagado, somente o reintegrando após a
verificação da inexistência do mal.

Jesus em todas as oportunidades em que curou leprosos ou os purificou ("limpou")


determinou o comparecimento deles para exame do Sacerdote para o retorno
deles ao convívio:

"Quando Jesus desceu do monte, grandes multidões o seguiram. E eis que veio um
leproso e o adorava, dizendo: Senhor, se quiseres, podes tornar-me limpo. Jesus,
pois, estendendo a mão, tocou-o, dizendo: Quero; sê limpo. No mesmo instante
ficou purificado da sua lepra. Disse-lhe então Jesus: Olha, não contes isto a
ninguém; mas vai, mostra-te ao sacerdote, e apresenta a oferta que Moisés
determinou, para lhes servir de testemunho" (Mt 8,1-4 / Lc 5,12-14; cfr. tb. Lc
17,11-19).

A purificação de leprosos é um dos sinais Messiânicos, mencionado por Jesus, e


um dos poderes que deu na Missão Apostólica, ambos narrados por Mateus,
respectivamente:
"Respondeu-lhes Jesus: Ide contar a João as coisas que ouvis e vedes: os cegos
vêem, e os coxos andam; os leprosos são purificados, e os surdos ouvem; os
mortos são ressuscitados, e aos pobres é anunciado o evangelho" (Mt 11,4-5).

"A estes doze enviou Jesus, e ordenou-lhes, dizendo: Não ireis aos gentios, nem
entrareis em cidade de samaritanos; mas ide antes às ovelhas perdidas da casa de
Israel; e indo, pregai, dizendo: É chegado o reino dos céus. Curai os enfermos,
ressuscitai os mortos, limpai os leprosos, expulsai os demônios; de graça
recebestes, de graça daí" (Mt 10,5-8).

O CÓDIGO DE SANTIDADE
14. O DIA DA EXPIAÇÃO

Encerrando a primeira parte do Livro de Levítico, conhecido como Código


Sacerdotal, é apresentado em seguida um ritual por excelência. É o mais
importante, solene e de profundas significações nacionais e religiosas dos
Israelitas, celebrado uma vez por ano. Esse dia era tão importante que se tornou
conhecido simplesmente por "O Dia" ou "O Jejum" (At 27,9). Nele toda a nação
Israelita era purificada de todas as suas faltas, que assim se tornava Santa (Ex
19,6), "propícia a Iahweh", tal com fora "separada" de outros povos (Dt 7,6).
Santificação que começava pela purificação dos Sacerdotes, de todo o Santuário
com as suas partes, completando-se com a de toda a comunidade (Lv 16,1-3).

Para que não suceda com outro o mesmo acontecido com os filhos de Aarão
Nadab e Abiú, que desrespeitaram o Santuário, Moisés instrui Aarão "que não
entre em todo tempo no Santuário, para dentro do véu, diante do propiciatório que
está sobre a arca, para que não morra...", eis que o Propiciatório é o lugar onde
Iahweh se manifestava e de onde "falava com Moisés" (Ex 25,22; Lv 16,2; Nm
7,89). Uma vez por ano, Aarão, ou o Sacerdote em função, não usando os
paramentos pomposos, completos e habituais do cerimonial ou dos Sacrifícios (Ex
29,5-6 / Lv 8,7-9), mas, uma simples túnica, com as calças sobre a carne nua,
cingido com um cinto e a mitra, todos de linho, na sua cor branca da pureza
pretendida, e vestido com a humildade de um penitente em busca de perdão,
entrará no Santuário, "para dentro do véu" (Lv 16,4):

"Aarão entrará no Santuário com um novilho para oferta pelo pecado e um carneiro
para holocausto" (Lv 16,3).
Inicialmente a cerimônia parte para a purificação dos Sacerdotes, eis que "só
quem é puro pode interceder para a purificação", com a oferenda do novilho pelo
pecado, "por si e por sua casa" (os demais Sacerdotes), conforme ritual bem
determinado:

"Aarão, pois, apresentará o novilho da oferta pelo pecado, que é por ele, e fará
expiação por si e pela sua casa; e imolará o novilho que é a sua oferta pelo pecado.
Então tomará um incensário cheio de brasas de fogo de sobre o altar, diante de
Iahweh, e dois punhados de incenso aromático bem moído, e os trará para dentro do
véu; e porá o incenso sobre o fogo perante Iahweh, a fim de que a nuvem do incenso
cubra o propiciatório, que está sobre o testemunho, para que não morra. Tomará do
sangue do novilho, e o espargirá com o dedo sobre o propiciatório ao lado oriental;
e perante o propiciatório espargirá do sangue sete vezes com o dedo" (Lv 16,11-
14).

Após isso, com a nuvem de incenso impedindo o celebrante de ver "a Glória de
Iahweh", "para que não morra" (Lv 16,13), no Propiciatório sobre a Arca disposta
no Santo dos Santos (Lv 16,2 / Ex 25,22), espargindo o Sangue sobre o
Propiciatório, purifica a si mesmo e a sua casa (os demais Sacerdotes). Assim
purificados os Sacerdotes, penetra o Celebrante no Santo dos Santos e passa a
oferecer a expiação para a expiação de todas as faltas cometidas por todo o Povo,
para a Purificação e Santificação respectivamente pelo Santuário, pela Tenda da
Reunião e pelo Altar, imolando um dos bodes escolhido por sorte (Lv 16,8):

"Depois imolará o bode da oferta pelo pecado pelo povo, e trará o sangue do bode
para dentro do véu; e fará com ele como fez com o sangue do novilho, espargindo-o
sobre o propiciatório, e perante o propiciatório; e fará expiação pelo santuário por
causa das impurezas dos filhos de Israel e das suas transgressões, de todos os seus
pecados. Assim também fará pela tenda da reunião, que permanece com eles no
meio das suas impurezas. Nenhum homem estará na tenda da reunião quando Aarão
entrar para fazer expiação no santuário, até ele sair, depois de ter feito expiação por
si mesmo, e pela sua casa, e por toda a comunidade de Israel. Então sairá ao altar,
que está perante o Senhor, e fará expiação pelo altar; tomará do sangue do novilho,
e do sangue do bode, e o porá sobre os chifres do altar ao redor. E do sangue
espargirá com o dedo sete vezes sobre o altar, purificando-o e santificando-o das
impurezas dos filhos de Israel" (Lv 16,15-19).

Atingido então o ponto culminante da cerimônia com o desempenho da Purificação


e Expiação no Santo dos Santos, procederá a Santificação e a Purificação plenas
simbolizadas com o ritual do "bode emissário" que levará para "uma região
solitária" todos os pecados do Povo dos Filhos de Israel, libertando-os deles,
significando com isso a exclusão de todas as iniqüidades que impedia que Iahweh
lhes fosse "propício":

"Quando Aarão houver acabado de fazer expiação pelo santuário, pela tenda da
reunião, e pelo altar, apresentará o bode vivo; e, pondo as mãos sobre a cabeça do
bode vivo, confessará sobre ele todas as iniqüidades dos filhos de Israel, e todas as
suas transgressões, de todos os seus pecados; e os porá sobre a cabeça do bode, e
enviá-lo-á para o deserto, pela mão de um homem designado para isso. Assim
aquele bode levará sobre si todas as iniqüidades deles para uma região solitária; e
esse homem soltará o bode no deserto" (Lv 16,20-22).

Então Aarão lavar-se-á e vestirá a roupa que lhe foi destinada ao ser consagrado
(Ex 29 / Lv 8) e de posse dos dois carneiros, um levado por ele mesmo (Lv 16,3) e
o outro que lhe fora entregue pela comunidade (Lv 16,5), oferecê-los-á em
Holocausto. Isso feito, virá o desfecho definitivo com o retorno aos paramentos
quotidianos, agora, porém, Purificados e Santificados pela Expiação "por si e pelo
povo" e após "queimar sobre o altar a gordura da oferta pelo pecado", assim
levada a efeito:

"Depois Aarão entrará na tenda da reunião, e despirá as vestes de linho, que havia
vestido quando entrara no santuário, e ali as deixará. E banhará o seu corpo em água
num lugar santo, e vestirá as suas próprias vestes; então sairá e oferecerá o seu
holocausto, e o holocausto do povo, e fará expiação por si e pelo povo. Também
queimará sobre o altar a gordura da oferta pelo pecado" (Lv 16,23-25).

A seguir as abluções tanto do que levar o bode para o deserto como do que
queimar o que restar do novilho e do bode das ofertas pelo pecado, para
conseguir a purificação necessária para entrar no acampamento. Com isso se
evitam tanto a contaminação das oferendas santíssimas que conduziram como
qualquer contato delas com o "impuro" ou profano. Termina o cerimonial com um
repouso de sábado quando "afligireis as vossas almas" (ou seja, "jejuareis"), qual
seja "nesse dia não fareis trabalho algum", por arrependimento e por penitência,
manifestando o sentimento interior, moral e religioso da festa, motivo porque era
conhecida também por "Jejum" ou "Dia" (At 27,9):

"E aquele que tiver soltado o bode para Azazel lavará as suas vestes, e banhará o
seu corpo em água, e depois entrará no acampamento. Mas o novilho da oferta pelo
pecado e o bode da oferta pelo pecado, cujo sangue foi trazido para fazer expiação
no santuário, serão levados para fora do acampamento; e queimar-lhes-ão no fogo
as peles, a carne e o excremento. Aquele que os queimar lavará as suas vestes,
banhará o seu corpo em água, e depois entrará no acampamento. Também isto vos
será por estatuto perpétuo: no sétimo mês, aos dez do mês, afligireis as vossas
almas, e não fareis trabalho algum, nem o natural nem o estrangeiro que peregrina
entre vós; porque nesse dia se fará expiação por vós, para purificar-vos; de todos os
vossos pecados sereis purificados perante Iahweh. Será sábado de repouso solene
para vós, e afligireis as vossas almas; é estatuto perpétuo" (Lv 16,26-31).

Em resumo, nessa solenidade, no Dia da Expiação (Lv 16,31), o Sacerdote


Israelita, no décimo dia do mês 'tchri' (Lv 16,29-30), atravessará o véu e entrará
no Santo dos Santos (Ex 26,31-33, v. tb. o n.° 2 do Capítulo 4), para a cerimônia
do Perdão dos Pecados cometidos por toda a Nação:
"E o sacerdote ungido e sagrado para administrar o sacerdócio no lugar de seu pai,
fará a expiação, havendo vestido as vestes de linho, isto é, as vestes sagradas;
assim fará expiação pelo santuário; também fará expiação pela tenda da reunião e
pelo altar; igualmente fará expiação pelos sacerdotes e por todo o povo da
comunidade. Isto será para vós lei perpétua, para fazer expiação uma vez no
ano pelos filhos de Israel por causa de todos os seus pecados..." (Lv 16,32-34).

É com aquela "vítima", que recebeu o nome de "bode emissário ou bode


expiatório", que se pode identificar Jesus ao iniciar o seu Ministério de Redenção:

"Então veio Jesus da Galiléia ter com João, junto do Jordão, para ser batizado por
ele. ...(...)... Batizado que foi Jesus, saiu logo da água; e eis que se lhe abriram os
céus, e viu o Espírito Santo de Deus descendo como uma pomba e vindo sobre ele...
(Mt 3,13-17) / "Então Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto, para ser
tentado pelo Diabo..." (Mt 4,1-11).

Esta passagem de Jesus faz pensar na "figura" de "bode emissário"


conduzindo os pecados do homem ao deserto. É difícil se conceber a idéia de
Jesus em ligação com os pecados do Homem, mas é São Paulo quem o afirma:

"Àquele que não conheceu pecado, Deus o fez pecado por nós; para que nele
fôssemos feitos justiça de Deus" (2Cor 5,21) / "Porque não temos um sumo
sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas; porém um que, como
nós, em tudo tentado, exceto no pecado" (Hb 4,15)

Isto pode ser resumido simplesmente dizendo que Jesus "era igual a nós em tudo
exceto no pecado". Mas, da mesma forma que o "bode emissário", santificado, era
conduzido "para Azazel" (Lv 16,8.10.21-22.26), Jesus, o Santo de Deus,
carregado de nossos pecados, "foi conduzido ao deserto para ser tentado pelo
diabo". Ao deserto, que era concebido como o antro onde os demônios habitavam,
onde estava Azazel:

"Mas as feras do deserto repousarão ali, e as suas casas se encherão de horríveis


animais; e ali habitarão as avestruzes, e os sátiros pularão ali" (Is 13,21) / "E as
feras do deserto se encontrarão com hienas; e o sátiro clamará ao seu
companheiro; e Lilite pousará ali, e achará lugar de repouso para si" (Is 34,14) /
"Então o Anjo Rafael pegou no demônio e acorrentou-o no deserto do Alto Egito"
(Tb 8,3).

O próprio Jesus vai confirmar essa crença:

"Ora, havendo o espírito imundo saído do homem, anda por lugares desertos,
buscando repouso, e não o encontra" (Mt 12,43).

É que dentre as inúmeras concepções que se faz do significado da denominação


de Azazel a que mais sobressai é de se tratar de um demônio, no que se encontra
séria dificuldade por não se conceber a remessa de vítima santa para o demônio.
Retrucam os favoráveis que o bode leva ao demônio o pecado de Israel em
devolução por ser coisa própria dele, não se contaminando, da mesma forma que
Jesus saiu ileso:

"Então ordenou-lhe Jesus: Vai-te, Satanás; porque está escrito: Ao Senhor teu Deus
adorarás, e só a ele servirás. Então o Diabo o deixou; e eis que vieram os anjos e o
serviram" (Mt 4,10-11).

Essa tentação de Jesus no deserto é de muita significação eis que infringe ao


demônio uma primeira derrota que anunciava a final. Não teve testemunhas o fato,
somente Jesus o conhecia, donde ter sido Ele quem o narrou e com alguma
finalidade. Jesus não falava nada à toa, sem razão ou sem um objetivo claro, e
não há de ser para exibir alguma vitória, o que não Lhe é próprio, mas informou
aos Apóstolos que alijou para o demônio a fonte de todo o mal, a fonte da cobiça
humana, a concupiscência:

"Não ameis o mundo, nem as coisas do mundo. Se alguém ama o mundo, o amor do
Pai não está nele. Porque tudo o que há no mundo, a concupiscência da carne, a
concupiscência dos olhos e a ostentação das riquezas, não vem do Pai, mas sim
do mundo. Ora, o mundo passa, e a sua concupiscência; mas aquele que faz a
vontade de Deus permanece para sempre" (1Jo 2,15-17).

Foi o que Jesus fez e "permanece para sempre": venceu o demônio não se
sujeitando à concupiscência da carne:

"E, tendo jejuado quarenta dias e quarenta noites, depois teve fome. Chegando,
então, o tentador, disse-lhe: Se tu és Filho de Deus manda que estas pedras se
tornem em pães. Mas Jesus lhe respondeu: Está escrito: Nem só de pão viverá o
homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus" (Mt 4,2-4)

Em si não haveria mal algum em transformar pedras em pão para se alimentar,


principalmente pela fome, nunca porém em atendimento a um desafio para provar
que é o Filho de Deus. O que era necessário deixar claro ao demônio era o fim de
seu domínio, com a implantação do Reino de Deus. Além disso, Jesus recusara
para a sua Missão o Poder, demonstrando isso aos seus discípulos ao lhes narrar
o fato. No Reino de Deus não se busca o Poder, que é fruto da concupiscência da
carne, agora vencível. Traçava já Jesus as linhas de atuação de Sua Igreja: viver
só da "palavra que sai da boca de Deus".

Ainda, derrotou o demônio não se sujeitando à concupiscência dos olhos:

"Então o Diabo o levou à cidade santa, colocou-o sobre o pináculo do templo, e


disse-lhe: Se tu és Filho de Deus, lança-te daqui abaixo; porque está escrito: Aos
seus anjos dará ordens a teu respeito; e: eles te susterão nas mãos, para que nunca
tropeces em alguma pedra. Replicou-lhe Jesus: Também está escrito: Não tentarás o
Senhor teu Deus" (Mt 4,5-7).

Da mesma forma, Cristo acabou com o domínio de Satanás no mundo, pondo fim
na "concupiscência dos olhos", naquele desejo inato do Homem de praticar obras
mirabolantes aos "olhos" de si próprio e do mundo. Cristo não era um "milagreiro"
usando do milagre apenas para impressionar um público sedento de
anormalidades e maravilhas. Jesus não fazia pedras voar, nem elevava pedras no
ar para se exibir, nem se "bi - locava" ou se transportava de um lugar para outro
sem os meios normais de locomoção, qual seja, seus milagres tiveram uma
conotação bem diferente. Ele mesmo reclamava que não os entendiam, pois
curava os cegos, os surdos, os mudos, os coxos, ressuscitou mortos, curou
leprosos, mostrando o advento do Reino de Deus com o fim das conseqüências
do pecado, o fim do domínio do diabo. No Reino de Deus tal como na Sua Igreja
não se buscará mais a Honra ou a Glória de um malabarista do mundo, coisas da
concupiscência dos olhos, que tem por fonte o demônio, agora rejeitado para
sempre, e se impõe como Deus e Senhor, dizendo-lhe que "não tentarás o Senhor
teu Deus".

Finalmente a concupiscência da ostentação das riquezas, tornando-se


verdadeira idolatria, pela inversão de Satanás em Deus:

"Novamente o Diabo o levou a um monte muito alto; e mostrou-lhe todos os reinos


do mundo, e a glória deles; e disse-lhe: Tudo isto te darei, se, prostrado, me
adorares. Então ordenou-lhe Jesus: Vai-te, Satanás; porque está escrito: Ao Senhor
teu Deus adorarás, e só a ele servirás. Então o Diabo o deixou; e eis que vieram os
anjos e o serviram" (Mt 4,1-11).

Jesus recusa as riquezas do mundo e a sua glória, a cobiça humana, como


verdadeira idolatria:

"Exterminai, pois, as vossas inclinações carnais: a prostituição, a impureza, a


paixão, a vil concupiscência, e a avareza, que é idolatria..." (Cl 3,5).

Jesus afastou-a definitivamente do Reino de Deus e de Sua Igreja que então


anunciava. Não é preciso dizer muito, eis que recusou a proposta do Diabo que
"mostrou-lhe todos os reinos do mundo, e a glória deles"; e disse-lhe que "tudo
isto te darei, se, prostrado, me adorares'". O que se conclui daí é que o "bode
emissário" devolveu a Satanás o pecado que lhe é próprio, inaugurando a era da
Santificação do Homem, levando-o de volta ao Paraíso:

"... hoje estarás comigo no Paraíso" (Lc 23,43)

E é isso que São Paulo nos ensina ter feito Jesus, atravessando o véu, aquele que
se rasgou quando padecia na Cruz:
"Mas Cristo, tendo vindo como sumo sacerdote dos bens já realizados, por meio do
maior e mais perfeito tabernáculo, não feito por mãos, isto é, não desta criação, e
não pelo sangue de bodes e novilhos, mas por seu próprio sangue, entrou uma vez
por todas no santuário, havendo obtido uma eterna redenção. Porque, se a
aspersão do sangue de bodes e de touros, e das cinzas duma novilha santifica os
contaminados, quanto à purificação da carne, quanto mais o sangue de Cristo,
que pelo Espírito eterno se ofereceu a si mesmo imaculado a Deus, purificará das
obras mortas a vossa consciência, para servirdes ao Deus vivo? E por isso é
mediador de uma nova Aliança, para que, intervindo a morte para remissão das
transgressões cometidas debaixo da primeira Aliança, os chamados recebam a
promessa da herança eterna...(...)... Pois Cristo não entrou num santuário feito por
mãos, figura do verdadeiro, mas no próprio céu, para agora comparecer por nós
perante a face de Deus; nem também para se oferecer muitas vezes, como o
sumo sacerdote de ano em ano entra no santo lugar com sangue alheio; doutra
forma, necessário lhe fora padecer muitas vezes desde a fundação do mundo;
mas agora, na consumação dos séculos, uma vez por todas se manifestou, para
aniquilar o pecado pelo sacrifício de si mesmo. ..." (Hb 9,11-28).

Então toda a estrutura do Santuário e o Sacerdócio de então, que culminam no


Dia da Expiação, é "figura" de Cristo:

"...Jurou o Senhor, e não se arrependerá: Tu és sacerdote para sempre, de tanto


melhor Aliança Jesus foi feito fiador. E, na verdade, aqueles foram feitos
sacerdotes em grande número, porque pela morte foram impedidos de permanecer,
mas este, porque permanece para sempre, tem o seu sacerdócio perpétuo.
Portanto, pode também salvar perfeitamente os que por ele se chegam a Deus,
porquanto vive sempre para interceder por eles. Porque nos convinha tal sumo
sacerdote, santo, inocente, imaculado, separado dos pecadores, e feito mais sublime
que os céus; que não necessita, como os sumos sacerdotes, de oferecer cada dia
sacrifícios, primeiramente por seus próprios pecados, e depois pelos do povo;
porque isto fez ele, uma vez por todas, quando se ofereceu a si mesmo. Porque a
lei constitui sumos sacerdotes a homens que têm fraquezas, mas a palavra do
juramento, posterior à lei, constitui o Filho, eternamente perfeito" (Hb 7,21-28).

Não é diferente o que ensina o Catecismo da Igreja Católica:

"O nome de Deus Salvador era invocado apenas uma vez por ano, pelo Sumo
Sacerdote, para Expiação dos Pecados de Israel, depois de ter aspergido o
Propiciatório do "santo dos santos" com o sangue do sacrifício (cf. Lv 16,15-16; Sir
50,20; Nm 7,89; Hb 9,7). O Propiciatório era o lugar da presença de Deus (cf. Ex
25,22; Lv 16,2; Nm 7,89; Hb 9,5). Quando São Paulo diz de Jesus que Deus O
"apresentou como Aquele que expia os pecados, pelo Seu Sangue derramado"
(Rm 5,25), significa que, na humanidade d'Este, "era Deus que em Cristo
reconciliava o mundo Consigo" (2Co 5,19) [n.° 433 - destaques propositais] / "A
Morte de Cristo é, ao mesmo tempo, o sacrifício pascal que realiza a redenção
definitiva dos homens (cf. 1Co 5,7; Jo 8,34-36) por meio do "Cordeiro que tira o
pecado do mundo" (Jo 1,29) (cf. 1Pe 1,19), e o sacrifício da Nova Aliança (cf. 1Co
11,25) que restabelece a comunhão entre o homem e Deus (cf. Ex 24,8),
reconciliando-o com Ele pelo "sangue derramado pela multidão, para remissão dos
pecados" (Mt 26,28; cf. Lv 16,15-16) [n.° 613 - negritos a propósito].

E, quanto à Tentação de Jesus no deserto diz:

"Os evangelistas indicam o sentido salvífico deste acontecimento misterioso. Jesus é


o Novo Adão, que Se mantém fiel naquilo em que o primeiro sucumbiu à tentação.
Jesus cumpre perfeitamente a vocação de Israel: contrariamente aos que outrora,
durante quarenta anos, provocaram Deus no deserto (cf. Sl 94,10), Cristo revela-Se
o Servo de Deus totalmente obediente à vontade divina. Nisto, Jesus vence o diabo:
"amarrou o homem forte", para lhe tirar os despojos (Mc 3,27). A vitória de Jesus
sobre o tentador, no deserto, antecipa a vitória da Paixão, suprema obediência do
seu amor filial ao Pai" (Catecismo da Igreja Católica n.° 540; v. tb.: n.°s. 538
e 539).

Concluindo, na Tentação do Deserto Jesus anuncia a Expiação do pecado do


Homem pelo Seu Sacrifício no Altar da Cruz, de maneira definitiva, erradicando do
coração humano, pela ação do Espírito Santo, a concupiscência e recusando para
o Seu Reino, corporificado na Sua Igreja, o Poder, a Glória e as Riquezas do
mundo, que devolvera ao diabo de uma vez por todas.

Terminada a cerimônia da Investidura Sacerdotal tem início a apresentação das


condições de Pureza Legal para aproximar-se de Iahweh, principalmente para a
participação nos Sacrifícios, seja como Vítima, seja como Ofertante e seja como
Celebrante, destacando-se uma classificação de animais em "puros e impuros",
cuja observância far-se-á até mesmo nas refeições cotidianas:

"(1) Falou o Senhor a Moisés e a Aarão, dizendo-lhes: Dizei aos filhos de Israel:
Estes são os animais que podereis comer dentre todos os animais que há sobre a
terra ...(...)... Os seguintes, contudo, não comereis...(...)... (8) Da sua carne não
comereis, nem tocareis nos seus cadáveres; esses vos serão imundos ...(...)... (44)
Porque eu sou o Senhor vosso Deus; portanto santificai-vos, e sede santos,
porque eu sou santo; e não vos contaminareis ...(...)... porque eu sou o Senhor,
que vos fiz subir da terra do Egito, para ser o vosso Deus, sereis pois santos,
porque eu sou santo. Esta é a lei sobre os animais e as aves, e sobre toda criatura
vivente que se move nas águas e toda criatura que se arrasta sobre a terra; para
fazer separação entre o imundo e o limpo, e entre animais que se podem comer
e os animais que não se podem comer" (Lv 11,1-4.8.44-47).
15. AS LEIS DE SANTIDADE

Até aqui foram narrados os ritos para uma comunhão com Iahweh pelo
Sacrifício e para se manter ou se recuperar a "pureza legal", sem o que não
há Santidade. De agora em diante serão apresentadas normas de conduta e
comportamento que também e por sua vez a favorecem ou a comprometem,
nos termos da Aliança. São normas de moral religiosa buscando-se atingir
uma Santidade interior, mais ampla e perfeita, que não se exaure em uma
Pureza Legal, nem em uma Santificação Ritual, nem se identifica apenas com
a exteriorização rotineira e apenas física. Desde o tempo da promulgação do
Decálogo se lançaram as bases para a vida religiosa plena do Povo de Israel,
o Código da Aliança, erigindo-se imediatamente um Santuário. Além disso,
estabeleceu-se uma série de observâncias para a participação na vida em
comunidade, nos Sacrifícios e para tornar Israel "a minha propriedade
peculiar dentre todos os povos", e "um reino de sacerdotes e uma nação
santa":

"Vós tendes visto o que fiz aos egípcios, como vos levei sobre asas de águias, e
vos trouxe a mim. Agora, pois, se atentamente ouvirdes a minha voz e se
guardardes a minha Aliança sereis a minha propriedade peculiar dentre
todos os povos, porque minha é toda a terra; e vós sereis para mim um reino
de sacerdotes e uma nação santa. São estas as palavras que falarás aos filhos
de Israel (...) Disse mais Iahweh a Moisés: Vai ao povo, e santifica-o hoje e
amanhã; lavem eles os seus vestidos (...) Então Moisés desceu do monte ao
povo, e santificou o povo que lavaram os seus vestidos (...) Ora, santifiquem-
se também os sacerdotes, que se chegam a Iahweh, para que Iahweh não se
lance sobre eles" (Ex 19,4-6.10.14.22).

Esta exigência de Santidade condicionada a "se atentamente ouvirdes a


minha voz e se guardardes a minha Aliança", tornando-os "uma
propriedade peculiar dentre todos os povos (...) um reino de sacerdotes
e uma nação santa", vai se acentuar coerentemente nos rituais praticados no
Santuário de acordo com a vontade de Iahweh, exteriorizando-se num
comportamento assumido desde o interior, e não apenas exteriorizado
fisicamente:

"Porque eu sou Iahweh o vosso Deus; ...santificai-vos, e sede santos, porque


eu sou santo ...(...)... eu sou Iahweh, que vos fiz subir da terra do Egito, para
ser o vosso Deus, sereis pois santos, porque eu sou santo" (Lv 11,44-46).

Por causa disso, entre os compromissos assumidos na Aliança se incluiu o


que se pode denominar de "Missão de Israel", várias vezes ratificada (cfr. Ex
34,13; Lv 18,3.24-30; Nm 33,52; Dt 7,5; 12,3.29-31) e com base nela se
elaborou as leis atinentes ao "puro e impuro", para se evitar principalmente as
práticas dos pagãos que os rodeavam, seja nos vários sacrifícios, seja no
comportamento moral, seja na alimentação cotidiana (Os 9,3; Ez 4,13; Tb
1,10-12; Dn 1,8-12; Jdt 12,2-4; Lv 18,2-5):

"...não adorarás os seus deuses, nem lhes prestarás culto, imitando seus
costumes. Ao contrário derrubarás e quebrarás as suas colunas. Servireis
a Iahweh o vosso Deus (...) Não farás aliança com eles nem com seus
deuses. ..." (Ex 23,23-33) / "Guardareis, pois, todos os meus estatutos e
todos os meus preceitos, e os cumprireis; a fim de que a terra, para a qual
eu vos levo, para nela morardes, não vos vomite. E não andareis nos
costumes dos povos que eu expulso de diante de vós (...): Herdareis a sua
terra, e eu vo-la darei para a possuirdes, terra que mana leite e mel. Eu
sou o Senhor vosso Deus, que vos separei dos povos. (...) E sereis para mim
santos; porque eu, Iahweh, sou santo, e vos separei dos povos, para serdes
meus" (Lv 20,22-26).

Israel então deveria assim se "separar" de outros povos principalmente pela


conformação de sua conduta e de seu comportamento com a vontade de
Iahweh, o que o levaria a se "santificar", "para serdes meus". Portanto, para
se "santificar" (em seu radical hebraico traz o sentido de "separar, cortar"),
era necessário "separar-se" ou "distinguir-se" dos pagãos e do modo deles
se comportarem (Ex 19,6.10.14.22; Lv 11,44s; 18,24-30; 19,2; 20,7.8; 21,1-8;
22,1-9.31-33; Nm 31,19-24):

"Não vos contamineis com nenhuma dessas coisas, porque com todas elas se
contaminaram as nações que eu expulso de diante de vós;(...) Vós, pois,
guardareis os meus estatutos e os meus preceitos, e nenhuma dessas
abominações fareis (...) guardareis o meu mandamento, de modo que não
caiais em nenhum desses abomináveis costumes que antes de vós foram
seguidos, e para que não vos contamineis com eles. Eu sou Iahweh o vosso
Deus" (Lv 18,24-30).

Assim é que, desde o alvorecer bíblico, tal como com Adão e Eva que "se
esconderam da presença de Deus" (Gn 3,8), se usa a expressão "andou
com Deus" (cfr. Gn 5,21.24; 6,9) ou "andar na presença de Deus e ser
perfeito" (Gn 17,1) ou outras equivalentes tais como "guardar os caminhos
de Iahweh praticando o direito e a justiça" (Gn 18,19), para se exprimir e
traduzir a Santidade de vida, e vinculando-a ao dever de "observar os
meus preceitos e os meus estatutos guardareis, para andardes neles",
mantendo-se uma estreita comunhão com Iahweh:

"Fala aos filhos de Israel, e dize-lhes: Eu sou Israel o vosso Deus. Não fareis
segundo as obras da terra do Egito, em que habitastes; nem fareis segundo
as obras da terra de Canaã, para a qual eu vos levo; nem andareis segundo
os seus estatutos. Os meus preceitos observareis, e os meus estatutos
guardareis, para andardes neles. Eu sou Israel o vosso Deus" (Lv 18,2-4).
Facilmente se percebe a já referida e estreita ligação do conceito de "santo"
com um sentido claro do que "é separado", daquilo que não se mistura com o
que for "profano", até mesmo no comportamento. Esse conceito de Santo em
"guardar os caminhos de Iahweh praticando o direito e a justiça" (Gn
18,19), é ainda bem claro nas palavras do Salmista muitos séculos depois,
pela união que se almeja com Iahweh, seja "habitando no teu tabernáculo"
seja "descansando no teu santo monte":

"Quem, Iahweh, habitará no teu tabernáculo? Quem descansará no teu santo


monte? Aquele que anda irrepreensivelmente e pratica a justiça, e do seu
coração fala a verdade; que não difama com a sua língua, nem faz o mal ao
seu semelhante, nem contra ele aceita difamação; aquele a cujos olhos o
réprobo é desprezado, mas que honra os que temem ao Senhor; aquele que,
embora jure com dano seu, não muda; que não empresta o seu dinheiro com
usura, nem recebe dádivas contra o inocente. Aquele que assim procede nunca
será abalado" (Sl 15,1-5).

Isso porque a fonte única e o fundamento de toda a Santidade é Iahweh pelo


fato de que somente Iahweh é Santo, em virtude de ser o único
absolutamente "separado", e, em assim sendo, só Iahweh Santifica (Lv 19,2;
20,7-8.26; 21,6.8.15.23; 22,9.16.32), santificação que se vincula como
conseqüência à ordem de "guardai os meus estatutos, e cumpri-os":

"Guardai os meus estatutos, e cumpri-os. Eu sou Iahweh, que vos santifico" (Lv
20,7-8).

E tudo isso vai então ecoar como um grito solene de Iahweh e em torno do
qual gira a Santidade, na narrativa levítica:

"Sede Santos, porque eu Iahweh vosso Deus Sou Santo" (Lv 19,2).

Essa Santidade está estreitamente vinculada ao cumprimento da vontade de


Iahweh prescrita nos seus preceitos ou mandamentos:

"Os meus preceitos observareis, e os meus estatutos guardareis, para andardes


neles. Eu sou Iahweh o vosso Deus. Guardareis, pois, os meus estatutos e as
minhas ordenanças, pelos quais o homem, observando-os, viverá. Eu sou
Iahweh" (Lv 18,4-5) / "Portanto santificai-vos, e sede santos, pois eu sou
Iahweh o vosso Deus. Guardai os meus estatutos, e cumpri-os. Eu sou
Iahweh, que vos santifico" (Lv 20,7-8).

"Guardai os meus estatutos, e cumpri-os. Eu sou Iahweh, que vos


santifico" - claro fica a vinculação da Santidade com o cumprimento dos
preceitos emanados da vontade de Iahweh consubstanciados nestes trechos,
selecionados dentre muitos outros. Principalmente quando diz "pelos quais o
homem, observando-os, viverá", assume a posse de bens e bênçãos
necessárias a uma vida feliz, de que é "figura" o Jardim do Éden, onde
contrasta com a violação do preceito pelo que "morrerás" (Gn 2,17).

15.1 A Lei de Santidade do Sacrifício e de Culto (Lv 17)

Usando uma terminologia atual, é de se dizer que a primeira regulamentação


havida é a da Santidade do Sacrifício e de Culto:

"Disse mais Iahweh a Moisés: Fala a Aarão e aos seus filhos, e aos Israelitas, e
dize-lhes: Isto é o que Iahweh tem ordenado: Qualquer Israelita que imolar
boi, ou cordeiro, ou cabra, dentro ou fora do acampamento, e não o
trouxer à porta da tenda da reunião, para o oferecer como oferta a Iahweh
diante do tabernáculo de Iahweh, a esse homem será réu do sangue;
derramou sangue, pelo que será extirpado do meio do seu povo. Por isso os
filhos de Israel tragam as vítimas que oferecem no campo, isto é, tragam-nas a
Iahweh, à porta da tenda da reunião, entregando-as ao sacerdote para que as
ofereça por sacrifícios pacíficos a Iahweh. E o sacerdote espargirá o sangue
sobre o altar de Iahweh, à porta da tenda da reunião, e queimará a gordura em
suave fragrância a Iahweh" (Lv 17,1-6).

Desde o Dilúvio não é tolerada a matança indiscriminada de homens e de


animais por cujo derramamento do sangue se responde de igual maneira,
vedando-se totalmente o seu consumo:

"A carne, porém, com sua vida, isto é, com seu sangue, não comereis.
Certamente pedirei satisfação do vosso sangue, do sangue das vossas vidas;
de todo animal a pedirei; como também do homem..." (Gn 9,4-5).

O sangue e o respeito por ele torna-se essencial ao Sacrifício (Lv 17,11.14) e


é a razão dos primeiros cuidados a serem observados numa Santidade mais
voltada ao interior. Assim, por ser Vida, só pode ser vertido para o Autor da
Vida, em virtude do que, vigorava a regra de não haver abate sem o ritual do
Sacrifício:

"Também, qualquer homem da casa de Israel, ou dos estrangeiros que habitam


entre eles, que comer algum sangue, contra essa pessoa voltarei o meu rosto, e
a extirparei do seu povo. Porque a vida da carne está no sangue; e vo-lo tenho
dado sobre o altar, para fazer expiação pelas vossas faltas; porquanto é o
sangue que faz expiação, em virtude da vida que está nele. Portanto tenho
dito aos filhos de Israel: Nenhum de vós comerá sangue; nem o estrangeiro
que habita entre vós comerá sangue. Também, qualquer homem dos filhos de
Israel, ou dos estrangeiros que habitam entre eles, que apanhar caça de fera ou
de ave que se pode comer, derramará o sangue dela e o cobrirá com terra. Pois,
a vida de toda a carne está no seu sangue; por isso eu disse aos filhos de Israel:
Não comereis o sangue de nenhuma carne, porque a vida de toda a carne é
o seu sangue; qualquer que o comer será extirpado" (Lv 17,10-14).

A Vida é um Dom de Deus, só a Ele pertence, e ela é, como se acreditava,


inseparável do sangue motivo porque é Iahweh quem o "tem dado sobre o
altar", numa concessão que faz, apenas e tão somente, "para fazer expiação
pelas vossas faltas". Não permite o seu consumo como alimento, nem dos
animais "puros" abatidos em caça, dos quais "derramar-se-á o sangue e o
cobrirá com terra". E é por causa disso também que se torna necessário,
indispensável mesmo, que "qualquer Israelita que imolar boi, ou cordeiro,
ou cabra, dentro ou fora do acampamento, e não o trouxer à porta da
tenda da reunião, para o oferecer como oferta a Iahweh diante do
tabernáculo de Iahweh, a esse homem será réu do sangue; derramou
sangue, pelo que será extirpado do meio de seu povo" (Lv 17,3-4). Com
isso já se anuncia a futura exigência da "unidade de santuário":

"Então haverá um lugar que Iahweh o vosso Deus escolherá para ali fazer
habitar o seu nome; a esse lugar trareis tudo o que eu vos ordeno: os
vossos holocaustos e sacrifícios, os vossos dízimos, a vossa contribuição e tudo
o que de melhor oferecerdes ao Senhor em cumprimento dos votos que
fizerdes. E vos alegrareis perante Iahweh o vosso Deus, vós, vossos filhos e
vossas filhas, vossos servos e vossas servas (...) Guarda-te de ofereceres os
teus holocaustos em qualquer lugar que vires; mas no lugar que Iahweh
escolher (...) ali oferecerás os teus holocaustos, e ali farás tudo o que eu te
ordeno" (Dt 12,11-14).

"...a esse homem será imputado o sangue; derramou sangue, pelo que
será extirpado do seu povo" - é a violação da Lei do Respeito à Vida, seja
humana seja animal, pois a vida pertence só a Iahweh, pelo que Ele mesmo
punirá o culpado, pois "contra essa pessoa voltarei o meu rosto" (Lv
17,10), "extirpando-a do meio do povo" (Lv 17,4), numa espécie de
excomunhão. Esse respeito pelo sangue vai vigorar ainda nos primórdios do
Cristianismo:

"Porque pareceu bem ao Espírito Santo e a nós não vos impor maior encargo
além destas coisas necessárias: Que vos abstenhais das coisas sacrificadas aos
ídolos, e do sangue, e da carne sufocada, e da prostituição; e destas coisas
fareis bem de vos guardar. Saudações" (At 15,28-29). / "Todavia, quanto aos
gentios que têm crido já escrevemos, dando o parecer que se abstenham do que
é sacrificado aos ídolos, do sangue, das carnes dos animais sufocados e da
prostituição" (At 21,25).
15.2 A Lei do Amor ao Próximo e a Santidade dos Costumes (Lv
18-20)

A narrativa vem a ser impregnada de refrãos, que fazem dos versículos que
separam, episódios de uma formulação moral. São como que chamadas de
atenção para o princípio ordenador da Santidade a que Israel está
comprometido e a sua fonte em Iahweh, para se distinguir dos outros povos
pagãos de costumes reprovados:

"Não fareis segundo as obras da terra do Egito, em que habitastes; nem fareis
segundo as obras da terra de Canaã, para a qual eu vos levo; nem andareis
segundo os seus estatutos. Os meus preceitos observareis, e os meus estatutos
guardareis, para andardes neles. Eu sou Iahweh o vosso Deus. Guardareis, pois,
os meus estatutos e as minhas ordenanças, pelas quais o homem, observando-
as, viverá. Eu sou Iahweh" (Lv 18,3-5; cfr. tb. 18,24-30).

Considerando o paganismo do Egito, traz à baila a Aliança e o Decálogo


unindo-os no futuro à Terra Prometida ou Terra de Canaã, cujos costumes
também são por Iahweh rechaçados como pecaminosos. Apresenta então
desenvolvimentos atinentes à Santidade e à dignidade da natureza humana
no Casamento, quanto às uniões ilícitas tidas como incestuosas, bem como
alguns tipos de consangüinidade, nem sempre concordes com os atuais, cujas
causas que não científicas, mas religiosas, se desconhecem as mais das
vezes. Combate-se o adultério de ambos os cônjuges (Lv 18,20 / Lv 20,10), e
a proibição de se entregar os descendentes a Moloc, em sacrifício, bem como
a sodomia, juntamente com o comércio carnal com animais, o que leva a crer
numa condenação da prostituição sagrada que incluía homens, comum aos
povos pagãos de então. Tudo vai desaguar naquele grito central que já ecoa e
vai ecoar por toda a vida Israelense:

"...Sereis santos, porque eu, Iahweh vosso Deus, sou santo" / "Portanto
santificai-vos, e sede santos, pois eu sou Iahweh vosso Deus. Guardai os meus
estatutos, e cumpri-os. Eu sou Iahweh, que vos santifico" (Lv 19,2 / Lv 20,7-
8; cfr. tb.: Ex 22,30a / Lv 11,45c).

Não se pode deixar de perceber a presença salpicada de frases desse tipo


espalhadas por todo o contexto, seguidas e encimadas por normas de
conduta moral advindas as mais das vezes do Decálogo, numa espécie de
lista de exemplos de algumas faltas que não se deve cometer, caracterizando-
se, pelo diapasão contínuo, a fonte interior das normas de procedimentos que
deve orientar o Israelita. Além disso esse desenrolar vai desabrochar na regra
básica e genérica, profundamente vinculada a Iahweh:

"Não te vingarás nem guardarás ira contra os filhos do teu povo; mas amarás
o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou Iahweh. Guardareis as minhas
leis" (Lv 19,18-19a).

"...amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou Iahweh" - este preceito


vai ser modificado por Jesus Cristo, não mais se restringindo em "...os filhos
do teu povo..." o qualificativo de "próximo", mas ampliando-o a qualquer
outra pessoa com quem de alguma forma se relacione, e por fidelidade e
obediência a Iahweh que assim os manda "guardar as minhas leis" (Lv
19,19a). Jesus vai então unir num só dois mandamentos e ampliar a noção de
próximo, estendendo-a a todo "aquele com quem se deve usar de
misericórdia", com o que a universaliza:

"E eis que se levantou certo doutor da lei e, para o experimentar, disse: Mestre,
que farei para herdar a vida eterna? Perguntou-lhe Jesus: Que está escrito na
lei? Como lês tu? Respondeu-lhe ele: Amarás ao Senhor teu Deus de todo o
teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu
entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo. Tornou-lhe Jesus:
Respondeste bem; faze isso, e viverás. Ele, porém, querendo justificar-se,
perguntou a Jesus: E quem é o meu próximo? Jesus, prosseguindo, disse: Um
homem descia de Jerusalém a Jericó, e caiu nas mãos de salteadores, os
quais o despojaram e espancando-o, se retiraram, deixando-o meio morto.
Casualmente, descia pelo mesmo caminho certo sacerdote; e vendo-o, passou
de largo. De igual modo também um levita chegou àquele lugar, viu-o, e
passou de largo. Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou perto dele e,
vendo-o, encheu-se de compaixão; e aproximando-se, atou-lhe as feridas,
deitando nelas azeite e vinho; e pondo-o sobre a sua cavalgadura, levou-o para
uma estalagem e cuidou dele. No dia seguinte tirou dois denários, deu-os ao
hospedeiro e disse-lhe: Cuida dele; e tudo o que gastares a mais, eu to pagarei
quando voltar. Qual, pois, destes três te parece ter sido o próximo daquele
que caiu nas mãos dos salteadores? Respondeu o doutor da lei: Aquele que
usou de misericórdia para com ele. Disse-lhe, pois, Jesus: Vai, e faze tu o
mesmo" (Lc 10,25-37).

Este episódio vai mostrar a necessidade de se conhecer o Antigo Testamento


para melhor se compreender o Novo. Ao que se vê de início "um homem
descia de Jerusalém a Jericó", qual seja, pelas localidades que se
menciona, um judeu, quem se sabe ser inimigo do povo da Samaria, por
causa da idolatria pagã lá estabelecida (2Rs 17,24-41), que foi assaltado e
muito ferido, "deixando-o meio morto". Foi um samaritano "que se encheu de
compaixão e do inimigo cuidou", após ter passado ao largo um sacerdote e
um levita [respectivamente da Casa de Aarão (Ex 29) e da Tribo de Levi (Nm
8,17-19), de cujo sacerdócio perene já se tomou conhecimento aqui]. Assim,
se vê que, passa ao largo um sacerdote "pleno" e um "auxiliar", sem lhe
prestar socorro, o que faz um inimigo, um samaritano. Jesus não os está
condenando, mas mostrando ao doutor da lei que "querendo justificar-se,
perguntou a Jesus quem era o seu próximo", com um exemplo prático a
eficiência do verdadeiro Amor ao Próximo. Amor bem diferente daquele que a
Lei de Santidade exigia, impedindo até mesmo que se aproximasse de uma
pessoa que parecia morta ("deixando-o meio morto"), sob pena de se tornar
"impuro" (Lv 10,6; 21,1.10 / Nm 6,6), ao contrário do modo de agir do inimigo
e estrangeiro samaritano. Contrasta ainda com o preconceito legal de que "o
próximo seria um dos filhos de seu povo", tendo sido o inimigo o verdadeiro
"próximo do ferido".

Vários exemplos de situações envolvendo o "amor ao próximo, 'dos filhos de


seu povo'" são mencionados após a repetição da repulsa que Iahweh sente
pelos costumes dos povos pagãos, querendo que não sejam praticados pelos
Israelitas, o Povo de Deus:

"Não vos contamineis com nenhuma dessas coisas, porque com todas elas se
contaminaram as nações que eu expulso de diante de vós; e, porquanto a terra
está contaminada, eu visito sobre ela a sua iniqüidade, e a terra vomita os seus
habitantes. Vós, pois, guardareis os meus estatutos e os meus preceitos, e
nenhuma dessas abominações fareis, nem o natural, nem o estrangeiro que
peregrina entre vós. Porque todas essas abominações cometeram os homens da
terra, que nela estavam antes de vós, e a terra ficou contaminada. Para que a
terra não seja contaminada por vós e não vos vomite também a vós, como
vomitou a nação que nela estava antes de vós. Pois qualquer que cometer
alguma dessas abominações, pois aqueles que as cometerem serão extirpados
do seu povo. Portanto guardareis o meu mandamento, de modo que não
caiais em nenhum desses abomináveis costumes que antes de vós foram
seguidos, e para que não vos contamineis com eles. Eu sou Iahweh o vosso
Deus" (Lv 18,24-30).

Dentre essas situações se destacam vários deveres de justiça ao próximo de


então, "outro Israelita", proibindo-se o roubo, a fraude, a mentira, o falso
juramento, a opressão e o prejuízo do menos favorecido (Lv 19,11-13.35.36),
a parcialidade nos julgamentos (Lv 19,15s), o desrespeito aos pais e aos
velhos, bem como aos estrangeiros (Lv 19,3.32-34), o sadismo contra
enfermos e portadores de defeitos físicos (Lv 19,14), a maledicência, a
difamação, o ódio e a vingança (Lv 19,16-18); algumas disposições quanto
aos pobres (Lv 19,9s.13); quanto aos variados costumes éticos de então e a
condenação de sortilégios, incisões de luto, tatuagem, recorrer-se a feiticeiros
e consultar adivinhos (Lv 19,19.26-31), a "incircuncisão" de frutas nas terras
conquistadas, delas só se podendo alimentar após três anos de purificação e
um ano de consagração, por serem contaminadas com as impurezas dos
costumes pagãos (Lv 19,23-25); quanto ao adultério com uma escrava, uma
exceção sui-generis (Lv 19,20-22) e muitos outros casos de leitura fácil, a que
se remete o estudo. É de se destacar algumas recomendações quanto aos
Sacrifícios Pacíficos eis que mais ligados aos leigos, únicos em que
participavam da manducação das oferendas, instruindo-os para não se perder
a eficácia pela inobservância do prazo ritual para as consumir, e não incorrer
em falta muito grave e por isso ser "extirpado do meio de seu povo" (Lv 19,5-
8). São ordenanças religiosas, éticas e sociais, de colorido profundamente
interior, em que se destacava principalmente a busca sistemática da
Santidade de vida, tão cara a Iahweh, que assim "os santificaria" (Lv 20,8).

Segue um elenco de penas de morte a que se sujeitam os transgressores a


começar com a idolatria e os sacrifícios humanos a Moloc, bem como o
adultério, o comércio carnal entre homens e animais e vários outros exemplos
de desordens e taras sexuais, bem como uniões tidas como ilícitas e então
praticados pelos outros povos, punições que se estendem aos que se omitem
em puni-los (Lv 20,1-30):

"Guardareis, pois, todos os meus estatutos e todos os meus preceitos, e os


cumprireis; a fim de que a terra, para a qual eu vos levo, para nela morardes,
não vos vomite. E não andareis nos costumes dos povos que eu expulso de
diante de vós; porque eles fizeram todas estas coisas, e eu os abominei. Mas a
vós vos tenho dito: Herdareis a sua terra, e eu vo-la darei para a possuirdes,
terra que mana leite e mel. Eu sou Iahweh o vosso Deus, que vos separei dos
povos. Fareis, pois, diferença entre os animais limpos e os imundos, e entre as
aves imundas e as limpas; e não fareis abomináveis as vossas almas por causa
de animais, ou de aves, ou de qualquer coisa de tudo de que está cheia a terra,
as quais coisas apartei de vós como imundas. E sereis para mim santos; porque
eu, Iahweh, sou santo, e vos separei dos povos, para serdes meus. O homem ou
mulher que consultar os mortos ou for feiticeiro, certamente será morto. Serão
apedrejados, e o seu sangue será sobre eles" (Lv 20,22-27).

Não há de se qualificar de cruéis a essas penas, comparando-as com as


conquistas atuais, mas lembrar-se de que naquela época, para a organização
tribal e patriarcal de então, além de profundamente vinculada à Aliança, era
uma questão de vida ou morte, de verdadeira sobrevivência, tal como seria
atualmente a prática de um ato que colocasse em perigo a segurança pública.
Não se pode julgar o passado com as racionalizações atuais.

15.3 A Lei de Santidade dos Sacerdotes e das Oferendas (Lv 21-


22)

O que o Sacerdócio representava para o Povo de Israel é facilmente


compreensível pela estrutura teocrática da nação, que se formava a partir da
Aliança contraída com os Patriarcas, que a celebraram com o Sacrifício, do
qual desde então sempre partiam e em cuja direção caminhavam. Por meio
dele, seguindo o caminho aberto por eles, buscou chegar a Iahweh e dEle
receber as bênçãos de que carecia até mesmo ao conclui-la no Sinai, quando
se formou. Basta que se observe que nem mesmo uma simples refeição podia
ser tomada sem se considerar as mais elementares regras sacrificiais, a partir
da veneração do sangue como fonte da vida e sua restituição ao solo, bem
como não se nutrindo de animais classificados como "impuros". Com a
unificação do santuário, até mesmo a Páscoa, solenidade familiar por
excelência, terá o seu cordeiro imolado no templo e o Sangue derramado no
Altar por um Sacerdote (2Cro 35,11 / Dt 12). O Sacerdócio, por causa dele,
vai se tornar o centro de toda a vida Israelita. Assim sendo, deles a Santidade
é mais rigorosamente exigida:

"Fala aos sacerdotes (...) Santos serão para seu Deus, e não profanarão o nome
do seu Deus; porque oferecem as ofertas queimadas de Iahweh, que são o pão
do seu Deus; portanto serão santos. (...) Portanto o santificarás; porquanto
oferece o pão do teu Deus, santo te será; pois eu, Iahweh, que vos santifico,
sou santo" (Lv 21,1a.6.8).

Aqui mais aparece a clássica distinção que se estabeleceu entre os


Sacerdotes: "Aarão", aquele "sobre cuja cabeça foi derramado o óleo da
Unção" (Lv 8,12) e "os filhos de Aarão", elevados ao sacerdócio em conjunto
com Aarão, numa Unção "indireta e por aspersão" (Lv 8,13.24.30). Exigia-se
mais Santidade do Sumo Sacerdote, por causa da Unção direta que recebeu
(Lv 21,10-15), que dos demais (Lv 21,1-9), para se evitar a contaminação do
Santuário e do Culto por alguma profanação, degenerando-se toda a estrutura
cultual. Caber-lhe-ia zelar pela pureza de seus irmãos e do culto, em virtude
da responsabilidade que assumira para o pleno desempenho de sua função
sagrada. Assim não poderia se aproximar de um morto, mesmo que seu pai
ou mãe, nem exteriorizar os sinais de luto, nem então se afastar do Santuário
e só poderia tomar por esposa uma virgem:

"Aquele que é sumo sacerdote entre seus irmãos, sobre cuja cabeça foi
derramado o óleo da unção, e que foi consagrado para vestir as vestes
sagradas, não descobrirá a cabeça nem rasgará a sua vestidura; e não se chegará
a cadáver algum; nem sequer por causa de seu pai ou de sua mãe se
contaminará; não sairá do santuário, nem profanará o santuário do seu Deus;
pois a coroa do óleo da unção do seu Deus está sobre ele. Eu sou Iahweh. E ele
tomará por esposa uma mulher na sua virgindade. Viúva, ou repudiada, ou
desonrada, ou prostituta, destas não tomará; mas virgem do seu povo tomará
por mulher. E não profanará a sua descendência entre o seu povo; porque eu
sou Iahweh que o santifico" (Lv 21,10-15).

Já "os filhos de Aarão" têm observâncias distintas e menos rigorosas:

"Depois disse Iahweh a Moisés: Fala aos sacerdotes, filhos de Aarão, e dize-
lhes: O sacerdote não se contaminará por causa dum morto entre o seu povo,
salvo por um seu parente mais chegado: por sua mãe ou por seu pai, por seu
filho ou por sua filha, por seu irmão, ou por sua irmã virgem, que lhe é
chegada, que ainda não tem marido; por ela também pode contaminar-se. (...)
Não tomarão mulher prostituta ou desonrada, nem tomarão mulher repudiada
de seu marido; pois o sacerdote é santo para seu Deus" (Lv 21,1-7).

Além disso, existem as que se destinam a ambos os Sacerdotes:

"Não farão os sacerdotes calva na cabeça, e não raparão os cantos da barba,


nem farão lacerações na sua carne. Santos serão para seu Deus, e não
profanarão o nome do seu Deus; porque oferecem as ofertas queimadas de
Iahweh, que são o pão do seu Deus; portanto serão santos (...) Portanto o
santificarás; porquanto oferece o pão do teu Deus, santo te será; pois eu,
Iahweh, que vos santifico, sou santo. E se a filha dum sacerdote se profanar,
tornando-se prostituta, profana a seu pai; no fogo será queimada" (Lv 21,5-
6.8-9).

A precaução com o casamento que contraíam era devido à responsabilidade


familiar assumida para o exercício do Sacerdócio, que não poderia correr o
risco de se contaminar com o profano, nem muito menos se deformar ou se
desviar para a infidelidade, pela mistura com outros povos com costumes e
superstições pagãs, tal como se afirma:

"E não profanará a sua descendência entre o seu povo; porque eu sou o
Senhor que o santifico" (Lv 21,15).

Ainda não se esquecera da advertência feita por ocasião do ocorrido a Nadab


e Abiú, tamanha era a Santidade Sacerdotal que se exigia pelas
conseqüências advindas para todos os irmãos do povo e pela
responsabilidade que detinham principalmente no pastoreio deles:

"Disse Moisés a Aarão: Isto é o que Iahweh declarou quando disse: "Serei
santificado naqueles que se chegarem a mim, e serei glorificado diante de todo
o povo". O que ouvindo Aarão, se calou" / "...para que não morrais, nem venha
a ira de Iahweh sobre todo o povo..." (Lv 10,3.6c).

"... serei glorificado diante de todo o povo" e "...para que não morrais, nem
venha a ira de Iahweh sobre todo o povo..."- Assim se resumia relação de
reciprocidade entre ambos, em que a Santidade do Sacerdote refletia sobre o
Povo. E, tamanha era a suntuosidade que ornava o Culto Israelita, que se
rejeitava no cerimonial toda a imperfeição possível, até mesmo humana, como
uma homenagem à majestade de Iahweh:

"Disse mais o Iahweh a Moisés: Fala a Aarão, dizendo: Ninguém dentre os


teus descendentes, por todas as suas gerações, que tiver defeito, se chegará
para oferecer o pão do seu Deus. (...) nenhum homem dentre os descendentes
de Aarão, o sacerdote, que tiver algum defeito, se chegará para oferecer as
ofertas queimadas do Iahweh; ele tem defeito; não se chegará para oferecer o
pão do seu Deus" (Lv 21,16-21).

Porém, apesar de aleijado, o descendente de Aarão, sacerdote por direito


perpétuo (Ex 29), participaria de seu direito apenas nas partes que lhe eram
consagradas nos vários Sacrifícios, alimentando-se delas com a sua família:

"Comerá do pão do seu Deus, tanto do santíssimo como do santo; contudo, não
entrará até o véu, nem se chegará ao altar, porquanto tem defeito; para
que não profane os meus santuários; porque eu sou Iahweh que os santifico.
Moisés, pois, assim falou a Aarão e a seus filhos, e a todos os filhos de Israel"
(Lv 21,22-24).

O Sacerdócio por si só não impedia o Sacerdote de se contaminar com


alguma impureza legal afastando-o do Santuário como qualquer Israelita, bem
como do exercício de sua função sagrada, competindo-lhe purificar-se
conforme as normas vigentes e devotar a Iahweh uma maior homenagem de
vida santificada, tendo em vista os compromissos assumidos na Aliança e
corporificados desde o Egito:

"Dize a Aarão e a seus filhos que se abstenham das coisas sagradas dos filhos
de Israel, as quais eles a mim me santificam, e que não profanem o meu santo
nome. Eu sou Iahweh. Dize-lhes: Todo homem dentre os vossos descendentes
pelas vossas gerações que, tendo sobre si a sua imundícia, se chegar às coisas
sagradas que os filhos de Israel santificam ao Iahweh, aquela alma será
extirpada da minha presença. Eu sou Iahweh (...) seja qual for a sua imundícia,
o homem que tocar em tais coisas será imundo até a tarde, e não comerá das
coisas sagradas, mas banhará o seu corpo em água e, posto o sol, então
será limpo; depois comerá das coisas sagradas, porque isso é o seu pão (...)
Guardareis os meus mandamentos, e os cumprireis. Eu sou Iahweh. Não
profanareis o meu santo nome, e serei santificado no meio dos filhos de
Israel. Eu sou Iahweh que vos santifico, que vos tirei da terra do Egito para
ser o vosso Deus. Eu sou Iahweh " (Lv 22,2-4.5b-7.31-33).

Da mesma forma as vítimas destinadas às Oferendas não podiam apresentar


nenhum defeito físico, nenhuma imperfeição, numa homenagem submissa e
solene à majestade de Iahweh, a quem oferecer-se-ia o que havia de melhor
no rebanho, nunca um refugo:

"Fala a Aarão, e a seus filhos, e a todos os filhos de Israel, e dize-lhes: Todo


homem da casa de Israel, ou dos estrangeiros em Israel, que oferecer a sua
oferta, seja dos seus votos, seja das suas ofertas voluntárias que oferecerem ao
Senhor em holocausto, para que sejais aceitos, oferecereis macho sem defeito,
ou dos novilhos, ou dos cordeiros, ou das cabras. Nenhuma coisa, porém, que
tiver defeito oferecereis, porque não será aceita a vosso favor. E, quando
alguém oferecer sacrifício de oferta pacífica ao Senhor para cumprir um voto,
ou para oferta voluntária, seja do gado vacum, seja do gado miúdo, o animal
será perfeito, para que seja aceito; nenhum defeito haverá nele" (Lv 22,18-21).

Isso ao lado de algumas aparentes superstições tais como deixar a cria com a
mãe no mínimo sete dias e somente então a imolar, bem como não matar a
mãe e sua cria no mesmo dia (Lv 22,27), sob pena de não ser aceita a oferta,
bem como qualquer sacrifício, mesmo o de Ação de Graças, deveria ser alvo
de fidelidade a todos os detalhes rituais, "de modo a serdes aceitos":

"E, quando oferecerdes a Iahweh sacrifício de ação de graças, oferecê-lo-eis de


modo a serdes aceitos. No mesmo dia se comerá; nada deixareis ficar dele até
pela manhã. Eu sou Iahweh. Guardareis os meus mandamentos, e os
cumprireis. Eu sou Iahweh. Não profanareis o meu santo nome, e serei
santificado no meio dos filhos de Israel. Eu sou Iahweh que vos santifico, que
vos tirei da terra do Egito para ser o vosso Deus. Eu sou Iahweh" (Lv 22,29-
33).

"...e serei santificado no meio dos filhos de Israel" - Não é possível passar
adiante sem se questionar: como é possível "ser santificado" aquele que
santifica, ou seja, "Iahweh que vos santifico"? É que desde "que vos tirei da
terra do Egito para ser o vosso Deus", indicou-lhes como adquirir a Santidade
que oferecia, pelo que, exteriorizada na conduta e no comportamento de
todos e de cada um, o nome de Iahweh, um Deus Santo, seria glorificado e
reconhecido, tal como no Egito onde assim se impôs pelos prodígios
praticados. Jesus vai incluir isso na Oração do Pai Nosso (Mt 6,9-10 e Lc
11,2), vinculando o "santificado seja o teu nome" com o "venha o teu reino" e
"seja feita a tua vontade":

"Portanto, orai vós deste modo: Pai nosso que estás nos céus, santificado seja
o teu nome; venha o teu reino, seja feita a tua vontade, assim na terra
como no céu..." (Mt 6,9-10). / "Ao que ele lhes disse: Quando orardes, dizei:
Pai, santificado seja o teu nome; venha o teu reino;..." (Lc 11,2).

O que ratificará dizendo ainda que as obras praticadas pelos seus discípulos
devem brilhar para que os homens, vendo-as, glorifiquem a Deus (Mt 5,14-
16):

"Vós sois a luz do mundo. Não se pode esconder uma cidade situada sobre um
monte; nem os que acendem uma candeia a colocam debaixo do alqueire, mas
no candelabro, e assim ilumina a todos que estão na casa. Assim resplandeça a
vossa luz diante dos homens, para que vejam as vossas boas obras, e
glorifiquem a vosso Pai, que está nos céus" (Mt 5,14-16).

Não é diferente do que ensina a Igreja:

"A Santidade de Deus é o foco inacessível do seu mistério eterno. Ao que se


manifestou dela na criação e na história, a Sagrada Escritura chama Glória, a
irradiação da sua majestade (cf. Sl 8; Is 6,3). Ao fazer o homem "à sua imagem
e semelhança" (Gn 1,26), Deus "coroa-o de glória" (Sl 8,6), mas, ao pecar, o
homem é "privado da glória de Deus" (Rm 3,23). A partir daí, Deus vai
manifestar a sua Santidade revelando e dando o seu nome, para restaurar o
homem "à imagem do seu Criador" (Col 3,10)" (Catecismo da Igreja
Católica n.º 2809).

16. AS FESTAS RELIGIOSAS DE TODO O POVO DE ISRAEL (Lv 23-


25)

Toda a estrutura da Nação Israelita era comprometida indestacavelmente com


a Aliança, pelo que se completava e se integrava no religioso, onde sempre
desaguava. Assim as Festas comemorativas dos vários momentos épicos de
sua História são repetições ou celebrações da intervenções em que Iahweh se
manifestou e se revelou ao Seu Povo, a começar com o respeito ao Sábado,
aqui ventilado pela mesma convocação de reunião que se fazem nas demais
solenidades e por inspirar maior respeito e observância. Todas elas foram
formalizadas desde o Sinai e instituídas nessa oportunidade as três principais,
como expressão de fidelidade e culto exclusivo a Iahweh, tal como descritas
(cfr. Capítulo 4, n.º 1).

Agora, observar-se-á outra formalidade que vem enriquecer os rituais,


destinada a incrementar ainda mais os laços de união entre todos e cada um
com Iahweh, condição de unidade de um povo em torno de um ideal ou
sentimento histórico comum: - são as reuniões do povo em Santas
Assembléias no Santuário, as quais se incorporam às Festas Religiosas já
instituídas. Essas Assembléias Sagradas dever-se-iam convocar com esse
sentido solene e santíssimo, incluindo-se entre tais solenidades e antes de
todas a do Sábado do Decálogo, reforçando assim a sua exclusiva, distinta e
inconfundível importância cultual:

"Depois disse Iahweh a Moisés: Fala aos filhos de Israel, e dize-lhes: As festas
fixas de Iahweh, que convocareis como santas assembléias, são estas: Seis dias
se fará trabalho, mas o sétimo dia é o sábado do descanso solene, uma santa
assembléia; nenhum trabalho fareis; é sábado de Iahweh em todas as vossas
habitações" (Lv 23,1-3, cfr. tb. Ex 16,23; 20,8-11; 31,12-17; 35,2).
16.1 Inicialmente a Festa da Páscoa e a dos Pães Ázimos

"São estas as festas santas de Iahweh, santas assembléias, que celebrareis no


seu tempo: No mês primeiro, aos catorze do mês, à tarde, é a Páscoa de
Iahweh. E aos quinze dias desse mês é a Festa dos Pães Ázimos de Iahweh.
Durante sete dias comereis sem fermento. No primeiro dia tereis santa
assembléia; nenhum trabalho fareis. E por sete dias oferecereis um sacrifício
pelo fogo a Iahweh; no sétimo dia haverá santa assembléia e nenhum trabalho
fareis" (Lv 23,4-8).

"Três vezes no ano todos os teus homens aparecerão diante de Iahweh teu
Deus" (Ex 23,17 / Ex 13,6) era a regra básica em vigor para as três festas
principais transcritas, na dos Ázimos, na de Pentecostes e na das Tendas.
Nos termos da sua instituição no Sinai, todos os homens deveriam
comparecer ao Santuário nas celebrações correspondentes, prevendo então
dois dias solenes, o primeiro e o sétimo, quando não haveria nenhum trabalho
(Ex 12,15-17).

16.2 A Festa da Oferenda das Primícias

É muitas vezes recomendada (Ex 22,29; 23,16.19; 34,26; Lv 2,14-16; Nm


15,17-21; 18,12; Dt 18,4; 26,1-11), para se praticar quando estiverem de
posse da Terra Prometida:

"Disse mais Iahweh a Moisés: Fala aos filhos de Israel, e dize-lhes: Quando
houverdes entrado na terra que eu vos dou, e fizerdes a ceifa das searas,
trareis ao sacerdote um molho das primícias da vossa colheita; e ele
moverá o molho perante Iahweh, para que seja aceito em vosso favor. No dia
seguinte ao sábado o sacerdote o moverá. E no dia em que moverdes o molho,
oferecereis um cordeiro sem defeito, de um ano, em holocausto a Iahweh. Sua
oferta de cereais será dois décimos de efá de flor de farinha, amassada com
azeite, para oferta queimada em cheiro suave a Iahweh; e a sua oferta de
libação será de vinho, um quarto de him. E não comereis pão, nem trigo
torrado, nem espigas verdes, até aquele mesmo dia, em que trouxerdes a
oferta do vosso Deus; é estatuto perpétuo pelas vossas gerações, em todas as
vossas habitações" (Lv 23,9-14).

Essa oferenda das Primícias tem um sentido bem mais amplo que aqui
aparenta e para apreendê-lo será necessário antecipar pelo menos
superficialmente algumas noções do Instituto das Oferendas, a partir, por ora,
de dois trechos onde se destacam algumas noções do significado que tinham
para os Israelitas, dentre elas destacando-se:
"Os sacerdotes levitas, e toda a tribo de Levi, não terão parte nem herança com
Israel. Alimentar-se-ão das oferendas queimadas a Iahweh e do patrimônio
dele. Não terão herança no meio de seus irmãos; Iahweh é a sua herança, como
lhes tem dito. Este, pois, será o direito dos sacerdotes, a receber do povo, dos
que oferecerem sacrifícios de boi ou de ovelha: o ofertante dará ao sacerdote a
espádua, as queixadas e o bucho. Ao sacerdote darás as primícias do teu grão,
do teu mosto e do teu azeite, e as primícias da tosquia das tuas ovelhas. Porque
Iahweh teu Deus o escolheu dentre todas as tribos, para assistir e ministrar em
nome de Iahweh, ele e seus filhos, para sempre" (Dt 18,1-5).

Neste trecho se vê que elas eram a herança dos integrantes da Tribo de Levi,
que não receberam nenhuma possessão em terras, a não ser aquele mínimo
para se estabelecer e se fixar com independência pessoal e familiar. Assim
sendo, as Primícias eram um direito deles e a citação delas é apenas
exemplificativa, pois abrangiam todos os produtos que se produzissem.
Também, mais adiante, ainda se estabeleceu:

"Também, quando tiveres entrado na terra que Iahweh teu Deus te dá por
herança, e a possuíres, e nela habitares, tomarás das primícias de todos os
frutos do solo que trouxeres da terra que Iahweh teu Deus te dá, e as porás
num cesto, e irás ao lugar que o Iahweh teu Deus escolher para ali fazer habitar
o seu nome. E irás ao sacerdote que naqueles dias estiver de serviço, e lhe
dirás: Hoje declaro a Iahweh teu Deus que entrei na terra que o senhor com
juramento prometeu a nossos pais que nos daria. O sacerdote, pois, tomará o
cesto da tua mão, e o porá diante do altar de Iahweh teu Deus (...) o Iahweh
nos tirou do Egito com mão forte e braço estendido, com grande espanto, e
com sinais e maravilhas; e nos trouxe a este lugar, e nos deu esta terra, terra
que mana leite e mel. E eis que agora te trago as primícias dos frutos da terra
que tu, ó Iahweh, me deste. Então as porás perante o Iahweh teu Deus, e o
adorarás; e te alegrarás por todo o bem que o Iahweh teu Deus te tem
dado a ti e à tua casa, tu e o levita, e o estrangeiro que está no meio de ti" (Dt
26,1-5.8b-11).

Neste segundo trecho vai se observar que eram elas levadas num cesto e
entregues ao Sacerdote, que dispunha uma parte no Altar, de outras partes se
alimentando e entregando aos Sacerdotes a sua herança, para a Santificação
geral da colheita. A palavra cesto em latim é "sportula", donde o costume da
Igreja em receber espórtulas de alguns atos. É direito dela que nos
primórdios do cristianismo era levada num cesto durante o Ofertório da
Cerimônia Eucarística e entregue ao Sacerdote que recolhia o conteúdo e
depois se lavava para poder manusear e distribuir a Comunhão, donde o rito
do Lava - Mãos.

"E no dia em que moverdes o molho, oferecereis um cordeiro sem defeito, de


um ano, em holocausto a Iahweh. Sua oferta de cereais será dois décimos de
efá de flor de farinha, amassada com azeite, para oferta queimada em cheiro
suave a Iahweh; e a sua oferta de libação será de vinho, um quarto de him" -
oblação essa que seria o indispensável complemento consecratório de toda a
oferenda que se fazia, e somente após a Santificação assim formalizada é
que se alimentavam dos frutos da produção então "abençoada" (Lv 23,11 -
"...para que sejais aceitos"):

"E não comereis pão, nem trigo torrado, nem espigas verdes, até aquele
mesmo dia, em que trouxerdes a oferta do vosso Deus; é estatuto perpétuo
pelas vossas gerações, em todas as vossas habitações" (Lv 23,14).

16.3 Festa de Pentecostes ou Festa das Semanas

A partir do dia seguinte ao Sábado, quando do Movimento do Feixe de


Primícias, contar-se-á sete semanas inteiras, cincoenta dias, para a
celebração da Festa de Pentecostes ou Festa das Semanas:

"Contareis para vós, desde o dia depois do sábado, isto é, desde o dia em que
houverdes trazido o molho da oferta de movimento, sete semanas inteiras; até o
dia seguinte ao sétimo sábado, contareis cinqüenta dias; então oferecereis uma
oblação nova de cereais a Iahweh" (Lv 23,15-16).

Então, no qüinquagésimo dia "...oferecereis uma oblação nova de cereais a


Iahweh", ou seja, um sacrifício de produtos da colheita feita recentemente,
cujo cerimonial se destina a agradecer a Iahweh pela fartura reconhecida e
então evidenciada, na prometida "terra boa e espaçosa onde flui o leite e o
mel" (Ex 3,8):

"Das vossas habitações trareis, para oferta de movimento, dois pães de dois
décimos de efá; serão de flor de farinha, e levedados se cozerão; são primícias
a Iahweh. Com os pães oferecereis sete cordeiros sem defeito, de um ano, um
novilho e dois carneiros; serão holocausto a Iahweh, com as respectivas ofertas
de cereais e de libação, por oferta queimada de cheiro suave a Iahweh.
Também oferecereis um bode para oferta pelo pecado, e dois cordeiros de um
ano para sacrifício de ofertas pacíficas. Então o sacerdote os moverá,
juntamente com os pães das primícias, por oferta de movimento perante
Iahweh, com os dois cordeiros; santos serão a Iahweh para uso do sacerdote. E
fareis proclamação nesse mesmo dia, pois tereis santa convocação; nenhum
trabalho servil fareis; é estatuto perpétuo em todas as vossas habitações pelas
vossas gerações" (Lv 23,17-21).

"Das vossas habitações trareis, para oferta de movimento, dois pães de dois
décimos de efá, de flor de farinha e cozidos com levedo, como primícias a
Iahweh" - a oferenda desses dois pães levedados caracterizam
especificamente a solenidade, por causa do fermento que se vedava nos
sacrifícios (Lv 2,11s), motivo por que não seriam queimados no Altar, mas
junto com dois cordeiros da oferta pacífica, destinar-se-iam ao Sacerdote e
seus familiares (Lv 23,20), após o holocausto de sete cordeiros, um novilho e
dois carneiros, com as libações do ritual, e o bode do oferenda de expiação
(Lv 23,18-19). O nome de Oferta de Movimento se origina do "movimento"
feito pelo ofertante empunhando a oferenda junto com o celebrante em
direção do Altar, pelo que a entregava e ao recebê-la de volta, de Iahweh,
deixava-a nas mãos do sacerdote.

A regulamentação da solenidade termina com uma recomendação


humanitária:

"Quando fizeres a sega da tua terra, não segarás totalmente os extremos do teu
campo, nem respigarás as espigas caídas que ficarem; para o pobre e para o
estrangeiro as deixarás. Eu sou Iahweh vosso Deus" (Lv 23,22).

16.4 Festa das Trombetas

Assim era conhecida a festa que tinha início no primeiro dia do sétimo mês
religioso, em que se anunciaria mais tarde o começo do ano civil com o toque
delas:

"Disse mais Iahweh a Moisés: Fala aos filhos de Israel: No sétimo mês, no
primeiro dia do mês, haverá para vós descanso solene, em memorial, com
toque de trombetas e uma santa assembléia. Nenhum trabalho servil fareis, e
oferecereis sacrifícios pelo fogo a Iahweh" (Lv 23,23-25).

Todos os meses do ano e por ocasião da lua nova havia uma solenidade em
que se ofereciam holocaustos e um bode em expiação (Nm 28,11-15). Neste,
porém, assumia um caráter especial de Santidade por ser o sétimo, o mês
sabático, coincidindo ainda nele a Grande Festa de Expiação e a Festa das
Tendas (Lv 23,27-43). Tudo isso faz com que seja distinguido com uma
comemoração especial inicialmente de regozijo ao som das Trombetas (Nm
10,1-2a.10), completando-se com mais Holocaustos e Sacrifício Pelo Pecado,
aos que já se celebravam mensalmente (Nm 28,11-15):

"No sétimo mês, no primeiro dia do mês, tereis uma assembléia santa; nenhum
trabalho servil fareis; será para vós dia de toque de trombetas. Oferecereis um
holocausto em cheiro suave a Iahweh: um novilho, um carneiro e sete cordeiros
de um ano, todos sem defeito; e a sua oferta de cereais, de flor de farinha
misturada com azeite, três décimos de efá para o novilho, dois décimos para o
carneiro, e um décimo para cada um dos sete cordeiros; e um bode para oferta
pelo pecado, para fazer expiação por vós; além do holocausto do mês e a sua
oferta de cereais, e do holocausto contínuo e a sua oferta de cereais, com as
suas ofertas de libação, segundo a ordenança, em cheiro suave, oferta queimada
a Iahweh" (Nm 29,1-6).

16.5 Festa do Grande Dia da Expiação

Soa como um complemento vindo narrada em seguida:

"Disse mais Iahweh a Moisés: Ora, o décimo dia desse sétimo mês será o dia
da expiação; tereis santa assembléia, e mortificareis as vossas almas
('jejuareis'); e oferecereis oferta queimada ('holocausto') a Iahweh. Nesse dia
não fareis trabalho algum; porque é o dia da expiação, para nele fazer-se
expiação por vós perante Iahweh o vosso Deus Pois toda alma que não se
afligir (jejuar) nesse dia, será extirpada do seu povo. Também toda alma que
nesse dia fizer algum trabalho, eu a destruirei do meio do seu povo. Não fareis
nele trabalho algum; isso será estatuto perpétuo pelas vossas gerações em todas
as vossas habitações. Sábado de descanso vos será, e afligireis as vossas almas;
desde a tarde do dia nono do mês até a outra tarde, guardareis o vosso sábado"
(Lv 23,26-32).

Dessa Festa já se tratou no n.º 14, quando se comentou Lv 16, impondo-se


então uma breve recordação a que se remete o leitor. Insiste-se aqui na
observância rigorosa do jejum e do repouso e sua duração, com graves
ameaças para quem não respeitar o cerimonial nos mínimos detalhes.

16.6 Festa das Tendas ou dos Tabernáculos ou das Cabanas

Já se falou a respeito quando ainda tinha o nome de Festa da Colheita de fim


de ano agrícola. Em virtude da variedade de datas da realização das colheitas
na Palestina não se fixa ainda a data dessa comemoração, podendo-se
observar a sua diversidade em vários locais (Ex 23,16 / Lv 28,33-43 / Dt
16,13-15 / Nm 29,12-38):

"Disse mais Iahweh a Moisés: Fala aos filhos de Israel, dizendo: Desde o dia
quinze desse sétimo mês haverá a festa dos tabernáculos a Iahweh por sete
dias. No primeiro dia haverá santa assembléia; nenhum trabalho servil fareis.
Por sete dias oferecereis sacrifícios pelo fogo a Iahweh; ao oitavo dia tereis
santa assembléia, e oferecereis sacrifício pelo fogo a Iahweh; será uma
assembléia solene; nenhum trabalho servil fareis" (Lv 23,33-36).
Ratifica-se então, sem se descuidar dos sábados, todas as comemorações do
ano, cada qual com suas oferendas apropriadas e seus Sacrifícios
específicos, finalizando-se a sua descrição. Realça-se pelo destaque da
repetição a importância da Festa das Cabanas, como fora o encerramento de
todas elas exatamente por ser a última do ano. Daí a sua celebração bem
mais solene, tal como descrito em Nm 29,12-38, com o oferecimento de
Holocaustos, Sacrifícios, Oblações e Libações todos os dias da semana
festiva, sem prejuízo do Holocausto Cotidiano, também oferecido (Nm
29,16.19.22.25.28.31.34.38) e dos dons, votos, ofertas voluntárias, oferendas
diversas, primícias, primogênitos, dízimos etc. (Dt 12,5-7), como se deduz da
nomeação genérica então feita:

"Estas são as festas fixas de Iahweh, que proclamareis como santas


assembléias, para oferecer-se a Iahweh oferta queimada, holocausto e oferta de
cereais, sacrifícios e ofertas de libação, cada qual em seu dia próprio; além dos
sábados de Iahweh, e além dos vossos dons, e além de todos os vossos votos, e
além de todas as vossas ofertas voluntárias que derdes ao Senhor" (Lv 23,37-
38).

Esclarecida a finalização do ano litúrgico coincidindo com as colheitas finais


fixa-se a data inicial da festa, descrevendo-se o caráter comemorativo dela e o
motivo da celebração vinculado à Aliança que se corporificou a partir da
libertação do Egito, lembrando a vida nômade do Povo de Deus em
peregrinação no deserto em busca da Terra Prometida a Abraão, e em fase
de cumprimento definitivo:

"Desde o dia quinze do sétimo mês, quando tiverdes colhido os frutos da terra,
celebrareis a festa de Iahweh por sete dias; no primeiro dia haverá descanso
solene, e no oitavo dia haverá descanso solene. No primeiro dia tomareis para
vós o fruto de árvores formosas, folhas de palmeiras, ramos de árvores
frondosas e salgueiros de ribeiras; e vos alegrareis perante Iahweh vosso Deus
por sete dias. E celebrá-la-eis como festa a Iahweh por sete dias cada ano;
estatuto perpétuo será pelas vossas gerações; no mês sétimo a celebrareis. Por
sete dias habitareis em tendas de ramos; todos os naturais em Israel habitarão
em tendas de ramos, para que as vossas gerações saibam que eu fiz habitar em
tendas de ramos os filhos de Israel, quando os tirei da terra do Egito. Eu sou
Iahweh vosso Deus" (Lv 23,39-43).

Certos aspectos dela só se esclarecem em outros locais, destacando-se o


caráter festivo, de enorme regozijo e solene de que se revestia, chegando a
ser denominada simplesmente de "Festa". Era ocasião de verdadeiro
reconhecimento das bênçãos com que o Povo de Iahweh foi cumulado,
passando da vida rústica e nômade do deserto para a vida de fartura em
território fixo, cuja colheita se comemorava, pedindo-as ainda para a próxima
semeadura (Ne 8,14-18 / 2Mac 10,6-7 / cfr. tb. Dt 16,13-17). Com esta Festa
encerra-se a descrição pormenorizada delas:

"Assim promulgou Moisés aos filhos de Israel as festas fixas de Iahweh " (Lv
23,44).

16.7 O Candelabro e os Pães da Apresentação

Novamente são alvo de análise algumas normas de culto cotidiano e de valor


fundamental, apesar de sua aparente simplicidade. São as concernentes ao
Candelabro e aos Pães da Proposição ou da Apresentação. O Candelabro é
descrito de maneira muito idêntica a Ex 27,20-21, a respeito dos quais já se
comentou (Capítulo 4, ns.º 2 e 3):

"Disse mais Iahweh a Moisés: Ordena aos filhos de Israel que te tragam, para o
candelabro, azeite de oliveira, puro, batido, a fim de manter uma lâmpada acesa
continuamente. Aarão a conservará em ordem perante Iahweh, continuamente,
desde a tarde até a manhã, fora do véu do testemunho, na tenda da reunião; será
estatuto perpétuo pelas vossas gerações. Sobre o candelabro de ouro puro
conservará em ordem as lâmpadas perante Iahweh continuamente" (Lv 24,1-
4).

Quanto aos Pães da Proposição agora se regulamenta o cerimonial já


instituído e anunciado (Ex 25,30), quando foi descrita a mesa onde é colocado
(Ex 25,23-30; 37,10-16):

"Também tomarás flor de farinha, e dela cozerás doze pães; cada pão será de
dois décimos de efa. E pô-los-ás perante Iahweh, em duas fileiras, seis em cada
fileira, sobre a mesa de ouro puro. Sobre cada fileira porás incenso puro, para
que seja sobre os pães como memorial, isto é, como oferta queimada a Iahweh.
Em cada sábado, colocar-se-ão regularmente perante Iahweh para sempre,
como uma aliança perpétua da parte de Israel. Pertencerão os pães a Aarão e a
seus filhos, que os comerão em lugar santo, por serem coisa santíssima para
eles, das ofertas queimadas a Iahweh por estatuto perpétuo" (Lv 24,5-9).

Em vários locais recebe também o nome de "Pão da Face", qual seja, o "Pão
da Presença" (Ex 25,30; 35,13; 39,36; 40,23; Nm 4,7; 1Sm 21,5-7; 1Rs 7,48;
2Cr 4,19) ou o "Pão da Pilha", isto é "partido em fileiras ou pilhas" (1Cr 9,32;
23,29; Ne 10,34; 2Cr 13,11). Eram Pães que se dispunham em mesa a eles
destinada (Ex 25,23-30) "na minha presença (de Iahweh - Ex 29,30)" em
número de doze, representando logicamente as tribos de Israel, seis em cada
fileira, sobre os quais se deitava Incenso a ser queimado em oblação (Lv 2,2).
Por se integrar num cerimonial de sacrifício eram "coisa santíssima para os
sacerdotes, das oferendas no fogo a Iahweh", devendo ser por eles comidos
cada semana ao se substituir por novos e no momento de se queimar o
Incenso" como memorial" perene da Aliança. Além do pão há ainda resquícios
do uso de libações de vinho, eis que se fala em "copos e taças de ouro" (Ex
25,29; 37,16; Nm 4,7), o que lembra a Ceia Eucarística. Jesus menciona que
Davi e seus soldados comeram desse Pão quando em fuga de Saul estando
com fome, para mostrar aos fariseus que existem necessidades do homem
que permitem o descumprimento de determinadas prescrições legais (Mt 12,4
e par.).

16.8 - O Castigo das Blasfêmias e a Lei do Talião

Regras de Justiça na Comunidade Israelita: A seqüência lógica da exposição


é bruscamente deformada pela narrativa de uma desavença ocorrida entre um
filho de pai egípcio e mãe Israelita, que culmina com uma ofensa a Iahweh (Lv
24,10-16). Tal blasfêmia era intolerável e desde o Sinai condenada (Ex 22,27),
porém não trazia a pena correspondente. Por causa disso é ele enclausurado
até que Moisés consultasse Iahweh do castigo a lhe ser imposto, e aquilo que
Moisés dissesse era aceito como sendo determinado por Deus, tal como
informara ao seu sogro Jetro em situações similares:

"Respondeu Moisés a seu sogro: É por que o povo vem a mim para consultar
a Iahweh. Quando eles têm alguma desavença, vêm a mim; e eu julgo entre
um e outro e dou-lhes a conhecer os estatutos de Deus e as suas leis" (Ex
18,15-16).

Moisés se impusera ao Povo Israelita como um enviado de Deus. Suas


decisões, fruto as mais das vezes de oração e meditação, bem como de
oráculos para se decidir pela sorte questões as mais diversas, eram
reconhecidas como advindas de Deus. Usava para isso métodos então
reconhecidos (Gn 25,22-23) ou o "peitoral do julgamento"(Ex 28,15; 1Sm
14,41). O fato é que Moisés decreta em nome de Iahweh, o que era aceito tal
como se fora recebido do próprio Deus:

"Então disse Iahweh a Moisés: Tira para fora do arraial o que tem blasfemado;
todos os que o ouviram porão as mãos sobre a cabeça dele, e toda a
congregação o apedrejará. E dirás aos filhos de Israel: Todo homem que
amaldiçoar o seu Deus, levará sobre si o seu pecado. E aquele que blasfemar o
nome de Iahweh, certamente será morto; toda a congregação certamente o
apedrejará. Tanto o estrangeiro como o natural, que blasfemar o nome de
Iahweh, será morto" (Lv 24,13-16).

A narração do blasfemador recapitula a condição de qualquer um que


oferecesse um filho seu a Moloc (Lv 20,2-5), devendo ocorrer aqui também
até mesmo a solidariedade de todos com o ato, no caso de se omitir a punição
do responsável:

"E aquele que blasfemar o nome de Iahweh, será morto; toda a comunidade o
apedrejará. Tanto o estrangeiro como o natural, que blasfemar o nome de
Iahweh será morto" (Lv 24,16) / "Disse mais Iahweh a Moisés: Também dirás
aos filhos de Israel: Qualquer dos filhos de Israel, ou dos estrangeiros
peregrinos em Israel, que der de seus filhos a Moloc, será morto; o povo da
terra o apedrejará. Eu porei o meu rosto contra esse homem, e o extirparei do
meio do seu povo; porquanto deu de seus filhos a Moloc, assim contaminando
o meu santuário e profanando o meu santo nome. E, se o povo da terra de
alguma maneira esconder os olhos para não ver esse homem, quando der de
seus filhos a Moloc, e não o matar, eu porei o meu rosto contra esse homem, e
contra a sua família, e o extirparei do meio do seu povo, bem como a todos os
que forem após ele, prostituindo-se após Moloc" (Lv 20,1-5).

Alguns fatos chamam a atenção a começar com a imposição das mãos das
testemunhas sobre a cabeça dele, tal como no holocausto são colocadas na
cabeça do animal oferecido em expiação. Tal ato tem essa dimensão apoiado
na afirmação de que "o blasfemador levará sobre si o seu pecado". As
testemunhas e principais acusadoras e executoras (Dt 17,7) declaram assim
solenemente a culpa dele apurada no julgamento, e as testemunhas
isentavam-se de qualquer solidariedade com o blasfemo sofrendo este a
plena responsabilidade do que fizera . Além disso, retiram o infrator para "fora
do acampamento" para não contaminá-lo tal como ao Santuário com essa
impureza ou profanação, tal como se fazia com as oferendas da Festa da
Expiação que contaminadas com as iniqüidades de Israel eram queimadas
fora da mesma forma ( Lv 16,27; 24,14; Nm 15,35; Dt 17,2-7; At 7,57).

Surgem então aparentemente deslocadas do contexto essas duas leis,


respectivamente contra os que blasfemarem o nome de Iahweh e os que
ferirem a outrem da comunidade Israelita, seja natural ou estrangeiro. São
meios enérgicos para coibir os abusos que venham a provocar desequilíbrio,
desarmonia ou conflito ao meio social, trazendo insegurança aos integrantes
da comunidade recém formada. São alvo de reação enérgica e violenta por
causa das conseqüências danosas que trazem à nova nação ainda no
nascedouro. São os delitos praticados diretamente contra as pessoas,
agressões ou outras violências, perturbando a paz social, bem como as
blasfêmias, ambos também por ferir a Aliança com Iahweh, fonte de todas as
bênção de que o Povo Israelita necessita:

"Quem matar alguém, será morto; e quem matar um animal, o ressarcirá,


animal por animal. Se alguém ferir o seu próximo, como ele fez, assim lhe será
feito: fratura por fratura, olho por olho, dente por dente; tal como ele tiver
ferido um homem, tal lhe será feito. Quem, pois, matar um animal, fará
restituição por ele; mas quem matar um homem, será morto. Uma mesma lei
tereis, tanto para o estrangeiro como para o natural; pois eu sou o Iahweh vosso
Deus" (Lv 24,17-22).

Com isso, há um encerramento parcial das normas punitivas dadas por


Iahweh no Monte Sinai para serem cumpridas pela comunidade de Israel.
Cumpriram-nas quando disse que "Eu porei o meu rosto contra esse homem,
e o extirparei do meio do seu povo", substituindo assim a Deus na execução
da pena ditada por Moisés:

"Todo homem que amaldiçoar o seu Deus, levará sobre si o seu pecado. E
aquele que blasfemar o nome do Senhor, certamente será morto; toda a
congregação certamente o apedrejará. (...) Então falou Moisés aos filhos de
Israel. Depois eles levaram para fora do arraial aquele que tinha blasfemado e o
apedrejaram. Fizeram, pois, os filhos de Israel como Iahweh ordenara a
Moisés" (Lv 24,15-16.23).

No Novo Testamento tanto São Estevão (At 7,57) como Jesus são vítimas do
mesmo tratamento, de que Hebreus tira uma sutil conclusão:

"Ouvindo eles isto, enfureciam-se em seus corações, e rangiam os dentes contra


Estêvão. Mas ele, cheio do Espírito Santo, fitando os olhos no céu, viu a glória
de Deus, e Jesus em pé à direita de Deus, e disse: Eis que vejo os céus abertos,
e o Filho do homem em pé à direita de Deus. Então eles gritaram com grande
voz, taparam os ouvidos, e arremeteram unânimes contra ele e, lançando-o
fora da cidade o apedrejavam. E as testemunhas depuseram as suas vestes
aos pés de um mancebo chamado Saulo. Apedrejavam, pois, a Estêvão que
orando, dizia: Senhor Jesus, recebe o meu espírito" (At 7,54-59) / "Jesus Cristo
é o mesmo, ontem, e hoje, e eternamente. Não vos deixeis levar por doutrinas
várias e estranhas; porque bom é que o coração se fortifique com a graça, e não
com alimentos, que não trouxeram proveito algum aos que com eles se
preocuparam. Temos um altar, do qual não têm direito de comer os que servem
ao tabernáculo. Porque os corpos dos animais, cujo sangue é trazido para
dentro do santo lugar pelo sumo sacerdote como oferta pelo pecado, são
queimados fora do arraial. Por isso também Jesus, para santificar o povo pelo
seu próprio sangue, sofreu fora da porta. Saiamos pois a ele fora do arraial,
levando o seu opróbrio (Hb 13,8-13).

Também no Evangelho de Mateus que pretendeu mostrar aos judeus que


Jesus é o Novo Moisés (Dt 18,15), situa o Sermão da Montanha no alto de um
monte (Mt 5,1) tal como ocorrera no Monte Sinai (Ex 19-20) com o Código da
Aliança. Tanto é isso certo que Lucas o situa num "lugar plano" (Lc 6,17). Não
se pode ver ai uma contradição ou que os Evangelhos sejam mais fruto de
artifício literário de seus autores, mas que na distribuição lógica dos temas
escolhiam aqueles mais adequados, eis que Cristo não falou as bem-
aventuranças uma vez só. E é ai nesse Sermão da Montanha que Jesus nos
apresenta a essência de sua doutrina, partindo do princípio de que viera para
levar a plena eficácia a Lei e os Profetas:

"Não penseis que vim destruir a lei ou os profetas; não vim destruir, mas
cumprir. Porque em verdade vos digo que, até que o céu e a terra passem, de
modo nenhum passará da lei um só i ou um só til, até que tudo seja cumprido.
Qualquer, pois, que violar um destes mandamentos, por menor que seja, e
assim ensinar aos homens, será chamado o menor no reino dos céus; aquele,
porém, que os cumprir e ensinar será chamado grande no reino dos céus. Pois
eu vos digo que, se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de
modo nenhum entrareis no reino dos céus" (Mt 5,17-20).

Quando à lei do Talião a modificará substancialmente ao "ensinar com


autoridade" (Mt 7,29):

"Ouvistes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu, porém, vos digo
que não resistais ao homem mau; mas, a qualquer que te bater na face direita,
oferece-lhe também a outra; e ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica,
larga-lhe também a capa; e, se qualquer te obrigar a caminhar mil passos, vai
com ele dois mil. Dá a quem te pedir, e não voltes as costas ao que quiser que
lhe emprestes" (Mt 5,38-42).

Também, referindo-se à blasfêmia a esclarece bem:

"Portanto vos digo: Todo pecado e blasfêmia se perdoará aos homens; mas a
blasfêmia contra o Espírito não será perdoada. Se alguém disser alguma
palavra contra o Filho do Homem, isso lhe será perdoado; mas se alguém falar
contra o Espírito Santo, não lhe será perdoado, nem neste mundo, nem no
vindouro" (Mt 12,31-32).

17. O ANO SABÁTICO E O ANO DO JUBILAR

São as duas últimas festas religiosas advindas do Código da Aliança (Ex


23,10-11) entregue a Moisés no Sinai ou Horeb (Lv 27,34), de grande alcance
social e religioso e voltadas para os pobres e os animais do campo:

17.1. O Ano Sabático

"Seis anos semearás tua terra, e recolherás os seus frutos; mas no sétimo ano a
deixarás repousar, para que os pobres do teu povo possam comer, e do que
estes deixarem comam os animais do campo. Assim farás com a tua vinha e
com o teu olival" (Ex 23,10-11).

É indispensável repetir e ampliar o significado da palavra "shabat" em


hebraico que é "cessar o que se faz e se retornar ao que se fazia antes".
Assim foi que no fim da Criação Deus "shabat", qual seja "cessou de toda
obra que criando havia feito" (Gn 2,3). Os Israelitas são instruídos para fazer o
mesmo com a terra "que produz":

"Disse mais Iahweh a Moisés no monte Sinai: Fala aos filhos de Israel e dize-
lhes: Quando tiverdes entrado na terra que eu vos dou, a terra guardará um
sábado em honra de Iahweh. Seis anos semearás a tua terra, e seis anos podarás
a tua vinha, e colherás os seus frutos; mas no sétimo ano haverá sábado de
descanso solene para a terra, um sábado em honra de Iahweh; não semearás o
teu campo, nem podarás a tua vinha. O que nascer de si mesmo da tua sega não
segarás, e as uvas da tua vide não tratada não vindimarás; ano de descanso
solene será para a terra. Mas os frutos do sábado da terra vos serão por
alimento, a ti, e ao teu servo, e à tua serva, e ao teu jornaleiro, e ao estrangeiro
que peregrina contigo, e ao teu gado, e aos animais que estão na tua terra; todo
o seu produto será por mantimento" (Lv 25,1-7).

À guisa de comparação substitua-se a palavra "sábado" pelo correspondente


sentido hebraico de "cessar", e ter-se-á:

"Disse mais Iahweh a Moisés no monte Sinai: Fala aos filhos de Israel e dize-
lhes: Quando tiverdes entrado na terra que eu vos dou, a terra guardará um
"cessar" em honra de Iahweh. Seis anos semearás a tua terra, e seis anos
podarás a tua vinha, e colherás os seus frutos; mas no sétimo ano haverá
"um cessar" solene para a terra, um "cessar" em honra de Iahweh; não
semearás o teu campo, nem podarás a tua vinha. O que nascer de si mesmo
da tua sega não segarás, e as uvas da tua vide não tratada não vindimarás; ano
de "retorno ao estado anterior" solene será para a terra. Mas os frutos do
"cessar" da terra vos serão por alimento, a ti, e ao teu servo, e à tua serva, e ao
teu jornaleiro, e ao estrangeiro que peregrina contigo, e ao teu gado, e aos
animais que estão na tua terra; todo o seu produto será por mantimento" (Lv
25,1-7).

Então o que se recebe da terra no "Ano Sabático" são os frutos da Bênção de


Iahweh ao "Sétimo Dia" ("...e Iahweh abençoou o sétimo dia..." - Gn 2,3), isto
é de sua fecundidade natural, sem o concurso humano e "em honra de
Iahweh", pelo que é uma dádiva de Deus. E, com a autoridade de dono de
toda a "terra que vos dou" (Lv 25,2), os destina a todos os habitantes (Lv 25,6-
7) e também aos pobres e o que lhes sobrar aos animais (Ex 23,10-11). A
finalidade da comemoração não tem outra finalidade que homenagear e
reconhecer a soberana transcendência de Iahweh, agindo na Criação pela
Bênção que lhe deu, independentemente do Homem e sem a qual o trabalho
humano nada produziria:

"Se disserdes: Que comeremos no sétimo ano, visto que não havemos de
semear, nem fazer a nossa colheita? então eu mandarei a minha bênção sobre
vós no sexto ano, e a terra produzirá fruto bastante para os três anos. No oitavo
ano semeareis, e comereis da colheita velha; até o ano nono, até que venha a
colheita nova, comereis da velha" (Lv 25,20-22).

17.1 - O Ano Jubilar

Fundamental para o Povo de Israel, desde o seu anúncio, durante o seu


preparo e no decurso de sua formação, é a busca de comunhão com Iahweh,
traduzida na Aliança. Essa condição é tão básica que se torna a essência de
sua vida, tanto na esfera religiosa como na profana. Na Instituição do Ano
Jubilar a mesma tendência vai adquirir um sentido vivencial prático para o
equilíbrio da comunidade, a fim de se manter a paz e harmonia entre os seus
membros, nivelando sempre as diferenças de fortuna que soem acontecer.
Coerentemente, o que rege essa Instituição é o princípio de que toda a terra é
de Iahweh, que a distribui ao Seu Povo com a observância duma série
variável de condições de acordo com cada tipo de propriedade.

Delineia-se o modo de se determinar a data da festa, anunciada no Dia da


Expiação com "trombetas" ("yobel" = nome hebraico do chifre do carneiro
usado nelas, donde veio o nome da festa - "jubileu"):

"Também contarás sete semanas de anos, sete vezes sete anos; de maneira que
os dias dos sete sábados de anos serão quarenta e nove anos. Então, no décimo
dia do sétimo mês, farás soar fortemente a trombeta; no dia da expiação fareis
soar a trombeta por toda a vossa terra. E santificareis o ano qüinquagésimo, e
apregoareis liberdade na terra a todos os seus habitantes; ano de jubileu será
para vós; pois tornareis, cada um à sua possessão, e cada um à sua família.
Esse ano qüinquagésimo será para vós jubileu; não semeareis, nem segareis o
que nele nascer de si mesmo, nem nele vindimareis as uvas das vides não
tratadas. Porque é jubileu; santo será para vós; diretamente do campo
comereis o seu produto. Nesse ano do jubileu tornareis, cada um à sua
possessão" (Lv 25,8-13).

Ao que se observa a abertura do Ano Jubilar se dava no Dia da Expiação, ao


som de trombetas, e assim preparados pelo jejum e a penitência que lhe eram
pertinentes. O ritual de santificação se compunha do retorno de cada qual à
sua herança ou propriedade e do escravo à sua família, e o repouso da terra
igualar-se-á ao do ano sabático:

"Se venderdes alguma coisa ao vosso próximo ou a comprardes da mão do


vosso próximo, não vos defraudareis uns aos outros. Conforme o número de
anos desde o jubileu é que comprarás ao teu próximo, e conforme o número de
anos das colheitas é que ele te venderá. Quanto mais forem os anos, tanto mais
aumentarás o preço, e quanto menos forem os anos, tanto mais abaixarás o
preço; porque é o número das colheitas que ele te vende" (Lv 25,14-16).

Usando de nossa linguagem, são restrições ao absolutismo da propriedade


privada com duas normas de fortes conseqüências econômicas e sociais: o
retorno da propriedade imóvel à "herança" do vendedor e a libertação de
todos os escravos israelitas. Por se tratar da Terra Prometida, de um direito
Israelita de herança familiar (Lv 25,25.47-55) em si inalienável, vendia-se a
colheita, uma espécie de direito de usufruto, em tudo conforme a soberana
vontade de Iahweh, cuja Bênção a acompanhava:

"Nenhum de vós oprimirá ao seu próximo; mas temerás o teu Deus; porque eu
sou Iahweh o vosso Deus. Pelo que observareis os meus estatutos, e guardareis
os meus preceitos e os cumprireis; assim habitareis seguros na terra. Ela dará o
seu fruto, e comereis a fartar; e nela habitareis seguros. Se disserdes: Que
comeremos no sétimo ano, visto que não havemos de semear, nem fazer a
nossa colheita? então eu mandarei a minha bênção sobre vós no sexto ano, e a
terra produzirá fruto bastante para os três anos. No oitavo ano semeareis, e
comereis da colheita velha; até o ano nono, até que venha a colheita nova,
comereis da velha. Também não se venderá a terra em perpetuidade, porque a
terra é minha; pois vós estais comigo como estrangeiros e peregrinos. Portanto
em toda a terra da vossa possessão concedereis que seja remida a terra. Se teu
irmão empobrecer e vender uma parte da sua possessão, virá o seu parente mais
chegado e remirá o que seu irmão vendeu. E se alguém não tiver redentor, mas
ele mesmo tiver enriquecido e achado o que basta para o seu resgate, contará os
anos desde a sua venda, e o que ficar do preço da venda restituirá ao homem a
quem a vendeu, e tornará à sua possessão. Mas, se as suas posses não bastarem
para reavê-la, aquilo que tiver vendido ficará na mão do comprador até o ano
do jubileu; porém no ano do jubileu sairá da posse deste, e aquele que vendeu
tornará à sua possessão" (Lv 25,17-28).

Havia também modificações no Direito Urbano da Propriedade Imóvel,


variando-se a vigência do Direito de Resgate (Lv 25,29-31), bem como o ritual
concernente à "herança" dos levitas (Lv 25,32-34):

"Se alguém vender uma casa de moradia em cidade murada, poderá remi-la
dentro de um ano inteiro depois da sua venda; durante um ano inteiro terá o
direito de a remir. Mas se, passado um ano inteiro, não tiver sido resgatada,
essa casa que está na cidade murada ficará, em perpetuidade, pertencendo ao
que a comprou, e à sua descendência; não sairá o seu poder no jubileu. Todavia
as casas das aldeias que não têm muro ao redor serão consideradas como o
campo da terra; poderão ser remidas, e sairão do poder do comprador no
jubileu. Também, no tocante às cidades dos levitas, às casas das cidades da sua
possessão, terão eles direito perpétuo de resgatá-las. E se alguém comprar dos
levitas uma casa, a casa comprada e a cidade da sua possessão sairão do poder
do comprador no jubileu; porque as casas das cidades dos levitas são a sua
possessão no meio dos filhos de Israel. Mas o campo do arrabalde das suas
cidades não se poderá vender, porque lhes é possessão perpétua" (Lv 25,29-
34).

Por causa da igualdade e justiça que deveria nortear a distribuição da Terra


Prometida, deveria ser amparada a escravidão dos "herdeiros", por se tratar
de "servos de Iahweh" (Lv 25,42), que se empobreciam e se vendiam por
dívidas (Dt 15,4-15), pelo que desde o início o Código da Aliança a mitigava
(Ex 21,1-11). São os vários deveres de misericórdia divina que o Povo de
Iahweh deveria refletir como "imagem", até mesmo com os estrangeiros (Ex
12,49; 22,20; Lv 19,33-34), com base em que se condensa e se iguala o
tratamento dispensado ao escravo Israelita:

"Se teu irmão ficar pobre ao teu lado, e lhe enfraquecerem as mãos, ampará-lo-
ás como estrangeiro e peregrino para que possa viver contigo. Não tomarás
dele juros nem lucro, mas temerás o teu Deus, para que teu irmão viva contigo.
Não lhe darás teu dinheiro a juros, nem os teus víveres por usura. Eu sou
Iahweh o vosso Deus, que vos tirei da terra do Egito, para vos dar a terra de
Canaã, para ser o vosso Deus. Também, se teu irmão empobrecer ao teu lado e
vender-se a ti, não o farás servir como escravo. Como assalariado e como
peregrino trabalhará contigo até o ano do jubileu. Então sairá do teu serviço, e
com ele seus filhos, e tornará à sua família, à possessão de seus pais. Porque
são meus servos, que tirei da terra do Egito; não serão vendidos como
escravos. Não dominarás sobre ele com rigor, mas temerás o teu Deus. E
quanto aos escravos ou às escravas que tiveres serão comprados das nações que
estiverem ao redor de vós. Também os comprareis dentre os filhos dos
estrangeiros que habitarem entre vós, bem como dentre as suas famílias que
vivem convosco, que nascerem na vossa terra; serão vossa propriedade. E
deixá-los-eis por herança aos vossos filhos depois de vós, para os herdarem
como propriedade perpétua. Desses tomareis os vossos escravos; mas sobre
vossos irmãos, os filhos de Israel, não os oprimireis com poder" (Lv 25,35-
46).

"Eu sou Iahweh o vosso Deus, que vos tirei da terra do Egito, para vos dar a
terra de Canaã, para ser o vosso Deus"..."Porque são meus servos, que tirei
da terra do Egito; não serão vendidos como escravos. Não dominarás sobre
ele com rigor, mas temerás o teu Deus" - O temor de Iahweh é o fundamento
religioso de todas as Instituições Israelitas, do que não se isentaria o Jubileu.
Esse temor não era propriamente falando um medo de Deus, mas de não
mais gozar das Bênção de Iahweh. A generosidade de Deus deveria ser
partilhada por todos os povos que se abrigassem em Israel. É a soberania de
Iahweh que se traduz em atos de seus súditos, distinguindo-os dos demais
que os tornava "santos", cuja santidade vai se comemorar na Festa do Ano
Jubileu que se inicia no Dia da Expiação. Assim, a generosidade de Deus
"que não faz acepção de pessoas" vai se reproduzir tanto no trato do
estrangeiro como no do escravo Israelita, dispensando igual tratamento de
Iahweh desde o libertação do Egito. É claro que somente fora dos domínios
de Iahweh, junto dos demais povos, é que poder-se-ia adquirir escravos nos
moldes vigentes de propriedade perpétua, objeto até mesmo de herança. Tal
como no cristianismo o objeto fundamental do tratamento aos irmãos e
estrangeiros ali residentes e reduzidos à miséria era o que se denomina
atualmente caridade, no sentido de que tudo se faria para a sua recuperação
de justiça. Buscava-se ampará-los no infortúnio restituindo-lhes os bens
quando os pudessem administrar. Daí a proibição da usura e dos meios de
proventos de qualquer espécie em toda a legislação da Aliança (cfr. Ex 22,25
e Dt 23,20-21) e o tratamento especial dispensado ao escravo hebreu, que
nem poderia ser vendido a outrem. A essa Lei do Jubileu sujeitava-se até
mesmo o estrangeiro, no caso do infortúnio do Israelita (Lv 25,47-55), pela
mesmo fundamento:

"Porque os filhos de Israel são meus servos que tirei da terra do Egito. Eu sou
Iahweh o vosso Deus" (Lv 25,55).

João Paulo II fundamentado nessa comemoração Israelita do Jubileu


conclama a Igreja a sua prática na Carta Apostólica "Tercio Millenio
Adveniente" ("O Advento do Terceiro Milênio") onde diz:

"10. No cristianismo, o tempo tem uma importância fundamental. Dentro da


sua dimensão, foi criado o mundo, no seu âmbito se desenrola a história da
salvação, que tem o seu ponto culminante na "plenitude do tempo" da
Encarnação e a sua meta no regresso glorioso do Filho de Deus no fim dos
tempos.

(...)

Desta relação de Deus com o tempo nasce o dever de o santificar. Tal se


verifica, por exemplo, quando se dedicam a Deus tempos específicos, dias ou
semanas, como já sucedia na religião da Antiga Aliança, e acontece ainda,
embora de modo novo, no cristianismo.

(...)

11. Neste contexto, torna-se compreensível o costume dos jubileus, que tem
início no Antigo Testamento e reencontra a sua continuação na História da
Igreja. Um dia Jesus de Nazaré, tendo ido à sinagoga da sua Cidade, levantou-
se para ler (cf. Lc 4,16-30). Foi-lhe entregue o livro do profeta Isaías, onde leu
o seguinte trecho: "O Espírito do Senhor está sobre Mim, porque Me ungiu,
para anunciar a Boa-Nova aos pobres: enviou-Me a proclamar a libertação dos
cativos e, aos cegos, o recobrar da vista; a andar em liberdade os oprimidos, a
proclamar um ano de graça do Senhor" (61,1-2).

O Profeta falava do Messias. "Cumpriu-se hoje - acrescentou Jesus - esta


passagem da Escritura, que acabais de ouvir" (Lc 4,21), fazendo compreender
que Ele próprio era o Messias anunciado pelo Profeta, e que n'Ele tinha início o
"tempo" tão esperado: tinha chegado o dia da salvação, a "plenitude do tempo".
Todos os jubileus se referem a este "tempo" e dizem respeito à missão
messiânica de Cristo, que veio como "consagrado com a unção do Espírito
Santo", como "enviado pelo Pai". É Ele que anuncia a Boa-Nova aos pobres. É
Ele que leva a liberdade àqueles que dela estão privados, que liberta os
oprimidos, que restitui a vista aos cegos (cf. Mt 11,4-5; Lc 7,22). Deste modo,
Ele realiza "um ano de graça do Senhor", que anuncia não só com a palavra,
mas sobretudo com as suas obras. Jubileu, ou seja, "um ano de graça do
Senhor" é a característica da atividade de Jesus, e não apenas a definição
cronológica de uma certa ocorrência."

18. EXORTAÇÕES

Formam o que se denomina geralmente de "Bênçãos e Maldições" que


decorrem do cumprimento ou não das leis ditadas por Iahweh no Monte Sinai,
ou seja as Leis da Aliança. A Terra Prometida é tal e qual uma antevisão do
Paraíso a que Deus destinou e ainda destina o Homem, e cuja violação do
preceito de vida ("bênção") então lhe trouxe a morte ("maldição"). Da mesma
forma aqui o abandono de Iahweh e a violação dos preceitos ditados trarão a
esterilidade da maldição:

"Se andardes conforme os meus preceitos, e guardardes os meus mandamentos


e os cumprires, eu vos darei as vossas chuvas a seu tempo, e a terra dará o seu
produto, e as árvores do campo darão os seus frutos; a debulha vos continuará
até a vindima, e a vindima até a semeadura; comereis o vosso pão a fartar, e
habitareis seguros na vossa terra. Também darei paz ao país, e vos deitareis, e
ninguém vos amedrontará. Farei desaparecer da terra os animais nocivos, e pela
vossa terra não passará espada. Perseguireis os vossos inimigos, e eles cairão à
espada diante de vós. Cinco de vós perseguirão a um cento deles, e cem de vós
perseguirão a dez mil; e os vossos inimigos cairão à espada diante de vós.
Outrossim, olharei para vós, e vos farei frutificar, e vos multiplicarei, e
confirmarei minha aliança convosco. E comereis da colheita velha por longo
tempo guardada, até afinal a removerdes para dar lugar à nova. Também porei
o meu santuário no meio de vós, e não vos rejeitarei. Andarei no meio de vós,
e serei o vosso Deus, e vós sereis o meu povo. Eu sou Iahweh o vosso Deus,
que vos tirei da terra dos egípcios, para que não fôsseis seus escravos; e quebrei
as cadeias do vosso pescoço para andardes de cabeça erguida" (Lv 26,3-13).

"Andarei no meio de vós..." lembra com perfeição uma frase já bem


conhecida do Jardim do Éden:

"E, ouvindo a voz do Senhor Deus, que passeava ('andava') no jardim..." (Gn
3,8).

"...porei o meu santuário no meio de vós..." - Enquanto em peregrinação a


"figura" do Paraíso se concentra no Santuário de Iahweh, cuja edificação se
consuma, com vistas à Terra Prometida e o Reino de Deus que vai se
inaugurar com a Ressurreição de Jesus [ cfr. Jo 1,14 ('...e habitou entre nós') /
Lv 26,12; Ex 25,8; 29,45]:

"...quebrei as cadeias do vosso pescoço para andardes de cabeça erguida"


(Lv 26,13) / "Ora, quando essas coisas começarem a acontecer, exultai e
levantai as vossas cabeças, porque a vossa redenção se aproxima... (...)
...quando virdes acontecerem estas coisas, sabei que o reino de Deus está
próximo. Em verdade vos digo que não passará esta geração até que tudo
isso se cumpra" (Lc 21,28-32).

A condição fundamental é a exclusividade da adoração de um só Deus -


Iahweh (Lv 26,1-2), por cujo abandono várias "maldições" se manifestarão,
denotando a falta da Bênção de Iahweh. Não se trata de simples faltas
decorrentes de uma fraqueza humana sempre previsível em qualquer
instituição, mas de um desligamento definitivo e obstinado de Iahweh:

"Não fareis para vós ídolos, nem para vós levantareis imagem esculpida, nem
coluna, nem poreis na vossa terra pedra com figuras, para vos inclinardes a
ela; porque eu sou Iahweh o vosso Deus. Guardareis os meus sábados, e
reverenciareis o meu santuário. Eu sou Iahweh" (Lv 26,1-2) / "Mas, se não me
ouvirdes, e não cumprirdes todos estes mandamentos, e se rejeitardes os meus
estatutos, e desprezardes os meus preceitos não cumprindo todas as
minhas leis, mas violando a minha aliança, então eu vos tratarei assim: porei
sobre vós..." (Lv 26,14-16).

A primeira decorrência da preferência e exclusividade de Iahweh como único


Deus é a fidelidade aos seus preceitos ou leis em que se exterioriza ou se
manifesta eficazmente a Aliança, que se apresenta até mesmo em cada
movimento de conversão ou de retorno::

"Se então o seu coração incircunciso se envergonhar, e pedirem perdão de suas


iniqüidades, eu me lembrarei da minha aliança com Jacó, da minha aliança com
Isaque, e da minha aliança com Abraão..." (Lv 26,41-42).

O seu rompimento ocasionará uma série de "maldições" exemplificadas em


cinco ameaças destinadas mais a alertar quanto às conseqüências do
abandono de Iahweh que propriamente a um castigo. É um chamado
pedagógico à conversão:

1.ª) - A Doença e a pilhagem das colheitas feita por inimigos, em virtude da


impossibilidade de sua defesa pela fraqueza dos homens ocasionada pelo
flagelo:

"...eu, com efeito porei sobre vós o terror, a tuberculose e a febre ardente, que
consumirão os vossos olhos e farão definhar a vida; em vão semeareis a vossa
semente, pois os vossos inimigos a comerão. Porei o meu rosto contra vós, e
caireis diante de vossos inimigos; os que vos odiarem dominarão sobre vós, e
fugireis sem que ninguém vos persiga" (Lv 26,16-17).

2.ª) - A Esterilidade da Terra, por cuja fertilidade e abundância das colheitas


que os levaria ao orgulho levando-os ao esquecimento de Iahweh, pelo que
Deus os alerta por querer sempre o retorno deles, ou seja, a conversão:

"Se nem ainda com isto me ouvirdes, prosseguirei em castigar-vos sete vezes
mais, por causa dos vossos pecados. Pois quebrarei a soberba do vosso poder, e
vos farei o céu como ferro e a terra como bronze. Em vão se gastará a vossa
força, porquanto a vossa terra não dará o seu produto, nem as árvores da terra
darão os seus frutos" (Lv 26,18-20).

"Se nem ainda com isto me ouvirdes, prosseguirei em castigar-vos sete vezes
mais, por causa dos vossos pecados" - esta frase mostra o caráter
pedagógico da conversão que Iahweh lhes imporá "sete vezes", até a
exaustão em que "quebrarei a soberba do vosso poder" (o vosso orgulho). A
terra nada produzirá por causa do calor excessivo e a seca decorrente.

3.ª) - A Invasão dos Animais selvagens então comuns na Terra Prometida, ou


seja, a atual Palestina:

"Ora, se andardes contrariamente para comigo, e não me quiseres ouvir, trarei


sobre vós pragas sete vezes mais, conforme os vossos pecados. Enviarei para o
meio de vós as feras do campo, as quais matarão os vossos filhos, e destruirão
o vosso gado, e vos reduzirão a pequeno número; e os vossos caminhos se
tornarão desertos" (Lv 26,21-22).

"Ora, se andardes contrariamente para comigo, e não me quiseres ouvir, trarei


sobre vós pragas sete vezes mais, conforme os vossos pecados" - a mesma
frase pedagógica e crescente da conversão., mostrando a vinda de animais
selvagens como um dos frutos da desordem implantada pela idolatria (2Rs
17,25-26).

4.ª) - O Flagelo da Guerra e suas conseqüências como a peste, a fome e a


opressão inimiga:

"Se nem assim quiserdes voltar a mim, mas continuardes a andar


contrariamente para comigo, eu também andarei contrariamente para convosco;
e eu, eu mesmo, vos ferirei sete vezes mais, por causa dos vossos pecados.
Trarei sobre vós a espada, que executará a vingança da aliança violada, e vos
aglomerareis nas vossas cidades; então enviarei a peste entre vós, e sereis
entregues na mão do inimigo. Quando eu vos quebrar o sustento do pão, dez
mulheres cozerão o vosso pão num só forno, e de novo vo-lo entregarão
racionado; e o comereis, mas não vos fartareis" (Lv 26,23-26).

Mostra a principal conseqüência do flagelo da guerra, a falta do pão, aqui


significada na quantidade tão exígua que "dez mulheres cozerão o vosso pão
num só forno, e de novo vo-lo entregarão racionado peso; e o comereis, mas
não vos fartareis"

5.ª) - A Devastação do País, o Agravamento da Fome e o Exílio:

"Se nem ainda com isto me ouvirdes, mas continuardes a andar contrariamente
para comigo, também eu andarei contrariamente para convosco com furor; e
vos castigarei sete vezes mais, por causa dos vossos pecados. E comereis a
carne de vossos filhos e a carne de vossas filhas. Destruirei os vossos lugares
altos, derrubarei as vossas imagens do sol, e lançarei os vossos cadáveres sobre
os destroços dos vossos ídolos; e a minha alma vos abominará. Reduzirei as
vossas cidades a deserto, e assolarei os vossos santuários, e não cheirarei o
vosso cheiro suave. Assolarei a terra, e sobre ela pasmarão os vossos inimigos
que nela habitam. Espalhar-vos-ei por entre as nações e, desembainhando a
espada, vos perseguirei; a vossa terra será assolada, e as vossas cidades se
tornarão em deserto" (Lv 26,27-33).

A devastação será de tal envergadura que não mais se conterá nem o amor
natural pelo filhos em busca da própria sobrevivência, em que o instinto de
conservação da espécie vai falar mais alto a ponto de "comereis a carne de
vossos filhos e a carne de vossas filhas", o que acontecia às vezes naquele
tempo, pela crueldade dos cercos militares de conquista (cfr. 2Rs 6,28-29; Jr
19,9; Lm 2,20; 4,10; Ez 5,10). Outra conseqüência de envergadura da
"maldição" que atingiria os idólatras, além da destruição dos lugares de culto,
seria a privação da sepultura (Jr 14,10-13; Jr 22,18-19; Tb 4,3s), o que era
considerado uma irreparável tragédia, ficando os mortos expostos ao relento
tal e qual as imagens ou ídolos destruídos, igualando-os. Os lugares altos de
culto eram usados antigamente eis que quanto mais alto se ficasse mais perto
dos céus estar-se-ia. Ali erguiam-se as várias imagens ou ídolos,
mencionando-se aqui especificamente uma imagem do "Deus - Sol", que
deveria ser uma das idolatrias de então.

Após isso tudo, ou após a ocorrência das "maldições" advindas da idolatria


implantada, com o exílio, viria a purificação da terra, contrastando com a
covardia dos sobreviventes que apodreceriam em terra estrangeira, "por
causa de suas iniqüidades e a dos seus pais":

"Então a terra repousará nos seus sábados, todos os dias da sua desolação, e vós
estareis na terra dos vossos inimigos; nesse tempo a terra descansará, e
repousará nos seus sábados. Por todos os dias da desolação descansará, pelos
dias que não descansou nos vossos sábados, quando nela habitáveis. E, quanto
aos sobreviventes, eu lhes infundirei pavor no coração nas terras dos seus
inimigos; e o ruído de uma folha agitada os porá em fuga; fugirão como quem
foge da espada, e cairão sem que ninguém os persiga. E, embora não haja quem
os persiga, tropeçarão uns sobre os outros como diante da espada; e não
podereis resistir aos vossos inimigos. Assim perecereis entre as nações, e a
terra dos vossos inimigos vos devorará; e os que de vós ficarem apodrecerão
pela sua iniqüidade nas terras dos vossos inimigos, como também pela
iniqüidade de seus pais" (Lv 26,34-39).

Todas as conseqüências dessa idolatria praticada pela infidelidade a Iahweh,


seja trocando-O por outro, seja igualando-O a outros deuses do panteão dos
outros povos, seriam esquecidas com a conversão futura de descendentes
desde que reconhecessem e confessassem o erro dos antecessores
juntamente com a expiação das culpas pela aceitação da justa retribuição a
que se sujeitaram, traduzida no pedido de perdão. Seria assim uma conversão
plena a partir do interior, por causa da fidelidade de Iahweh à Aliança com
Abraão, Isaac e Jacó, apesar da impureza advinda pela convívio com povos
pagãos, pelo que se tornavam também de certa forma incircuncisos:

"Então confessarão a sua iniqüidade, e a iniqüidade de seus pais, com as suas


transgressões, com que transgrediram contra mim; igualmente confessarão que,
por terem andado contrariamente para comigo, eu também andei
contrariamente para com eles, e os trouxe para a terra dos seus inimigos. Se
então o seu coração incircunciso se humilhar, e expiarem as suas iniqüidades,
eu me lembrarei da minha aliança com Jacó, da minha aliança com Isaque, e da
minha aliança com Abraão; e bem assim da terra me lembrarei. A terra também
será deixada por eles e repousará nos seus sábados, tendo sido desolada por
causa deles; e eles expiarão as suas iniqüidades, em razão mesmo de que
rejeitaram os meus preceitos e a desprezaram os meus estatutos. Todavia, ainda
assim, quando eles estiverem na terra dos seus inimigos, não os rejeitarei nem
os abominarei a ponto de consumi-los totalmente e quebrar a minha aliança
com eles; porque eu sou Iahweh o seu Deus. Antes por amor deles me
lembrarei da aliança com os seus antepassados, que tirei da terra do Egito aos
olhos das nações, para ser o seu Deus. Eu sou Iahweh" (Lv 26,40-45).

Aqui finaliza o Código da Aliança e o de Santidade, com a regulamentação de


todo o culto e da vida toda dos Israelitas em torno do Deus Único que
reconheceram, qual seja, todas as leis que Iahweh entregou a Moisés no
Sinai, onde se formalizou com o Povo de Iahweh a Promessa a Abraão, a
Isaac e Jacó:

"São esses os estatutos, os preceitos e as leis que Iahweh firmou entre si e os


filhos de Israel, no monte Sinai, por intermédio de Moisés" (Lv 26,46).

Estavam assim preparados espiritualmente para tomar posse da Terra


Prometida, ratificando-se a fonte de todas as normas:

"São esses os mandamentos que Iahweh ordenou a Moisés, para os filhos de


Israel, no monte Sinai." (Lv 27,34).

19. A CONSAGRAÇÃO PARA A CONQUISTA

Descortina-se outra regulamentação, necessária à tomada de consciência


religiosa do Israelita para a Conquista da Terra Prometida, verdadeira Guerra
Santa desde a saída do Egito:

"Fizeram, pois, os filhos de Israel conforme a palavra de Moisés (...) e


despojaram os egípcios. (...) E aconteceu que, (...) naquele mesmo dia, todos
os exércitos do Senhor saíram da terra do Egito (...) E naquele mesmo dia
Iahweh tirou os filhos de Israel da terra do Egito, segundo os seus
exércitos"(Ex 12,35-36.41.51).

Basta uma leitura atenta aos trechos destacados para se perceber a


existência de um preparo para uma Conquista armada da Terra de Canaã. Em
se tratando de uma conquista religiosa impunha-se uma adesão exclusiva à
Aliança, em obediência a Iahweh, o que implica numa consagração plena, que
agora se regula.

19.1. A Consagração de Pessoas e Bens - Os Votos e as


Oferendas
Inicialmente se apresentam os votos, as consagrações de pessoas ou bens e
as oferendas voluntárias. Não eram obrigatórios, porém, quando feitos,
impunha-se o seu pleno e cabal cumprimento (Dt 23,21-23), ou o seu resgate,
qual seja a entrega ao Santuário do valor correspondente, assim avaliado,
pois se destinavam à manutenção dos Sacerdotes:

"Disse mais Iahweh a Moisés: Fala aos filhos de Israel, e dize-lhes: Quando
alguém fizer a Iahweh um voto especial que envolva pessoas, o voto será
cumprido segundo a tua avaliação das pessoas. Se for de um homem, desde a
idade de vinte até sessenta anos, a tua avaliação será de cinqüenta siclos de
prata, segundo o siclo do santuário. Se for mulher, a tua avaliação será de trinta
siclos. Se for de cinco anos até vinte, a tua avaliação do homem será de vinte
siclos, e da mulher dez siclos. Se for de um mês até cinco anos, a tua avaliação
do homem será de cinco siclos de prata, e da mulher três siclos de prata. Se for
de sessenta anos para cima, a tua avaliação do homem será de quinze siclos, e
da mulher dez siclos. Mas, se for mais pobre do que a tua avaliação, será
apresentado perante o sacerdote, que o avaliará conforme as posses daquele
que tiver feito o voto" (Lv 27,1-8).

O uso de voto envolvendo pessoas ocorria em Israel, tendo acontecido em


várias ocasiões (Jz 11,30-40; 13,3-4; 1Sm 1,11). Destaca-se o de Ana, a mãe
de Samuel, que o consagrou desde antes do nascimento, com base em outra
forma em que se pode apresentar, consoante as palavras que usou " e pela
sua cabeça não passará navalha", outro voto, o do Nazireu (Nm 6):

"Ela, pois, com amargura de coração, orou a Iahweh, e chorou muito, e fez um
voto, dizendo: Iahweh dos exércitos! se atentares para a aflição da tua serva, e
de mim te lembrares, e da tua serva não te esqueceres, mas lhe deres um filho
varão, a Iahweh o darei por todos os dias da sua vida, e pela sua cabeça
não passará navalha" (1Sm 1,10-11).

Quanto ao voto de bens pode-se destacar o de Jacó:

"Fez também Jacó um voto, dizendo: Se Deus for comigo e me guardar neste
caminho que vou seguindo, e me der pão para comer e vestes para vestir, de
modo que eu volte em paz à casa de meu pai, e se Iahweh for o meu Deus,
então esta pedra que tenho posto como coluna será casa de Deus; e de tudo
quanto me deres, certamente te darei o dízimo" (Gn 28,20-22 / Gn 31,13).

Resgatava-se da mesma forma e se regulamenta o voto de oferenda de


animais:

"Se for animal dos que se oferecem em oferta a Iahweh, tudo quanto der dele a
Iahweh será santo. Não o mudará, nem o trocará, bom por mau, ou mau por
bom; mas se de qualquer maneira trocar animal por animal, tanto um como o
outro será santo. Se for algum animal imundo, dos que não se oferecem em
oferta a Iahweh, apresentará o animal diante do sacerdote; e o sacerdote o
avaliará, seja bom ou seja mau; segundo tu, sacerdote, o avaliares, assim será.
Mas, se o homem, com efeito, quiser resgatá-lo, acrescentará a quinta parte
sobre a tua avaliação" (Lv 27,9-13)

Em todas as oferendas assim voluntárias, uma espécie de simples promessa,


se estabelece o valor e o modo do resgate, da importância que se entrega ao
Santuário em substituição ao voto. Quando se referir ao um campo levar-se-á
em conta o tempo do Jubileu para a avaliação (Lv 27,16-25). Porém, não pode
ser objeto de oferenda ou resgate aquilo que já pertence a Iahweh por
preceito, tal como os primogênitos (Ex 13,1-2.12-16 / Ex 34,19-20). Um caso
de resgate imposto pelo próprio Iahweh é o proveniente da substituição dos
primogênitos pelos levitas no exercício do sacerdócio auxiliar (Nm 3,12.40-
51).

19.2. Os Interditos ou Anátemas

Também não pode ser vendido ou resgatado o que for objeto de consagração
por interdito a Iahweh, de que nada era reservado para o ofertante que dava
tudo a Iahweh, irrevogavelmente, de forma pacífica ou na guerra . "...toda
coisa consagrada será santíssima a Iahweh" (Lv 27,28) - por essa fórmula
se percebe que o princípio dessa operação era religioso, e era santíssimo
por ter sido subtraído ao profano, não podendo ser resgatado, tal como não se
comiam as oferendas dos holocaustos, contaminadas pelo pecado. Assim,
não se resgata o que se denomina aqui de interdito ou anátema, que são
tanto os despojos ou as prendas advindas dos inimigos e eles mesmos,
conquistados ou destroçados por Israel, contaminados pela idolatria (Dt 20,10-
20), como as pessoas ou bens que alguém oferece a Iahweh em caráter
solene e irrevogável. É que, entre os compromissos da Aliança, há a "Missão
de Israel", várias vezes ratificada (cfr. Ex 34,13; Lv 18,3.24-30; Nm 33,52; Dt
7,5; 12,3.29-31):

"...não adorarás os seus deuses, nem lhes prestarás culto, imitando seus
costumes. Ao contrário derrubarás e quebrarás as suas colunas. Servireis a
Iahweh o vosso Deus (...) Não farás aliança com eles nem com seus deuses. ..."
(Ex 23,23-33 / Nm 33,50-56 / Dt 12,1-3) / "Quando Iahweh teu Deus te houver
introduzido na terra a que vais a fim de possuí-la, e tiver lançado fora de diante
de ti muitas nações, (...) e quando Iahweh o teu Deus as tiver entregue em tuas
mãos, e as ferires, totalmente as destruirás; não farás com elas aliança alguma,
nem terás piedade delas..." (Dt 7,1-2)

Com base nela, tal como se elaborou as leis atinentes ao "puro e impuro",
para se evitar principalmente as práticas dos pagãos que os rodeavam (Os
9,3; Ez 4,13; Tb 1,10-12; Dn 1,8-12; Jdt 12,2-4; Lv 18,2-5) é que se institui o
interdito ou anátema, principalmente na Guerra contra pagãos:

"Quando te aproximares duma cidade para combatê-la, apregoar-lhe-ás


a paz. Se ela te responder em paz, e te abrir as portas, todo o povo que
se achar nela será sujeito a trabalhos forçados e te servirá. Se ela, pelo
contrário, não fizer paz contigo, mas guerra, então a sitiarás, e logo que
Iahweh o teu Deus a entregar nas tuas mãos, passarás ao fio da
espada todos os homens que nela houver; porém as mulheres, os
pequeninos, os animais e tudo o que houver na cidade, todo o seu
despojo, tomarás por presa; e comerás o despojo dos teus inimigos,
que Iahweh o teu Deus te deu. Assim farás a todas as cidades que
estiverem mais longe de ti, que não são das cidades destas nações.
Mas, das cidades destes povos, que Iahweh o teu Deus te dá em
herança, nada que tem fôlego deixarás com vida; antes ferirás
com interdito (...) como Iahweh o teu Deus te ordenou; para que não
vos ensinem a fazer conforme todas as abominações que eles fazem a
seus deuses, e assim pequeis contra Iahweh o vosso Deus." (Dt 20,10-
18).

É a essa interdição que se refere também o fecho das instruções para a


Conquista, exatamente pela impossibilidade do resgate:

"Todavia, nenhuma coisa consagrada a Iahweh por interdito, seja homem, ou


animal, ou campo da sua possessão, será vendida nem será resgatada; toda
coisa interdita será santíssima ao Senhor. Nenhuma pessoa que dentre os
homens for interdita será resgatada, mas certamente será morta." (Lv 27,28-
29)

Jesus vai se insurgir contra os abusos decorrentes dos interditos e das


oferendas em seu tempo, que passaram a servir de cobertura ao
descumprimento da Lei de Deus nos Mandamentos em favor do ofertante,
ocasionando verdadeira inversão de valores:

"Ele, porém, respondendo, disse-lhes: E vós, por que transgredis o


mandamento de Deus por causa da vossa tradição? Pois Deus ordenou: Honra a
teu pai e a tua mãe; e, Quem maldisser a seu pai ou a sua mãe, certamente
morrerá. Mas vós dizeis: Qualquer que disser a seu pai ou a sua mãe: O
sustento que poderias receber de mim é interdito ao Senhor; esse de modo
algum terá de honrar a seu pai. E assim por causa da vossa tradição invalidastes
a palavra de Deus" (Mt 15,3-6 / Mc 7,10-13).
19.3. - Os Primogênitos, as Primícias e o Dízimo

Em virtude de se tratar de oferendas já consagradas a Iahweh, em princípio


não podem ser objeto de resgate, mas são regulamentadas de uma maneira
especial:

"Contudo o primogênito dum animal, que por ser primícia já pertence a


Iahweh, ninguém o consagrará. Quer seja boi ou gado miúdo, já pertence a
Iahweh. Mas se o primogênito for dum animal imundo, resgatar-se-á segundo a
tua avaliação, e a esta se acrescentará a quinta parte; e se não for resgatado,
será vendido segundo a tua avaliação. (...) Também todos os dízimos da terra,
quer dos cereais, quer do fruto das árvores, pertencem a Iahweh; são
consagrados a Iahweh. Se alguém quiser resgatar uma parte dos seus dízimos,
acrescentar-lhe-á a quinta parte. Quanto a todo dízimo do gado e do rebanho,
de tudo o que passar debaixo da vara, esse dízimo será consagrado a Iahweh.
Não se examinará se é bom ou mau, nem se trocará; mas se, com efeito, se
trocar, tanto um como o outro será consagrado; não serão resgatados. São esses
os mandamentos que Iahweh ordenou a Moisés, para os filhos de Israel, no
monte Sinai." (Lv 27,26-27.30-33)

O trecho é muito claro dispensando-se outros comentários. Apenas o sistema


de seleção então usado de passar debaixo da vara as crias novas do gado,
delas tirando o dízimo, faz com que não se destine a Iahweh apenas o refugo,
o defeituoso. Ao contrário, obriga a uma separação justa dentre a totalidade,
mesmo que aparentemente aleatória, porem não sujeita à escolha de cada
um. Por último vai ser regulamentado o resgate do dízimo, uma exceção
quanto ao consagrado, mas que, em virtude disso mesmo, deverá ser
acrescido de um quinto no valor a ser entregue aos sacerdotes a cujo
sustento se destinavam todas as oferendas.
NÚMEROS
Primeira Parte
Os últimos dias do Sinai
5.1. PRIMEIROS PREPARATIVOS.

Dois anos e dois meses depois da saída do Egito, ainda no Deserto do Sinai e
antes da partida, algumas providências são tomadas em preparo para a
Conquista e a posse da Terra Prometida:

"Falou Iahweh a Moisés no deserto de Sinai, na tenda da reunião, no primeiro


dia do segundo mês, no segundo ano depois da saída dos filhos de Israel da
terra do Egito..." (Nm 1,1).

O primeiro passo foi uma organização militar com todos os homens aptos para
a guerra, tirados das várias tribos dos Filhos de Israel:

"Fazei um recenseamentos de toda a congregação dos filhos de Israel, segundo


as suas famílias, segundo as casas patriarcais, conforme o número dos nomes
de todo homem, cabeça por cabeça; os da idade de vinte anos para cima. Todos
aqueles em Israel hábeis para a guerra tu e Aarão contareis segundo os
seus esquadrões." (Nm 1,2-3).

Não se tratava da organização de um exército regular como as nações


costumam manter, mas de um levantamento total (Nm 1,3.20.22.24.26.28
.30.32.34.36.38.40.42.45) dos homens das várias tribos de Israel em
condições de lutar. Ficariam acampados em torno do Santuário (Nm 2,1-34),
aptos e prontos para marchar para a guerra sob as ordens e direção de
Iahweh, sempre que necessário. Estariam sujeitos ao comando de um
representante de cada uma das tribos dos Filhos de Jacó que seria o seu
chefe: (Nm 1,4-16), como se denominam "...os cabeças dos milhares de
Israel" (- aqui "milhares" caracteriza na época o caráter militar da separação
que se faz). E, nesse recenseamento não se incluíram os levitas, separados
que foram inicial e exclusivamente para o cuidado do Santuário:

"Mas os levitas, conforme a sua descendência, não foram contados entre


eles; porquanto Iahweh dissera a Moisés: Somente não contarás a tribo de
Levi, nem tomarás a soma deles entre os filhos de Israel; mas dispõe os
levitas sobre o tabernáculo do testemunho, sobre todos os seus móveis, e
sobre tudo o que lhe pertence. Eles levarão o tabernáculo e todos os seus
móveis, e o administrarão; e acampar-se-ão ao seu redor. Quando o
tabernáculo houver de partir, os levitas o desarmarão; e, quando o
tabernáculo se houver de assentar, os levitas o armarão. O estranho que
dele se aproximar será morto. Os filhos de Israel acampar-se-ão, cada um no
seu acampamento, e cada um junto ao seu estandarte, segundo os seus
esquadrões. Mas os levitas acampar-se-ão ao redor do tabernáculo do
testemunho, para que não suceda acender-se ira contra a congregação dos
filhos de Israel; pelo que aos levitas caberá a guarda do tabernáculo do
testemunho" (Nm 1,27-53).

"Então executaram os filhos de Israel conforme tudo o que Iahweh ordenara a


Moisés..." (Nm 1,54), elaborando a primeira etapa operacional da preparação
da Conquista, com a separação e contagem dos homens aptos para a guerra.
Essa estruturação de uma força armada com uma convocação deles quando
necessário não se limitaria a essa conquista. Mas, principalmente pela
proteção do Santuário "portátil" que fora erigido, "a habitação de Iahweh", cuja
Santidade não poderia sofrer a profanação do "impuro". Então, além da
"eleição" dos levitas para dele cuidarem sempre, era necessário lhe preparar
uma proteção toda especial pela disposição dos Filhos de Israel, tribo por
tribo. Foram então situados até quando acampados, em torno dele e de frente
para a Tenda da Reunião onde estava a Arca da Aliança com os Querubins,
onde Moisés falava com Iahweh:

"Disse Iahweh a Moisés e a Aarão: Os filhos de Israel acamparão, cada um


junto ao seu estandarte e as insígnias patriarcais; ao redor e em frente da tenda
da reunião acamparão" (Nm 2,1-2).

Pelo que vem narrado em seguida observa-se facilmente que era essa a
disposição das tribos de Israel em torno do tabernáculo: no centro a tribo de
Levi, contornando-o e protegendo-o diretamente, sabendo-se já que eram os
transportadores do Santuário desmontado, ficando as demais tribos chefiadas
pelos representantes escolhidos (Nm 1,4-16 / 2,1-34) acampadas ao redor:

"Mas os levitas, segundo a tribo de seus pais, não foram contados entre eles;
porque Iahweh dissera a Moisés: 'Não recensearás a tribo de Levi, nem a
contarás entre os filhos de Israel; mas incumbe-os de cuidar do tabernáculo
do testemunho, de todos os seus móveis, e de tudo o que lhe pertence. Eles
levarão o tabernáculo e todos os seus móveis, exercerão nele o seu ministério e
acamparão ao seu redor. Quando o tabernáculo houver de partir, os levitas o
desarmarão; e quando o tabernáculo se houver de assentar, os levitas o
armarão; e o estranho que dele se aproximar será morto. Os filhos de Israel
acamparão, cada um no seu acampamento, e cada um junto ao seu estandarte,
segundo os seus regimentos. Mas os levitas acamparão ao redor do
tabernáculo do testemunho, para que não se manifeste a Ira contra a
congregação dos filhos de Israel. E os levitas terão a seu cuidado a guarda
do tabernáculo do testemunho." (Nm 1,47-53).

Em primeiro lugar, obedecendo-se à ordem das casas patriarcais, no lado


oriental do Tabernáculo estará a bandeira de Judá. Será composta pelas
tribos de Judá, Issacar e Natanael, os últimos filhos de Lia (Gn 35,23),
afastados que foram da linha da primogenitura, Rúben e Simeão, conforme a
bênção de Jacó (Gn 49,3-7). "Prevalecendo Judá, apesar do direito de José"
(1Cro 5,1-2), sendo a maior tribo (Nm 1,27) e consoante a luta interna das
tribos a que já se referiu, chefiou essa ala Naasom, filho de Aminadab, como
acima foi transcrito. Ao seu lado chefiadas respectivamente por Natanael e
Eliab as tribos de Issacar e Zabulon (Nm 2,3-9). No lado sul da Tenda da
Reunião ficará a tribo de Rúben, comandada por Elisur, ladeada pela de
Simeão com o comandante Salamiel e a tribo de Gad com a chefia de Eliasaf
(Nm 2,10-16):

"Então partirá a tenda da reunião com o quartel dos levitas no meio dos demais
quartéis. Marcharão na mesma ordem em que acamparem, cada um em seu
lugar e sob as suas insígnias." (Nm 2,17).

A escolha da Tribo de Levi para a guarda do Tabernáculo não pode ter outro
motivo que a defesa de Iahweh, por ocasião da episódio do "Bezerro de Ouro"
(Ex 32), quando demonstraram sua coragem e bravura, podo fim à sedição
ensejada. Ao ocidente Efraim, Manassés e Benjamim, os filhos de Raquel,
com os seus comandantes Elisão, Gamaliel e Abidã, respectivamente (Nm
2,18-24). No lado norte estariam acampados ou em marcha as tribos de Dã,
com o comandante Aiezer, de Aser com Fegiel e a de Neftali com a chefia de
Aíra, que "entrarão em marcha por último" (Nm 2,25-31). Ficava assim
estabelecida a formação do exército de Israel, que nessa disposição acampar-
se-ia e movimentar-se-ia, em obediência a Iahweh (Nm 2,1-33):

"Assim fizeram os filhos de Israel, conforme tudo o que Iahweh ordenara a


Moisés; acamparam-se segundo as suas insígnias e marcharam, cada qual
segundo as suas famílias, segundo as casas patriarcais" (Nm 2,34).

5.2. A ORGANIZAÇÃO "MILITAR" DO SACERDÓCIO ISRAELITA:

Da Tribo de Levi foi "separada" a Casa ou Família de Aarão para o exercício


perene do "Sacerdócio Pleno" (Ex 28 - 29 / Lv 8), para cujo exercício foram
"ungidos" Aarão e os seus filhos (Ex 30,30 / Lv 8,12.30). Após o
recenseamento dos homens para a Conquista, separou-se os demais
membros da Tribo de Levi para o cuidado do Santuário, até mesmo de seu
transporte e de seu ministério (Nm 1,47-53):

"Estas, pois, eram as gerações de Aarão e de Moisés, no dia em que Iahweh


falou com Moisés no monte Sinai. Os nomes dos filhos de Aarão são estes: o
primogênito, Nadab; depois Abiú, Eleazar e Itamar. Esses são os nomes dos
filhos de Aarão, dos sacerdotes que foram ungidos e consagrados para exercer
o sacerdócio. Nadab e Abiú morreram perante Iahweh, quando ofereceram
fogo estranho perante Iahweh no deserto de Sinai, e não tiveram filhos. Eleazar
e Itamar exerceram o sacerdócio diante de Aarão, seu pai." (Nm 3,1-4).

Como já se demonstrou fartamente, o Sacerdócio vinha sendo exercido pelos


Primogênitos que, poupados quando da Saída do Egito, foram então
"consagrados" por Iahweh (Ex 13,1-2). Com a "Unção" passa para Aarão a
celebração dos Sacrifícios e depois separou-se os demais levitas para o
Sacerdócio Auxiliar (Nm 8,14-19). Agora, porém, com a organização militar do
Povo de Israel, ao restante das obrigações do Sacerdócio, acrescer-se-iam as
da guarda do tabernáculo:

"Então disse Iahweh a Moisés: Faze chegar a tribo de Levi, e põe-na diante de
Aarão, o sacerdote, para que o sirva; eles cuidarão do que é necessário a ele e a
toda a comunidade, diante da tenda da reunião, fazendo o serviço do
tabernáculo. Cuidarão de todos os utensílios da tenda da reunião, e zelarão pelo
cumprimento dos deveres dos filhos de Israel, fazendo o serviço da habitação.
Darás, pois, os levitas a Aarão e a seus filhos; como oblatos ser-lhe-ão
dedicados pelos filhos de Israel. Mas a Aarão e a seus filhos ordenarás que
desempenhem o seu sacerdócio mas todo estranho que se aproximar será
morto. Disse mais Iahweh a Moisés: Eu, eu mesmo tomei os levitas do meio
dos filhos de Israel, em lugar de todos os primogênitos, que abrem o útero
materno, entre os filhos de Israel; e os levitas serão meus, porque todos os
primogênitos são meus. No dia em que feri a todos os primogênitos na
terra do Egito, consagrei para mim todos os primogênitos em Israel, tanto
dos homens como dos animais. Eles me pertencem, eu sou Iahweh" (Nm
3,5-13).

"...porém todo estranho que se aproximar será morto" isto é, as funções


Sacerdotais de Aarão e seus filhos, nem mesmo outro membro da Tribo de
Levi, outro levita que não dos ungidos, poderia ao menos "se aproximar" sem
incorrer na pena de morte. Com isto se evidencia com a maior energia o
caráter sagrado da Instituição do Sacerdócio, não podendo ser exercido por
outro que não dos que foram para ele consagrado e "ungido" por Iahweh.
Tanto é assim que ainda no cristianismo se afirma na defesa do Sacerdócio
de Cristo, que a seleção e o chamamento ao Sacerdócio é prerrogativa de
Deus, dada a sua função medianeira e sagrada:

"Porque todo sumo sacerdote tomado dentre os homens é constituído a favor


dos homens nas coisas concernentes a Deus, para que ofereça dons e sacrifícios
pelos pecados, podendo ele compadecer-se devidamente dos ignorantes e
errados, porquanto também ele mesmo está rodeado de fraqueza. E por esta
razão deve ele, tanto pelo povo como também por si mesmo, oferecer sacrifício
pelos pecados. Ora, ninguém toma para si esta honra, senão quando é
chamado por Deus, como o foi Aarão. Assim também Cristo não se
glorificou a si mesmo, para se fazer sumo sacerdote, mas o glorificou aquele
que lhe disse: Tu és meu Filho, hoje te gerei; como também em outro lugar diz:
Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque" (Hb 5,1-6).

É nessa complementação do exercício do Sacerdócio que se consuma a


busca do sentido do Instituto da Primogenitura dentre os antigos,
aculturamento de que não se excluíam os Israelitas. Cabia ao Primogênito o
exercício do Sacerdócio, como já foi amplamente demonstrado por ocasião da
"morte dos Primogênitos do Egito" (Ex 12,29-32) que assim ficou sem
sacerdócio, tendo Iahweh vencido então a batalha que travava com os deuses
encabeçados pelo Faraó (Ex 11,7b; 12,32b) [tema desenvolvido nos Capítulos
2 n.º 8 e 3, principalmente nos ns.º 3, 4 e 5].

Caberia ao restante da Tribo de Levi o serviço auxiliar isto é, "...põe-na


perante Aarão, o sacerdote, para que o sirva; eles cuidarão do que é
necessário a ele e a toda a comunidade, diante da tenda da reunião, fazendo
o serviço do tabernáculo; cuidarão de todos os utensílios da tenda da reunião,
e zelarão pelo cumprimento dos deveres dos filhos de Israel, fazendo o
serviço da habitação": - delimitando-se assim a atividade dos Sacerdotes
Levitas, que constitui o Sacerdócio Auxiliar, cujo serviço será prestado aos
Sacerdotes Aaronitas (Nm 3,7-8; 18,2), bem como à comunidade (Nm 3,7;
16,9) ou ao Tabernáculo (Nm 1,50; 3,7; 16,9). Cuidarão também de todos
utensílios e do que for necessários aos Sacrifícios (Nm 3,8) apesar de não
poderem penetrar na Tenda da Reunião. São propriedade de Iahweh que os
"doa" ao Sacerdócio Pleno de Aarão e seus Filhos, impondo-se então na
estrutura do acampamento o seu recenseamento:

"Disse mais Iahweh a Moisés no deserto de Sinai: Conta os filhos de Levi,


segundo as casas de seus pais, pelas suas famílias; contarás todo homem da
idade de um mês, para cima. E Moisés os contou conforme o mandado de
Iahweh, como lhe fora ordenado. Estes, pois, foram os filhos de Levi, pelos
seus nomes: Gérson, Caat e Merari. (...) Os que deles foram contados, segundo
o número de todos os homens da idade de um mês para cima, sim, os que deles
foram contados eram sete mil e quinhentos" (Nm 3,14-22).

"...contarás todo homem da idade de um mês, para cima", considerando-se


que era essa a idade do resgate obrigatório dos primogênitos (Nm 18,16) no
valor de cinco ciclos de prata (Nm 3,47). Esse recenseamento inicial e total
era indispensável para depois também definir os encargos e disposições de
cada clã levita em torno da Tenda da Reunião, local estratégico de sua defesa
e guarda, bastando uma simples leitura do texto (Nm 3,23-39), dispensando-
se pela clareza quaisquer comentários. Acontece, porém, que o número de
primogênitos era maior que o de levitas, impondo-se uma compensação,
fixada com base no "ciclo do santuário" (= 12 gr. de prata), tal como o valor
estabelecido de resgate para o Tabernáculo (Ex 30,13):

"Disse mais Iahweh a Moisés: Faze o recenseamento de todos os primogênitos


varões dos filhos de Israel, da idade de um mês para cima, e o total dos seus
nomes. E tomarás para mim, Iahweh, os levitas em lugar de todos os
primogênitos dos filhos de Israel, e o gado dos levitas em lugar de todos os
primogênitos entre o gado de Israel. Moisés, pois, contou, como Iahweh lhe
ordenara, todos os primogênitos entre os filhos de Israel. E todos os
primogênitos, pelo total dos nomes, da idade de um mês para cima, segundo
foram contados totalizaram vinte e dois mil duzentos e setenta e três. Disse
ainda mais Iahweh a Moisés: Toma os levitas em lugar de todos os
primogênitos entre os filhos de Israel, e o gado dos levitas em lugar do gado
deles; porquanto os levitas serão meus. Eu sou Iahweh. Pelo resgate dos ... que
excedem o número dos levitas, receberás... receberás a vinte geras o siclo, e
darás a Aarão e a seus filhos o dinheiro do resgate dos que são excedentes.
Então Moisés recebeu o dinheiro do resgate dos que excederam o número dos
que foram remidos pelos levitas; dos primogênitos dos filhos de Israel recebeu
em dinheiro, mil trezentos e sessenta e cinco siclos, segundo o siclo do
santuário. E Moisés deu o dinheiro do resgate a Aarão e aos seus filhos,
conforme Iahweh lhe ordenara" (Nm 3,40-51).

Após esse recenseamento inicial e o resgate que o equilibra, também os


levitas foram organizados militarmente, a partir do Tabernáculo, em torno do
qual cerraram suas fileiras, cada família ficando encarregada de uma função
(Nm 4,1-33) desde o desmancho, o modo de serem acomodadas as diversas
partes até o transporte e a guarda do Santuário. Foram distinguidos com a
tarefa "todos os homens de trinta a cincoenta anos, que devem fazer o
serviço militar e que realizarão as suas funções na Tenda da Reunião"
(Nm 4,3). Mas, continua com a Casa de Aarão a responsabilidade pelo
Santuário e somente eles poderiam "tocar nas coisas sagradas":

"Quando levantar o acampamento, Aarão e seus filhos entrarão e, tirando


a cortina do véu, com ele cobrirão a arca da aliança. E por-lhe-ão por cima
uma coberta... (...). Quando Aarão e seus filhos, ao levantar o acampamento,
acabarem de cobrir o santuário e todos os seus móveis, os filhos de Caat
virão para transportá-lo; mas nas coisas sagradas não tocarão, para que não
morram. Esse é o cargo dos filhos de Caat na tenda da reunião" (Nm 4,5-15).

Terminada a operação preparatória para a partida, tem lugar o recenseamento


dos levitas "aptos para o serviço militar" (Nm 4,35.39.43), os filhos de Caat,
Gerson e Merari e os demais para o desempenho das suas funções de
"ministrar o culto e trabalhar no serviço do transporte da Tenda da Reunião":

"Todos os que foram recenseados dos levitas, aos quais contaram Moisés e
Aarão e os príncipes de Israel, segundo as suas famílias, segundo as casas
patriarcais, da idade de trinta anos para cima até os cinqüenta, todos os que
estavam no serviço do ministério do tabernáculo e do transporte da tenda da
reunião, os que deles foram contados eram oito mil quinhentos e oitenta.
Conforme o mandado de Iahweh a Moisés foram recenseados, cada qual
segundo o seu serviço, e segundo o seu cargo; assim foram recenseados como
Iahweh lhe ordenara" (Nm 4,46-49).

5.3. PURIFICAÇÃO FINAL:

Distribuída a função de cada uma das tribos e das respectivas famílias, antes
da partida para a Guerra Santa de Conquista, impunha-se uma "purificação
geral". Não poderia participar do acampamento nada que não fosse "sagrado",
por assim dizer o "puro", "santo", em condições de estar na Habitação de
Iahweh, o Santuário:

"Disse mais Iahweh a Moisés: 'Ordena aos filhos de Israel que lancem para
fora do acampamento todo leproso, e todo o que padece fluxo, e a todo o
que está imundo por ter tocado num morto; tanto homem como mulher os
lançareis para fora do acampamento. Dessa maneira não contaminarão o seu
acampamento, no meio do qual eu habito'. Assim fizeram os filhos de Israel,
lançando-os fora do acampamento. Como Iahweh falara a Moisés, assim
fizeram os filhos de Israel" (Nm 5,1-4).

"...fora do acampamento todo leproso, e todo o que padece fluxo, e a todo o


que está imundo por ter tocado num morto..." - aqueles mesmos vistos
quando da edificação do Santuário, as "pureza legais" instituídas por
determinação de Iahweh "para que não contaminem o meu acampamento". A
princípio foram excluídos do acampamento apenas os leprosos (Lv 13,46) a
que, tendo-se em vista a campanha militar santa vão se acrescer outros (Dt
23,10-15), e se ampliar quanto ao contato com mortos (Nm 19,11-16).

Parte então Moisés para uma "purificação mais ampla", indispensável em face
das normas impostas pela Aliança, pelo que alia-se à "pureza legal", a "pureza
moral", a conduta ou comportamento quanto ao "próximo", tratadas com a
mesma seriedade quanto à Santificação que se exigia (Lv 5,20-26):

"Disse mais Iahweh a Moisés: Dize aos filhos de Israel: Quando homem ou
mulher pecar contra o seu próximo, transgredindo os mandamentos e tornando-
se assim infiel a Iahweh, confessará o pecado cometido por sua culpa e fará a
restituição integral com o acréscimo da quinta parte; e a dará àquele a quem
prejudicou" (Nm 5,5-7).

Aqui se esbarra com uma das práticas que soa como uma preparação para a
equidade e justiça na distribuição da Terra Prometida entre as várias tribos.
Nada recebendo em propriedades a de Levi, separada para o Sacerdócio e
dele devendo viver, ficará com tudo o que for consagrado bem como com as
vítimas dos sacrifícios (cfr. Nm 18,8-32), como se fossem entregues a Iahweh.
Aqui, no caso de não se conseguir restituir ao lesado, entregar-se-á ao
sacerdote:

"Mas, se esse homem não tiver parente chegado, a quem se possa fazer a
restituição pelo dano, esta será feita a Iahweh, e será do sacerdote, além do
carneiro da expiação com que se fizer expiação por ele. Semelhantemente
todas primícias das coisas consagradas dos filhos de Israel, que estes
trouxerem ao sacerdote, será dele. Enfim, as coisas consagradas de cada
um serão do sacerdote; tudo o que alguém lhe der será dele" (Nm 5,8-10).

"Mas, se esse homem não tiver parente chegado, a quem se possa fazer a
restituição pelo dano, esta será feita a Iahweh..." - Aqui aparece o direito
familiar comunitário nos bens (Lv 25,25), inexistindo parentes vivos do morto e
refletindo-se a soberania de Iahweh em toda essa regulamentação. Não tendo
"herdeiros" para se restituir o dano fá-lo-á a Iahweh entregando-o ao
Sacerdote. Também o "carneiro de expiação" pertencerá ao Celebrante do
Sacrifício, na mesma perspectiva e como entrega da "herança" da tribo (Nm
18,8-10), conforme a proporcionalidade da distribuição de propriedades.

Ocorria também a necessidade de segurança familiar, base da sociedade


patriarcal, que muito concorre para a paz comunitária. Desde sempre
destacam-se duas causas principais de quebra desta paz que se busca
necessariamente: o adultério da mulher, sem testemunhas para prová-lo e o
ciúme do marido, até mesmo quando suspeita de mulher inocente. Daí a Lei
do Ciúme ou a Ordália ou Julgamento de Deus, tal com culturalmente em uso
também entre os pagãos até mesmo para outros casos da mesma forma
graves:

"Disse mais Iahweh a Moisés: Fala aos filhos de Israel, e dize-lhes: Se a mulher
de alguém se desviar pecando contra ele, e algum homem se deitar com ela,
sendo isso oculto aos olhos de seu marido e conservado encoberto, se ela se
tiver contaminado, e contra ela não houver testemunha, por não ter sido
apanhada em flagrante; se o espírito de ciúmes vier sobre ele (...) e de sua
mulher tiver ciúmes, mesmo que ela não se tenha contaminado; o homem trará
sua mulher perante o sacerdote, e juntamente trará a sua oferta por ela, (...)
oferta comemorativa, que traz a iniqüidade à memória...(...)...Esta é a lei dos
ciúmes, no tocante à mulher que, violando o voto conjugal, se desviar e for
contaminada; ou no tocante ao homem sobre quem vier o espírito de ciúmes, e
se enciumar de sua mulher; ele apresentará a mulher perante Iahweh, e o
sacerdote cumprirá para com ela toda esta lei. Esse homem será livre da
iniqüidade; a mulher, porém, levará sobre si a sua iniqüidade" (Nm 5,11-
15.29-31).

A Ordália tem o seguinte ritual (Nm 5,16-24) que termina no Sacrifício da


Oblação que se oferece para ser queimado, com a conseqüência a ser
manifestada por ato de Iahweh na mulher (Nm 5,21):

"E o sacerdote tomará da mão da mulher a oblação de ciúmes e a moverá


perante Iahweh, e a colocará no altar. Também tomará um punhado da oblação
de ciúmes e o queimará sobre o altar como memorial, e depois fará a mulher
beber a água santa. Quando ele tiver feito que ela beba a água, sucederá que, se
ela se tiver contaminado, tiver pecado contra seu marido, a água, que traz
consigo a maldição, entrará nela, tornando-se amarga; inchar-lhe-á o ventre e a
coxa se lhe consumirá; e a mulher será por maldição no meio do seu povo. E,
se a mulher não se tiver contaminado, mas for inocente, então será livre, e
conceberá filhos" (Nm 5,25-28).

"...se ela se tiver contaminado...(...)...inchar-lhe-á o ventre, a coxa se lhe


consumirá e a mulher será por maldição no meio do seu povo. E, se a mulher
não se tiver contaminado, mas for inocente, então será livre, e conceberá
filhos" - a mulher não mais conceberia filhos no caso da culpa é o que
significam as palavras: "será por maldição no meio do seu povo" em confronto
com a afirmação final no caso da inocência dela: "então será livre, e
conceberá filhos".

5.4. A INSTITUIÇÃO DO NAZIREATO:

"Nazir" significa "consagrado" com idêntica conotação de "santo", "separado".


O termo indica até mesmo apenas o sinal exterior da opção feita, qual seja a
farta cabeleira, bem como vai designar o "diadema real" tal como o do Sumo
Sacerdote (Ex 29,6). O Nazireu, durante o tempo de sua consagração
observava três condições:

"Disse mais Iahweh a Moisés: Fala aos filhos de Israel, e dize-lhes: Quando
alguém, seja homem ou mulher, fizer o voto de nazireu, a fim de se consagrar a
Iahweh, abster-se-á de vinho e de bebida fermentada; não beberá vinagre de
vinho nem de bebida fermentada, nem suco algum de uvas, nem comerá uvas
frescas nem secas. Durante os dias do seu nazireato não comerá de coisa
alguma da videira desde os caroços até as cascas. Durante os dias do seu voto
de nazireato, navalha não passará sobre a sua cabeça; até que se cumpram os
dias de sua consagração a Iahweh será santo e deixará crescer o cabelo da sua
cabeça. Durante a sua consagração a Iahweh, não se aproximará de um
morto; não se contaminará nem por seu pai, nem por sua mãe, nem por seu
irmão, nem por sua irmã, quando morrerem; porque traz na sua cabeça a
consagração do seu Deus. Durante o tempo do seu nazireato estará consagrado
a Iahweh" (Nm 6,1-8)

"...abster-se-á de vinho e de bebida fermentada", "...navalha não passará


sobre a sua cabeça" e "...não se aproximará de um morto" são as
principais condições. A Instituição, como um tipo especial de consagração a
Iahweh não é bem clara e delineada além do que aqui nisso se contém.
Assemelha-se à dos Sacerdotes e futuramente à dos Messias, os Reis de
Israel. Confirma-se assim que as Escrituras foram escritas para quem já
conhecia os costumes de então, a quem, por isso mesmo, se dispensava
muita explicação. Por isso somente uma das características é muitas vezes
mencionada, quando desejada para o filho ou anunciada por um anjo ao eleito
para uma missão especial. O que se pode saber a respeito vem de casos que
se evidenciam embasados nela, tais como a assim mencionada consagração
de Sansão (Jz 13,5), a vocação de Samuel (1Sm 1,11), ambos vitalícios e
advindos desde o ventre materno, e também se identifica traços dela na
Anunciação de João Batista (Lc 1,15):

"Mas o anjo de Iahweh apareceu à mulher e lhe disse: Eis que és estéril, e
nunca deste à luz; porém conceberás, e terás um filho. Agora pois, toma
cuidado, e não bebas vinho nem bebida fermentada, e não comas nenhuma
coisa impura porque conceberás e terás um filho. Sobre a sua cabeça não
passará navalha, porque o menino será nazireu de Deus desde o ventre de
sua mãe; e ele começara a livrar a Israel das mãos dos filisteus...(...)...
Respondeu o anjo de Iahweh a Manoé: De tudo quanto eu disse à mulher se
absterá ela. De nenhum produto da vinha comerá; não beberá vinho nem
bebida fermentada, nem comerá coisa impura; tudo quanto lhe ordenei
observará" (Jz 3-5.13-14) / "Ela, pois, (...) fez um voto, dizendo: Ó Iahweh dos
exércitos! se deveras atentares para a humilhação da tua serva, e de mim te
lembrares, e da tua serva não te esqueceres, e lhe deres um filho homem, o
consagrarei a Iahweh por todos os dias da sua vida, e pela sua cabeça não
passará navalha" (1Sm 1,10-11) / "... o anjo lhe disse: Não temas, Zacarias;
porque a tua oração foi ouvida, e Isabel, tua mulher, te dará à luz um filho, e
lhe porás o nome de João; (...) ele será grande diante do Senhor; não beberá
vinho, nem bebida forte; e será cheio do Espírito Santo já desde o ventre de
sua mãe..." (Lc 1,13-15).

Também entre os primeiros cristãos se registram alguns casos ocorridos com


São Paulo, quando o caluniavam, para provar "que também tu mesmo te
comportas como cumpridor da lei":

"Paulo, tendo ficado ali ainda muitos dias (...) havendo rapado a cabeça em
Cencréia, porque tinha feito um voto" (At 18,18) / "Faze, pois, o que te
vamos dizer: Temos quatro homens que fizeram voto. Toma-os contigo, e
santifica-te com eles, e faze as despesas deles para que rapem a cabeça.
Saberão todos que é falso tudo aquilo que ouviram a teu respeito, mas que
também tu te comportas como cumpridor da lei. (...) Então Paulo, no dia
seguinte, tomando consigo aqueles homens, purificou-se com eles e entrou no
templo, e anunciou a duração dos dias da purificação, quando seria feita a
oferta de cada um deles" (At 21,23-26).

É necessário o registro de um trecho de Amós que mostra a identidade de


valor dos nazireus com os profetas:

"E dentre vossos filhos suscitei profetas e dentre os vossos jovens nazireus.
Acaso não é isso assim, filhos de Israel? Oráculo de Iahweh. Mas vós fizestes
os nazireus beber vinho, e ordenastes aos profetas: 'Não profetizeis'. Eis
que eu vos esmagarei no lugar como esmaga um carro cheio de feixes. Assim
será impossível a fuga ao ágil, nem ao forte valerá a sua força, nem o valente
salvará a sua vida. E não ficará em pé o arqueiro, nem o corredor se livrará,
nem tampouco se salvará o cavaleiro e o mais corajoso entre os valentes
fugirá nu naquele dia, diz Iahweh" (Am 2,11-16).

Iahweh reclama que Israel fizera "os nazireus beber vinho e impedira os
profetas de profetizar" o que motiva o castigo descrito a ponto de "ser
impossível a fuga ao ágil, nem ao forte valerá a sua força, nem o valente
salvará a sua vida, nem ficará em pé o arqueiro, nem o corredor se
livrará, nem tampouco se salvará o cavaleiro e o mais corajoso entre os
valentes fugirá nu naquele dia, diz Iahweh". Nem poderia ser diferente uma
vez que Iahweh quando "suscitou nazireus", o fez para alguma missão
especial e um verdadeiro testemunho de fidelidade pela austeridade e
penitência de toda uma vida consagrada. Da mesma forma agiam os que
faziam o voto voluntário de duração temporária pelas renúncias e
mortificações que a si mesmos impunham. Assumiam o compromisso solene
de, durante o tempo da consagração:

1. Não ingerir bebida fermentada, vinho ou nem mesmo de suco de uva


ou se nutrir de qualquer derivado da videira;
2. Não cortar os cabelos; e,
3. Não se aproximar de um cadáver, mesmo que seja de seus pais ou
irmãos, ou parentes próximos.

Por causa da semelhança desses três votos se identificam a algumas


disposições especiais dos Sacerdotes "Ungidos" (Lv 10,8-11; 21,1-6.10-12) e
aos termos da bênção de José do Egito por Jacó e Moisés [Gn 49,26 e Dt
33,16 - aqui se traduziu a palavra hebraica nazir (=nazireu) por "consagrado"
ou "eleito"], pelo que se compreende e se deduz a magnitude e solenidade da
consagração então praticada. Verifica-se a mesma veneração e respeito pelo
cerimonial apropriado quando de seu término, no caso de contato
imprevisível, inevitável e até mesmo involuntário com um morto (Nm 6,9-12).
O Sacerdote celebrará sobre ele o Rito de Expiação para a santificação com a
oferta de alguns sacrifícios, e, desprezando-se o tempo já decorrido, refaz-se
os votos e reinicia-se o cumprimento das normas da instituição. Tem lugar um
cerimonial destinado a marcar o fim do nazireato, pelas oferendas a que então
se obriga, abrangendo todos os tipos de sacrifícios, com a entrega delas ao
sacerdote oficiante:

"Esta, pois, é a lei do nazireu: no dia em que se findarem os dias do seu


nazireato ele será trazido à porta da tenda da reunião, e oferecerá a sua oferta a
Iahweh: um cordeiro de um ano, sem defeito, como holocausto, e uma cordeira
de um ano, sem defeito, como oferta pelo pecado, e um carneiro sem defeito
como oferta pacífica; e um cesto de pães ázimos, bolos de flor de farinha
amassados com azeite, como também as respectivas oblações e libações. E o
sacerdote os apresentará perante Iahweh, e oferecerá a oferta pelo pecado, e o
holocausto; também oferecerá o carneiro em sacrifício de oferta pacífica a
Iahweh, com o cesto de pães ázimos e as respectivas oblações e libações.
Então o nazireu, à porta da tenda da reunião, rapará o cabelo do seu
nazireato, tomá-lo-á e o porá sobre o fogo que está debaixo do sacrifício
das ofertas pacíficas. Depois o sacerdote tomará a espádua cozida do
carneiro, e um pão ázimo do cesto, e uma torta ázima, e os porá nas mãos do
nazireu, depois não se aproximará de um morto de haver este rapado o
cabelo do seu nazireato. O sacerdote os moverá como oferta de movimento
perante Iahweh; isto é santo para o sacerdote, juntamente com o peito da
oferta de movimento, e com a espádua da oferta apresentada. Depois o
nazireu poderá beber vinho. Esta é a lei do nazireu e da sua oferta a Iahweh,
pelo seu nazireato e outras coisas que as suas posses lhe permitirem oferecer.
Conforme o voto que fizer assim cumprirá e pagará além do exigido pela lei do
nazireato" (Nm 6,13-21).

Após rapar o cabelo e queimá-lo para evitar a profanação da "consagração ao


seu Deus", "...oferecerá a sua oferta a Iahweh...": - "...o sacerdote os moverá
como oferta de movimento perante Iahweh; é a parte santa do sacerdote,
juntamente com o peito..., e com a espádua da oferta apresentada" - isto é, o
que é de Iahweh pela oferta de movimento ou de apresentação (Ex 29,24-26;
Lv 7,30-34) vai para o Sacerdote, consumando-se o nazireato, podendo então
o consagrado "beber vinho". Essas oferendas mencionadas na
regulamentação são um mínimo que se exige, podendo o nazireu oferecer
"...qualquer outra coisa que as suas posses lhe permitirem oferecer...", pelo
que fica da mesma forma obrigado ao cumprimento.
5.5. A BÊNÇÃO

É essa a Bênção proferida por Aarão quando de sua consagração (Lv 9,22) que aqui
se insere:

"Disse mais Iahweh a Moisés: Fala a Aarão, e a seus filhos, dizendo: Assim abençoareis
os filhos de Israel; dir-lhes-eis:

o Iahweh te abençoe e te guarde.


o Iahweh faça resplandecer o seu rosto sobre ti e te seja benigno.
o Iahweh mostre o seu rosto para ti e te dê a paz.

Assim porão o meu nome sobre os filhos de Israel, e eu os abençoarei" (Nm 6,22-27).

Três vezes se repete o nome de Iahweh, numa evocação gloriosa de sua majestade e
poder, que vai jorrar sobre o Povo de Israel em forma de Bênção. Proporcionar-lhe-á
fecundidade e abundância de todos os bens então aspirados de fartas colheitas,
numeroso rebanho e manada, além de feliz e numerosa posteridade. Também para o
Povo de Israel atingir os desígnios a que Iahweh o prepara, tornava-se indispensável a
união entre ambos numa comunhão de vidas a que somente os atributos de Deus
poderia promover com a Bênção. Os próprios pais também tinham este poder de
abençoar em nome de Iahweh como já se viu quando Isaac abençoou Jacó (Gn 27,27-
29), assim como Jacó abençoou José (Gn 49,25-26). As Bênçãos em Nome de Iahweh
continham em germe o teor de toda a fecundidade que por ela se outorgava:

Gn 27,27-29 Gn 49,25-26

...e seu pai... o abençoou, e disse: ...pelo Deus de teu pai,


Eis que o odor de meu filho que te ajudará,
é como o odor de um campo e pelo Todo-Poderoso,
que Iahweh abençoou. o qual te abençoa,

Que Deus te dê do orvalho do céu, com bênçãos dos céus no alto,


e dos lugares férteis da terra, com bênçãos do abismo embaixo,
e abundância de trigo e de vinho; com bênçãos das mamas e do seio.

sirvam-te povos e nações se prostrem As bênçãos de teu pai, que excedem às


a ti; bênçãos dos montes
sê senhor de teus irmãos eternos,
e os filhos da tua mãe se prostrem a ti; à atração das eternas colinas;
maldito seja quem te amaldiçoar; sejam elas sobre a cabeça de José,...
bendito seja quem te abençoar. a fronte do consagrado dentre seus
irmãos...
É uma ampliada fecundidade ao âmbito de todo um povo que os Sacerdotes têm agora
o dever de ministrar, apesar de estar sempre condicionada ao cumprimento das
normas ditadas pela Aliança (Dt 28,1-14):

"Por esse tempo Iahweh separou a tribo de Levi, para levar a Arca da Aliança de
Iahweh, para estar diante de Iahweh, servindo-o, e para abençoar em seu nome até o
dia de hoje. Pelo que Levi não tem parte nem herança com seus irmãos; Iahweh é a sua
herança, como Iahweh teu Deus lhe disse" (Dt 10,8-9) / "Então se achegarão os
sacerdotes, filhos de Levi; pois Iahweh teu Deus os escolheu para o servirem, e para
abençoarem em nome de Iahweh..." (Dt 21,5) / "Se obedeceres a voz de Iahweh teu
Deus, tendo cuidando de guardar todos os seus mandamentos que eu hoje te ordeno,
Iahweh teu Deus te exaltará acima de todas as nações da terra; e todas estas bênçãos
virão sobre ti e te alcançarão, se ouvires a voz de Iahweh teu Deus: Bendito serás na
cidade, e bendito serás no campo. Bendito o fruto do teu ventre, e o fruto do teu
solo...(...)... E Iahweh te porá como cabeça e não como cauda; e estarás sempre por cima,
e não por baixo; se ouvires os mandamentos de Iahweh teu Deus, que eu hoje te
ordeno guardar e cumprir... (Dt 28,1-14).

"Iahweh te abençoe e te guarde. Iahweh faça resplandecer o seu rosto sobre ti e te


seja benigno. Iahweh mostre o seu rosto para ti e te dê a paz" - é a fórmula da Bênção
a ser usada pelos Sacerdotes para abençoar em nome de Iahweh todo o Povo de
Israel, preparado para a conquista. Caminhar-se-ia em busca do cumprimento da
Promessa a Abraão:

"Abençoarei quem te abençoar e amaldiçoarei àquele que te amaldiçoar e em ti serão


abençoadas todas as famílias da terra"..."À tua descendência darei esta terra..." (Gn
12,3.7).

Pôr-se-ia a caminho o Povo "Primogênito", o "reino de sacerdotes e a nação santa", e


o fruto da Bênção será como o "resplandecer do rosto" de Iahweh em bens materiais e
espirituais a ponto de gozar de inabalável "paz". Uma verdadeira "paz", não como a
ausência de guerras ou lutas, mas como a comunhão com Deus na identidade
almejada pela Aliança em busca do Jardim do Éden, numa antecipação dos bens
temporais e espirituais. Alguns dos primeiros Padres da Igreja viam nessa Bênção
tripartida uma alusão ao mistério da Santíssima Trindade.

5.6. A DEDICAÇÃO DO SANTUÁRIO

Quase sempre as narrativas bíblicas não obedecem a uma ordem lógica.


Seguem muitas vezes o critério de se completar inteiramente o assunto já
começado. Depois então, na medida das necessidades de uso ou de se
destacar e conhecer a origem é que apresentam os elementos intermediários,
sem levar em conta a seqüência. Assim, nota-se que o narrador volta ao que
expôs no final de Êxodo, após a edificação do Santuário (Ex 40,16-35), como
ele mesmo informa:

"No dia em que Moisés acabou de levantar o tabernáculo, ele o ungiu e


santificou com todos os seus pertences, bem como o altar e todos os seus
utensílios. Depois de ungi-los e santificá-los, os príncipes de Israel, os chefes
patriarcais fizeram as suas ofertas, que eram os mesmos príncipes das tribos
que procederam o recenseamento. Trouxeram a sua oferta perante Iahweh: seis
carros cobertos, e doze bois; por dois príncipes um carro, e por cada um, um
boi; e os apresentaram diante do tabernáculo. Então disse Iahweh a Moisés:
'Recebe-os para serem utilizados no serviço da tenda da reunião e os darás aos
levitas, a cada qual segundo o seu serviço'. Assim Moisés recebeu os carros e
os bois e os deu aos levitas. Dois carros e quatro bois deu aos filhos de Gérson,
segundo o seu serviço; e quatro carros e oito bois deu aos filhos de Merari,
segundo o seu serviço, sob as ordens de Itamar, filho de Aarão, o sacerdote.
Mas aos filhos de Caat não deu nenhum, porquanto lhes pertencia o serviço de
levar o santuário, e o levavam aos ombros" (Nm 7,1-9).

Conclui-se que ainda estavam no Sinai, onde tem lugar o oferecimento de


carros para a remoção do Santuário desmontado, em número de "...seis
carros cobertos, e doze bois; por dois príncipes um carro, e por cada um, um
boi; e os apresentaram diante do tabernáculo...". "Dois carros e quatro bois
deu aos filhos de Gérson, segundo o seu serviço; e quatro carros e oito bois
deu aos filhos de Merari, segundo o seu serviço..." por causa do transporte
cargo deles (Nm 4,21-33) "Mas aos filhos de Caat não deu nenhum, porque
lhes pertencia o serviço de levar o santuário, e o levavam nos ombros". Após
esse escalonamento se dá a apresentação das oferendas pelos chefes
escolhidos das casas patriarcais. "São esses os que foram chamados da
congregação, os chefes das tribos patriarcais, os cabeças dos clãs de Israel"
(Nm 1,16), denominados de "príncipes", os que foram separados para o
recenseamento, e são agora os ofertantes, em nome de suas tribos, dos
Sacrifícios destinados à dedicação do Santuário:

"Os príncipes fizeram também oferta para a dedicação do altar, no dia em que
foi ungido; e os príncipes apresentaram as suas ofertas perante o altar. E disse
Iahweh a Moisés: Cada príncipe oferecerá a sua oferta, cada qual no seu dia,
para a dedicação do altar" (Nm 7,10-11).

A cada um dos doze escolhidos caberá a entrega das oferendas, todas elas
iguais, correspondentes à Tribo que representa. Mencionam-se os vários
utensílios para o culto (Ex 25,29; 37,16; 38,3), com quase nenhuma diferença
de narrativa e mudando-se apenas o nome, a descendência e a tribo do
ofertante (Nm 7,12-83):

"No (primeiro, segundo etc.) dia apresentou a sua oferenda (...), filho de (...),
da tribo de (...) que. A sua oferenda foi uma bandeja de prata do peso de cento
e trinta siclos, uma bacia de prata de setenta siclos, segundo o siclo do
santuário; ambas cheias de flor de farinha amassada com azeite, para a
oblação; um vaso de ouro de dez siclos, cheio de incenso; um novilho, um
carneiro, um cordeiro de um ano, para holocausto; um bode para o sacrifício
pelo pecado; e para o sacrifício pacífico dois bois, cinco carneiros, cinco
bodes, cinco cordeiros de um ano; esta foi a oferenda de (...), filho de (...)"
(Nm 7,12-17).

Essas oferendas dos Israelitas destinadas aos sacrifícios que são


mencionados foram também "recenseados", finalizando-se assim com essa
cerimônia de purificação final:

"Estas foram as oferendas para a dedicação do altar pelos príncipes de Israel,


no dia em que foi ungido: doze bandejas de prata, doze bacias de prata, doze
vasos de ouro, pesando cada bandeja de prata cento e trinta siclos, e cada bacia
setenta; toda a prata dos vasos foi dois mil e quatrocentos siclos, segundo o
siclo do santuário; doze vasos de ouro cheias de incenso, pesando cada vaso
dez siclos, segundo o siclo do santuário; todo o ouro dos vasos foi cento e vinte
siclos. Os animais para holocausto foram doze novilhos, doze carneiros, e doze
cordeiros de um ano, com as respectivas oblações. Para o sacrifício pelo
pecado, doze bodes. E os animais para sacrifício pacífico foram vinte e quatro
novilhos, sessenta carneiros, sessenta bodes, e sessenta cordeiros de um ano.
Estas foram as oferendas para a dedicação do altar depois que foi ungido"
(Nm 7,84-88).

5.7. A PURIFICAÇÃO E A INSTALAÇÃO DOS LEVITAS

A autoridade de Moisés lhe advinha de sua profunda intimidade com Iahweh,


fato afirmado pelo narrador como aceito por todo o Povo de Israel, em virtude
daqueles prodígios realizados desde a saída do Egito:

"Quando Moisés entrava na tenda da reunião para falar com Iahweh ouvia a
voz que lhe falava de cima do propiciatório, que está sobre a arca do
testemunho entre os dois querubins; assim ele lhe falava" (Nm 7,89).

Era só Moisés que ouvia a voz de Iahweh, ninguém mais, donde se dizer que
essa informação ´s prestada por ele mesmo, e conforme o que acreditava com
o risco da própria vida. E a sua autoridade continuava sendo tutelada pelo
próprio Iahweh, que sempre o atendia tal como previa o seu servo. Esse
versículo traz à baila a Arca do Testemunho, evocada também nos utensílios
oferecidos pelos príncipes das Tribos de Israel na Dedicação. "Estas foram as
oferendas para a dedicação do altar dos príncipes de Israel, no dia em que foi
ungido: doze bandejas de prata, doze bacias de prata, doze vasos de ouro..."
(Nm 7,84), e ao mencioná-las lembra aqueles da descrição dela a Moisés no
Sinai, para a edificação do Santuário, qual seja:

"Farás um querubim numa extremidade e o outro querubim na outra


extremidade... Os querubins estenderão as suas asas por cima do propiciatório,
cobrindo-o com as asas, tendo as faces voltadas um para o outro; as faces dos
querubins estarão voltadas para o propiciatório. E porás o propiciatório em
cima da arca; e dentro da arca porás o testemunho que eu te darei. E ali virei a
ti, e de cima do propiciatório, do meio dos dois querubins que estão sobre
a arca do testemunho, falarei contigo a respeito de tudo o que eu te
ordenar no tocante aos filhos de Israel. Também farás uma mesa de madeira
de acácia... cobri-la-ás de ouro puro...(...)... Também farás os seus pratos, as
suas vasos, os seus jarros e as suas taças com que serão oferecidas as
libações; de ouro puro os farás. E sobre a mesa porás os pães da proposição
perante mim para sempre" (Ex 25,20-22).

O Propiciatório era o lugar onde Iahweh se apresentava e onde Moisés "...


ouvia a voz que lhe falava de cima do propiciatório...", tal como o a Igreja
lembra:

"O nome de Deus salvador era invocado apenas uma vez por ano, pelo sumo
sacerdote, para expiação dos pecados de Israel, depois de ter aspergido o
propiciatório do 'santo dos santos' com o sangue do sacrifício (cf. Lv16,15-16;
Sir 50,20; Nm 7,89; Hb 9,7). O propiciatório era o lugar da presença de
Deus (cf. Ex 25,22; Lv 16,2; Nm 7,89; Hb 9,5). Quando S. Paulo diz de Jesus
que 'Deus o expôs como instrumento de propiciação, por seu próprio sangue'
(Rm 3,25), quer afirmar que na humanidade d'Ele 'era Deus que em Cristo
reconciliava consigo o mundo' (2Cor 5,19)" (Catecismo da Igreja Católica
n.º 433, negritos inexistentes no original).

Para se completar a Dedicação do Altar Iahweh determina a disposição do


Candelabro (Ex 25,3.31-40; 37,17.24 / Lv 24,1-4) e a purificação dos levitas,
substituindo-os no Rito de Expiação apropriado pelas vítimas (animais)
imoladas em sacrifício. Uma vez assim "limpos" conforme a lei "... entrarão
para o serviço da tenda da reunião, depois de os teres purificado e oferecido
como oferta de movimento":

"Disse mais Iahweh a Moisés: Fala a Aarão, e dize-lhe: Quando acenderes as


lâmpadas, as sete lâmpadas alumiarão o espaço em frente do candelabro. (...)
Disse mais Iahweh a Moisés: Toma os levitas do meio dos filhos de Israel, e
purifica-os. Assim lhes farás, para os purificar: esparge sobre eles a água da
purificação; e eles farão passar a navalha sobre todo o seu corpo, e lavarão os
seus vestidos, e se purificarão.(...) Também farás chegar os levitas perante a
tenda da reunião, e reunirás toda a congregação dos filhos de Israel.
Apresentarás, pois, os levitas perante Iahweh, e os filhos do Israel imporão
as suas mãos sobre os levitas. E Aarão oferecerá os levitas perante Iahweh,
como oferta de movimento, da parte dos filhos de Israel, para que sirvam
no ministério de Iahweh. Os levitas porão as suas mãos sobre a cabeça dos
novilhos; então tu oferecerás um como sacrifício pelo pecado, e o outro como
holocausto a Iahweh, para fazeres expiação pelos levitas. E porás os levitas
perante Aarão, e perante os seus filhos, e os oferecerás como oferta de
movimento a Iahweh. Assim separarás os levitas do meio dos filhos de Israel;
e os levitas serão meus. Depois disso os levitas entrarão para o serviço da
tenda da reunião, depois de os teres purificado e oferecido como oferta de
movimento" (Nm 8,1-15).

Neste ato da purificação dos levitas forma-se uma unidade entre o sacerdócio
e toda a congregação dos Filhos de Israel uma vez que, pela oferta de
movimento ou de apresentação são consagrados a Iahweh, estabelecendo-se
então a comunhão de todos. Iahweh recebe pela imposição das mãos e a
oferta de movimento, feitos por toda a comunidade, o Sacerdócio Levita e o
entrega de volta a Aarão, tratando-se assim os levitas como uma verdadeira e
plena oferenda de um sacrifício (cfr. Lv 1,4 / Ex 29,24-28 / Lv 7,30):

"...os levitas entrarão para o serviço da tenda da reunião, depois de os teres


purificado e oferecido como oferta de movimento Porque eles me são oblatos, me
são doados dentre os filhos de Israel; em lugar de todo aquele que abre o seio materno,
de todo primogênito dos filhos de Israel, tomei-os para mim. (...) ...os santifiquei para
mim. Mas tomei os levitas em lugar de todos os primogênitos dos filhos de Israel e
destinei os levitas a Aarão e a seus filhos, dentre os filhos de Israel como doados, para
fazerem o serviço dos filhos de Israel na tenda da reunião, e para fazerem expiação por
eles, a fim de que não caia o flagelo sobre eles por se aproximarem do santuário.
Assim Moisés e Aarão e toda a congregação dos filhos de Israel fizeram aos levitas..."
(Nm 8,16-20).

Completa-se assim, com a consagração de toda a Tribo de Levi para o


exercício perene do Sacerdócio, a formação do Povo de Israel como "...um
reino de sacerdotes e uma nação santa" (Ex 19,6), formando-se a unidade de
todos em torno do culto por excelência, o Sacrifício:

"O povo eleito foi constituído por Deus como "um reino de sacerdotes e uma
nação santa" (Ex 19,6) (cf. Is 61,6). Mas, dentro do povo de Israel, Deus
elegeu uma das doze tribos, a de Levi, separando-a para o serviço litúrgico
(cf. Nm 1,48-53); o próprio Deus é a sua porção da herança (Jos 13,33). Um
rito próprio consagrou as origens do sacerdócio da Antiga Aliança (cf. Ex 29,1-
30; Lv 8). Nele os sacerdotes "são constituídos para intervir em favor dos
homens no que se refere as suas relações com Deus, a fim de oferecer dons
e sacrifícios pelos pecados" (Hb 5,1) (Catecismo da Igreja Católica n.º 1539).

5.8. - A PÁSCOA NO SINAI E A PARTIDA PARA A CONQUISTA

Tal como antes da saída do Egito celebra-se então a Páscoa, no momento antes da
partida para a Conquista da Terra Prometida:

"Iahweh falou a Moisés no deserto de Sinai, no primeiro mês do segundo ano depois
que saíram da terra do Egito, dizendo: 'Celebrem os filhos de Israel a páscoa a seu
tempo determinado. A celebrareis no dia catorze deste mês, no tempo determinado,
ao crepúsculo, segundo todos os seus estatutos, e segundo todos as seus ritos a
celebrareis'. Disse, pois, Moisés aos filhos de Israel que celebrassem a páscoa. Então
celebraram a páscoa no dia catorze do primeiro mês, à tardinha, no deserto de Sinai;
conforme tudo o que Iahweh ordenara a Moisés, assim fizeram os filhos de Israel" (Nm
9,1-5).

"Falou Iahweh a Moisés no deserto de Sinai, na tenda da reunião, no primeiro dia do


segundo mês, no segundo ano depois da saída dos filhos de Israel da terra do Egito:..."
(Nm 1,1).

Assim, da mesma forma que antes da saída do Egito e após a Páscoa (Ex 12) se dá
a consagração dos primogênitos (Ex 13), também, aqui e agora, com a celebração da
Páscoa (Nm 9,1-3 - no primeiro mês do segundo ano) se dá a consagração dos
levitas (Nm 8,5-26 - em lugar dos primogênitos, após o recenseamento no
segundo mês), repetindo-se o ritual da instituição. No curso da narrativa surgem
alguns casos fortuitos que exigiram de Moisés a regulamentação de maneira geral e
previsível para aplicação atual e futura, demandando dele a habitual "consulta a
Iahweh". É o caso da celebração dela pelo impuro por contato com um morto, ou por
causa do contato profano de longa viagem, ou ainda pelos forasteiros:

"Ora, havia alguns que se achavam imundos por causa de um morto... (...) ...e aqueles
homens disseram-lhes: 'Estamos imundos por causa de um morto; por que seríamos
privados de trazer a oferenda de Iahweh a seu tempo no meio dos filhos de Israel?'
Respondeu-lhes Moisés: 'Esperai, para que eu saiba o que Iahweh ordenará acerca de
vós'. Então disse Iahweh a Moisés: 'Fala aos filhos de Israel, dizendo: Se alguém de
vós, ou dos vossos descendentes estiver imundo por causa de um morto, ou achar-se em
longa viagem, celebrará a páscoa a Iahweh. No segundo mês, no dia: catorze... (...)
...conforme com todo o estatuto da páscoa. Mas o homem que, estando limpo e não se
achando em viagem, deixar de celebrar a páscoa, será extirpado do seu povo;
porquanto não ofereceu a oferenda de Iahweh a seu tempo determinado, levará a
pena do seu pecado. Também se um estrangeiro (...) a celebrará segundo o estatuto e
costumes da páscoa. Haverá um só estatuto, quer para o estrangeiro, quer para o natural
da terra'" (Nm 9,6-14).

O que se percebe é a importância da Páscoa na vida do Povo de Israel a ponto de


ser condição indispensável a sua celebração para a permanência em seu meio social
e comunitário. A responsabilidade pelas conseqüências do descumprimento dela é de
cada violador que em si mesmo "carrega a pena do seu pecado", não podendo nada
reivindicar em termos da Aliança contraída com Abraão. Principalmente tendo até
mesmo sido criada uma segunda oportunidade para cumpri-la ocorrendo qualquer
impedimento legal.

Terminada a comemoração da Páscoa impunha-se a partida para a Conquista da


Terra Prometida, tal como se preparara. Antes, era ainda necessário completar a
estrutura e organização com os sinais de comando a que se submeteriam durante o
trajeto. Principalmente porque essa conquista não era obra estritamente humana,
mas partia unicamente de Iahweh que a comandaria, qual seja, desde o Éden Deus é
o único autor da Salvação do Homem, ali se iniciando em figura. Para se caracterizar
isso, repete-se aqui o narrado quando do término da ereção do Tabernáculo, ou do
Santuário:

Ex 40,33b-38 Nm 9,15-23

"...Assim concluiu Moisés a obra. "No dia em que foi levantado o


Então tabernáculo,

a nuvem cobriu a tenda da reunião, e a nuvem cobriu o tabernáculo, isto é, a


a glória de Iahweh encheu o própria tenda do testemunho; e desde a
tabernáculo de maneira que Moisés tarde até pela manhã havia sobre
não podia entrar na tenda da
reunião, porque o tabernáculo uma aparência de fogo.
Assim acontecia de contínuo: a nuvem o
a nuvem repousava sobre ela, e cobria,

a glória de Iahweh e de noite

enchia o tabernáculo. havia aparência de fogo.

Quando, pois, a nuvem se levantava Mas sempre que a nuvem se alçava de


de sobre o tabernáculo, prosseguiam sobre a tenda, os filhos de Israel partiam;
os filhos de Israel, em todas as suas e no lugar em que a nuvem parava, ali os
jornadas; filhos de Israel se acampavam.

À ordem de Iahweh os filhos de Israel


partiam, e

se a nuvem, porém, não se à ordem de Iahweh se acampavam;


levantava, não caminhavam até
que se levantasse. por todos os dias em que a nuvem
parava sobre o tabernáculo eles
ficavam acampados. (...)

A nuvem de Iahweh estava de dia ...À ordem de Iahweh se acampavam, e


sobre o tabernáculo, e o fogo estava à ordem de Iahweh partiam;
de noite sobre ele, perante os olhos
de toda a casa de Israel, em todas cumpriam o mandado de Iahweh, que
as etapas." ele lhes dera por intermédio de
Moisés."

"À ordem de Iahweh se acampavam, e à ordem de Iahweh partiam; cumpriam o


mandado de Iahweh, que ele lhes dera por intermédio de Moisés" - a repetição com
mais detalhes neste ponto da narrativa do que já havia sido narrado em Êxodo tem
como objetivo caracterizar o fato de que Iahweh é quem comandava a Tropa Israelita
pela movimentação da nuvem ou do fogo. O caminho a ser seguido será determinado
por Iahweh diretamente a Moisés. Além dessa nuvem e do fogo também se introduz o
uso das trombetas destinadas não só ao comando, mas a ser um memorial para
Iahweh tanto na batalha como no culto:

"Disse mais Iahweh a Moisés: Faze para ti duas trombetas de prata; de metal
batido as farás, e te servirão para convocares a assembléia e para dar o sinal da
partida dos acampamentos. Quando se tocarem ambas as trombetas, toda a
assembléia se reunirá a ti à porta da tenda da reunião. Mas quando se tocar uma só, a ti
se reunirão os príncipes, os chefes dos milhares de Israel. Quando se tocar retinindo,
partirão os acampamentos da banda do oriente. Mas quando se tocar retinindo, pela
segunda vez, partirão os acampamentos da banda do sul. Tocar-se-á retinindo para as
partidas dos acampamentos, mas sem retinir quando se houver de reunir a
assembléia. Os filhos de Aarão, os sacerdotes, tocarão as trombetas; e isto será para
vós estatuto perpétuo nas vossas gerações. Ora, quando na vossa terra sairdes à
guerra contra o inimigo que vos estiver oprimindo, fareis retinir as trombetas; e
perante Iahweh vosso Deus sereis lembrados e sereis salvos dos vossos inimigos.
Semelhantemente, no dia da vossa alegria, nas vossas festas fixas, e nos princípios
dos vossos meses, tocareis as trombetas sobre os vossos holocaustos, e sobre os
sacrifícios de vossas ofertas pacíficas; e eles vos serão por memorial perante vosso
Deus. Eu sou Iahweh vosso Deus" (Nm 10,1-10).

Pelo tipo do toque sabia-se em todo o acampamento a ordem a seguir e a causa,


pelo que se preparava e era mantida a disciplina. Separou-se o toque para a luta,
para levantar acampamento e para o culto, conforme determinado por Iahweh, que se
"lembrava" e a todos amparava e dirigia. Para o Israelita, o termo memorial,
lembrança ou memória, quando é a "recordação" de Deus, sempre se traduz em
uma atitude dinâmica, as mais das vezes, libertadora e vinculada inseparavelmente à
Aliança:

"..., e os filhos de Israel, gemendo sob o peso da servidão, clamaram; e... o seu clamor
subiu até Deus; Deus 'lembrou'-se de sua Aliança..." (Ex 2,23-25). "Eu vi, eu vi a
miséria do meu povo que está no Egito... Por isso desci a fim de libertá-lo da mão dos
egípcios..." (Ex 3,7-8). "... Iahweh... Este é o meu nome para sempre, e esta será a
minha lembrança (lit.: "memória") de geração em geração" (Ex 3,15).

Essa significação, que vincula a ação de Iahweh-Deus em favor de seu Povo, é


conhecida e dela participam até mesmo na sua época os primeiros cristãos:

"As tuas orações e as tuas esmolas subiram em memorial diante de Deus, e ele se
lembrou de ti." (At 10,4). / "Cornélio, tua oração foi ouvida e tuas esmolas foram
rememoradas diante de Deus" (At 10,31).

Essa vinculação de Deus pela memória a um compromisso que tenha contraído, - a


Aliança, por exemplo, - é ainda repetida em vários e outros trechos da Escritura,
tanto do Antigo como do Novo Testamento:

"Eis o sinal da Aliança que instituo entre mim e vós e todos os seres vivos que estão
convosco, para todas as gerações futuras: porei meu arco na nuvem e ele se tornará um
sinal da aliança entre mim e a terra. (...) Quando o arco estiver na nuvem, eu o verei
e me lembrarei da aliança eterna que há entre Deus e os seres vivos..." (Gn 9,12-
17).

"Socorreu Israel, seu servo, lembrado de sua misericórdia, conforme prometera a


nossos pais, ..." (...) "...; para fazer misericórdia com nossos pais, lembrado de sua
aliança sagrada, do juramento que fez ao nosso pai Abraão..." (Lc 1,54.72s).

"E ouvi o gemido dos filhos de Israel, aos quais os egípcios escravizavam, e me
lembrei da minha aliança. Portando, dirás aos filhos de Israel: Eu sou Iahweh, e vos
farei sair debaixo das cargas do Egito, vos libertarei da sua servidão... Tomar-vos-ei
por meu povo e serei vosso Deus" (Ex 6,5-7).

Iahweh "se lembrou" da Aliança e libertou os Filhos de Israel. Não é outro sentido que
Jesus quis dar quando usou a mesma terminologia na Instituição da Eucaristia:

"Porque eu recebi do Senhor o que também vos entreguei: que o Senhor Jesus, na noite
em que foi traído, tomou pão; e, havendo dado graças, o partiu e disse: Isto é o meu
corpo que é por vós; fazei isto em memória de mim. Semelhantemente também,
depois de cear, tomou o cálice, dizendo: Este cálice é a nova Aliança em meu sangue;
fazei isto, todas as vezes que o beberdes, em memória de mim. Porque todas as
vezes que comerdes deste pão e beberdes do cálice estareis anunciando a morte do
Senhor, até que ele venha" (1Cor 11,23-26).
Pode-se então compreender que o memorial da Eucaristia tem essas conotações, a
começar por aquela que reflete a libertação do Egito e, agora, a da escravidão do
pecado, como um ato de extremo amor do Filho Unigênito do Pai. Antes, com o
sangue "derramado" nos portais dos israelitas e, agora, com o "sangue derramado
em favor de muitos", "cumprindo" (Mt 5,17) assim a Nova Aliança. Esse memorial
é a repetição da Morte de Cristo na Cruz, pois "a proclama até que ele venha" (não
se pode proclamar o que não acontece) e "aquele que comer do pão ou beber
do cálice do Senhor indignamente, será réu do corpo e do sangue do Senhor", e
ainda "aquele que come e bebe sem discernir o Corpo, come e bebe a própria
condenação" (1Cor 11,26-28). Não se trata, portanto, de uma simples lembrança do
gesto de Jesus entregando-se à morte, "e morte de Cruz" (Flp 1,8), mas da presença
real do Corpo e do Sangue de Jesus, separados antecipadamente como na Cruz,
pela imolação. Também, "derramado" o sangue, tal como no cerimonial da Páscoa
Judaica; agora, porém, no ritual da Páscoa Cristã, no altar da Mesa da Cerimônia
Eucarística, tal como na Cruz, "em favor de muitos". Não fora assim seria impossível
ser "réu do corpo e do sangue do Senhor", ou "comer e beber a própria condenação".

O "fazei-o em memória de mim" e o "anunciais a morte do Senhor até que Ele


venha" formam uma unidade de expressão, consubstanciada no binômio "fazei-o /
anunciais". Traduz ela assim a ocorrência de profunda igualdade, anunciada pelo
próprio Jesus, com a Sua Morte antes da sua Crucifixão e até mesmo antecipando-
A, e ao mesmo tempo instituindo o sacerdócio cristão, para torná-LA "presente"
com a cerimônia "até que ele venha". Além do sentido escatológico, tal como
aconteceu na instituição da Páscoa Israelita, pelo memorial, a Ceia Eucarística
"exala um perfume de suave odor para Deus" (Ex 29,18).

Assim, pode-se até mesmo concluir que o uso do toque das trombetas também torna
"presente" o vínculo unitivo de Israel com Iahweh, "pelo memorial" da Aliança e os
seus compromissos de fidelidade, formando desde já "...um reino de sacerdotes e
uma nação santa" (Ex 19,6) com o objetivo da Conquista da Terra Prometida,
cumprindo a Promessa a Abrão:

"Ali Iahweh apareceu a Abrão e disse-lhe: 'Eu darei esta terra a tua descendência'"
(Gn 12,7).
NÚMEROS
Segunda Parte
Do Sinai às planícies de Moab
O nome pelo qual este "rolo" era denominado e conhecido em hebraico,
"bemidbhar" = "no deserto", é mais adequado ao seu conteúdo. Entretanto,
não se pode analisá-lo desligado das informações constantes do Êxodo, do
Levítico e mesmo do Deuteronômio. Sem isso, muitas vezes, limitar-se-á a um
desconexo amontoado de fatos e regulamentações, além de isolados do
contexto bíblico. Principalmente, ao se considerar que o apreciável tempo de
quarenta anos de peregrinação no deserto deveria propiciar uma narrativa
mais abrangente. Como ao tempo de sua composição não havia essa divisão
atual em livros, a Bíblia toda era um só "rolo". O uso no cotidiano forçou a se
repartir em cinco rolos, que se tornaram os cinco livros iniciais. Ocorre então
que, em virtude dessa divisão, muitas vezes, a um dos livros falta unidade de
assunto e abordagem, quando não se considera o complemento dos demais.
Por isso, somente quando se leva em conta a cultura dos Israelitas de então,
se consegue vislumbrar alguma ordem e compreender o seu sentido. Ideal
para a análise deste livro de Números é fazer uma divisão que facilite as
conclusões ou ofereça alguma ordem de temas, e favoreça uma compreensão
coerente com toda a Escritura. Não se trata de uma divisão lógica e
concatenada, mas apenas de uma ordem pedagógica, e mesmo geográfica,
apresentando-se aspectos narrativos e legislativos, que se oferecem aqui e
acolá, dispersos pelo tempo de peregrinação no deserto. Principalmente
algumas modificações e aperfeiçoamentos, ou novas instituições de estruturas
cultuais ou disciplinares, que mostram a predominância do objetivo religioso
da exposição.

O Povo dos Filhos de Israel tornou-se uma nação organizada com suas
próprias leis e costumes, codificados na Escritura Sagrada, a "Torah". Tem
ainda o culto a Iahweh, o seu Deus e Senhor, a quem serve, e com quem se
uniu por uma Aliança perene. O próprio Iahweh "habita entre eles", no
Santuário que mandou edificar, onde é mediado por um Sacerdócio por Ele
mesmo constituído, verdadeiro ponto de união do Israelita ao seu Deus.

5.9. DA PARTIDA ATÉ O DESERTO DE FARAN


Coesamente estruturados, após o sinal de Iahweh elevando a nuvem, partem
os Israelitas na disposição religiosa e estratégica dos acampamentos.
Mantêm-se em torno da Arca do Testemunho e do Tabernáculo, desarmado e
distribuído entre as tribos encarregadas do transporte do Santuário, cada uma
com a sua função e na ordem estabelecida:

"No segundo ano, no segundo mês, aos vinte do mês, a nuvem se elevou sobre
o tabernáculo da congregação. Partiram, pois, os filhos de Israel do deserto de
Sinai para as suas etapas, e a nuvem parou no deserto de Faran. Assim
iniciaram a primeira caminhada, à ordem de Iahweh por intermédio de
Moisés: partiu primeiro o estandarte do acampamento dos filhos de Judá (...)
o dos filhos de Issacar (...) e o dos filhos de Zabulon (...) Então o tabernáculo
foi desarmado, e os filhos de Gérson e os filhos de Merari partiram,
levando o tabernáculo. Depois partiu o estandarte do acampamento de Rúben
(...) o da tribo dos filhos de Simeão (...) o da tribo dos filhos de Gad (...) Então
partiram os caatitas, levando o santuário; e erigiu-se o tabernáculo antes da
chegada deles. Depois partiu o estandarte do acampamento dos filhos de
Efraim (...) o da tribo dos filhos de Manassés (...) e o da tribo dos filhos de
Benjamim (...) Partiu o estandarte do acampamento dos filhos de Dã, que era a
retaguarda de todos os acampamentos (...) o da tribo dos filhos de Aser (...) e o
da tribo dos filhos de Neftali (...) Tal era a ordem de partida dos filhos de
Israel segundo os seus exércitos, quando partiam" (Nm 10,11-28).

É bom aqui observar uma maneira de narrar muito usada nas Escrituras. Por
primeiro se apresenta uma espécie de título (p. ex.: "...no segundo ano, no
segundo mês, aos vinte do mês, a nuvem se alçou de sobre o tabernáculo da
congregação e os filhos de Israel partiram do deserto de Sinai por etapas...")
seguido imediatamente da conclusão do assunto ("...a nuvem parou no
deserto de Faran"). Depois é que se apresentam os detalhes intermediários e
se mencionam os locais Tabera, Cibrote-ataava, Haserot, por onde o povo
passou, antes do deserto de Faran ser atingido:

"Então o povo clamou a Moisés, e Moisés orou a Iahweh, e o fogo se apagou.


Pelo que se chamou aquele lugar Tabera, porquanto o fogo de Iahweh se
acendera entre eles (...) Quando a carne ainda estava entre os seus dentes, antes
que fosse mastigada, acendeu-se a ira de Iahweh contra o povo, e feriu Iahweh
o povo com uma praga muito grande. Pelo que se chamou aquele lugar
Cibrote-ataava, porquanto ali enterraram o povo que tivera a gula. De
Cibrote-ataava partiu o povo para Haserot; e demorou-se em Haserot"

"Assim Maria esteve fechada fora do acampamento por sete dias; e o povo não
partiu, enquanto Maria não se recolheu de novo. Mas depois o povo partiu de
Haserot, e acampou no deserto de Faran" (Nm 11,2-3.33-35 / Nm 12,15-16).

Outra forma peculiar de narrar é a do convite de Moisés ao seu cunhado


Hobab para lhes servir de guia (Nm 10,29-36). O fato então relatado somente
poderia ter ocorrido bem antes da partida do Sinai, e não aqui. Pois, ao
convocar o cunhado, o que Moisés buscava era a segurança de pessoa
experiente e conhecedora de uma região, para eles ainda inóspita. Isso só
teria lugar antes da viagem, durante os preparativos, e não no exato momento
da partida, ou após (Nm 10,11-28). Esse deslocamento permitiu a narração de
modo que em nada se comprometesse a ação protetora de Iahweh, seja com
a Arca da Aliança, seja com a Nuvem (Nm 10,33-34):

"Disse então Moisés a Hobab, filho de Raguel, o seu sogro madianita: Partimos
para aquele lugar que Iahweh disse: 'Eu vo-lo darei. Vem conosco, e te será
bom; porque Iahweh prometeu boas coisas acerca de Israel'. Respondeu ele:
'Não irei; antes irei à minha terra e à minha parentela'. Tornou-lhe Moisés:
'Ora, não nos deixes, eis que conheces os lugares onde podemos acampar no
deserto; serás os nossos olhos. Se, pois, vieres conosco, o bem que Iahweh
nos fizer, também nós faremos a ti'. Assim partiram do monte de Iahweh
caminho de três dias; e a Arca da Aliança de Iahweh ia adiante deles
buscando-lhes um lugar de descanso. A Nuvem de Iahweh ia por cima
deles durante o dia, quando partiam do acampamento" (Nm 10,29-34).

Após relutar, Hobab concorda e partem, com a "Arca da Aliança de Iahweh",


que "ia adiante deles buscando-lhes um lugar de descanso", e "a Nuvem de
Iahweh" que se movia "por cima deles durante o dia, quando partiam do
acampamento". Toda a operação manteria o caráter militar e religioso, com a
invocação sistemática de Iahweh, o único comandante:

"Quando a arca partia, dizia Moisés:

- Levanta-te, Iahweh, e dissipados sejam os teus inimigos, e fujam diante de ti


os que te odeiam.

E, quando ela pousava, dizia:

- Volta, Iahweh, para os muitos milhares de Israel" (Nm 10,35-36).

Assim, com a Arca da Aliança abrindo o caminho, protegidos pela Nuvem, e


com o soar repicado das Trombetas, sentia-se o comando e a presença do
próprio Iahweh, garantia plena da segurança e da vitória:

"...para as partidas dos acampamentos se tocará repicado, e quando se houver


de reunir a congregação, tocar-se-á sem repicar" (Nm 10,6b-7).

Destacam-se em seguida alguns incidentes que concorrem para uma tomada


de consciência da índole do povo nas condições que depara, e da situação
geral após a saída do Egito. Também, transparece a têmpera e o caráter de
Moisés, demonstrando grande equilíbrio e capacidade de liderança, em
oportunidades as mais adversas, e se conclui:

"...Moisés era homem muito manso, mais do que todos os homens que havia
sobre a terra" (Nm 12,3).

Ocorreu grande mudança nas condições de vida do povo em geral, que troca
uma situação definida, sedentária, a ela conformado e culturalmente aceita,
por outra nômade e incerta. A passagem abrupta para uma vida assim, com
as famílias, homens, mulheres e crianças, em terras estranhas, inóspitas e
desertas, o mais das vezes ao relento e no desconforto das barracas, não lhe
é fácil pela insegurança ensejada. Vários acontecimentos surgem desde a
saída do Egito, com um colorido novo, agigantado por desencontros de
proporções então graves. Além disso, mais graves ainda se tornam pelas
conseqüências que poder-lhe-iam advir ao se fixar na Terra Prometida:

"O povo se tornou queixoso, falando do que lhe era amargo aos ouvidos de
Iahweh; Iahweh ouviu e acendeu-se a sua ira. O fogo de Iahweh irrompeu entre
eles e devorou as extremidades do acampamento. Então o povo clamou a
Moisés, e Moisés orou a Iahweh, e o fogo se apagou. Pelo que se chamou
aquele lugar Tabera, porque o fogo de Iahweh se acendera entre eles" (Nm
11,1-3).

"O povo se tornou queixoso, falando do que lhe era amargo aos ouvidos de
Iahweh; Iahweh ouviu e acendeu-se a sua ira" - ofensivamente colocaram-se
contra Iahweh, que reage. Quando se lêem as Escrituras, não se pode perder
de vista a necessidade de se separar na narração a opinião do narrador e a
sua cultura, mescladas as mais das vezes até mesmo com uma presumida
vontade de Deus. Na mentalidade Israelita de então, tudo o que acontecia
tinha por origem e centro os desígnios de Iahweh, mesmo provocando os
piores fatos e até as piores calamidades, tal como acima narrado, de que
"Iahweh ouviu e acendeu-se a sua ira; o fogo de Iahweh irrompeu entre eles,
e devorou as extremidades do acampamento". Um exame mais atento vai
demonstrar que, ao lado de tudo isso, está embutido na narrativa o que
realmente aconteceu. Aqui também os fatos são narrados na forma já
mencionada de se completar numa frase o assunto abordado, antes das suas
minúcias em seguida:

"Ora, a turba que estava no meio deles teve grande cobiça; e os próprios
filhos de Israel também se puseram a chorar, e disseram: Quem nos dará
carne a comer? Lembramo-nos dos peixes que no Egito comíamos de
graça, e dos pepinos, dos melões, das verduras, das cebolas e dos alhos. Mas
agora a nossa vida definha; e nada vemos além deste maná. E era o maná
como a semente do coentro, e a sua aparência como a aparência de bdélio. O
povo espalhava-se e o colhia, e, triturando-o em moinhos ou pisando-o num
pilão, em panelas o cozia, e dele fazia bolos; e o seu sabor era o de pão
amassado com azeite. E, quando o orvalho descia de noite sobre o
acampamento, sobre ele descia também o maná" (Nm 11,4-9).

Destaca o narrador o início de uma sedição dos Israelitas que parece ter por
causa a escassez de alimentos, provocando a recordação do passado.
Dizendo que "lembramo-nos dos peixes que no Egito comíamos de graça, e
dos pepinos, dos melões, das verduras, das cebolas e dos alhos" - fazem uma
grosseira comparação entre a vida anterior e a que suportavam na
peregrinação. Estabelecem um paralelo entre uma falsificada fartura de então
com a escassez alimentar advinda, pelo que "...agora a nossa vida definha;
coisa nenhuma há senão este maná..." Ao trazerem à baila o Egito e
estarem já enfastiados com o Maná (Ex 16,9-35), bem como ao reclamar por
"quem lhes daria carne a comer", evidenciam a rejeição de Iahweh, do "pão
do céu" que lhes deu (Ex 16,4) e de Seu Poder em alimentá-los. Começa
então a se manifestar uma apostasia incipiente, e o início da tentação de
abandonar Iahweh e retornar à idolatria. Pela gravidade da atitude que
ameaçam tomar, demonstram a ocorrência de crise religiosa bem maior do
que a falta de alimentos por que afirmavam passar. Essa apostasia, à qual se
incorporam alguns israelitas, se inicia por incitamento dos pagãos ou
estranhos que acompanharam o povo quando saíram do Egito (Nm 11,4 / Ex
12,38). A receita que completa a descrição do Maná mostra a variedade de
modos que a rotina impunha, quando não dispunham de outra coisa para
comer. Só lhes restava, diziam, aquele semelhante "à semente do coentro, e
a sua aparência como a aparência de bdélio" que "o povo recolhia, e,
triturando-o em moinhos ou pisando-o num pilão, em panelas o cozia, e dele
fazia bolos; e o seu sabor era o de pão amassado com azeite". Não deixa de
ser uma0 situação muito contrastante com a grande quantidade de gado que
trouxeram:

"Subiu com eles uma inumerável multidão de toda sorte de gente, com
rebanhos e manadas, uma grande quantidade de gado" (Ex 12,38 / cfr. Nm
20,8c.11d).

Também recorriam à aquisição e ao aprovisionamento de bens quando


necessitavam (Dt 2,6 / Js 1,11), percebendo-se que o Maná não era o único
alimento de que dispunham. Era o socorro de Iahweh, fornecendo-lhes o "Pão
dos Anjos" enquanto peregrinavam, "apropriado a todos os gostos e se
amoldando ao desejo daquele que o comia" (Dt 8,3.16 / Js 5,10-12 / Sb 16,20-
21 / Sl 78,24-25 / Ne 9,21). Por ai se vê que a sua finalidade não era de
apenas e tão somente alimentar materialmente o Povo de Deus, mas detinha
a principal conotação de dar-lhe forças para superar as dificuldades inúmeras
da vida de então:

"...ele te humilhou, e te deixou ter fome, e te sustentou com o maná, que nem tu
nem teus pais conhecíeis; para te dar a entender que o homem não vive só
de pão, mas de tudo o que sai da boca de Iahweh, disso vive o homem"
"...que no deserto te alimentou com o maná, que teus pais não conheciam; a fim
de te humilhar e te provar, para nos teus últimos dias te fazer bem. E não digas
no teu coração: A minha força, e a fortaleza da minha mão me adquiriram estas
riquezas. Antes te lembrarás de Iahweh teu Deus, porque ele é o que te dá
força para adquirir a prosperidade; a fim de confirmar a sua aliança, que
jurou a teus pais, como hoje se vê" (Dt 8,3.16-18).

"...o homem não vive só de pão, mas de tudo o que sai da boca de
Deus..." com essas mesmas palavras Jesus repetirá essa tentação que os
Israelitas sofreram no deserto e a repelirá. Afasta Satanás que o desafiara a
transformar "as pedras em pão para se alimentar" (Mt 4,1-4), quando, da
mesma forma que eles, "teve fome" (Mt 4,2). Também, quando fez o milagre
da Multiplicação dos Pães, "para alimentar a multidão" (Jo 6,6), os seus
opositores afirmaram que prodígio maior fizera Moisés "ao alimentar todo um
povo no deserto durante quarenta anos". Jesus lhes mostra as diferenças

"Perguntaram-lhe, então: Que sinal, pois, fazes tu, para que o vejamos e
creiamos em ti? Que operas tu? Nossos pais comeram o maná no deserto,
como está escrito: Deu-lhes a comer pão do céu. Respondeu-lhes Jesus: Em
verdade, em verdade vos digo: Não foi Moisés que vos deu o pão do céu; mas
meu Pai vos dá o verdadeiro pão do céu. (...) Eu sou o pão da vida. Vossos pais
comeram o maná no deserto e morreram. Este é o pão que desce do céu,
para que o que dele comer não morra. Eu sou o pão vivo que desceu do céu;
se alguém comer deste pão, viverá para sempre; e o pão que eu darei pela vida
do mundo é a minha carne" (Jo 6,30-33.48-51).

Assustando-se com a sedição, Moisés cai em conflito e quase se desespera,


lamentando-se em face da situação irregular que ocorria. De um lado, o povo
de Israel não poderia agir como a multidão que o acompanhava, contra as
tradições Israelitas e a Aliança com Iahweh, em ostensiva contradição. E, por
outro lado, a dificuldade em contornar a situação, seja solucionando o
problema da fome ali ensejada, seja sozinho conseguindo manter a ordem, a
disciplina e a fidelidade à Aliança contra uma apostasia incipiente, seja
evitando a ira divina:

"Então Moisés ouviu o povo chorar nas suas famílias, cada qual à porta da sua
tenda e a ira de Iahweh inflamou-se fortemente. Moisés sentiu enorme
desgosto e disse a Iahweh: Por que fizeste mal a teu servo, e por que não achei
graça aos teus olhos, pois que me impuseste o encargo de todo este povo?
Porventura fui eu que concebi este povo? Dei-o à luz, para que me dissesses:
'Leva-o em teu regaço, como a ama leva a criança no colo, para a terra que com
juramento prometi a seus pais'? Onde encontrarei carne para dar a todo este
povo que chora diante de mim, dizendo: Dá-nos carne a comer. Sozinho não
posso conduzir todo este povo, porque me é pesado demais. Se tu me hás de
tratar assim, dá-me antes a morte, peço-te, se encontrei graça aos teus olhos;
para eu não ver a minha miséria" (Nm 11,10-15).

"Onde encontrarei carne para dar a todo este povo que chora diante de mim,
dizendo: 'Dá-nos carne a comer'" - Pela reclamação de Moisés a Iahweh,
pode-se afirmar, sem medo de errar, que a situação era grave e se alastrava.
A fome e a revolta eram grandes, necessitando-se de uma solução eficaz e
urgente, que Moisés confessa não estar ao seu alcance ao dizer "concebi eu
porventura este povo? Dei-o à luz, para que me dissesses: 'Leva-o em teu
regaço, como a ama leva a criança no colo...'" - Moisés não está desistindo de
sua missão, apenas entende que a obrigação de alimentar e apaziguar o povo
só poderia ser satisfeita por Iahweh, por estar muito além de sua aptidão.
Chega às raias do desespero, pois o problema escapa ao controle humano, já
que se trata de uma sedição contra o próprio Iahweh, e a solução apresentada
não o convence:

"Respondeu Moisés: "Seiscentos mil homens de pé é este povo no meio do


qual estou; e, tu tens dito: Dar-lhes-ei carne, e comerão um mês inteiro.
Matar-se-ão rebanhos e gados que lhes bastem? ou ajuntar-se-ão todos os
peixes do mar que lhes bastem?" (Nm 11,21-22).

"Pelo que replicou Iahweh a Moisés: Porventura ter-se-ia encurtado a mão de


Iahweh? Já verás se a minha palavra se cumpre ou não" (Nm 11,23). Iahweh
vem em socorro de Moisés, como lhe havia prometido (Ex 33,1-3.12-16), e
alimenta o povo. Jesus fará o mesmo por ocasião da Multiplicação dos Pães,
junto com os seus Apóstolos, alimentando a multidão:

"Então Jesus, levantando os olhos, e vendo que uma grande multidão vinha ter
com ele, disse a Filipe: Onde compraremos pão, para estes comerem? Mas
dizia isto para o experimentar; pois ele bem sabia o que ia fazer. Respondeu-
lhe Filipe: Duzentos denários de pão não lhes bastam, para que cada um
receba um pouco" (Jo 6,5-7)

"Jesus chamou os seus discípulos, e disse: Tenho compaixão da multidão,


porque já faz três dias que eles estão comigo, e não têm o que comer; e não
quero despedi-los em jejum, para que não desfaleçam no caminho. Disseram-
lhe os discípulos: Donde nos viriam num deserto tantos pães, para saciar
tamanha multidão?" (Mt 15,32-33)

"Naqueles dias, havendo de novo uma grande multidão, e não tendo o que
comer, chamou Jesus os discípulos e disse-lhes: Tenho compaixão da
multidão, porque já faz três dias que eles estão comigo, e não têm o que
comer. Se eu os mandar em jejum para suas casas, desfalecerão no caminho; e
alguns deles vieram de longe. E seus discípulos lhe responderam: Donde
poderá alguém satisfazê-los de pão aqui no deserto?" (Mc 8,1-4).

Observe-se que em muito se assemelha à frase de Moisés, traduzindo


situações idênticas substancialmente:

"Duzentos denários de pão não lhes bastam, para que cada um receba um
pouco" (Jo 6,7)

"Donde nos viriam num deserto tantos pães, para saciar tamanha
multidão?" (Mt 15,33)

Matar-se-á para eles quantidade de ovelhas e bois para que lhes bastem?
Se se ajuntassem para eles todos os peixes do mar dariam para saciá-los?"
(Nm 11,22).

Para solucionar o problema pessoal de Moisés, Iahweh oferece duas


alternativas: - a primeira, com a nomeação dos setenta anciãos que lhe
seriam assessores e subordinados, atingindo até mesmo alguns que não
estavam presentes. Receberam a investidura do espírito que havia em
Moisés, sem que lhe ficasse reduzido, o que caracteriza a dependência deles
no exercício das funções auxiliares. Esse ato de profetizar tem um sentido
bem diverso do que se conhece normalmente. Tal como em outros locais
(1Sm 10,10 / 19,20.23.24), onde se fala em um estado de "delírio", se entende
aqui como o entusiasmo e empolgação que manifestaram possuir naquele
momento apenas. O espírito profético que pousou sobre eles é o de Moisés,
não outro. Dessa data em diante os anciãos passaram a assessorar Moisés
na chefia, motivo pelo qual o narrador registra, com referência ao ato de
"profetizar", que "nunca mais o fizeram":

"Sozinho não posso conduzir todo este povo, é pesado demais para mim. (...)
Disse então Iahweh a Moisés: 'Reúne setenta anciãos de Israel, que sabes serem
os anciãos e mestres do povo; e os trarás perante a tenda da reunião...'. (...)
Saiu, pois, Moisés, e relatou ao povo as palavras de Iahweh; e reuniu setenta
anciãos do povo e os colocou ao redor da tenda. Iahweh desceu na nuvem e lhe
falou. Tomou do espírito que repousava sobre ele e o colocou nos setenta
anciãos. Quando o espírito repousou sobre eles, profetizaram, porém, nunca
mais o fizeram. Mas no acampamento ficaram dois homens; chamava-se um
Eldad, e o outro Medad; e repousou sobre eles o espírito, porque estavam entre
os inscritos, ainda que não tenham ido à tenda; e profetizavam também. Correu
um jovem e o anunciou a Moisés... Então Josué, filho de Num, que servia a
Moisés desde a juventude, tomou a palavra e disse: "Moisés, meu senhor,
proíbe-os". Moisés, porém, lhe disse: "Tens ciúmes por minha causa? Oxalá
que todo o povo de Iahweh profetizasse, que Iahweh pusesse o seu espírito
sobre eles!" Depois Moisés se recolheu ao acampamento, ele e os anciãos de
Israel" (Nm 11,14-17.24-30).

Numa segunda alternativa, para solucionar o problema alimentar, Iahweh


envia as codornizes para saciar o povo, sedento de carne para comer. Deve
ter ocorrido algum outro fato mais grave que o relacionado com a alimentação
causando assim uma crise de tal gravidade que suscitasse tamanha sedição
ou revolta. A gravidade é de tal monta que o povo chega a vacilar na fé em
Iahweh e é atingido por um mal que se toma como um castigo advindo.
Estava, além da fé comprometida por uma apostasia, com muito mais gula do
que fome, demonstrada pelo descontrole e voracidade que o atinge, pelo
modo como se alimenta, pela quantidade que se lhe fornece e pelo tempo
durante o qual recebe o alimento:

"E dirás ao povo: Santificai-vos para amanhã, e comereis carne; porque


chorastes aos ouvidos de Iahweh, dizendo: Quem nos dará carne a comer? pois
íamos bem no Egito. Pelo que Iahweh vos dará carne, e comereis. Não
comereis um dia, nem dois dias, nem cinco dias, nem dez dias, nem vinte
dias; mas um mês inteiro, até vos sair pelas narinas, até que se vos cause
náuseas; porque rejeitastes Iahweh que está no meio de vós e chorastes
diante dele dizendo: "Por que saímos do Egito?" (...) Soprou, então, um
vento da parte de Iahweh e, do lado do mar, trouxe codornizes que deixou cair
junto ao acampamento... Então o povo, levantando-se, colheu as codornizes
por todo aquele dia e toda aquela noite, e por todo o dia seguinte; (...)
Quando a carne ainda estava entre os seus dentes, antes que fosse mastigada,
acendeu-se a ira de Iahweh contra o povo, e feriu Iahweh ao povo com uma
praga mui grande. Pelo que se chamou aquele lugar Cibrote-ataava, porque
ali foram enterrados os que se entregaram à voracidade. De Cibrote-ataava
partiu o povo para Haserot; e acampou em Haserot" (Nm 11,18-20.31-35).

Ao que se deduz, o povo, encabeçado, estimulado e inflamado pela multidão


que o acompanhava, foi tentado a abandonar tudo e voltar ao Egito.
Revoltara-se e quisera retroceder, mesmo para se submeter à servidão, em
face das amarguras do deserto e já cansados de comer o Maná. Ocorreu uma
sedição de graves proporções, por gula e cobiça, atraindo ainda os próprios
Israelitas, que se esqueceram dos compromissos da Aliança e os
desprezaram. Então, "...porque rejeitastes Iahweh que está no meio de vós
e chorastes diante dele dizendo: "Por que saímos do Egito?" - praticaram
verdadeira apostasia. Iahweh mandou-lhes as codornizes em quantidade:
"Iahweh vos dará carne, e comereis; não comereis um dia, nem dois dias,
nem cinco dias, nem dez dias, nem vinte dias; mas um mês inteiro, até vos
sair pelas narinas, até que se vos cause náuseas" e "...trouxe codornizes
que deixou cair em redor do acampamento numa extensão de quase
caminho de um dia de um e de outro lado, e cerca de dois côvados da
terra". Porém, junto com elas, como castigo de seu desprezo pelos
compromissos da Aliança, "feriu Iahweh ao povo com uma praga mui
grande". Esse fato poderia ser interpretado como uma opinião forçada do
narrador, não fora a grande quantidade de codornizes e a praga que as
acompanhara, confirmando-se assim a previsão de Moisés. Deixa de ser uma
narrativa eivada de acondicionamento cultural para se tornar um fato bem
significativo da "presença de Iahweh habitando entre eles", de maneira
pedagógica, como sói acontecer com os "castigos" de Iahweh. Por caminhos
impenetráveis para a compreensão humana, Iahweh amadurecia o Povo
Israelita no deserto, preparando-o para a sua Missão na História.

Esse acontecimento oferece ocasião para a narrativa de outro episódio que


mostra a têmpera de Moisés. É a cena da disputa instaurada pelos seus
irmãos Maria e Aarão quanto ao seu exclusivo dom profético, com o qual
pretendem se identificar. Em virtude da previsão certa de Moisés quanto às
codornizes em quantidade nunca vista, mas suficiente para alimentar a
multidão, são atacados de grande ira e se investem contra ele. Apresentam
como motivo uma pretensa infidelidade de Moisés por ter contraído
casamento com "uma cusita", o que seria um sério impedimento (Gn 24,3s;
28,1s; Jz 14,1-3; Tb 4,12):

"Ora, falaram Maria e Aarão contra Moisés por causa da mulher cuchita que
este tomara; porquanto tinha tomado uma mulher cuchita" (Nm 12,1)

Não é assim porém, eis que a mulher de Moisés, aqui qualificada de cuchita
ou cusita, era descendente de Madiã (Ex 2,18), filho de Abraão com Cetura
(Gn 25,1-2). Sendo da mesma origem, não ocorria o motivo para o pretenso
impedimento. Tudo foi ocasionado mais por ciúme ou despeito ou inveja, por
causa de sua estreita ligação com Iahweh, tão bem comprovada e tal como se
nota das próprias palavras que pronunciam e da resposta que tiveram:

"E disseram: Porventura falou Iahweh somente por Moisés? Não falou
também por nós? E Iahweh os ouviu (...) E logo Iahweh disse a Moisés, a
Aarão e a Maria: Saí vós três à tenda da reunião. E saíram eles três. Então
Iahweh desceu em uma coluna de nuvem, e se pôs à porta da tenda; depois
chamou a Aarão e a Maria, e os dois acudiram. Então disse: Ouvi agora as
minhas palavras: se entre vós houver profeta, eu, Iahweh, a ele me farei
conhecer em visão, em sonhos falarei com ele. Mas não é assim com o meu
servo Moisés, que é fiel em toda a minha casa; boca a boca falo com ele,
claramente e não em enigmas; pois ele contempla a forma de Iahweh. Por
que, pois, não temestes falar contra o meu servo, contra Moisés?" (Nm 12,2.4-
8).

Assim, pela ordem de intenções do narrador, descreve-se o caráter, o


temperamento e os dons de Moisés, apresentando-se os vários episódios em
que mais se manifestaram. Aqui se detém em mostrar a sua intimidade com
Iahweh e o privilégio de que gozava de Lhe "falar face a face". Foi assim
apontado como portador da "oração contemplativa", diferentemente dos
demais "profetas", que recebiam por sonhos ou visões e os transmitiam, como
reconhece a Igreja:

"'O Senhor falava com Moisés frente a frente, como quem fala com um amigo"
(Ex 33,11). A oração de Moisés é o tipo da oração contemplativa, graças à
qual o servo de Deus se mantém fiel à sua missão. Moisés "conversa" muitas
vezes e demoradamente com Iahweh, subindo à montanha para O ouvir e Lhe
dirigir súplicas, descendo depois até junto do povo para lhe repetir as palavras
do seu Deus e o guiar. "O mais fiel em toda a minha casa, falo-lhe boca a boca,
claramente" (Nm 12,7-8), porque "Moisés era homem muito humilde, o mais
humilde de todos os homens sobre a face da terra" (Nm 12,3)" (Catecismo da
Igreja Católica n.º 2576; v. tb. ns.º 2575 e 2577, negritos propositais).

"O mais fiel em toda a minha casa, falo-lhe boca a boca, claramente" -
Moisés, inflexível e coerente na sua fé, recebia o que deveria transmitir de
maneira direta, certa, determinada e muito íntima. Essa intimidade era a ponto
de antecipar acontecimentos as mais das vezes comuns, mas de forma
incomum, tal como esse das codornizes. É um fenômeno que sói ocorrer na
região, se bem que imprevisivelmente e nunca em igual volume ao de então
nem com as conseqüências advindas da apostasia (Nm 11,18-20.22-23.31-
33). Então, "...o que colheu menos, colheu dez ômeres..." (Nm 11,32) =
cerca de 3640 litros, uma quantidade bem discutível mesmo para uma família
inteira, e ainda "...deixou cair junto ao acampamento quase a extensão do
caminho de um dia, de um e de outro lado, em volta do arraial, com a
altura de cerca de dois côvados da terra..." (Nm 11,31) - parecendo
medidas muito exageradas e bem maiores do que se conhece. Não é de bom
alvitre aqui discutir a possibilidade ou não de ter isso acontecido. Melhor é
acatar a intenção do narrador em assim destacar a quantidade, enorme e
suficiente, enviada por Iahweh em resposta à sedição, conforme ansiava
Moisés. Isso excita a ira dos irmãos e os conduz também à revolta. Então,
voltando-se ao remate da disputa fraterna, é de se observar que somente
Maria foi alvo do castigo de Iahweh, por não ter respeitado o Seu Servo: "Por
que não temestes falar contra o meu servo, contra Moisés?":

"Acendeu-se a ira de Iahweh contra eles, ele se retirou e também a nuvem


se retirou de sobre a tenda. E Maria se tornara leprosa, branca como a neve,
voltou-se Aarão para Maria e viu que estava leprosa. Pelo que Aarão disse a
Moisés: Ah, meu senhor! Rogo-te, não ponhas sobre nós este pecado,
porque procedemos loucamente e pecamos. Não seja ela como um aborto
que, ao sair do seio de sua mãe, já tenha a sua carne meio consumida. Clamou
Moisés a Iahweh, dizendo: "Ó Deus, rogo-te que a cures". Respondeu Iahweh a
Moisés: "Se seu pai lhe tivesse cuspido na cara não seria envergonhada por sete
dias? Esteja por sete dias fora do arraial, e depois seja admitida de novo".
Assim Maria esteve fora do arraial por sete dias; e o povo não partiu, enquanto
Maria não retornou" (Nm 12,9-15).

"Acendeu-se a ira de Iahweh contra eles, ele se retirou e também a


nuvem se retirou de sobre a tenda" - tão logo Iahweh se retira, as
conseqüências da sua ausência se manifestam. Onde Iahweh "permanece"
o mal não se "manifesta". Pelo fato de só Maria ter sido punida, é de se
julgar que Aarão foi perdoado, seja por seu arrependimento (Nm 12,11), unido
ao fato de sua Unção Sacerdotal, seja porque o mal a ela infligido também vai
atingi-lo, pela dor mútua que provoca. Além disso não se pode deixar de
reconhecer a intercessão de Moisés junto de Iahweh, ao mesmo tempo em
que se realça o seu temperamento. É tal o seu equilíbrio na fé que, apesar de
injuriado pela irmã, acata o pedido do irmão, também ofensor, e intercede por
ela. Quando se goza da intimidade de Deus, muito se ama o outro. Então
Iahweh o atende, curando-a da lepra, doença incurável que já lhe ameaçava
consumir a carne (Nm 12,12). Porém, fica sujeita ao regime de purificação,
ficando sete dias fora do acampamento (Lv 13,5; 14,8), caracterizando-se
assim o retorno e a "presença de Iahweh habitando entre eles", em
atendimento a Moisés.

5.10. OS BATEDORES E O DESPREPARO DOS ISRAELITAS

É um dos quadros mais comoventes e frustrantes do Antigo Testamento, pois


o Povo dos Filhos de Israel falha na primeira tentativa de cumprimento de sua
missão. Fundamentado na Aliança com Iahweh, ratificada no Sinai, tendo uma
Lei e um Sacerdócio, organizadas as suas fileiras militares deveria, assim
consolidado, penetrar e conquistar a Terra Prometida. Para o grupo de
Israelitas se tornar um povo, só lhe faltava conquistar e se impor em seus
limites, ter o seu próprio território. Organiza então um grupo de batedores para
vistoriar a Terra de Canaã, conforme pediu a Moisés (Dt 1,22) que, após sua
consulta habitual a Iahweh, o orienta:

"Então disse Iahweh a Moisés: 'Envia homens que explorem a terra de Canaã,
que darei aos filhos de Israel. De cada tribo patriarcal enviarás um homem, que
seja príncipe entre eles.' Moisés, pois, enviou-os do deserto de Faran, segundo
a ordem de Iahweh e eram todos eles príncipes dentre os filhos de Israel. E
estes são os seus nomes: (... um de cada tribo)... A Oséias, filho de Num,
Moisés chamou Josué" (Nm 13,1-16) / "Iahweh teu Deus te entregou esta
terra; sobe, apodera-te dela, como te falou Iahweh, Deus de teus pais. Não
temas, e não te assustes." Então todos vós vos chegastes a mim, e dissestes:
"Mandemos homens adiante de nós, para que nos explorem a terra, nos
ensinem o caminho pelo qual devemos subir e as cidades a que devemos ir".
Isto me pareceu bem; de modo que dentre vós tomei doze homens, de cada
tribo um homem. Partiram e subindo a montanha chegaram até o vale de Escol
explorando-o" (Dt 1,21-24).

Conjugando-se as duas narrativas, vê-se que o povo tinha pleno


conhecimento, participava do que acontecia e a tudo aprovava
conscientemente. Não era apenas para se cumprirem cegamente ordens
recebidas, nem se tratava de uma vistoria à toa para marcar presença, ou da
qual só Iahweh tivesse conhecimento. Ao contrário, foi um ato público,
racional, objetivo e com fins especiais à vista, tal como trabalha um povo que
tenha desígnios comuns, práticos, ordenados e determinados. Constituiu-se,
por causa disso, um grupo de batedores composto de um elemento de
destaque, um líder de cada tribo. Josué foi nomeado uma espécie de primeiro
assessor de Moisés, como se deduz do ato bíblico de lhe trocar o nome de
Oséias (Nm 3,16 / Is 43,1d). A meta principal consistia em um exame bem
abrangente de tudo o que pudesse servir de base para uma penetração
organizada, numa verdadeira estratégia militar:

"Enviou-os, pois, Moisés a espiar a terra de Canaã, e disse-lhes: "Subi por aqui
para o Neguebe, e penetrai nas montanhas; e vede a terra, que tal é; e o povo
que nela habita, se é forte ou fraco, se pouco ou muito; que tal é a terra em
que habita, se boa ou má; que tais são as cidades em que habita, se campos
ou fortalezas; e que tal é a terra, se fértil ou estéril; se nela há matas ou
não. Sede corajosos e trazei produtos da terra." Ora, a estação era a das uvas
temporãs. Assim subiram, e espiaram a terra desde o deserto de Sin, até Roob,
na Entrada de Emat. (...) Depois chegaram ao Vale de Escol onde cortaram um
ramo com um cacho de uvas que dois homens transportaram sobre uma vara;
trouxeram também romãs e figos. Chamou-se aquele lugar o Vale de Escol, por
causa do cacho que dali cortaram os filhos de Israel" (Nm 13,17-24).

A expedição durou quarenta dias, em que foi vistoriada toda a terra, e a


expressão material de sua fertilidade vem claramente amostrada pelo
narrador como "...um ramo de vide com um cacho de uvas que dois homens
levaram sobre uma vara, levando também romãs e figos", concluindo os
expedicionários que "realmente nela mana leite e mel...." (Nm 13,25-27). Esta
expressão bíblica "terra onde mana o leite e o mel" tem o significado da
fertilidade de que a sedimentação da vinha lhe é "figura", anunciando uma
boa colheita, colheita de vinho em abundância. Daí a vinha tornar-se-á o
símbolo da nação Israelita, pela sua Missão de "um reino de sacerdotes e
uma nação santa", "povo primogênito", fonte e primícias da Redenção do
Homem, tal como o Salmista e o Profeta exprimem:

"Trouxeste do Egito uma vinha; expulsaste as nações e a plantaste.


Preparaste-lhe o terreno, ela deitou profundas raízes, e encheu a terra. Os
montes cobriram-se com a sua sombra, e os cedros de Deus com os seus ramos.
(...) Ó Deus dos exércitos, volta-te do céu e vê, e cuida desta vinha, da
vinha que a tua destra plantou, e do sarmento que fortificaste para ti" [Sl
80(79),9-15]

"Ora, seja-me permitido cantar para o meu bem amado uma canção de amor a
respeito da sua vinha. O meu amado possuía uma vinha num outeiro
fertilíssimo. E, revolvendo-a com enxada e limpando-a das pedras, plantou-a de
excelentes vides, e edificou no meio dela uma torre, e também construiu nela
um lagar; e esperava que desse uvas, mas deu uvas bravas. (...) Pois a vinha do
Senhor dos exércitos é a casa de Israel, e os homens de Judá são a planta
das suas delícias; e esperou que exercessem juízo, mas eis aqui derramamento
de sangue; justiça, e eis aqui clamor"

"Naquele dia haverá uma vinha deliciosa; cantai a seu respeito. Eu, Iahweh,
a guardo, e a cada momento a regarei; para que ninguém lhe faça dano, de noite
e de dia a guardarei. (...) Dias virão em que Jacó lançará raízes; Israel
florescerá e brotará; e eles encherão de fruto a face do mundo" (Is 5,1.7 / Is
27,2-6).

Por sua vez, Jesus Cristo usará essa imagem da Vinha várias vezes, para
caracterizar a universalidade da salvação e trazer sua referência ao Reino de
Deus que se inaugurava [(Mt 20,1-8; 21,28-31); (Mt 26,29 e paralelos)]; além
de instituir a Eucaristia com o "fruto da vinha" [e o "Pão" (Lc 22,18.19-20)]:

"Ouvi ainda outra parábola: Havia um homem, proprietário, que plantou uma
vinha, cercou-a com uma sebe, cavou nela um lagar, e edificou uma torre;
depois arrendou-a a uns lavradores e ausentou-se do país. E quando chegou o
tempo dos frutos, en