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Prefácio

Quem já esteve na região amazônica certamente se se sentiu impactado pela potência


de suas ambiências. De minha parte, guardo lembranças de um profundo
encantamento pela cidade de Belém, que me surpreendeu pela força de seus
estímulos sensoriais. Senti que a cidade possuía uma temporalidade diferente daquela
que eu conhecia, não apenas pela mistura de sua arquitetura eclética colorida e de
seus edifícios modernos, mas também por um pulsar de ritmos da natureza, da chuva,
dos ventos. Encantei-me com as frondosas mangueiras que produziam sombras
dramáticas em contraste com o sol escaldante (nada semelhante às sombras rendadas
que sequer filtram a luz do sol); com o perfume das frutas misturando-se ao cheiro do
pescado fresco; com as vozes das pessoas, que soavam nítidas e alegres sobrepondo-
se ao barulho dos barcos e da rua agitada por veículos. Encantei-me também com a
força da natureza quando enormes nuvens desabavam em chuva quente, levantando
umidade do asfalto.

É por meio desse emaranhado de sensações, dessa sinestesia onde os sentidos se


articulam e se conjugam, que percebemos o mundo que nos rodeia, sendo difícil
“isolar” um sentido do outro. Assim, temos a sensação de que nosso corpo não se
restringe aos limites da pele, mas é alargado por nosso campo perceptivo, permitindo-
nos vivenciar o lugar e edificar uma estrutura relacional com o espaço.

Nossa relação com o espaço é dinâmica. A todo o momento estamos sentindo,


percebendo, analisando, contextualizando o lugar no âmbito de um processo
cognitivo. Quando nascemos, percebemos o mundo por meio de estímulos sensoriais
e, à medida que crescemos, tomamos consciência de nossa existência a partir de
nossas experiências corporais, assimilamos referências sociais, aprendemos as lógicas
culturais do grupo a que pertencemos. A nossa percepção, portanto, nunca é
desvinculada dos valores e significados que dão coerência ao entorno em que vivemos.

Cabe ressaltar aqui que, quando falo de entorno, não estou falando de um local
apenas físico. Estou falando da ambiência, que é esse conjunto constituído pelo
suporte espacial (o espaço urbano, a arquitetura), pelos estímulos sensoriais que dele
emanam, por sua dinâmica e de sua atmosfera moral. As ambiências constituem-se em
tema complexo na medida em que abrigam questões materiais, imateriais e suas
implicações nas subjetividades em função dos filtros culturais e psíquicos adquiridos
por nossa história de vida e nossa cultura.

Por mais intrincado que o tema possa parecer, o estudo das ambiências tem se
mostrado essencial não apenas para a compreensão da complexidade da vida urbana
na contemporaneidade, mas, também, para o próprio fazer arquitetônico. De fato, o
conhecimento das dimensões subjetivas e culturais do espaço construído permite ao
pesquisador em Arquitetura e Urbanismo destrinchar os meandros do uso, da
apropriação e dos significados do lugar, sem os quais todo projeto seria fadado ao
fracasso. Muito tem se publicado sobre morfologia, desempenho e estética da obra
arquitetônica, mas ainda são poucos os estudos que reconhecem nela a função
primordial de engendrar experiências corporais, memoriais, estéticas e afetivas.

Os textos apresentados no livro “Percepção do Ambiente Construído. Por mais


humanização em arquitetura e urbanismo” vêm preencher essa lacuna, comprovando
a importância de um viés mais humanizado e consolidando o PPGAU da UFPA em
posição de vanguarda na pesquisa em Arquitetura e Urbanismo.

Sob a organização sensível do professor Luiz de Jesus Dias da Silva e contando com
uma forte equipe de docentes e pesquisadores, os capítulos deste livro demonstram,
com rigor científico, a desejável articulação dos objetos próprios da pesquisa em
Arquitetura com a base teórica das disciplinas das ciências humanas e sociais. Assim,
pela forma com a qual fomenta a construção de um diálogo entre essas diversas
disciplinas, a leitura deste livro abre um leque de possibilidades metodológicas para a
pesquisa do habitar humano, abrangendo a compreensão dos mecanismos perceptivos
e buscando desvendar as lógicas culturais por meio da etnografia. Os autores ratificam,
desta forma, a inexorável ligação dos aspectos que compõem o lugar em suas
dimensões subjetivas e culturais.

Por todas estas razões, considero o livro muito pertinente. Ele nos faz repensar os
postulados que transformaram a arquitetura contemporânea em uma obra
meramente “retiniana” (como diz Pallasmaa), uma obra feita para ser fotografada, mas
que não é mais capaz de abrigar nossos sonhos e anseios individuais e coletivos.

A maioria dos trabalhos deste livro mergulha o leitor na experiência do campo e


elucida as formas de compreensão das reações de afeto, das identificações, das
construções identitárias e do acionamento da memória emocional que o lugar
construído pode nos proporcionar. A arquitetura e o espaço urbano tornam-se pistas
para desvendar os sistemas de referências sociais e culturais e conhecer as pessoas
que neles vivem.

Além disso, sendo o recorte geográfico dos artigos composto de espacialidades


urbanas amazônicas (Belém, Manaus), o leitor receberá, de quebra, uma imersão nas
cores, nos cheiros, nas vozes e nos perfumes locais e sentirá, como eu sinto até hoje
desde a minha primeira visita a Belém, um profundo encantamento por uma das
regiões mais fantásticas do planeta.

Cristiane Rose de S. Duarte

Rio de Janeiro, 20 de julho de 2020

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