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WILLIAM MORRIS,
Sigurd the Volsung
372
Era mais alto que todos eles, segurando a sua lança mais como um
bordão que como uma arma, como se não tivesse necessidade de usar o
ferro. Um chapéu de aba larga sombreava-lhe a face, mas não escondia o
cabelo e a barba de um cinzento de lobo, nem o brilho do seu olhar.
Poucos dentre eles o tinham visto antes, a maior parte não calhara
estar por perto quando ele fizera as suas visitas esporádicas; mas
ninguém ignorava que ele era o avoengo dos chefes teuring.
Ulrica foi a primeira a reunir coragem.
-Saudações, Viandante, e bem-vindo sejas! -disse ela. -É uma honra
para o nosso tecto. Venha, sente-se na cadeira principal, eu vou
buscar-lhe um chifre de vinho.
- Não, um copo, um copo romano, o melhor que tivermos -disse Solbern.
Hathawulf dirigiu-se para a porta, endireitou os ombros e enfrentou o
antepassado.
- Sabe o que se está a preparar - disse ele. - Que palavras tem para
nos dirigir?
-Isto... - respondeu o Viandante. A sua voz era profunda e não soava
como a dos Godos do sul, ou como mais ninguém que eles alguma vez
tivessem conhecido. Os homens supunham que a sua língua materna era a
língua dos deuses. Hoje parecia pesada, como se carregada de
sofrimento. - Vocês estão dominados pelo desejo de vingança,
Hathawulf e Solbern, e isso não pode ser alterado; é essa a vontade de
Weard. Mas Alawin não irá com vocês!
O jovem encolheu-se, empalidecendo. Um quase soluço partiu agreste da
sua garganta.
O olhar do Viandante percorreu o salão e fixou-se nele.
- E necessário que assim seja - continuou ele, articulando as palavras
lentamente. -Não é um insulto que te faço quando digo que ainda não és
adulto e que morrerias corajosa mas inutilmente. Todos os que são
agora homens, já foram em tempos rapazes. Não, digo-te em vez disso
que a tua tarefa será outra, mais difícil e mais estranha que a
vingança, em defesa da segurança dos descendentes que nasceram da mãe
do pai do teu pai, Jorith (teria a sua voz tremido um pouco?), e de
mim próprio. Tem paciência, Alawin. A tua vez em breve chegará!
-Será... feito... segundo a tua vontade, senhor - declarou Hathawulf ;
com a garganta seca. - Mas que quer isso dizer... para aqueles de
entre nós que vão lutar?
O Viandante olhou- por uns instantes e depois ficou muito calmo antes
de responder:
- Vocês não querem saber. Seja a resposta boa ou má, vocês não a
querem saber.
Alawin enterrou-se no seu banco, agarrou a cabeça com as mãos,
tremendo.
- Boa viagem - disse o Viandante. O seu manto rodopiou, a lança rodou
e a porta fechou-se. Partira.
1935
1980
302
presentes. Eram coisas pequenas, mas preciosas, fossem elas uma faca
cujo metal tivesse um fio extremamente afiado, um lenço de tecido
brilhante de terras distantes, um espelho melhor que metal polido ou
que um lago calmo - os tesouros não paravam, até que todos, qualquer
que fosse a sua hierarquia, fossem homem ou mulher, tivessem pelo
menos um. A cerca disto ele dizia simplesmente:
- Conheço os artífices.
A Primavera fugiu para norte, a neve derreteu, os botões explodiam em
folhas e flores, o rio encheu-se, barulhento. Pássaros voando em
migração enchiam os céus com asas e chilreados. Cordeiros, vitelos,
poldros andavam vacilantes pelos cercados. As pessoas saíam, piscando
os olhos face a esta súbita claridade; arejavam as suas casas, roupas
e almas. A Rainha da Primavera levou a imagem de Frija de quinta em
quinta para abençoar o lavrar e semear dos campos, enquanto jovens e
donzelas com grinaldas de flores dançavam em volta do seu carro puxado
a bois. Os desejos acendiam-se.
Carl ainda se afastava, mas regressava no mesmo dia. Cada vez mais se
via Jorith e ele juntos. Passeavam mesmo até aos bosques, descendo
caminhos em flor, em direção a prados, longe da vista de todos. Ela
andava como perdida em sonhos. Salvalindis, sua mãe, ralhava-lhe por
se portar de uma forma tão leviana -não se importava ela com o seu bom
nome? - até Winnithar mandar calar a mulher. O chefe era um
calculista esperto. Quanto aos irmãos de Jorith, estavam encantados.
Por fim, Salvalindis falou em privado com a sua filha. Foram para um
anexo onde as mulheres da casa se encontravam para tecer e coser,
quando não havia outros trabalhos para elas. Agora havia, por isso,
as duas estavam sozinhas na penumbra. Salvalindis pôs Jorith entre si
própria e o tear grande e com pesos de pedra, como se a quisesse
prender numa armadilha, e perguntou-lhe directamente:
- Terás sido menos indolente com esse homem Carl do que te tornaste em
casa? Ele já te possuiu?
A jovem corou, torcendo os dedos e baixando os olhos.
- Não - murmurou ela. - Ele pode fazê-lo, quando quiser. Como eu
gostaria que ele o fizesse. Mas só temos andado de mãos dadas, dado
uns beijos e... e...
-E o quê?
-Falado. Cantado canções. Rido. Ficado sérios. Oh, mãe, comigo ele
não é nada reservado. Comigo, ele é mais bondoso e terno que... que eu
pensava ser possível um homem ser. Ele fala comigo como com alguém que
sabe pensar e não simplesmente como com uma esposa.
Os lábios de Salvalindis comprimiram-se.
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seus amigos. O silêncio caiu sobre eles. Então o que ela trazia nos
braços produziu um gemido, e Winnithar lançou um grito. CarI
levantou-se,
com as narinas brancas.
A mulher ajoelhou-se em frente dele, destapou o cobertor e colocou, no
chão de terra, aos pés do seu pai, uma criança do sexo masculino, ainda
ensanguentada mas gesticulando echorando vi-gorosamente. Se Carl não
pegasse na criança ao colo, ela levá-la-
-ia para os bosques e abandoná-la-ia aos lobos. Ele nem sequer se
demorou a ver se a criança tinha algum defeito. Abraçou-se àque-la
minúscula forma e gemeu:
- Jorith. Como está Jorith?
- Fraca - disse a parteira. - Pode ir ter com ela agora, se quiser.
Carl devolveu-lhe o seu filho e apressou-se a entrar no quarto de cama.
As mulheres que lá se encontravam afastaram-se. Inclinou-se sobre
Jorith.
Ela estava pálida, coberta de transpiração, esvaziada. Mas quando viu o
seu homem, ergueu-se debilmente e sorriu o fantasma de um sorriso.
-Dagobert - sussurrou ela. Era esse o nome, antigo na família, que ela
desejara para a criança, se fosse um rapaz.
- Dagobert, sim - disse Carl em voz baixa. Embora fosse invulgar em
frente dos outros, inclinou-se para a beijar.
Ela baixou as pálpebras e afundou-se na palha.
-Obrigado - mal se ouvia a sua voz. - O filho de um deus...
-Não...
Subitamente, Jorith estremeceu. Por momentos agarrou-se à cabeça. Os
olhos
voltaram a abrir-se. As pupilas estavam fixas e dilatadas. Ficou
flácida. Respirava com grande dificuldade.
Carl endireitou-se, deu meia volta e saiu rapidamente do quarto. Em
frente da porta fechada, tirou a chave e entrou. Bateu com ela atrás de
si.
Salvalindis moveu-se para o lado da sua filha.
- Ela está a morrer - disse em tom átono. - Poderá a feitiçaria
salvá-la? Deverá salvá-la?
A porta proibida voltou a abrir-se. Carl saiu, acompanhado por outra
pessoa. Esqueceu-se de a fechar. Os homens vislumbraram um aparelho de
metal. Alguns lembraram-se do que tinha voado sobre os campos de
batalha.
Encolheram-se uns junto aos outros, apertaram amuletos nas mãos e
fizeram
sinais no ar.
O companheiro de Carl era uma mulher, embora vestisse umas calças e
túnica com as cores do arco-iris. As suas feiçôes eram de um tipo nunca
antes visto: largas e de maçãs-do-rosto salientes como as dos hunos, mas
de nariz pequeno, com a pele de um dourado-acobreado e com cabelo
preto-azulado. Segurava uma caixa pela pega.
Os dois correram para o quarto.
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- Todos para fora. Todos! - rugiu Carl e enxotou as mulheres godas como
folhas perseguidas pela tempestade.
Ele seguiu-as e lembrou-se então de fechar a porta do quarto onde estava
a sua montada. Ao voltar-se, viu toda a gente a olhar para ele e a
afastarem-se assustados.
-Não tenham medo! -disse com dificuldade. -Não há aqui nada de mal. Eu
só fui buscar uma mulher sábia para ajudar Jorith.
Por momentos ficaram todos imóveis a ganhar coragem.
A estranha aproximou-se e chamou CarI. Havia algo nela que o fez gemer.
Cambaleou até junto dela e ela levou-o pelo braço até ao quarto de
dormir.
O silêncio transbordava daquele quarto.
Pouco tempo depois, ouviram-se vozes, a dele cheia de fúria e angústia,
a dela calma e inexorável. Ninguém conhecia aquela língua.
Eles voltaram. A face de Carl parecia ter envelhecido.
- Ela deixou-nos - disse. - Fechei-lhe os olhos. Preparem o seu funeral
e festejos, Winnithar, eu voltarei nessa altura.
Ele e a mulher sábia entraram no quarto secreto. Dos braços da parteira,
Dagobert bramia.
2319
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tornava aquele local hospitaleiro. Não por não ser bonito à sua
maneira. O ar perfumado cheirava a rosas e a trigo acabado de moer.
Aalcatifa era dum violeta-escuro pontilhada com estrelas brilhantes.
Cores subtis rodopiavam nas paredes. Uma grande janela, se é que
era janela, mostrava a grandeza das montanhas e uma cratera ao longe, o
céu negro mas dominado por uma Terra em fase quase cheia. Eu perdi-me na
visão daquele azul glorioso, coberto de turbilhões brancos.
- Bem, agente Farness - disse Mendonza lentamente em temporal, a
linguagem da Patrulha -, como se sente?
-Confuso, mas acordado-murmurei. -Não. Como um assassino.
- E certo que devia ter deixado aquela criança em paz.
Eu forcei a minha atenção a focar-se nela e respondi:
- Ela não era uma criança. Não naquela sociedade, ou na maior parte das
sociedades em toda a história. A relação ajudou-se imenso a conseguir a
confiança da comunidade, portanto, a executar a minha missão. Não que o
tivesse feito a sangue-frio, acredite-me. Nós estávamos apaixonados.
- Que diz a sua mulher a tudo isto? Ou não lhe falou no assunto?
A minha defesa esgotara-me demasiado para que me ressentisse com o que
poderia ser considerado uma curiosidade excessiva.
-Sim, eu falei-lhe... perguntei-lhe se se importava. Ela pensou nisso e
decidiu que não. Lembre-se que passámos a nossa juventude nos anos de
1960 e 1970... Não, não deve ter ouvido falar, mas foi um período de
revolução nos costumes sexuais.
Mendoza sorriu tristemente.
- As modas vão e vêm...
- Nós éramos monogâmicos, a minha mulher e eu, mas mais por escolha que
por princípio. E repare, eu visitava-a com frequência. E amo-a. De
verdade.
- E é claro que ela achou melhor deixá-lo gozar o seu romance de homem
de meia-idade... - contrapôs Mendoza.
Isso doeu.
- Mas não era! Já lhe disse que amava Jorith, a rapariga goda, eu
também a amava... - A dor apertava-me a garganta. -Não havia
absolutamente nada que pudesse fazer por ela?
Mendoza abanou a cabeça. As suas mãos descansavam calma-mente sobre a
secretária. O seu tom suavizou-se.
-Já lhe disse. Explicar-lhe-ei em pormenor, se o desejar. Os
instrumentos... não interessa o modo como funcionam... mostraram um
aneurisma na artéria cerebral anterior. Não fora suficientemente grave
para manifestar sintomas, mas o esforço de um parto difícil, longo e
primíparo provocou uma ruptura. Não seria bom
para ela reanimá-la, depois de uma lesão cerebral tão extensa.
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- Não podia ter reparado essa lesão?
- Bem, podíamos ter trazido o corpo para mais tarde, no tempo,
reanimado os pulmões e o coração e utilizado a técnica de cIone dos
neurónios para produzir uma pessoa que se parecesse com ela, mas que
teria de aprender quase tudo do princípio. O meu grupo não faz esse
tipo de operações, agente Farness. Não é que nos falte compaixão, é
apenas por já termos demasiadas chamadas para ajudar o pessoal da
Patrulha e as suas... famílias oficiais. Se começássemos a abrir
excepções, ficaríamos inundados. Compreende que nem mesmo assim
recuperaria a sua querida. Ela não seria a mesma.
Eu reuni a força de vontade que me restava.
- Suponha que descíamos no tempo, anteriormente à gravidez dela... -
disse eu. - Podíamos trazêla até aqui, tratar dessa artéria, limpar as
memórias dessa viagem e devolvêla ao seu meio... para viver uma vida
saudável?
- São os seus anseios a falarem. A Patrulha não altera os acontecimentos
passados. Conserva-os.
Mundei-me ainda mais na minha cadeira. Contornos variá-veis tentavam, em
vão, confortar-me.
Mendoza abrandou.
- Mas não se sinta demasiado culpado - disse ela. - Você não podia saber
disso. Se a rapariga tivesse casado com outro qualquer, como seguramente
teria acontecido, o fim seria o mes-mo. Fiquei com a impressão que a fez
mais feliz que a maior par-te das mulheres da época dela. - O tom dela
ganhou força: -Quanto a si, no entanto, inflingiu a si próprio uma
ferida que leva-rá longo tempo a sarar. Nunca sarará, a não ser que
resista à ten-tação suprema... continuar a voltar atrás no tempo, até ao
tempo em que ela vivia, vêla, estar com ela. Isso é proibido, sob
amea-ça de severas penalidades e não só por causa dos riscos que poderá
trazer para essa corrente do tempo. Destruiria, destruiria até a sua
própria mente. E nós precisamos de si. A sua mulher pre-cisa de si.
- Sim - consegui dizer.
- Bastante difícil será observar os seus descendentes e dela sofrerem o
que terão de sofrer. Pergunto a mim própria se não seria melhor
transferir-se completamente desse projecto...
- Não. Por favor...
- Por que não? - lançou-me ela.
- Porque... não os posso abandonar sem mais nada... como se Jorith
tivesse vivido e morrido para nada.
-Essa decisáocaberá aos seus superiores. Nomínimorecebe-rá uma severa
reprimenda, tão próximo do buraco negro quanto épossível. Nunca mais
poderá interferir ao nível que o fez agora -
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Mendoza fez uma pausa, observou-me, afagou o queixo e murmurou. - A não
ser que sejam necessárias certas medidas parar estabelecer o
equilíbrio... Mas isso não é do meu pelouro.
O seu olhar virou-se para a infelicidade espelhada no meu rosto.
Subitamente inclinouse sobre a secretária, fez menção de me estender a
mão e disse:
- Ouça bem, CarI Farness. Vão pedir-me a opinião quanto ao seu caso. Foi
por isso que o trouxe para aqui e o quero manter aqui uma semana ou
duas... para ficar com uma ideia mais clara. Mas para já, e, meu amigo,
acredite, que você não é um caso único em milhões de anos de operações
da Patrulha!, fiquei com a impressão de que você é um tipo decente, que
talvez tenha errado, mas essencialmente devido à falta de experiência.
»Acontece, aconteceu e acontecerá, vezes e vezes sem conta. O
isolamento, apesar das licenças em casa e das ligações com colegas
prosaicos como eu. Fascínio, apesar de uma preparação prévia; choque
cultural; choque humano. Você presenciou o que para si era infelicidade,
pobreza, sordidez, ignorância, tragédia dispensável. Pior que isso,
insensibilidade, brutalidade, injustiça, mortícinio arbitrário. Não era
possível ver tudo isso e não se sentir magoado. Tinha de provar que os
seus godos não eram piores que você pró-prio, mas apenas diferentes; e
tinha de procurar para além dessa diferença a identidade subjacente; e
depois tinha de tentar ajudá-los, e se, ao longo do caminho, encontrasse
uma porta aberta pa-ra algo de querido e maravilhoso...
»Sim, inevitavelmente, os viajantes no tempo, incluindo patru-lheiros,
formam ligações. Eles têm de agir, e muitas vezes essas acçoes são de
carácter íntimo. Geralmente, não representam qualquer ameaça. Que
interesse poderia ter a ascendência preci-sa, obscura e remota até mesmo
de uma figura-chave da história? O continuum cede mas recupera mais
tarde. Se se forçam os limi-tes, bem, então a questão tornase impossível
de responder, sem significado, quer tais acções Infimas tenham
modificado o passa-do ou tenham «sempre» feito parte dele.
»Náo se sinta demasiado culpado, Farness -concluiu ela, cal-mamente. -
Gostaria também de iniciar a sua recuperação deste choque e da sua dor.
Você é um agente de campo da Patrulha do Tempo; não será este o último
luto por que passará.
302-33O
1980
Manse Everard não foi o oficial que me deu uma ensaboadela devido à
minha temeridade e só dificilmente concordou em me deixar continuar
nesta missão. Principalmente, resmungou ele, devi-do aos pedidos de
Herbert Ganz, pois não tinha ninguém que me
substituísse. Everard tinha as suas razões para se manter afasta-
119
do. Essas razões acabaram por se tornar evidentes, bem como ofac-to de
ele ter estudado os meus relatórios.
Entre o século iv e o século xx, tinham-se passado dois anos do meu
tempo
de vida pessoal, desde que perdera Jorith. Aminha dor já se atenuara
para um único desejo: que ela pudesse ter gozado um pouco mais da vida
que tanto amara e tornara tão digna de ser vivida! Excepto às vezes
quando se erguia em toda a sua força e me atingia novamente. Com a sua
maneira de ser calma, Laurie aju-dara-me a aceitar os factos. Nunca
antes compreendera bem até que ponto é que ela era uma pessoa
maravilhosa.
Eu estava em casa, de licença, em Nova lorque, em 1932, quando Everard
me contactou, pedindo uma outra conferência.
- Apenas algumas perguntas, um par de horas de trabalho - disse ele -, e
depois podemos ir passear pela cidade. A sua mulher também, claro. Já
alguma vez viram a Lola Montez no seu auge? Tenho bilhetes, para Paris,
1843.
Já era Inverno, naquela época. A neve caía em turbilhões, visível
através das janelas do seu apartamento, transformandoo numa caverna de
quietude branca.
Ele deu-me um copo de grogue e perguntou-me quais eram os meus gostos em
matéria de música. Acordámos numa execução de koto, por um tocador
medieval japonês, cujo nome as crónicas esqueceram, mas que foi o melhor
que já alguma vez existiu. As viagens no tempo têm as suas recompensas,
assim como as suas exigências.
Everard levou o seu tempo a encher e a acender o cachimbo.
-Nunca entregou um relatório sobre a sua relação com Jorith
- disse ele num tom quase casual. - Só se descobriu no decurso
do inquérito, depois de ter mandado chamar Mendoza. Porquê?
-Era... pessoal -respondi eu. -Não considerei que disses-se respeito a
ninguém. Oh, eles avisaram-nos em relúção a este ti-po de coisas na
Academia, mas os regulamentos não o proibem concretamente.
Olhando para a sua cabeça escura e inclinada, senti de uma forma
estranha que elejá devia ter lido tudo o que eu escreveria no futuro.
Ele conhecia os meus futuros pessoais muito melhor que eu próprio - como
eu apenas os conheceria depois de passar por eles. Raras vezes é
necessário reforçar a regra que proibe um agente de conhecer o seu
destino; é das coisas menos desejáveis e que pode acontecer com a maior
facilidade.
- Bem, não pretendo repetir a reprimenda que já recebeu -disse
Everard. - Na realidade, aqui entre nós, penso que o coor-denador
Abdullah foi desnecessariamente formal. Os operadores devem usar o seu
poder de decisão, ou nunca conseguiriam levar a bom termo as suas
missões, e muitos outros estiveram mais per-
120
to de se queimar que voce.
337
Durante todo esse dia, a batalha prosseguira violenta. Vezes sem conta
se tinham os hunos atirado contra as fileiras godas, como vagas de uma
tempestade a irromperem sobre os penhascos. As suas setas escureciam os
céus até às lanças se baixarem, as ban-deiras desfraldadas ao vendo, a
terra a tremer sob o ribombar dos cascos e os cavaleiros a atacarem.
Lutadores a pé, os godos aguentavam as suas formações. Piques
inclinados para a frente, espadas, machados e espadas de lâminas largas
brilhavam prontas para a luta, arcos tangiam e voavam pedras de
arremesso, cornetas ornejavam. Quando o choque se produzia, gritos
roucos e profundos respondiam aos gritos de guerra uivantes dos hunos.
Depois era cortar, apunhalar, arquejar, suar, matar, morrer. Quando os
homens caíam, pés e cascos esmagavam costelas e espezinhavam a carne
numa massa vermelha. O ferro abatia-se sobre os elmos, ribombando nas
cotas de malha, martelando nos escudos de madeira e nos couros
endurecidos que serviam de protecção ao peito. Os cavalos relinchavam e
gemiam, gargantas perfuradas ou jarretes de tendões cortados. Homens
feridos rosnavam e tenta-vam atacar ou lutar. Raras vezes alguém tinha a
certeza de quem atingira e de quem o ferira. A loucura inundava~,
dominavao, rodopiando negra através do seu mundo.
A certa altura, os hunos conseguiram forçar uma linha inimiga. Uivaram
a sua alegria, ao esporearem as suas montadas para os chacinar pela
retaguarda. Mas, vinda não se sabe de onde, uma nova tropa goda os
atacava, e agora eram eles que estavam encur-ralados. Poucos escaparam.
Por outro lado, os capitães hunos, que viam uma carga falhar, mandavam
tocar à retirada. Aqueles cava-leiros estavam bem treinados;
afastavam-se
do alcance das fle-chas e, por um bocado, as hostes respiravam fundo,
matavam a se-de, cuidavam dos seus feridos, lançando olhares furiosos
para o fosso que os separava.
O Sol pôs-se a ocidente, vermelho-sangue num céu esverdea-do. A sua luz
cintilava sobre orio e nas asas das aves que se alimen-tam da carne em
decomposição e que sobrevoavam o terreno. As sombras alongavam-se pelas
encostas de vegetação prateada, es-praiavam-se pelos vales,
transformavam
grupos de árvores em
manchas negras e informes. Uma brisa corria fria através da ter-
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ra encharcada em sangue coagulado, despenteando o cabelo dos cadáveres
quejaziam amontoados, assobiando como que a chamá-
-los.
Os tambores rufavam. Os Hunos formaram esquadrões. Uma última trombeta
soou e eles iniciaram a sua derradeira investida violenta.
Embora estivessem extenuados, os godos repeliram-na, dizi-mando homens
às centenas. Dagobert armara bem e depressa a sua armadilha. Quando
recebeu as primeiras notícias de um exér-cito invasor - chacinando,
violando, saqueando e queimando-, fez apelo à sua gente para que se
reunissem sob um estandarte. Não sóos teuring, mas também outros colonos
o fizeram. Ele atraiu os hunos a esta ravina que descia até ao Dnieper,
onde a cavala-ria ficava confinada, e só então o corpo principal das
suas forças se precipitara pelas encostas de ambos os lados, barrando a
retirada.
O seu pequeno escudo redondo ficara feito em tiras. O elmo es-tava
amolgado, a cota de malha em farrapos, a espada romba, o corpo era uma
chaga de ponta a ponta. Mas apesar disso man-tinha-se na vanguarda do
centro godo e a sua bandeira ondulava sobre ele. Quando o ataque
começou, moveu-se como um gato sel-vagem.
Um cavalo escouccou enorme. Ele vislumbrou o homem que o montava: baixo
mas entroncado, coberto por peles malcheirosas debaixo da escassa
armadura que possuía, cabeça rapada com excepção duma trança, uma barba
espessa dividida ao meio e en-trelaçada, uma cara com um grande nariz de
aspecto hediondo, devido às suas muitas cicatrizes.
O huno manejava o machado com uma só mão. Dagobert afas-tou-se para o
lado, enquanto os cascos desciam com estrépito. Ele atacou e aparou a
outra arma a caminho. O aço tiniu. Faíscas cruzaram-se no crepúsculo.
Dagobert girou a sua lâmina em redor, caindo sobre a coxa do cavaleiro.
Esse golpe teria sido fatal se a ar-ma ainda estivesse afiada. Assim, o
sangue espirrou. O huno ge-meu e voltou a atacar. Acertou em cheio no
elmo do godo. Dagobert cambaleou. Conseguiu firmar-se de novo, mas o seu
inimigo desa-parecera, sugado pelo furacão da luta.
De um outro cavalo, surgido de repente, avançou uma lança. Dagobert,
meio confuso, apanhou com ela entre o pescoço e o om-bro. O huno viu~
ceder e continuou a fazer pressão no buraco aber-to na linha goda. Do
solo, Dagobert lançou a sua espada. Atingiu o braço do huno e ~lo largar
a lança. O companheiro mais próxi-mo de Dagobert acorreu com uma espada
de lâmina larga. O hu-no caiu. O seu corpo foi arrastado, preso a um
estribo.
Subitamente, a luta cessara. Vencidos, dominados pelo terror, os
inimigos sobreviventes fugiram. Não como uma hoste, mas ca-
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da um por i, à debandada.
-Atrás deles - disse ofegante Dagobert do local onde caíra.
- Não deixem nenhum escapar-se. Vinguem os nossos mortos, tornem a nossa
terra segura... -fraco, deu uma palmada no tor-nozelo do seu
porta~standarte. O homem levou a bandeira em frente e os godos
seguiram-no, matando e matando. Poucos foram, na verdade, os hunos que
regressaram a casa.
Dagobert apalpava o pescoço. A ponta entrara pela direita. O sangue
escorreu. O troar da guerra afastou-se. Mais perto, ouviam-se os gritos
dos aleijados, homens e cavalos, e dos corvos que já voavam baixo.
Também estas vozes se dilufram para ele. Os seus olhos procuraram o
último raio de sol.
O ar tremeluzia num turbilhão. O Viandante chegara.
Desmontando do seu cavalo feérico, ajoelhou-se no esterco, apalpando com
os dedos as feridas do seu filho.
-Pai - sussurrou Dagobert, um gorgulhar através do sangue que lhe enchia
a boca.
A angústia invadiu a face que ele sempre recordara austera e
indiferente.
-Eu não posso salvar... não me é permitido salvar... eles não
deixariam... - murmurou o Viandante.
-Será... que... vencemos?
- Sim. Ficaremos livres dos Hunos por muitos anos. O teu feito...
O godo sorriu.
- Optimo. Agora leve-me, pai. CarI apertou Dagobert nos seus braços até
a morte chegare depois ainda durante muito tempo.
1933
- Oh, Laurie!
- Calma, querido. Tinha de ser...
- O meu filho, o meu filho!
- Vem para opé de mim. Não tenhas medo de chorar.
- Mas ele era tão jovem, Laurie!
- Um homem adulto, apesar de tudo. Não abandonarás os filhos dele. Os
teus netos, pois não?
-Não, nunca. Mas que posso eu fazer? Diz-me o que posso fazer por eles.
Estão condenados, os descendentes de Jorith morre-rão. Não posso mudar
isso, como poderei ajudá-los?
-Depois pensamos nisso, querido. Agora, descansa, porfavor, acalma-te,
dorme.
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337-344
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ressentimento cresceu entre as facções.
Longe de tudo isso, os Ostrogodos só lentamente tomaram consciência
destes problemas. Os cristãos entre eles eram, na maior parte, escravos
trazidos das terras do ocidente. Havia uma igreja em Olbia, mas era para
uso dos comerciantes romanos: de madeira, pequena e miserável quando
comparada com os templos antigos de mármore, embora o seu interior
ecoasse agora algo vazio. No entanto, com o incremento do comércio, os
habitantes das terras interiores também começaram a conviver com
cristãos, aí-guns deles padres. Aqui e ali, mulheres livres recebiam o
baptismo e alguns homens também.
Os teurings não permitiriam tal coisa. Os seus deuses eram bons para
eles, assim como para todos os Godos do Oriente. Vas-tos acres de terras
produziam riquezas; bem como as trocas a norte e a sul, e o seu quinhão
do tributo pago pelos povos que o rei tinha dominado.
Waluburge Ansgar construfram uma nova casa que seria dig-na dofilho de
Dagobert. Erguia-se na margem direita do Dnieper, numa elevação com
vista
sobre o rio cintilante, o ondular do ven-to sobre a vegetação e as
terras de cultura, os maciços de árvores onde as aves faziam os seus
ninhos em bandos que escondiam os céus. Dragões esculpidos erguiam-se
sobre os seus frontões; armações douradas de alces e de bisontes sobre
as portas; os pilares interiores apresentavam as imagens de
deuses- excepto Wodan, para o qual fora reservado um santuário ricamente
decorado ali perto. Anexos espalhavam-se em seu redor, bem como casas
mais modestas, até a povoação quase poder ser considerada uma aldeia. A
vida expandia-se por todo o lado, homens, mulheres, crianças, cavalos,
cães, carros, armas, ruídos de conversas, riso, canções, passadas nas
pedras do pavimento, martelos, serras, rodas, fogo, juramentos e, de vez
em quando, alguém a chorar. Uma telheiro junto à água protegia um barco,
quando este não andava em viagem, e o desembarcadouro recebia
frequentemente embarcações que atravessavam o rio transportando as suas
maravilhosas mercadorias.
Heorot, foi o nome que deram à mansão, porque o Viandante, sorrindo
tristemente, dissera que era o nome de uma habitação fa-mosa no norte.
Ele aparecia com intervalos de alguns anos, apenas por alguns dias de
cada vez, para escutar o que havia para escutar.
Tharasmund cresceu mais moreno que seu pai, de cabelos cas-tanhos, mais
pesado de ossatura, de feições e de alma. O que não eramau, pensavam os
teurings. Deixaram-noqueimar os seus de-sejos de aventura cedo, obtendo
conhecimentos ao faze-- lo; depois disso, assentaria e chefiá-los-ia
sobriamente. Eles sentiam que iriam necessitar de uma mão segura a
dirigi-los. Tinham-lhes chegado histórias de um rei que andava a reunir
os Hunos como
Gebericjá fizera com os Ostrogodos. As notícias que chegavam da
129
pátria mais a norte eram que ofilho de Geberic e provável herdei-ro,
Ermanaric, era um homem cruel e prepotente. Para além disso, havia
grandes probabilidades de, em breve, a casa real se mudar para o sul,
para longe dos pântanos e da humidade, descendo para estas terras
soalheiras, onde o grosso da nação estava agora instalado. Os teurings
quenam um chefe que defendesse os seus direitos.
A última viagem empreendida por Tharasmund foi quando ele tinha
dezassete Invernos e demorou três anos. Levou~ através do mar Negro até
à própria Constantinopla. A partir daí, o barco ini-ciou a viagem de
regresso; e foram essas as únicas notícias que os seus familiares
receberam dele. Mas apesar disso, não se preocu-param -porque o
Viandante oferecera~ para acompanhar o seu neto durante toda a viagem.
Depois disso, Tharasmund e os seus homens tiveram histórias para alegrar
os serões até ao fim das suas vidas. A seguir à sua estada em Nova Roma,
maravilhas sobre maravilhas, aconteci-mentos uns a seguir aos outros,
foram por terra, atravessando a província de Moesia, até ao Danúbio. Na
sua outra margem, ins-talaram~ durante um ano entre os Visigodos. O
Viandante insis-tira nisso, dizendo que Tharasmund devia criar amizades
entre eles.
E a verdade é que o jovem conheceu Ulrica, uma filha do rei Athanaric.
Esse homem poderoso ainda venerava os velhos deu-ses; e o Viandante
tambémjá aparecera algumas vezes no seu rei-no. Por isso, alegrara-se
por
formar uma aliança com uma casa de chefes do leste. Quando aos jovens,
davam-se bem. Já nessa altu-ra Ulrica era altiva e dura, mas não havia
dúvidas que dirigiria bem a sua casa, daria à luz crianças saudáveis e
apoiaria o mari-do nos seus empreendimentos. Chegara-se a um acordo:
Thara-mund seguiria para casa, presentes e garantias seriam trocadas
entre ambos os lados e daí a cerca de um ano a noiva iria ter com ele.
O Viandante ficou apenas uma noite em Heorot, antes de se despedir.
Dele, Tharasmund e os restantes relacionaram pouco mais que o facto de
os orientar sabiamente, embora desapareces-se frequentemente por longos
períodos. Ele era demasiado estra-nho para ser assunto de falatório.
No entanto, uma vez, anos mais tarde, quando Erelieva esta-va deitada a
seu lado, Tharasmund dissera-lhe:
- Eu abri-lhe o meu coração. Era o que ele queria e escu-tou-me
atentamente, e, não sei bem como, era como se o amor e o sofrimento
vivessem lado a lado por detrás daqueles olhos.
130
1858
Ao contrário da maior parte dos agentes da Patrulha com uma certa
patente, Herbert Ganz não abandonara o seu ambiente de origem. Já de
meia-idade quando fora recrutado, e solteirão em-pedernido, gostava de
ser o Herr Prof. da Universidade de Frie-drich Wilhelm, em Berlim. Regra
geral, voltava das suas viagens no tempo cinco minutos depois da sua
partida para retomar uma existência académica ordenada e levemente
pomposa. Para dizer a verdade, os seus saltos eram quase sempre para
escritórios so-berbamente equipados, séculos acima no tempo, e
praticamente nunca para os ambientes germânicos medievos, que
constituíam o seu campo de investigação.
- São inapropriados para um velho e pacifico sábio - disse-ra ele quando
lhe perguntara o motivo. -E vice-versa. Faria uma figura muito triste,
seria desprezado, levantaria suspeitas, talvez até fosse morto. Não, a
minha utilidade reside no estudo, organi-zação, análise e raciocínio.
Deixem-me gozar a minha vida nestas décadas que me agradam. Depressa
acabarão. Sim, claro, antes da civilização iniciar a sua autodestruição
a sério, necessariamente quejá terei envelhecido a minha aparência, até
por fim simular a minha própria morte... E depois, que fazer? Quem sabe?
Terei de procurar. Talvez devesse simplesmente começar de novo noutro si
tio: exempli gratia, Bona depois de Napoleão ou Heidelberga.
Ele sentia-se na obrigação de oferecer hospitalidade aos ope-radores de
campo, quando eles faziam os seus relatórios pessoal-mente. Pela quinta
vez, na minha vida até ao momento, ele e eu se-guimos uma refeição a
meio do dia verdadeiramente gargantuana de um passeio ao longo de Unter
den Linden. Regressámos a sua casa num crepúsculo estival. As árvores
respiravam fragâncias, carros puxados a cavalos faziam ouvir o barulho
dos seus cascos no empedrado, cavalheiros cumprimentavam as senhoras
suas co-nhecidas, com quem se cruzavam, com um levantar do chapéu al-to,
um rouxinol cantava num roseiral. Ocasionalmente, via-se passar um
oficial prussiano fardado, mas os seus ombros não car-regavam obviamente
o peso do futuro.
A casa era espaçosa, embora os livros e o brique-a-braque tendessem a
esconder esse facto. Ganz levou-me para a biblioteca e chamou a criada,
que entrou com um sussurrar do vestido negro, de touca branca e avental.
-Pode trazer-nos café e bolos -ordenou ele. -E, sim, ponha no tabuleiro
uma garrafa de conhaque com copos. Depois, não de-vemos de forma alguma
ser perturbados.
Quando elajá saíra para executar as suas ordens, ele sentou-
-se pesada e confortavelmente no sofá.
131
-Emma é uma boa rapariga -comentou enquanto polia o seu pince-nez. Os
médicos da Patrulha poderiam facilmente corrigir-lhe o globo ocular, mas
ele teria dificuldade em explicar a razão por quejá não precisava de
lentes e declarava que não lhe fazia di-ferença alguma. - De uma família
rural pobre, ach, como eles se reproduzem rapidamente, mas a natureza da
vida é o facto de transbordar, não é verdade? Interessc~me por ela. Um
interesse meramente avuncular, assegur~lhe. Ela deixará a minha casa
daqui a três anos, para casar com um jovem muito simpático.
Providenciarei um pequeno dote sob a forma de um presente de casamento e
serei padrinho do seu primeiro filho. - Com a face rubicunda e bem
disposta atravessada pela tristeza acrescentou:
- Morre de tuberculose aos quarenta e um anos de idade. - Pas-sou a mão
pela careca. - Não me é permitido fazer nada por ela a não ser dar-lhe
alguns medicamentos que a aliviem. Nós, os da Patrulha, não nos
atrevemos a chorar a morte de ninguém: segura-mente nunca antes do facto
consumado. Deveria guardar a pieda-de e sentido de culpa para os meus
pobres amigos e colegas invo-luntários, os irmãos Grimm. Avida de Emma
será melhor que a da maior parte da humanidade.
Não respondi. Garantida a nossa privacidade, fiquei mais absorvido do
que seria necessário na montagem do aparelho que trouxera na minha
bagagem. (Aqui, fazia-me passar por um cien-tista britânico de visita.
Treinara o meu sotaque. Um americano teria sido perseguido com
demasiadas perguntas sobre peles-ver-melhas e escravatura.) Enquanto
visitava os Visigodos em companhia de Tharasmund, conhecêramos Ulfilas.
Eu registara esse acontecimento, como fazia com todos os de particular
interesse. Seguramente que Ganz desejaria deitar uma olhadela ao
principal missionário de Constantinopla, o apóstolo dos Godos, cujas
tra-duções da Bíblia eram virtualmente a única fonte de informação sobre
as suas línguas, que sobrevivera até à descoberta das via-gens no tempo.
O holograma apareceu subitamente. De repente, a sala-candelabro,
prateleiras, mobiliário moderno, que eu conhecia com o nome de linha
império, bustos, desenhos emoldurados e quadros a óleo, loiça de barro,
papel de parede com motivos chineses, cortinados castanhos -
transformou-se nas trevas misteriosas que rodeavam uma fogueira ao ar
livre. No entanto, eu não estava lá em corpo: porque era para mim que eu
olhava e ele era o Viandante.
(Os gravadores são minúsculos, operando a nível molecular,
auto-regulados
quanto à obtenção de estímulos sensoriais completos. O meu, um dos
vários que levava semprecomigo, estava es- -condido na lança que deixara
encostada a uma árvore. Desejando
132
encontrar Ulfilas informalmente, fiz que o percurso do meu grupo
interceptasse o dele, numa altura em que ambos viajávamos pelo que os
Romanos chamavam a Dácia, antes de se terem retirado de lá, e que no meu
tempo se chamava Roménia. Depois de promes-sas mútuas de intenções
pacificas, os meus ostrogodos e os seus bi-zantinos montaram as tendas e
partilharam uma refeição.)
As árvores emparedavam aquele prado, no meio da floresta, rodeado pela
penumbra. O fumo das fogueiras subia até esconder as estrelas. Um mocho
piou, vezes sem conta. A noite ainda esta-va agradável, mas a neblinajá
começara a refrescar as ervas. Os homens sentavam~ de pernas cruzadas
perto do fogo, com excep-ção de Ulfilas e eu. Ele ficara a pé até tarde
nas suas devoções e eu não me podia deixar dominar em frente dos outros.
Eles olhavam fixamente, escutavam, fazendo furtivamente o sinal do
Machado ou da Cruz.
Apesar do seu nome -Wulfila, originalmente -era baixo, en-troncado, de
nariz carnudo; saía aos seus avós da Capadócia, leva-dos na incursão dos
Godos de 264. De acordo com o tratado de 332, ele tinha ido para
Constantinopla, um misto de refém e de envia-do. Acabou por voltar para
os Visigodos como missionário. O cre-do que pregava não era o do
Concflio de Nice, mas sim a doutrina austera de Arius, que fora lá
rejeitada como heresia. No entanto, movia-se na vanguarda da
Cristandade,
o amanhã.
- Não, não devíamos apenas trocar histórias das nossas via-gens -dizia
ele. -Como podem elas ser separadas das nossas fés?
- O seu tom de voz era suave e razoável, mas penetrante era o olhar que
me dirigia. - Você não é um homem vulgar, Carl. Isso vejo eu claramente
em si, e nos olhos dos seus seguidores. Que nin-guém se ofenda se eu me
perguntar se será totalmente humano.
- Não sou nenhum demónio maléfico - respondi.
Seriarealmente eu quem se inclinava sobre ele, esguio, cinzen-to,
embuçado num manto, condenado e resignado à presciência, aquela figura
ali no meio da escuridão e do vento? Nesta noite, mil e quinhentos anos
depois daquela noite, sentia-me como se fosse realmente uma outra
pessoa, realmente Wodan, o eternamente sem lar.
O fervor de Ulfilas flamejava na sua direcção:
- Então não receará o debate?
- Para quê, padre? Sabe bem que os Godos não são seguido-res do Livro.
Eles não se importariam de fazer oferendas a Cristo nas suas terras;
fazem~o até frequentemente. Mas vocês nunca fazem oferendas a Tiwaz nas
suas terras.
- Não, porque Deus proibiu que nos curvássemos diante de outro que não
ele. Só Deus, o Pai, pode ser venerado. Ao Filho, que lhe seja dada a
devida reverência, sim; mas a natureza de Cristo...
- e Ulfilas estava lançado num sermao.
Não era uma arenga. Ele não era parvo. Falava calmamente,
133
com sensatez, até com boa disposição. Não hesitava em empregar imagética
pagã, nem tentou fazer mais que lançar uma base de ideias antes de se
lançar na conversão por outras paragens. Vi homens do meu grupo
acenarem com a cabeça pensativamente. O arianismo adaptava-se melhor às
suas tradições e temperamen-to que um catolicismo que eles desconheciam
por completo. Seria a forma do cristianismo que todos os Godos acabariam
por tomar; e daí nasceriam séculos de convulsões.
Eu não me portara lá muito bem. Mas como poderia honesta-mente defender
um ateísmo no qual eu próprio não acreditava e que eu sabia estar em
vias de desaparecer? Para falar verdade, co-mo podia eu honestamente
tomar o partido de Cristo?
Os meus olhos, de 1858, procuraram Tharasmund. Nas suas feições jovens
transparecia muito dos adorados traços de Jorith.
- E como vai a pesquisa literária? - perguntou Ganz quan-do o filme
acabou.
- Bastante bem. - Refugiei-me no relato dos factos. - No-vos poemas;
versos que parecem definitivamente anteriores a versos de Widsith e
Walthere. Para ser específico, desde a batalha de Dnieper... -Isso
magoava-me muito, mas puxei do livro de apontamentos e registos e
atirei-me para a frente.
344-347
1934
Paz na terra, aos homens de boa~ontade, Dos Céus sempre gracioso Rei...
348-366
144
Fora um insulto deliberado, uma palavra usada como se aque-
les homens não fossem livres, mas mantidos em servidão como os cães ou
os romanos. O capitão corou antes de responder aspera-mente:
- Alguns de vocês terão autorização para entrar, mas antes disso os
outros deverão recuar.
- Sim, recuem - murmurou Tharasmund para Liuderis.
O velho guerreiro berrou:
-Recuaremos, visto perturbarmos as vossas tropas, mas nao para longe e
não ficaremos passivos durante muito tempo até ter-mos a certeza de que
os nossos chefes estão a salvo de traições.
- Viemos para falar - disse o Viandante apressadamente. Ele, Tharasmund
e Randwar desmontaram. Porteiros afasta-ram-se para os deixar passar.
Mais guardas enchiam o interior. Contra ouso comum, estavam armados. A
meio da parede, a leste, rodeado pelos seus cortesáos, Ermanaric
aguardava sentado.
Era um homem alto que se mantinha rigidamente erecto. Ca-racóis negros e
uma barba em bico rodeavam uma face enrugada e severa. Estava
esplendorosamente vestido, com pesadas faixas de ouro sobre a testa e
pulsos; a luz das lamparinas brilhava sobre o metal. As suas vestes eram
de tecidos estrangeiros tingidos, or-lados a marta e arminho. Na mão
segurava um copo de vinho, não de vidro mas de cristal lapidado; e os
seus dedos brilhavam com rubis.
Mantevose silencioso até os três recém~hegados, cansados da viagem e
cobertos de lama, chegarem ao seu trono. Fixou~s fu-riosamente ainda
durante uns momentos antes de dizer:
-Bem, Tharasmund, andas em companhia de pessoasbastan-te estranhas.
- Sabes quem eles são - respondeu o chefe teuring -, e qual deve ser a
nossa missão.
Um homem esquelético, de uma palidez de cinzas, à direita do rei,
Sibicho, oVândalo, murmurou-lhe ao ouvido. Ermanaric ace-nou.
- Sentem-se, então - disse ele. - Vamos beber e comer.
-Não -disse Tharasmund. -Não tomaremos nem sal nem água sagrada à tua
mesa, antes de teres feito as pazes connosco.
- Estás a exagerar a tua ousadia, sabes.
O Viandante levantou a sua lança. Fez-se um silêncio, que tor-nou o
crepitar do fogo mais alto.
- Se fores sensato, rei, escutarás este homem - disse ele. -Atua terra
sangra. Lava essa ferida e p~lhe ervas curativas pa-ra que ela não inche
e adoeça.
Ermanaric enfrentou-lhe o olhar e respondeu:
-Eu não tolero zombarias, velho. Escutarei se ele tiver cuidado com a
língua. Diz-me em poucas palavras o que queres, Tharasmund.
145
Aquilo foi o mesmo que uma bofetada na cara. O teuring teve de engolir
três vezes até rugir as suas exigências.
- Logo vi que querias algo de parecido - disse Ermanaric. -Fica a saber
que Embrica e Fritla morreram devido aos seus próprios actos.
Escamotearam ao seu rei aquilo que legalmente lhe pertencia. Ladrões e
homens desleais são foras-da-lei. No entanto, sou clemente. Estou
disposto
a pagar uma compensação pelas suas famflias e terras... depois do
tesouro me ser entregue.
- Quê? -gritou Randwar. -Atrevese a falar assim, seu assassino?
Os guardas agitaram-se. Tharasmund pousou umamão de aviso sobre o braço
do rapaz. Para Ermanaric disse:
- Exigimos uma compensação dupla como reconhecimento do mal que fizeste.
Não podemos aceitar menos e conservar a nossa honra. Mas quanto à posse
do tesouro, deixa que a Grande Assembleia decida; e qualquer que seja a
decisão, apertemos as mãos em sinal de paz.
- Eu não regateio - respondeu Ermanaric, num tom gélido.
- Aceitem a minha oferta e váose embora... ou recusem-na e
saiam antes que os faça arrependerem-se da vossa insolência.
O Viandante deu alguns passos em frente. Levantou novamen-te a lança
para impor silêncio. O chapéu ensombrecia-lhe a face, tornandoo
duplamente estranho; o manto azul caía dos seus om-bros como asas.
-Escuta-me - disse ele. -Os deuses sáojustos. Aqueles que se riem da lei
e oprimem os desprotegidos, os deuses trarão desgra-ça. Ermanaric,
escuta atentamente antes que seja demasiado tar-de. Pensa bem, antes do
teu reino ficar completamente destruído.
Um murmúrio e um restolhar atravessou o salão. Os homens remexiam-se,
faziam sinais, agarravam-se ao cabo da espada em busca de consolação. Os
olhos rolavam brancos por entre o fumo e a penumbra. Era o Viandante que
falava.
Sibicho puxou pela manga do rei e murmurou qualquer coisa. Ermanaric
acenou. Inclinou-se para a frente, o dedo apontado co-mo uma faca, e
disse alto e bom som, de forma a ecoar pela sala:
-Já tens sido antes meu convidado noutras casas, velho. Mal te fica
ameaçare~me. E também és insensato... não importa quais os filhos,
velhas ou velhos decrépitos te sigam, és insensato se pen-sas que tenho
medo de ti. Sim, eles dizem-me que tu és o próprio Wodan. Que me
interessa isso? Eu não confio em nenhuns deuses insignificantes, confio
apenas na força que é minha.
Levantou-se. A sua espada rodou brilhante.
- Queres lutar comigo, velho caquético? - gritou ele. - Podemos
encontrar-nos imediatamente num campo de luta. Enfrenta-me aí, de homem
para homem, e eu quebrar-to-ei essa tua es-146 pada em duas e
expulsar-teei de lá aos uivos!
O Viandante não se moveu; a sua arma vacilou um pouco.
- Não é essa a vontade de Weard - quase murmurou. - Mas aviso~te com
toda a gravidade, pelo bem de todos os godos, sela a paz com estes
homens a quem ofendeste.
-Farei apaz seelesofizerem também -disse Ermanaric, sor-rindo
maliciosamente. - Ouviste a minha oferta, Tharasmund. Aceitas?
O teuring preparou-se, enquanto Randwar grunhia como um lobo
prisioneiro, o Viandante permanecia imóvel como se fosse um ídolo e
Sibicho inclinava-se do banco.
-Não - disse ele em voz baixa e áspera. -Não posso aceitar.
- Então vão-se embora, vocês todos, antes que eu os mande chicotear até
aos vossos canis.
Ao ouvir isto, Randwar desembainhou a espada. Tharasmund e Liuderis
puxaram pelas deles; via~ o ferro a brilhar por todos os lados. O
Viandante disse em voz alta:
-Vamo-nos embora, mas só em consideração pelos godos. Reflecte bem, rei,
enquanto ainda és rei.
Incitou os seus companheiros a sair. Ermanaric começou a rir. O seu riso
perseguiu~s ao longo de todo o salão.
1935
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L.B.F.~156-11
sas, isso era inimaginável. Estaria o Viandante a falar verdade? Mas
afinal quem era ele? Muitas vezes consideravam-no um deus e parecia
andar por ali há muito tempo; mas ele próprio nunca o admitira. Podia
ser um palerma, um feitiçeiro de magia negra, ou, diziam os cristãos, um
diabo enviado para desencaminhar os ho-mens. Ou podia meramente estar a
ficar senil com a idade.
O Viandante continuou a insistir. Alguns dos seus ouvintes consideravam
que as suas palavras mereciam uma reflexão mais atenta; e alguns, os
novos, ficavam entusiasmados. Entre estes úl-timos destacava-se Alawin,
em Heorot, embora Hathawulfcome-çasse a ficar convencido e Solbern se
mantivesse reticente.
De um lado para o outro, o Viandante desenvolveu uma grande actividade,
falando, planeando, ordenando. Por alturas do equinó-cio do Outunojá
conseguira um esqueleto do que desejava. Ouro, mercadorias, homens para
cuidar de tudo estavamjá na capital de Frithigern, no ocidente; Alawin
iria até láno ano seguinte para d~ senvolver o comércio,
independentemente dos seus poucos anos; em Heorot e em numerosas outras
casas, os habitantes podiam partir rapidamente, se a necessidade
surgisse.
- Esgotou-se a trabalhar por nossa causa - disse-lhe Ha-thawulf no fim
da
sua última estada em sua casa. - Se pertence aos Anses, então, eles não
são incansáveis.
-Não - suspirou o Viandante. - Eles também perecerão no naufrágio do
mundo.
- Mas isso ainda está muito longe no futuro, seguramente.
- Mundo após mundo tem desaparecido em ruínas até ao pre-sente, meu
filho, e o mesmo acontecerá nos anos e milhares de anos vindouros. Eu
fiz por vocês aquilo que me era possível.
Amulher de Hathawulfentrou para se despedir. Ao peito ama-mentava o seu
primeiro filho. O Viandante contemplou durante bastante tempo obebe.
-Ali reside o amanhã... -murmurou ele. Ninguém percebeu o que ele queria
dizer. Depressa se afastava, ele e a sua lança~or-dão, descendo pela
estrada onde as folhas recentemente caídas ro-dopiavam levadas pelo
vento frio.
E pouco tempo depois, chegaram a Heorot as terríveis notícias.
Ermanaric, o rei, anunciara que tencionava fazer uma incur-são na terra
dos Hunos. Não seria um guerra declarada, como a que ocorrera antes.
Portanto, ele náorecrutaria guerreiros, mas avan-çaria apenas com os
seus guardas de cavalaria, algumas centenas de guerreiros bem conhecidos
e fiéis a ele. Os Hunos estavam no-vamente a atacar as fronteiras. Ele
puni-los-ia. Um golpe rápido e profundo mataria pelo menos uma parte
substancial do seu ga-do. Com sorte, poderia surpreender um ou mais dos
seus acampa-mentos. Os godos acenavam com a cabeça quando recebiam estas
162
notícias. Que ajudassem a engordar os corvos no leste e talvez os
vagabundos da estepe regressassem ao local onde os seus antepas-sados os
deram à luz.
Mas quando as suas tropas estavam reunidas, Ermanaric não foi até tão
longe. Subitamente, estava na casa de Randwar, en-quanto as casas dos
amigos de Randwar ardiam de um lado ao ou-tro do horizonte.
Escassa foi a luta, tão grande era a força armada que o rei trouxera
contra um jovem incauto. Empurrado, com as mãos amarradas atrás das
costas, Randwar cambaleou pelo pátio. O sangue escorria e secava-lhe na
cabeça. Matara três dos homens que o atacaram, mas as ordens que tinham
eram de o capturar vi-vo e bateram-lhe com paus e cabos de lança até ele
cair.
Foi um fim de dia triste, em que o vento uivava. Farrapos de fu-mo
misturavam-se com a chuva de escombros. O crepúsculo con-sumia~. Alguns
defensores mortosjaziam sobre o pavimento de pedra. Swanhild estava
atordoada, agarrada por dois guerreiros, junto de Ermanaric que montava
o seu cavalo. Era como se ela não compreendesse o que tinha acontecido,
como se nada fosse real, a não ser a criança que transportava no seu
ventre dilatado.
Os homens do rei levaram Randwar para a frente deste. Ele in-clinou-se
para observar o prisioneiro.
- Bem - saudou ele -, que tens a dizer em tua defesa?
Randwar falou em voz rouca, embora mantivesse a sua cabeça ensanguentada
erecta:
- Que não ataquei sediciosamente quem não me fez mal.
- Bem,~vejamos - os dedos de Ermanaric pentearam uma barba já a começar
a embranquecer. - Bem... Será que é bom conspirar contra o seu senhor?
Será que é bom andar por aí furti-vamente a conspirar?
- Eu... não fiz nada disso... Eu queria apenas salvaguardar a honra e a
liberdade... dos Godos... - A garganta seca de Randwar não conseguiu
articular mais nada.
-Traidor! -vociferou Ermanaric e lançou-se numa grande ti-rada. Randwar
manteve-se curvado, provavelmente sem ouvir a maior parte do que ele
dizia.
Quando Ermanaric se apercebeu disso parou.
- Já chega - disse. - Enforquem-no pelo pescoço e abando-nem-no aos
corvos, como um ladrão vulgar.
Swanhild gritou, debatend<>se. Randwar lançou-lhe um olhar desfocado
antes de se virar para o rei e responder.
- Se me enforcares, vou ter com o meu antepassado Wodan. Ele... me
vingará...
Ermanaric atirou-lhe com um pontapé que o atingiu na boca.
- Pendurem-no!
Um barrote para levantar o feno sobressaia de um celeiro. Os
homensjá tinham pendurado nele uma corda. Rodearam o pesco-
163
ço de Randwar com o laço, penduraram~oe esticaram acord~ Ele debateu-se
muito tempo até balançar inerte ao vento.
-Sim, oViandantevai apanhar-te, Ermanaric!-gritou Swa-nhild. -Eu
lançc>~te a praga da viúva, assassino, e chamo Wodan para te punir!
Viandante, levao para acaverna mais gelada do In-ferno!
Os greutungs estremeceram, fizeram sinais e agarraram-se aos talismãs. O
próprioErmanaric não parecia à vontade. Sibicho, inclinado na sela do
cavalo ao seu lado, uivou:
- Ela chama polo seu antepassado feiticeiro? Não permitam que ela viva!
Que a terra se purifique do sangue que ela transporta!
- Sim - disse Ermanaric num lampejo de vontade. E gritou 'essa ordem.
O medo mais que qualquer outra coisa fez que os homens se apressassem.
Os que seguravam em Swanhild espancaram~a até ela tropeçar, e deram-lhe
pontapés até a deixarem no centro do pátio. Ficou inerte sobre as
pedras. Os cavaleiros aproximaram--se, forçando os seus cavalos que
relinchavam e escouçeavam a pisá-la. Quando se afastaram, nadarestava
senão uma massa ver-melha e lascas brancas.
A noite caiu. Ermanaric levou as suas tropas para casa de Randwar para
uma festa de celebração da vitória. De manhã en-contraram o tesouro e
levaram-no com eles. A corda rangia no lo~ cal onde Randwar oscilava
sobre o que tinha sido Swanhild.
Tais foram as notícias que os homens levaram a Heorot. Eles ti-nham
enterrado os corpos apressadamente. Amaioria não se atre-veu a fazer
mais que isso, mas uns poucos greutungs sentiam~se com ânsias de
vingança, como todos os teurings.
Raiva e dor apossaram-se dos irmãos de Swanhild. Ulrica era mais fria,
mais fechada em si própria. No entanto, quando eles se perguntaram o que
podiam fazer, embora homens da tribo não pa-rassem de chegar de todos os
lados... ela falou à parte com os seus filhos e falaram até a escuridão
inquieta cair.
Entraram os três no salão. Disseram que já tinham tomado uma decisão. O
melhoreraripostar imediatamente. E verdadeque orei estaria preparado
para isso e manteria a sua guarda em aler-ta durante uns tempos. No
entanto, pelos relatos de testemunhas que os tinham visto passar, o seu
grupo não seria maior que o que enchia esta noite este edifício. Um
ataque de surpresa levado aca-bo por homens corajosos poderia vence-los.
Esperar, equivalia a dar a Ermanaric tempo do qual ele precisava e que
indubitavel-mente contava ter - tempo para esmagar todo e qualquer godo
oriental que se quisesse manter livre.
Os homens rugiram a sua disponibilidade. Ojovem Alawinjun-tou~ a eles.
Mas, subitamente, a porta abriu-se e apareceu o
164
Viandante. Severamente, pediuqueoúltimofilhodeTharasmund
permanecesseem casa, antes de se perder novamente na noite e no vento.
Destemidamente, Hathawulf, Solbern e os seus homens parti-ram a cavalo
ao nascer do dia.
1935
Eu fugira para casa, para Laurie. Mas no dia seguinte, quan-do abri a
porta, depois de um longo passeio, ela nãoestava áminha espera. Em seu
lugar, Manse Everard levantou~ da minha pol-trona. O fumo do seu
cachimbo tornara o ar enevoado e com um cheiro acre.
- Hum? - exclamei eu apenas.
Ele aproximou~. Senti-lhe os passos. Tão alto como eu e de estrutura
mais pesada, erguie-se imponente. As suas feições es-tavam totalmente
inexpressivas. Ajanela atrás deleenquadrava-o contra o céu.
-Laurieestábem-dissemaquinalmente. -Pedi-lhequese ausentasse. Já vai ser
bastante duro para si, sem que ela o veja e fique chocada e magoada.
Pegou~ne no cotovelo.
- Sente-se, CarI. Está perfeitamente destroçado, é óbvio. O melhor seria
tirar uma férias, não acha?
Deixei~ne enterrar no sofá e olhei fixamente para o tapete.
- Tenho de ter... - balbuciei. - Oh, tenho de verificar algu-mas pontas
soltas, mas primeiro... meu Deus, foi horroroso!
-Não.
- Quê? - levantei o olhar. Ele enfrentava-se de pé, com os pes
afastados,
punhos nacintura, imponente. -Digc~lheque não posso.
- Pode e fará - vociferou ele. - Vai voltar comigo para a ba-se.
Imediatamente. Dormiu esta noite. Bem, não dormirámais en-quanto não
acabarmos com isto. E nada de tranquilizantes. Vai ter de sentir
totalmente o que vai acontecer. Vai precisar de estar
aler-~constantemente. Além disso, nãohá nadacomo a dor para man-ter uma
lição bem viva na memória. O mais importante, talvez, se não
permitirqueessa dor passe através de si, como é próprio dana-tureza,
nunca se verá realmente livre dela. Será um homem per-seguido.
APatrulhamerecemelhor. E Laurie também. E atémes-mo você.
- Mas de que raio é que está a falar? - perguntei, enquanto o horror se
erguia como uma maré à minha volta.
-Tem de terminar o que começou. Quanto mais depressa, me
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lhor, principalmente para si. Que férias é que iria ter se soubesse que
ainda tinha esta tarefa à sua frente? Destrrn-l~ia? Não, fa-çao
imediatamente, veja~ pelas costas nesta linha do seu mun-do; então já
poderá descansar e começar a recompor-se.
Abanei a cabeça, não como uma negação, mas de espanto.
- Errei? Como? Eu entreguei os relatórios regularmente. Se estava
novamente a pisar a linha por que é que ninguém me cha-mou a,atençáo e
me explicou o que devia fazer?
- Eo que estou a fazer, Carl. - Um fantasma de bondade per-passou no tom
de voz de Everard. Sentou~ à minha frente e ata-refou~ com o cachimbo.
- Alterações casuais são muitas vezes coisas extremamente subtis - disse
ele. Apesar do tom suave, estas palavras chocaram-
-me ao ponto de ficar intensamente atento. Ele acenou. -Sim. Es-tamos em
presença de um. O viajante no tempo tornou-se a cau-sa exactamente do
acontecimento que se propôs estudar ou tratar de qualquer outra forma.
- Mas... não, Manse, como? - protestei eu. -Não esqueci os princípios.
Nunca os esqueci, nem no terreno nem noutro sítio qualquer. Claro que me
tornei parte do passado, mas uma parte que se encaixava no que já
existia. Examinámos tudo isso no in-quérito... e corrigi os erros que
andava a fazer.
O isqueiro de Everard fez um dique a acender-se que ecoou pe-la sala.
- Eu disse que podem ser muito subtis - repetiu ele. - Exa-minei o seu
caso com mais profundidade, essencialmente devido a um pressentimento, a
uma sensação de que havia ali algo de erra-do. Envolveu muito mais que
ler os seus relatórios... que,já agora, são bastante satisfatórios. São
apenas insuficientes. A culpa não é sua. Mesmo com uma longa
experiência, era muito provável que lhe tivessem passado despercebidas
as implicações, em virtude de estar tão pessoalmente envolvido nos
acontecimentos. Eu vi-me obrigado a encharcar-me em conhecimentos sobre
esse meio e va-gueei de um lado para o outro, repetidamente, até
compreender claramente a situação.
Puxou uma fumaça do seu cachimbo.
- Não se preocupe com os pormenores técnicos - continuou
ele. -Basicamente, o seu Viandante tornou-se mais poderoso que você
pensou. Acontece que os poemas, histórias, tradições que fluíram durante
séculos, transmutandose, cruzandose, influen-ciando as pessoas... uma
série delas tinham-no a ele como fontes. Não o Wodan mítico, mas a
pessoa física e presente, você próprio.
Eu compreendera onde ele queria chegar e reuni a minha de-fesa.
- Era um risco calculado desde o início - disse eu. - Bastan-
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te
frequente. Quando ocorrem trocas mútuas como essa, não é ne-
nhum desastre. O que a minha equipa está a investigar são ape-nas as
palavras, orais e escritas. As inspirações originais não são relevantes.
Nem fará qualquer diferença para a história subse-quente... se, por
exemplo, um homem estava ou não lá em certa al-tura, e que fosse tomado
como um dos deuses pela população... des-de que o homem não abusasse da
sua posição. - Hesitei. - Não é verdade?
Ele destruiu a minha vaga esperança.
- Não, necessariamente. Seguramente que não neste caso. Uma alteração
casual e incipiente é sempre perigosa, sabe. Pode provocar ressonância e
as alterações na história decorrentes dela podem multiplicar-se
catastroficamente. A única forma de não fa-zer perigar as coisas
éfechá-la. Quando o Dragão Ouroboros mor-de a sua própria cauda, não
pode devorar mais nada.
- Mas... Manse, eu deixei Hathawulf e Solbern dirigirem-se para a
morte... Está bem, admito que tentei evitá-lo, não imagi-nando que
tivesse alguma importância para a humanidade no seu todo. E falhei.
Mesmo num pormenor tão ínfimo, o continuum é de-masiado rígido.
- Como sabe que falhou? A sua presença através de gerações, o verdadeiro
Wodan, fez mais que introduzir os seus genes na fa-mília. Encorajou os
seus membros, inspirou~s a tornaram-se grandes. Agora no fim, a vitória
na batalha contra Ermanaric pa-rece garantida. Com a convicção de que
Wodan está do lado deles, os rebeldes poderão muito bem ganhar.
- Quê? Quer dizer... Oh, Manse!
- Tal não deve suceder! - disse ele.
A agonia submergiu-me ainda mais.
- Por que não? Quem é que se ralará, umas décadas mais tar-de, já para
não falar num milénio e meio mais tarde?
-Mas, exactamente você e os seus colegas - declarou a voz im-placável e
cheia de piedade. - A sua missão era investigar as rai zes de uma
história específica sobre Hamther e Sorli, recorda-se? Já para não falar
nos poemas de Eddica e dos escritores de sagas antes de você, e sabe
Deus mais quantos contadores de histórias antes deles, que foram
afectados de várias formas menores, mas que podem juntar-se e no final
constituir um grande número. No entanto, e principalmente porque
Ermanaric é uma figura histó-rica, proeminente na sua época, a data e
maneira como morreu es-tão registadas. O que se passou imediatamente a
seguir abalou o mundo.
»Náo, não se trata aqui de uma pequena onda na corrente do tempo. E um
furacão em evolução. Temos de o evitar e a única for-ma de o fazer é
fechar aquela alteração causal, fechar o anel.
Os meus lábios formaram a pergunta inútil, desnecessária.
«Como?», que a garganta e a língua se recusavam a emitir.
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Everard pronunciou o veredicto:
- Lamento mais do que possa imaginar, Cari. Mas a Volsun-gasaga relata
que Hamther e Sorli estavam prestes a vencer, quando, por razões
desconhecidas, Odin apareceu e os traiu. E ele era você. Não podia ser
mais ninguém...
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1935
- Laurie, Laurie!
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A manhã trouxe chuva. Batida por um vento uivante, gélida e dura como
granizo, escondia tudo excepto a povoação que se ani-nhava por debaixo
dela, como se o resto do mundo tivesse pereci-do num naufrágio. O troar
da chuva no telhado ressoava por toda a Heorot vazia.
A escuridão parecia ainda aumentada pelo vazio. Os fogos ar-diam> as
lamparinas brilhavam no meio das trevas. A atmosfera estava cortante.
Trêsfiguras encontravam~ perto do centro. O que diziam não as deixava
sentarem~. Q bafo salabranco-fantasma dos seus lá-bios.
- Mortos? -murmurou Alawin atordoado. - Todos? Não es-capou nenhum?
O Viandante assentiu.
-Sim -repetiu ele-, embora a desgraça seja tão grande pa-ra osgreutuugs
como para os teurLngs. Ermanaric está vivo, mas aleUado e coxo e perdeu
dois filhos.
Ulrica lançou-lhe um olhar arguto.
-Se isso aconteceu na noite passada -disse ela-, não caval-gou nenhum
cavalo terreno para nos trazer a notícia...
- Sabes quem sou... - respondeu ele.
- Será que sei? - ergueu para ele dedos repuxados como garras. A sua voz
transformou-se num guincho. - Se és na reali-dade Wodan, ele é um deus
miserável, que não quis ou não pôde ajudar os meus filhos quando
precisavam dele.
- Espera, espera - implorou Alawin, enquanto lançava um olhar temeroso
para o Viandante.
Este último disse suavemente:
-Eu estou de luto com vocês. Mas a vontade de Weard não po~ de ser
alterada. Amedida que a história do que aconteceu se espa-lha para o
ocidente, é provável que oiçam que eu estive lá e que foi Ermanaric quem
eu salvei. Saibam que contrao tempo, até ospró-prios deuses nada podem.
Eu fiz o que me estava destinado fazer.
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Lembrem-se de que, ao perecerem da forma que lhes estava desti-
nada, Hathawulf e Solbern redimiram a honra destacasa e ganha-ram uma
fama que será recordada enquanto a sua raça existir.
-Mas Ermanaric continua vivo sobre a terra -contrapôs Ul-rica. - Alawin,
o dever da vingança passou para ti.
-Não- disse o Viandante. -A tarefa dele é mais importan-te que isso. E a
de salvar o sangue da família, a vida do clã. E por isso que aqui vim.
Virou-se para ojovem, que olhava para tudo com uns olhos es-bugalhados.
-Alawin - continuou ele-, eu tenho o dom da presciência e acredita-me
que é um fardo pesado. No entanto, às vezes, posso utilizá-lo para
evitar desgraças. Ouve bem, pois será esta a últi-ma vez que me ouves.
- Viandante, não ! - gritou Alawin.
Ulrica respirou por entre dentes cerrados.
O Cinzento levantou a mão que não empunhava a lança.
- O Inverno depressa chegará - disse ele -, mas a ele se se-guirá a
PrimaveraeoVeráo. Aárvore da tua linha está despidade folhas, mas as
suas raízes mantêm forças latentes e voltará a fio rescer... se um
machado não a derrubar.
-Apressa-te. Embora esteja ferido, Ermanaric irá tentar, de uma vez por
todas, acabar com a tua raça insolente. Tu não conse-guirás reunir uma
força tão grande como a dele. Se permaneceres aqui, morrerás.
»Pensa bem. Estás preparado para viajar para ocidente, e uma boa
recepção te aguardajunto dos Visigodos. Será ainda mais ca-lorosa devido
à derrota queAthanaric sofreu este ano infligida pe-los Hunos, no rio
Dnestr; estão bem precisados de almas frescas e esperançosas. Dentro de
alguns dias, podes iniciar a viagem. Os homens de Ermanaric, quando aqui
vierem, encontrarão apenas as cinzas desta casa, à qual pegarás fogo
para que não lhe caia nas mãos e será uma pira ardente em honra dos teus
irmãos.
»Náo será uma fuga. Não, partirão para forjar um amanhã mais poderoso.
Alawin, és agora o único depositário do sangue dos teus pais. Guarda~
bem.
A fúria desfigurou a face de Ulrica.
- Sim, sempre teve palavras convincentes - disse ela em voz
trémula. -Não sigas os seus conselhos traiçoeiros, Alawin. Man-tém-te no
teu lugar. Vinga os meus filhos... os filhos de Tharas-mund.
O jovem engoliu em seco.
- Quer realmente... que eu parta... enquanto o assassino de Swanhild,
Randwar, HathawulfeSolbern... aindavive?-gague-jou ele.
- Não deves ficar aqui - disse o Viandante em voz grave. -Seficares,
sacrificarás aúltimavida que existia no teu pai... dá-la-
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E
Varagan encolheu os ombros,
como um gato.