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14 Os aterramentos entre a
Cidade Nova e o Caju
Hospital de São Cristóvão, por Thomas Ender (1793-1875). (Fonte: BN Digital icon395061_36_127)
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m cumprimento à legislação que rege a exe- Coletor Tronco Cidade Nova é uma das obras que integram o Programa
cução de obras públicas e privadas, vem sendo de Saneamento Ambiental dos Municípios do Entorno da Baía de Guana-
realizado o Projeto de Diagnóstico Interven- bara (PSAM), criado em março de 2012 pelo Governo do Estado do Rio de
tivo, Monitoramento, Caracterização e Educação Patri- Janeiro, que firmou um contrato de empréstimo com o Banco Interamericano de
monial do Patrimônio Arqueológico e Histórico da Área Desenvolvimento (BID).
de Influência do Coletor Tronco Cidade Nova, através O Programa tem a coordenação da Secretaria de Estado do Ambiente – SEA e tem como
do qual o empreendimento é monitorado pela equipe de objetivo contribuir para reduzir o atual quadro de degradação ambiental da Baía de Gua-
arqueologia em todas as atividades de intervenção no nabara por meio da ampliação do saneamento básico nos municípios do entorno da Baía.
subsolo. O Rio como ele era é parte integrante da pes- A obra situada na região central do Rio de Janeiro prevê a instalação de cerca de
quisa para implantação do Coletor Tronco Cidade Nova 4.377 metros de coletor tronco para a captação do esgoto e sua destinação final à
e agrega atividades voltadas para a construção do co- Estação de Tratamento de Esgoto de Alegria (ETE Alegria), já existente.
nhecimento tendo como tema a pesquisa arqueológica. O trajeto do coletor passa por áreas de tráfego intenso e densamente povoadas, que
Nosso objetivo é dialogar com os profissionais da área compreendem as avenidas Paulo de Frontin e Francisco Bicalho, região do Teleporto e as
de educação sobre o uso do conhecimento proveniente das ruas Benedito Hipólito, Afonso Cavalcanti, Francisco Eugênio, São Cristóvão e Melo e Souza.
pesquisas arqueológicas em sala de aula. Por este motivo, Esta obra beneficiará aproximadamente 163 mil pessoas por meio da captação do
esta publicação foi elaborada em atenção aos educadores esgoto sanitário nos bairros: Cidade Nova, Centro, Catumbi, Rio Comprido, Estácio e
e seus educandos, de forma a motivar o diálogo na cons- Santa Teresa. Como resultado haverá uma redução do despejo de aproximadamente
trução do conhecimento. Neste sentido, vale ressaltar 700 litros de esgoto por segundo na Baía de Guanabara
a frase de Paulo Freire, pesquisador que norteia e inspira Para minimizar o impacto da obra no sistema viário e causar o menor transtorno
nosso trabalho de Educação Patrimonial em Arqueolo- possível para a população, a intervenção é executada com equipamento próprio para
gia, ao dizer: Ensinar não é transferir conhecimento, mas, escavação de túneis e instalação da tubulação no subsolo, não havendo maiores trans-
criar as possibilidades para sua produção ou sua cons- tornos na parte superior dessa região.
trução. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende
ensina ao aprender. Marco Aurélio Damato Porto
Esperamos que a leitura de O Rio como ele era seja Secretário de Estado do Ambiente
uma oportunidade de imersão no campo da Arqueologia!
Sérgio Tavares Romay
Com carinho, Coordenador Executivo PSAM
Rio de Janeiro e sés environs,
prise du Palais de Ste Christophe
[Iconográfico]: [amanhecer]
MaDu Gaspar, Frederico Menezes Coelho
(Fonte: BN Digital icon334952) Coordenadora Científica do Projeto de Arqueologia Coordenador de Obras
O Rio como ele era integra o Projeto de Diagnóstico A interdisciplinaridade questiona a segmentação entre os
Interventivo, Monitoramento, Caracterização e Educa- diferentes campos de conhecimento produzido por uma
ção Patrimonial do Patrimônio Arqueológico e Histórico abordagem que não leva em conta a inter-relação e a in-
da Área de Influência do Coletor Tronco Cidade Nova fluência entre eles – questiona a visão compartimentada
que vem sendo realizado em cumprimento à legisla- (disciplinar) da realidade sobre qual a escola, tal como é Atividade de Educação Patrimonial em Arqueologia com estudantes do Ensino Fundamental (Foto: acervo Artefato)
ção federal que rege a execução de obras públicas e conhecida, historicamente se constitui. Refere-se, por-
privadas. tanto, a uma relação entre disciplinas. A transversalidade
A perspectiva de ter professores e outros profissio- diz respeito à possibilidade de se estabelecer, na prática que a paisagem se configure em um artefato dinâmico
nais da área de educação como elemento principal do educativa, uma relação entre aprender na realidade e da que deixa de ser um mero reflexo das ações sociais para A c o n s t ru ç ã o d a m emóri a é fund a menta l
público participante deste projeto é decorrente da cer- realidade de conhecimentos teoricamente sistematiza- ser compreendida como sujeito ativo, que transforma e é pa r a a p e r ce p ç ã o d o P atrimônio C ultur a l ,
teza de que são, potencialmente, multiplicadores dos co- dos (aprender sobre a realidade) e as questões da vida real transformado através do tempo (Macedo, 2003). e la é permeada de identidade e representação ,
nhecimentos construídos, entre seus alunos e colegas de (aprender na realidade e da realidade) (PCN, 1997:40). Na pesquisa arqueológica realizada para a implantação elementos essenciais à preservação e va lori -
profissão. A ideia é que desenvolvam atividades voltadas do Coletor Tronco Cidade Nova, foi possível visualizar as in- z a ç ã o d o pat r i mô n i o .
para a Educação Patrimonial, percebendo sua importân- Com base no entendimento de que a educação é um terferências que os aterramentos deixaram na paisagem e
cia e as possibilidades de desenvolvê-las em suas práti- processo dialógico, esta publicação traz o conteúdo vol- no modo de ocupação da cidade. Entre elas, a ampliação
cas docentes. tado a fomentar a discussão sobre o Patrimônio Cultural da área sobre o mar, o desmonte de morros e o reaprovei-
Neste sentido, e no âmbito da educação formal, a Lei visto pela perspectiva da Arqueologia, ciência inter e mul- tamento do sedimento nos aterros, a exploração de deter- mentos (Nora, 1993). Com a reinterpretação do espaço,
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei n° tidisciplinar, através da qual se abrem diferentes possibili- minadas áreas como as praias e rios, cujos materiais com- paisagem, modos de vida e cultura a partir da Arqueolo-
9.394/96, em seu artigo 26, abre espaço para que, desde dades de compreensão e de reconhecimento do patrimônio. pletavam estes aterros, além dos refugos de material cons- gia, a memória ganha a possibilidade de nova construção.
a Educação Infantil ao Ensino Médio, haja uma comple- Além de destacar a multidisciplinaridade da pesquisa trutivo e daqueles provenientes das pedreiras, por exemplo. O Patrimônio Cultural, seja ele de natureza material
mentação do ensino diversificado, tendo em vista as ca- arqueológica, tendo em vista sua interlocução com a Todo este processo contou com o desaparecimento e ou imaterial, localiza-se em uma zona de conflito dos
racterísticas regionais e locais da sociedade, da cultura História, Geografia, Geologia, Antropologia, Arquite- surgimento de lugares e influenciou as memórias. A cidade grupos étnicos, das políticas públicas e dos interesses
e da economia dos educandos. Os Parâmetros Curricula- tura e Antropologia, entre outras, é oportuno perceber se ampliava, os bairros se estabeleciam e, com isso, a socie- públicos e privados. Participar e levar em consideração
res Nacionais (PCN) para o Ensino Fundamental também a ocupação da região por meio de estudos embasados dade também era impactada. Os espaços de moradia, cul- esses conflitos é fundamental para a elaboração das ati-
contribuem e aprimoram as possibilidades de utilização pelas teorias da Arqueologia da Paisagem, em especial tivo, comércio, prestação de serviços e lazer tomavam forma vidades de Educação Patrimonial. Não há dúvidas sobre a
da arqueologia a partir dos temas transversais “Plurali- por se tratar de um espaço composto por terrenos ori- e identificavam os segmentos sociais que ali conviviam e es- importância de sua preservação e valorização para uma
dade Cultural” e “Meio Ambiente”, que consolidam a in- ginais e aqueles conquistados pelos aterros da baía. Se- tabeleciam suas relações. Eram, e continuam sendo, dife- nação e o legado que se pretende deixar sobre sua histó-
terdisciplinaridade, já que estes propõem alguns assun- gundo Macedo e Andrade (2016), a paisagem gera um rentes modos de perceber, de sentir, de fazer e de pensar. ria. Contudo, em tempos de patrimonializações, falar em
tos aplicáveis às diferentes disciplinas tornando, assim, campo ampliado de análise, uma perspectiva de inter- A Arqueologia perpassa o conjunto formado pela inte- patrimônio aguça múltiplas questões e, neste contexto,
o processo de aprendizagem mais coeso e coerente na pretar o contexto no qual os artefatos são encontrados ração do espaço e suas transformações, o indivíduo, a cul- faz-se necessário que estas aflorem para que se possa
formação do conhecimento. nos sítios arqueológicos e estes, os sítios, como um lu- tura e a paisagem, todos constituem seus diferentes obje- dialogar coletivamente sobre temas como: para quem e
Sabe-se que, na dimensão escolar, a Educação Pa- gar permeado de histórias e sentidos e não como um tos de análise dotados e formadores de memória. A memó- para o quê servem os patrimônios? Quem patrimonializa,
trimonial possibilita uma prática interdisciplinar e ainda cenário estático. Os autores apoiam-se nas reflexões de ria não está presa ao ato ou objeto passado, ela é constru- o quê e com quais objetivos? (Gonçalves, 2012).
facilita o exercício da transversalidade na Educação Bá- Tilley (1994:32) as quais sugerem que o espaço é um ída e pode vir a ser reconstruída, é a leitura que no presente Os processos de patrimonialização envolvem muitas
sica, como previsto nos PCN: meio através do qual as ações acontecem, fazendo com fazemos do passado, formada por lembranças e esqueci- questões, disputas e demandas e algumas destas ques-
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riais arqueológicos, presença de interferências recentes Na medida em que se segue pelo trecho do empre-
como tubulações de gás, água e esgoto entre outros as- endimento em direção a área do bairro Cidade Nova, é
pectos que diferenciam as camadas de solo evidenciadas possível perceber que os aterramentos se tornam me-
Note-se neste mapa a indicação do morro que fornecera o aterro, localizado nas imediações do hospital dos Lázaros. Mapa Rio de Janeiro [Cartográfico]: do
durante uma escavação. nos espessos. Esta área, segundo registros históricos, campo de São Cristóvão à pedreira de São Diogo (ca.1800) (Fonte: BN Digital cart326436)
compreende o entorno do antigo Saco de São Diogo,
uma das maiores superfícies de manguezais da Baía de poço, localizado na Rua Afonso Cavalcanti em frente à
E str at i g raf i a é o e s t u do da g ê n e s e , d a Guanabara, ocupando cerca de 8km2, como pode ser Escola de Enfermagem da UFRJ (PV08), foi identificada
sucessã o , n o t e m p o e n o e s pa ç o , e da r e p re - visualizado nos mapas das páginas 10 à 13 (Amador, uma camada pouco espessa de sedimento característico
sentativ id ad e h o r i zo n ta l e v e r ti cal d as 1997: 226). de alagadiço ou pequeno brejo.
ca ma da s e s e q u ê nc i a s d e s e d i me n to s e r o c h as O Estuário de São Diogo, também conhecido como Saco de São Tanto a diversidade quanto a extensão dos tipos de
de uma r e g iã o , b u s can d o - s e d e t e r mi n a r o s Diogo, era um extenso braço de mar, bastante largo em sua de- depósitos das áreas de estudo permitem afirmar que,
eventos , p r o c e ss o s e am b i en t e s g e o l ó gi c o s sembocadura, que era balizada pela Gamboa à direita e pela entre os séculos XVIII e XIX, as obras de aterramento
associad o s 1
. Ponta do Cajú e Ilha dos Ferreiros à esquerda. Em direção ao in- resultaram em enorme movimentação de terras mate-
terior o estuário se estreitava progressivamente sofrendo uma rializada no imenso volume de sedimentos depositados,
inflexão para a esquerda até atingir as imediações da atual tendo em vista a espessura significativa dos aterros.
Praça XI. No seu curso recebia a contribuição dos rios Iguassú Vale ressaltar a mobilização necessária para a explora-
Os resultados permitem afirmar que a área de estudo (atual Rio Comprido), Maracanã, Trapicheiros, Joana e Catumbi, ção de diferentes áreas de captação deste recurso, algo
está assentada sobre densas camadas de aterro que va- que descreviam meandros de maré no trecho de planície, ser- que envolvia deslocamento e transporte de todo o vo-
riam de 1,5m a mais de 4m de espessura, sendo que as penteando por extensos manguezais[...]. lume de sedimento.
camadas mais espessas, ou seja, a área que mais recebeu Os dados obtidos revelam que, certamente, foram obras
aterros está, principalmente, próxima à região portuária, A escavação de um dos poços localizado na Cidade que tiveram forte impacto não somente na paisagem da ci-
território que avançou sobre o mar. Nova, entre as ruas Afonso Cavalcanti e Benedito Hipó- dade, mas, principalmente na vida das pessoas que partici-
A partir das intervenções no solo e ao longo dos di- lito (PV07), a partir de 1,20m de profundidade, revelou param desta dinâmica, seja como transeunte, interagindo
ferentes pontos estudados foram identificados diversos a presença de sedimentos cujas características sugerem com cenários em forte transformação, seja como trabalha-
tipos de aterro, variando fortemente suas característi- origem estuarina, tal como descrito por Amador (1997), dor, atuando sobre a construção das bases da cidade e, ao
Seção de Perfil mostrando a diversidade de tipos de aterros localizados nas
cas de textura, cor, grau de compactação, umidade, pre- para as imediações da Praça XI. Por outro lado, em outro mesmo tempo, sendo transformado por ela. escavações (PV021) (Foto: acervo Artefato)
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• •• de novas ruas e entre São Cristóvão e Cidade Nova, no-
•'t c• nt,•o~ tando-se que a área onde havia o Mangal de São Diogo
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teve seus aterramentos concluídos, com águas drenadas
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• e retificadas para o Canal do Mangue que acabara de ser
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• construído ao longo da Avenida Francisco Bicalho e Ruas
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Visconde de Itaúna e Senador Euzébio. Em 1932, perce-
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• ' be-se a região da Cidade Nova totalmente urbanizada e
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que, ao Leste do Morro do Castelo, uma nova área havia
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I ·- ••11u IIIIU sido aterrada no local onde, a partir de 1934, foi cons-
truído o atual o aeroporto Santos Dumont. Plano da Cidade do Rio de Janeiro com a parte essencial do seu porto e todos os lugares fortificados, de 1796 (Fonte: BN Digital cart209337)
10 C adernos de E d u c a ç ã o P at r i m o n i a l em Arqueologia
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Panta do Rio de Janeiro, 1831 (Fonte: BN Digital cart326112) El nuevo Rio Janeiro - Planta indicativa de las calles y avenidas nuevas y los pavimentos hechos, el gran puerto comenzado y algunos de los muchos edificios
construídos em el período 1903 – 1906 (Fonte:http://www.novomilenio.inf.br/santos/h0300k6f027.htm)
Planta da muito leal e heroica cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, 1852 (Fonte: BN Digital cart309952) Planta informativa do centro da cidade do Rio de Janeiro: especialmente organisada para o Guia Briguiet, 1932 (Fonte: BN Digital cart451455)
Ao longo do Caminho do Aterrado, construído sobre o vés de resolver os problemas de umidade e escoamento
mangue, colunas de pedra e cal foram erguidas a cada das águas, agravaram a situação, pois o número cres-
100m, nas quais colocaram-se lampiões para iluminação cente de construções impermeabilizou o terreno e cau-
da estrada que ligava o Paço Real à Quinta da Boa Vista. sou constantes inundações (Cavalcanti, 2004).
Nele também havia proteções de madeira pintadas de Benchimol (1992) informa que com a chegada da
A Fábrica de Gás, ou Gasômetro, no Caminho do Aterrado em gravura de Pieter Godfred Bertichem, s.d. (Fonte: BN Digital icon393044_26)
vermelho para proteger carruagens, carroças e tílburis Corte foram construídas 600 novas casas na cidade en-
de caírem no mangue. Na segunda década do século XIX tre 1808 e 1816 e que a população em duas décadas
já havia um corpo de guarda da polícia, próximo à Ponte passou de 100 mil habitantes em 1822 para 135 mil em Mesmo antes de serem concluídos os aterramentos do as duas ruas do Caminho do Aterrado: a São Pedro e a do
dos Marinheiros, onde também já existiam algumas ca- 1840, rompendo assim o equilíbrio da cidade. A urba- mangue, o Barão de Mauá fundou em 1851 na Rua São Sabão da Cidade Nova. As duas primeiras pontes entre
sas (Gerson, 2013:191). nização desse espaço começava a dar origem à atual Pedro da Cidade Nova a “fábrica de gás” de sua empresa a Praia de São Diogo e a Ponte dos Marinheiros foram
Foi sobre o Caminho do Aterrado, também chamado de Avenida Presidente Vargas, anteriormente denominada de iluminação pública e doméstica. Reuniu o capital ne- inauguradas em 1860, assim como uma seção da usina
Caminho das Lanternas, que a Rua São Pedro da Cidade como Rua do Sabão e Rua de São Pedro entre o Arsenal cessário à empreitada e teve que lidar com as críticas de gás (Gerson, 2013:193).
Nova se prolongou, chegando até a mencionada Ponte dos da Marinha e o Campo de Santana; como Rua do Sabão a sua investida e, também, contra a febre amarela que E festa mais alegre e comentada não houve por longos anos na
Marinheiros, próximo à qual desaguava o Rio Comprido, da Cidade Nova e Rua de São Pedro da Cidade Nova, en- matou dez dos onze primeiros técnicos estrangeiros tra- vida carioca. Nela tomaram parte todos os diretores e operários da
antes chamado de Catumbi, Coqueiros e Iguaçu. Este rio tre o Campo de Santana e a Praça XI de Junho; e como zidos por ele para comandar o maquinário da fábrica. O companhia, e mais os da construção do canal, num desfile através
servia como divisa para as terras cultivadas pelos jesuítas, Rua do Sabão do Mangue e Rua do Aterro (ou Avenida empreendimento era bem mais do que uma usina de gás, dele com o barão de sobrecasaca e a baronesa à frente, e acompa-
expulsos por Pombal em 1759, onde havia um grande cur- do Mangue) entre a Praça XI de Junho e o Viaduto dos tratava-se de um complexo com residências de funcio- nhados de carroças que conduziam panelões fumegantes, de gos-
tume e, mais perto da mina d’água, uma serraria. Marinheiros (Gotto, 1871). Pizarro (1820) aponta que as nários, área de lazer, biblioteca, jardins, cozinhas, boti- tosa comida – os cozinheiros de avental e gorro branco ao seu lado
Ainda nas primeiras décadas do século XIX, outras ruas do Sabão e de São Pedro se distinguiam das demais cas e tanques, um dormitório coletivo para os acende- – para o opíparo almoço comemorativo a realizar-se ali, entre a
várias ruas também já haviam sido abertas, algumas por seus traçados retilíneos, atravessando o Campo de dores dos lampiões e outro para os escravos (Benchimol, “Fábrica” e o canal, sobre o charco recuperado definitivamente[...]
com muitos edifícios, e aquele espaço que antes se de- Santana e estendendo-se até a Ponte de São Diogo (Via- 1992; Gerson, 2013). (Gerson, 2013:193).
nominava Mangal de São Diogo passava a ser conhecido duto dos Marinheiros) e o curtume, onde, por fim inter- Ainda no início da construção da fábrica de gás, o
como Cidade Nova. Contudo, os aterramentos, ao in- ligavam-se com a Mataporcos. Barão de Mauá canalizou a antiga vala que corria entre
Legenda
A - Boca do Canal
B - Porto
C - Bacia marítima
D - Túnel
E - Bacia do túnel
F- Bacia do Rocio
G - Ponte do aterrado
100
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H - Aterro do prolongamento do Canal até a Ilha dos Melões
K - Registro da Bacia da Ilha dos Melões Mapa apresentando os projetos de prolongamento do Canal da Bacia do Rocio até a estação marítima da E. F. D. Pedro II e da Ponte do Aterrado até a Ilha dos
L - Boca do canal da Ilha dos Melões Melões, elaborado em 1886. Adaptado de BNDigital cart1352692 por Anderson Marques Garcia
..
bana, foi efetuada a condução das águas do Indahy (An- o Canal do Mangue foi prolongado até o mar, como um
daraí) para o Campo de Santana a partir do projeto do capítulo a mais da construção do Cais do Porto. Ca-
Vice-Rei Conde de Rezende. Esse novo ramal justifica- nalizada pelo Barão de Mauá, a primeira parte, entre a
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va-se, pois, as águas vindas pela fonte da Carioca não Praça XI e a Ponte dos Marinheiros, permaneceu com lr...1.,...,...
eram mais suficientes para abastecer a cidade, de modo 1.176m. A segunda parte estendeu-se por 1.200m de 11.,Jo
que os moradores da Cidade Nova – assim como Va- reta e 248m de curva, fazendo surgir uma nova avenida,
longo, Gamboa e Saco do Alferes – eram abastecidos a Francisco Bicalho (Gerson, 2013).
com maior dificuldade pela água conduzida em canoas Foi nesta época que a Estrada de Ferro Central do Bra-
a partir de São Cristóvão (Pizarro, 1820). sil, então com três linhas e sem muros separando as vias
Nesse contexto de expansão e modernização do Rio de trem das ruas que nasciam aos pés do Morro da Provi-
de Janeiro foi construído em 1856 o terminal ferroviário dência, ganhou sua quarta linha, um imenso muro e, para
Pedro II (atual Estação Central do Brasil) no lugar onde que funcionassem com maior liberdade, dois viadutos: um
até então havia a paróquia de Santana. Pela malha fer- imponente construído sobre o mangue para a passagem •
roviária partiam carregamentos de café e outros gêne- do trem e o outro, menor, em São Cristóvão, destinado a
ros de exportação em direção ao porto e à Alfândega, pedestres, carroças e carros em geral (Gerson, 2013).
bem como escoavam pela Cidade Nova carregamentos
destinados ao interior. Em 1874 começaram a ser orga-
Demonstração do Rio de Janeiro, de João Teixeira Albernaz, em 1645. No canto superior, à direita da imagem, está a Igreja de São Cristóvão (Fonte: BN Digital
nizadas as companhias Ferro Carril Fluminense e Carioca cart1079075)
Riachuelo, a primeira com intuito de transportar passa-
geiros da Cidade Nova e Estácio de Sá até a Praia For- O Bairro de São Cristóvão teve sua origem na sesmaria de 1645. Segundo Augusto (1947), não se pode precisar
mosa e a segunda da Estação das Barcas até a Praça XI pertencente aos jesuítas, que se estendia do Rio Com- a idade certa da Matriz de São Cristóvão, porém, pe-
de Junho (Benchimol, 1992). prido até Inhaúma e que, entre 1572 e 1583, foi des- los documentos guardados no arquivo da igreja, sabe-se
Estavam, assim, o extenso estuário de São Diogo e membrada fazendo surgir três engenhos: Fazenda do En- que no ano de 1627 esse templo já existia e era deno-
seus manguezais reduzidos a menos da metade de sua genho Velho, Fazenda do Engenho Novo e Fazenda de minado Igrejinha, talvez em decorrência de suas peque-
superfície, tendo um longo trecho canalizado, o Canal do São Cristóvão. nas dimensões. Construída à beira-mar, as águas da Baía
Mangue, obra à qual Amador (2013:101) atribui a perda O nome do bairro se deve à igreja dedicada a São Cris- de Guanabara chegavam quase até a porta de entrada,
de um dos ecossistemas periféricos mais produtivos da tóvão, erguida pela Companhia de Jesus, junto à praia voltada para uma estreita praia de areia, como pode ser
Baia de Guanabara, em nome dos interesses da Família habitada apenas por alguns pescadores, conforme pode verificado na imagem de Augusto Malta. Com sua torre
Real e dos aristocratas do café. ser observado no mapa Demonstração do Rio de Janeiro, alta, era vista de longa distância pelos pescadores.
Na terceira década do século XVIII os índices da do- ção entre ricos e pobres, a precariedade da instituição Em 1759, com a expulsão dos jesuítas da então colônia cargos e títulos de Cavaleiro Fidalgo da Casa Real com
ença de São Lázaro, a hanseníase, atingiram núme- e sua pouca capacidade de atendimento em relação ao portuguesa, os bens da ordem religiosa foram confis- a graduação de Alcaide-Mor da Vila de São João Del Rei
ros alarmantes na cidade do Rio de Janeiro, cau- número de doentes. cados pela Coroa, retalhados e seus lotes vendidos. O e de Provedor e Corretor da Casa Adjunta do Comércio.
sando grande impacto levando vereadores, médicos Pelo mal contagioso de Morfeia porque já não há rua nem que também ocorreu com a Fazenda de São Cristóvão, A casa ocupava um local com vista privilegiada. O
e cirurgiões a buscarem modos de enfrentar a ques- Praça onde não encontrem os miseráveis leprosos, nem tam- que deu origem ao bairro. A grande residência que ha- terreno alto permitia ver o mar e, no lado oposto, a flo-
tão. Os vereadores encaminharam ao então governa- bém ribeiro, ou fonte em que eles se não banhem e por esta via na localidade foi comprada por um comerciante lu- resta da Tijuca e o Corcovado. A beleza era tamanha
dor Gomes Freire de Andrade uma proposta de cons- causa todas as águas estão infeccionadas e toda esta grande so-libanês, Elias Antônio Lopes, no final do século XVIII. que o lugar ficou conhecido como a Quinta da Boa Vista.
trução de um lazareto para isolamento dos enfermos. terra no risco de a devorar este tremendo fogo que em todo o Entretanto, este não utilizou a casa para sua moradia Contudo, havia algo que desagradara no bairro de São
Pelo alto custo do empreendimento, a demanda foi en- Brasil se tem ateado (Cavalcanti, 2004:197-198). e, mesmo assim, a reformou em 1803. Com a vinda da Cristóvão: o terreno instável impediria a passagem da
caminhada ao monarca que levou 25 anos para con- Com muita insistência o monarca aprovou a pro- Família Real portuguesa, em 1808, para morar na colô- carruagem real para chegar à residência, o que motivou
cluir o pedido de um local especializado para os doen- posta do vice-rei e o lazareto foi devidamente instalado nia, um costume do Antigo Regime preocupou ao dono uma série de reformas na casa e seu entorno. Até o Paço
tes. Porém, visando atender de maneira emergencial em São Cristóvão. Entretanto, os problemas com os cus- da suntuosa propriedade em São Cristóvão: a aposenta- da Cidade, os terrenos foram aterrados e instalados pos-
a questão de perigo de proliferação da doença, Go- tos de manutenção do local logo voltaram a ser grande doria ativa que garantia o direito de os componentes da tes de alvenaria com lâmpadas de azeite, razão pela qual
mes Freire junto com alguns amigos fundaram preca- entrave para atendimento aos doentes. Coroa elegerem para si qualquer moradia mesmo que o já mencionado trajeto ficou conhecido como Caminho
riamente um lazareto, em edificação cedida pelos je- Em 1796, o médico José Mariano Leal da Câmara Rangel esta estivesse ocupada, o que ocorria por meio da desa- do Aterrado e Caminho das Lanternas.
suítas na chácara localizada no bairro de São Cristóvão de Gusmão propôs um plano para levantar o lazareto, sem propriação do local escolhido. Os casamentos que geravam o crescimento da Fa-
(Cavalcanti, 2004). custos para o governo e a criação de um curso de cirurgia Segundo Dantas (2007), pela ambição de receber mília Real motivaram reformas de ampliação da casa.
Com a morte de Gomes Freire a Irmandade do San- na cidade do Rio. Entretanto a proposta não foi aprovada. boas recompensas, o comerciante fez grandes reformas Em 1810, para o casamento de D. Maria Tereza de Bra-
tíssimo Sacramento da Cidade do Rio de Janeiro assu- Outros lazaretos surgiram ligados a instituições reli- em sua propriedade e a deu de presente a D. João no gança, e em 1816, para o casamento de D. Pedro I com
miu a direção da instituição e buscou doadores para sua giosas que os mantinham. E o lazareto público ficou en- primeiro dia do ano de 1809. A estratégia funcionou: D. D. Carolina Josepha Leopoldina. Manoel da Costa foi o
manutenção. Outro aliado importante para esta causa tregue ao descaso, onde muitos médicos e profissionais João recebeu de bom grado a casa-grande, pagou pe- idealizador da primeira ampliação, tendo como inspi-
foi o vice-rei conde Cunha, que redigiu ofício contando da saúde não queriam trabalhar em decorrência dos bai- las obras realizadas e ofereceu uma mensalidade para a ração o Palácio Real da Ajuda, em Portugal. A segunda
sobre a calamidade do assunto em 1763, sua prolifera- xos salários e poucas condições da instituição. conservação do local, e o doador recebeu honrarias com reforma na casa foi comandada pelo arquiteto inglês
32 C adernos de E d u c a ç ã o P at r i m o n i a l em Arqueologia
Cadernos de Educação Patrimonial em Arqueologia Referências cartográficas Página 17 - Detalhe da Planta da Cidade de
São Sebastião do Rio de Janeiro, 1812. 1. Área
Programa de Educação Patrimonial: O Rio como ele era
Projeto de Diagnóstico Interventivo, Monitoramento, Caracterização e Educação
e iconográficas da Cidade Velha; 2. Campo de Santana; 3. Área
da Cidade Nova; 4. São Cristóvão. Observar o
Patrimonial do Patrimônio Arqueológico e Histórico da Área de Influência do
limite da Cidade Velha delineado pelo Campo
Coletor Tronco Cidade Nova Acessos realizados em 2 de maio de 2018. de Santana e a inexistência de construções
Rio de Janeiro, 2018 em direção Oeste. Disponível em: https://
www.gettyimages.com/detail/news-photo/
Equipe da Pesquisa Arqueológica plan-of-sao-sebastiao-do-rio-de-janeiro-from-
Artefato Arqueologia & Patrimônio the-almanac-of-news-photo/109136925#/
plan-of-sao-sebastiao-do-rio-de-janeiro-from-
Coordenação Científica the-almanac-of-brazil-picture-id109136925
Dra. Maria Dulce Gaspar Página 1 - Hospital de São Cristóvão, por
Página 19 - A Fábrica de Gás, ou Gasômetro,
Thomas Ender (1793-1875). Fonte: acervo BN
Coordenação Executiva no Caminho do Aterrado em gravura de Pieter
Digital. Disponível em: http://objdigital.bn.br/
Iramar Venturini Godfred Bertichem, s.d. Fonte: acervo BN Digital.
acervo_digital/div_iconografia/icon395061/
Disponível em: http://objdigital.bn.br/objdigital2/
Gerência Financeira icon395061_36_127.jpg
acervo_digital/div_iconografia/icon393044/
Vicente Linhares Páginas 2 e 3 - Rio de Janeiro e sés environs,
icon393044_26.jpg
Coordenação Pedagógica prise du Palais de Ste Christophe [Iconográfico]:
Páginas 20 e 21 - Mapa apresentando os
Me. Cilcair Andrade [amanhecer] Fonte: acervo BN Digital. Disponível
projetos de prolongamento do Canal da Bacia do
em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_
Educadora Rocio até a estação marítima da E. F. D. Pedro
iconografia/icon334952/icon334952.jpg
Me. Ana Gabriela Saba II e da Ponte do Aterrado até a Ilha dos Melões,
Página 9 - Mapa Rio de Janeiro [Cartográfico]:
elaborado em 1886. Adaptado de BN Digital
Coordenação da Pesquisa de Campo do campo de São Cristóvão à pedreira de São
cart1352692 por Anderson Marques Garcia. Fonte:
Dra. Gina Bianchini Diogo (ca.1800) Fonte: BN Digital. Disponível em:
acervo BN Digital. Disponível em: http://objdigital.
http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/
Arqueólogos bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_cartografia/
div_cartografia/cart326436/cart326436.jpg
Gustavo Santana de Brito cart1352692/cart1352692.jpg
Página11 - Plan de la Baye et de la Ville de
Cristiano Alves de Oliveira Página 23 - Demonstração do Rio de Janeiro,
Rio-Janeiro, de 1711. Fonte: acervo BN Digital.
Henrique Barros Vences de João Teixeira Albernaz, em 1645. No canto
Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_
superior, à direita da imagem, está a Igreja de São
Textos digital/div_cartografia/cart249843.jpg
Cristóvão. Fonte: acervo BN Digital. Disponível em:
Cilcair Andrade Página 11 - Plano da Cidade do Rio de Janeiro
http://objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/
Gina Bianchini com a parte essencial do seu porto e todos os lugares
div_cartografia/cart1079075/cart1079075.pdf
Anderson Garcia fortificados, de 1796. Fonte: acervo BN Digital.
Página 24 - Matriz de São Christovam,
Ana Gabriela Saba Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_
fotografada por Augusto Malta (Observar que na
Consultoria em Cartografia digital/div_cartografia/cart209337/cart209337.jpg
imagem as águas da Baía de Guanabara chegavam
Dr. Anderson Garcia Página 12 - Planta do Rio de Janeiro, 1831.
bem próximas à entrada da igreja). Fonte: acervo
Fonte: acervo BN Digital. Disponível em: http://
Design Gráfico BN Digital. Disponível em: http://objdigital.bn.br/
objdigital.bn.br/acervo_digital/div_cartografia/
Unidesign | Glaucio Campelo objdigital2/acervo_digital/div_iconografia/
cart326112/cart326112.jpg
icon404110/icon1329316.jpg
Impressão Página 12 - Planta da muito leal e heroica
Página 25 - Detalhe do mapa original
Nova Brasileira cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, 1852.
de Johannes Vingboons. No canto esquerdo
Fonte: acervo BN Digital. Disponível em: http://
superior, São Cristóvão e a Igreja (ca. 1660), à
objdigital.bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_
Capa: Campo de São Cristóvão. Fotografia de Augusto Malta, em 11/11/1906 direita da imagem, a Cidade Velha. Disponível
cartografia/cart309952/cart309952.jpg
(Ermakoff, 2009) em: http://www.sudoestesp.com.br/file/
Página 13 – El nuevo Rio Janeiro - Planta
colecao-imagens-periodo-colonial-rio-janeiro/684/
indicativa de las calles y avenidas nuevas y los
pavimentos hechos, el gran puerto comenzado y
algunos de los muchos edifícios construídos em el
período 1903 – 1906. Disponível em: http://www.
novomilenio.inf.br/santos/h0300k6f027.htm
Página 13 - Planta informativa do centro
da cidade do Rio de Janeiro: especialmente
organizada para o Guia Briguiet, 1932. Fonte:
acervo BN Digital. Disponível em: http://objdigital.
bn.br/objdigital2/acervo_digital/div_cartografia/
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Cadernos de Educação Patrimonial em Arqueologia
Programa de Educação Patrimonial: O Rio como ele era
Realização
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Artatatn
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Apoio
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~ GOVERNODO
Riodelaneiro A
\;1.,7do Secretaria
Ambiente
PROGRAMADE SANEAMENTO
AMBIENTAl DOS MUNICIPIOS DO
ENTORNO DA BAIA DE GUANABARA
-,~l~e~o de Oesenvolvlmento
200 anos
MUSEU NACIONAL
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