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«NUNCA SE VIU UMA TERRA ASSIM. EM TRIGO MADURO ACONTECE DE TUDO».

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I

Trigo Maduro não vem no mapa, não é terra onde se passe por

acaso, nem há sequer transporte que passe por perto. A única

maneira de lá entrar consiste única e exclusivamente em imagina-la.

Imagine-se então uma pequena Aldeia Alentejana perdida na

imensidão da planície. Quando aqui se fala em pequena, quer-se

dizer mesmo pequena. Meia dúzia de ruas mal calcetadas que se

entrecruzam entre si e que conduzem todas ao mesmo lugar, o largo

da igreja, centro físico, social e económico da terra. Físico porque

fica no centro da povoação, social porque é aqui que toda a gente se

encontra e convive e económico porque é no largo que está

concentrado todo o comércio da terra. Existe aqui a taberna, a

mercearia e a barbearia.

O largo é calcetado, como de resto o são todas as ruas e contorna a

igreja que é o edifício mais alto da terra. Em redor tudo o mais são

casas baixas de um só piso, quase todas caiadas de branco com telhas

castanhas e portas de madeira tendo ainda em comum o facto de

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todas elas possuírem uma chaminé de onde nos dias frios de inverno

o fumo se eleva em direção ao céu.

A população de Trigo Maduro, cerca de duzentas almas que

diariamente por ali sobrevivem e trabalham, é maioritariamente idosa

porque os mais novos já partiram em busca de outras paragens.

Perante tão desolador cenário, somos até levados a pensar que

nesta pequena terra perdida e esquecida do interior Alentejano nunca

se passa nada digno de registo. Puro engano! Em Trigo Maduro

acontecem as coisas mais extraordinárias e bizarras que imaginar se

possam.

Por ser dos habitantes que mais cedo se levanta, o Tio Simão do

Monte foi o escolhido para nos servir de guia nesta viagem por Trigo

Maduro e arredores. O nome da terra perdeu-se no tempo, seria

preciso recuar muito nos anos ou consultar um historiador para o

descobrir, mas tudo leva a crer que tem a ver com os enormes trigais

que dantes eram semeados por toda a zona. De qualquer modo não

há agora tempo para tão complicadas pesquisas, são seis e meia da

manhã e o Tio Simão prepara-se para se levantar, não esqueçamos

que é ele quem nos vai guiar nesta viagem. Até porque gosta de sair

de casa a horas e se por acaso tiver de esperar vai ficar chateado e

mandar vir connosco. Não queremos nós que isso aconteça porque

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quando é caso disso fica casmurro, com mau feitio e depois é o cabo

dos trabalhos para falar connosco. Coisas da idade.

O Tio Simão acorda sempre às seis e meia. Meia hora antes de o

despertador tocar, esse iria sim acordar a mulher, estaria por essa

hora ele já a caminho da horta, isto se não houvesse algo ou alguém a

empata-lo como acontecia muitas vezes. Como sempre a mulher

acorda ao senti-lo sair da cama, pergunta em voz estremunhada que

diabo é que ele vai fazer para a horta aquelas horas, a pergunta de

todas as manhãs e como todas as manhãs o Tio Simão escusasse a

responder e desanda para a cozinha depois de atar os atacadores das

botas. Ele é que sabe! Se precisa de se levantar às seis e meia,

levanta-se às seis e meia e não há mais conversa. Dirige-se para o

lavatório de metal ornamentado por um pequeno espelho e enquanto

vai enxugando a cara com a toalha examina as barbas brancas que na

véspera cortara e que começavam outra vez a despontar. Fica para

amanhã, pensa enquanto passa a mão pela cara, vou mas é tratar dos

animais. Mete na cabeça o chapéu de feltro preto e dirige-se para o

quintal. Ao Setenta anos ainda é uma figura altiva, alto e magro,

veste camisa cinzenta abotoada no colarinho até ao último botão e

por cima jaqueta azul escura. Completa a indumentária com calças

cinzentas e botas grossas castanhas. Vamos apanha-lo já no quintal

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porque não se detêm enquanto lhe descrevemos o vestuário, é assim

o Tio Simão, só pára quando quer, se o conseguem acompanhar tudo

bem, quando não ficam para trás. Na mão tem agora dois baldes, um

com água e outro com ração e dirige-se para a cocheira onde a mula

castanha de olhar guloso vai lambendo os beiços á vista do petisco

matinal.

- Olá Pintada – ouvimos-lhe pela primeira vez a voz ainda meio

rouca da noite – vamos a levantar que o sol já nasce e temos muito

que andar.

Ficou a mula a deliciar-se com o pequeno-almoço, afastou-se ele

em direção ao portão que dá acesso à rua nas traseiras. Abriu o

portão de madeira e espreitou para um e outro lado da rua deserta.

Deixando o portão aberto, dirigiu-se então para uma pequena casota

de madeira na qual deu duas sonoras palmadas enquanto ia dizendo...

- Levanta-te ó Safado, queres passar o dia todo a dormir ou quê?

Um cão pequeno de pelo castanho e curto saiu da casota

bocejando. Espreguiça-se e dá um pequeno latido como quem diz

que já está acordado há muito tempo e já comia qualquer coisa.

Coçando a cabeça enquanto olha o cão, o Tio Simão vai dizendo algo

sobre os outros terem cães de guarda e a ele calhar-lhe um que se não

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for acordado dorme até ao meio-dia. Indiferente á lengalenga do

dono, o Safado voltou a bocejar.

Ainda não sabemos se o Tio Simão está nos seus dias mais

sociáveis, até agora só o ouvimos falar com os animais, pois nem

com a mulher falou. De qualquer modo não tardaremos a descobri-lo.

Já a Pintada terminou o pequeno-almoço e vem pela arreata a

caminho da carroça que se encontra na rua junto ao portão. Depois

de atrelada ainda vai ter de esperar mais um pouco enquanto o

Safado come os restos da ceia da noite anterior e o Tio Simão

prepara a bucha para o almoço.

Por esta altura o sol já nasceu e os ruídos matinais vão invadindo a

aldeia. Tomemos lugar na carroça que o Tio Simão já se prepara para

dar ordem de partida enquanto o Safado vem com ar furtivo até ao

portão e espreita para a rua. Será que o raio do gato não anda por ali?

Mau bicho aquele gato! E como ele odeia os cães. O Safado ainda

sente no focinho a arranhadela do último encontro com o bichano. E

parecia odiá-lo especialmente a ele. Bem a ele e ao Piloto que

também já tinha sentido na pele mais de uma vez as unhas do bicho.

O Piloto era maior e mais velho que ele e no entanto também tinha

medo do gato. O Safado olhou receoso para um e outro lado da rua.

Agora se lembrava que o Piloto tinha ficado de aparecer de manhã.

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Atrasado como sempre. O Safado olhou para a ponta da rua onde o

Piloto vivia. Nada, nem sinal do outro.

Já o Tio Simão subia para a carroça quando o Piloto surgiu a correr

do lado contrário de onde o Safado o esperava. Agora com o outro

ali, o Safado sente-se mais corajoso e arrancam os dois à frente da

carroça enquanto o Tio Simão dá ordem de partida á Pintada,

também ela já impaciente por se pôr a andar. Vão rangendo as rodas

enquanto o Tio Simão vai pensando que tem de lhes meter um

bocado de massa.

A rua vai dar ao largo da igreja, já sabemos que aqui todas as ruas

vão dar ao largo da igreja, o que interessa ao Tio Simão não é a

igreja mas a taberna onde todos os dias faz a primeira paragem

porque o mata-bicho não pode falhar. Não é do agrado da Pintada

aquela paragem, está desejosa de esticar as pernas e dá isso mesmo a

entender relinchando.

Impacientes por sair da Aldeia, estão também os cães que já se

encontram sentados á porta da taberna e ainda receosos que o gato

apareça por ali. A partir do momento em que saiu de casa, ao Tio

Simão acabou-lhe a pressa. Amarra as arreatas da mula às grades da

janela e dispõe-se a entrar na taberna. Entremos nós também para

tentar descobrir o que o atrai aqui.

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Á entrada é preciso afastar a fitas que impedem as moscas e outros

insetos de entrar, porque bicharada é coisa que não falta por ali,

ainda mais agora que é quase Verão. Pendurada no teto, uma velha

lâmpada onde as aranhas (vá lá saber-se como é que entraram se a

porta até fitas tem) decidiram tecer algumas teias certamente á espera

das moscas que em principio não entrarão se as fitas fizerem o seu

trabalho. De qualquer modo, a lâmpada velha ou talvez não, se calhar

são as teias de aranha que lhe dão o aspeto de velha, lá vai

iluminando o espaço de uma luz amarelada porque a outra luz, a do

dia, ainda ali não penetrou por estas horas. É suficiente para que se

possa fazer uma sumária discrição do interior da taberna, até porque

não existe ali coisa que leve muito tempo a descrever.

À direita da entrada, quatro mesas de madeira ladeadas de bancos

também eles de madeira. Na parede um único quadro representa a

equipa do Benfica num qualquer ano em que ganhou o campeonato.

Em frente o balcão, também ele de madeira e junto a este há uma

pipa com vinho e algumas grades de cerveja. Por detrás do balcão

meia dúzia de prateleiras ostentam tabaco e outras especiarias que se

esperam encontrar quando se vai a uma taberna. Em cima do balcão

do lado direito junto á parede, copos e garrafas de bebida esperam a

sua vez de serem servidos. Por debaixo, do lado de dentro, uma arca

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frigorífica vai refrescando vinho e cerveja, porque o bagaço esse

quer-se natural. E se mais mobília se esperava, bem a podemos ir

procurar noutro lugar porque mais aqui não há. O que há, isso sim,

são duas pessoas no interior quando o Tio Simão entra. O primeiro

permanecia encostado ao balcão com os cotovelos apoiados sobre

este e observava atentamente o segundo que por detrás do balcão se

encontrava completamente absorvido na delicada tarefa de verter

vinho de um garrafão para uma garrafa tentando derramar o menos

possível. Ambos viraram os olhos para a porta quando ouviram

afastar as fitas, mas voltaram rapidamente á ocupação anterior.

Aproximando-se do balcão o Tio Simão cumprimentou.

- Bom dia Isaías, bom dia Maluco como é que estão?

Concentrado em encher a garrafa o Taberneiro nem respondeu. Já o

outro a quem o Tio Simão tratara por maluco, um individuo-o de

barba e cabelos brancos com um chapéu cheio de buracos e uma

camisa amarrada com um nó na cintura endireitou-se rapidamente e

gritou...

- Há... Eu sabia! Veio ajuda-lo não? Eu sabia. Apostei com ele ta a

ouvir? Apostei com ele uma das minhas herdades – baixando a voz e

pondo a mão sobre o ombro do Tio Simão disse - esta taberna vai ser

minha.

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Deu uma gargalhada e saiu disparado da taberna enquanto o Tio

Simão encolhia os ombros. Aquele maluco não tinha emenda!

Continuava a ser dono de tudo em Trigo Maduro e arredores.

O taberneiro acabada a delicada operação e voltou-se então para o

Tio Simão.

- Bom dia Simão! Parece que espantaste o maluco.

- Ora – o tio Simão encostou-se ao balcão – foi pregar pra outra

freguesia. Dá cá o mata-bicho ó Isaías.

O taberneiro foi servindo um bagaço da garrafa que se encontrava

sobre o balcão enquanto ia perguntando.

- Já vás pra horta?

- Claro! - O Tio Simão levantou o copo – de manhã é que se

começa o dia.

- Pois é – concordou o outro – há até quem não se deite.

- Hã... – o Tio Simão bebeu o bagaço de um trago – o que é que tu

tas a dizer?

- Eu cá me entendo – resmungou o outro – nesta terra parece que

ninguém dorme de noite.

- Quer-me cá parecer ó Isaías, que não é só o outro que ta maluco.

Arranja aí mais um bagacinho que eu tenho mais que fazer.

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O outro voltou a encher o copo e ele voltou a beber de um trago.

Pagou e encaminhou-se para porta enquanto ia dizendo…

- Vou-me andando até á horta ó Isaías. Hoje vai ser um dia duro. E

tu vê lá se te animas homem.

Saiu afastando as fitas enquanto o outro ficava a resmungar. A

Pintada batia impaciente com os cascos na calçada. Sentados junto á

porta da taberna os cães davam também eles mostras de impaciência

á mistura com algum receio. Também eles queriam sair o mais

rapidamente possível da Aldeia não fosse o raio do gato aparecer por

ali. O Tio Simão olhou o sol que se ia levantando no céu. Ainda

agora nasceu e já está a aquecer. E ainda nem sequer chegou o

Verão. Montado na carroça, falou com a mula.

- Vamos embora Pintada. Vamos embora que isto hoje vai ser duro.

A Pintada não precisa que lhe indiquem o caminho. Relinchou e

iniciou a viagem apanhando a rua que saia da Aldeia em direção á

ribeira. Satisfeitos da vida, os cães tomam a dianteira.


Toino Pouca Barba já se encontra no cimo do monte desde o nascer

do sol. Dali avista-se toda a Aldeia, especialmente a saída para a

ribeira. Enquanto as ovelhas pastam, Toino observa a estrada que sai

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da povoação. Até agora nada! Até parecia que não havia alma viva

na terra. Pelo menos alma viva que se dispusesse a apanhar a estrada.

O monte ficava a meio caminho entre a Aldeia e a ribeira, quem da

primeira saísse para se dirigir á segunda, não poderia deixar de

passar por ali. No entanto... até agora nada. E logo hoje que ele não

tinha tabaco, ia pensando, que bem que havia de lhe saber agora um

cigarrinho. Até o Tio Simão que costumava andar por ali logo ao

nascer do sol hoje não aparecia. Desconsolado, Toino Pouca Barba ia

coçando a cabeça enquanto dava uma olhadela às ovelhas, mas logo

os seus olhos se voltavam outra vez para a saída da Aldeia. O sol já

nasceu há que tempos e nada, vai pensando, parece que ninguém saiu

hoje da Aldeia. Que Diabo, e ele que só podia ir á povoação ao meio-

dia, até lá um cigarrinho iria saber-lhe mesmo bem. Toino Pouca

Barba é natural de Trigo Maduro. Nasceu ali e por ali ficou. O Pai

era pastor de ovelhas na Herdade Grande e o Toino sucedeu-lhe no

ofício depois que ele faleceu. Tem Vinte e Cinco anos e dorme no

campo junto às ovelhas. À Aldeia vai duas vezes por semana, quase

sempre durante o dia fazer a barba, dar um salto a casa da Mãe para

mudar de roupa, trazer comida e ainda beber umas cervejas na

taberna. Não muitas porque a Mãe é que recebe o ordenado e pouco

dinheiro chega às mãos do Toino, só o suficiente para tabaco e pouco

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mais. Um dia deste, logo que apanhe dinheiro à mão, Toino tenciona

ir dar um passeio. Até á praia, nem mais nem menos. Ver o mar, que

dizem é tão grande como a planície. O Júlio dos Porcos até já lhe

indicou a direção, sempre a direito Toino não tem nada que enganar,

se fores nesta direção sempre a direito acabas por chegar ao mar.

Toino tentava então imaginar uma quantidade tão grande de água que

cobrisse toda a planície. Ainda por cima salgada segundo o outro

dizia. O que calhava agora bem era um cigarrinho. Voltou a olhar a

Aldeia! Parecia mesmo que havia qualquer coisa a mexer lá ao longe.

Ou seria imaginação sua? Com a mão em pala sobre os olhos

esforçou-se por tentar descortinar se o vulto se movia ou não.

Passado um minuto tinha já a certeza, a carroça do Tio Simão estava

a sair da Aldeia. Agora era necessário pensar numa maneira de

cravar um cigarro ao outro. O Tio Simão não gostava de dar tabaco,

sabia-o por experiência própria, mas se ele viesse de bom humor com

um bocado de conversa Toino tinha quase a certeza que conseguiria.

Começou pois a pensar num tema de conversa que lhe pudesse

interessar, até porque a carroça estava já a menos de trezentos metros

e os cães que vinham adiantados estavam quase a chegar junto dele.

Enquanto planeava a maneira de pedir o cigarro foi-se chegando para

junto da estrada onde a carroça iria passar. Os cães vieram cheira-lo

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e seguiram caminho. A carroça estava agora a menos de cem metros

e Toino já conseguia ver perfeitamente o Tio Simão. Como sempre

vinha a dormir, o corpo sacudido pelo balanço da carroça e a cabeça

descaída para a frente com os olhos tapados pelo chapéu. Toino

abanou a cabeça enquanto a carroça continuava a aproximar-se. Não

compreendia porque é que o outro vinha sempre a dormir. Será que

não dormia de noite? Era montar-se na carroça e o sono a dar-lhe. A

sorte dele era a mula conhecer o caminho. O melhor era fazer parar a

mula, não podia dar-se ao luxo de deixar passar o outro. Era isso que

ia fazer sim. Fazia parar a mula e depois acordava o velho.

Chegou-se pois para o meio da estrada e a mula parou ao vê-lo no

meio do caminho. Precisamente no momento em que a mula parou o

Tio Simão abriu os olhos.

- Ó Pintada, qué que se passa ai?

Só então viu o outro no meio da estrada.

- Ó Toino, o qué que tas a fazer no meio da estrada rapaz?

Toino Pouca Barba tinha o cérebro a funcionar a todo o vapor.

Precisava de arranjar uma desculpa que levasse o outro a apear-se.

Uma vez apeado seria mais fácil distrai-lo e leva-lo a puxar pelo

tabaco. E nessa altura ele não perderia a oportunidade.

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- Bom dia Tio Simão. Quer cá parecer-me que vossemecê traz aí

uma roda avariada.

Fora o melhor de que se conseguira lembrar. Podia ser que o outro

caísse.

- Ó Diabo – o Tio Simão coçava a cabeça – não há tempo nenhum

que sai da Aldeia e as rodas estavam as duas boas.

- Pois é – Toino Pouca Barba abanava a cabeça – essas coisas são

assim, numa hora estão boas e na outra já avariaram.

Tossiu para aclarar a garganta e continuou...

- As rodas então... são terríveis! Um homem pensa que estão bem e

de repente... pimba, lá salta uma.

O Tio Simão continuava hesitante em cima da carroça. Vendo que o

outro não se resolvia a descer, o Pouca Barba continuou.

- Vossemecê é que sabe, mas se calhar não era má ideia dar uma

olhadela.

O Tio Simão suspirou! Se calhar o melhor mesmo era dar uma

olhadela. Se o outro tivesse razão e houvesse uma roda frouxa era

melhor arranjá-la antes que saltasse. Levantou-se e preparou-se para

descer da carroça sem reparar no ar aliviado do outro. O Pouca Barba

sentia que a partida estava meio ganha. Quase que conseguia sentir já

o travo do fumo do cigarro que o outro lhe iria dar. Observou

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satisfeito o outro a descer devagar da carroça. A Pintada relinchava,

impaciente por seguir jornada. Os cães reparando na paragem

arrepiaram caminho e vieram investigar. O cão pastor do Pouca

Barba que os conhecia há muito tempo veio juntar-se à investigação.

Ficara-se os três ali em redor da carroça tentando descobrir a causa

da paragem.

- Diz-me cá ó Toino, – o Tio Simão já se encontrava no chão ao

lado da carroça – qual é a roda avariada?

-Esta aqui – Toino chegou-se junto á roda mais próxima – esta

parecia mesmo que vinha frouxa.

Com as duas mãos o Tio Simão tentou abanar a roda. Firme que

nem uma rocha.

Olhou para o outro enquanto ia dizendo...

- Na! Esta ta boa. Tens a certeza que era esta?

- Tenho sim Tio Simão, – afiançava o Pouca Barba – parecia que

vinha mesmo a balouçar toda. Até pensei que fosse sair antes de

chegar aqui.

Ficaram por momentos calados a olhar a roda. Depois encolhendo

os ombros o Pouca Barba avançou.

- Se calhar era dos buracos da estrada. Mas olhe vossemecê que

parecia que vinha mesmo a sair.

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O Tio Simão olhou em volta. A roda estava boa, o melhor era

seguir caminho. Olhou mais uma vez o sol no céu. Embora tenha

nascido há pouco tempo já se sente bem o calor. E ainda nem chegou

o verão.

- Bem, ó Toino, eu cá vou-me chegando para os lados da horta

antes que esteja mais calor.

Toino Pouca Barba começava a desesperar. Era preciso que o outro

não subisse já para a carroça. Só assim poderia levar avante o seu

plano.

- Ó Tio Simão, diga-me cá. Por acaso não ouviu falar na Aldeia

que tivesse acontecido alguma coisa esta noite?

Já preparado para voltar a montar o outro hesitou…

- Acontecida alguma coisa? - Voltou a olhar para o outro – qual

coisa? Eu cá não ouvi falar em nada.

- Mas alguma coisa aconteceu! - Toino Pouca Barba fez um ar

misterioso e baixando o tom de voz continuou – isto foi para aqui um

arraial a noite toda por estes campos fora.

O Tio Simão limpou o suor da testa com a palma da mão.

Afinal já não sobe para a carroça. Aproximou-se do Pouca Barba.

Este começa a ver outra vez o cigarro mais perto.

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- Tas a falar de quê rapaz? - Quase sem dar por isso o Tio Simão

baixara também o tom de voz.

- Ora Tio Simão, atão havia de tar a falar do quê? - O Pouca Barba

olhou em redor e continuou com o ar misterioso – elas esta noite

andaram por ai a noite toda. Algumas fizeram com certeza.

Vendo que a paragem estava demorada a Pintada afastou-se um

pouco e começou a petiscar a erva da beira da estrada. Os cães

desinteressaram-se também do assunto e foram investigar umas tocas

de coelhos que o cão do Pouca Barba conhecia.

- Conta-me cá isso ó Toino! - O Tio Simão afastou-se para a beira

da estrada e sentou-se num tronco que o outro usava habitualmente

como assento. O Pouca Barba sentou-se também sorrindo.

Conseguira captar a atenção do outro, agora tudo seria mais fácil.

O Tio Simão voltou a limpar o suor da testa.

- Conta cá Toino, conta.

O Pouca Barba deu uma tossidela para aclarar a garganta. Estava

no papo. Não levaria nem cinco minutos e estaria satisfeito da vida a

fumar um cigarrinho.

- Foi assim Tio Simão. Era mais ou menos meia-noite quando

acordei com o barulho das ovelhas e do cão. As ovelhas berravam

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que nem umas desgraçadas e o cão, esse então parecia que o estavam

a matar.

Fez uma pausa e pelo canto do olho observava os gestos do outro.

Não devia levar muito tempo a puxar pelo tabaco. Continuou!

- Ora bem, eu tinha deixado o lume a arder ali ao pé da porta da

cabana quando fiz o jantar, de maneira que dava ainda alguma

claridade.

- E o qué que viste? Conta Toino, conta.

- Calma Tio Simão. - O Pouca Barba continuava a observar o outro

pelo canto do olho. Será que não lhe apetecia fumar? Porque diabo é

que não puxava pelo tabaco?

- Sai para fora da cabana para junto do lume e o cão e as ovelhas

calaram-se. Dei uma vista de olhos pelas redondezas e nada. Não se

via viva alma nem se ouvia nada, de maneira que fiquei por ali a

fumar um cigarrinho. Por acaso... Até foi o último do maço!

Voltou a tossir e ajeitou-se melhor no tronco.

- Afinal não viste nada – o Tio Simão estava desiludido.

- Há, isso é que eu vi. Não tinha nem acabado o cigarro e lá

recomeçou o raio da barulheira. Primeiro do lado do barranco, um

barulho tão esquisito que até metia medo. Depois o raio das ovelhas

e do cão desataram lá outra vez com a barulheira deles e eu deixei de

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ouvir. Mas eu agora sabia que o barulho vinha do lado do barranco

por isso peguei no bordão e dirigi-me direitinho para lá. Tão certo

como eu me chamar Toino.

- E o qué que viste? - O Tio Simão bebia as palavras do outro.

Pouco á vontade, Toino mexeu-se no tronco. Pelos vistos o outro

não tencionava fumar. Ganhou coragem.

- Ó Tio Simão, por acaso não tem aí um cigarrinho? Já não fumo

desde ontem.

Fascinado com a história e temendo que ele não contasse mais, o

Tio Simão tirou o maço do bolso e estendeu-o ao outro. Com um

sorriso malicioso o Pouca Barba tirou um cigarro e devolveu o maço.

Deu uma espreitadela para o lado das ovelhas e levantando-se do

tronco exclamou!

- Olha o raio das ovelhas já lá vão a caminho da malhada. Adeus

Tio Simão, a gente depois continua a conversa.

E desandou a toda a velocidade deixando o outro espantado a olhar

para ele. Não queriam lá ver o raio do rapaz! Então não é que não

acabara de contar a coisa. O Tio Simão coçou a cabeça. Ficara

curioso com a história do outro. O Pouca Barba desaparecera já por

detrás do monte e o Tio Simão levantou-se do tronco e dirigiu-se

para a carroça. O melhor era ir andando para a horta. Mais tarde ou

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mais cedo voltaria a encontrar o Pouca Barba, ele andava sempre por

ali. Nessa altura ficaria a saber o resto da história.

Curiosa a conversa do outro com os barulhos. Já o Isaías também

estava com uma conversa estranha.

Qualquer coisa sobre ninguém dormir á noite. Será que também

tinha ouvido os barulhos?

Voltando a instalar-se em cima da carroça pegou nas arreatas e

começou a falar com a mula.

- Vamos embora Pintada. Isto hoje até parece que anda tudo

maluco. Vamos embora que o dia vai ser duro.

Dando um relincho, a Pintada recomeçou a puxar a carroça. Um

pouco mais á frente, os cães esperavam á sombra de uma azinheira.


O sol vai lançado os seus raios ardentes sobre os campos. Há anos

em que a primavera vem chuvosa mas este ano não é o caso. A

estrada por onde a Pintada agora caminha é de terra batida e começa

a levantar algum pó. O Tio Simão não se dá conta, voltou a

adormecer, tal como não se dá conta do verde dos freixeiros que ali a

trezentos metros anunciam a ribeira. Á direita e á esquerda da

estrada, há agora uma cerca de arame farpado que a acompanha

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mesmo até á ribeira e onde abelharucos de plumagem brilhante vão

pousando por entre dois voos. Os cães, sempre adiantados em relação

á carroça, já chegaram á ribeira e deliciam-se na água fresca. A

estrada desce agora em direção á ribeira e depois divide-se em duas.

A da esquerda desce a ribeira. A da direita sobe. A Pintada hesita um

pouco no cruzamento mas como o Tio Simão continua a dormir

decide-se a avançar pela da direita subindo a ribeira.

Ali perto da água e sob a ramagem das árvores, o ambiente é bem

mais fresco e agradável. A Pintada chega mesmo até junto á agua,

baixa a cabeça e bebe. Depois volta a apanhar a estrada e continua a

subir a ribeira por entre o chilrear da passarada.

- Ó Tio Simão! Ó Tio Simão, então onde é que é a volta?

O Tio Simão acordou meio atarantado. Iria jurar que alguém

chamava por ele. Olhou á volta mas as arvores e os canaviais da

margem não o deixam ver grande coisa. Já se encontra na ribeira,

nota, no entanto a mula está a seguir o caminho errado.

- Ó Tio Simão, estou aqui atrás de si.

Voltou a cabeça para trás e avistou o indivíduo que chamava por

ele. Trata-se de um indivíduo baixo, de boné na cabeça trazendo pela

trela um animal. Não se trata de um cão o animal que está preso á

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trela, nem tão pouco de um gato, trata-se sim de um porco. Não

muito grande, mas também já não é leitão.

Reconhecendo o outro o Tio Simão cumprimentou.

- Olá Júlio andas a passear o bicho?

Trata-se do Júlio dos porcos, vive num monte ali junto á Aldeia e

dedica-se á criação dos ditos cujos. Entre todos os porcos que cria, o

Júlio tem um preferido, precisamente este que traz agora pela trela. O

porco foi criado por ele a biberão depois da morte da mãe,

afeiçoaram-se um ao outro e agora para onde vai o Júlio vai o porco,

qual cão que não larga o dono.

-Andava por aqui a dar uma volta – o Júlio aproximou-se com o

porco – e comecei a ouvir uma vaca a berrar. Palavra de honra que o

animal parecia mesmo aflito. Vossemecê não ouviu?

Pergunta desnecessária claro! O Júlio dos Porcos sabia

perfeitamente que o outro vinha a dormir.

- Na! - O Tio Simão encolheu os ombros – vinha cá entretido com

os meus pensamentos.

- Há! Eu cá já dei por ai uma volta e não vi nada. Mas palavra de

honra que o bicho parecia mesmo aflito.

Precisamente nesta altura ouviu-se uma vaca a berrar logo seguido

do ladrar dos cães. O Júlio apurou o ouvido.

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- Tá a ouvir Tio Simão, eu não lhe dizia?

- É pá, – o Tio Simão olhou para a frente tentando descortinar algo

por entre o arvoredo – parece que vai para além um zaranzél

desgraçado. Ó Júlio, se calhar é melhor irmos ver o que é que se

passa.

O Júlio soltou o porco da trela enquanto o Tio Simão incentivava a

Pintada a andar para a frente em direção ao local onde se ouviam a

vaca e os cães. Não foi preciso andarem muito. Logo a seguir a uma

pequena curva havia uma clareira onde um enorme freixeiro estendia

a ramagem até á beira de um pego e foi ai que se lhes deparou o

espetáculo mais estranho a que alguma vez se lembravam de ter

assistido.

Qualquer um deles sabia que em Trigo Maduro aconteciam as

coisas mais estranhas, já tinham sido até testemunhas de algumas,

mas a uma coisa destas é que nenhum deles assistira ainda. Ficaram

os dois de boca aberta. Debaixo do freixeiro os dois cães ladravam

de cabeça no ar olhando para cima. Também o Tio Simão e o Júlio

olhavam para cima e foi o que viram no cimo do freixeiro que os

deixou de boca aberta. A origem dos berros que ouviam estava ali.

No cimo do freixeiro estava uma vaca. Nem mais nem menos. Uma

vaca leiteira branca com malhas pretas. Também os cães estavam

24
habituados a ver as vacas no chão por isso estranhavam a coisa e

ladravam. O Tio Simão foi o primeiro a reagir.

- Ó diabo! Esta agora.

O Júlio continuava de boca aberta e foi preciso o outro voltar a

falar para que ele reagisse.

- Ó Júlio, tu já viste uma coisa destas?

- Na…Ó Tio Simão…Aquilo é mesmo uma vaca não é?

- Bem… – O Tio Simão coçava a cabeça – pelo menos parece

mesmo uma! Até berra como as vacas e tudo.

- Mas, ó Tio Simão… - o Júlio continuava embasbacado - as vacas

agora sobem às árvores?

Passada a surpresa inicial o Tio Simão desceu da carroça e

aproximou-se do freixeiro mandando calar os cães.

- Pelo menos esta parece que sobe. Se calhar gosta de comer os

ramos lá de cima.

- Aí que eu não estou a gostar nada disto, - resmungou o Júlio - ó

Tio Simão, olhe que isto até parece coisa de bruxas.

- Agora que falas nisso - o Tio Simão coçava a cabeça - ouvi por ai

umas conversas esquisitas logo de manhã.

- Hã… – O outro deixou de olhar para a vaca e virou-se para ele -

que conversas?

25
- Bem, primeiro foi o Isaías na taberna a resmungar qualquer coisa

sobre ninguém dormir de noite, depois foi o Pouca Barba a dizer que

ouviu por ai barulhos esquisitos esta noite.

- Ó diabo, ó diabo - o Júlio pôs-se a andar de um lado para o outro

em passo rápido - já havia muito tempo que elas não apareciam.

Acha que foram elas que meteram a vaca lá em cima?

- Se foram elas ou não, não sei - o Tio Simão encolheu os ombros

- o que eu sei é que está aqui uma carga de trabalhos para o dono da

vaca e que se não me engano é o Miguel.

- Pois é - o Júlio observava atentamente a vaca que continuava a

berrar - Acha que devíamos avisa-lo? E se a vaca cai lá de cima?

- Na, não cai nada. As vacas não são parvas! Mas se calhar era

melhor avisarmos o Miguel.

- Olha que isto - o Júlio continuava meio apalermado - nunca

pensei ver uma coisa destas. Uma vaca em cima de uma árvore.

Olhem que isto!

- Já devias saber Júlio, – o Tio Simão sorriu – em Trigo Maduro,

tudo pode acontecer.

- Sim, eu sei… Mas uma destas, realmente nunca pensei!

Vossemecê acha que devíamos avisar o Tio Miguel?

26
- Ora – o Tio Simão sentou-se enquanto puxava de um cigarro –

não há pressa. A vaca de certeza que não foge lá de cima.

- Pois é! Aposto que ela não é capaz de descer. De qualquer

maneira, acho que devíamos avisar o dono. O que é que vossemecê

acha?

O Tio Simão continuava a olhar a vaca no cimo do freixeiro

enquanto fumava o cigarro. Bem que gostaria de saber como é que

ela lá fora parar. Acontecia realmente com cada coisa.

- O Tio Simão não viu o porco?

- Hã? - O Tio Simão estava tão entretido com os seus pensamentos

que nem ouvira o outro.

- O porco, – repetiu o Júlio – o porco desapareceu.

Tão aparvalhados tinham ficado os dois que nenhum deles dera

ainda pelo desaparecimento do porco. Este, depois que o Júlio lhe

tirara a trela, tratara de ir cumprimentar os cães seus velhos

conhecidos e passados alguns minutos desapareciam os três por entre

a vegetação da margem deixando o Júlio e o Tio Simão a olhar para a

vaca.

- Onde é que se terá metido o raio do bicho? - O Júlio olhava em

volta.

27
- Os cães também desapareceram – acrescentou o Tio Simão

olhando também á volta – hão de estar prái todos juntos em qualquer

parte – concluiu.

Precisamente por essa altura chegou até eles o ladrar dos cães á

mistura com o grunhir do porco. O ruído vinha ali de perto e os

animais pareciam excitadíssimos. Avançando por entre os juncos e as

silvas da margem rapidamente chegaram á vista dos animais. Os cães

continuavam a ladrar excitados enquanto o porco grunhia

desalmadamente enquanto esfregava o focinho no chão.

A razão de todo aquele alvoroço era um ouriço-cacheiro que

passeava junto á margem e fora surpreendido pelos cães. Ao ser

surpreendido o ouriço transformara-se numa bola e eriçara todos os

picos. Os cães, sabedores de que não lhe podiam tocar, divertiam-se

saltando á sua volta e ladrando excitados. Já o porco que nunca tinha

visto tal animal, quis participar na brincadeira e aproximando-se do

ouriço deu-lhe uma focinhada a fim de o fazer rebolar. Os grunhidos

que o Júlio e o Tio Simão tinham ouvido eram de dor e o porco

esfregava agora vigorosamente o focinho na terra numa tentativa

desesperada de fazer desaparecer a dor que os espinhos do ouriço lhe

haviam causado.

28
Quando os sentiram chegar os cães deixaram em paz o ouriço que

aproveitou de imediato para se enfiar no silvado mais próximo onde

sabia estar a salvo de chatices.

O porco continuava a queixar-se do focinho e o Júlio meteu-lhe a

trela enquanto o repreendia…

- Bem feito! Quem mandou ires meter-te com um ouriço?

- Não é lá muito esperto o teu porco – atirou o Tio Simão abanando

a cabeça.

- Ora! - O Júlio encolhia os ombros – o que é que vossemecê quer?

O bicho nunca tinha visto um ouriço e alem disso a culpa é dos cães.

Aposto que foram eles que tramaram isto tudo.

- Tá bem, Júlio, deixa lá isso agora. Vamos mas é voltar para junto

da vaca e decidir o que é que devemos fazer.

Quando chegaram á vista do freixeiro, nova surpresa os esperava.

A vaca que há momentos atrás que se encontrava no cimo, estava

agora no chão. E não só estava no chão como se afastava em direção

á Aldeia como se não fosse nada com ela ou nunca tivesse feito outra

coisa na vida senão subir às árvores.

Ficaram ambos parados sem saber o que dizer enquanto olhavam a

vaca a afastar-se. O Porco aproveitou a paragem para voltar a

esfregar o focinho no chão.

29
- Mas…esta agora! Como é que ela desceu? - O Júlio estava cada

vez mais perplexo.

- Estava á espera que nos fossemos embora – resmungou o Tio

Simão – o raio da vaca é esperta.

- Sim, mas como é que ela desceu? - Continuava a perguntar o

Júlio.

- Sei lá, – o Tio Simão coçava a cabeça – isto é tudo tão esquisito,

até parece bruxedo.

- Vossemecê acha que foram as bruxas? - O Júlio começara

subitamente a olhar em todas as direções como que temendo ver

surgir um batalhão de bruxas a qualquer momento.

- É capaz, é! - O Tio Simão baixou um pouco a voz, o que

contribuiu para inquietar ainda mais o outro – lembraste o que

aconteceu o ano passado com a burra do João da Silva?

- Lembro, lembro. - O Júlio continuava a olhar á volta -

desapareceu da cocheira durante oito dias e depois voltou a aparecer

no mesmo sítio.

- E chegaste a saber o que é que aconteceu?

- Bem…o João da Silva diz que foram as bruxas. - O Júlio falava

cada vez mais baixo – Ó Tio Simão, estava cá a pensar uma coisa, se

calhar é melhor a gente não contar nada disto na Aldeia. Se vamos

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dizer que a vaca estava lá em cima, depois vão querer saber como é

que ela subiu e como é que desceu.

O Tio Simão considerou por momentos a proposta do outro. O

Júlio não deixava de ter razão não senhor. Se fossem contar o caso,

toda a gente haveria de perguntar como é que a vaca subira e descera

e eles não saberiam responder.

- És capaz de ter razão, Júlio.

- É claro que tenho razão! - O Júlio estava firme na sua resolução –

Vossemecê faça como entender, eu cá não vou dizer nada.

- Tá bem, – anuiu o Tio Simão – o caso fica só entre nós.

- Então pronto. Agora vou-me embora.

E despedindo-se partiu em direção á Aldeia com o porco pela trela.

Este, de vez em quando fazia uma breve paragem a fim de esfregar o

focinho na terra. Enquanto fosse porco jamais voltaria a meter-se

com um ouriço.

Sentados á sombra do freixeiro os cães observavam, satisfeitos

com a partida que haviam pregado ao porco.


O Tio Simão preparava-se para continuar jornada quando ouviu uma

voz vinda de trás.

31
- Olha o Tio Simão. Que é que anda a fazer por aqui?

O Tio Simão olhou o vulto que se aproxima e rapidamente

reconhece o Manél Pardal. Fora o Júlio a partir e o Pardal a chegar.

Ainda bem que não se tinham juntado ali os dois, pensou com um

suspiro.

O Tio Simão sabia perfeitamente que as relações entre o Júlio dos

Porcos e o Manél Pardal não andavam nada boas desde o caso da

lebre. Aqueles dois tinham sido grandes amigos, mas desde o dia em

que o Pardal correra atrás dele de machado na mão, o Júlio recusava-

se a falar com o outro. O caso passara-se havia mais de um ano.

O Manél Pardal fora um dia á caça e matara uma lebre. Contente

da vida, mal chegou a casa entregou a lebre à mulher com a

recomendação de que a fizesse com feijão e anunciou que iria

convidar o Júlio para vir jantar com eles. Posto isto, foi até á taberna

onde sabia encontrar o outro. A mulher fez como ele recomendara,

esfolou a lebre e temperou-a, mas antes de a cozinhar houve uma

vizinha que bateu á porta e a mulher passou uns minutos á conversa

deixando a lebre sobre a mesa.

Quando voltou para dentro, não queria acreditar nos seus olhos. A

lebre desaparecera. O cão entrara sorrateiramente na cozinha e era

uma vez uma lebre. O desgraçado ainda se lambia quando ela entrou.

32
A mulher deitava as mãos á cabeça sem saber o que fazer. Quando o

Manél voltasse da taberna ia haver zaragata de certeza. Por menos

que aquilo já ele lhe chegara a roupa ao pelo por diversas vezes. Foi

então que teve uma ideia. Desta vez iria vingar-se.

Á hora do jantar apresentaram-se Manél Pardal e Júlio dos Porcos

prontos para o banquete de tão saboroso manjar.

- Isto não é todos os dias – gabava-se o Pardal estavam já os dois

sentados á mesa – ó mulher traz pra cá a lebre.

- Aí homem, que me esqueci que não havia vinho – acudiu a

mulher – Podias dar um salto ali á taberna.

- Ó diabo – resmungou o Pardal – por esta é que eu não esperava.

Isto sem vinho não pode ser. Ó compadre Júlio espere cinco minutos

que eu vou numa corrida ali á taberna.

Parte o Pardal á pressa a caminho da taberna e a mulher mal o

apanhou fora de casa aproxima-se do Júlio mãos na cabeça e cara de

choro.

- Aí compadre, que o meu marido ta maluco. Ele não matou lebre

nenhuma, trouxe-o cá para o matar porque julga que você é meu

amante. Aí que desgraça tão grande, ele já escondeu o machado atrás

da porta para o matar. Fuja compadre, fuja por amor de Deus.

33
Júlio dos Porcos não foi de modas. Quem era ele para duvidar do

que a comadre dizia? Se o outro estava maluco com a ciumeira, o

melhor que ele tinha a fazer era desaparecer dali e depressa.

Assim, quando o Pardal regressou da taberna encontrou a mulher

sentada á mesa sozinha e com ar desconsolado.

- Ai homem, que o nosso compadre ta maluco – anunciou ela –

então não é que pegou na lebre e fugiu?

O Pardal ficou um bocado atarantado com a notícia. Se o outro

queria a lebre porque é que não lha pedira? Roubar era feio. Pegou

no machado e saiu a correr para a rua. Avistou o outro já a chegar á

ponta da rua e pôs-se a gritar enquanto corria atrás dele...

- Ó compadre, ó compadre, deixe-me cortar ao menos a cabeça que

pertence ao caçador.

O Júlio apanhou o maior susto da sua vida ao ver o outro a acorrer

atrás dele de machado na mão e a gritar que queria cortar a cabeça.

Quanto mais o outro gritava, mais ele corria. Nessa noite não dormiu

em casa e nos dias que se seguiram ninguém o viu na Aldeia. A

mulher do Pardal acabou por lhe confessar o que realmente

acontecera á lebre, mas o mal já estava feito. Entre o Júlio e o Manél

Pardal nunca mais voltaria a haver qualquer relação de amizade e o

Júlio tratara de espalhar pela Aldeia que o outro estava maluco.

34
O Manél Parda vinha preparado para a pescaria. Trazia a cana, o

isco, o saco para o peixe e o bornal do almoço. Estava pronto para

passar ali o dia. O Tio Simão que se preparava para montar na

carroça hesitou. A pintada voltara a mordiscar a erva tenra. A partida

parecia que não era para já. Os cães voltaram á sua vida. O Tio

Simão esperou que o outro chegasse junto dele.

- Então Manél, isto é que são horas de vir á pesca?

- Ora Tio Simão, eu cá sei perfeitamente a que hora é que ele tem

fome.

O Tio Simão sabia perfeitamente ao que é que o outro se estava a

referir. Em Trigo Maduro toda a gente sabia. O Manél fizera um

juramento de que haveria de apanhar o rei dos barbos da ribeira, um

peixe que segundo ele media um metro e pesava mais de vinte

quilos. Aquilo já durava há anos, nunca ninguém fora capaz de

apanhar o rei, muito embora o Manél anunciasse orgulhosamente que

por duas vezes já estivera por um triz. Não fosse a cana dar de si, e o

rei já estaria cá fora. Quando falava no assunto, o Manél dizia

sempre que o peixe já o conhecia e que aquilo se tratava de um duelo

entre os dois.

- Vens disposto a apanhar o rei, já vi!

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- Algum dia terá de ser – Manél Pardal pousou no chão os

apetrechos – ele não pode continuar a fugir-me eternamente.

- E onde é que vai ser o sitio da pescaria hoje?

- Ali mesmo – o Manél Pardal apontava para um freixeiro pequeno

junto á margem – tenho cá a impressão que ele hoje vai passar por

aqui. É cá uma fé que eu tenho.

O Tio Simão olhou o sol no céu. Quase meio-dia, chegar á horta e

não chegar seriam horas de almoço. O melhor era ficar por ali um

bocado com o outro e aproveitar para almoçar.

- Se calhar… faço-te um bocado de companhia.

- Se quiser. Vossemecê é que sabe. Deixe-me cá armar a cana que a

gente já conversa.

Dirigiu-se com os apetrechos para debaixo do freixeiro e o Tio

Simão decidiu desatrelar a mula do carro para o animal ficar mais á

vontade. Os cães vieram investigar e ao verem a Pintada desatrelada

perceberam que a paragem ia ser demorada.

- Diz-me cá uma coisa ó Manél - O Tio Simão chegando-se junto

do outro - tu hoje ainda não viste por ai nada de estranho?

- Estranho? - O outro refletiu por alguns momentos enquanto ia

colocando o isco no anzol – Na, não vi nada. Vossemecê não me

diga que viu a vaca do Tio Miguel em cima de uma árvore.

36
O Tio Simão quase que ia caindo para trás de espanto! Como é que

o outro sabia?

Vendo a cara dele o Manél acrescentou…

- Eu também já a tenho encontrado por ai em cima das árvores.

Nunca disse nada a ninguém porque… bem, sabe como é que é… eu

já tenho fama de ser maluco, por isso…

- Então… - O Tio Simão coçava a cabeça - quer dizer que não é a

primeira vez.

- Primeira vez? Na. Só eu já a vi prái três ou quatro vezes. Nunca a

vi subir nem a descer, mas lá em cima já a vi. Onde é que ela estava

hoje?

- Aqui mesmo! - O Tio Simão apontou o freixeiro sob o qual se

encontravam.

- Não sei o que é que se passa com o animal. - O Pardal lançara o

anzol já iscado á agua e ficara a observar a boia. Voltando-se então

para o Tio Simão foi dizendo…

- O raio do bicho até parece que está embruxado. Eu cá nunca tinha

ouvido falar numa vaca que subisse às arvores.

- Pois – concordou o Tio Simão – Ó Manél, tu achas mesmo que

isto é coisa das bruxas?

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- Eu cá acho! - O Pardal acenava afirmativamente com a cabeça

enquanto continuava a observar a boia.

O Tio Simão ficou calado por instantes. Sentou-se junto á margem

e ficou também ele a observar a boia que permanecia imóvel por

sobre a água. Estava pensativo, o seu cérebro relembrava todos os

acontecimentos dessa manhã desde a conversa do Taberneiro

passando pelo encontro com o Pouca Barba e com o Júlio até á frase

do Manél Pardal «não me diga que viu a vaca do Tio Miguel em

cima de uma árvore»!

Estava a pensar se devia ou não contar ao Pardal tudo o que ouvira

nessa manhã quando o outro lhe interrompeu os pensamentos.

- Deixe lá as bruxas agora Tio Simão, elas andam lá na vida delas.

Olhe, vamos mas é comer uma bucha que isto a barriga não tem

culpa.

Dizendo isto o Pardal começou a abrir o saco onde transportava o

almoço. O Tio Simão dirigiu-se para a carroça e tirou também o saco

onde de manhã tinha metido a bucha. Solta da carroça, a Pintada

escolhia a erva mais tenra. Os cães tinham partido de novo em

exploração.

Instalaram-se então debaixo do freixeiro junto á cana de pesca. O

Pardal retirara do saco um pedaço de chouriço, pão e uma garrafa de

38
vinho. O Tio Simão por sua vez trouxera azeitonas, um pedaço de

toucinho cozido que havia sobrado do jantar do dia anterior, pão e

também uma garrafa de vinho. Principiaram a refeição com o Pardal

a olhar para a boia enquanto dizia.

- Ainda bem que vossemecê ta aqui comigo Tio Simão. Assim

pode servir de testemunha quando eu apanhar o rei. Tenho cá uma fé

que não passa de hoje.

Enquanto comia o pão com toucinho entremeado por uma ou outra

azeitona, o Tio Simão foi dizendo.

- A bem dizer, estas horas já eu devia era tár na horta, mas tive aí

uns empates logo de manhã. - Encolhendo os ombros concluiu –

enfim, não falte a saúde que hei de lá chegar.

- Nem mais nem ontem, assim mesmo é que é falar Tio Simão! - O

Pardal despachava uma dose de pão com chouriço acompanhado de

alguns goles de vinho bebidos diretamente da garrafa – mas diga-me

cá, que empates é que vossemecê teve? Quer-me cá parecer que ficou

um bocado aparvalhado com a história da vaca.

O Tio Simão contou então a conversa do Isaías Taberneiro pela

manhã e a do Pouca Barba pouco depois. Decidiu omitir o encontro

com o Júlio para não dar azo a que o outro ficasse mal disposto com

a conversa. O Pardal ouviu tudo enquanto comia e bebia sem deixar

39
de olhar a boia que teimava em continuar imóvel sobre a água. Só

depois de o outro terminar e de ter limpo a boca com as costas da

mão, deu a sua opinião.

- Bem, se o Isaías táva com essa conversa logo de manhã, ele lá

terá as suas razões. Quanto ao Pouca Barba, ele passa as noites no

campo e sabe tudo o que se passa. Se ele diz que houve arraial

durante a noite… é porque houve mesmo.

- Ó Manél, mas sabes bem que o Pouca Barba tem fama de

mentiroso. - O Tio Simão coçava a cabeça.

O Pardal fez cara de ofendido.

- Eu também tenho fama de maluco – resmungou – e isso não quer

dizer que o seja.

O Tio Simão achou melhor não continuar a levar a conversa para

aquele lado. Não queria o outro mal disposto. Ainda bem que não

falara do encontro com o Júlio.

O Manél levantava a cana e verificava o isco. Observou

atentamente a minhoca presa no anzol e decidiu substitui-la.

- Parece que não está a dar grande coisa – atirou o Tio Simão.

- Ora… – O Pardal encolheu os ombros – ele anda por ai, aposto

que já não leva muito tempo a cair.

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O Tio Simão bocejou. A barriga cheia, o vinho e o ambiente calmo

da ribeira estavam a fazer-lhe sono. O cantar da passarada embalava-

o e deu por si a cabecear por mais de uma vez. Com o Pardal estava a

passar-se o mesmo e assim depois de colocar o isco no anzol sentou-

se junto ao freixeiro encostando as costas ao tronco. Passados dois

minutos estava a ressonar. O Tio Simão reparou que o outro estava a

dormir, a seguir começou a ouvir uma cigarra que começara a cantar

ali mesmo em cima do freixeiro e adormeceu também. Os cães

apareceram cansados de correr a margem e deitaram-se á sombra. A

própria Pintada escolhera já uma sombra onde se refastelara também.


O dia de José Ribeiro, guarda-rios do Concelho, estava a correr

menos mal até avistar o chefe. Ou por outra, até o chefe o avistar a

ele. Os dias de José Ribeiro eram invariavelmente passados no

campo, percorrendo ribeiras e barrancos. Contudo, havia um dia por

semana (o pior dia da semana na sua opinião) em que se deslocava

ao escritório na Vila para o preenchimento da papelada. Primeiro,

porque não escrevia muito bem e os papéis aborreciam-no. Segundo,

porque tinha de ver o chefe e não só tinha de o ver, como tinha de o

ouvir. O chefe não gostava dele e o guarda-rios pagava-lhe na mesma

41
moeda. Toda a gente sabia do ódio de estimação existente entre os

dois, no entanto o Zé Ribeiro estava a dois anos da reforma e

ignorava pura e simplesmente as críticas e exigências do outro. A

coisa já durava havia meia dúzia de anos, desde que o chefe pensara

em o despedir para meter um familiar no lugar dele. Evidentemente

que não conseguira, o Zé Ribeiro também não era boa rês quando lhe

picava a mosca, entornara-se o caldo e andavam de candeias às

avessas desde então. No entanto, nessa manhã, as coisas tinham

corrido pior que o costume. Embora não levasse mais de dez minutos

até ao escritório, (morava na Vila) saiu de casa meia hora mais cedo

a fim de tomar o mata-bicho. Com ele levava a inseparável bicicleta

a pedal, companheira de viagem por montes e vales de todo o

Concelho, seu transporte havia mais de Trinta Anos. Quando entrou

no escritório o chefe ainda não estava, com um bocado de sorte teria

ido para uma reunião qualquer e só voltaria de tarde, por essas horas

já ele andaria no campo e assim não se encontrariam. Mas não, um

pouco antes das dez da manhã o chefe deu entrada no escritório.

Vinha besta, notava-se á distância e o Zé Ribeiro tentou passar

desapercebido por detrás da enorme secretária onde estava às voltas

com a papelada da semana interior. Não teve contudo grande sorte,

nem cinco minutos eram passados e já o outro gritava o seu nome do

42
gabinete onde se encontrava. Zé Ribeiro suspirou e largou os papéis.

O melhor era mesmo enfrentar a boi pelos cornos. Aparentando uma

calma que estava longe de sentir, entrou no gabinete e deu os bons

dias.

Da parte do outro, nem truz nem bus nem saco de palha. Ficou

imóvel olhando-o, não o convidando sequer a sentar. Sobre a

secretaria, um dossier castanho parecia aguardar que alguém lhe

pegasse. Foi isso mesmo que o chefe fez passados uns instantes. Só

então falou.

- Sabe o que contem este dossier Zé Ribeiro?

Zé Ribeiro não sabia, por isso achou escusado responder.

- Não sabe, não é verdade? - O tom de voz do chefe ia aumentando

de volume á medida que progredia na conversa que até aquela altura

não passara ainda de um monólogo – eu digo-lhe, eu digo-lhe o que

contem. Contem Trinta Anos do seu trabalho ao serviço do Estado.

Como o outro continuasse calado, o chefe atirou com o dossier por

sobre a secretaria e continuou.

- Trinta Anos, ta a perceber, trinta anos e a que é que isso se

resume? Eu digo-lhe, resume-se a meia dúzia de folhas. Que diabo é

que você andou a fazer este tempo todo?

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Por esta altura Zé Ribeiro preparava-se para responder mas o outro

continuou.

- Acabei de vir agora de uma reunião com o Sr. Diretor Geral.

Parece que lá para os lados de Trigo Maduro anda uma rebaldaria

danada. Ele é rebanhos a pastar na ribeira, ele é pessoal a cortar

arvores, é pescar sem licença, cães a caçar na ribeira e sabe Deus que

mais é que se passará por lá. Agora Zé Ribeiro, corrija-me se eu

estiver enganado, a zona de Trigo Maduro não lhe pertence a si?

Mais uma vez Zé Ribeiro ia responder e mais uma vez o outro se

adiantou.

- Como lhe disse, acabei agora de falar com o Sr. Diretor Geral e

ele é da minha opinião. A zona de Trigo Maduro precisa de um

guarda-rios com pulso, alguém novo que meta aquilo na ordem.

Por esta altura Zé Ribeiro notava estampado na cara do outro um ar

de gozo.

- Contra a minha opinião – continuou o chefe – o Sr. Diretor Geral

decidiu dar-lhe uma última oportunidade. Você tem uma semana

para meter aquilo na ordem, passado esse tempo e se a rebaldaria

continuar, pode fazer as malas porque vai ser transferido. - Nesta

altura o chefe fez um sorriso e concluiu - e eu Zé Ribeiro, vou

44
certificar-me de que você será transferido para bem longe daqui.

Agora pode ir. Tem uma semana, percebeu? Uma semana.

Zé Ribeiro saiu do gabinete sem conseguir articular uma única

palavra. Nunca pensara que as coisas chegassem aquele ponto. Então

o outro conseguira convencer o Diretor Geral a transferi-lo. A ele

que estava a dois anos da reforma e não lhe dava jeito nenhum ser

transferido sabe-se lá para onde. Bem, a semana ainda não acabara,

se a desculpa do outro era a situação em Trigo Maduro, ele Zé

Ribeiro iria meter o pessoal de Trigo Maduro na ordem. E era hoje

mesmo.

Esquecendo-se que a hora de almoço se aproximava, saltou para

cima da bicicleta que havia deixado á porta do escritório e toca a

pedalar em direção a Trigo Maduro. Se queriam guerra, ele era

Homem para eles. Iria ser uma razia. Hoje não escaparia ninguém. O

sol já estava quente no céu, mas Zé Ribeiro nem sentia o calor. Meia

hora depois de sair da Vila passou por Trigo Maduro e continuou

pedalando furiosamente em direção á ribeira. Quando chegou ao

cruzamento de estradas quedou-se indeciso entre subir ou descer a

ribeira. Precisamente por essa altura saia da ribeira um indivíduo. Zé

Ribeiro apurou o olhar. O Júlio dos porcos com um dos ditos cujos.

Ali estava a sua oportunidade. A lei proibia que se trouxessem

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animais para a ribeira. Era multa certa. Mas… que era aquilo? O

outro trazia o porco pela trela! Seria que a lei permitia que o

multasse mesmo assim? Zé Ribeiro ficou um bocado baralhado.

Entretanto o Júlio tomou a direção da Aldeia e antes que ele

decidisse algo já tinha desaparecido da sua vista. Zé Ribeiro decidiu-

se pela estrada que subia a ribeira. O Júlio viera daquele lado, era

natural que houvesse por ali mais alguém. Continuou a subir a ribeira

e nada. Não se via ninguém. O calor apertava, Zé ribeiro já o sentia,

sentia também o estômago vazio e lembrou-se do almoço que tinha

deixado na vila. Apeou-se da bicicleta e começou a caminhar

enquanto conduzia esta pela mão. Quando chegou á vista do freixeiro

grande avistou a carroça e a mula. Em cheio, pensou! Ainda ia

conseguir salvar o dia. Aproximou-se devagar e reconheceu o Tio

Simão e o Pardal que dormiam regaladamente. Ora ai estava. O

guarda-rios pigarreou para aclarar a voz e gritou…

- Que é lá isto? Então isto agora é tudo á vara larga?

O Tio Simão acordou sobressaltado o mesmo acontecendo com

Manél Pardal. Os cães que também dormiam desataram a ladrar e até

a Pintada relinchou de desagrado.

- Olha quem ele é – O Tio Simão puxou a aba do chapéu para a

testa – aproxima-te Homem, tas com medo da gente ou quê?

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Zé Ribeiro hesitava. Conhecia bem os outros, não lhe parecia nada

bem o que ia fazer, mas enfim, um homem tem que fazer aquilo que

tem que fazer e por causa de perdoar tudo é que se encontrava agora

naquela situação. Gritou para o Pardal…

- Quero ver essa licença de pesca – virando-se em seguida para o

Tio Simão perguntou – onde é que está a licença dos cães e da mula?

Vossemecê não sabe que é proibido trazer animais para a ribeira?

Os outros estavam a estranha-lo. O Zé Ribeiro não era nada

daquelas coisas. É claro que ninguém tinha ali licença nenhuma e ele

sabia-o perfeitamente. O Pardal resmungou qualquer coisa sobre o

outro estar com a telha e o Tio Simão levantou-se para olhar bem o

guarda-rios.

- Qué que se passa contigo ó Ribeiro? Tu tas bêbado ou quê?

- Bêbados estarão vocês – Zé Ribeiro tomava coragem – eu estou a

fazer o meu trabalho. Quero ver as licenças já disse. Se não tiverem

vão ser autuados.

Embora o Tio Simão estivesse a conseguir manter a calma, o

Pardal estava a perde-la rapidamente. Preparava-se para responder á

letra quando foram interrompidos por uma voz que gritava do outro

lado da estrada.

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- Qué que tão a fazer nas minhas propriedades? Isto aqui é tudo

meu! Mostrem cá a carta de circulação!

Era o maluco que dera a volta por ali e decidira mandar vir com

eles. Pela primeira vez, o Tio Simão ficou contente por ser

interrompido pelo maluco. É que o Pardal já estava a ferver e parecia

capaz de se atirar ao guarda-rios a qualquer momento.

Quem não gostou nada da interrupção foi o guarda-rios que se

virou furioso para o outro.

- Vai-te embora ó Maluco, ninguém te chamou pra aqui!

Se pensava que espantava o outro, bem enganado estava. O Maluco

limitou-se a dar uma gargalhada enquanto gritava…

- Os guarda-rios são os piores, isso é que é! Isto aqui é tudo meu,

quem é que deu ordem para circularem?

De tão furioso que estava, o guarda-rios pôs-se a andar para cá e

para lá por sobre a barreira da margem enquanto gesticulava e

gritava com o Maluco. Infelizmente para ele, chegou-se demasiado

para a margem, pôs um pé em falso e em menos tempo do que leva a

dize-lo, sentiu o terreno ceder sob os seus pés. Ainda tentou

equilibrar-se girando os braços qual moinho de vento, mas era

demasiado tarde. Deu um grito medonho e precipitou-se na água sob

o olhar surpreendido dos outros. Desapareceu e voltou a aparecer,

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gritou por socorro, engoliu uns goles de água, voltou a afundar-se e

apareceu outra vez gritando que o socorressem porque não sabia

nadar.

Na margem, os cães começaram a ladrar quando o viram cair, a

Pintada relinchava e o maluco batia palmas deliciado com o

espetáculo de ver o outro dentro de água. O Tio Simão ficou tão

surpreendido que foi incapaz de reagir e quem acabou por salvar a

situação foi o Pardal ao estender a cana de pesca para que o outro a

agarrasse puxando-o em seguida para a margem. Depois que o Pardal

o puxou até á margem, o guarda-rios quedou-se ali triste e

desalentado. Estava encharcado, cansado de se debater para não ir ao

fundo e envergonhado. Assim que recuperou um pouco de alento,

levantou-se e deitando água do fato dirigindo-se para a bicicleta,

pegou nesta e perante o olhar espantado dos outros, desapareceu pelo

mesmo caminho por onde tinha surgido.

O Pardal resmungou qualquer coisa sobre o mundo estar cheio de

mal agradecidos e resolveu que já não havia condições para

continuar a pescaria. Arrumou assim os apetrechos de pesca e

despedindo-se do Tio Simão rumou á Aldeia seguido pelo Maluco

que teimava em perguntar-lhe pela carta de circulação.

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O Tio Simão encontrou-se assim só com os animais junto á

margem da ribeira. A tarde já ia adiantada, o melhor era deixar a

visita á horta para o dia seguinte. Preparava-se então para voltar a

tomar a mula na carroça quando um ruído vindo do lado do pego o

obrigou a voltar a cabeça naquela direção. Se pensava que as

surpresas do dia tinham terminado, bem enganado estava o Tio

Simão. No instante em que virou a cabeça na direção do ruído, viu

elevar-se sobre as aguas do pego um enorme peixe (media para ai um

metro á vontade). O peixe elevou-se num salto perfeito, em seguida

pareceu ficar parado no ar a olhar para ele (o Tio Simão conseguiu

até ver-lhe os olhos) e voltou a mergulhar nas profundezas do pego

desaparecendo da sua vista.

O Tio Simão não conseguia nem fechar a boca tal era o espanto.

Que grande peixe. Afinal o Pardal tinha razão, o rei dos barbos

existia mesmo. Os cães que também tinham visto o peixe, vieram até

á margem ladrando. Agora o Tio Simão tinha uma certeza. O rei dos

barbos existia mesmo, mas o Manél Pardal jamais apanharia aquele

peixe. Era demasiado grande, não haveria certamente cana de pesca

que resistisse, era bicho para partir tudo. Parecia-lhe estar ainda a ver

o peixe parado no ar a olha-lo. Será que deveria contar aquilo a

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alguém? Tirando o Pardal seria que mais alguém já teria visto o

peixe?

A calma voltara agora á ribeira. Vendo que o peixe não voltava a

aparecer os cães desistiram de ladrar. O Tio Simão desistiu ele

também de olhar o pego e começou a engatar a mula na carroça.

Decididamente chegavam de surpresas para aquele dia, o melhor era

mesmo regressar de vez á Aldeia. A Pintada relinchou de prazer ao

pensar na ração que a esperava na cavalariça enquanto os cães mais

uma vez tomavam a dianteira desta vez em direção á Povoação. No

horizonte o sol começava a inclinar-se enquanto a tarde caia sobre o

campo. Montado na carroça e enquanto a mula arrancava, o Tio

Simão bocejou. Aquilo é que tinha sido cá um dia. Suspirou

enquanto olhava as nuvens que se levantavam do lado do por do sol.

O tempo era capaz de querer mudar. No dia seguinte teria que dar um

salto á horta! E logo pela manhã. Bocejou mais uma vez enquanto

falava com a mula…

- Vamos embora Pintada, vamos embora que amanhã o dia vai ser

duro.

Fim
Antoniogois123@hotmail.com

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