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Rebelião escrava no
Brasil. A história do levante dos malês de 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p.
246-282.
DA RELIGIÃO À REBELIÃO
“A tensão entre os malês e a sociedade baiana era ainda maior por professarem uma religião,
nesse contexto histórico, exclusivamente africana e que podia unir escravos e libertos. Por não
ser uma religião de raiz étnica, mas de caráter universal, o islamismo tinha também o
potencial, nem sempre realizado, de unir africanos de várias origens, retirando dos escravistas
a vantagem política da divisão entre aqueles. Embora pudesse manifestar-se como tal, como
veremos adiante, não representava em princípio a ideologia de uma classe —no caso a de
escravos — ou de um grupo étnico africano particular, mas, muito mais, a de povos, culturas
não-européias unidas sob uma fé; e assim revelava-se para o senhor brasileiro como o retrato
do outro de corpo inteiro, não dividido. Apesar de não haver apenas um modo de ser
muçulmano na Bahia de 1835, o islamismo — como outras expressões religiosas africanas —
só por existir subvertia, no mínimo, a ordem simbólica hegemônica.” (p. 248)
“A corrida para o Islã não significava necessariamente a corrida para a revolução. Tratava-se,
num primeiro momento, da construção de redes de solidariedade coletiva da busca de
segurança moral e espiritual, possivelmente o anseio por mobilidade e prestígio sociais no
interior da própria comunidade africana. Este último aspecto não pode ser subestimado.
Conhecemos no capítulo 6 dois africanos que consideravam aqueles que usavam os abadás
como “gente grande”. Num outro inquérito, contra o escravo jeje Alexandre —que não era
muçulmano —, consta que a preta Ana lhe perguntara: “Se ele era pequeno, como já meter-se
no rancho dos grandes?”. Aparentemente, era honroso o título de malê. Significava ser
respeitado pelo uso da cultura escrita, pelo acesso a eficazes conhecimentos mágicos, ou por
pertencer a um grupo de reconhecido prestígio na África, prestígio em alguma medida
reproduzido na Bahia. Vimos também que a arrogância ou pelo menos o orgulho muçulmano
integravam o jogo de poder das relações cotidianas no mundo negro-baiano, até provocando
animosida de entre os malês e os demais africanos.” (p. 249)
“Havia, então, na trajetória de se torna-se ser malê um traçado vertical e outro horizontal. Um
que levava à contestação do poder senhorial, outro, à disputa de poder entre os próprios
africanos. Ambos obviamente se cruzavam, pois para quem tinha feito, entre tantas outras, à
opção pelo Islã, ser malê representava a melhor forma de vencer ou pelo menos desafiar, aqui
ou no outro mundo, o senhor branco, E evidentemente nem todos os africanos concordavam
com essa opção, nem mesmo todos os muçulmanos.” (p. 249)
“Esse momento da história africana na Bahia parece ter sido riquíssimo em experiência
humana, um período repleto de discussões, inovações, mudanças ideológicas e culturais.
Guardadas as devidas proporções, não seria exagero demominá-lo um período de
efervescência revolucionária. A sociedade baiana transpirava política, vivia na agitação, e a
comunidade negra não ficou à margem desse processo. Fez política a seu modo, inclusive por
meio da combinação entre religião e revolta. Entre as várias alternativas política se de vida em
ebulição no meio dos africanos nesse período, o islamismo tomou a dianteira. Foi o seu
momento. Não porque tivesse desde sempre optado por uma revolução social, que não é tão
claro assim, mas porque propunha uma revolução nas vidas de seus seguidores, arrancando-
lhes pela raiz a vontade de ser escravos, impregnando-os de dignidade, constituindo novas
personalidades. Só na hora certa os líderes malês orientaram seus discípulos a transformarem
o compromisso individual com religião num compromisso com a rebelião armada coletiva.”
(p. 249)
DA REBELIÃO À RELIGIÃO
“Minha hipótese, repito, é que apenas um grupo seleto de rebeldes detinha informações
completas do que estava planejado para acontecer Eram os mestres e seus colaboradores mais
próximos. Parece indiscutível que o aviso final para o levante partiu deles.” (p. 255)
“Alegoria ou história real, o documento [espécie de ata de assembleia tomada como amuleto
pelos chefes de polícia contemporâneos à revolta] pode ser tomado como uma pista de que a
revolta de 1835, ou pelo menos a escolha do momento de rebelar, não foi simplesmente
imposta de cima, pela vontade de um homem, um imã que fosse. Foi assunto debatido e
decidido coletivamente pelos mestres e seus auxiliares.” (p. 260)
A HORA DA VERDADE
“A data escolhida para o início da rebelião foi, como vimos em outro capítulo, o domingo da
Festa de Nossa Senhora da Guia: A escolha tinha óbvias razões estratégicas, prova de que os
homens que a fizeram ladinos conhecedores dos costumes dos moradores de Salvador, Com
efeito, a festa levaria para o distante bairro do Bonfim, então periferia de Salvador, um grande
número de pessoas, especialmente de homens livres. Boa parte do corpo policial também
convergiria para lá, com o intuito de controlar os excessos do povo, sobretudo da população
africana e afro-baiana que participava maciçamente da celebração. Dadas a distância e a
precariedade dos transportes e vias de acesso, muita gente ia ao Bonfim em romaria, para ficar
pelo menos todo o fim de semana. Esvazia- da de homens livres e policiais, a cidade se faria
fácil presa. Esse o primeiro elemento estratégico nos cálculos dos rebeldes.” (p. 261)
“Mesmo que a revolta não tivesse seguido tão fiel roteiro ritual, decerto o Ramadã não se
intrometeu nessa história acidentalmente. E não importa que este seja considerado um tempo
de trégua, de contemplação e purificação, pois havia lugar para o africano escravizado inovar.
Além do quê, a festa do Qadr fiz Parte do — embora não seja necessariamente o —
encerramento do mês sagra- do. A rebelião seria um desses casos de “intrusão de tensões
sociopolíticas no calendário das festas”. Na verdade, qualquer data do Ramadã seria
apropriada a aventuras perigosas, pois, como observa um autor, “acredita-se que neste per do
muitos espíritos do mal e poderes malignos são amplamente neutralizados”.” (p. 263)
UM CALIFADO BAIANO?
“E o que dizer sobre o plano de escravização dos mulatos? Caso os malês pretendessem
realmente isso, pelo menos quanto à escravidão não estariam mutilando de todo lógica
política do universo em que circulavam. Na África de onde eles vinham, os prisioneiros de
guerra eram amiúde poupados pelos vencedores para serem vendidos ou para servidos.
Também vendidos para a costa eram escravos punidos por certos crimes. A escravidão e o
tráfico interno existiam em toda a África Ocidental, inclusive nas regiões que mais
abasteceram com escravos a Bahia no século XIX, terras dos nagôs, haussás e jejes, por
exemplo. É verdade que já a instituição tinha peculiaridades desconhecidas no Novo Mundo,
entre as quais uma maior integração do cativo à família do senhor e maior mobilidade social
que, em muitos casos, podiam fazê-lo tornar-se comandante militar, administrador de
plantações, pajem palaciano, conselheiro de reis e de chefes locais. Mas, claro, como em
qualquer sociedade escravocrata, na sua maioria eles ocupavam as posições sociais mais
humildes. Viajantes europeus que visitaram territórios iorubás e haussás nas décadas de 1820
e 1830 observaram que alia escravidão e o tráfico de escravos estavam amplamente
difundidos, havendo regiões onde a população cativa superava em muito livre. Coriforme
vimos, os haussás, por exemplo, formavam um contingente significativo dos escravos do
reino de Óyó, e quando se rebelaram em 1817 praticamente selaram a decadência definitiva
daquele que fora o centro de um poderoso império.” (p. 266-7)
Escravidão mulçumana
Mentalidade [escravocrata]
“Ora, egressos de sociedades escravistas na África, introduzidos numa outra ainda mais
fortemente estruturada pela escravidão, os rebeldes encaravam esta última como uma forma
inevitável de organização social. Ao contrário do que ocorrera no Haiti quarenta anos antes,
as ideologias revolucionárias européias, que proclamavam direito universal à liberdade e à
cidadania, passavam ao largo da mentalidade desses homens formados na África e na Bahia.
Não que inexistissem negros afrancesados ou haitianizados por aqui, pois encontramo-los no
movimento baiano de 1798 e, mais tarde, no movimento da independência e nas revoltas que
a esta se seguiram. Encontramo-los sobretudo entre crioulos e mulatos livres, Os malês é que
não pertenciam essa estirpe de rebeldes. Seu projeto de escravidão podia ser diferente — seria
só de mulatos, para início de conversa — mas não escaparia às regras predominantes no meio
em que viviam ou tinham vivido. Nenhuma utopia igualitária. Isso sem dúvida decepciona
quem espera sempre encontrar heróis altruístas na história das rebeliões. Os malês eram
homens de carne osso, limitados pelas perspectivas de seu tempo e lugar. Afinal, qual escravo
nunca desejou ser senhor?” (p. 268)
“Embora não constituísse um absurdo moral a existência de planos entre os rebeldes para
instaurar um novo tipo de escravidão, é preciso enfatizar que as evidências a esse respeito são
poucas. Não passam, efetivamente, do depoimento de Guilhermina, a liberta africana que
denunciou a conspiração. E é possível que as pessoas que conversaram com seu marido sobre
a escravização de mulatos estivessem simplesmente emitindo opiniões e projetos pessoais,
alheias às intenções correntes no núcleo do movimento. O certo é que os rebeldes pretendiam
romper com a dominação branca e que viam mulatos e crioulos como cúmplices dos brancos,
não vítimas como eles. Mas é possível que, caso a história tivesse dado essa chance, uma vez
no poder os africanos terminariam por estabelecer um modus vivendi com os afro-baianos.
Talvez impossível fosse a paz com os brancos. Estes eram indiscutivelmente o alvo principal
do rancor rebelde, sendo como eram os principais beneficiários da escravização dos africanos
e os dirigentes da Bahia escravocrata. O movimento foi definido antes de mais nada como um
“folguedo de matar branco”. “Guerra aos brancos”, “matar os brancos” e outras expressões do
gênero são mais frequentemente encontradas nos depoimentos dos africanos presos.” (p. 268)
Aliados em potencial
“Se, de um lado, a “gente da terra de branco” era toda considerada adversária dos rebeldes, de
outro, a rebelião se baseava no princípio de que todo africano representava um aliado
potencial. Essa interpretação se choca frontalmente com a opinião de quem viu (ou vê) nela
nada mais do que uma jihād da espada, a guerra santa muçulmana, contra infiéis de todas as
cores e origens, uma guerra cujo objetivo seria impor o Islã aos africanos. É possível que os
líderes malês sonhassem um dia instalar um Estado exclusivamente muçulmano na Bahia,
mas não acredito que fossem imbecis para imaginar que em 1835 poderiam enfrentar de uma
só vez tantas frentes de luta. A iluminação religiosa não chegou a razoável inteligência
política que provaram ter na organização do movimento. Mesmo que nem todos os
muçulmanos aceitassem participar da revolta, esta foi sem dúvida capitaneada pelos malês
mais militantes, que contaram para o levante coma participação não-muçulmana. Se a religião
foi a linguagem, a ideologia e a força organizacional predominantes, outros elementos
também contribuíram para a mobilização de gente — entre os quais a solidariedade étnica e
de classe. Fica no campo da especulação —ao lado de tantas outras coisas —a possibilidade
de que, uma vez vitoriosos, os malês submetessem seus aliados a um tratamento sobremaneira
desigual. E, se assim procurassem obrar, não sabemos se conseguiriam.” (p. 269)
Revolta de africanos
“Não nego a hegemonia dos malês no bloco rebelde, nego sua solidão. O cenário que imagino
para os eventos de 1835 é o seguinte: uma vanguarda malê responsável pela idealização e
início da revolta; um segundo grupo de recém-recrutados para a “sociedade malê”, de
parceiros de trabalho, amigos e simpatizantes mobilizados às pressas por estes algumas horas
antes ou no calor da própria luta; finalmente, o pessoal que se lançou na insurreição por moto
próprio, gente que acordou com o barulho na rua, saiu, olhou, conferiu e decidiu participar.
Nesse cenário os malês lutam ao lado de “cafres”, de devotos dos orixás, que eram nagôs
como a maioria dos malês. Como estes detinham a hegemonia política do movimento de
1835, podemos dizer que a rebelião foi male o levante foi africano.” (p. 271)
“Na distante periferia baiana do Islã também não faltou devoção religiosa aos rebeldes, mas o
processo adaptativo, as mudanças não teriam sido poucas. Já apresentei dados abundantes
sobre a importância fundamental do fator religioso e sua aclimatação baiana. Quando escrevi
a primeira versão deste livro, minha contrariedade em relação à tese da jihād visava aos que
afirmavam estarem os malês dispostos atacar alvos não-muçulmanos indiscriminadamente,
com o exclusivo objetivo de expandir a sua religião. Naquela ocasião procurei argumentar que
os malês contavam com aliados fora de suas hostes e não há evidência de que pretendessem
impor o Islã na ponta da espada. Continuo achando isso.” (p. 278)
“A guerra santa, então, estaria no coração de muitos malês, mas não de toda “sociedade
malê”, mesmo entre aqueles que terminaram decidindo rebelar-se. Haveria, em resumo, uma
diferença entre os que lutavam por Alá, talvez a maioria dos mestres e discípulos mais
devotos, e os que lutavam sob a proteção de Alá, a eles garantida pelos mestres por meio
sobretudo dos amuletos que confeccionavam. Infelizmente não sabemos se, além da promessa
de proteção divina para os engajados num conflito social, objetivos propriamente religiosos
— como a proteção, purificação, expansão e hegemonia do Islã — foram priorizados ou
sequer usados na pregação da revolta pelos mestres. Fazê-lo seria arriscar perder aliados fora
das fileiras malês mais ardentes, aliados com quem os conspiradores contavam. Mesmo entre
os alufás ainda não é possível medir o grau de penetração da ideologia da guerra santa
precisamente nessa revolta. É surpreendente que tanto fosse dito sobre "guerra aos brancos”
nos depoimentos dos presos, sem que esses fizessem qualquer menção religião dos brancos —
ao contrário da fogueira de imagens católicas prometida pelos conspiradores baussás de 1807,
por exemplo. Ou seja, enquanto nos papéis se pode entrever uma guerra religiosa, nos
interrogatórios sobressai a guerra social. E não sou eu quem está separando as duas, mas os
próprios rebeldes o fizeram.” (p. 280)
“Minha própria hipótese, como já expus, é que a rebelião foi um movimento complexo,
multifacetado, concebido principalmente por indivíduos escravizados, que buscavam em
primeiro lugar a liberdade e tinham pela frente um poderoso inimigo, contra o qual deviam
mobilizar pessoas e grupos comprometidos em graus “variados” com o Islã, ou sequer
empenhados em um objetivo religioso. A dúvida da jihād, que não é só acadêmica, pode ter
existido no coração dos próprios deres. Para eles também, além da dimensão religiosa, que
certamente teve, a rebelião se caracterizou por outros importantes fatores que se entrelaçaram
com o religioso. O fator étnico foi um deles, Já comecei a discuti-lo aqui, e continuo a fazê-lo
nos próximos dois capítulos.” (p. 283)