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Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça,

porque serão saciados (Mt 5.6)


Ir. Delci Franzen – C A I S
O líder e mestre espiritual hindú, o Mahatma Gandhi, disse que se
tivéssemos seguido o ensino do Sermão da Montanha, teríamos solucionado
os problemas do mundo inteiro.
É difícil imaginar uma pregação mais revolucionária ou mais
importante do que o Sermão da Montanha, relatado em Lucas 6 e, na
versão mais completa, em Mateus 5, 6 e 7. Jesus, já em plena vida pública
na Galiléia, (Mateus 4,23) rodeado pela multidão, sentou numa colina e
anunciou o “manifesto do Reino”.
Ao iniciar a proclamação do Sermão da Montanha, Jesus introduz sua
mensagem com uma lista de qualidades espirituais conhecidas como as
bem-aventuranças (Mateus 5,3-12). Nestes versículos ele diz que os
abençoados no Reino de Deus são: os humildes/pobres de espírito, os que
choram, os mansos, os que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos,
os limpos de coração, os pacificadores, os perseguidos por causa da justiça.
Cada uma das bem–aventuranças tem um significado muito
profundo, mas é importante refletir sobre o valor geral destes versículos
como um todo. As bem-aventuranças revelam uma misteriosa reviravolta
antropológica que consiste na passagem do ter para o ser, do ter para si ao
ser para os outros. Trata-se fundamentalmente de fazer da própria vida
uma doação! (card. C. M. Martini).
E’ importante para a compreensão das bem-aventuranças que não
sejam tratadas separadamente, pois não teríamos algum benefício em
chorar sem sermos misericordiosos ou sermos perseguidos sem termos
fome e sede de justiça. As bem-aventuranças também não devem ser
consideradas qualidades naturais, pois não se trata de sermos naturalmente
pessoas choronas ou mansas, mas de atitudes relacionadas a construção do
Reino de justiça, de fraternidade e de paz. As bem-aventuranças, enfim,
não devem ser entendidas em termos puramente materiais. O Reino de
Cristo é a realização de um mundo humano conforme o projeto de Deus,
construção feita por pessoas novas levadas pelo espírito de Deus. O Reino

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de Deus, portanto, não é uma nação física onde se vive a era dourada, com
fronteiras geográficas definidas, mas este mundo das contradições, das
injustiças, das violências e das guerras, onde a felicidade é dada por novos
valores, novas atitudes que produzem as obras da paz, da justiça, sob o
reinado de Deus.
Ao proclamar as bem-aventuranças, Jesus comunica o caminho da
vida que ele mesmo percorre, aliás, que ele mesmo é. A figura de Jesus –
disse Gandhi - paciente, amável, humilde, perdoador, aparece como a
perfeição suma do ser humano. O Catecismo da Igreja Católica (1717) diz
“As bem-aventuranças desenham o rosto de Jesus Cristo e descrevem a sua
caridade”.
No início de seu ministério em Nazaré (Lc 4, 18- 19), Jesus proclama
Isaias “O espírito do Senhor repousa sobre mim, porque o Senhor
consagrou-me pela unção; enviou-me a levar a boa nova aos humildes,
curar os corações doloridos, anunciar aos cativos a redenção, e aos
prisioneiros a liberdade; proclamar um ano de graças da parte do Senhor, e
um dia de vingança de nosso Deus; consolar todos os aflitos, dar-lhes um
diadema em vez de cinzas, o óleo da alegria em vez de vestidos de luto,
cânticos de glória em lugar de desespero” (Is 61, 1-3). Mateus lembra esta
proclamação ao longo do ministério de Jesus, no capítulo 11: “Ide e contai a
João o que ouvistes e o que vistes: os cegos veem, os coxos andam, os
leprosos são limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, o Evangelho
é anunciado aos pobres. Bem-aventurado aquele para quem eu não for
ocasião de queda!” (Mt 11,4-6).
Jesus não só proclama as bem-aventuranças, mas encarna cada uma
delas em toda a sua vida até a cruz. Esta dimensão cristológica é
fundamental para a nossa compreensão desta proclamação desafiadora.
Jesus é o pobre e o reino, ele é o faminto, o aflito, o perseguido, o
pacificador, o manso, o operador de paz e de justiça que experimenta a
bem-aventurança e a felicidade do Reino de Deus.
O Catecismo da Igreja Católica afirma também que as bem-
aventuranças exprimem a vocação dos cristãos associados à glória da
paixão e ressurreição de Cristo; definem os atos e atitudes características

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da vida cristã. (1717). Para ter o privilégio de participar do Reino de Deus e
de Jesus Cristo, precisamos desenvolver as qualidades descritas nas bem-
aventuranças.
Jesus propôs esse caminho como via para a verdadeira felicidade aos
pobres que encontrava nos campos e nos povoados e a todas as pessoas
que se dispunham a segui-lo.
No tempo de Jesus havia pobres lavradores sem terra para cultivar e
com impostos a pagar, enfermos excluídos da sociedade, pessoas pedindo
esmola, escravos, viúvas sem amparo, órfãos e menores abandonados,
pessoas aflitas em lacrimas. A esse povo sem esperança, Jesus se dirigia
dizendo “Ashrè!”, palavra que em hebraico significa especialmente um
convite a ir adiante, a ser feliz. Para os pobres há uma promessa certa por
parte de Deus e “Ashré!” é a palavra que significa um estilo de vida que
deve ser assumido, palavra que muda a visão da vida e das relações com
Deus, com a humanidade e com o mundo: partilhar, construir a paz, lutar
por uma justiça maior.
E é importante lembrar a situação ao tempo da redação dos
evangelhos: as guerras judaicas, milhares de pessoas mortas e
escravizadas pelos romanos, cidades e campos devastados e os cristãos
perseguidos. A todos “Ashrè!, buscai primeiro o Reino de Deus, sejam
felizes”. Podemos assim refletir sobre as situações nos tempos de hoje, as
guerras, os migrantes, crianças e adolescentes abandonados e excluídos
dos seus direitos.
As bem-aventuranças, enfim, anunciam o dom escatológico da vida.
Escatológico no sentido que se refere à plenitude da vida. O anúncio que
Jesus faz das bem-aventuranças possui uma dimensão eterna, não um
simples ganho obtido na história, mas o anuncio da superação da história. O
futuro - ”serão fartos”, “serão consolados” possuirão a terra” – indica
exatamente esta dimensão escatológica do presente, uma realidade
concreta deste mundo, desta vida. As bem-aventuranças apresentam o
evangelho como uma possibilidade real de viver neste mundo na grande
perspectiva que vai além deste mundo. As bem-aventuranças remetem
para a mensagem aos bem-aventurados do juízo final, os benditos do Pai

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quando partilham os bens, socorrem os necessitados e assim já são
benditos nesta vida...(Mt 25, 31-46). Jesus Cristo, sua vida doada, a
condenação injusta, a paixão sofrida e a gloriosa ressurreição são a
consumação do “Ashré”.
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão
fartos (Mt 5.6)
E’ neste sentido, no contexto de uma leitura global, que podemos
interpretar a bem aventurança: Bem aventurados os que tem fome e sede
de justiça. Quem são as pessoas que hoje tem fome e sede de justiça? Que
caminho seguir para saciar esta fome e esta sede e sentir-se fartos e
felizes, mesmo sendo perseguidos?

Quem teve a sorte de visitar a Palestina sabe bem quanto era fácil
nas regiões áridas e nas proximidades do deserto passar fome e desejar um
copo de água. Fome e sede são necessidades básicas da vida, porque é
exatamente satisfazendo esta necessidade é que nos mantemos em vida.
Fome e sede, nomeados juntos significam uma exigência profunda e
indicam aquelas pessoas presas por um desejo profundo, não superficial e
passageiro.

Na Bíblia encontramos muitas expressões que revelam a experiência


da fome e da sede: “Como a corça anseia pelas águas vivas, assim minha
alma suspira por vós, ó meu Deus. Minha alma tem sede de Deus, do Deus
vivo (Sal 41, 2÷3). “Ó Deus, vós sois o meu Deus, com ardor vos procuro.
Minha alma está sedenta de vós e minha carne por vós anseia como a terra
árida e sequiosa, sem água” (Salmo 62,2). “Virão dias - oráculo do Senhor
Javé - em que enviarei fome sobre a terra, não uma fome de pão, nem uma
sede de água, mas (fome e sede) de ouvir a palavra do Senhor”. (Am 8,
11). Jesus usa esta expressão no discurso de Cafarnaum: “Eu sou o pão da
vida; aquele que vem a mim não terá fome, e quem crê em mim nunca terá
sede” João 6:35. E enfim no Apocalipse os eleitos “já não terão fome, nem
sede”(Ap 7,15). A superação da fome e da sede é a superação do limite, a
realização, a plenitude.

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No contexto das bem-aventuranças as pessoas que tem fome e sede
são aquelas que desejam, anseiam a justiça plena do Reino de Deus. Justiça
é uma palavra fundamental nas bem-aventuranças e no Evangelho de
Mateus e não aquela do sentido comum, de dar a cada um o que lhe
pertence, o que é seu. Que quer dizer isso? “Você é pobre, fique pobre. Eu
sou rico e tudo o que tenho é meu?” - por exemplo. A justiça é a primeira
exigência do amor: “a medida mínima da caridade” (Paulo VI). Mínima, mas
imprescindível. Nenhuma relação de amor é possível, nenhuma ação tem
credibilidade sem a justiça. O caso de Zaqueu de Jericó é emblemático para
a compreensão da justiça do Reino (Lc.19,1-10). “Zaqueu de pé diante do
Senhor, disse-lhe: Senho, vou dar a metade dos meus bens aos pobres e,
se tiver defraudado alguém, restituirei o quádruplo.” Disse-lhe Jesus: Hoje
entrou a salvação nesta casa” (Lc.19,8-9).
Segundo o apóstolo Paulo, justo é aquele que é justificado por Deus
de todos os seus pecados. Essa é a justiça primária pela qual as pessoas
que têm fome e sede são felizes. Elas sentem-se famintas e sedentas de
uma justiça que é, antes de tudo, paciente, misericordiosa, cheia da graça
de Deus. Essa justiça alimenta o discípulo de sonhos e esperanças. Assim, o
discípulo sente fome e sede de ver os pobres de espírito herdando a nova
sociedade alicerçada na justiça de Deus, desenhada em conformidade ao
Reino de Deus. Essa justiça é, portanto, um anseio, uma opção, uma tensão
forte para que a vontade de Deus se realize e o seu Reino venha a nós, na
nossa história até a plenitude, como pedimos no Pai Nosso. Daí a exortação
de Jesus “Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça e todas
estas coisas vos serão dadas em acréscimo” (Mt.6,33).
Ashrè! Famintos e sedentos de justiças, vocês serão saciados.Toda a
ação pastoral para resgatar os pobres, promover e defender os direitos das
crianças e dos adolescentes será fonte de alegria, felicidade e força. Será
bem-aventurança, mesmo com perseguição, incompreensão e luta. Ashré –
“sigam em frente” perseguidos por causa da justiça, porque vosso é o Reino
dos Céus!
Brasília, DF, setembro de 2016.

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