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Há um amplo debate dentro do marxismo sobre o problema do binômio base-

superestrutura. Não raro, acusados de “economicistas”, intelectuais marxistas se propuseram a


criticar e reelaborar a leitura hegemônica das décadas de 1950 e 1960 sobre a base enquanto
estrutura social estática que dirigiria o ordenamento e a configuração das estruturas sociais,
produzindo resultados que seriam diretamente influenciados e pré-determinados de acordo
com o desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção. O próprio Marx,
entretanto, em sua introdução aos Grundrisse, aponta para a impossibilidade de se aplicar um
determinismo mecanicista (a saber, econômico) quando faz a análise crítica do método da
economia política: “Seria impraticável e falso, portanto, deixar as categoriais econômicas
sucederem-se umas às outras na sequência em que foram determinantes historicamente. A sua
ordem é determinada, ao contrário, pela relação que têm entre si na moderna sociedade
burguesa, e que é exatamente o inverso do que aparece como sua ordem natural ou da ordem
que corresponde ao desenvolvimento histórico. Não se trata da relação que as relações
econômicas assumem historicamente na sucessão de diferentes formas de sociedade. [...]
Trata-se, ao contrário, de sua estruturação no interior da sociedade burguesa.”1

Ainda na seara crítica sobre a metáfora do “espelho”, um dos autores a propor uma
nova teoria da cultura e dos estudos culturais sob o prisma marxista foi Raymond Williams
(1921-1988). Em um ensaio publicado em 1973, Williams reconhece que a visão
predominante nas análises marxistas sobre a cultura durante segunda metade do século XX foi
“[...] a noção de prefiguração, previsão ou controle [...]”,2 não eliminando, inclusive, o papel
de teóricos renomados que se dedicaram a refletir sobre as correlações entre cultura, literatura
e sociedade na reprodução (consciente ou não) desses sentidos, como no caso do filósofo
húngaro György Lukács (1885-1971) e sua defesa do “realismo” literário. Para Williams, uma
saída profícua seria a ressignificação em termos teórico-empíricos sobre os conceitos de
“superestrutura” e “base” em Marx, atentando, sobretudo, para o fato de que a última, no
próprio bojo da teoria marxiana, faz menção a “[...] um processo, e não de um estado. E não
podemos atribuir a esse processo algumas propriedades fixas a serem posteriormente
traduzidas aos processos variáveis da superestrutura.”.3

Para o autor galês, isso significava uma profunda alteração nos significados até então
atribuídos a essas duas categorias de análise, pois, seria imperativo “[...] reavaliar a
1
MARX, Karl. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858. Esboços da crítica economia política.
[Trad.: Mário Duayer; Nélio Schneider]. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011, p. 60.
2
WILLIAMS, Raymond. Base e superestrutura na teoria da cultura marxista. [1973]. In: __________. Cultura e
materialismo. [1980]. [Trad.: André Glaser]. São Paulo: Editora Unesp, 2011, p. 44.
3
Ibid., p. 47.
‘determinação’ para a fixação de limites e o exercício de pressões, afastando-a de um
conteúdo previsto, prefigurado e controlado. Temos de reavaliar a ‘superestrutura’ em direção
a uma gama de práticas culturais relacionadas, afastando-a de um conteúdo refletido,
reproduzido ou especificamente dependente. E, fundamentalmente, temos de reavaliar a
‘base’, afastando-a da noção de uma abstração econômica e tecnológica fixa e aproximando-a
de atividades específicas de homens em relações sociais e econômicas reais, atividades
específicas de homens e relações sociais e econômicas reais, atividades que contêm
contradições e variações fundamentais e, portanto, encontram-se sempre num estado
dinâmico.”4

Pouco mais de duas décadas após a publicação do ensaio de Williams, a cientista


política e historiadora marxista Ellen Wood (1942-2016), retoma a discussão, apontando o
caráter esparso da metáfora “base/superestrutura” nos escritos de Marx, ressaltando ainda a
“colaboração” de Engels por essa confusão teórica, devido ao fato deste utilizar em seus
escritos uma “[...] linguagem que sugeria a compartimentação de esferas ou ‘níveis’ fechados
– econômicos, políticos e ideológicos –, cujas relações que mantinham entre si eram
externas.”,5 o que assumiria suas facetas mais reducionistas com a ortodoxia stalinista e sua
leitura do marxismo-leninismo. Wood engendra sua reflexão acerca da metáfora supracitada a
partir obra de Louis Althusser (1918-1990) e de Edward P. Thompson (1924-1993),
criticando de maneira voraz o estruturalismo althusseriano e a sua apresentação de “falsas
alternativas” para a solução do problema do economicismo vulgar, bem como analisa o
movimento pendular de Thompson dentro do marxismo britânico e suas reflexões sobre o
dilema teórico colocado.

Wood comenta que “[...] para quem considera a ‘base’ como alguma coisa ‘material’
por oposição a ‘social’ – o que geralmente significa que a base consiste nas forças técnicas de
produção e que a história é um determinismo tecnológico [...].”, 6 chegando a concluir que a
originalidade do pensamento de Thompson e sua contribuição para repensarmos o dilema
“base/superestrutura” consiste em notar “[...] o fato de a distinção analítica entre os vários
‘níveis’ ou ‘casos’ poder encorajar a ideia de que eles ‘existem substantivamente como

4
Ibid., p. 47, grifo meu. Sobre Lukács, o realismo e os estudos literários do filósofo, ver LUKÁCS, György.
Marxismo e teoria da literatura. [Trad.: Carlos Nelson Coutinho]. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
5
WOOD, Ellen Meiksins. Democracia contra capitalismo: a renovação do materialismo histórico. [1995].
[Trad.: Paulo Cezar Castanheira]. São Paulo: Boitempo, 2003, p. 51.
6
Ibid., p. 66.
objetos separados, fisicamente divisíveis um dos outros no mundo real’, criando uma
confusão entre ‘procedimentos epistemológicos’ e ‘categorias ontológicas’.”7

Se, no limite, o medievalismo é a recriação e a construção de uma ideia e


um discurso sobre Idade Média produzido por seus estudiosos, críticos, entusiastas
e demais receptores, a medievalística nada mais seria do que um tipo acadêmico de
medievalismo, distinguível ou não dos “medievalismos populares” pelo conjunto de
técnicas características de seu campo. Desmontam-se aí os paradigmas centrais da
ciência histórica: o mundo real é reduzido à discursividade, os sujeitos históricos
atomizados e a própria validade da disciplina História colocada em xeque. Se esta
perspectiva desconstrucionista sobre o conhecimento histórico tem por base o
discurso, ou seja, um sistema de significados e acontecimentos linguísticos,
determinados por signos verbais manifestados por uma ordem simbólica e que
obedecem a certas regras de produção, circulação e distribuição de conceitos e
objetos (FOUCAULT, 2014), uma consequência importante para o paradigma pós-
moderno (CARDOSO, 1997) é a “proibição de hierarquizar normativa ou
epistemologicamente as diferentes produções dos historiadores, uma vez que, para
eles, com efeito, não há obras históricas que possam ser mais ‘verdadeiras’ ou
ontologicamente plenas do que quaisquer outras” (CARDOSO, 2012, p. 35). Desse
modo, se aplicarmos o regime dos discursos (enquanto redes categoriais) à própria
medievalística, tudo então o que nós historiadoras e historiadores do medievo
fazemos é uma mera tradução do passado a partir de um signo narrativo despido de
qualquer objetividade ou pressuposto teórico-metodológico que se reconheça
enquanto científico. Ora, se o fazer historiográfico é apenas “uma estrutura verbal na
forma de discurso narrativo em prosa que pretende ser um modelo, ou ícone de
estruturas de processos passados no interesse de explicar o que eram
representando-os” (WHITE, 1992, p. 22), nosso trabalho enquanto medievalistas
seria análogo ao de um romancista, pois embora agrilhoadas e agrilhoados às
técnicas de pesquisa, usaríamos da mesma subjetividade individual que um escritor
de contos ou novelas, potencializados devido ao distanciamento espaço-temporal de
nossas realidades com aquilo que compreendemos por medievo. Na base desse
relativismo absoluto, que apregoa um caráter moral de “tolerância” frente ao
conhecimento histórico, o que os pós-modernos eclipsam – de modo até ingênuo – é

7
Ibid., p. 72.
que se tomarmos o texto pelo texto, por exemplo, ou seja, apenas em sua própria
dimensão interna, reduziríamos sua existência e sobrevida apenas à época do qual
é produto, correndo o risco de obliterar qualquer dimensão referencial externa e
suas condições reais e materiais de produção. Portanto, devemos ter em mente que
a busca pela objetividade e a cientificidade da História está no entendimento final
que “[...] estudar a realidade como texto deveria se somar a advertência de que
texto nenhum pode ser entendido sem uma referência a realidades
extratextuais.” (GINZBURG, 2011, p. 349, grifos meus).

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