É muito comum que ocidentais pouco familiarizados com a “vida eclesial’ concreta das Igrejas
Ortodoxas tenham uma percepção muito romantizada de sua teologia, uma percepção que é
ainda mais estimulada por uma geração de novos teólogos ortodoxos como Yannaras e
Romanides que, se apropriando da escatologia ontológica de Heidegger, vendem sua orto-doxia
como um caminho de libertação para a filosofia e para o terrível destino do Nihilismo. Tal como
Ahmad Fardid, se engajaram em uma luta contra a logicização do pensamento em nome de uma
experiência divina pura, incapaz de ser amarrada pela malha dos conceitos e que requer por
princípio a prática de um silêncio imaginativo, para que os demônios do Oitavo Clima não
corrompam o caminho do buscador em sua ascensão em direção aos céus. A Metafísica surge
como um Prelest, como um desvio da Imaginação, uma fantasia conceitual que nos impede de
experienciar o ponto de colapso da linguagem substanciado no indizível e no inefável divino.
Porém, se for assim, o que é a revelação, a próprio orto-doxia, senão também um desvio?
Mesmo que instrumental, sua pragmática não estruturaria o próprio processo que ela visaria
alcançar?
A linguagem sem palavras pressuposta por essa nova ingenuidade, onde a semântica antecede
a sintaxe, não é efetivamente um ato de libertação das cristalizações “logicistas” da metafísica
ocidental, mas cristalização máxima de uma sintaxe que na medida que se faz oculta também
se faz incontornável. Alguns teólogos ortodoxos podem alegar que sua teologia dogmática não
se trata de um conjunto de “alegações de verdade”, mas “meios hábeis” para o acesso a Verdade
em seu sentido pleno, a qual se daria no silencio contemplativo do místico. Mas, tal argumento
não só é estranho aos ouvidos de um religioso ortodoxo cristão (que não acredita que Cristo
ressuscitou por mero “pragmatismo”) como também aos ouvidos do filósofo, que questionaria
a engenharia conceitual destes meios hábeis, que em sua estrutura mesma enquanto sistema é
muito pouco pragmática.
Nesse sentido um Henry Corbin nos seria muito mais útil, ainda mais se purificado da superstição
heideggeriana da busca por um “originário”, que é efetivamente um obstáculo para o projeto
que queremos fazer avançar. O Imaginal liberado em toda sua potência ígnea, e portanto djínica,
seria capaz de derreter tanto o conceito como o dogma, um derretimento que não implica a
destruição da “matéria” de ambos, mas sua transformação. O Imaginal como domínio da
Tradução, ou seja, como meio pelo qual a inteligibilidade da Divindade é alcançada se realiza no
intermédio da “escuridão abissal” (nas palavras de Ibn Arabi) e da cristalização dogmática. Um
elemento interessante da teologia ismailita é a concepção de que o princípio da inteligibilidade
de Deus, os nomes divinos, coincide estruturalmente com o Comando Divino. Ou seja, a
pluralidade que é própria do domínio ígneo não é somente o reflexo das realidades angelicais,
mas a expressão de uma multiplicidade ainda anterior, que se faz pluralidade enquanto
Comando. Negar o exclusivismo teológico da orto-doxia é então obedecer ao comando de Deus.
Deste modo, noções de apofaticidade que negam o domínio intermediário com o objetivo de
ocultar uma mediação cristalizada são inimigas naturais tanto do mistério divino como de sua
expressão inteligível.
O “apofaticismo da pessoa” parece ser um bom ganho conceitual dos teólogos ortodoxos, e
acredito que teria bons resultados se fosse utilizado em um contexto pressuposicional distinto
da orto-doxia. Mas é curioso como outros intelectuais ortodoxos, mais precisamente os de
tendência eurasiana, ainda o substituam pela opção ocidental do “apofaticismo da essência”,
nesse caso em combinação com uma leitura estruturalista do nosso velho conhecido
“tradicionalismo”, onde uma “gramática comum” de todas as tradições repousaria ao redor do
centro oculto de um inefável impessoal. Mas esta “curiosidade” em verdade revela uma
dificuldade fundamental de lidar com uma categoria de mediação que não pode ser reduzida
nem a uma estrutura gramatical (nesse caso construída em oposição a outra, a diabólica e
perversa “modernidade”) que simplesmente emerge de um indizível ou de um circuito relacional
limitado de três pessoas divinas.
A dissolução hesicasta do Imaginal, como domínio das afirmações não-redutivas, repele o nome
porque precisamente deseja cristalizar somente um nome, o qual se encontra na famosa oração
do coração. Essa desonestidade espiritual obviamente tem suas consequências, degradando a
profundidade do silêncio contemplativo em uma ignorância orgulhosa e militante. Apesar de
nossas diferenças com Ibn Arabi, é notável como sua cardiognose é conceitualmente superior
ao rito fúnebre hesicasta, pois o coração é estimulado a se flexibilizar ao invés de se congelar
em uma fórmula pseudo-piedosa, que desvia tal órgão da sua própria natureza essencial
enquanto “taqlib”, de orientar-se, de volver-se, aumentar e se retrair de acordo com a
inesgotabilidade de formas divinas que a ele se apresentam. O silêncio contemplativo dessa
cardiognose superior não é fruto de um processo subtrativo da Imaginação, mas fruto da própria
capacidade do coração de habitar cada realidade manifesta e repousar em um estado de Hayrah,
de maravilhamento perante a abundância das formas divinas.
Cada possibilidade imaginal, cada revelação divina, deve ser compreendida como uma estrutura
particular com suas próprias questões internas e externas, definindo o modo como sua
experiência religiosa vivencial é construída e as regras que definem o campo no qual essa
experiência é compreendida. Sim, isto requer que aceitemos que uma relativa arbitrariedade na
constituição de cada possibilidade imaginal, uma arbitrariedade que diz respeito a mobilidade e
mutabilidade do próprio domínio ígneo do Imaginal, não tão sólido como a terra e não tão
imaterial como Luz. Essa arbitrariedade não é absoluta, mas é relativa a um critério pragmático
externo a cada possibilidade, uma pragmática que diz respeito a comunicabilidade entre o
mistério divino e a experiência humana. O grande erro dos metafísicos foi ter confundido as
questões internas de cada mapa do mundo divino com as suas questões ou critérios externos,
solidificando uma série de definições pragmáticas em uma dogmática, eliminando assim o
caráter de mediação do concebível e transformando o veículo em destino.