CRISTIANA BARRETO
HELENA PINTO LIMA
CARLA JAIMES BETANCOURT
Organizadoras
Fotos: Cristiana Barreto, Edithe Pereira, Glenn Shepard, Sivia Cunha Lima; Wagner Souza
Imagem da capa: Vaso da cultura Santarém, acervo Museu Paraense Emílio Goeldi. Foto: Glenn Shepard.
Kamalu Hai é a gigantesca cobra-canoa que apareceu para os Wauja, há muito tempo, oferecendo-lhes a visão primordial de todos os tipos de
panelas cerâmicas, o que lhes conferiu o conhecimento exclusivo sobre a arte oleira. As panelas chegaram navegando e cantando sobre o dorso
da grande cobra que antes de ir embora defecou enormes depósitos de argila ao longo do rio Batovi para que eles pudessem fazer sua própria
cerâmica. Segundo o mito, esta é a razão pela qual apenas os Wauja sabem fazer todos os tipos de cerâmica (Barcelos Neto, 2000).
Cerâmicas arqueológicas da Amazônia: rumo a uma nova síntese / Cristiana Barreto, Helena Pinto Lima, Carla Jaimes
Betancourt, organizadoras. Belém : IPHAN : Ministério da Cultura, 2016.
ISBN 978-85-61377-83-0
1. Cerâmica – Brasil - Amazônia. 2. Cerâmicas Arqueológicas. I. Barreto, Cristiana. II. Lima, Helena Pinto. III.
Betancourt, Carla Jaimes.
CDD 738.098115
ÍNDICE
APRESENTAÇÃO
APRESENTAÇÃO DO IPHAN - Andrey Rosenthal Schlee 8
APRESENTAÇÃO DO MUSEU PARAENSE EMÍLIO GOELDI - Nilson Gabas Jr.
APRESENTAÇÃO 9
PREFÁCIO - Michael Joseph Heckenberger 10
INTRODUÇÃO - Cristiana Barreto, Helena Pinto Lima, Carla Jaimes Betancourt 12
INTRODUCCIÓN - Cristiana Barreto, Helena Pinto Lima, Carla Jaimes Betancourt 14
MAP
MAPAA ARQUEOLÓGICO DOS COMPLEXOS CERÂMICOS DA AMAZÔNIA 51
AIRE DES V
“C’EST CURIEUX CHEZ LES AMAZONIENS CE BESOIN DE FFAIRE VASES”:
ASES”:
ALF ARERAS P
ALFARERAS ALIKUR DE GUY
PALIKUR ANA
GUYANA 97
Stéphen Rostain
A CERÂMICA MINA NO EST ADO DO PARÁ: OLEIRAS DAS ÁGUAS SALOBRAS DA AMAZÔNIA
ESTADO 125
Elisângela Regina de Oliveira, Maura Imazio da SilveirA
DOS FFASES
ASES CERÁMICAS DE LA CRONOLOGÍA OCUP ACIONAL
OCUPACIONAL
DE LAS ZANJAS DE LA PROVINCIA ITÉNEZ – BENI, BOLIVIA 435
Carla Jaimes Betancourt
PAR TE III - P
ARTE ARA SEGUIR VIAGEM:
PARA
REFERÊNCIAS P ARA A ANÁLISE DAS CERÂMICAS ARQUOLÓGICAS DA AMAZÔNIA
PARA 541
A CONSER
CONSERVVAÇÃO DE CERÂMICAS ARQUEOLÓGICAS DA AMAZÔNIA 543
Silvia Cunha Lima
GLOSSÁRIO 551
Processos tecnológicos 553
Denominações formais e funcionais das cerâmicas 568
Contextos arqueológicos das ocupações ceramistas 581
Conceitos e categorias classificatórias 589
REFERÊNCIAS 603
ÍNDICE ONOMÁSTICO 654
AGRADECIMENTOS 659
SOBRE OS AUTORES E SUAS PESQUISAS 661
AS CERÂMICAS AÇUTUBA E MANACAPURU
DA AMAZONIA CENTRAL
RESUMEN
Las cerámicas Açutuba y Manacapuru de la Amazonía central
Este artículo está dedicado a resumir la información sobre los antiguos complejos cerámicos de la Amazonia
central: Açutuba y Manacapuru, vinculados a las tradiciones Pocó-Açutuba y Borde-Incisa/Barrancoide. La
cronología cerámica de la región fue propuesta por primera vez en la década de 1960, y más tarde fue bastante
discutida y reevaluada. Nuevos datos y nuevas interpretaciones se han incorporado al conocimiento de los
antiguos conjuntos de la Amazonia central. Por tanto, traemos un panorama más actualizado sobre el
conocimiento de esos conjuntos.
ABSTRACT
Açutuba and Manacapuru ceramics from Central Amazon
This article synthesizes data about the early ceramic complexes from the Central Amazon, Açutuba and
Manacapuru, associated, respectively with the ceramic traditions Pocó-Açutuba and Incised Rim/Barrancoid.
The regional ceramic chronology was initially proposed in the 1960s and has since been substantially discussed
and re-evaluated. New data and new interpretations have been incorporated into these early perspectives on
the Central Amazon. Here we present an updated panoramic perspective on current knowledge about these
complexes.
303
Introdução
Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia • AMAZÔNIA CENTRAL
Este artigo dedica-se a sintetizar as informações sobre os complexos cerâmicos antigos da Amazônia Central,
relacionados às fases Açutuba e Manacapuru.
A cronologia de ocupação da Amazônia Central foi inicialmente proposta pelo arqueólogo alemão
Peter Hilbert (1968). Através do estabelecimento de sequências seriadas, as pesquisas pioneiras de Hilbert
sugeriram que a cronologia regional seria caracterizada por rupturas entre os conjuntos cerâmicos,
associados a uma sequência cronoestratigráfica de acordo com os horizontes (posteriormente chamados
de tradições) de Meggers e Evans (1961). Assim, a cronologia de Hilbert era composta por quatro
conjuntos cerâmicos: as fases Manacapuru e Paredão, da Tradição Borda Incisa; a fase Guarita, da
Tradição Policrômica da Amazônia; e a fase Itacoatiara, da Tradição Incisa e Ponteada (Hilbert, 1968,
Meggers; Evans, 1961, 1983). À época, Hilbert contava apenas com poucas datações radiocarbônicas
e com o estudo da estratigrafia dos sítios (muitos deles multicomponenciais) para elaborá-la.
O posicionamento e a antiguidade das fases cerâmicas desta região foram bastante discutidos, a exemplo
da fase Itacoatiara, então proposta como muito recente, que foi posteriormente entendida como um
conjunto antigo, posicionado na região do médio Amazonas (Lima, 2008; Lima, 2013). Igualmente,
a fase Manacapuru gerou debates quanto a sua filiação cultural, sugerindo-se tratar de uma representação
na Amazônia brasileira da série Barrancoide (Lathrap, 1970; Lima, 2008; Lima; Neves, 2011). Neste
sentido, a sequência cerâmica da área de confluência dos rios Negro e Solimões foi retrabalhada em
detalhes, o que culminou num refinamento de tal cronologia apresentado em Lima (2008). Tais análises
levaram à formulação de uma nova hipótese sobre a cronologia de ocupação da área, quando identificaram-
se as cerâmicas Açutuba, com datas entre 300 aC e 360 dC (Lima et al., 2006) e posteriormente datadas
em até 600 dC (Neves, 2013). A definição deste novo complexo surgiu como um aprofundamento
dos estudos das cerâmicas Manacapuru, estas datadas entre aproximadamente 600 e 1.000 dC (Lima,
2008; Neves, 2013).
Na ocasião da pesquisa foram analisados 7.789 fragmentos (ou vasilhas) de cerâmica provenientes de
nove sítios arqueológicos localizados na área de confluência dos rios Negro e Solimões – Amazônia
Central (Lima, 2008). Ainda no âmbito do mesmo estudo, a metodologia foi extrapolada para duas
áreas adjacentes no Baixo Amazonas (sítio Pocó, rio Nhamundá/PA) e médio Solimões (Nova Esperança,
município de Coari/AM), somando-se mais 1.323 fragmentos/vasos analisados, então tratados em uma
perspectiva comparativa regional feita entre os sítios (idem: 324-330).
As análises cerâmicas, juntamente com a avaliação dos contextos e das datações radiocarbônicas, apontaram
à necessidade de dividir os conjuntos anteriormente referidos como Manacapuru (Hilbert, 1968; Lathrap,
1970), propondo então a fase Açutuba, entendida enquanto um componente mais antigo da Tradição
Borda Incisa/Barrancoide na Amazônia Central (Lima et al., 2006; Lima; Neves, 2011; Neves, 2013).
Ainda em avaliação desses mesmos dados, frente a novos complexos conhecidos na bacia Amazônica,
como no médio e Baixo Amazonas, nos rios Trombetas e Nhamundá, em Santarém, no médio Solimões,
entre outros (Hilbert; Hilbert, 1980; Guapindaia, 2008; Gomes, 2011; Costa, 2012; Lima, 2013; Neves
et al., 2014), propuseram que as cerâmicas Açutuba fariam parte de um fenômeno de expansão rápida
de populações ceramistas ao longo da calha do Amazonas, carregando consigo feições culturais e inovações
tecnológicas marcantes, entre elas o cultivo de plantas domesticadas ou manejadas e a produção das terras
pretas junto a uma surpreendente coesão estilística das cerâmicas.
304
Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia • AMAZÔNIA CENTRAL
Pretendemos neste artigo oferecer um quadro descritivo sintético sobre essas cerâmicas antigas encontradas
na Amazônia Central, estes mais amplamente relacionadas aos conjuntos Pocó-Açutuba (Neves et al.,
2014) e à tradição Borda Incisa/Barrancoide (Lima, 2008; Lima; Neves, 2011) da bacia amazônica que,
por sua vez relacionam-se aos contextos Saladoide/Barrancoide do rio Orinoco e Caribe (Rouse; Cruxent,
1963). A intenção aqui é apresentar sucintamente os dados (tecno-estilísticos, cronológicos, contextuais...)
relativos a essas cerâmicas, fornecendo subsídios para discussões mais abrangentes sobre a história de
ocupação por ceramistas na Amazônia Central.
305
Contexto: início e intensificação das ocupações
Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia • AMAZÔNIA CENTRAL
As sequências cronoestratigráficas dos sítios arqueológicos da confluência dos rios Negro e Solimões mostram
ocupações contínuas e aparentemente sem rupturas por milhares de anos, assim como reocupações, de
modo que as posteriores sempre interferem nas anteriores. Os contextos ceramistas mais antigos, portanto,
sofreram alterações constantes, que muitas vezes dificultam avaliações arqueológicas de atributos como
formas de aldeia e espacialidade intrassítio. Não obstante, materiais Açutuba aparecem consideravelmente
dispersos na Amazônia Central, o que remete a uma ocupação regional mais intensa. Foi argumentado
anteriormente que estas ocupações estariam, desassociadas contextualmente, de sítios com matrizes antrópicas
de solo (as terras pretas de índio ou terras pretas arqueológicas).
No entanto, materiais semelhantes na própria área de pesquisa e em regiões próximas têm mostrado a paulatina
associação desses materiais Açutuba com as terras pretas. Tais dados levam à hipótese de que essas ocupações
sejam as primeiras depois de um longo hiato na região, e que talvez tenham dado início, de forma sutil e
não em todos os locais, à formação desses solos antrópicos. As terras pretas têm sido consideradas enquanto
marcadores cronológicos e índices culturais ligados à populações com certa estabilidade e grau de manejo
ou impacto ambiental (Schmidt et al., 2014; Neves, 2013; Neves et al., 2014).
A interpretação proposta é a de que tais conjuntos não sejam um produto de um desenvolvimento autóctone,
mas sim formados em outros locais para que então fossem adaptados à região da Amazônia Central,
trazendo consigo um arsenal tecnológico e simbólico já estruturado (Neves et al., 2014). Partindo desta
perspectiva, determinados modos de vida teriam atingido a Amazônia Central em torno de 2000 anos
AP, dentro de um processo de expansão (Pocó-Açutuba) advindo de outros locais, desde pelo menos o
primeiro milênio aC, o que explicaria localmente o hiato cronológico desde a ocupação da região por
grupos caçadores-coletores, que perdurou até o Holoceno médio, e as primeiras ocupações ceramistas,
que só aconteceram milhares de anos mais tarde.
Pesquisas atuais têm retomado a discussão sobre a associação entre língua e cultura material, tópico
muito polemizado na literatura arqueológica. Na Amazônia, algumas correlações desta natureza têm
sido exploradas, como é o caso dessas cerâmicas Pocó-Açutuba e Barrancoides e as línguas Arawak.
Tal hipótese foi proposta desde o início do século XX (Schmidt, 1917) e desenvolvida por Lathrap
(1970), Heckenberger (2003), e Neves (et al., 2014). Embora ainda se deva testar, este é um apontamento
fértil para a continuidade das pesquisas com cerâmicas antigas na Amazônia Central.
Dentro deste mesmo escopo se situam as cerâmicas Itacoatiara, que têm sido mais intensivamente estudadas,
mostrando-se claramente mais antigas do que anteriormente proposto (Hilbert ,1968) e provavelmente
ligadas à essa mesma expansão Pocó-Açutuba na calha do Amazonas (Lima, 2013).
Nos sítios que indicam uma ocupação mais intensa, foi identificada uma série de estruturas, como
concentrações de cerâmicas e bolsões. Os bolsões e concentrações cerâmicas são muito evidentes nos
sítios Hatahara e Açutuba, mas aparecem também em sítios de menor porte, como o Jacuruxi e Nossa
306
Senhora do Perpétuo Socorro. Estes dois últimos sítios merecem destaque, por estarem situadas justamente
a b
Figura 2a-c. a) Feição (concentração de cerâmicas). b) Açutuba escavada no sítio homônimo. c) Feições de combustão evidenciadas
no sítio Nossa Senhora do Perpétuo Socorro (Lima, 2008).
307
As datações para a fase Açutuba, obtidas a partir dos sítios Hatahara, Açutuba e Lago Grande, posicionam-
Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia • AMAZÔNIA CENTRAL
se entre 300 AC e 600 DC, como pode ser visto na Tabela 1. Também os sítios NSP Socorro e Jacuruxi
enquadram-se nesta faixa temporal (Tabela 2), embora Jacuruxi esteja claramente no limite mais recente
do conjunto.
Tabela 1. Datas radiocarbônicas de ocupações da fase Açutuba nos sítios Açutuba, Hatahara e Lago Grande
(Lima, 2008; Lima et al., 2006; Neves, 2013).
NOAMOSTRA PROVENIÊNCIA PROF. DATA (1Σ) NO LAB.
Ac 2611 T10 65 cm 1590±40 BP Beta 178908
Ac 2652 T10 77 cm 1610±90 BP Beta 178909
Ac 2230 T9 90-100 cm 2280±100 BP Beta 178910
Ac 1A U2 70-80 cm 1800±80 BP Beta 90724
Hat 1860 N1152 W1360 170-180 cm 2310±120BP Beta 143597
LG 566 N508 E596 100 cm 1940±60 BP Beta 178920
Tabela 2. Datas radiocarbônicas de ocupações nos sítios NSP Socorro e Jacuruxi (Lima, 2008; Lima et al.,
2006; Neves, 2013).
NOAMOSTRA PROVENIÊNCIA PROF. DATA (1Σ) NO LAB.
NSPS1767 F83 0-10cm 1860±40 BP Beta 242450
NSPS1672 N1087 E1173 10-20cm 2000±40 BP Beta 242449
JACU186 N1001 E1180 21 cm 1500±40 BP Beta 242441
JACU274 N1000 E1003 35 cm 1580±40 BP Beta 242442
308
Tabela 3. Datações radiocarbônicas de contextos da fase Manacapuru nos sítios Açutuba, Osvaldo e Hatahara
309
As cerâmicas antigas da Amazônia Central1
Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia • AMAZÔNIA CENTRAL
Antes de direcionar o enfoque aos conjuntos Açutuba e Manacapuru, vale mencionar a algumas cerâmicas
antigas encontradas no sítio Açutuba, que apresentam características tecnológicas peculiares. São
caracterizadas por uma pasta de coloração acinzentada, queimadas em ambientes redutores e temperadas
com grande quantidade de cariapé (ou caraipé, fibras de entrecasca queimada de certas árvores da espécie
Licania). A decoração é feita principalmente com incisões em linhas largas, que definem zonas que são
posteriormente preenchidas por incisões finas, paralelas ou cruzadas (Figura 4). Este tipo de decoração
remete aos materiais associados à Tradição Hachurada Zonada, a mais antiga tradição cerâmica definida
para a Amazônia, com datas entre 500 aC e 500 dC (Hilbert, 1968: 272-273; Meggers; Evans, 1961,
1983). A datação radiocarbônica obtida diretamente para o tempero (cariapé) de um fragmento oriundo
deste contexto acusou uma antiguidade de 590 aC., ou seja, uma das datas mais antigas obtidas para
contextos cerâmicos da Amazônia Central.
Figura 4. Cerâmicas supostamente Hachurado Zonadas, mais antigas, escavadas no sítio Açutuba (Lima, 2008).
1. Algumas das descrições presentes nesta parte foram anteriormente publicadas em Lima e Neves (2011).
310
CERÂMICAS AÇUTUBA
311
Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia • AMAZÔNIA CENTRAL
Além dos flanges labiais, outros elementos morfológicos e estruturais característicos são flanges mesiais,
apliques, apêndices modelados e estatuetas. Estes últimos, em geral com fins decorativos, são produzidos
através de modelagem. Com exceção destes, a técnica de produção dos vasos é sempre a de sobreposição
de roletes.
Os flanges mesiais são formados pela adição de um ou mais roletes a meia altura da parede externa dos
vasos, dando-lhes uma forma bastante singular. Ainda que sejam um elemento típico da fase Guarita da
Tradição Polícroma da Amazônia, os flanges mesiais ocorrem também entre os materiais da fase Açutuba,
em pequena quantidade.
Embora haja uma grande quantidade de cerâmica com funções domésticas e utilitárias, impressiona o
número de fragmentos decorados em relação ao total, o que pode ter implicações interessantes para a
compreensão de tal variabilidade. A modelagem é largamente utilizada como recurso decorativo. Trata-
se, em geral, de apêndices aplicados na borda ou no lábio dos vasos, representando figuras antropomorfas
e zoomorfas (especialmente répteis e aves). Estão sempre associados a outras técnicas decorativas, como
incisões de todos os tipos e pintura. Em pratos ou vasilhas muito abertas os apêndices são uma extensão
modelada de flanges labiais. Ocorrem também em grandes tigelas, provavelmente adquirindo função
utilitária, como alça.
Um traço diagnóstico das cerâmicas Açutuba é o rebuscamento das decorações plásticas. As incisões,
finas ou largas e, na maioria das vezes, em linhas simples, são o componente decorativo mais recorrente
nestas cerâmicas. Estão presentes na quase totalidade dos fragmentos decorados, frequentemente associadas
a outras técnicas decorativas como a modelagem e a pintura. Um tipo característico de incisão que aparece
quase sempre nestes materiais é aquele executado sobre a superfície da cerâmica já seca e queimada, e
com engobo vermelho. Trata-se de uma prática realizada com uso de instrumento pontiagudo, dando
um efeito bem diverso daquela feita antes da queima. Esta técnica é comumente encontrada em excisões
nos materiais da fase Marajoara (tradição Polícroma).
Aparecem também excisões e acanalados, sendo estes últimos geralmente aplicados na face externa dos
vasos, na região abaixo do flange labial ou do pescoço. Podem ser recobertos por engobo vermelho ou
312
por pintura em cores. A quantidade de fragmentos pintados é proporcionalmente inferior àqueles que
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Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia • AMAZÔNIA CENTRAL
Figura 6b. Cerâmicas Açutuba da Amazônia Central (fragmentos). Adaptado de Lima, 2008.
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Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia • AMAZÔNIA CENTRAL
Figura 6c. Vaso Açutuba coletado em Manacapuru/AM (Acervo do MPEG). Foto:N. Smith.
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CERÂMICAS MANACAPURU
Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia • AMAZÔNIA CENTRAL
A fase Manacapuru é composta por vasos de formas variadas, geralmente temperados com o cauixi (ou
misturas de antiplásticos aonde o cauixi sempre aparece como preponderante). A decoração consiste
essencialmente em incisões finas ou largas, simples, duplas ou múltiplas, engobo vermelho e na modelagem
nas bordas de figuras abstratas, zoomorfas e antropomorfas, entre outros elementos. As cerâmicas contam
com um número relativamente grande de fragmentos decorados, mas a proporção é muito menor do
que o observado nas cerâmicas Açutuba mais antigas.
Essas cerâmicas são bastante diversificadas e, em relação à pasta, que varia de acordo com uma série de
fatores, somente um tipo se destaca nesta indústria. Este possui, em geral, coloração marrom-acinzentada,
queima preferencialmente redutora, e uma consistência densa e pesada, com um maior grau de dureza.
O fato de a queima ser feita em ambiente redutor não faz com que sua qualidade diminua. Ao contrário,
essas pastas são mais duras e resistentes do que aquelas da fase Açutuba. Ainda quanto à pasta, o cauixi
é o tempero preponderante, com incidência de outros antiplásticos misturados a ele, em menor proporção,
como o caco moído, nódulos de argila e o cariapé, que é quase inexistente. Há quartzo e hematita na
quase totalidade dos fragmentos analisados. Quanto aos acabamentos de superfície, a quantidade de
fragmentos que apresentaram polimento ou algum tipo de enegrecimento foi muito maior do que se
pôde perceber nas cerâmicas Açutuba. Entretanto, a principal causa deste fato pode ter sido o estado de
conservação destes materiais, como já explicitado.
A variabilidade formal é menor quando comparada com os conjuntos anteriores e há uma sensível tendência
a vasos com formas mais fechadas. Foram encontrados, em diversos sítios, grandes vasos com gargalo
carenado (com contorno complexo), recobertos por alguidares emborcados sobre eles, que assumiram a
função de tampa, muito semelhante àquelas encontradas em urnas localizadas em sítios-cemitério Paredão
(Lima, 2008).
Do mesmo modo que na fase Açutuba, há uma recorrência em modificar a estrutura do vaso, com vistas
a tornar os lábios e pescoços dos vasos mais visíveis, e proeminentes. Estas serão as áreas preferencialmente
utilizadas para aplicação da decoração, em geral, plástica. Mais uma vez, a plasticidade é uma marca
desta indústria, tanto no que tange às formas quanto às decorações. De fato, pela tendência a formas
restritivas, a presença de flanges labiais é menor que na fase Açutuba, e estes são substituídos pelas bordas
extrovertidas. A técnica e o objetivo desta extroversão são sempre os mesmos nos flanges e nos lábios
expandidos. A diferenciação entre um e outro é a alteração do volume do vaso. Os flanges labiais não
alteram o volume, enquanto os lábios expandidos sim. Há também uma recorrência de apêndices e apliques
modelados, bem como alguns exemplares de estatuetas, sempre decorados através de uma combinação
de técnicas que, assim como em Açutuba, apresenta uma grande quantidade de motivos zoomorfos, com
preferência pelas aves. Flanges mesiais são ausentes.
O engobo vermelho é muito frequente e geralmente ocorre associado a outros tipos de acabamento
decorativo. No que diz respeito às decorações incisas, aprecem em maior frequência as duplas ou múltiplas,
em geral formando motivos retilíneos e geométricos. Técnicas que deixam de aparecer por completo
são as excisões e a pintura policrômica. De fato, esta redução drástica ou completa da policromia é observada
não somente nas cerâmicas Manacapuru, em relação às anteriores Pocó-Açutuba, mas também nas cerâmicas
Caiambé do rio Solimões, próximo a Tefé (Costa, 2012). Esta redução possui um paralelo com cerâmicas
das séries Saladoide e Barrancoide do Orinoco (Figuras 7 e 8).
316
Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia • AMAZÔNIA CENTRAL
Figura 7. Cerâmicas Manacapuru da Amazônia Central (variabilidade formal).
As incisões em linhas largas e os acanalados tão comuns na fase Açutuba parecem ser substituídos pelas
incisões duplas e múltiplas. Estas últimas representariam os momentos mais antigos da fase Manacapuru.
As formas de vasos em que elas são aplicadas também mudam: uma vez que os flanges labiais não são
mais recorrentes e dão lugar aos vasos com bordas extrovertidas, essas incisões passam a ser executadas
na face externa de tigelas de contorno simples, de forma direta ou levemente expandida.
Surgem como acabamentos decorativos as técnicas de ponteado, ungulado e digitado, aplicados comumente
nos lábios, e que também são muito encontrados na fase Paredão, que sucede o conjunto Manacapuru
na Amazônia Central. Peças com o acabamento do lábio ponteado ou ungulado aparecem apenas nos
contextos mais recentes de ocupação Manacapuru, quando esta coexiste com a fase Paredão, que apresenta
o mesmo traço (Lima, 2008).
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Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia • AMAZÔNIA CENTRAL
Figura 8. Cerâmicas Manacapuru da Amazônia Central (fragmentos e variabilidade formal). Adaptado de Lima, 2008.
318
As relações entre as cerâmicas Açutuba e Manacapuru
319
encontradas na Amazônia Central. Neste caso, datações, contexto e cultura material mostram a que as
Cerâmicas Arqueológicas da Amazônia • AMAZÔNIA CENTRAL
Agradecimentos
320