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EDIÇÃO 02 - SET/OUT 2020

O CARISMA CRIANÇAS DE
DAS RUAS TERREIRO
Entenda melhor a tradi- A vivência de
ção de distribuir doces crianças na religião
nas ruas no dia de São ajuda no combate
Cosme e Damião à intolerância

Crianças
de Oxalá
EXPEDIENTE

GABRIEL SORRENTINO
Diretor-geral CRIANÇAS 04 UMBANDA
EU CURTO 40 DENÚNCIA DE
INTOLERÂNCIA

DE OXALÁ
NAÍSE DOMINGUES
Diretora de conteúdo

DAVID BARBOSA
Repórter (editorial)
Eu nasci em uma família cristã. Por parte de pai, todos católicos -
06 DOCES
PROMESSAS 44 TERREIRO E
SOCIEDADE
LAURA BLESSMANN
com uma imensa devoção a São Sebastião. Por parte de mãe, todos
Repórter (conteúdo de marca)

46
evangélicos. Tentaram com que eu fizesse catequese algumas

QUANDO IDADE
vezes. Precisei, inclusive, frequentar a escolinha dominical no Centro
FLÁVIA PROENÇA

É SÓ UM NÚMERO
Diretora de marketing Evangelístico Internacional, em Niterói, na Região Metropolitana do Rio,
durante anos. Contudo, eu sentia desde pequeno que aquelas fés não
FABIO MATEUS eram para mim. Me sentia incompleto. Mais ainda: me sentia deslocado.
Diretor de arte

09
Aos oito anos de idade, pisei pela primeira vez em um terreiro. Quando
VANESSA ALVES minha madrinha de batismo na Igreja Católica me convidou para PENSAMENTOS
Designer sênior ir “a uma festa de crianças”, achei que fôssemos a um aniversário
comum. Realmente, balões de encher, doces e guaraná não faltaram.
DE ABIAN
TATIANE FALHEIRO Confesso, por causa da minha criação cristã, me assustei com as
Diretora comercial

50
imagens reunidas em um altar e ao ver todos os presentes vestidos de

10 BABA
branco. Durou pouco. Antes mesmo da gira começar já me sentia em
FÁRIDA MARTINS
casa. Olhava com atenção as imagens de santos católicos, caboclos, LUGAR DE CRIANÇA
Executiva de vendas
boiadeiros e pretos-velhos. “Macumba é algo ruim”, frase que ouvia RESPONDE É NO TERREIRO
constantemente em minhas idas à igreja, ecoava na minha cabeça.
BRENO LOESER
Como aquele lugar totalmente acolhedor poderia danificar a alma de
Ilustrador

13
alguém? E não danifica. Pelo contrário. Alimenta. E o grande divisor de
águas, para mim, foi o primeiro toque de atabaque. Ali era o meu lugar.
HIBISCO
MARCO ALCÂNTARA
Fotógrafo Batia palmas, cantava, dançava - e nem ao menos sabia realmente o
que estava acontecendo ali.
RONALDO GOMEZ
Diretor audiovisual Desde então, nunca mais passei um mês sem frequentar o Centro Espírita

14 54
Estrela do Congo, em Itaboraí, também na Região Metropolitana do Rio.
Acompanhe: Ali descobri o que era orixá. O que ele simboliza, o que ele significa e o
CRIANÇAS RECONEXÃO COM
@kobaexu
que ele representa. Pensando na importância que a vivência de terreiro
teve para o “eu-criança” e para minha criação, é com muita alegria que
DE OXALÁ A NATUREZA
te apresento a segunda edição da revista KOBÁ. Nas próximas páginas,

56 YORUBÁ
você verá conteúdos focados em infância e afrorreligiosidade: seja pela

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Assine gratuitamente a revista:

O CARISMA
www.kobaexu.com presença dos pequenos nas casa de santo, seja pela atuação dos erês,
seja pelas lendas e simbolismos de Ibeji.
A revista KOBÁ é uma publicação on-line DAS RUAS
e gratuita, venda totalmente proibida. Juntos, roguemos às crianças de Oxalá que nos auxiliem na luta contra
a intolerância religiosa.

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Envie sua pauta:

CONTOS
koba.pauta@gmail.com

Anuncie na revista:
koba.comercial@gmail.com Gabriel Sorrentino Diretor-geral
DE ORIXÁ

02 SETEMBRO/OUTUBRO 2020 SETEMBRO/OUTUBRO 2020 03


UMBANDA
EU CURTO
que nasce, pois o choro decorre da “mudança de casa” e da necessidade de
respirar pela primeira vez. É o mundo ensinando que é preciso se adaptar a
ele desde o início.

Alexandre Negrini
por: A partir daí não há um momento sequer que não seja uma descoberta. A
relação com os pais, com a alimentação, com a casa, com os animais, só
pra ficar com as primeiras relações. E à medida que a criança cresce e se
desenvolve, vai deixando um pouquinho por vez de ser criança. E vai per-
dendo uma visão simples e ao mesmo tempo mágica de tudo que a cerca. É
a razão em lugar de emoção. A conformidade em lugar das possibilidades.
Maturidade em lugar da ingenuidade.
Na Umbanda, a linha das Crianças é tida como Natural ou Encantada. São

LINHA DAS CRIANÇAS


seres que não tiveram vivência anterior como encarnados (embora crian-
ças desencarnadas muito novas também se manifestem com frequência).
Assim, imputar sua alegria, modo de falar, gosto por brinquedos ou doces a

NA UMBANDA:
uma encarnação anterior é uma simplificação.
Uma visão mais coerente dá conta de que são espíritos puros, sem vín-
culos com o mundo terreno, daí sua manifestação infantilizada, digamos,

EMOÇÃO A
por proximidade energética e espiritual. São alegres sim, emotivos, muitos
falam alto, gostam de brincar e exercer uma liberdade sem freios, algo que

SERVIÇO DA FÉ
encanta. Podemos pedir-lhes ajuda para os nossos filhos, auxílio para re-
solver problemas cotidianos e outras aflições. São ótimos conselheiros e
curadores (daí sua associação a São Cosme e São Damião, curadores que
trabalhavam com a magia dos elementos).
Imagine uma criança com menos de sete anos possuir a experiência e a vi-
vência de uma pessoa mais velha e ainda ter a inocência, doçura e encanto
A primeira impressão para quem participa de uma gira de Crianças ou
por tudo e por todos. Assim é a Linha das Crianças na Umbanda, sempre
Erês (ou ainda Ibejis) num terreiro de Umbanda é a alegria. Alguns po-
pronta a prestar grandes aconselhamentos de forma simples e rápida. E
dem até se perguntar se não estou confundindo gira de atendimento com
ainda há muito a descobrir!
festa das Crianças ou Erês. Afinal, esta linha costuma aparecer em boa
parte dos terreiros apenas no mês de setembro, quando se comemora o
dia de Cosme e Damião (e atenção mães e pais de santo: vamos deixar
esta linha trabalhar mais!).
Então, puxei pela memória para checar se não estou exagerando. Tal-
vez sim. Mas para as Crianças tudo é maior, exagerado, passional, não
é mesmo?
Agora complicou. Estou falando de crianças encarnadas ou de uma linha
de Umbanda? Da Linha de Umbanda, é claro! Mas é impossível não rela-
cionar com as características básicas que as crianças manifestam, não Alexandre Negrini Turina
é jornalista e cientista social
importa onde tenham nascido.
formado pela Universidade de São
Criança é sinônimo de alegria, dizem. Mas é importante ir além do este- Paulo (USP). É cofundador do Umbanda Eu
reótipo e lembrar que elas são seres humanos que falam, sentem, ficam Curto, maior portal agregador de conteúdo
tristes e têm expectativas, tal qual os adultos. Então, porque será que umbandista na internet. Criado em 2011 como
uma fanpage, hoje está presente nas principais
a espiritualidade permitiu que, na Umbanda, se manifestasse uma linha redes sociais (@umbandaeucurto) e conta com o apoio de
infantil? O que elas teriam a nos ensinar? colaboradores como Alexandre Cumino, Adriano Camargo, Engels
Vamos voltar ao básico. Como espécie, somos seres complexos: neces- de Xangô, David Dias, David Veronezi, Rodrigo Queiroz, Taiane
Macedo e Rubens Saraceni (in memorian).
sitamos de cuidados, desenvolvimento físico, cognitivo e intelectual. Por
alguns anos somos crianças, aprendizes por natureza, por necessidade
biológica mesmo. Precisamos crescer, aprender, desenvolver o corpo e
a mente para encarar o mundo. E, neste processo, a característica mais
importante é o aprendizado. A criança começa a aprender no segundo em

04 SETEMBRO/OUTUBRO 2020 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO ILUSTRADOR SIGA @BRENOLOESER SETEMBRO/OUTUBRO 2020 05
DOCES PROMESSAS
12 ou 27, dia de doce era dia de madrugar. Cedo a casa outro entregava os cachorros-quentes, quando havia.
despertava: saquinhos para um lado da mesa, farinha

David Barbosa
e ovos para o outro; bolo logo ia para o forno e, mal — Era uma linha de produção, e nós éramos os estagi-
se piscava, já se ouviam chamamentos no portão. A ários — brinca Hellen.
por: trabalheira nunca era em vão, nem obrigada — era um
carinho com os santos milagrosos, atenciosos aos Depois do “expediente”, a alegria era dos de casa. Dona
pedidos dos fiéis que, ano após ano, distribuíam gulo- Marina entregava os saquinhos dos netos e, em se-
seimas e repassavam aos mais novos o ensinamento: guida, os soltava nas ruas de Sepetiba, na Zona Oeste
De geração em geração, famílias repassam a tradição dos Cosme e Damião ajudam a quem pedir. Basta ter fé. do Rio de Janeiro, acompanhados de uma vizinha. Só
voltavam no final da tarde, entulhados de mais doces.
saquinhos como agradecimento aos santos gêmeos Na casa da estudante Hellen Barbosa, hoje com 26 Dava briga?
anos, os preparativos de dona Marina, sua avó, come-
çavam dias antes. Se sobrasse dinheiro das contas — Pior que não — conta Hellen — Cada um marcava o
do mês, a semana de 27 de setembro era voltada às seu porque nós vínhamos pelo caminho comendo. Eu
compras: caixas e caixas de pirulitos, marias-moles, mesma detonava os suspiros ainda na rua.
pipoquinhas, e todos os ingredientes necessários para
o bolo da mesa. Quando o nono mês era apertado, o Hoje, a jovem é filha de Umbanda e também pretende
primeiro destino do pagamento seguinte eram as gos- começar a distribuir guloseimas. Afinal, seu primeiro
tosuras. Avó de mais de trinta netos, dos quais criava contato com a religião se deu através dos saquinhos.
quatro, dona Marina não faltava nunca com as pro-
messas feitas aos santos gêmeos em troca de pro- — Minha avó era católica, mas a gente ia pegar doce no
teção para seus meninos. terreiro. Era o melhor lugar: voltávamos com brinquedo,
comida e até roupa, às vezes — lembra.
— Ela saía às compras cedo, sozinha, e meus

Sete anos de promessa,


irmãos e eu ficávamos ansiosos o dia in-
teiro, esperando ela voltar. Como aju-
dávamos a montar os saquinhos,
ela sempre trazia doces a mais vezes três
porque sabia que íamos belis-
car as balas no meio do pro- Dona de casa, Dejanira dos Santos também aprendeu
cesso — conta Hellen, aos com sua avó a dar doces como agradecimento pelas
risos. bênçãos de Cosme e Damião. Mãe de três meninos,
dona Didi, como é mais conhecida, passou por muitas
Na hora de distribuir, noites de agonia quando o mais velho, ainda bebê, co-
cada um dos quatro meçou a ter crises de bronquite asmática.
irmãos assumia uma
função: na cozinha, — Ele não conseguia respirar — recorda-se — Foi aí
um embrulhava as que minha avó falou: ‘filha, promete a Cosme e Damião
fatias de bolo; outro que, se ele se curar, você vai dar doces todo ano até ele
enchia os copos de completar sete.
refrigerante. Na va-
randa, onde a festa Didi rezou e conseguiu. As crises respiratórias sumi-
se dava, um pas- ram e ela passou a distribuir os saquinhos todo mês de
sava as sacolinhas setembro. Entretanto, às gestações seguintes também
às outras crianças, se sucederam muitas noites sem dormir. Seu filho do
meio desenvolveu um tumor no ouvido, e precisou pas-

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FOTÓGRAFO SIGA @BENDITO_BENEDITO
SETEMBRO/OUTUBRO 2020 07
sar por inúmeras cirurgias. O caçula teve um quadro de Hoje com 71 anos, dona Didi perde a conta dos mila-
PENSAMENTOS
DE ABIAN
hepatite. Sempre que a angústia batia à porta, a mãe gres que presenciou. Afinal, a intercessão dos gêmeos
recorria aos santos gêmeos. por seus filhos foi tão poderosa que não tardaram as
— Tudo o que eu pedi eles me deram. Meus filhos hoje promessas para toda a família.
são homens feitos, saudáveis, e até hoje o meu do meio
também dá doces. Quando ele fez dezoito anos, preci- — Fiz pedido para sobrinho, para neto, para muita gen-
Tatiane Falheiro
por:

sava fazer uma última cirurgia. Eu já tinha cumprido as te. E era sempre assim: seis anos dava os saquinhos;
promessas, mas rezamos juntos e, quando ele voltou no sétimo, uma festa. Tem tempo que não dou, mas
ao hospital, o médico disse que não havia mais ne- talvez esse ano eu faça. É muito bom ver a alegria das
cessidade: estava curado. Dali em diante ele também crianças — diz, emocionada.

EU ESTOU NO COMEÇO.
passou a dar — vibra a moradora de São Gonçalo, na
Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

AS CRIANÇAS, NÃO.
Quando os nenês ganham nome de santo
A promessa feita há mais de oito décadas pela bisavó — conta Rafael.
do estudante Rafael Bahia, de 21 anos, virou ‘causo’ na
família de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Grávida, Hoje filho de um terreiro de Umbanda, o jovem também dá
dona Ana passava muito mal, até descobrir que a ges- testemunho de graças recebidas pelos santos gêmeos. Lembro que, quando criança, a maior animação era chegar setembro e fazer os saquinhos de Cosme e Damião. Sempre
tação era de gêmeos. Certa de que eram dois meninos, sobrava uma mariola, um pirulito, um suspiro. Por causa da minha família, eu ganhava um monte - vovó e mamãe faziam
prometeu que, se os bebês vingassem, se chamariam — Eu tinha uma prova para fazer e tia Cosma aconselhou muitos sacos todos os anos.
Cosme e Damião. Na verdade, vieram moças, e a home- prometer doces se eu passasse. Consegui, e ela foi com Também me vem à memória quando minha mãe nos levava em um terreiro de Umbanda. Lá havia uma senhora sentada
nagem teve que ser adaptada. Damiana, hoje, é evangé- a gente para a rua, mesmo já bem idosa, ajudar a distri- em um banquinho e com um pito na boca. Sempre ia até ela, tomava passe com folhas, me rezava e, depois disso, um
lica, mas Cosma manteve a tradição de fazer a festa das buir — recorda. monte de crianças e erês, comendo doces e correndo para lá e para cá, tomavam o ambiente.
crianças até morrer, no ano passado. O tempo passou e, com minha chegada oficial à religião, descobri que toda simbologia tem um porquê. Cosme, Damião
e Doum não são apenas sinônimos de doces. São os protetores das crianças, guardiões, com um grande significado
— Minha família veio da Paraíba e, naquela época, não para as religiões de matriz africana. Como médicos que foram, também são responsáveis pela cura, então sempre que
tinha muitas umbandas nem candomblés por lá, mas precisar de alegria, proteção e cura, peça a eles.
temos ligações com o Catimbó. Minha tia-avó não só Penso, inclusive, que algo muito importante a ser refletido é que, apesar deles serem crianças - e, para o senso comum,
dava doces todo ano como também carregava um erê com pouca sabedoria devido à pouca idade -, são seres com uma
carga de conhecimento enorme. E estão sempre à disposição
para compartilhar. Eu, enquanto isso, sigo na minha
caminhada de abian. Eu, sim, estou no começo. Eu,
sim, ainda preciso aprender. Eles, não. Eles apenas
ensinam.

Salve Ibejada, Salve Cosme e Damião!

Tatiane é abian de uma casa de Omolokô


em Niterói, na Região Metropolitana do
Rio. Abian é o começo. Essa é a pessoa
que se interessou pelo culto de matriz
africana e faz parte de uma comunida-
de de terreiro, mas ainda não pas-
sou pelos rituais de iniciação.

08 SETEMBRO/OUTUBRO 2020 SETEMBRO/OUTUBRO 2020 09


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BABA
RESPONDE
KOBÁ | Como acontece o culto a Ibeji no Brasil? KOBÁ | No Candomblé, qual é a relação entre o orixá e o erê?
BABALAWÔ IVANIR | Bom, primeiro precisamos compre- BABALAWÔ IVANIR | No Candomblé no Brasil, cada orixá
ender que, na cultura yoruba, Ibeji são crianças gêmeas. tem um erê. Como em muitas casas tradicionais de Can-

Babalawô Ivanir dos Santos


por: Quando crianças gêmeas nascem, elas já são considera-
das Ibejis e orixá. E é feito um oro de nascimentos para as
domblé, orixá não fala quem fala por ele é o erê. Às vezes,
o orixá quer deixar uma mensagem, apaziguar alguma
crianças. No Brasil, Ibeji tornou-se um culto às crianças. coisa: ele sobe e quem deixa a mensagem por ele é o erê.
Precisamos pontuar que Ibeji é diferente de erê, embora
no Brasil trata-se singularmente Ibeji como se fosse erê. KOBÁ | Como se conectar com a energia das crianças
Normalmente, nos candomblés tradicionais são feitos as- mesmo sem frequentar um barracão?
sentamentos e oferendas para erê. BABALAWÔ IVANIR | Nos candomblés tradicionais, o Erê
não vira se o orixá não deixar, porque o dono da cabeça é
KOBÁ | É possível fazer oferenda a esse orixá em casa? o orixá. Mas há casas em que o erê vira.
BABALAWÔ IVANIR | Não tem um lugar específico para se
fazer oferenda a erê. No Brasil, é possível fazer em casa, KOBÁ | A tradição de distribuir doces no dia de São Cosme e

AS CRIANÇAS DA
em uma praça ou fazer uma festa e oferecer às crianças. São Damião também existe no Candomblé?
As oferendas podem ser feitas em qualquer lugar. O culto BABALAWÔ IVANIR | No Candomblé, tem muito o caruru.
de EgbeOrun, no Candomblé, ficou conhecido como culto Na Bahia, se faz muito o chamado caruru de Cosme. No

AFRORRELIGIOSIDADE
ao Erê. O EgbeErê é uma sociedade infantil do Orun. dia de Cosme e Damião se faz uma festa com o caruru,
doces, cana, etc. Normalmente, em alguns candomblés
KOBÁ | Existe alguma reza para Ibeji que possa ser feita tem a Quitanda do Erê, momento de festa com trocas de
por qualquer pessoa? brinquedos e doces.
BABALAWÔ IVANIR | Não existe uma reza específica. O
que é possível fazer são pedidos, por qualquer pessoa e KOBÁ | A criança já nasce com seus “orixás de cabeça”?
em qualquer lugar de culto. Como acontece?
BABALAWÔ IVANIR | No Candomblé no Brasil, todo mundo
tem orixá. Às vezes pode ser até um orixá de família. A
iniciação vai acontecer de quando o orixá pede, no nosso
O professor doutor Babalawô Ivanir
país é que a prática é diferente.
dos Santos é coordenador de área de
pesquisa no Laboratório de História
das Experiências Religiosas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro
(LHER/UFRJ), membro da Associação
Brasileira de Pesquisadores Negros
(ABPN) e conselheiro de estratégia do
Centro de Articulação de Populações
Marginalizadas (CEAP). Em 2019, recebeu
um prêmio do Departamento de Estado
do Governo dos Estados Unidos pela sua
atuação na luta contra a intolerância às
religiões de matrizes africanas no Brasil.
Em toda edição, o professor irá responder
dúvidas sobre Candomblé e religiosidade
de matriz africana.

10 SETEMBRO/OUTUBRO 2020 SETEMBRO/OUTUBRO 2020 11


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HIBISCO CRIANÇAS
KOBÁ | Qual é a opinião do senhor sobre crianças que d’Água”. Geralmente é algum elemento que simboliza o orixá
passam pelos rituais de iniciação do Candomblé? do iaô.

Clara Nery
BABALAWÔ IVANIR | São diversas situações que podem
por:

DE OXALÁ
ocasionar a iniciação ainda crianças. Na família Bangboxé KOBÁ | Se uma mulher é recolhida grávida, a criança já nas-
já é um caso em que a tradição prevê essa iniciação. Mas ce feita?
é uma questão tradicional da família de axé. Não podemos BABALAWÔ IVANIR | Isso vai variar. Não tem uma regra
nos esquecer que alguns ritos foram readaptados ou geral. Vai depender muito da tradição da casa.
recriados aqui no Brasil, então em casas de Candomblé
mais tradicionais, com uma herança iorubá bem arraigada, KOBÁ | Para o senhor, qual é a importância da presença de
esses ritos são feitos cedo. crianças nos xirês?
BABALAWÔ IVANIR | É uma presença pedagógica. O que não
KOBÁ | Existe alguma idade mínima para que crianças pos- é permitido é presença durante o orô, a não ser as que são
sam entrar em transe com o orixá? iniciadas. Mas cada sacerdote sabe como conduzir essas
BABALAWÔ IVANIR | Quem determina essas questões é o questões. Vem Setembro aflorando Só as crianças ditam a lei:
orixá. Não existe uma determinação cronológica. os caminhos tão vazios. Na mesa,
KOBÁ | O que o senhor poderia nos contar sobre abikú? Jujuba, paçoca, mariola,
KOBÁ | De onde vêm os nomes dos erês? BABALAWÔ IVANIR | Significa aquele que nasceu da mor- Céu estrelado. Pé de moleque...
BABALAWÔ IVANIR | Normalmente, está ligado a algum te. Tem toda uma cerimônia específica para abiku que vai Três estrelas chamam atenção, Moleque vem cá!!
símbolo do orixá que o iaô pertence. Por exemplo, o erê de depender como cada casa compreende essas práticas. Eu Todas três em carreirinha.
um iaô de Ogum ter o nome de “Espadinha”, o de Oxóssi ter prefiro não pensar em uma regra geral, mas sim na definição Já era.
o nome de “Flechinha”, o de Iemanjá ser chamado de “Pingo do que é abiku. Era guaraná esparramado pelo chão.
Deixa Ibejada brincar.

Era Cosme e Damião,


Damião, cadê Doum?

Clara Nery é jornalista, atriz, poetisa,


repórter da Band TV e fundadora do
Hibisco Poesias. A página foi criada em
2014 como um espaço para divulgar
poemas, textos e citações autorais por
meio do Facebook, Twitter, Instagram
(@hibiscopoesia) e blog.

NO CANDOMBLÉ, TEM MUITO O CARURU.


NA BAHIA, SE FAZ MUITO O CHAMADO
CARURU DE COSME

- Babalawô Ivanir dos Santos

O tema da nossa próxima edição será Família.


Envie sua pergunta para koba.babaresponde@gmail.com e participe!

12 SETEMBRO/OUTUBRO 2020
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Crianças
Hoje, é impossível não relacionar o dia 27 de setembro às crianças, doces, brincadeiras
e brinquedos. Ainda mais que, duas semanas depois, comemora-se o 12 de outubro
- data consagrada a todos os pequenos. Portanto, nesta edição, o fotógrafo Marco
Alcântara deixou seu erê comandá-lo e produziu esta galeria de fotos para homenagear

de Oxalá
Cosme, Damião, Doum, Ibeji e todas as criancinhas, tanto do Orun quanto do Ayê.

Fotos por:
Marco Alcântara

14 SETEMBRO/OUTUBRO 2020 SETEMBRO/OUTUBRO 2020 15


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PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO FOTÓGRAFO SIGA @BENDITO_BENEDITO

16 SETEMBRO/OUTUBRO 2020 SETEMBRO/OUTUBRO 2020 17


18 SETEMBRO/OUTUBRO 2020 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO FOTÓGRAFO SIGA @BENDITO_BENEDITO SETEMBRO/OUTUBRO 2020 19
PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO FOTÓGRAFO SIGA @BENDITO_BENEDITO

“As lembranças mais antigas que tenho, quando o


assunto é Cosme e Damião, são da infância, quando
criávamos verdadeiras caravanas para ir em busca
dos saquinhos de doces”, relembra Marco, contando
que ia de porta em porta atrás de guloseimas. “Era
uma verdadeira caça ao tesouro! Uma tradição que,
hoje, infelizmente é sistematicamente combatida.
Vemos, inclusive, uma tentativa de apagamento
ganhando cada vez mais espaço”, lamenta.

20 SETEMBRO/OUTUBRO 2020 SETEMBRO/OUTUBRO 2020 21


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22 SETEMBRO/OUTUBRO 2020 SETEMBRO/OUTUBRO 2020 23


24 SETEMBRO/OUTUBRO 2020 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO FOTÓGRAFO SIGA @BENDITO_BENEDITO SETEMBRO/OUTUBRO 2020 25
Apesar de não vivenciar a entrega de doces dentro
de casa, o artista conta que tem contato com a
tradição desde pequeno, quando acompanhava
sua mãe no terreiro. “Depois de adulto. quando
resolvi viver minha caminhada dentro de terreiro
de Umbanda, voltei a ter contato contato com
essa tradição mais que especial”, diz.

26 SETEMBRO/OUTUBRO 2020 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO FOTÓGRAFO SIGA @BENDITO_BENEDITO SETEMBRO/OUTUBRO 2020 27
28 SETEMBRO/OUTUBRO 2020 SETEMBRO/OUTUBRO 2020 29
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30 SETEMBRO/OUTUBRO 2020 SETEMBRO/OUTUBRO 2020 31


Para Marco, a tradição dos doces de 27 de setembro não
somente devem ser lembradas, como também o combate
ao apagamento sistemático, citado anteriormente, deve ser
intensificado. “Quando um terreiro ou devoto garantem a
existência dessa tradição, momento em que se tem contato
com pessoas da religião ou não em uma atmosfera de alegria,
doçura - literalmente! -, entrega e comunhão, mostram à
sociedade como o discurso de demonização é uma falácia
sem sentido e apenas fruto de preconceito”, afirma o fotógrafo,
concluindo: “É um ato de resistência que deve ser intensificado”.

32 SETEMBRO/OUTUBRO 2020 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO FOTÓGRAFO SIGA @BENDITO_BENEDITO SETEMBRO/OUTUBRO 2020 33
PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO FOTÓGRAFO SIGA @BENDITO_BENEDITO

O CARISMA
DAS RUAS
Gabriel Sorrentino
por:

Os saquinhos de Cosme e Damião


fazem parte do DNA das das cidades

Nomes extremamente populares no país, Cosme e Damião são


santos gêmeos da Igreja Católica que foram médicos e, por isso,
considerados protetores das crianças. Não por acaso, no Brasil o
culto a santos e santas é extremamente forte: característica que
tem origens na religiosidade ibérica, afinal, Portugal e Espanha
costumavam disputar entre si para saber qual dos reinos
ostentava o maior número de santos e beatos reconhecidos.
Portanto, a devoção aos gêmeos, trazida pelos portugueses, se
fixou e expandiu com facilidade em solos tupiniquins.

Quando introduzida por colonizadores europeus nas plantations


escravistas açucareiras, essa crença foi associada a tradições
africanas de culto à gemelaridade. Assim, Cosme e Damião e Ibejis,
orixás meninos protetores dos gêmeos na tradição iorubá, foram
intimamente relacionados. Os santos católicos adquiriram formas
infantis e, nas religiões afro-brasileiras, ganharam um irmão mais
novo: Doum, que é uma corruptela de Idowú, nome iorubano que
se dá ao filho nascido após os gêmeos.

Essa conexão, inclusive, foi um dos fatores que transformaram o


27 de setembro — data em que, no Brasil, os gêmeos católicos
e iorubás são homenageados — em uma verdadeira festa que
tomou, principalmente, as ruas. Portanto, as divindades passaram

34 SETEMBRO/OUTUBRO 2020
À ESQUERDA,
BABAQUEQUERÊ
LUIS DO OGUN JÁ

Cosme e Damião no
COM CRIANÇAS DO
AXÉ: VITÓRIA DE
dando doce, compartilhando a localização em tempo
OXÓSSI E YAN DE real, fotografam e postam nas redes quantos doces
JAGUM, FILHOS DO
ILÊ ASÈ DO OGUN século XXI pegaram ao final do dia — revela o especialista.
JÁ. À DIREITA, MÃE
JUÇARA DE IEMANJÁ. Por outro lado, Mãe Juçara de Iemanjá, ialorixá do Ilê Asè
Da mesma forma que as cidades se transformaram, a do Ogun Já, na cidade de São Gonçalo, no Rio de Janeiro,
tradição de Cosme, Damião e Ibejis também passou acredita que, hoje, devido à violência, as crianças não
por metamorfoses desde o seu surgimento. Antes, mais dominam as ruas - mesmo no dia 27. Para ela, as
as ruas eram dominadas por crianças de janeiro a crenças pentecostais também contribuíram para afastar
janeiro: elas brincavam e comandavam as avenidas, os pequenos das ruas. Na ocasião, a iá, cuja tradição
alamedas e vias da mesma forma que hoje fazem no dia religiosa é de Nação Efon, oferece caruru, acarajés e
27 de setembro. Lucas Bártolo afirma que, na data, os abarás, e ainda acrescenta:
pequenos assumem uma autonomia que provavelmente
só venham a ter quando se tornarem adultos e, enquanto — O povos tradicionais de matriz africana estão mais
isso, os crescidos que distribuem doces se conectam consciente do sincretismo religioso e, com isso, perdendo
com suas memórias de infância e à sua criança interior. o costume de distribuir doces no 27 de setembro.
Algumas casas até distribuem, mas pela visão social
— Se a modernidade e as novas tecnologias ameaçam para agregar à comunidade ao redor da Casa de Axé.
a simbolizar a infância no universo religioso brasileiro mais doce. Se olharmos pelos circuitos da festa, vamos
as antigas brincadeiras, elas também são incorporadas Contudo, nada impede que nossas crianças os recebam.
e, com isso, a distribuição de doces como forma de ver um mapa afetivo da cidade delimitado por lugares
à tradição de correr atrás de doce. Muitas crianças hoje, As Igrejas Evangélicas é que impedem suas crianças de
festejá-los foi perpetuada. Essa tradição, por sua vez, fortes ou fracos de doce, perto ou longe de casa, onde
por exemplo, usam o WhatsApp para avisar onde estão receber e, com isso, a tradição vai se perdendo.
com suas maneiras de louvar, brincar e cultuar, podem tem saquinho bom ou ruim.
ser consideradas definidoras da identidade da cidade,
ou de uma parte dela, como é no subúrbio. É o que Lucas Para o professor Júlio César Tavares Dias, Doutor em
Bártolo, pesquisador do Laboratório de Antropologia do Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de
Lúdico e do Sagrado (Ludens), do Museu Nacional da Fora (UFJF) e autor do livro “A Reinvenção do Demônio:
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), acredita. As Religiões Afro-brasileiras no discurso da Igreja
Universal do Reino de Deus”, a tradição possibilita aos
— Entendemos que os saberes envolvidos na tradição seus participantes uma forma muito mais afetiva de se
de celebrar Cosme e Damião são um patrimônio cultural relacionar com a cidade.
do Rio de Janeiro. No calendário festivo, setembro e
outubro são meses em que celebramos as crianças. — Hoje, muitas pessoas não sabem os nomes das ruas.
Além da importância econômica, aquecendo o circuito As ruas são conhecidas a partir do pensamento no
das lojas de doce e artigos religiosos, é um período em capital: é a rua da loja tal, a rua onde tem a loja de tal
que os terreiros se abrem à sociedade em geral, não só franquia. Nós que somos de uma geração mais antiga
nas festas, mas em ações de caridade voltadas para as falávamos das ruas de forma diferente: é a rua de Dona
crianças e suas famílias — explica o especialista, que Fulana, a rua do pé de baobá, a rua do Marquinhos... —
também é mestre em Antropologia Social pela UFRJ. argumenta o professor.

Reforçando ainda mais a relação da tradição com as Lucas lembra que, apesar de o grande dia ser o 27
ruas, Morena Freitas, também pesquisadora do Ludens, de setembro, a festa, na verdade, começa nos dias
analisou que, normalmente, as crianças costumam sair anteriores com a compra dos doces em grandes lojas
em grupos, liderados pelo mais velho, ou até mesmo atacadistas e a montagem dos saquinhos - atividades
por um adulto, e passam o dia andando pelas ruas, que geralmente envolvem toda a família.
percorrendo lugares que não costumam frequentar no
dia-a-dia, enchendo suas mochilas de doces. — Mesmo não sendo um feriado, o dia suspende o
cotidiano em boa parte do Rio e do Grande Rio. É um dia
— Nas praças, param para descansar, brincar e contar festivo com tempo e dinâmica próprios — explica.
os saquinhos, competindo para ver quem conseguiu

36 SETEMBRO/OUTUBRO 2020 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO FOTÓGRAFO SIGA @BENDITO_BENEDITO


O professor Júlio César relaciona a diminuição da
presença infantil nas ruas também às novas formas de
ele, em sua maioria associam a tradição à “macumba”.
As ruas e o diálogo para que não houvesse tanto preconceito quanto à entrega
de doces, já que muitos devotos cristãos de Cosme e
entretenimento voltadas para os pequenos: — É comum ver crianças rejeitarem os saquinhos devido
à proibição dos pais — lamenta Bruno. — Contudo, em
inter-religioso Damião também entregam doces no dia. O pesquisador
Lucas Bártolo conclui:
— As crianças, com o tempo, foram deixando de minha casa temos um culto muito forte à linha dos erês,
frequentar a rua, trocando brincadeiras populares como que são extremamente relacionados a Cosme e Damião. O culto aos santos e orixás gêmeos, para além das igrejas — Cosme e Damião possuem intenso trânsito religioso.
pular corda, amarelinha, bola de gude, por vídeo-game e É comum eles aparecerem em finais de gira. Às vezes, e terreiros, permite que haja uma participação inter- Estão presentes na tradição católica, nas religiões
outros brinquedos tecnológicos — analisa o pesquisador. essa falange é muito subestimada por conta do tom de religiosa nas ruas, contribuindo principalmente para o afro-brasileiras e até no santo daime. A sua força
brincadeira traz. Na verdade, erê desfaz trabalho que exu enfrentamento ao preconceito. É o que acredita Mãe está associada à sacralização das crianças, e as
Bruno Loureiro, dirigente da Casa Espírita Caboclo Sete não desfaz. Vai a locais onde nenhuma outra entidade Juçara: múltiplas formas que essa devoção assume expressam
Flechas das Matas, terreiro de Umbanda situado em consegue ir. “Prometa a qualquer entidade, menos para a diversidade cultural brasileira: ladainha, pontos de
Niterói, no Rio de Janeiro, reitera a fala de Mãe Juçara: erê” Ou “Trabalho que erê faz, nenhuma outra entidade — Em tempos de intolerância religiosa, os saquinhos de Umbanda, culinária, cantigas de roda, literatura de cordel,
para ele, há cada vez menos crianças nas ruas no dia desfaz” são alguns dos ditados que pautamos em nosso doces e guloseimas ajudam na conscientização. Crianças samba de roda, samba de enredo etc. Reconhecer esse
de Cosme e Damião e o motivo principal é a crescente terreiro. Acredito que eles podem frequentar zonas são inocentes, puras e verdadeiras. trânsito religioso e a sua relevância cultural são formas de
violência. Além disso, para o umbandista, outra razão é o energéticas das mais variadas camadas. São entidades proteger a tradição contra ataques e demonizações por
aumento do número de evangélicos, que, de acordo com muito versáteis. Para Bruno Loureiro, a Igreja Católica, inclusive, contribuiu fundamentalistas cristãos.

ENTENDEMOS QUE OS SABERES ENVOLVIDOS NA


TRADIÇÃO DE CELEBRAR COSME E DAMIÃO SÃO
UM PATRIMÔNIO CULTURAL DO RIO DE JANEIRO
- Lucas Bártolo

No ano de 2016, acompanhei as festividades de Cosme


e Damião em Salvador. Ao lado da Igreja Matriz dos Santos
Cosme e Damião, por exemplo, há uma escola adventista que, no dia
anterior ao dia dos santos, colocou um cartaz no portão ressaltando que
não suspenderia as aulas no dia 27. É um modo sutil de se colocar contra esta
tradição afrocatólica. A procissão em seguiu pela Avenida da Liberdade e quando
passou em frente à Igreja ortodoxa, os fiéis desta abriram as portas e de cima da
sacada acenaram e balançaram lenços saudando os fiéis católicos romanos
que passavam cantando louvores. Já quando a procissão passou em frente
a uma igreja Assembleia de Deus, um grupo de jovens e adolescentes,
que estava no pátio da igreja, entrou e fechou as portas. Essas são,
afinal, as duas formas que nós temos para viver com o outro:
abrir-se para interação ou fechar-se em si mesmo.

- Júlio César Tavares Dias

PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO FOTÓGRAFO SIGA @BENDITO_BENEDITO SETEMBRO/OUTUBRO 2020 39


INTOLERÂNCIA:
pornográfico com mais de 20 mil vídeos utiliza palavras-chave para
associar a Umbanda a práticas como orgias, zoofilia e pedofilia. Ou
seja, ao pesquisar o nome desses zeladores com o termo “Umbanda”,

DIRIGENTE
vídeos deste site aparecem como resultado na busca.

— No primeiro momento causou um burburinho, demos até risada,

DE UMBANDA
levamos na brincadeira. Começamos a procurar e vimos que era mais
sério. Isto está ligado à religião e não a mim especificamente ou à
minha casa de caridade, e sim à Umbanda — comenta o pai de santo,
que chegou a alertar familiares de outros envolvidos a fim de evitar um

DENUNCIA
impacto emocional nos mais velhos: — Há sacerdotes com muito mais
idade do que eu. Estamos falando de zoofilia, pedofilia, de orgia. Então,
para uma pessoa que é um octagenário é ainda mais complicado.

ATAQUES NA
Após a descoberta, pai Denisson procurou autoridades para tentar
retirar o site do ar, mas se deparou com outro obstáculo: a dificuldade
de rastrear a origem do conteúdo. A polícia informou o impedimento de

INTERNET
dar continuidade à investigação devido à falta recursos, já que se trata
de um crime internacional.

Naíse Domingues
— Após conversar com filhos espirituais que também são
por: programadores, descobrimos que os sites estão hospedados fora do
Brasil e que é muito difícil encontrar o autor. Os sites estão hospedados
no Panamá, então, a polícia brasileira precisa de recursos, disposição
de todas as formas para que isso avance. Caso contrário, ficará lá,
infelizmente — lamenta.

Pai Denisson conta como


descobriu sites que ligavam
sacerdotes à pornografia

O ataque às religiões de matriz africana acontece de diversas formas: desde


ofensas aos praticantes à depredação de terreiros. Em junho, o dirigente
do Instituto CEU Estrela Guia, centro de Umbanda localizado em São Paulo,
se deparou com mais uma face cruel do racismo religioso. Pai Denisson
encontrou seu nome, de sua esposa, que também está à frente do terreiro, e
de outros zeladores associados à pornografia.

A descoberta aconteceu quando o sacerdote procurava seu nome em um


site de buscas junto a uma filha espiritual. O resultado revelou que um site

40 AGOSTO/SETEMBRO 2020 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO ILUSTRADOR SIGA @BRENOLOESER SETEMBRO/OUTUBRO 2020 41
Ordem de despejo por intolerância religiosa
Esta não é a primeira vez que o CEU enfrenta o essa finalidade tenham proteção da lei contra o despejo.
preconceito religioso. Em fevereiro deste ano o centro No dia seis de fevereiro deste ano, o desembargador
ganhou na Justiça o direito de permanecer no galpão Marcondes D’Angelo negou o recurso e autorizou a
onde está alocado, após tentativa de despejo por parte permanência da instituição religiosa no local.
dos proprietários. O imbróglio teve início quando os
sacerdotes sinalizaram interesse em alugar o segundo Segundo Pai Denisson, as pessoas presentes na
andar do galpão. Os proprietários não permitiram as audiência ficaram surpresas com os argumentos
alterações necessárias no imóvel e entraram na justiça apresentados pela advogada para a retomada do imóvel.
pedindo o despejo do grupo religioso num prazo de
quinze dias. — Foi a primeira vez na história da Umbanda e das
religiões de matriz africana que se ganha em segunda
— Minha esposa é engenheira civil e assina pelo instância uma causa como esta. A advogada alegava
Conselho Regional de Engenharia e Agronomia de São que Umbanda não era religião, que não era como o
Paulo (CREA/SP) as responsabilidades do imóvel, por Catolicismo ou o Budismo, e que era desprezível, em
conta dele ser legalizado. Conforme nos deparamos com outras palavras.
a legislação que exigia a adequação de acessibilidade,
os proprietários falaram que não queriam e que “pouco Enquanto o processo se desenrolava, o CEU sofreu duas
importa se as pessoas têm dificuldade de acessibilidade invasões na mesma semana. No dia 28 de janeiro, o
ou não” — lembra o sacerdote, que teve sentença terreiro foi invadido e teve seus cabos de energia cortados.
favorável após o julgamento. — Eles perderam e pediram Três dias depois, o espaço foi novamente invadido e,
a revisão, falando que o juiz não havia se atentado que [o desta vez, teve as câmeras de segurança roubadas. O
centro] não era tão grande assim e que nós poderíamos crime foi registrado na 16ª DP, da Vila Clementino, mas
estar em qualquer lugar. os responsáveis nunca foram identificados.

A motivação intolerante ficou explícita quando, em — Na primeira invasão, a pessoa que roubou deixou
segunda instância, a advogada dos donos alegou que camuflado um cabo bem grosso de 750 volts para matar
Umbanda não era religião, e por isto a ordem de desocupar quem estivesse próximo. Poderia ser eu, minha esposa,
o local poderia ser aplicada. A Lei do Inquilinato prevê que uma criança, mas não aconteceu isso.
hospitais, escolas e entidades religiosas registradas com

A caridade divina continua


Assim como muitos centros de Umbanda, o Instituto Apesar dos ataques sofridos ao longo do ano, Pai
CEU Estrela Guia tem compromisso ativo em desenvolver Denisson afirma que os trabalhos do terreiro continuam:
trabalhos de caridade e assistência social. A ideia inicial
de alugar mais um andar do galpão que ocupa era — Embora a gente faça com todo amor, carinho e
oferecer cursos de capacitação para jovens carentes e desprendimento, infelizmente há pessoas que não nos
pessoas com dificuldade de encontrar emprego. Além querem bem, que olham para a Umbanda como marginal.
disso, o centro também faz distribuição de cestas Tudo o que não queremos nos deparar é com obstáculos
básicas, marmita solidária e trabalho com pessoas em como estes, que são feitos propositalmente, não é uma
situação de rua. coisa de simples erro, é algo que foi movimentado de
forma ardilosa. Mas como diria nosso pai Xangô: “quem
deve, paga e quem merece, recebe”.

42 AGOSTO/SETEMBRO 2020 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO ILUSTRADOR SIGA @BRENOLOESER SETEMBRO/OUTUBRO 2020 43
TERREIRO E É indiscutível como esse episódio se configura como mais um caso de

SOCIEDADE
racismo religioso. São nossos saberes, concepção de mundo, rituais,
preceitos, nosso modo de vida, criminalizados. É nossa tradição

Lucas Obalera
cultural religiosa como alvo deste Estado Racista que, para agravar
por:
nossa situação, vem sendo aparelhado por “facções religiosas” que
declaradamente têm a violência como um ato sagrado de fé.

Pensar nessa sequência de agressões a uma menina de 12 anos dentro


da compreensão de infância contida em Ibeji nos ajuda a ampliar a
percepção sobre o grau de violência direcionada às religiões de matriz
africana. Somado às discriminações irreparáveis sofridas por esta
menina, sua mãe e seu terreiro, o que se coloca é o papel do racismo
em despotencializar os valores culturais negroafricana. Ou seja, esse

RACISMO RELIGIOSO
caso também representa um ataque à potência espiritual-política de
Ibeji.

E A POTÊNCIA DA
O itan citado anteriormente expressa elementos que são sentido de
vida dos terreiros. Um simples olhar atento de um visitante é capaz de

BRINCADEIRA EM IBEJI
captar a grande importância e agência que as nossas crianças têm em
nosso cotidiano. Lembremos dos erês que também demarcam o valor
e poder da brincadeira e de sua alegria.

Que possamos “infancializar” nosso caminhar e, assim como os Ibeji,


Mãe perde a guarda da filha por criarmos formas criativas, a partir do nosso referencial cultural, de
vencer a morte trazida pelo racismo religioso. Que façamos de suas
iniciá-la no Candomblé brincadeiras estratégias para desobedecer o Estado de violência
imposta, restabelecendo uma vida abundante em nossas comunidades.

No dia 14 de agosto, recebemos a feliz notícia de que a adolescente


Há um itan de Ibeji que narra como a criatividade e a Era sobre
voltaria a seu lar junto à mãe. A decisão judicial ocorreu após o dou-
força da brincadeira e alegria expressas em Ibeji, os esse itan e
tor Hédio Silva Júnior entrar com uma ação judicial a favor da mãe
irmãos gêmeos, afastou Ikú¹ da comunidade em que seus desdo-
para reaver a guarda da adolescente. Mais uma vitória do povo de
viviam. Conta-se que muitas pessoas fracassaram após bramentos que
terreiro na luta contra o racismo religioso.
a tentativa de negociarem com a morte. Com isso, chegou pretendia escre-
a vez dos irmãos irem ao encontro de Ikú. Sem que ela ver. Mas, assim
soubesse que eram dois, os Ibeji tocavam um ritmo tão como “Exu não dor-
contagiante que Ikú não conseguia parar de dançar. Na me”, o racismo não nos
medida em que um irmão cansava, o outro o substituía. deixa dormir. No processo
O tempo foi passando e Ikú não aguentou. Para que os de produção desta edição Consegue Lucas Obalera é homem preto de Candomblé.
tambores parassem, os Ibeji fizeram um acordo: cessariam (final de julho), uma mãe perde a imaginar o Cientista social formado pela PUC-Rio e pesquisador na
os toques se a morte partisse. guarda da sua filha por ela estar se Conselho Tutelar, junto à área de relações raciais. Como escritor e poeta, desenvolve
trabalhos autorais sobre racismo religioso e trabalhos que
iniciando no Candomblé. Isso ocorreu após polícia, retirando da mãe a guarda
buscam afirmar o valor e beleza das comunidades-terreiro.
Percebem quanta potência espiritual-política é atribuída uma denúncia da avó evangélica de abuso sexual de uma criança ou adolescente por ela
É colunista da comunidade Ataré Palavra Terapia. Em 2019,
a essa noção de infância? Imaginam como essa nossa e maus tratos ao Conselho Tutelar de Araçatuba de São simplesmente fazer catequese, participar da escreveu o e-book “Por uma perspectiva afrorreligiosa:
percepção de mundo de matriz africana traz uma riqueza Paulo. Mesmo após o laudo da perícia médica negar escola dominical ou de um retiro espiritual estratégias de enfrentamento ao racismo religioso”,
e profundidade às crianças, especialmente às de terreiro? qualquer uma das acusações, da menina de 12 anos da igreja? Talvez se o Cristianismo em algum publicado pela Fundação Heinrich Böll. Atua
São os Ibeji, em seu jeito de ser, que vencem a morte. É o negar qualquer denúncia e ainda afirmar que era uma es- momento da história desse país tivesse sido também como educador popular e
seu brincar, sua alegria e musicalidade que restabelece a colha pessoal se iniciar e da mãe dela ser do Candomblé criminalizada, demonizada, perseguida, vista brincante na Companhia
vida na comunidade. e acompanhá-la na iniciação, a guarda foi retirada. como imoral e primitiva, a resposta fosse sim. de Aruanda.

44 SETEMBRO/OUTUBRO 2020 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO ILUSTRADOR SIGA @BRENOLOESER SETEMBRO/OUTUBRO 2020 45
QUANDO IDADE AS PESSOAS QUE PRATICAM A VIOLÊNCIA NÃO SE IMPORTAM COM
A IDADE DA CRIANÇA E MUITO MENOS COM AS CONSEQUÊNCIAS

É SÓ UM NÚMERO
QUE ELA LEVARÁ PARA A VIDA, APÓS A AGRESSÃO.

Flávia Proença
- Anna Luiza Diakakis
por:

— As pessoas que praticam a violência não se importam com


a idade da criança e muito menos com as consequências
que ela levará para a vida, após a agressão. Meu trabalho
visa explicitar estas situações, infelizmente tão comuns e,

Pesquisadores debatem ao mesmo tempo, fazer com que as crianças tenham em


sua mente e no coração que não é errado professar sua

sobre as consequências do religiosidade da forma que for — explica a especialista.

racismo religioso na vida Uma das sequelas apontadas por Anna é a vergonha da
religião, fator presente no relato de Lucas* que, quando

das crianças de terreiro criança, também experienciou a intolerância religiosa de


forma estrutural.

— Eu sempre fui uma criança muito tímida, muito quieta e de


poucos amigos na escola. Um dia, em aula, eu contei para
um amigo que eu era batizado na Umbanda. Na época eu
“Kailane Campos, de 11 anos, saía do seu culto de usei o termo macumba, mas eu não sabia que a expressão
Candomblé quando foi apedrejada por pessoas que, era usada de forma pejorativa para se referir às religiões de
segundo ela, eram de outro grupo religioso e carregavam matriz africanas — relembra.
bíblias nos braços. A menina usava a vestimenta branca
e na cabeça um turbante, acessório que cobre a cabeça Além de ter virado alvo de brincadeiras maldosas entre os
para preservar o seu topo, que dentro das religiões de colegas, Lucas ainda precisou lidar com a indiferença dos
matrizes africanas tem uma importância essencial. Na professores diante da situação.
entrevista, a menina diz: ‘Achei que ia morrer. Eu sei que
vai ser difícil. Toda vez que eu fecho o olho eu vejo tudo — Eu me arrependi porque ele praticamente gritou para a
de novo. Isso vai ser difícil de tirar da memória’.” turma inteira: “Ah! Ele é batizado na macumba” e aí todos
começaram a rir de mim. Apesar de ter ficado chateado,
O relato acima aconteceu em 2015 e comoveu não contive meu choro na hora porque eu não entendia porque
apenas a grande mídia, mas também Anna Luiza todas aquelas crianças apontavam e riam de mim. A
Diakakis, pesquisadora e estudante de Pedagogia pela professora não tomou nenhuma providência, e eu ainda me
Estácio de Sá. Kailane não conheceu Anna, mas deu arrisco a dizer que estava rindo também. Foi muito triste
força ao seu propósito de vida: lutar contra a intolerância para mim e eu nunca mais disse a ninguém que eu havia
religiosa. Desde então, a pesquisadora reúne inúmeros sido batizado na Umbanda. Eu só fui conversar sobre isso
relatos como este e estuda formas de combater práticas com outras pessoas muito tempo depois, quando encontrei
intolerantes e empoderar as crianças de terreiro. outros praticantes — lamenta o depoente, hoje já adulto.

46 SETEMBRO/OUTUBRO 2020 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO ILUSTRADOR SIGA @BRENOLOESER SETEMBRO/OUTUBRO 2020 47
Segundo Anna, todo praticante da religião de matriz onde o professor disse sobre as faltas escolares de — O racismo é uma estratégia de opressão que é formamos um ambiente de pessoas que compactuam
africana conhece ou conheceu algum irmão de santo um aluno: “Quem mandou esse aluno fazer o santo?”. ensinada. Os primeiros passos e as primeiras lições com esse sistema de opressão, em todas as classes
que teme que seus familiares ou colegas de trabalho Isso mostra total falta de respeito com as obrigações racistas são ministradas em casa. Ali está a base da sociais.
fiquem sabendo das suas práticas, e isso, infelizmente, religiosas. A escola é o espelho de sua comunidade, e se formação racista, vinda obviamente dos pais. Para que
reforça o preconceito. Para ela, quanto mais esse é o comportamento de um educador dentro de um possamos criar uma geração saudável é imprescindível Mas, então, como combater o racismo religioso dentro
escondermos quem somos e o que praticamos, mais ambiente que precisa formar cidadãos, que cidadãos olhar para os pais e entender o que está sendo falado, dos ambientes de terreiro? Para David, a resposta é
seremos oprimidos. Mas para que isso não ocorra, é teremos futuramente? Um cidadão completamente para que essa geração não reproduza mais este tipo clara: educação e auto responsabilidade.
preciso empoderar essas crianças desde cedo, nos preconceituoso e que massacra a minoria, sendo que de violência. Para mim, o que falta são pautas anti
anos escolares. E é aí que entra outra problemática: a já notamos esse tipo de comportamento atualmente racistas reais e não oportunistas — explica. — São poucas as lideranças que estão dispostas
postura dos educadores. e precisamos combater! O reforço de práticas a discutir fatores como este dentro dos terreiros.
discriminatórias, por parte dos professores, só ajuda a Para David, a comunidade umbandista ainda é, A maioria dos sacerdotes de umbanda foram
— Em pesquisas feitas por mim, vi que um desses aumentar o número de crianças, e adultos, que sentem infelizmente, muito desligada de pautas sociais. epistemologicamente construídos para ensinar sobre
casos de intolerância foi em uma reunião de classe medo e vergonha de dizer sua religião — completa fundamentos, mas não sobre história da cultura
de professores de uma rede pública do Rio de Janeiro, Anna. — Quando falamos sobre racismo, misoginia, africana. Então, não podemos discutir educação
machismo, política, o umbandista pode ser religiosa no Brasil, se esta ainda é uma questão para
considerado semi-analfabeto. Porque a Umbanda os adultos.
é uma religião nova, onde a maioria dos que fazem
parte não precisam pensar nestas questões porque *Alguns nomes foram alterados visando preservar a
a maioria dos umbandistas são brancos, a maioria identidade dos depoentes.

NÃO PODEMOS DISCUTIR EDUCAÇÃO das lideranças são brancos, homens e héteros. Então,

RELIGIOSA NO BRASIL, SE ESTA AINDA


É UMA QUESTÃO PARA OS ADULTOS
Educação nos Terreiros
- Anna Luiza Diakakis de Stela Caputo

Julia: no Jardim dos Orixás


de Natália Peon e Thiago Pugliesi Carvalho

Intolerância religiosa ou racismo religioso? Conhecendo os orixás de


Exu a Oxalá
de Caco Bressane e Waldete Tristão

Há alguns anos a discussão entre os dois termos tem Um dos defensores desta causa é David Dias que, além Contos de Òrun Àiyé
chamado a atenção. Há quem diga que a reivindicação de sacerdote de Umbanda é pesquisador e mestrando de Hugo Canuto
não por tolerância e, sim, respeito. Mas também há em Ciência da Religião pela Pontifícia Universidade
quem afirme que esta forma de preconceito é um Católica de São Paulo (PUC/SP). Para ele, o termo Para Educar Crianças
reflexo várias formas de racismo exercidas pela intolerância religiosa só serve para representar o que Feministas
sociedade desde a colonização do país e, por isso, não é este preconceito, porque o termo racismo religioso de Chimamanda Ngozi Adichie
há como separar a religião do fator racial dos povos ainda é pouco compreendido no Brasil e, mesmo
que originaram o culto. quando aparece, ainda é um tabu. Intolerância Religiosa
de Sidnei Nogueira

48 SETEMBRO/OUTUBRO 2020 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO ILUSTRADOR SIGA @BRENOLOESER SETEMBRO/OUTUBRO 2020 49
LUGAR DE CRIANÇA
É NO TERREIRO
Naíse Domingues
por:

Crescer vivenciando a rotina das casas de axé


permite o contato da criança com os valores da
religião e une forças ao combate à intolerância

Dentro de uma casa de axé, o cotidiano leva os filhos do local a lidar frequentemente
com as forças infantis. Seja no culto a Ibeji ou na presença dos erês, esta energia
também é essencial na rotina de muitos terreiros. Mas para além das manifestações
espirituais, a vivência das crianças nas casas de santo é um complemento educativo
e produz ferramentas de empoderar os pequenos na luta contra o racismo religioso.

Em paralelo ao ensino escolar, o aprendizado transmitido durantes os xirês, giras e


trabalhos espirituais, quando iniciado desde cedo, permite às crianças, sobretudo
as crianças negras, o contato com o conhecimento sobre a própria identidade
e ancestralidade. Para a pesquisadora Stela Caputo, fotógrafa e professora da
Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), o terreiro é um local de contato com
a história que não é contada pelo ensino básico.

— A escola é muito importante e também é um direito da infância. Mas, para uma


criança negra, será no terreiro que ela conhecerá, por exemplo, a história de Mãe
Menininha do Gantois, Mãe Senhora, Mãe Stella de Oxóssi, Mãe Beata de Yemanjá,
Mãe Olga, Mãe Regina. A história das grandes matriarcas negras não é contada
nas escolas, mas é contada na cozinha dos axés, nos barracões, nos hunkós¹, nas
camarinhas. Também não se ouvirá, nas escolas, a história de Tupinambá, de Sete
Flechas, da Cabocla Jurema. Não se ouvirá, de forma alguma, a história de Maria
Mulambo, Padilha, das ciganas. Tudo isso tece identidades outras, referência outras,
comportamentos outros e fundamentais para uma criança sentir-se amparada,
acolhida, identificada, reconhecida — elucida.

50 AGOSTO/SETEMBRO 2020 SETEMBRO/OUTUBRO 2020 51


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A caminhada das crianças na vida espiritual e a vivência no
terreiro, na maioria das vezes, acontece por herança familiar.
Este contato com orixá e o convívio com guias espirituais é
a criação que Karen Mendes e Leonardo Monteiro querem
As raízes do futuro
Esta transmissão, segundo a pesquisadora, é um discussão transmitir à filha Ayla, de um ano, quando decidiram batizá-
Acostumada a sempre incluir as crianças na roda, Mãe
constante no grupo de estudo que Caputo coordena na UERJ, que la na Umbanda. Mesmo entendendo que a filha pode seguir
Margareth de Oxum decidiu criar um xirê todo comandado
enxerga essa experiência didática como ferramenta de combate outro caminho no futuro, eles acreditam que crescer em
por crianças. A ialorixá conta que, há pelo menos 10 anos,
ao racismo religioso. meio à religião trará uma visão de mundo diferenciada para
tem o costume de, nas comemorações dos oduns de Oxum,
a pequena.
entrar acompanhada das crianças, sejam seus netos,
— O Kékeré, grupo de pesquisa da UERJ que coordeno, tem
bisnetos ou os filhos dos frequentadores da casa.
feito a campanha “O Terreiro é direito da criança”, justamente — Eu não imagino uma forma diferente de criar minha filha
para espalhar essa discussão. O direito ao terreiro é o direito porque eu quero que ela entenda que o mundo é muito mais
— Em um xirê, as mães entraram de mãos dadas com seus
à ancestralidade. O racismo estrutural tem muitas faces que a gente pode ver e que qualquer um que acha que isso é
filhos. Foi lindo de ver, aquelas mulheres entrando com seus
de terror e, uma delas, é o racismo religioso que tenta errado não consegue enxergar com clareza o quão grandioso
filhos empencados e dançando, e os rostinhos sorrindo e eu
quebrar os laços ancestrais e já faz isso há muito a espiritualidade é. Não é só a gente olhar pra uma imagem
pensei: não posso parar — lembra a mãe de santo.
tempo. A tradição ancestral é uma lâmina que corta e rezar, que não é só a gente ir numa igreja e pedir, existe um
os braços do racismo, por isso ela é tão atacada mundo que a gente pode não conseguir ver e ele faz parte
Desde então, o projeto Raízes de Iroko: filhos de Oxobô, do
pelo racismo e, pelo mesmo motivo, ela precisa dessa realidade — explica a mãe.
Ilê Asé Omi Bain, permite que crianças e adolescentes entre
ser defendida cotidianamente como nossos
um e 18 anos sejam responsáveis por todo o andamento
ancestrais nos ensinaram. Assim como Ayla, Lucca Pierre, de seis anos, também
da gira, desde a preparação. Os ogãs e equedes crianças,
frequenta o terreiro de Candomblé que sua mãe, Isabella
pré-adolescentes e adolescentes são orientados pelos
Monteiro, frequenta desde a gestação. Com apenas um ano
ogãs adultos responsáveis e conduzem todo o ritual. Quem
de idade, o menino fez o santo e foi iniciado como ogã do
comanda a roda são as equedes, de 12 e 13 anos, sob a
terreiro.
liderança da herdeira da casa. A maé², neta carnal de Mãe
Margereth que recebeu o posto aos cinco meses, hoje, aos
— Descobri lá no terreiro a gravidez e já estava de cinco
18 anos, lidera os mais novos durante o ritual. Cerca de vinte
meses. Tive um final de gestação meio conturbado e por isso
crianças frequentam o terreiro atualmente.
entreguei meu filho ao orixá, para cuidar que tudo ficasse
bem e viesse com saúde. E assim começou a caminhada
Dentre os ensinamentos, os pequenos ajudam participando
dele no Candomblé — lembra a mãe
da cozinha, seja da culinária espiritual ou do dia-a-dia. Em
um primeiro momento, um cargo no terreiro para crianças
A iniciação, bem como o contato direto de crianças com a
tão pequenas pode causar um estranhamento. Para
religião, como reforça Stela Caputo, é um direito garantido
Mãe Margareth, isso mostra que a criança tem a mesma
pela Constituição Federal, pelo Estatuto da Criança e do
importância de um adulto para o terreiro e que, independente
Adolescente (ECA) e pela Convenção Internacional sobre os
da idade, a hierarquia deve sempre ser respeitada por
Direitos da Criança, da qual o Brasil é signatário desde 1990.
todos. Mas para além de ensinar responsabilidade, a
educação passada aos mais novos tem como objetivo o
— O ECA enfatiza que o direito ao respeito abrange, entre
reconhecimento do sagrado nas coisas cotidianas.
outros aspectos, a preservação da identidade, dos valores
e das crenças das crianças e adolescentes. O mesmo
documento garante que a mãe e o pai possuem direito de
transmissão familiar de suas crenças e culturas. Por fim,
a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança ¹Hunkós: Também grafado como roncó. É o quarto
estabelece que os Estados partes devem respeitar o direito onde se guarda os assentamentos dos orixas
da criança à liberdade de crença e, do mesmo modo, que ²Maé: Herdeira
aos pais compete definir a orientação religiosa da criança.

52 SETEMBRO/OUTUBRO 2020 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO FOTÓGRAFO SIGA @BENDITO_BENEDITO SETEMBRO/OUTUBRO 2020 53
RECONEXÃO COM
A NATUREZA
Laura Blessmann
por:

Para energização espiritual, a loja Botica do Feiticeiro


produz banhos personalizados e consagrados por entidades

Com dias tão difíceis, pensamentos ruins, tanta energia de São Paulo, encontrou uma solução para que essas Para o mês de outubro, a pedido da Vovó Maria Conga que existe dentro de você: o banho dos erês vai fazer com
negativa rondando os planos e projetos de vida, tudo o magias atendam à necessidade específica de cada e do Caboclo Feiticeiro, entidades de Umbanda que que a fé nos domine nesse momento, e não vai deixar com
que buscamos, na verdade, é reenergização. Estar de cliente. Hoje, a empresa trabalha com banhos naturais acompanham os sócios da Botica do Feiticeiro, foi feito que a tristeza tome conta de nossas vidas — acrescenta
alma limpa, com boas energias e longe de tudo aquilo produzidos de forma limitada e ritualisticamente. o banho dos erês, que é consagrado exclusivamente à Jacqueline.
que pode nos impedir de seguir em frente e com bons A pedidos de consumidores, os banhos surgiram para energia dos pequenos. Para utilizar o banho, Jacqueline explica que, de acordo
fluídos. que as pessoas se sentissem bem e com energias — Esse banho foi pensado principalmente por causa com as entidades da casa, basta seguir duas alternativas:
Contudo, uma dúvida é onipresente: como preparar potencializadas. Para isso, são utilizadas diversas do momento difícil no qual vivemos. No momento de aproveitá-lo durante a higienização pessoal ou como
banhos espirituais para que essa renovação de energias plantas e ervas naturais para que os produtos sejam reclusão, ele tem como finalidade trazer toda a alegria dos escalda pés.
aconteça? A Botica do Feiticeiro, loja situada na cidade ideais para cada cliente. erês que existe dentro de cada um de nós. E não se engane — Todas essas maneiras vão fazer com que a sua vida se
— As plantas ajudam a reaproximar as pessoas da se você pensa que não precisa cuidar da espiritualidade encha de paz — conclui.
natureza, trazendo a energia dos quatro elementos: a
terra, o fogo, água e o ar. Os produtos são consagrados
por esses elementos e também podem ser consagrados
por uma entidade específica. O banho de geração, por
exemplo, é consagrado a Iemanjá — explica Jacqueline
Kirszenblatt, uma das proprietárias da marca.
Tudo que é utilizado nos banhos espirituais é produzido AS PLANTAS AJUDAM
A REAPROXIMAR AS
pela própria loja. A equipe consagra os produtos nas
linhagens dos orixás e das deusas montando um altar
quando o banho está pronto. Lá, ele permanece por 21 PESSOAS DA NATU- BOTICA DO FEITICEIRO
Rua Samambaia, 402, Bosque
REZA, TRAZENDO A
dias para que ocorra toda a energização.
— Tudo é feito por ordem das entidades da casa. da Saúde, São Paulo/SP
Inclusive, antes de embalar os produtos, a equipe ENERGIA DOS QUATRO @boticadofeiticeiro
ELEMENTOS: A TERRA,
confirma por radiestesia, sensibilidade a determinadas
011 94541-8034
radiações como energias emitidas por seres vivos e
elementos da natureza. Até a fita e o nó da embalagem O FOGO, ÁGUA E O AR SAIBA MAIS
têm um significado na energização.

- Jacqueline Kirszenblatt

ESTE É UM CONTEÚDO PUBLICITÁRIO PRODUZIDO ESPECIALMENTE PARA O CLIENTE SETEMBRO/OUTUBRO 2020 55


YORUBÁ
por:
Renata Barcelos Ire Omo (prosperidade para filhos), é assim que começo
esse texto.
Em várias famílias de orixás, as quais guardam a tradição
familiar como em Oyo, também tem no Esentaye a desco-
berta do orixá que aquela criança terá que cultuar duran-
Dentro da religião tradicional yorubá (Esin Orisa Ibile) te sua vida e ganhará seu nome. E, de forma recorrente,
quando se apura os aspectos positivos de uma consulta sempre pela ancestralidade familiar, a criança irá seguir o

A IMPORTÂNCIA
para alguém, seja ela através do obi, orogbo, erindilogun¹ orixá do pai ou do avô materno, garantindo assim a per-
ou ikin/opele ifá, pode aparecer “Ire Omo” como um prog- petuidade de culto.
nóstico. Temos dezenas de poemas dedicados à prospe-
ridade e com direta ligação com ter filhos. Faz parte da No decorrer de sua infância, a criança vai participar ativa-

DAS CRIANÇAS NA
cultura yorubá o entendimento que ter filhos é tão prós- mente de todos os ritos dos orixás, lembrando que, para
pero quanto ter dinheiro, vida longa ou a capacidade de os yorubás, a religião é inerente à vida, à existência de-
superar inimigos. les. Quando são pequenas, elas são as últimas na cadeia
hierarquia. Ganharão reconhecimento quando mostrarem

CULTURA YORUBÁ
Isso porque Esin Orisa Ibile tem em seu pilar a ancestra- todo o aprendizado que tiveram com os mais velhos, não
lidade. Ter herdeiros é garantir a continuidade e, assim, somente anciãos, elas também terão o auxílio dos ado-
fazer com que uma pessoa viva hoje seja lembrada pelas lescentes.
suas gerações futuras.
Nas comunidades onde se usa os Ese⁴, o treinamento in-
Um recém-nascido já é introduzido ao culto dos orixás clui repetir inúmeras vezes até que as crianças memori-
logo nos primeiros dias de vida. A primeira vez em que zem. São membros ativos, participam de tudo e aprendem
os pés da criança tocam o solo faz parte de um rito - o a viver com orixá.
chamado Esentaye. Fazendo uma comparação, é como se
fosse a cerimônia de batismo, porém yorubá. Neste pri- Alguns orixás possuem mais ligações com crianças que
meiro rito, os sacerdotes irão apurar os pré-desígnios que os outros. Como Osun, Yemoja, Kori Koto (às vezes rela-
aquela criança trouxe do Orun² para o Aye³. cionada ao culto de Egbe Orun) e Oyá. São particularmen-
te conhecidas por amparar crianças. O culto de Egbe Orun
poderá cuidar de aspectos ainda profundos como abiku
e problemas que a família ou as crianças possam estar
enfrentando.

A RELIGIÃO DE ORIXÁ
É BOA - EM TODOS OS ¹Erindilogun: Jogo de 16 búzios
ASPECTOS - PARA TODAS ²Orun: Céu
AS IDADES, JÁ QUE TODOS ³Aye: Terra

OS MEMBROS FORMAM A
⁴Ewe: Poemas de oráculos

SOCIEDADE.

- Renata Barcelos

Crianças acompanhando ritos


da iniciação de Renata em Oyo.
SETEMBRO/OUTUBRO 2020 57
Foto: Flávio de Paula
CONTOS
DE ORIXÁ
TÁ LEGAL, E OS IBEJI?
Ibeji, (alguns consideram orixá, outros não) em área
yorubá, em sua grande parte, é cultuado por famílias que David Barbosa
por:

possuem gêmeos. Taiwo, a primeira pessoa que chegou


no mundo, Kehinde, a último pessoa que chegou no
mundo: este é o nome da dupla de gêmeos ligados a Ibeji.
O mais velho é aquele que nasceu por último - isso porque
os yorubás acreditam que o mais velho empurrará o mais
novo para fora para que ele veja o mundo e dê segurança
para nascer. Eu desconheço que exista iniciação para Ibeji
em área yorubá.

Diz um dos Oriki: “Gêmeos que fazem pobre ficar rico. Se


Taiwo vai à frente, Kehinde fica para trás. Taiwo é mais
novo. Kehinde é o mais velho. Taiwo é enviado para sair
primeiro. Para sentir o gosto do mundo, para ver se é bom
ou ruim. O mundo é doce como mel, eles entram nas casas
dos reis e os fazem rir alegremente.”

OLHOU PARA O
Os gêmeos são considerados uma grande prosperidade
nas comunidades yorubá. As mães podem adotar uma
estátua de madeira para cada um dos filhos gêmeos e
cultuá-la. Alguns dizem que, quando um dos gêmeos

IRMÃO E VIU A SI
morre, a estátua que estava sendo cultuado pela mãe
passa a ficar junto com o irmão sobrevivente, a fim de não
Omironke e Alake, devotas
interromper a conexão e que continue a haver harmonia e de Yemoja, aprendendo o
prosperidade. jogo dos 16 búzios Oem Oyo
Foto: Renata Barcelos.
Aprendi, então, que as crianças precisam participar das
atividades que envolvem a religião. A religião de orixá é
boa - em todos os aspectos - para todas as idades, já que
todos os membros formam a sociedade. Deitado, o rosto afrouxava, o sono apaziguado que ter- se haviam invertido. Quem era silêncio era o irmão; ele
mina. Tão bonito. A pele cor de canela, olhos negrís- abundava nas sentenças, todas engolidas. Sem ter mais
simos, que já não se viam mais, porta fechada. Umas por que e a quem dizer. Vinte e sete anos eram muito.
poucas rugas dos sorrisos – pés de galinha e longos A vó, o dobro só de santo, lhe chamou de tarde. “Ibeji
parênteses guarnecendo a boca, cofre sempre aberto também perdeu seu outro”. Olhos. “Abriu a terra e se
de dentes largos e língua ferina, aquela que lhe atalhou amarrou ao par”.
O texto é baseado na prática de Orixá a noite quando atravessou resposta a um qualquer Olhos desentendidos. A mão se estende à mão com um
seguindo a tradição Yoruba - Esin Orisa Ibile numa mesa de bar. barbante.
(Òyó, Nigéria), e pensamentos e análises pessoais Olhou para o irmão e viu a si pois desde a mãe jamais Um metal com assinatura. Vítor – e até na letra eram
da autora. Renata Barcelos, Yemojagbemi Otan- se separaram. Saíram juntos, ele um bocadinho antes: a iguais. A velha mesma pôs em seu pescoço.
monle Arike, foi iniciada em Yemoja em Òyó e está mesma cor, dentes, olhos – diferiam no volume de sor- “Não tinha fio de prata”, desculpou, sempre dedos com
há mais de 30 anos no culto de orixá no Brasil. É risos. Ele muito menos, assim como as palavras. Ria e o neto diplomado. Ele, um só murmúrio de olho d’água,
criadora do canal Orisa Brasil (@orisabrasilofi- amava pra dentro. O outro vinha por trás e o assustava, não tinha problema.
cial), que fala sobre a tradição Yoruba. fazia carinho à cabeça, beijava-lhe a testa, copo de cer- Nem de terno tirava, sempre pra fora. No sol, o nome
veja desde cedo, e ele, de alegria, se queixava. Brigavam luzia, e alguns perguntavam. “Meu par”, explicava ele.
na hora dos conselhos: quem muito fala não ouve. Agora Alisava o ferro. Fazia bom tempo no Rio. Doía menos.

58 SETEMBRO/OUTUBRO 2020 PARA CONFERIR MAIS TRABALHOS DO ILUSTRADOR SIGA @BRENOLOESER SETEMBRO/OUTUBRO 2020 59
www.kobaexu.com.br

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