Você está na página 1de 5

A biqueira do Monte Tabor: Metafísica como Prelest

É muito comum que ocidentais pouco familiarizados com a “vida eclesial’ concreta das Igrejas
Ortodoxas tenham uma percepção muito romantizada de sua teologia, uma percepção que é
ainda mais estimulada por uma geração de novos teólogos ortodoxos como Yannaras e
Romanides que, se apropriando da escatologia ontológica de Heidegger, vendem sua orto-doxia
como um caminho de libertação para a filosofia e para o terrível destino do Nihilismo. Tal como
Ahmad Fardid, se engajaram em uma luta contra a logicização do pensamento em nome de uma
experiência divina pura, incapaz de ser amarrada pela malha dos conceitos e que requer por
princípio a prática de um silêncio imaginativo, para que os demônios do Oitavo Clima não
corrompam o caminho do buscador em sua ascensão em direção aos céus. A Metafísica surge
como um Prelest, como um desvio da Imaginação, uma fantasia conceitual que nos impede de
experienciar o ponto de colapso da linguagem substanciado no indizível e no inefável divino.
Porém, se for assim, o que é a revelação, a próprio orto-doxia, senão também um desvio?
Mesmo que instrumental, sua pragmática não estruturaria o próprio processo que ela visaria
alcançar?

A subdeterminação da “experiência pessoal” pela cristalização revelacional não é plenamente


ocultada por estes teólogos, que ora ou outra precisam recorrer a uma espécie de “experiência
eclesial”, qual ao fim não é propriamente “experiência” no sentido buscado, pois a
“eclesialidade” enquanto distinção qualitativa da mesma já implica um domínio de definições
que estabelecem propriamente quem está fora ou dentro de tal ecclesia. Deste modo, a
inconsistência da definição ortodoxa de apofaticidade falha enquanto conceitualidade e
performatividade. Isto na medida em que a (justa) rejeição da redução da Verdade a um
conjunto de formulações discursivas depende ela mesma da adesão a um conjunto de
formulações discursivas, as quais definem o próprio campo no qual a experiência apofática é
propriamente estruturada, tanto enquanto experiência em primeira pessoa como enquanto fato
social ou comunitário. Se os novos teólogos ortodoxos encontraram na Verstehen heideggeriana
um ponto de coincidência com sua categoria de apofaticidade, o fizeram na medida que ambas
representam um passo decisivamente anti-crítico, e não pós-crítico como muitas vezes
interpretado. Um passo que faz entrar uma “nova ingenuidade” pela porta dos fundos da
fenomenologia, um novo geocentrismo, um geocentrismo espectral, e não a revolução
einsteiniana que poderia enfim suplantar o giro copernicano de Kant.

A “compreensão”/Verstehen mobilizada enquanto categoria anti-crítica, ou seja, como uma


abertura que simplesmente "se dá", constitui a natureza geocêntrica daquilo que chamei de
geocentrismo espectral na mesma medida que sua natureza espectral repousa na indefinição,
ou melhor, anti-definição do que se revela naquilo que “se dá” na abertura própria dessa noção
de compreensão. O silêncio aqui não é um ato de humildade perante o Ser como geralmente
pretende se conceber, mas um ato arrogante e reificado de censura, que corrompe o sentido
mais genuíno da compreensão como o fazer da inteligibilidade, a deslocando efetivamente de
suas próprias condições de efetividade em nome do dogma do não-dizer e do não-dizer a
respeito do dogma. Os pressupostos que tornam possível a abertura da abertura são ocultados
na própria efetivação da abertura enquanto abertura.

A linguagem sem palavras pressuposta por essa nova ingenuidade, onde a semântica antecede
a sintaxe, não é efetivamente um ato de libertação das cristalizações “logicistas” da metafísica
ocidental, mas cristalização máxima de uma sintaxe que na medida que se faz oculta também
se faz incontornável. Alguns teólogos ortodoxos podem alegar que sua teologia dogmática não
se trata de um conjunto de “alegações de verdade”, mas “meios hábeis” para o acesso a Verdade
em seu sentido pleno, a qual se daria no silencio contemplativo do místico. Mas, tal argumento
não só é estranho aos ouvidos de um religioso ortodoxo cristão (que não acredita que Cristo
ressuscitou por mero “pragmatismo”) como também aos ouvidos do filósofo, que questionaria
a engenharia conceitual destes meios hábeis, que em sua estrutura mesma enquanto sistema é
muito pouco pragmática.

Nesse sentido um Henry Corbin nos seria muito mais útil, ainda mais se purificado da superstição
heideggeriana da busca por um “originário”, que é efetivamente um obstáculo para o projeto
que queremos fazer avançar. O Imaginal liberado em toda sua potência ígnea, e portanto djínica,
seria capaz de derreter tanto o conceito como o dogma, um derretimento que não implica a
destruição da “matéria” de ambos, mas sua transformação. O Imaginal como domínio da
Tradução, ou seja, como meio pelo qual a inteligibilidade da Divindade é alcançada se realiza no
intermédio da “escuridão abissal” (nas palavras de Ibn Arabi) e da cristalização dogmática. Um
elemento interessante da teologia ismailita é a concepção de que o princípio da inteligibilidade
de Deus, os nomes divinos, coincide estruturalmente com o Comando Divino. Ou seja, a
pluralidade que é própria do domínio ígneo não é somente o reflexo das realidades angelicais,
mas a expressão de uma multiplicidade ainda anterior, que se faz pluralidade enquanto
Comando. Negar o exclusivismo teológico da orto-doxia é então obedecer ao comando de Deus.
Deste modo, noções de apofaticidade que negam o domínio intermediário com o objetivo de
ocultar uma mediação cristalizada são inimigas naturais tanto do mistério divino como de sua
expressão inteligível.

O “apofaticismo da pessoa” parece ser um bom ganho conceitual dos teólogos ortodoxos, e
acredito que teria bons resultados se fosse utilizado em um contexto pressuposicional distinto
da orto-doxia. Mas é curioso como outros intelectuais ortodoxos, mais precisamente os de
tendência eurasiana, ainda o substituam pela opção ocidental do “apofaticismo da essência”,
nesse caso em combinação com uma leitura estruturalista do nosso velho conhecido
“tradicionalismo”, onde uma “gramática comum” de todas as tradições repousaria ao redor do
centro oculto de um inefável impessoal. Mas esta “curiosidade” em verdade revela uma
dificuldade fundamental de lidar com uma categoria de mediação que não pode ser reduzida
nem a uma estrutura gramatical (nesse caso construída em oposição a outra, a diabólica e
perversa “modernidade”) que simplesmente emerge de um indizível ou de um circuito relacional
limitado de três pessoas divinas.

Podemos também afirmar que o “apofaticismo da essência” não encontra no “apofaticismo da


pessoa” uma diferença substantiva, pois a substituição do “quê” de Deus (a natureza da
Divindade) pelo “como” (o modo relacional das pessoas trinitárias e o modo como elas se
apresentam relacionalmente) não honra de fato o caráter verdadeiramente “próprio” de uma
noção não-redutiva de pessoalidade. A teologia negativa ocidental e o apofaticismo ortodoxo
são expressões de uma teologia incapaz de chamar o seu Deus pelo seu nome, sendo este nome
aquilo que propriamente o torna irredutível tanto a uma “essência” como também a sua posição
em um circuito relacional. A afirmação do nome é afirmação da irredutibilidade daquele que é
seu portador, se impondo como afirmação senhorial de uma existência que primeiramente É. O
mistério divino só pode ser honrado por uma inteligibilização que o afirme sem o reduzir, essa
afirmação é incontornável e necessária para a expressão de uma legítima inefabilidade.

A dissolução hesicasta do Imaginal, como domínio das afirmações não-redutivas, repele o nome
porque precisamente deseja cristalizar somente um nome, o qual se encontra na famosa oração
do coração. Essa desonestidade espiritual obviamente tem suas consequências, degradando a
profundidade do silêncio contemplativo em uma ignorância orgulhosa e militante. Apesar de
nossas diferenças com Ibn Arabi, é notável como sua cardiognose é conceitualmente superior
ao rito fúnebre hesicasta, pois o coração é estimulado a se flexibilizar ao invés de se congelar
em uma fórmula pseudo-piedosa, que desvia tal órgão da sua própria natureza essencial
enquanto “taqlib”, de orientar-se, de volver-se, aumentar e se retrair de acordo com a
inesgotabilidade de formas divinas que a ele se apresentam. O silêncio contemplativo dessa
cardiognose superior não é fruto de um processo subtrativo da Imaginação, mas fruto da própria
capacidade do coração de habitar cada realidade manifesta e repousar em um estado de Hayrah,
de maravilhamento perante a abundância das formas divinas.

A dobra entre coincidência gnoselógica e divergência ontológica entre Nihilismo e Apofaticismo


proposta por pensadores como Yannaras revela, ao contrário da esperança do mesmo, que o
último seja uma solução adequada para o primeiro, ou mesmo que seja seu antídoto (como
defendia o mestre Henry Corbin). Nossa discordância com Corbin é a de que a apofaticidade
por si mesma não pode ser um remédio para qualquer doença, é necessário que ela enquanto
princípio ativo tenha um vetor capaz de ativá-la. O grande milagre de Sultão Ezi era o de derivar
todas as cores de uma cor só, e não o contrário, deste modo é necessário respeitar o Comando
Divino para que um sentido genuíno de apofaticidade possa ser concebido. Nesse sentido, tais
novos teólogos deveriam de forma humilde escutar melhor aqueles que sua Tradição chamou
de heréticos, me referindo obviamente aqui aos seguidores de Sophia.

A denúncia de uma certa “idolatria conceitual” presente no pensamento filosófico ocidental,


principalmente em suas manifestações pré-críticas, parece ser justa, mas a solução proposta
pelos teólogos ortodoxos visa erodir o domínio próprio da conceitualização ao invés de
propriamente corrigir o problema da cristalização conceitual. Isto porque, ao fim, o trabalho
destes teólogos não é contra a cristalização ela mesma, mas contra a conceituabilidade, de
modo que a cristalização é garantida e preservada no terreno semântico ao qual se refere o
próprio termo orto-doxia. Deste modo, a solução ortodoxa está mais perto de uma intoxicação
com gás carbônico do que com uma bem-vinda oxigenação do pensamento. Se a redução do
Logos relacional ao Ratio calculador foi um erro, a negação da co-extensão não-redutiva de
ambos, mediada pelo Imaginal, seria outro.

A ontohistoriografia do “esquecimento do Ser” requer que a história da filosofia seja concebida


como uma gigantesca e unificada cadeia de raciocínios ordenados de modo que do pecado
original do "esquecimento" se siga rigorosamente a estrutura "se q, então p". Cada pensador da
“história da metafísica” seria o responsável por preencher uma lacuna dessa cadeia de
raciocínios com uma proposição que deve necessariamente se seguir de todas as que lhe
antecederam e que representa também o seu destino necessário. Uma ontohistoriografia deste
tipo ignora as encruzilhadas da história da filosofia e lhe impõe uma unidirecionalidade que é
absolutamente estranha a ela mesma, concebendo um destino que muitas vezes é mais
extrínseco ao seu movimento do que algo que deriva com facilidade de sua história interna. A
nova teolologia ortodoxa só pode se vender efetivamente como uma “Grande Solução” ao
problema levantado por esta ontohistoriografia pois ambas se constroem em uma
discursividade unilateralizante, que talvez aí sim, possa nos fazer acreditar que sejam
concepções co-destinadas. A construção mirabolante de um grande pecado ancestral sempre
necessitou da elaboração farsesca de um grande ato de redenção universal.

Desta forma é necessário superar definitivamente a superstição do Originário e da Verdade


desvelante, do “acontecimento essencial do Ser” e construir um framework epistemológico no
qual a co-extensividade entre Logos e Ratio possa ser garantida. A superação dessas
superstições é a superação da concepção das mesmas como algo “que se dá”, “que se revela”,
e sua transposição para um domínio no qual podemos efetivamente as perceber não mais
pressupostos de uma engenharia conceitual que pode ser útil ou não ao filósofo ou mesmo ao
místico. Nesse sentido, a estrutura da orto-doxia sofre uma erosão, pois seus princípios são
princípios dentre outros princípios, sua “medicina” não é mais o método universal, mas uma
técnica entre outras que pode ser efetivamente julgada de acordo com sua consistência interna,
a efetividade de seus métodos e sua fertilidade conceitual. E, na medida que isto se torna
possível, a orto-doxia não só se dissolve em mais uma das possibilidades imaginais, mas também
perde seu caráter e identidade enquanto orto-doxia, colapsando no princípio de seu alegado
exclusivismo teológico e no vazio de mediação próprio de seu método.

É necessário desde o início afirmar um pluralismo de possibilidades imaginais, um pluralismo do


Comando Divino, de modo que a co-extensão entre Logos e Ratio tenha como reflexo também
uma pluralidade de Relações e Razões, igualmente co-extensivas. Fazemos aqui um encontro
curioso e improvável entre o Imaginal corbiniano e o pluralismo carnapiano.

Cada possibilidade imaginal, cada revelação divina, deve ser compreendida como uma estrutura
particular com suas próprias questões internas e externas, definindo o modo como sua
experiência religiosa vivencial é construída e as regras que definem o campo no qual essa
experiência é compreendida. Sim, isto requer que aceitemos que uma relativa arbitrariedade na
constituição de cada possibilidade imaginal, uma arbitrariedade que diz respeito a mobilidade e
mutabilidade do próprio domínio ígneo do Imaginal, não tão sólido como a terra e não tão
imaterial como Luz. Essa arbitrariedade não é absoluta, mas é relativa a um critério pragmático
externo a cada possibilidade, uma pragmática que diz respeito a comunicabilidade entre o
mistério divino e a experiência humana. O grande erro dos metafísicos foi ter confundido as
questões internas de cada mapa do mundo divino com as suas questões ou critérios externos,
solidificando uma série de definições pragmáticas em uma dogmática, eliminando assim o
caráter de mediação do concebível e transformando o veículo em destino.

A descoberta epistemológica da subdeterminação da experiência pela teoria nos obriga a deixar


absolutamente para trás não só a alegação da orto-doxia como a única imagem possível (mesmo
que se venda como contra-imagem) mas também a questão da Verdade “por detrás”, “na
origem” da imagem. Uma perspectiva externa das diversas possibilidades imaginais só pode ser
pragmática, ou seja, suas questões dizem respeito a um domínio de razões que sustentem o uso
de uma ou outra imagem. A questão da Verdade só pode ocorrer no interior de cada
possibilidade imaginal, pois tal questão só pode emergir dentro de uma estrutura que possa lhe
dar um contorno, ou seja, que possa a fazer inteligível como Verdade.

Essa pluralidade de ontologias, entendidas aqui como construções divino-humanas (ígneas,


djínicas), não elimina a Metafísica, mas a liberta da factualidade de modo que sua natureza
essencial é então revelada. Uma metafísica é um Prelest, um divino Prelest, que se estabelece
para além dos horizontes da orto-doxia.

Você também pode gostar