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| { | | { | | | | | | } | Be CIVILIZAGAO MATERIAL, ECONOMIA E CAPITALISMO SECULOS XV-XVIII Fernand Braudel da Academia Francesa Tradugio TELMA COSTA Revisilo da tradugio MARIA ERMANTINA DE ALMEIDA PRADO GALVAO Volume 2 Os Jogos das Trocas h | wmfmartinsfontes SAO PAULO 2009 Capitulo 2 A ECONOMIA EM FACE DOS MERCADOS Permanecendo no ambito da troca, este segundo capitulo tenta apresentar al- guns modelos ¢ algumas regras tendenciais'. Passamos assim adiante das imagens pontuais do primeiro capitulo, em que a feira do burgo, a loja, a grande feira, a Bolsa foram apresentadas como uma série de pontos. © problema consiste em mos- trar como se unem estes pontos, como se constituem as linhas de troca, como o mercador organiza essas ligagdes ¢ como essas ligagdes, embora deixem de lado mui- tos vazios & margem dos tréficos, criam superficies mercantis coerentes. O nosso vocabulério imperfeito designa essas superficies pelo nome de mercado, forcosa- Mente ambiguo por natureza. Mas o uso dita as regras. Colocar-nos-emos sucessivamente em duas perspectivas diferentes: primeiro, ao lado do mercador, imaginaremos o que possa ser sua a¢do, sua tatica costumei- a; depois, afastando-nos dele, amplamente independentes das vontades individuais, consideraremos os espagos mercantis em si mesmos, os mercados em sentido lato. Seiam eles urhanne, regianais, nacionais ou até internacionais, sua realidade imp6e-se 0 mercador, envolve-Ihe a agéio, favorece-2 ou constrange-a. Além disso, eles se transformam ao longo dos séculos. E essa geografia, essa economia varidveis dos mercados (que examinaremos mais atentamente no terceiro volume) remodelam e Teorientam incessantemente a ag&o particular do mercador. 115 6 As maos do mercador Georg (Staatliche Mi Gisce. Pormenor de um quadro de Hans Holbein. luseen Proussischer Kulturbesitz, Berlim.) MERCADORES E CIRCUITOS MERCANTIS A perspectiva, a acZo do mercador nos so familiares: seus papéis estiio & nos- sa disposi¢ao®. Nada mais simples do que nos colocarmos no seu lugar, ler as car- tas que escreve ou recebe, examinar-lhe as contas, seguir 0 fio de seus negécios. Mas, aqui, procuraremos antes compreender as regras 2 que seu oficio 0 cerceia, ‘as quais conhece por experiéncia, mas com as quais, conhecendo-as, nao se preocu- pa muito no dia-a-dia. Temos de sistematizar. Tas e voltas Sendo a troca reciprocidade, a cada trajeto de A a B corresponde uma certa volta, tao complicada e sinuosa quanto se queira, de B a A. A troca se fecha entao sobre si propria. Ha circuito. Os circuitos mercantis sAo iguais aos circuitos elétri- cos: sé funcionam fechados. Um mercador de Reims, contempor4neo de Luis XIV, observou numa frase muito boa: “‘A venda paga a compra.””? Evidentemente pen- sava que, jé que a pagava, devia pagé-la com lucro. Se A for Veneza, B Alexandria no Egito (j4 que temos de exemplificar, tome- mos exemplos brilhantes), a um tréfico de A para B tem de seguir-se uma volta de B para A. Se nosso exemplo imagindrio incluir um mercador residente em Vene- Za, por volta de 1500, pensaremos que ele pode ter em maos, inicialmente, groppi de moedas de prata, espelhos, contas de vidro, tecidos de la... Essas mercadorias, compradas em Veneza, serdo expedidas a Alexandria onde sero vendidas; em tro- ca, sero provavelmente comprados no Egito colli de pimenta-do-reino, de especia- rias ou de drogas, destinados a vir a Veneza e ai serem vendidos, quase sempre no Fontego dei Todeschi (para empregarmos uma expresso veneziana e nao a italiana — Fondaco dei Tedeschi). Se tudo corre conforme os desejos de nosso mercador, as quatro operagdes de compra e de venda se sucedem sem muita demora. Sem muita demora: todos sabiam, muito antes de a reflexaio se tornar proverbial na Inglaterra, que tempo é dinheiro. Nao deixar ‘‘/i danari mortti”’4, o dinheiro morto; vender depressa, mesmo mais ba~ rato, para “‘venier presto sul danaro per un altro viaggio’”®, tais sao as ordens que da a seus agentes um grande mercador de Veneza, Michiel da Lezze, nos primeiros anos do século XV]. Portanto, sem contratempos no prazo, as mercadorias, mal fo- ram compradas em Veneza, foram logo embarcadas; o barco partiu no dia previsto, que, na pratica, é rato; em Alexandria, a mercadoria encontrou logo comprador, 8 artigos desejados para a volta estavam disponiveis; estes, desembarcados em Ve neza, so vendidos sem dificuldades. Bvidentemente, estas condicOes otimas de fe- chamento do circuito por nés imaginadas no sdo a regra. Ora os tecidos ficam me- ses em Alexandria, no armazém de um parente ou de um comussionista: a cor nao agradou, ou a qualidade foi considerada detestavel; ora as caravanas de especiarias nao chegaram a tempo; ou entdo, na volta, o mercado veneziano estava saturado de produtos do Levante e os precos, por esse motivo, anormalmente baixos. NT = A economia em face dos mercados Dito isto, 0 que nos interessa agora é: 1° que, nesse circuito fechado, se sucedem quatro momentos en se divide, alids, todo processo mercantil quando hé ida e volta; 2 que houve forcosamente, conforme nos colocarmos em A ou em B, fases diferentes do processo; no total, duas ofertas ¢ duas procuras, em Ae em B: uma procura de mercadorias em Veneza, na partida; uma oferta em Alexandria, para a yenda; mais uma procura para a compra seguinte e uma oferta em Veneza para terminar a operacao; _ 3° que a operacao € concluida e avaliada pelo circuito completo. A sorte do mercador fiea condicionada a essa concluséo. & sua preocupacdo de cada dia, « operacao de verdade esta no fim da viagem. Lucros, custus, despesas, Perdas que, no inicio ¢ ao longo da operacao, foram registrados todos os dias, nesta ou naquela moeda, serao convertidos numa mesma unidade monetaria — libras, soldos ¢ di- nheiros de Veneza, por exemplo, Entio o mercador poderd fazer 0 balanco do deve edo haver, saber quanto Ihe rendeu a ida e volta que acaba de se concluir. E pode acontecer que tenha havido, como sdi acontecer, lucro apenas com a volta. Eo caso classico do coméreio com a China no século XVIII, Tudo simples, muito simples. Mas nada nos impede de complicar 0 esquema. Um processo mercantil nao tem forcosamente duas ramificag6es, ida e volta. O co- mércio chamado triangular classico em todo 0 Atlantico, nos séculos XVII e XVIII; Por exemplo, Liverpool, a costa da Guiné, a Jamaica e volta a Liverpool; por exem- plo, Bordeaux, costa do Senegal, Martinica, Bordeaux; por exemplo, a viagem aber- rante prescrita ao capitéo La Roche Courvet pelos proprietarios do navio Saint- Louis em 1743: ir 4 Acadia carregar bacalhau, vendé-lo em Guadalupe e ai embar- cat agticar, regressar ao Havre’. Os venezianos faziam o mesmo jd antes do sécu- lo XV, com as comodidades das galere da mercato que a Signoria equipava regu- larmente. Assim, em 1505, 0 Patricio Michiel da Lezze# da a Sebastiano Dolfin (que embarcard nas galeras da “viagem da Barbaria”’) instrucdes pormenorizadas: a primeira etapa, Veneza-Tiinis, levaré dinheiro, mocenighi de prata; em Tunis, 4 prata serd trocada por ouro em PO; em Valéncia, este serA fundido ¢ cunhado Te OS quais prado em Alexandria, revend ler no Levante as fazendas de la trazidas de Londres, E também um comércio trip artido 0 efetuado, no século XVII, por um carregamento de chumbo, de cobre, arca na escala o dinheiro que Ihe permiti- poli na Siria, carregar uva passa, algodao er) ou fardos de seda, ou até vinho de ima viagem de quatro etapas ou mais. Os inte, faziam As vezes as escalas da Italia uma de peixe salgado que leva a Livorno; emb: rd, no Levante, em Zante, Chipre ou Tri “de 1a, especiarias (se ainda as houv Malvasia’. Podemos mesmo imaginar wu barcos marselheses, de regress do Leva ands a outra!®, No século XVII, 9 4 €m principio, varios ram ‘comércio de entreposto”” Praticado pelos holandeses tem. 0s, € seu comércio interno na India foi com toda a ieee © mesmo modelo, iss i ndesa'' $0 seddus Gatun Por isso a Companhia holan ; dalo que lé extrai Para 1) apreciada; servar Timor, na Insulindia, por causa da madeira de sin- Jansforma-la em moeda de troca na China, onde ¢ muito (raz muitas mercadorias para a India, para Surate, que troca por sedas,

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