Angela Di Paolo
Quem lê Donald W. Winnicott pela primeira vez pode-se perguntar “por que ele
fala sempre da ‘mãe’”? “Por que, justamente, a palavra ‘mãe’, se para ter um filho nem
sempre se tem uma mãe biológica”? Ou, ainda, “é preciso uma mãe para se ter um
filho”?
Para iniciar este texto, trago as palavras de Valter Hugo Mãe que tão bem evocam
o sentido de filiação em Psicanálise: somos o resultado de tanta gente, de tanta
história... Podemos retomá-las para entender o significado que Winnicott (1957/2008)
atribui ao bebê, um ser que não existe sozinho, mas que existe em relação – a outro(s).
É sobre relação que nos fala Winnicott. Não qualquer relação, mas aquela que
constitui os vínculos que configuram o início de uma história, de uma filiação subjetiva.
Ao nascer, o bebê ocupa um lugar na família e na cultura da qual faz parte. Sua
subjetividade será delineada nas relações que estabelece nesses âmbitos, com a
contribuição das disposições naturais e afetivas que isso implica. Como lembra
Bernardino (2006), para que se constitua o sujeito psíquico é necessário o encontro entre
dois alicerces: o biológico e o relacional.
O aspecto biológico (maturacional) oferece as condições materiais necessárias às
configurações de funcionamento e de aprendizagem que o meio circundante propicia. O
aspecto relacional (afetivo) implica a relação da criança com os pais/as mães, a família,
a cultura, a linguagem. Para Bernardino (2006), o encontro desses aspectos é condição
de possibilidade para existência do ser humano:
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Texto elaborado para a disciplina Práticas Educacionais na 1ª Infância com Crianças de 0 a 3 Anos.
São Paulo, 20 de fevereiro de 2018.
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desse objeto que no início funcionava apenas como um suporte – tal como um paninho
que pode ser inicialmente utilizado como objeto transicional pela criança, mas que
pode, aos poucos, tornar-se outros objetos, como uma capa, uma roupa, um cobertor, na
brincadeira, no faz-de-conta. Ou ainda, quando a criança se desprende de seu objeto
transicional, pode investir em outros, de forma criativa.
A teoria de Winnicott (1971/1975) sobre os objetos transicionais é marcada por
outro conceito, o de mãe suficientemente boa, que seria a personagem responsável por
criar as condições de ilusão e de desilusão. É preciso que, num primeiro momento, a
mãe (ou o cuidador que a substitua) propicie ao bebê a oportunidade de que os cuidados
oferecidos correspondam exatamente às suas necessidades, e nisso consiste a ilusão: “a
mãe coloca o seio real exatamente onde o bebê está pronto para criá-lo, e no momento
exato” (WINNICOTT, 1971/1975, p. 26).
Desde o nascimento, portanto, o bebê está envolvido com o problema da relação
entre o que é objetivamente percebido por ele e aquilo que é subjetivamente concebido.
Essa área intermediária seria um momento propício para a ilusão. Não se pode conceber
que o bebê saiba desde o início o que deve ser criado. A mãe apresenta o seio ao bebê
em seu impulso potencial de alimentá-lo. “A adaptação da mãe às necessidades do bebê,
quando suficientemente boa, dá a este a ilusão de que existe uma realidade externa
correspondente à sua própria capacidade de criar” (WINNICOTT, 1971/1975, p. 27).
Assim, pode-se dizer que há uma correspondência entre o que a mãe supre e o que a
criança pode criar. O objeto transicional está situado nessa correspondência, nessa área
de transição, como o seu nome já anuncia. Para Winnicott (1971/1975, p. 28):
tolerar a frustração, de não ter o seio e nem a presença de sua mãe sempre e à hora em
que necessitar. Surgem, nesse momento, as suas primeiras experiências com o mundo
externo e a sua capacidade de simbolizar. O objeto transicional entraria, nesse
momento, como uma primeira possessão “não-eu” da criança. Trata-se de uma área
intermediária, é uma experiência que possibilita à criança a capacidade de criar. Para o
autor, é uma área intermediária entre a “realidade psíquica interna” e o “mundo
externo”, que na criança é ocupada pelo brincar e que, mais tarde, na fase adulta, seria
substituída pela criação artística, pelo sentimento religioso e pelos sonhos.
Essa fase de transição nos lembra a fase do narcisismo primário, que foi descrita
por Freud (1914/1996) em seu ensaio intitulado Sobre o narcisismo: uma introdução. O
narcisismo primário seria marcado por um investimento da libido no próprio corpo da
criança (autoerotismo) e, também, por uma revivescência do narcisismo dos pais, que
vêem a criança com perfeição, como “Sua Majestade, o Bebê”. O narcisismo seria uma
fase intermediária necessária entre o autoerotismo e o amor objetal, que seria marcado
por um investimento libidinal nos objetos, o que foi chamado por Freud (1914/1996) de
amor objetal. Se, num primeiro momento, a criança tem as suas primeiras experiências
de satisfação com o seu próprio corpo, num segundo momento, ela irá escolher outros
objetos para investir sua libido. Os primeiros objetos de amor de uma criança são as
pessoas que se preocupam com sua alimentação, cuidados e proteção, isto é, sua mãe ou
quem quer que a substitua. Esse segundo momento caracteriza o amor objetal, quando a
criança já diferencia eu-outro e consegue investir no outro como alguém diferente dela.
Retomando o conceito de objetos transicionais proposto por Winnicott (1971/1975),
podemos afirmar que ele entraria nesse momento de transição, quando a criança se
descola de uma ilusão de completude com sua mãe e começa a investir nos outros e no
mundo externo como objetos que são diferentes dela.
Os objetos transicionais marcam, dessa maneira, um momento em que o brincar
simboliza algo significativo na experiência da criança – por exemplo, a separação do
outro-mãe. Ele significa a criação de um recurso interno (elaboração) para sustentar a
ausência da mãe. Winnicott (1957/2008) retoma uma proposição freudiana acerca do
brincar. Para Freud (1907/1996), assim como o brincar, as fantasias e a criação literária
também são formas de elaboração.
Freud (1907/1996), em conferência realizada nos salões do editor e livreiro
vienense Hugo Heller, esboçou uma aproximação entre a fantasia e o brincar infantil, e
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também com a temática da criação literária. Freud (1907/1996, p. 135) inaugura o texto
com a seguinte afirmação:
ó” e quando puxava de volta, dizia “da”, que foi interpretado como fort (ir, partir) e da
(aí está). Essa então era a brincadeira de desaparecimento e retorno, incansavelmente
repetida, que foi interpretada por Freud (1920/1996) como sendo uma encenação do
desaparecimento da mãe da criança. O jogo permitia ao menino passar de uma situação
passiva, que era a experiência de ver a partida de sua mãe, para um papel ativo, que era
o jogar e repetir o jogo várias vezes.
Ao pôr em cena o seu brincar, a criança pode expressar suas fantasias
inconscientes e, ao mesmo tempo, elaborar sua história.
Para Winnicott (1971/1975), o brincar tem um lugar e um tempo, não está dentro
(realidade psíquica interna) e também não está fora (realidade externa). O brincar se
situa em um espaço potencial entre a criança e a mãe/cuidador. Para o autor:
Certa vez arrisquei este comentário: ‘Não existe tal coisa chamada bebê’,
significando com isso que se decidirmos descrever um bebê, encontrar-nos-
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emos descrevendo um bebê e alguém. Um bebê não pode existir sozinho, sendo
essencialmente parte de uma relação (WINNICOTT, 1957/2008, p. 99).
Com ênfase na constituição do bebê a partir da sua relação com a mãe, ele ressalta
que as mães não têm qualquer dificuldade em ver a pessoa, desde o princípio, em seus
próprios bebês.
Deste modo, o bebê não prescinde da relação com a mãe ou com quem exerça essa
função para ele. Função de atribuir sentidos, de construir significações simbólicas para
sua existência, de dar-lhe uma filiação. Para existir como sujeito, há que se constituir a
partir de um “desejo que não seja anônimo”, como disse Lacan (1986) em Duas Notas
sobre a criança.
Sobre a noção de sujeito, Kupfer (2010) ressalta:
REFERÊNCIAS
BERNARDINO, L. M. F. (Org.). O que a psicanálise pode ensinar sobre a criança,
sujeito em constituição. São Paulo, SP: Escuta, 2006.
MÃE, V. H. O filho de mil homens. 2ª. ed. São Paulo: Biblioteca Azul, 2016.
________. A criança e seu mundo. Rio de Janeiro, RJ: LTC – livros técnicos e
científicos Ltda. (Publicado originalmente em 1957), 2008.