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INTERAÇÃO E
SOCIEDADE
DIÁLOGOS SOBRE O ENEM
Coleção Gelins
Volume II
FICHA CATALOGRÁfICA
4
SUMÁRIo
APRESENTAÇÃO .......................................................................... 9
INTRODUÇão ........................................................................ 15
SEÇÃo I
As COMPETÊNcIAS DA PRovA DE REDAçÃO
5
A PRODUÇÃO ESCRITA EM PROCESsos sELETIVOS E o DESENVOLVIMENTo DE
c OMPETÊNcIAS E CAPACIDADES
Aline Malaquias da Silva & Regina Celi Mendes Pereira....................................................... 79
SEÇÃo II
A PROVA DE LInGUAGENs, cÓDIGOS E SUAS TECnolOGIAS
SEÇÃo III
IMPActos E PERCEPÇÕES DO EnEM
6
O DESEMPEN ho nA PROVA DE REDAÇÃO DO EnEM DA REDE ESTADUAL DE SERGIPE
Raquel Meister Ko. Freitag, Fernando da Cunha Mendonça & José Júnior de Santana Sá ........... 163
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APRESENTAÇÃo
9
Abrindo a seção I, Raquel Freitag, em seu “A competência I na prova de redação do
Enem”, analisa os documentos norteadores do Enem, as diretrizes desse exame
seletivo e a matriz de competência para a avaliação da prova de redação,
especificamente no que diz respeito ao tratamento da norma e da diversidade
linguística no cenário brasileiro, e mostra que a competência I da referida matriz
não condiz com o que preveem os Parâmetros Curriculares Nacionais e o
Programa Nacional de Livro Didático. A autora aponta, entre outras, que essa
divergência penaliza o estudante da escola pública, de modo a ampliar o abismo
social em terras brasileiras.
Em “Organização de textos dissertativo-argumentativos em prosa: o que se percebe
em dez anos de realização do Enem?”, Isabel Azevedo apresenta uma discussão
sobre o escopo da competência II, enfatizando como sua respectiva evolução no
processo avaliativo parece estar alinhada ao reconhecimento do gradativo valor que
a argumentação passou a ter na sociedade.
Em sendo a intepretação da proposta o elemento primeiro da competência II, e dado
o número expressivo de redações avaliadas com nota 0 pelo critério ‘fuga ao tema’,
na edição de 2014, Solange dos Santos e Débora Aguiar, em “O estatuto da
leitura na redação do Enem 2014: o caso da fuga ao tema”, trazem
questionamentos sobre os motivos que provocaram esse desempenho
deficitário dos egressos do ensino médio. Em linhas gerais, validam que o
deslocamento temático na prova, que se traduz como ‘fuga ao tema’, relaciona-
se às dificuldades afetas ao tratamento da leitura, na medida em que o candidato não
identifica adequadamente o eixo temático sobre o qual o seu texto deve versar.
Também na linha de destaque para o estatuto da argumentação, Leilane Ramos da
Silva, Danillo Pereira, Layane Cruz e Nathalia Paixão reconhecem, no capítulo
“Argumentação e matriz de referência do Enem: o espaço da competência III no livro
didático em Sergipe”, a definição da competência III da matriz de avaliação das
redações do Enem enquanto habilidade cognitiva e voltam-se para a análise do espaço
que esse expediente linguístico-discursivo ocupa nas atividades voltadas para a
produção do texto dissertativo-argumentativo da coleção de língua
portuguesa/ensino médio mais adotada na Grande Aracaju. Grosso modo, os
autores evidenciam a dissociação entre o que preveem os documentos oficiais que
legitimam o Enem, o currículo de língua portuguesa considerado nesse tipo de
avaliação e a concepção de linguagem respaldada no livro didático selecionado
para análise.
À luz de aportes teórico-metodológicos do Interacionismo Sociodiscursivo, em “A
produção escrita em processos seletivos e o desenvolvimento de
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competências e capacidades”, Aline Malaquias e Regina Pereira apresentam,
focando os eixos avaliativos propostos pela matriz do Enem, especificamente os
relacionados à Competência IV, referente ao conhecimento dos mecanismos
gramaticais necessários à construção da argumentação, uma análise de redações
elaboradas por candidatos inscritos no Processo Seletivo Seriado 2012 da
Universidade Federal da Paraíba.
O último capítulo da seção I, intitulado “Exercício da cidadania e direitos humanos:
as funções da competência V na redação do Enem”, de Ricardo Abreu, a par de uma
discussão necessária sobre a formação cidadã do indivíduo como meta da
educação, discute as peculiaridades da competência V da matriz de avaliação da
redação do Enem e faz emergir a responsabilidade de a escola garantir ao indivíduo
uma formação menos apegada a preconceitos e mais consciente de uma sociedade
plural, em que todos têm direito à dignidade humana.
A seção II é aberta com o capítulo “O estatuto da variação linguística nas provas do
Enem”, de Samella Andrade, cuja finalidade é observar as competências exigidas na
prova de Linguagens, códigos e suas tecnologias do Enem, do período
compreendido entre 2000 e 2012, a partir da ênfase nos aspectos
sociolinguísticos, de modo a responder se a prova aplicada nessas edições
mantém (ou não) um diálogo com as diretrizes dos PCN, com as do PNLD e com a
própria matriz de avaliação das redações do Enem.
Em “Performatividade e modalização na prova do Enem”, Leilane Ramos da Silva,
Jaqueline Nascimento, Layane Cruz e Nathalia Paixão, a par de uma perspectiva
acional, apresentam uma análise dos atos de fala incursos na prova de Linguagens,
códigos e suas tecnologias do Enem 2011. Tal análise focaliza aspectos inerentes
à estruturação dos atos de fala impressos nas referidas questões, à expressão de
modalização que atualizam, aos mecanismos de definição dos lugares do locutor e
do interlocutor nesse tipo de situação e, por fim, à própria relação que o tipo de ato
de fala em avaliação mantém com cada uma das questões formuladas na prova.
Ainda com foco em edições de prova na área de Linguagens, códigos e suas
tecnologias, Denise Porto Cardoso, Fabíola Lima e Franciele Araújo
conduzem o capítulo “Alternância gênero/texto na prova de questões de
Linguagens, códigos e suas tecnologias do Enem”. De modo prático, as autoras
espelham os gêneros e os domínios discursivos característicos das questões que
integram a prova de 2013, observando como tais categorias estão incursas no
exame e em que medida contribuem para a avaliação das competências e
habilidades conquistadas pelos egressos da educação básica.
11
A terceira e última seção tem início com a leitura de “O Enem enquanto política
pública”, de Marlucy Bispo. O capítulo guarda como característica principal
analisar, a partir da consideração de fenômenos que envolvem conceitos técnicos do
modelo teórico de avaliação da policy cicle, de que modo a política de avaliação em
larga escala que legitima o Enem tem sido implementada e como este exame se
delineia nos dias atuais.
No limiar dessa questão, em “O desempenho na prova de redação do Enem da
rede estadual de Sergipe”, Raquel Meister Ko. Freitag, Fernando da Cunha
Mendonça & José Júnior de Santana Sá apresentam dados acerca dos impactos e
reflexos das avaliações externas do INEP no currículo da rede escolar, analisando o
desempenho dos estudantes da rede pública estadual de Sergipe na prova de
redação/Enem aplicada em 2012 e exibindo percepções e avaliações de alunos e
professores dessa esfera sobre esse desempenho.
A propósito desse olhar sobre ‘impactos’, Maria Josefa Almeida realça, no capítulo
“Impactos do Enem sobre o Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Sergipe”,
o significado que o Enem tem na atualidade, dando vez a um diálogo cujo foco reside
em destacar a atuação (ou não) desse instrumento de avaliação na organização
curricular do Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Sergipe.
O desfecho desta edição se concretiza com o capítulo “O Enem: mal estar
contemporâneo”, de Onireves Castro, que traz algumas considerações peculiares ao
Enem, enquanto processo seletivo, focando o modo como este exame tem
impactado no ingresso de estudantes do Centro de Formação de Professores da
Universidade Federal de Campina Grande, em Cajazeiras-PB.
Agora que as linhas norteadoras deste volume já foram apresentadas, ressaltamos
o que há de mais protocolar: a alegria de estarmos cumprindo nosso papel como
professoras e pesquisadoras trazendo a lume mais uma publicação na área de estudos
linguísticos aplicados à prática pedagógica e de, para isso, contar com outras tantas
mãos. Sem dúvida, a produção é de todos, assim como a alegria também o é, porque,
para além de dedicação e compromisso diários, empreendemos amor ao que
fazemos. Nossos agradecimentos, então, a todos que integram a família Gelins, que
não mediram esforços para compilar os dados de seus projetos e nos enviar um
capítulo e, também, aos colegas que, não integrando formalmente este grupo,
também se dispuseram com zelo e atenção ao nosso pedido. De modo especial,
registramos nossa gratidão aos colegas de outros centros universitários, na torcida
por futuras parcerias de sucesso.
A você, que, como nós, dedica-se ao exercício do magistério, prepara-se para esta
atuação profissional ou simplesmente nos respeita pela singular
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contribuição social que deixamos para as gerações, dedicamos este livro, um dos
frutos de nossa preocupação em dirimir a suposta distância entre a universidade e o
ensino promovido na educação básica. Boa leitura!
13
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INTRODução
LINGUAGEM, INTERAÇÃO E SOCIEDADE:
O ENEM COMO FOCO DE PESQUISAS GELINS
RAQUEl MEISTER Ko. FREITAG LEILANE R AMos DA SILVA DENISE PoRTo C ARDOso
IsABEl CRISTINA MICHELAn DE AZEVEDO T AYSA MÉRCIA Dos SANTos SoUZA DAMACEno
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Expansão das Universidades Federais (REUNI), com o decreto nº 6.096, de 24 de
abril de 2007. Nesse cenário de democratização de acesso aos cursos superiores, a
Universidade Federal de Sergipe, conforme a Resolução nº 21/2009/CONEPE,
regulamentou que o seu processo seletivo passaria a utilizar as notas do Enem
para classificar os candidatos ao ingresso nos cursos de graduação, o que foi
implementado somente em 2013.
No entanto, o Enem tem múltiplas finalidades. Segundo o edital nº 12, de 08 de maio
de 2014, as informações obtidas a partir dos resultados do Enem podem ser
utilizadas para:
compor a avaliação de medição da qualidade do ensino médio no país;
subsidiar a implementação de políticas públicas;
criar referência nacional para o aperfeiçoamento dos currículos do ensino médio;
desenvolver estudos e indicadores sobre a educação brasileira;
estabelecer critérios de acesso do participante a programas governamentais;
constituir parâmetros para a autoavaliação do participante, com vista à continuidade de
sua formação e à sua inserção no mercado de trabalho;
certificar nível de conclusão do ensino médio;
servir como mecanismo de acesso à educação superior ou em processos de seleção nos
diferentes setores do mundo do trabalho.
17
Médio, bem como os textos que sustentam sua organização curricular em Áreas de
Conhecimento, e, ainda, as Matrizes Curriculares de Referência para o SAEB. (BRASIL, 2000, p.
2).
18
dos limites estruturais do texto dissertativo-argumentativo (0 a 200 pontos)
III - Selecionar, relacionar, organizar e interpretar informações,
fatos, opiniões e argumentos em defesa de um ponto de vista (0 a
200 pontos)
IV - Demonstrar conhecimento dos mecanismos linguísticos
necessários para a construção da argumentação (0 a 200 pontos)
V - Elaborar proposta de solução para o problema abordado,
respeitando os valores humanos e considerando a diversidade
sociocultural (0 a 200 pontos) (BRASIL, 2009, p. 63)
19
médio: impacto do ENEM no currículo de Língua Portuguesa da escola pública do
estado de Sergipe”, em andamento junto ao Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal de Sergipe.
Para tal empreendimento, contamos com a interação com outros grupos de
pesquisa, a exemplo do Grupo de Estudos em Letramentos, Interação e
Trabalho (GELIT/CNPq/UFPB), que tem investigado processos de ensino-
aprendizagem da escrita em vários contextos, buscando analisar, dentre outras
realidades, as estratégias de didatização desenvolvidas, o contexto de produção, os
parâmetros dos gêneros e os elementos linguísticos-discursivos presentes na
materialidade textual.
Sem receio com a modéstia, urge reafirmar que a equipe Gelins, seja com um projeto-
piloto focado no impacto que a prova de redação do Enem tem causado no
currículo do Estado de Sergipe, seja com ações desdobradas e/ou paralelas a ele
associadas, que se voltaram, entre outras, para a avaliação do tipo de questões e de
gêneros incursos da prova de Linguagens, códigos e suas tecnologias, para o
espaço das competências da matriz de avaliação da redação no livro didático adotado
na rede pública da Grande Aracaju, cumpre seu papel de fomentar e prolongar um
conjunto de discussões legítimas sobre a problemática da avaliação do Enem, ao
tempo que também se debruça sobre outros vieses inerentes a avaliações em
larga escala e, claro, sobre os diferentes campos conceituais tratados nas
pesquisas descritivas e analíticas contempladas pelas linhas investigativas que
congrega.
Enfim, a proficuidade na formação de recursos humanos, por si só, já é um
indicador do impacto e da relevância acadêmica das ações desses projetos. No
entanto, destacamos outro: a inserção social do Gelins, que vem contribuindo
para a melhoria da qualidade do ensino em Sergipe. Desde 2007, ano de sua
criação, o grupo tem se dedicado a temáticas relacionadas ao currículo de Língua
Portuguesa, que, com todo o respeito acadêmico que se deve ter às diferentes
filiações teóricas com as quais lida, subsidiam propostas de aplicação em
programas de ensino e, em última instância, na sala de aula. Eis o que a
sociedade espera de uma universidade centrada na tríade
ensino/pesquisa/extensão.
Referências
BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira. Exame Nacional do Ensino Médio: fundamentação teórico-metodológica. Brasília, 2000.
BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira. Matriz de Referência do Enem 2009. Brasília, 2009.
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Seção I
AS COMPETÊNCIAS DA PROVA DE
REDAÇÃO
21
21
A COMPETÊNCIA I NA PROVA DE REDAÇÃo
DO ENEM
R AQUEl M EISTER Ko. FREITAG
Introdução1
O cenário atual da educação básica no Brasil é modelado por uma série de políticas
públicas que vem sistematicamente instituindo avaliações (seletivas e diagnósticas)
de larga escala, como Provinha Brasil, Prova Brasil e Enem. Tais políticas
educacionais são pautadas em diretrizes curriculares que, em muitos casos, não
dialogam com as diretrizes da academia (universidades e centros de pesquisa e de
formação docente), e, em caso mais grave, não dialogam sequer entre si,
configurando um cenário tenso e dissonante que impacta, diretamente, na sala de
aula e nas decisões do professor.2
A partir da análise dos documentos norteadores do Enem, as diretrizes do exame
seletivo e a matriz de competência para a avaliação da prova de redação,
especificamente no que tange ao tratamento da norma e da diversidade linguística no
cenário brasileiro, mostramos que a matriz de competência para avaliação da prova
de redação do Enem não está em consonância com as diretrizes dadas pelos
Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa e com o Programa
Nacional do Livro Didático.
1
Este texto é uma versão do que se encontra publicado na Interdisciplinar: Revista de Estudos de Língua e Literatura, v. 20, n. 20 (FREITAG,
2014).
2
Por exemplo, como resultado do projeto “Ler+Sergipe: Leitura para o letramento e cidadania” (Observatório da Educação –
CAPES/INEP/2012), constatamos que, nas diretrizes de exame de avaliação diagnóstica de leitura, especificamente na Provinha Brasil, o
conteúdo da matriz de competências está alinhado com os resultados de pesquisas internacionais, que preconizam o trabalho com a consciência
fonológica para o aprendizado inicial da leitura, o que, no entanto, não é componente curricular dos cursos de formação docente, nas licenciaturas
em Pedagogia (FREITAG, 2013; 2010; FREITAG; ALMEIDA; ROSÁRIO, 2013).
23
1 O tratamento da diversidade linguística nos documentos oficiais
Num país de dimensão continental como o Brasil, a ideia de que todos falamos o
mesmo português é efeito de planificação linguística. O reconhecimento e o
tratamento da diversidade são basilares nos documentos oficiais. Tanto os
Parâmetros Curriculares Nacionais, quanto o edital do Programa Nacional do Livro
Didático apresentam concepção convergente no que diz respeito ao ensino de
língua, focado na relação entre uso e reflexão. Enquanto o primeiro documento
traça as diretrizes curriculares, o segundo avalia a sua operacionalização; a
coerência entre ambos é uma consequência desejável, que mostra o alinhamento
entre as propostas. Vejamos, a seguir, como se dá a avaliação da implementação
dessa proposta, examinando a matriz de referência do Enem e os critérios de
avaliação da prova de redação.
No que diz respeito às competências e habilidades, a matriz de referências
cognitivas do exame prevê que, quanto à linguagem, o candidato deve “dominar a
norma culta da Língua Portuguesa e fazer uso das linguagens matemática,
artística e científica e das línguas espanhola e inglesa”. (BRASIL, 2012b).
Por trás das competências da Matriz de Referência, há objetos de conhecimento
associados que, em Língua Portuguesa, voltam-se, primordialmente, ao “estudo dos
aspectos linguísticos da língua portuguesa: usos da língua: norma culta e variação
linguística - uso dos recursos linguísticos em relação ao contexto em que o texto é
constituído”. (BRASIL, 2009, p. 62). A prova de Linguagens, Códigos e suas
Tecnologias segue a matriz de referência apresentada na figura 1.
24
A competência de área 8 prevê que o estudante deve “Compreender e usar a
língua portuguesa como língua materna, geradora de significação e integradora da
organização do mundo e da própria identidade”, implementada pelas habilidades
25-27:
25
O Guia do Participante do Enem na edição de 2012, cujo objetivo é, em suas
palavras “tornar o mais transparente possível a metodologia de correção da redação,
bem como o que se espera do participante em cada uma das competências
avaliadas” (BRASIL, 2012, p. 3), avalia o candidato, na competência 1, sua
capacidade de “demonstrar domínio da norma padrão da língua escrita”
(BRASIL, 2012, p. 10, grifos acrescidos). A habilidade cobrada na competência 1
contrasta com o que preconiza o Programa Nacional do Livro Didático (BRASIL,
2011), com o domínio das normas urbanas de prestígio, especialmente em sua
modalidade escrita; contrasta ainda com a própria matriz cognitiva geral do Enem,
que cobra o domínio da norma culta da Língua Portuguesa. Diferenças de
terminologias ou diferenças de propósito?
No detalhamento da matriz de avaliação por competência, o Guia do Participante do
Enem 2012 reitera que “a primeira competência a ser avaliada no seu texto é o
domínio do padrão escrito formal da língua [...] Na escrita formal, por exemplo,
deve-se evitar o emprego repetido de palavras, como ‘e’, ‘aí’, ‘daí’, ‘então’,
próprias de um uso mais informal, para relacionar ideias”. (BRASIL, 2012, p. 11,
grifos acrescidos).3 Outro conceito é apresentado, já que “padrão escrito formal”
é diferente de “norma padrão da língua escrita”, no início do mesmo documento.
Formal e informal (e suas gradações) constituem um contínuo, que é diferente da
modalidade falada e escrita. Podemos ter fala formal e fala informal, assim como
escrita formal e escrita informal, em todas as variedades de uma língua. A confusão
terminológica, dissonante dos documentos oficiais que norteiam inclusive o próprio
exame, como o caso da matriz cognitiva geral do Enem, fica mais evidente no seguinte
excerto: “Na redação do seu texto, você deve procurar ser claro, objetivo, direto;
empregar um vocabulário mais variado e preciso do que o que utiliza quando fala e
seguir as regras prescritas pela norma padrão da Língua Portuguesa”.
(BRASIL, 2012, p. 11, grifos acrescidos).
O termo “norma” pode tanto remeter a preceito, ou seja, aquilo que é normativo;
como a descrição de usos recorrentes, ou seja, aquilo que é normal. Faraco (2008)
faz uma distinção interessante entre norma culta, norma-padrão, norma gramatical
e norma curta. A norma culta é definida como “conjunto de fenômenos linguísticos
que ocorrem habitualmente no uso dos falantes letrados em situações mais
monitoradas de fala e escrita” (FARACO, 2008, p. 73). Refere-
3
Especificamente sobre “e”, “aí”, “daí”, “então”, itens linguísticos que atuam na função de sequenciação discursiva, é interessante
observar os resultados de estudos descritivos (TAVARES, 2008; 2010; BARRETO; FREITAG, 2009) que apontam tendências de uso de cada
uma das formas associadas a um contínuo de formalidade e informalidade, na fala e na escrita.
26
se aos usos linguísticos socialmente prestigiados, vistos pelos falantes como
pertencentes a uma variedade superior em relação às chamadas variedades não-
padrão ou populares. O prestígio não decorre de propriedades gramaticais, ou
linguísticas, mas de características extralinguísticas relacionadas a processos
sócio-históricos: enquanto algumas variedades são socialmente avaliadas
positivamente, outras recebem valoração negativa, podendo até ser estigmatizadas. Essa
noção de norma culta se aproxima à noção de normas urbanas de prestígio, do
Programa Nacional do Livro Didático (BRASIL, 2011). Já a norma-padrão não é uma
variedade da língua (como é a norma culta), mas “uma codificação
relativamente abstrata, uma baliza extraída do uso real para servir de referência, em
sociedades marcadas por acentuada dialetação, a projetos políticos de
uniformização linguística” (FARACO, 2008, p. 75). Regulando explicitamente os
comportamentos dos falantes, a norma-padrão funciona como coerção social em
busca de um efeito unificador e como uma referência suprarregional e
transtemporal. Norma culta e norma padrão são conceitos distintos; não há quem
escreva na norma padrão, pois esta não é uma variedade da língua,
diferentemente do que é previsto na Habilidade 27 da Competência 8 da matriz do
Enem, como vimos anteriormente. Tal confusão conceitual tem implicações na
abordagem do estudante no que tange às escolhas a serem feitas no decorrer do
exame.
O guia do participante do Enem 2012 (BRASIL, 2012, p. 12-13) tipifica o que
considera como prescrição de norma padrão – tais como concordância nominal
e verbal, regência nominal e verbal, pontuação, flexão de nomes e verbos, colocação
de pronomes átonos, grafia das palavras, acentuação gráfica, emprego de letras
maiúsculas e minúsculas; e divisão silábica na mudança de linha – e ainda
estabelece uma gradação de penalidades (desvios mais graves, graves e leves) que
não apresenta respaldo na literatura:
ATENÇÃO!
Seguem algumas inadequações do uso linguístico ao registro formal escrito que são
penalizadas na Competência 1.
Desvios mais graves:
- falta de concordância do verbo com o sujeito (com sujeito antes
do verbo);
- períodos incompletos, truncados, que comprometem a
compreensão;
- graves problemas de pontuação;
27
- desvios graves de grafia e de acentuação (letra minúscula
iniciando frases e nomes de pessoas e lugares); e
- presença de gíria
Desvios graves:
- falta de concordância do verbo com o sujeito (com sujeito
depois do verbo ou muito distante dele);
- falta de concordância do adjetivo com o substantivo;
- regência nominal e verbal inadequada (ausência ou emprego
indevido de preposição);
- ausência do acento indicativo da crase ou seu uso inadequado;
- problemas na estrutura sintática (frases justapostas sem
conectivos ou orações - subordinadas sem oração principal);
- desvios em palavras de grafia complexa;
- separação de sujeito, verbo, objeto direto e indireto por vírgula; e
- marcas da oralidade.
Desvios leves
- ausência de concordância em passiva sintética (exemplo: uso de
“vende-se casas” em vez de “vendem-se casas”); e
- desvios de pontuação que não comprometem o sentido do texto.
[...] por exemplo, professores e gramáticos puristas continuam a exigir que se escreva (e até que se
fale no Brasil!):
O livro de que eu gosto não estava na biblioteca, Vocês vão assistir a um filme
maravilhoso,
O garoto cujo pai conheci ontem é meu aluno, Eles se vão lavar / vão lavar-se naquela
pia,
quando já se fixou na fala e já se estendeu à escrita, independentemente de classe social ou grau
de formalidade da situação discursiva, o emprego de:
O livro que eu gosto não estava na biblioteca, Vocês vão assistir um filme
maravilhoso,
O garoto que eu conheci ontem o pai é meu aluno, Eles vão se lavar na pia. (BRASIL, 1998,
p. 31)
28
Portuguesa” (BRASIL, 2013), sinalizando uma mudança de postura e revisão dos
equívocos conceituais apresentados no documento do ano anterior. A mudança
pode ser percebida na explicação acerca do que é modalidade escrita formal, com a
explicitação das dimensões formalidade e informalidade, oral e escrito:
Você já aprendeu que as pessoas não escrevem e falam do mesmo modo, uma vez que são
processos diferentes, cada qual com características próprias. Na escrita formal, por exemplo,
deve-se evitar, ao relacionar ideias, o emprego repetido de palavras, como “e”, “aí”, “daí”,
“então”, próprias de um uso mais informal. Por isso, para atender a essa exigência, você precisa ter
consciência da distinção entre a modalidade escrita e a oral, bem como entre registro formal e
informal.
Outra diferença entre as duas modalidades diz respeito à constituição das frases. No registro
informal, elas são muitas vezes fragmentadas, já que os interlocutores podem complementar as
informações com o contexto em que a interação ocorre, mas, no registro escrito formal, em que esse
contexto não está presente, as informações precisam estar completas nas frases.
A entoação, recurso expressivo importante da oralidade, e as pausas, que conferem coerência
ao texto, são muitas vezes marcadas, na escrita, por meio dos sinais de pontuação. Por isso, as regras
de pontuação assumem também essa função de organização do texto. (BRASIL, 2013, p. 11)
29
Considerações finais
Referências
BARRETO, E. A.; FREITAG, R. M. K. Procedimentos discursivos na escrita de Itabaiana/SE:
estratégias de sequenciação de informação. Scientia Plena, v. 5, p. 115801-1, 2009.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Média e Tecnológica. A redação no
Enem 2012: Guia do participante. Brasília: Ministério da Educação, 2012.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Média e Tecnológica. A redação no
Enem 2013: Guia do participante. Brasília: Ministério da Educação, 2013.
BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais do ensino médio: Linguagens, códigos e suas
tecnologias. Brasília: Ministério da Educação,1998.
BRASIL. Programa nacional do livro didático. Edital de convocação para inscrição no processo de
avaliação e seleção de coleções didáticas para o PNLD 2011. Brasília: Ministério da Educação, 2011.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto
ciclos do ensino fundamental. Brasília: Ministério da Educação, 1998.
30
FARACO, C. A. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola, 2008. FREITAG,
R. M. K. Entre norma e uso, fala e escrita: contribuições da Sociolinguística à alfabetização. Nucleus,
n. 8, v. 1, p.1-10, 2010.
FREITAG, R. M. K. Leitura, Letramento e Cidadania: explorando a Provinha Brasil. Curitiba:
Appris, 2013.
FREITAG, R. M. K. Prova de redação do Enem: divergências entre as orientações para a prática e as
diretrizes de avaliação. Interdisciplinar, n.20, v.20, p. 61-72, 2014.
FREITAG, R. M. K.; ALMEIDA, A. N. S.; ROSARIO, M. M. S. Contribuições para o aprimoramento da
Provinha Brasil enquanto instrumento diagnóstico do nível de alfabetização e letramento nas séries
iniciais. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. 94, n. 237, p. 390-416, 2013.
TAVARES, M. A. Aí especificador na fala, na escrita e na escola. Odisseia, v. 1, p. 45-58, 2008.
TAVARES, M. A. Conectores sequenciadores E, AÍ e ENTÃO na fala de Natal (RN): indícios de
especialização funcional. Interdisciplinar: Revista de Estudos em Língua e Literatura, v. 12, p.
195-213, 2010.
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