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Luiz Carlos Travaglia

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livros, SP, Brasil) '
GRAMÁTICA E
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1. OBJETIVOS DO ENSINO
DE LÍNGUA MATERNA

Ao dar aula de uma língua para falantes nativos dessa língua é


sempre preciso perguntar: "Para que se dá aulas de uma língua para
seus falantes?" ou, transferindo para o nosso caso específico, "Para que
se dá aulas de Português a falantes nativos de Português?"
Fundamentalmente pode-se dar a essa pergunta quatro respostas.
Vamos apresentá-las, começando por aquela que julgamos fundamental
por ser mais pertinente e produtiva para o ensino de Português.
Na primeira resposta propomos que o ensino de Língua Materna
se justifica prioritariamente pelo objetivo de desenvolver a competência
comunicativa dos usuários da língua (falante, escritor/ouvinte, leitor),
isto é, a capacidade do usuário de empregar adequadamente a língua nas
diversas situações de comunicação. Portanto, este desenvolvimento de.ve
ser entendido como a progressiva capacidade de realizar a adequação do
ato verbal às situações de comunicação (cf. Fonseca e Fonseca, 1977:82).
A competência comunicativa implica duas outras competências: a gra
matical ou lingüística e a textual.
A competência gramatical ou lingüística é a capacidade que tem
todo usuário da língua (falante, escritor/ouvinte, leitor) de gerar seqüências
lingüísticas gramaticais3, isto é, consideradas por esses mesmos usuários
como seqüências próprias e típicas da língua em questão. Aqui não
entram julgamentos de valor, mas verifica-se tão-somente se a seqüência
(orações, frases) é admissível, aceitável como uma construção da língua.
Essa competência está ligada ao que Chomsky chamou de "criatividade

3. Cf., no capítulo 3. o conceito de gramatical, sobretudo o de gramática descritiva.


lingüística", que é a capacidade de, com base nas regras da língua, gerar Ora, se tais enunciados são frutos de situações de comunicação,
um número infinito de frases gramaticais.
são, naturalmente, textos, isso significa dizer que se deve propiciar o
A competência textual é a capacidade de, em situações de interação contato e o trabalho do aluno com textos utilizados em situações de
comunicativa, produzir e compreender textos considerados bem formados4, interaçãocomunicativao mais variadas possíveíT Portanto, se a comunicação
valendo-se de capacidades textuais básicas que, segundo Charolles (1979), acontece sempre por meio de textos, pode-se dizer que, se o objetivo
seriam essencialmente as seguintes: de ensino de língua materna é desenvolver a competência comunicativa,
a) capacidade formativa, que possibilita aos usuários da língua isto corresponde então a desenvolver a capacidade de produzir e com
produzir e compreender um número de textos que seria potencialmente preender textos nas mais diversas situações de comunicação.
ilimitado e, além disso, avaliar a boa ou má formação de um texto dado, Daí se deduz a importância para o ensino de uma teoria que trata
o que eqüivaleria mais ou menos a ser capaz de dizer se uma seqüência especificamente do texto e o vê como espaço intersubjetivo, resultado
lingüística dada é ou não um texto, dentro da língua em uso; da interação entre sujeitos da linguagem que atuam em uma situação de
b) capacidade transformativa, que possibilita aos usuários da língua comunicação para atingir determinados objetivos, ou seja, para a consecução
modificar, de diferentes maneiras (reformular, parafrasear, resumir, etc.) de uma intenção mediante o estabelecimento de efeitos de sentido pela
e com diferentes fins, um texto e também julgar se o produto dessas mobilização de recursos lingüísticos que, em seu conjunto, constituem
modificações é adequado ao texto sobre o qual a modificação foi feita. textos. É isto que tem dado à Lingüística Textual um papel especial
Por exemplo, verificar e saber se um resumo realmente é resumo de um dentre as disciplinas lingüísticas no que respeita a fornecer subsídios para
texto dado; o ensino de língua5.
c) capacidade qualificativa, que possibilita aos usuários da língua Na segunda resposta são englobados dois objetivos de ensino de
dizer a que tipo de texto pertence um dado texto, naturalmente segundo Português que são preocupação freqüente dos professores de Português:
uma determinada tipologia. Por exemplo, dizer se é um romance, uma a) levar o aluno a dominar a norma culta ou língua padrão;
anedota, uma reportagem, uma receita, uma carta, uma narração, uma
descrição, um discurso político, um sermão religioso, um artigo científico, b) ensinar a variedade escrita da língua.
um texto literário, etc. Evidentemente a capacidade qualificativa tem a Os dois objetivos se justificam, uma vez que, quando o aluno vem
ver com a capacidade formativa, à medida que deve possibilitar ao para a escola, já domina pelo menos a norma coloquial de seu meio
usuário ser capaz de produzir um texto de determinado tipo. (incluída aí a questão das variedades regional e social da língua) em sua
O que é necessário para a consecução desse primeiro objetivo? forma oral. Concordamos, por razões de natureza política, social e cultural,
Evidentemente propiciar o contato do aluno com a maior variedade que esses são objetivos importantes a serem alcançados pelo ensino de
possível de situações de interação comunicativa por meio de um trabalho Português no Io e 2o graus. Todavia, se entendermos que a variedade
de análise e produção de enunciados ligados aos vários tipos de situações culta, padrão, formal da língua, bem como sua forma escrita, são formas
de enunciação. Em outras palavras, como propõem Fonseca e Fonseca adequadas ao uso apenas em determinados tipos de situação de interação
(1977:84), é preciso realizar a "abertura da aula à pluralidade dos comunicativa, temos de admitir que esses objetivos são mais restritos
discursos, única forma, além disso, de realizar a tão falada abertura da que o de desenvolvimento da competência comunicativa (pelo qual se
escola à vida, a integração da escola à comunidade". pretende que o usuário da língua seja capaz de utilizá-la de forma
adequada a cada situação de comunicação) e ficam, portanto, subsumidos
por ele.
4. A expressão foi importada do que a gramática gerativa propôs para as frases, mas a
boa formação do texto deve ser entendida em um sentido completamente diverso, quando se
considera que os critérios de boa formação do texto não são exatamente os mesmos da frase,
5. Devido à importância do texto para o nosso objetivo de ensino e para nossa proposta
já que para este não há regras rígidas, mas princípios de organização, constituição, construção de ensino de gramática, buscamos deixar claro, no capítulo 6, o que se está entendendo por
e funcionamento. A este respeito veja Koch c Travaglia (1989; 1990).
texto e discurso.
As duas próximas respostas à questão de para que se dá aulas de
uma língua a falantes nativos dessa língua respondem menos a esta
questão e mais à questão de para que se dá aulas de gramática, entendidas
como aulas de teoria gramatical, como atividade metalingüística (cf.
capítulo 3).
A terceira resposta diz que um dos objetivos do ensino de língua
materna é levar o aluno ao conhecimento da instituição lingüística, da
instituição social que a língua é, ao conhecimento de como ela está
constituída e de como funciona (sua forma e função). Esse conhecimento
seria importante na mesma medida em que se considera importante 2. CONCEPÇÕES DE LINGUAGEM
conhecer outras instituições de nossa sociedade, tais como: casamento,
religiões, justiça, Congresso, instituição bancária. Como diz Perini
(1988:24), seria um ensino que tem utilidade no campo da "informação Outra questão importante para o ensino de língua materna é a
'cultural', aquela informação que não se admite que um indivíduo maneira como o professor concebe a linguagem e a língua, pois o modo
civilizado não detenha — como a de que Colombo descobriu a América como se concebe a natureza fundamental da língua altera em muito o
em 1492, ou a de que correr é um verbo".
como se estrutura o trabalho com a língua em termos de ensino. A
Para alguns esse tipo de informação é importante para o adequado concepção de linguagem é tão importante quanto a postura que se tem
uso da língua, da mesma forma que uma pessoa precisa saber, por relativamente à educação6. Normalmente tem-se levantado três possibili
exemplo, o que é um banco, que tipo de atividades ele desenvolve por dades distintas de conceber a linguagem, das quais apresentamos a seguir
meio de suas agências, o que é um banco 24 horas, o que é caixa os pontos fundamentais e mais pertinentes para o nosso objetivo.
automático, o que é um cheque, e os diferentes tipos de cheques (ao
portador, nominal, cruzado, administrativo), o que é e como funciona A primeira concepção vê a linguagem como expressão do pensa
cada tipo de investimento (poupança, fundão, commodities, cdb, rdb, mento. Para essa concepção as pessoas não se expressam bem porque
fundos de renda fixa, etc), ter noções de juro, saber o que é liquidez, não pensam. A expressão se constrói no interior da mente, sendo sua
etc, para se utilizar adequadamente dos serviços de um banco. exteriorização apenas uma tradução. A enunciação7 é um ato monológico,
individual, que não é afetado pelo outro nem pelas circunstâncias que
A quarta resposta propõe um objetivo que, sendo mais ligado a constituem a situação social em que a enunciação acontece. As leis da
atividades metalingüísticas, ao ensino de teoria gramatical, não se aplica criação lingüística são essencialmente as leis da psicologia individual, e
só ao ensino de língua materna. Propõe ensinar o aluno a pensar, a
raciocinar. Ensinar o raciocínio, o modo de pensar científico. Esse é um da capacidade de o homem organizar de maneira lógica seu pensamento
objetivo que, como diz Perini (1988:24), estaria no "campo do desen dependerá a exteriorização desse pensamento por meio de uma linguagem
volvimento das habilidades de observação e de argumentação acerca da articulada e organizada. Presume-se que há regras a serem seguidas para
linguagem". Evidentemente tais habilidades são importantes nos vários a organização lógica do pensamento e, conseqüentemente, da linguagem.
campos do conhecimento humano e não só para o campo dos estudos São elas que se constituem nas normas gramaticais do falar e escrever
da linguagem. "bem" que, em geral, aparecem consubstanciadas nos chamados estudos
lingüísticos tradicionais que resultam no que se tem chamado de gramática

6. Sobre concepções de linguagem e sua influência no ensino de língua materna


recomendamos a leitura de Cajal et ai. (1982: 41-45). Geraldi (1985), Neder (1992), Pagliarini
C99I). Vai (1992).
Sobre enunciação veja o capítulo 6, em que falamos de discurso.
recebe os sinais codificados e os transforma de novo em mensagem
normativa ou tradicional (cf. Neder, 1992:35 e ss., que se pauta pelas (informações). É a decodificação.
idéias de Bakhtin, 1986).
A terceira concepção vê a linguagem como forma ou processo de
Portanto, para essa concepção, o modo como o texto, que se usa interação. Nessa concepção o que o indivíduo faz ao usar a língua não
em cada situação de interação comunicativa, está constituído não depende é tão-somente traduzir e exteriorizar um pensamento, ou transmitir in
em nada de para quem se fala, em que situação se fala (onde, como, formações a outrém,8-mas sim realizar ações, agir, atuar sobre o interlocutor
quando), para que se fala. (ouvinte/leitor). A linguagem é pois um lugar de interação humana, de
A segunda concepção vê a linguagem" como instrumento de co
interação comunicativa pela .produção de efeitos de sentido entre inter
municação, como meio objetivo para a comunicação. Nessa concepção locutores, em uma dada situação de comunicação e em um contexto
a língua é vista como um código, ou seja, como um conjunto de signos sócio-histórico e ideológico. Os usuários da língua ou interlocutores
que se combinam segundo regras, e que é capaz de transmitir uma
interagem enquanto sujeitos que ocupam lugares sociais e "falam" e
mensagem, informações de um emissor a um receptor. Esse código deve, "ouvem" desses lugares de acordo com formações imaginárias (imagens)
portanto, ser dominado pelos falantes para que a comunicação possa ser
que a sociedade estabeleceu para tais lugares sociais (cf. capítulo 6,
efetivada. Como o uso do código que é a língua é um ato social, quando falamos da questão do discurso). Como diz Neder (1992:42 e
43), citando Bakhtin (1986:123), para esta concepção
envolvendo conseqüentemente pelo menos duas pessoas, é necessário que
o código seja utilizado de maneira semelhante, preestabelecida, conven "a verdadeira substância da linguagem não é constituída por um sistema
cionada para que a comunicação se efetive. Dessa forma abstrato de formas lingüísticas, nem pela enunciação monológica isolada,
nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social
"o sistema lingüístico é percebido como um fato objetivo externo à da interação verbal, realizada pela enunciação ou pelas enunciações (cf.
consciência individual e independente desta. A língua opõe-se ao indivíduo nota 7). A interação verbal constitui, assim, a realidade fundamental da
enquanto norma indestrutível, peremptória, que o indivíduo só pode aceitar linguagem."
como tal" (Neder, 1992:38).
Dessa forma o diálogo em sentido amplo é que caracteriza a
Essa concepção levou ao estudo da língua enquanto código virtual, linguagem. Essa concepção é representada por todas as correntes de
isolado de sua utilização — na fala (cf. Saussure) ou no desempenho estudo da língua que podem ser reunidas sob o rótulo de lingüística da
(cf. Chomsky). Isso fez com que a Lingüística não considerasse os enunciação. Aqui estariam incluídas correntes e teorias tais como a
interlocutores e a situação de uso como determinantes das unidades e Lingüística Textual, a Teoria do Discurso, a Análise do Discurso, a
regras que constituem a língua, isto é, afastou o indivíduo falante do Análise da Conversação, a Semântica Argumentativa e todos os estudos
processo de produção, do que é social e histórico na língua. Essa é uma de alguma forma ligados à Pragmática.
visão monológica e imanente da língua, que a estuda segundo uma
perspectiva formalista — que limita esse estudo ao funcionamento interno
da língua — e que a separa do homem no seu contexto social. Essa
concepção está representada pelos estudos lingüísticos realizados pelo
estruturalismo (a partir de Saussure) e pelo transformacionalismo, (a
partir de Chomsky) (cf. Neder, 1992:41, que adota idéias de Frigotto,
1990:20).

Para essa concepção o falante tem em sua mente uma mensagem


a transmitir a um ouvinte, ou seja, informações que quer que cheguem
ao outro. Para isso ele a coloca em código (codificação) e a remete para
o outro através de um canal (ondas sonoras ou luminosas). O outro
melhor dizendo, não-gramatical) e o que atende a esses padrões é "certo"
(gramatical). As normas de bom uso da língua são baseadas no uso
consagrado pelos bons escritores e, portanto, ignoram as características
próprias da língua oral. Além disso, ignorando e depreciando outras
variedades da língua com base em fatores não estritamente lingüísticos,
cria preconceitos de toda espécie (cf. capítulo 5), por basear-se em
parâmetros, muitas vezes, equivocados, tais como: purismo e vemaculidade,
classe social de prestígio (de natureza econômica, política, cultural),
autoridade (gramáticos, bons escritores), lógica e história (tradição).
3. CONCEPÇÃO DE GRAMÁTICA Portanto, estão embutidos nessa concepção de gramática vários
modos de perceber e definir a chamada norma culta8 que mobilizam
3.1. Conceito de gramática argumentos de diferentes ordens para incluir na norma culta ou excluir
dela formas e usos e, assim, fundamentar e exercer seu papel prescritivo.
Se a nossa questão é o ensino de gramática, é preciso dizer também Os argumentos são sobretudo de natureza:
o que se entende por gramática e, de acordo com cada concepção, o a) estética: as formas e usos são incluídos ou excluídos da norma
que seria saber gramática e o que é ser gramatical. culta por critérios tais como elegância, colorido, beleza, finura, expres
Há basicamente três sentidos para essas expressões, que apresentamos sividade, eufonia, harmonia; devendo-se evitar vícios como a cacofonia,
a seguir. a colisão, o eco, o pleonasmo vicioso;
No primeiro a gramática é concebida como um manual com regras b) elitista ou aristocrática: aqui o critério é a contraposição do
de bom uso da língua a serem seguidas por aqueles que querem se uso da língua que é feito pela classe de prestígio ao uso das classes
expressar adequadamente. Como diz Franchi (1991:48), para essa con ditas populares. Como diz Castilho (1988: 55), "há um forte sentimento
cepção, que normalmente é rotulada de gramática normativa, "gramática de estratificação social, e sobretudo de 'diferença' social". E quando as
é o conjunto sistemático de normas para bem falar e escrever, estabelecidas
gramáticas registram que certos usos são da linguagem popular, mas não
pelos especialistas, com base no uso da língua consagrado pelos bons
como um registro de diferenças objetivas entre variedades, mas como
escritores" e "dizer que alguém "sabe gramática' significa dizer que
esse alguém 'conhece essas normas e as domina tanto nocionalmente
uma condenação. O motivo para proscrever formas como, por exemplo,
quanto operacionalmente^ (grifos do autor). Dessa forma, gramatical "muié", "trabaio", "fumu" (=fomos), etc. é tão-somente por serem formas
aqui será aquilo que obedece, que segue as normas de bom uso da usadas pelo "povo" (em oposição à elite — quase sempre econômica,
língua, configurando o falar e o escrever bem. política e cultural — da mesma sociedade). Decorre também dessa
oposição o plebeísmo (como vício de linguagem) em contraposição à
Nesse primeiro sentido afirma-se que a língua é só a variedade dita nobreza (como qualidade da boa linguagem) (cf. Cegalla, 1976: 410-412).
padrão ou culta e que todas as outras formas de uso da língua são Inclui-se aqui o critério da autoridade (gramáticos e bons escritores) que
desvios, erros, deformações, degenerações da língua e que, por isso, a advém, normalmente, do prestígio cultural de quem estabelece as regras
variedade dita padrão deve ser seguida por todos os cidadãos falantes de bom uso da língua;
dessa língua para não contribuir com a degeneração da língua de seu
país. A gramática só trata da variedade de língua que se considerou c) política: nesse caso os critérios são basicamente o purismo e a
como a norma culta, fazendo uma descrição dessa variedade e considerando vemaculidade. Há a pretensão e a necessidade de excluir da língua tudo
erro tudo o que não está de acordo com o que é usado nessa variedade
da língua. Tudo o que foge a esse padrão é "errado" (agramatical, ou 8- Cf. Castilho (1988: 55-56). quando fala de "norma e ideologia".
perfeitamente permitidas pela gramática de variedades não cultas da
o que não seja, no caso da Língua Portuguesa, de origem grega, latina língua.
ou vinda de épocas remotas da língua (aqui há a interferência de critérios
históricos). Caçam-se e condenam-se todos os estrangeirismos: os gali- (2) a) Eu vi ele ontem.
cismos (formas do francês), anglicismos (formas do inglês), germanismos b) Os menino saiu correndo.
(do alemão), italianismos, castelhanismos, etc. Na verdade a preocupação c) Me empresta seu livro.
é com a dominação cultural, com a ameaça à nacionalidade: se uma d) Vende-se frangos.
nação não mantém a sua língua, que é a principal marca de sua identidade, e) O homem que eu saí com ele.
será facilmente dominada. É preciso muito critério para equilibrar-se no 0 Nóis trabaia prós homi.
julgamento do estrangeirismo como necessário e bem-vindo ou como
g) O chefe pediu para mim dizer a vocês que está tudo bem.
ameaçador da nacionalidade, por ser inteiramente desnecessário. Às vezes
os países chegam a editar leis relacionadas a essa questão9; S) A segunda concepção de gramática é a que tem sido chamada de
d) comunicacional: nesse caso os critérios se referem ao efeito gramática descritiva, porque faz, na verdade, uma descrição da estrutura
comunicacional, à facilidade de compreensão. Exige-se que as construções e funcionamento da língua, de sua forma e função. A gramática seria
e o léxico escolhido resultem na "expressão do pensamento"10 com então "um conjunto de regras que o cientista encontra nos dados que
clareza, precisão e concisão. Na verdade, esses são requisitos desejáveis analisa, à luz de determinada teoria e método". Essas regras seriam as
em muitas situações de interação comunicativa, mas em muitas outras o
"utilizadas pelos falantes na construção real de enunciados" (Neder,
1992:49). Como diz Franchi (1991:52-53), gramática nessa concepção "é
hermetismo, a dubiedade, a imprecisão, a prolixidade é que serão desejáveis
um sistema de noções mediante as quais se descrevem os fatos de uma
e pertinentes para a produção dos efeitos de sentido pretendidos. As
língua, permitindo associar a cada expressão dessa língua uma descrição
considerações de caráter lógico podem ser aqui incluídas pois, normalmente,
estrutural e estabelecer suas regras de uso, de modo a separar o que é
têm a ver com a "adequada expressão do pensamento". gramatical do que não é gramatical". Gramatical será então tudo o que
e) histórica: com freqüência, o critério para excluir formas e usos atende às regras de funcionamento da língua de acordo com determinada
da norma culta é a tradição. Esse é um critério bastante problemático variedade lingüística. O critério é propriamente lingüístico e objetivo,
em sua aplicação, pois pode levar a exigências absurdas, uma vez que pois não se diz que não pertencem à língua formas e usos presentes no
não há nada de objetivo que permita definir quando ele se aplica e dizer dos usuários da língua e aceitas por estes como próprias da língua
quando ele não se aplica. Veja-se o que dizemos a respeito no capítulo que estão usando. Assim, frases como as de (2) serão consideradas como
13. Inclui-se também nesse caso a concepção naturalista de língua, que gramaticais, porque atendem às regras de funcionamento da língua em
a considera um organismo vivo que nasce, se desenvolve e pode entrar uma de suas variedades. Saber gramática significa, no caso, ser capaz
em decadência, juntamente com a sociedade que dele não cuida adequa de distinguir, nas expressões de uma língua, as categorias, as funções e
damente, não atende à tradição, comete o pecado do erro e juntamente as relações que entram em sua construção, descrevendo com elas sua
com sua linguagem se deteriora, definha, acaba. estmtura interna e avaliando sua gramaticalidade. O cientista pode fazer
gramáticas de todas as variedades da língua, propondo de acordo com
Para essa concepção a gramática seria vista como algo definitivo um modelo teórico quais as unidades e categorias da língua, bem como
e absoluto e para ela seriam agramaticais frases como as de (2), as relações que podem ser estabelecidas entre elas e as suas funções, o
seu funcionamento.

9. Veja o exemplo recente da França, que, em 1994, editou lei proibindo o comércio, São representantes dessa concepção as gramáticas feitas de acordo
de apresentar e oferecer produtos em inglês, numa luta declarada contra a invasão de anglicismos; com as teorias estruturalistas que privilegiam a descrição da língua oral
devida à influência econômica e cultural dos Estados Unidos da América. Cf. o artigo "Oui.
C'est Ia guerre" in Veja, 18/05/1994: 50.
e as gramáticas feitas segundo a teoria gerativa-transformacional que
10. Importa lembrar que a gramática normativa, com seu caráter prescritivo, foi construída trabalha com enunciados ideais, ou seja, produzidos por um falante-ouvinte
segundo a concepção de linguagem como expressão do pensamento (cf. capítulo 2).
ideal. As correntes lingüísticas que dão base a esse tipo de gramática
objeto da descrição, daí porque normalmente essa gramática é chamada
têm em comum o fato de proporem uma homogeneidade do sistema de gramática internalizada.
lingüístico, abstraindo a língua de seu contexto, ou seja, elas trabalham Nessa concepção de gramática não há o erro lingüístico, mas a
com um sistema formal abstrato que regularia o uso que se tem em inadequação da variedade lingüística utilizada em uma determinada
cada variedade lingüística. situação de interação comunicativa, por não atendimento das normas
sociais de uso da língua, ou a inadequação do uso de um determinado
Na verdade, essas duas correntes básicas da gramática descritiva
recurso lingüístico para a consecução de uma determinada intenção
fazem o que se pode chamar (considerando a dicotomia langue/parole comunicativa que seria melhor alcançada usando-se outro(s) recurso(s).
proposta pelo lingüista Saussure) de uma lingüística da langue, do sistema É o que teríamos se alguém numa situação de velório dissesse o que
formal e abstrato da língua, visto como algo uniforme que regula as temos em (3a e b), pois, considerando tudo o que socialmente está
variedades da parole (fala, uso). Sobretudo a partir da década de 60 estabelecido sobre o comportamento que se deve ter nesse tipo de situação
ganharam corpo diversas correntes de estudos da língua (Lingüística e desde que estejamos querendo demonstrar consideração e apreço pelo
Textual, Análise do Discurso, Análise da Conversação, Semântica Argu- morto e por seus familiares na dor da perda, seria mais conveniente
mentativa,Sociolingüística em diferentes correntes, Pragmática), que podem utilizar algo parecido com o que temos em (3c).
ser reunidas sob o título geral de lingüística da enunciação ou do discurso
e que tratam não só do sistema formal, mas se dedicam a fazer também (3) a - Meus sentimentos porque sua mãe bateu as botas,
uma lingüística da fala que considera a variação lingüística, bem como b - Então a velha bateu as botas?!
a inserção e relação da língua com a situação de comunicação como c - Meus sentimentos pela perda de sua mãe.

um todo e com cada um dos seus componentes (quem diz — fala/escreve


— para quem, onde, quando, como, para que, por quê). A consideração Evidentemente, se alguém quer demonstrar desapreço, talvez seja
dessa lingüística da fala, desses estudos sobre a língua em uso, é mais adequado e eficiente usar as formas de (3a e b). Na verdade
importante para o trabalho do professor de língua materna que pretende ninguém considera mim o texto de (4) lido em um jornal sensacionalista
(de acordo com o objetivo que se proponha) desenvolver a competência e popular, que trata com certo descaso a perda da vida humana, prin
comunicativa do seu aluno ou descrever-lhe como é e como funciona a cipalmente dos seres humanos tidos como maléficos ao restante da
língua que ele utiliza ou levá-lo a observar esses mesmos fatos (a sociedade.
constituição e funcionamento da língua).
(4) José S. V., conhecido traficante de drogas, com mais de 50 mortes
A terceira concepção de gramática é aquela que, considerando a nas costas, abotoou ontem c~ paletó de madeira em um tiroteio com
língua como um conjunto de variedades utilizadas por uma sociedade-jde a polícia, quando recebia mais um carregamento de cocaína.
acordo com o exigido pela situação de interação comunicativa em que.
o usuário da língua está engajado, percebe a gramática como o conjunto Tudo isso é reflexo de um contexto sócio-histórico-ideológico, ou
das regras que o falante de fato aprendeu e das quais lança mão ao seja, de um modo de nossa sociedade ver os fatos em determinado
falar. Ou, como diz Franchi (1991:54), "Gramática corresponde ao saber momento de sua história, que regula e afeta o uso da linguagem, como
lingüístico que o falante de uma língua desenvolve dentro de certos se verá no capítulo 6. Mudando isto, mudará o texto e sua constmçao
limites impostos pela sua própria dotação genética humana, em condições dentro de uma variedade da língua e o efeito de sentido que ele poderá
apropriadas de natureza social e antropológica". Nesse caso "saber produzir.
gramática não depende, pois, em princípio de escolarização, ou de Normalmente se considera que é essa gramática internalizada que
quaisquer processos de aprendizado sistemático, mas da ativação e ama constitui e dá forma ao que chamamos no capítulo 1 de competência
durecimento progressivo (ou da constmçao progressiva), na própria ati gramatical ou lingüística do usuário da língua, pois é ela que permite
vidade lingüística, de hipóteses sobre o que seja a linguagem e de seus ao usuário constmir um número infinito de frases e julgar sua gramati-
princípios e regras". Não existem livros dessa gramática, pois ela é o
oo
I

calidade no sentido da gramática descritiva. Isso não deixa de ser verdade, utilização oral e escrita do idioma, prescreve o que se deve e o que
mas é apenas parte dela, pois seconsiderarmos que a gramática internalizada
não se deve usar na língua. Essa gramática considera apenas uma variedade
atua apenas no nível da frase estaremos deixando de fora todos os
da língua como válida, como sendo a língua verdadeira.
elementos constitutivos da gramática da língua em outros âmbitos que
não o da frase, como todos os princípios que nos permitem fazer uso A gramática normativa é mais uma espécie de lei que regula o uso
da língua através de textos, tais como os princípios de construção, da língua em uma sociedade. A parte de descrição da norma culta e
interpretação e uso de textos em conformidade com situações diferentes padrão não se transforma em regra de gramática normativa até que seja
de interação comunicativa, os princípios que regem a conversação e dito que a língua só é daquela forma, só pode aparecer e ser usada
muitos outros. O que queremos é que fique claro que o usuário da língua naquela forma. É preciso, pois, separar a descrição que se faz da norma
precisa saber (e sabe) muito mais do que apenas as regras de construção culta da língua, que é apenas gramática descritiva de uma variedade da
de frases para ter uma competência comunicativa e que faz parte da língua, com a transformação do resultado dessa descrição em leis para
gramática da língua, muito mais do que aquilo de que a teoria lingüística uso da língua. Assim, por exemplo, o estudioso constata que na variedade
trata ao estudar os elementos da fonologia e fonética, da morfologia e culta e formal da língua:
da sintaxe. O professor deverá perceber que a gramática da língua é a) não se iniciam frases com pronome oblíquo átono;
constituída por bem mais do que isso para conseguir fazer um trabalho
efetivamente pertinente e produtivo no ensino de língua materna. Importa, b) o verbo concorda em número e pessoa com o sujeito;
pois, registrar, reafirmar e destacar aqui que a gramática internalizada é c) pronuncia-se como oxítona a palavra "recém", como paroxítona
a que constitui não só a competência gramatical do usuário mas também a palavra "avaro", como proparoxítona a palavra "crisântemo", com
sua competência textual e sua competência discursiva (cf. capítulos 1 e ditongo e paroxítonas palavras como "fortuito" e "gratuito" e com hiato
6) e, portanto, a que possibilita sua competência comunicativa. e oxítona a palavra "ruim".
Até aí temos simplesmente descrição. A gramática normativa aparece
3.2. Tipos de gramática quando os fatos da variedade culta da língua são transformados em
regras, em leis de uso tais como as dadas em (5), considerando como
Ao desenvolver o ensino de língua materna e trabalhar especificamente "erro" as outras possibilidades existentes nas demais variedades da língua.
com o ensino de gramática, é conveniente ter sempre em mente que há
(5) a - Não se pode iniciar frases com o pronome oblíquo átono (o que
vários tipos de gramática e que o trabalho com cada um desses tipos faz classificar a frase {2c] como errada ou agramatical);
pode resultar em trabalhos (atividades) completamente distintos em sala
b - O verbo tem de concordar em gênero e número com o seu
de aula para o atendimento de objetivos bem diversos. sujeito (o que faz classificar as frases [2b] e [2f]n como erradas
Os três conceitos de gramática vistos anteriormente já deixam clara ou agramaticais);
a existência de três tipos de gramática, que apresentamos a seguir. c - são oxítonas as palavras: recém e ruim (com hiato u-i);
- são paroxítonas as palavras: avaro, fortuito e gratuito (ui é
1) A gramática normativa, que é aquela que estuda apenas os ditongo nas duas últimas) e recorde;
fatos da língua padrão, da norma culta de uma língua, norma essa que - são proparoxítonas as palavras crisântemo e arquétipo;
se tornou oficial. Baseia-se, em geral, mais nos fatos da língua escrita portanto constitui silabada12 e deve ser evitada a pronúncia dessas
e dá pouca importância à variedade oral da norma culta, que é vista, palavras como aparecem na linguagem popular;
conscientemente ou não, como idêntica à escrita. Ao lado da descrição
da norma ou variedade culta da língua (análise de estmturas, uma
classificação de formas morfológicas e léxicas), a gramática normativa "nrt " " aPa Q, gramática normativa a frase de 2f tem outros problemas: os de pronúncia de
ra aia e "homi" c o de concordância nominal em "prós homi".
apresenta e dita normas de bem falar e escrever, normas para a correta • Silabada é o erro na acentuação tônica de um vocábulo" (Bechara, 1968: 66).
m

récem (paroxítona), ruim (ui ditongo, portanto monossílabo 4) Gramática implícita, que é a competência lingüística internalizada
tônico), ávaro (proparoxítona), fortuito e gratuito (u-i hiato e
paroxítonas), recorde (proparoxítona), crisântemo (paroxítona), do falante (incluindo os elementos — unidades, regras e princípios —
arquétipo (paroxítona). de todos os níveis de constituição e funcionamento da língua: fonológico,
morfológico, sintático, semântico, pragmático e textual-discursivo) e que
A gramática normativa é o tipo de gramática a que mais se refere seria implícita, porque o falante não tem consciência dela, apesar de ela
tradicionalmente na escola e, quase sempre, quando os professores falam estar em sua "mente" e permitir que ele utilize a língua automaticamente,
em ensino de gramática, estão pensando apenas nesse tipo de gramática, quando dela necessita para qualquer fim, em situações específicas de
por força da tradição ou por desconhecimento da existência dos outros interação comunicativa. Alguns dizem também gramática inconsciente.
tipos. Esse tipo de gramática, por possibilitar o uso automático da língua, está
diretamente relacionada com o que se chama no ensino de gramática,
2) A gramática descritiva é a que descreve e registra para uma no trabalho escolar com a gramática, de gramática de uso.
determinada variedade da língua em um dado momento de sua existência
(portanto numa abordagem sincrônica) as unidades e categorias lingüísticas 5) A gramática explícita ou teórica é representada por todos os
existentes, os tipos de constmçao possíveis e a função desses elementos, estudos lingüísticos que buscam, por meio de uma atividade metalingüística
o modo e as condições de uso dos mesmos. Portanto a gramática descritiva sobre a língua, explicitar sua estrutura, constituição e funcionamento.
trabalha com qualquer variedade da língua e não apenas com a variedade Assim todas as gramáticas normativas e descritivas são gramáticas explícitas
culta e dá preferência para a forma oral desta variedade. Podemos, então, ou teóricas, podendo ser entendidas como umá explicitação do mecanismo
ter gramática descritiva de qualquer variedade da língua. dominado pelo falante e que lhe possibilita usar a língua (cf. Perini,
1976:23-24) e que seria representado basicamente pelo conjunto das
Essa gramática será o resultado do trabalho do lingüista a partir da unidades lingüísticas de todos os níveis e tipos e as regras e princípios,
observação do que se diz ou se escreve na realidade e trata de explicitar para sua constituição e/ou utilização.
o mecanismo da língua, constmindo hipóteses que expliquem o seu
funcionamento (cf. Perini, 1976: 20 e 22). 6) A gramática reflexiva é a gramática em explicitação. Esse
conceito se refere mais ao processo do que aos resultados: representa as
Com freqüência as gramáticas descritivas recebem nomes ligados atividades de observação e reflexão sobre a língua que buscam detectar,
às correntes lingüísticas segundo as quais foram construídas, daí falar-se levantar suas unidades, regras e princípios, ou seja, a constituição e
em gramáticas estmtural, gerativa-transformacional, estratificacional, fun funcionamento da língua. Parte, pois, das evidências lingüísticas para
cional, etc.
tentar dizer como é a gramática implícita do falante, que é a gramática
3) A gramática internalizada ou competência lingüística inter da língua.
nalizada do falante é o próprio "mecanismo", o conjunto de regras que Esses três tipos de gramática (explícita ou teórica, reflexiva e
é dominado pelos falantes e que lhes permite o uso normal da língua implícita) representam uma distinção muito produtiva na questão do ensino
(cf. Perini, 1976:20 e 22). Na verdade é essa gramática que é objeto de I de gramática, como veremos mais adiante, e podem também serdiretamente
estudo dos outros dois tipos de gramática, sobretudo da descritiva. relacionados à distinção entre atividades lingüísticas, atividades epilin-
Além desses três tipos de gramática derivados da concepção que güísticas e atividades metalingüísticasu'.
se tem de gramática, trabalhamos também com outros três tipos cujo I As atividades lingüísticas são aquelas que o usuário da língua
critério de proposição está ligado à explicitação da estrutura e do J (falante, escritor/ouvinte, leitor) faz ao buscar estabelecer uma interação
mecanismo de funcionamento da língua. São eles: comunicativa por meio da língua e que lhe permite ir construindo o seu
exto de modo adequado à situação, aos seus objetivos comunicacionais,
13. Os acentos aqui têm a função precípua de marcar a tônica e por isso nem sempre
seguem as regras de acentuação.
14. Sobre essas atividades, leia Geraldi (1993: item 1.2 até p. 58).
ao desenvolvimento do tópico discursivo, que alguns chamam de assunto metalinguagem, isto é, um conjunto de elementos lingüísticos próprios e
ou tema (cf. capítulo 6). Neste caso, o falante faz uma reflexão sobre apropriados para se falar sobre a língua. Nesse caso a língua se toma
a língua que se diria automática, porque ele seleciona recursos lingüísticos o conteúdo, o assunto, o tema, o tópico discursivo da situação de interação.
e os arranja em um trabalho de constmçao textual em que lança mão Há aqui sempre análise consciente dos elementos da língua, e se busca
dos mecanismos lingüísticos que domina sem um trabalho de explicitação explicitar como esta é constituída e como funciona nas diferentes situações
dos mesmos. As atividades lingüísticas são, pois, as atividades de construção de interação comunicativa. O que se faz então é a constmçao de um
e/ou reconstmção do texto que o usuário realiza para se comunicar. conhecimento (normalmente de natureza científica) sobre a própria língua;
Podemos relacioná-las com a gramática de uso, pois ocorrem quando o portanto, a atividade metalingüística, na maioria das vezes, está relacionada
usuário da língua utiliza de forma automática a sua gramática internalizada, diretamente a teorias lingüísticas e métodos de análise da língua. Todos
a gramática da língua que ele intemalizou em sua história de vida. os estudiosos e especialistas da língua fazem metalinguagem, todas as
As atividades epilingüísticas são aquelas que suspendem o desen gramáticas descritivas, históricas, comparadas, geral, universal ou de outros
volvimento do tópico discursivo (ou do tema ou do assunto), para, no tipos são produtos de atividade metalingüística. Podemos pois afirmar
curso da interação comunicativa, tratar dos próprios recursos lingüísticos que a atividade metalingüística se relaciona diretamente com o que
que estão sendo utilizados, ou de aspectos da interação. Segundo Geraldi chamamos anteriormente de gramática teórica.
(1993: 24-25) elas estão presentes nas hesitações, correções (auto ou Outros tipos de gramática comumente citados e que são definidos
heteroiniciadas), pausas longas, repetições, antecipações, lapsos, etc. ou, pelos seus objetos de estudo e por seus objetivos são os especificados
por exemplo, quando um interlocutor questiona a atuação interativa de
a seguir (itens 7 a 11).
outrem (se ele não fala, se fala demais) ou controla a tomada da palavra
numa conversação, indicando quem deve ou não falar por recursos 7) Gramática contrastiva ou transferenciai é "a que descreve duas
diversos (como pergunta/resposta, solicitação nominal, etc). A atividade línguas ao mesmo tempo, mostrando como os padrões de uma podem
epilingüística pode ser ou não consciente. Se pensamos que inconsciente ser esperados na outra. É muito usada no ensino de línguas, pois define
se relaciona com a gramática de uso, se consciente parece se aproximar a natureza das dificuldades, permitindo ao professor selecioná-las ou
mais da gramática reflexiva, todavia, de qualquer forma há uma reflexão diminuí-las" (Borba, 1971:80).
sobre os elementos da língua e de seu uso relacionada ao processo de
interação comunicativa. Nos textos (6) temos exemplos de atividades No ensino de língua materna, a gramática constrastiva será parti
epilingüísticas diversas. cularmente útil quando mostrar as diferenças e semelhanças entre diferentes
variedades da mesma língua (dialetos regionais, língua oral e escrita,
(6) a - Achei o vestido de Maria lindo. Lindo não, maravilhoso. registro formal e coloquial, etc).
b - Vamos fechar esta questão, pois o horário da reunião já acabou. 8) Gramática geral é a que "compara o maior número possível
c - Agora quem vai dar sua opinião é o João. de línguas, com o fim de reconhecer todos os fatos lingüísticos realizáveis
d - Não creio que a palavra mansão dê uma boa idéia sobre como e as condições em que se realizarão. Não se preocupa com o realizado,
é a casa de Pedro, creio que palácio seria melhor, daria uma mas com as possibilidades que estão por trás dele — é uma gramática
idéia mais exata da realidade.
de previsão de possibilidades gerais" (Borba, 1971: 81).
e - Não creio que ele seja um... um... um... mentiroso.
f - Então ele trouxe o tou/o cavalo para o rodeio. Busca, portanto, "formular certos princípios aos quais todas as
g - Me desculpe, mas você não pode usar esta linguagem dentro ínguas obedecem, e que fornecem a explicação profunda do emprego
de uma igreja. destas" (Todorov e Ducrot, 1978: 15). A gramática geral, assim, "se
entifica com a definição de uma língua humana possíver e é vista
As atividades metalingüísticas são aquelas em que se usa a língua em ultima análise como "uma parte da definição de 'ser humano'" porque
para analisar a própria língua, construindo então o que se chama de - entende que "os traços comuns a todas as línguas humanas são com
toda probabilidade decorrentes de traços característicos da mente humana" 11) Gramática comparada é a que estuda uma seqüência de fases
(Perini, 1976:24). evolutivas de várias línguas, normalmente buscando encontrar pontos
9) Gramática universal é uma "gramática de base comparativa que comuns. Os estudos comparativistas tiveram seu auge no final do século
procura descrever e classificar todos os fatos observados e realizados passado e início deste século e foram os responsáveis pelo estabelecimento
universalmente" (Todorov e Ducrot, 1978:15), ou seja, investiga quais das famílias de línguas, descobrindo parentescos entre línguas aparente
características lingüísticas são comuns a todas as línguas do mundo mente muito distanciadas como o Latim e o Sânscrito, por exemplo.
(Perini, 1976:24). Nem sempre se faz uma distinção entre gramática geral
e universal. Veja-se em (7) alguns exemplos de universais lingüísticos.
(7) a - todas as línguas têm vogais;
b - todas as línguas têm dupla articulação;
c - em frases declarativas com sujeito e objeto nominal, a ordem
dominante é quase sempre uma em que o sujeito precede o
objeto;
d - todas as línguas têm categorias pronominais envolvendo pelo
menos três pessoas e dois números;
e - em afirmações condicionais, a oração condicional precede a
conclusão como a ordem normal em todas as línguas;
f - se uma língua tem a categoria de gênero, ela sempre tem a
categoria de número;
g - se uma língua tem flexão, ela sempre tem derivação.
h - quando algum ou todos os itens — demonstrativo, numerai e
adjetivo — precedem o nome (substantivo), eles sempre aparecem
nessa ordem. Se eles o seguem, a ordem é ou a mesma ou
exatamente o oposto 15

Os tipos 7, 8 e 9 supra são gramáticas de caráter sincrônico. Os


tipos 10 e 11 infra são gramáticas de caráter diacrônico.
10) Gramática histórica é a que estuda uma seqüência de fases
evolutivas de um idioma (Bechara, 1968). É a que estuda a origem e a
evolução de uma língua, acompanhando-lhe as fases desde o seu apare
cimento até o momento atual.

Noções básicas de gramática histórica têm feito parte dos programas;


de ensino de Língua Portuguesa no 2o grau, informando aos alunos sobrei
a origem do Português no Latim vulgar, suas fases (medieval, clássica,1
moderna); sobre elementos de sua evolução fonológica (metaplasmos),
morfológica e sintática e sobre a formação do seu vocabulário.

15. Os exemplos de universais de c a h foram retirados de Greenberg (1966: 110-113)-


O ensino prescritivo só é capaz de atender aos objetivos de ensino
de língua materna citados no capítulo 1 como segunda resposta ao para
que se dá aulas de língua materna:
a) levar o aluno a dominar a norma culta ou língua padrão;
b) ensinar a variedade escrita da língua.
O ensino descritivo objetiva mostrar como a linguagem funciona e
como determinada língua em particular funciona. Fala de habilidades já
adquiridas sem procurar alterá-las, porém mostrando como podem ser
4. TIPOS DE ENSINO DE LÍNGUA utilizadas. Nesse tipo de ensino, a língua materna tem papel relevante
por ser a que o aluno mais conhece. Trata de todas as variedades
lingüísticas. Sua validade tem sido justificada afirmando-se que o falante
Ao ensinar uma língua, podemos, segundo Halliday, Mclntosh e precisa saber algo da instituição lingüística de que se utiliza, do mesmo
Strevens (1974:257-287) realizar três tipos de ensino: o prescritivo, o modo que precisa saber de outras instituições sociais, para melhor atuar
descritivo e o produtivo. em sociedade.
O ensino prescritivo objetiva levar o aluno a substituir seus próprios O ensino descritivo existe não só a partir das gramáticas descritivas,
padrões de atividade lingüística considerados errados/inaceitáveis por mas também no trabalho com as gramáticas normativas; todavia, nestas
outros considerados corretos/aceitáveis. É, portanto, um ensino que interfere a descrição feita é só da língua padrão, da norma culta escrita e de
com as habilidades lingüísticas existentes. É ao mesmo tempo proscritivo, alguns elementos da prosódia da língua oral, enquanto nas descritivas
pois a cada "faça isto" corresponde um "não faça aquilo". Esse tipo de trabalha-se com todas as variedades da língua. Nas normativas diz-se "a
ensino está diretamente ligado à primeira concepção de linguagem e à língua é assim" e o que foge disso é erro, é degeneração, é aviltamento
gramática normativa e só privilegia, em sala de aula, o trabalho com a da língua. Assim, quando trabalha com gramática normativa, o professor,
variedade escrita culta, tendo como um de seus objetivos básicos a
com freqüência, está fazendo descrição da variedade culta e formal da
correção formal da linguagem. Os exemplos dados em (5) podem ser
língua e transformando os fatos nela observados em leis de uso da língua,
tomados como exemplos do que se ensina em um ensino prescritivo nos
em única possibilidade.de uso da língua.
níveis fonológico (pronúncia das palavras) e sintático (colocação de
palavras e concordância). Em (8) e (9), a seguir, temos mais alguns O ensino descritivo atende basicamente aos objetivos que, no capítulo
exemplos de elementos que são trabalhados em um ensino prescritivo, 1, arrolamos na terceira e quarta respostas à questão de para que se dá
respectivamente nos níveis morfológico e semântico. aulas de língua materna:
(8) a - O plural de cidadão é cidadãos e não cidadões. a) levar ao conhecimento da instituição social que a língua representa:
b - O plural de chapéu é chapéus e não chapeis. sua estmtura e funcionamento, sua forma e função;
c - O subjuntivo do verbo ser é "seja" e não "seje". Assim, diz-se b) ensinar o aluno a pensar, a raciocinar, a desenvolver o raciocínio
"Que você seja feliz!" e não "Que você seje feliz!" científico, a capacidade de análise sistemática dos fatos e fenômenos que
encontra na natureza e na sociedade.
(9) Deve-se evitar construções que apresentem possibilidade de dois
sentidos diversos. Assim, deve-se evitar uma frase como "Ama o O ensino produtivo objetiva ensinar novas habilidades lingüísticas.
povo o bom rei e dele é amado", em que o objeto do verbo ama vuer ajudar o aluno a estender o uso de sua língua materna de maneira
se confunde com o sujeito do mesmo verbo16. roais eficiente; dessa forma, não quer "alterar padrões que o aluno já
quinu, mas aumentar os recursos que possui e fazer isso de modo tal
16. Exemplo extraído de Almeida (1978: 516). He tenha a seu dispor, para uso adequado, a maior escala possível de
potencialidades de sua língua, em todas as diversas situações em que
tem necessidade delas" (Halliday, Mclntosh e Strevens, 1974:276).
O ensino produtivo é sem dúvida o mais adequado à consecução
do primeiro objetivo de ensino de língua materna que arrolamos no
capítulo 1, ou seja, o de desenvolver a competência comunicativa, já
que tal desenvolvimento implica a aquisição de novas habilidades de uso
da língua e o ensino produtivo visa especificamente o desenvolvimento
de novas habilidades. Como já dissemos, estariam incluídos aqui o
desenvolvimento do domínio da norma culta e o da variante escrita da
língua. Aliás, o ensino da variedade escrita da língua é todo ele produtivo,
uma vez que o aluno não apresenta, quando entra para a escola, nenhuma
5. A VARIAÇÃO LINGÜÍSTICA E O
habilidade relativa a essa variedade. ENSINO DE LÍNGUA MATERNA
Esses três tipos de abordagem do ensino da língua não são mutuamente
excludentes e podemos em nosso trabalho lançar mão de todos eles de
Ao falarmos dos objetivos do ensino de língua materna no capítulo
acordo com nossos objetivos. Todavia tem sido consenso entre os estudiosos
1, dissemos que para desenvolver a competência comunicativauos usuários
das questões ligadas ao ensino de língua materna que o ensino descritivo
e o produtivo, sobretudo o segundo, são muito úteis para o aluno, mas da língua era preciso abrir a escola à pluralidade dos discursos. Uma
que o prescritivo tem sido hipervalorizado e muito mais praticado nas dimensão dessa pluralidade diz respeito às variedades lingüísticas. Todos
aulas de língua materna em detrimento dos outros dois tipos, causando sabem que existe um grande número de variedades lingüísticas, mas, ao
prejuízos na formação do aluno, em termos do conhecimento lingüístico mesmo tempo que se reconhece a variação lingüística como um fato,
de que disporá em sua vida, sobretudo no que diz respeito à obtenção observa-se que a nossa sociedade tem uma longa tradição em considerar
de uma competência comunicativa mais ampla, que é fundamental para a variação numa escala valorativa, às vezes até moral, que leva a tachar
viver melhor. Mesmo porque o ensino prescritivo que tem sido feito não os usos característicos de cada variedade como certos ou errados, aceitáveis
tem conseguido nem mesmo seu objetivo de levar os alunos a terem ou inaceitáveis, pitorescos, cômicos, etc. Todavia, se se acredita que em
uma competência que se considere satisfatória no uso das variedades diferentes tipos de situação tem-se ou deve-se usar a língua de modos
culta e escrita da língua. variados, não há por que, ao realizar as atividades de ensino/aprendizagem
da língua materna, insistir no trabalho apenas com uma das variedades,
a norma culta, discutindo apenas suas características e buscando apenas
o seu domínio em detrimento das outras formas de uso da língua que
podem ser mais adequadas a determinadas situações. Não cabe o argumento
de trabalhar apenas com a norma culta porque o aluno já domina as
demais: isso não é verdade, uma vez que o aluno, quando chega à escola,
pode dominar bem uma ou duas variedades e alguns elementos de várias,
mas sempre tem muito que aprender de diversas variedades, inclusive
das que domina.
É por essa razão que achamos pertinente apresentar aqui algumas
rápidas idéias sobre variação lingüística, mas o professor sem dúvida
deverá buscar mais informações sobre a questão, para subsidiar o seu
trabalho.

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