Você está na página 1de 18

“A Origem do Mundo” de Gustave Courbet: realis-

mo e erotismo
IAN PACKER

resumo O presente artigo/ensaio pretende ana- uma forma particular de expressão e de conhe-
lisar a tela L’origine du monde (“A origem do mun- cimento do homem.
do”), do pintor realista francês Gustave Courbet Se circunscrevermos nosso olhar ao desen-
(1819-1877), estabelecendo relações com seu con- volvimento da arte na civilização ocidental,
texto social e artístico. Realizada em um momento essa constituição do nu como forma artística
privilegiado da história da arte e da sociedade ociden- específica aparecerá de maneira ainda mais
tal, em que ambas se desembaraçavam de suas formas evidente, pois só por aqui as formas de repre-
tradicionais, “A origem do mundo” (1866) expressa sentação da nudez humana se organizaram em
o caráter inovador de seu tempo por meio da origi- uma verdadeira teoria do nu, a qual estabeleceu
nalidade tanto de sua forma quanto de sua temática: um conjunto claro de regras e convenções de
nela, realismo e sexualidade ocupam o centro da re- representação que deveriam orientar toda apa-
presentação artística. Tal inovação realizada pela obra rição da nudez humana, adequando-a aos mais
de Courbet é trabalhada aqui como uma peça impor- nobres ideais éticos e estéticos da arte. Por aqui,
tante do processo de formação daquilo que Foucault o corpo nu se viu freqüentemente mergulhado
chamou de “dispositivo da sexualidade”. Sustenta- em amplas narrativas míticas e religiosas, que
mos, assim, que aos saberes médico, pedagogico e o envolveram em uma trama de significados
jurídico, que nos séculos XVIII e XIX se articularam meta-históricos e sustentaram, por meio dele,
para a produção de um conhecimento sobre a sexua- determinada visão de mundo e determinados
lidade, uniu-se um saber pictórico, ou visual sobre ela, discursos sociais. Dessa forma, o gozo e o pra-
o qual reorganizou profundamente os modos como zer que no corpo têm origem e as formas e pos-
ela passaria a ser enunciada e, sobretudo, visualizada turas que ele ganha ao expressá-los se viram,
nas sociedades modernas. freqüentemente, enredados em emoções e sen-
palavras-chave Courbet. Realismo. Erotismo. sações de outra ordem, sendo investidos, por
Foucault. exemplo, do sofrimento e da piedade religiosos
e, assim, impedidos de se manifestarem per se.
1. Representações do corpo nu estão pre- No Oriente1, a nudez humana não se orga-
sentes ao longo de toda a história da arte, não nizou de tal forma específica, nem mereceu ser
havendo conceito, por mais sublime que seja, articulada em uma teoria do nu, e isso não por
que já não tenha sido por ele expresso. Nesse falta de representações ou de “ousadia” da parte
sentido, convém tentar compreender essas re- de seus artistas. Pelo contrário, por lá não fal-
presentações não apenas como um tema ou um tam retratos do corpo do homem e da mulher
veículo universal de expressão dos mais varia- despidos, alguns dos quais inclusive tornam as
dos sentimentos e emoções, mas, como nota representações ocidentais que estavam sendo
Kenneth Clark, como uma forma de arte especí- realizadas no mesmo período “inocentes” de-
fica (Clark, 1956) que, se realizando por meio mais em termos de recato e pudor (como os
de diferentes suportes – a pedra ou a tinta, o desenhos de Katsushika Hokusai e Kitagawa
fotograma ou o próprio corpo em performan- Utamaro, por exemplo). A diferença, contudo,
ce –, ultrapassa a todos eles e se constitui em parece residir na atenção que cada uma dessas

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 1-348, 2008


 | I P

tradições artísticas despendeu ao corpo, à sua ciabilidade ensejadas pelo contexto urbano e
estética e às suas qualidades, diferenças essas crescentemente industrial que se formava na
que parecem corresponder à distinção realiza- Europa, que propiciou o surgimento de novas
da por Michel Foucault entre a scientia sexualis figuras sociais (e o realocamento das antigas)
ocidental e a ars erótica oriental. Sem querer e possibilitou uma nova experiência da cidade,
entrar no mérito detalhado da argumentação cada vez mais moldada ao universo de relações
de Foucault, por demais conhecida, nos parece capitalistas, constituíam nova matéria social,
necessário dizer apenas que enquanto a scientia que exercia considerável pressão sob as formas
sexualis procurou, pelos mais diferentes e ines- de representação artística e ansiava pelo mo-
perados caminhos, falar ao máximo do sexo, a mento de adentrá-las.
ars erótica procurou, ao contrário, cultivar seu Para compreender esse processo de desman-
segredo e sua discrição, de modo que telamento do gênero do nu, é de grande utili-
dade e interesse acompanhar a argumentação
na arte erótica [...] não é por referência a uma lei desenvolvida por T. J. Clark (2004) a respei-
absoluta do permitido e do proibido, nem a um to do estranhamento que o quadro Olympia
critério de utilidade, que o prazer é levado em (“Olímpia)2 de Manet provocou no público
consideração, mas, ao contrário, em relação a si do Salão de 1865, em Paris.
mesmo: ele deve ser conhecido como prazer e,
portanto, segundo sua identidade, sua qualida- 2. Havia algo em “Olímpia” que escapava
de específica, suas reverberações no corpo e na ao campo de referências dos críticos e aman-
alma (Foucault, 1988, p. 34). tes da arte do século XIX e que lhes causava
profundo estranhamento: segundo Clark, tal se
Essa observação ganha ainda mais pertinên- devia ao tensionamento, levado a cabo por esse
cia, a nosso ver, se pensarmos no modo como quadro, das categorias do “nu” e do “despido”,
a nudez e o sexo passaram a ser representados de “cortesã” e de “prostituta” que vigoravam na
nos séculos mais recentes. Pois acontece que a sociedade francesa do segundo império.
partir do século XVIII, o campo representacio- Segundo Clark, no imaginário da sociedade
nal do nu – e a arte e seus ideais ético-morais francesa desse período havia uma distinção en-
de forma geral – sofreu sucessivos abalos, que tre a figura da prostituta e a figura da cortesã.
provocaram fissuras nos discursos artísticos so- Tal distinção era sustentada pelo cuidado de
bre a nudez que até então vinham sendo enca- não permitir que o caráter ultrajante dos mo-
pados. Os impactos do romantismo, por um dos de vida gerados pelo encontro direto entre
lado, com seu apelo à manifestação da singula- sexualidade e capital irrompesse na vida social
ridade e da vida íntima dos homens, e do ma- da burguesia francesa e se revelasse como sendo
terialismo, por outro, que desde o século XVII seu outro lado, seu contraponto. Assim, a cor-
se organizava como doutrina anti-religiosa e tesã era a figura ideal para que esse encontro
dinamizava em torno de si grandes avanços pudesse ocorrer e ser representado de maneira
científicos (Jacob, 1999), foram fundamen- ideologicamente segura. Dotada de uma beleza
tais nessa desestruturação do ideal de arte e de extraordinária, que elevava o preço de seus ser-
nudez entronizado pelas academias européias, viços e, portanto, peneirava sua clientela entre
possibilitando novas experiências estéticas e as mais importantes e ricas figuras da socieda-
a emersão de novos valores e significados na de, a cortesã rarefazia a relação mercantil entre
sociedade. Além disso, as novas formas de so- cliente e prostituta, entre capital e sexualidade,

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 169-186, 2008


“A O  M”  G C:    | 

em uma relação espetacular, de modo que cada em certa medida ameaçado por sua identidade
um desses dois termos deixava de ter relação sexual, porém no final o corpo triunfava. Para
entre si. A cortesã permitia a passagem segura dizer menos metaforicamente: a tarefa do pintor
da mulher honesta à prostituta, remediando o era construir ou negociar uma relação entre o
efeito explosivo que viria do encontro direto corpo como fato particular e excessivo – aquela
entre essas duas figuras. carne, aquele contorno, aquelas marcas da mu-
Dessa forma, o impacto que a prostituta lher moderna – e o corpo como signo, formal e
Olímpia de Manet provocou no Salão de 1865 generalizado, concebido como emblema de se-
deve-se, segundo Clark, ao fato de que ela in- renidade e satisfação. O desejo aparecia no nu,
formava ao espectador qual era sua posição e mas era mostrado deslocado, personificado, não
sua função na sociedade francesa, qual era seu mais um atributo da mulher sem roupa (Clark,
interesse, o que lhe motivava, dando-lhe subsí- 2004, p. 184).
dios para imaginar em que situação ela estava
envolvida, que cena havia precedido ou iria su- Assim, continua Clark, a nudez era fre-
ceder àquela que se podia ver. Tal impacto não qüentemente encenada por meio de ações, sig-
se devia, contudo, apenas ao tema da tela, já nificados e atributos exteriores a ela, de forma
que a prostituição também figurava em telas de que sua força sexual era diluída e direcionada
outros pintores do mesmo período e mesmo de para o ideal ético-moral que a pintura tinha
pintores posteriores a Manet, mas pela forma como função transmitir. Um pouco a manei-
com que Manet o trabalhou, expressando, por ra da Liberdade, no célebre quadro de Eugène
meio da própria nudez de Olímpia, sua origem Delacroix, La liberté guidant le peuple (“A li-
social. berdade guiando o povo”, de 1830), a nudez
É nesse ponto que Clark discorre a respeito estava sempre envolvida em uma narrativa,
da fragmentação que o gênero de pintura do tornando-se uma alegoria de si mesmo, sem
nu estava sofrendo ao longo do século XIX e qualquer referência aos modos reais pelos quais
que sua argumentação é de grande interesse e existia no mundo e às maneiras pelas quais ela
proveito para a compreensão de “A origem do podia ser realmente experimentada. O que dela
mundo”, sobretudo se pensarmos que a dife- se encontra no padrão de representação susten-
rença de datas entre a tela de Manet (1865) e a tado pela teoria do nu
de Courbet (1866) é de apenas um ano. Segun-
do ele, a maioria dos artistas sabia que o moti- é um corpo dirigido ao espectador franca e di-
vo e o apelo da pintura de nus era francamente retamente, mas em grande medida generalizado
erótico, de modo que na forma, arranjado num esquema complexo e
visível de rimas, expurgado de particularidades,
o desejo nunca esteve ausente do nu, e o gênero oferecido como uma versão livre, mas respeito-
oferecia varias figuras nas quais o primeiro podia sa, dos modelos corretos, aqueles que melhor
ser representado: como uma demanda animal enunciam a natureza (Clark, 2004, p.185).
emergindo em uma forma meio humana, meio
caprina; ou, como Eros, guia enamorado que re- O gênero funcionava, assim, para conciliar
presentava o desejo do homem e a desejabilida- o conflito entre a nudez e o prazer sexual, como
de da mulher. Mas o propósito principal do nu verdadeira antítese ao sexo.
era estabelecer uma distinção entre essas figuras Ora, não é difícil de compreender o estrago
e a nudez em si: o corpo era acompanhado e que a “Olímpia” de Manet fez sobre essa tradi-

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 169-186, 2008


 | I P

ção: com seu olhar fixo no espectador, infor- como uma vitória contra a hipocrisia e o pu-
mando ter consciência dos motivos sexuais dos dor da burguesia, mas como um momento de
olhares que lhes são dirigidos, com sua pilosi- rearticulação do campo discursivo que forma
dade razoavelmente exposta, com sua mão es- a vida social, como um momento de reorgani-
condendo seu sexo e, portanto, declarando que zação dos discursos e dos contra-discursos, dos
ele estava lá. Segundo Clark, Manet figurou em silêncios e dos ruídos, no qual a pintura – dir-
seu quadro não somente uma prostituta; por se-ia melhor, a imagem, a representação imagé-
meio dela, refez as categorias básicas do nu e tica – começava também ela a se tornar uma
da nudez, tornando a sexualidade constitutiva parte importante na elaboração de uma forma
do corpo da mulher, algo que podia ser lido de saber a respeito da sexualidade.
em seu próprio corpo e dentro dele. “Olímpia”
podia ser vista como uma cortesã nua, mas de 3. Retomando do ponto em que paramos
dentro de sua figura pulsava e pressionava a fi- no fim do item 1, e à luz do que expusemos
gura de uma prostituta despida, que promovia o no item 2, gostaríamos agora de nos refe-
encontro da sexualidade e do capital não mais rir especificamente a produção artística de
em um reino abstrato, mas na materialidade de Courbet, escrevendo algumas palavras acerca
seu corpo, como fatores determinantes de sua de seu Realismo.
formação. A narrativa interna do quadro passa- Ponto de chegada da tradição artística do
va a ser o próprio corpo nu. século XVIII, notadamente do Romantismo, e
As formas tradicionais de representação do ponto de partida do modernismo das décadas
nu estavam sendo, assim, fortemente abaladas, de 1870, 1880 e 1890, o Realismo de Courbet
com sua gradativa desintegração apontando configura-se como um momento privilegiado
diretamente para a emersão da sexualidade no da história da Arte, quando esta toma signi-
corpo, no campo de representação visual e na ficativa distância do campo do pensamento
organização da vida social. Se, segundo Clark, abstrato, organizado em torno das narrativas
o nu constituiu uma forma importante – e uma religiosas e meta-históricas, e passa a represen-
das poucas – de aparição do sexo na história da tar – e, sobretudo, a abordar – de maneira mais
arte, sendo o lugar onde o corpo foi revelado, enfática a realidade que a cerca.
recebeu seus atributos e foi submetido à or- Desde sua juventude preocupado com os
dem e percebido como não problemático, não destinos políticos de sua época, republicano
se pode deixar de ter em vista que a partir do convicto e entusiasta da revolução de 1848 e
século XIX ele passa a ser problematizado e a da Comuna de Paris (1871), Courbet incor-
aparecer de diferentes formas, de modo que sua porou bem em sua arte o gosto romântico
sintonia com as outras formas de visibilidade e pela representação do regional, do popular, do
invisibilidade dadas à sexualidade no período homem simples, valendo-se, principalmente,
(e que foram descritas por Foucault) pode ser da paisagem natural e humana que podia en-
investigada – a emergência de uma temática e contrar em sua terra natal, Ornans. A primei-
de uma forma francamente sexual e sexualizada ra fase de sua produção artística é marcada,
de representação do corpo ao longo do sécu- assim, pela realização de grandes telas em que,
lo XIX, correspondendo à própria formação ao contrário das grandes figuras e dos grandes
do dispositivo da sexualidade que o filósofo feitos históricos a quem geralmente elas eram
francês tratou de descrever. A desintegração do reservadas pela academia, viam-se camponeses
nu não deve ser vista, portanto, simplesmente em atitudes banais do cotidiano, a maioria das

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 169-186, 2008


“A O  M”  G C:    | 

vezes em poses nada heróicas ou extravagantes, particular, não podem ser vistos como sim-
mas simples e estáticas, como se fossem figuras ples expressão da habilidade do artista em
vazias. São dessa fase L’enterrement à Ornans representar de maneira mais ou menos deta-
(“Enterro em Ornans”, de 1849-1850) e Les lhada e fiel o que ele tem diante dos olhos,
casseurs de pierre (“Os britadores de pedra”, mas, ao contrário, como uma construção
1849), telas pelas quais sua arte conquistou que busca provocar um efeito de real (Fried,
grande reputação, mas também foi acusada 1990). De fato, se repararmos no quadro
de ser excessivamente conjuntural, de tomar, que Courbet está pintando ao centro da tela
freqüentemente, a parte pelo todo. Os críticos “O Ateliê”, verificaremos que ele pinta uma
e os biógrafos de Courbet afirmam, de ma- paisagem – gênero classicamente tido como
neira quase consensual, que a tela L’Atelier du dependente de uma observação fiel, precisa
peintre (“O Ateliê do pintor”, 1855) constitui e detalhada da realidade –, sem que para tal
um exemplo bem acabado da primeira fase da se encontre realmente face a ela. Com isso,
obra do pintor francês, interpretação, aliás, Courbet parece sugerir que pinta a paisagem
que parece ser sugerida pelo próprio artista, de memória, ou que a está inventando no
ao ter colocado como subtítulo dessa tela a preciso momento em que a executa, e que
frase Allégorie réelle déterminant une phase de a inspiração, assim, vem antes de sua ima-
sept années de ma vie artistique et morale (“Ale- ginação do que da observação que ele tem a
goria real de sete anos de minha vida artística frente de si. Segundo Fried, esse aspecto ima-
e moral”). Não entraremos aqui no mérito de ginativo do Realismo de Courbet parece ter
uma análise pormenorizada dessa tela tão rica escapado mesmo a Baudelaire que, em 1850,
em personagens, objetos e detalhes, e que já o acusou de estar arrasando com o exercício
foi bem trabalhada e discutida pelos críticos imaginativo da arte com o seu realismo.
e admiradores da obra de Courbet, sem que É interessante dar breves notícias aqui a
qualquer um deles tenha chegado a alguma respeito do amplo processo histórico e artísti-
interpretação definitiva. Nós nos limitaremos co em que Fried insere o Realismo de Courbet
a fazer, a partir dela, apenas alguns comentá- e a partir do qual ele procura compreender
rios que, a nosso ver, oferecem as linhas gerais sua obra. Isso porque partilhamos de sua opi-
dentro das quais pode ser compreendido o nião e acreditamos que ela nos será proveito-
Realismo de Courbet. sa quando nos detivermos mais atentamente
Como o subtítulo do quadro sugere, o sobre “A origem do mundo”. Segundo Fried,
Realismo de Courbet é alegórico, suas telas a tradição artística francesa, desde Diderot,
organizam-se como metáforas de sentidos se emprenhou em desmontar e banir da arte
e de significados que se encontram alhures, aquilo que o crítico francês chamou de teatro
fora das quatro linhas de cada uma de suas e teatralidade da obra de arte. Para Diderot, a
telas – ou entre elas –, não esperando dos es- obra de arte deveria parar de apresentar suas
pectadores uma adesão irrefletida à positivi- figuras atuando como se estivessem na au-
dade da imagem retratada, mas, antes, como sência de qualquer observador. Ao contrário,
disse Michael Fried em uma afirmação um deveriam instituir a posição do espectador,
tanto benjaminiana, uma leitura “contrária a tornando-o uma força ativa e participativa da
fibra do conteúdo ostentado”3 (Fried, 1990, obra. Segundo Fried, com isso Diderot tor-
p. 3). Segundo Fried, a pintura realista, de nou a absorção do observador pela pintura
forma geral, e o Realismo de Courbet, em algo crítico, que deveria ser problematizado

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 169-186, 2008


 | I P

e elaborado por toda produção artística pos- Para Nochlin, assim, o vanguardismo de
terior. Na leitura de Fried, Courbet constitui Courbet está no fato de ele desvincular sua
precisamente o ponto de realização efetiva obra das grandes narrativas religiosas e his-
desse ataque de Diderot à teatralidade da obra tóricas, apresentando-se, ao contrário, como
de arte, na medida em que suas pinturas efe- um pintor particular, dotado de um interes-
tuam importante deslocamento na concepção se particular – a concretude da experiência do
acadêmica da obra de arte como fato moral – mundo que o cerca –, particularidades estas
que absorve a realidade em detrimento de um que o tornam, segundo ela, o primeiro pin-
ideal ético-estético – e inscrevem-se na reali- tor eminentemente político da história da arte
dade, tornando-se um fato político. (Nochlin, 1989).
Essa argumentação de Fried nos parece No que se refere a essa postura política da
extremamente interessante, ainda por possuir obra de Courbet, é interessante notar como
importantes pontos de contato com as análi- alguns contemporâneos seus o acusaram de,
ses desenvolvidas por Linda Nochlin a respei- a partir dos anos 50, com o fracasso da Re-
to da obra Courbet. Segundo ela, volução de 48, ter imprimido um caráter re-
signado a suas telas, deixando de representar
certamente o pintor que mais encarna as implica- a atividade e a vida cotidiana dos trabalhado-
ções duais – tanto política, quanto artisticamente res e camponeses para voltar-se para a reali-
progressivas – do uso original do termo “avant- zação de retratos da natureza – landscapes e
garde” é Gustave Courbet e seu combativo e ra- still-livings – e de mulheres nuas. As obras de
dical Realismo. “O Realismo”, Courbet declarava sua segunda fase chegaram mesmo a ter seu
ostensivamente, “é a democracia na arte”. (No- significado vulgarmente politizado por seus
chlin, 1989, p. 12) admiradores e companheiros que, com isso,
queriam defender Courbet das acusações que
Ainda segundo Nochlin, Courbet sofria e manter sua obra em sintonia – ain-
da que de forma instrumentalizada – com o
viu seu destino como uma contínua ação de van- cenário político do momento. Como conta
guarda contra as forças do academicismo na arte Thierry Savatier (2006), seu grande amigo,
e do conservadorismo na sociedade. Longe de ser entusiasta e conterrâneo Pierre-Joseph Prou-
um tratado abstrato sobre as últimas idéias so- dhon, por exemplo, insistiu em ver em Vê-
ciais de seu tempo (...), [sua obra] é um emblema nus et Psyché (“Vênus e Psique”) “a sátira das
concreto a respeito do que o fazer artístico e a abominações de seu tempo”5, um ataque ao
natureza da sociedade são para o artista realista. suposto estado de licenciosidade e imoralida-
É através de Courbet que todas as figuras parti- de em que viviam as classes altas francesas, ao
cipam da vida do mundo pictórico, sendo todas invés de ver nessa tela um ataque a própria
elas relacionadas à experiência direta; elas não idéia de moralidade – o que parece estar mais
são abstrações tradicionais como a Verdade ou próximo do projeto de Courbet. Esse comen-
a Imortalidade, nem são lugares comuns como tário de Proudhon, segundo Savatier, indica o
o Espírito da Eletricidade ou do Telégrafo. É, quanto o espírito revolucionário e a burguesia
ao contrário, sua concretude que lhes dá credi- reacionária do período se encontravam no ter-
bilidade e convicção (...), a qual, além disso, as reno da ordem moral6, e o quanto a temática
amarra indissoluvelmente a um momento parti- da segunda fase de Courbet seria necessaria-
cular da história (Nochlin, 1989, p. 12)4. mente mal-compreendida por ambos.

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 169-186, 2008


“A O  M”  G C:    | 

Tendo isso em vista, é sobre essa segunda o motivo da exaustão das duas jovens moças
fase da obra de Courbet que nos deteremos e o que as faz dormir um sono tão profun-
mais atentamente a partir de agora, sobretudo do: o desejo sexual. Tal impressão também se
sobre as telas que tematizam, de uma forma ou produz quando inserimos as telas de Courbet
de outra, a nudez e a sexualidade. no conjunto das representações de erotismo
que povoaram a imaginação do século XVIII
4. É interessante seguir a explicação que Sa- e XIX. Um exemplo desse notável desenreda-
vatier (2006) oferece para a suposta mudança mento gradativo da sexualidade e do desejo
temática das obras de Courbet a partir dos anos na produção artística do período é fornecido
60. Segundo ele, parte dessa mudança pode ser por Savatier na comparação que realiza entre
pensada a partir de uma sutil coincidência: o mesmo “As dorminhocas” e a escultura Fem-
me piquée par un serpent (“Mulher picada pela
Ora, diz ele, Proudhon morreu em 1865 e a serpente”, de 1847), de Auguste Clésinger. Se-
concordância de datas abre uma perspectiva: sua gundo Savatier, a presença da serpente nessa
morte poderia ter, de alguma forma, libertado obra serve apenas para disfarçar a verdadeira
Courbet de uma patronagem obstruidora e pu- causa da contorção do corpo da mulher, que
dibunda (Savatier, 2006, p. 68)7. deixa de ser uma manifestação do prazer sexual
que o percorre para se tornar expressão do efei-
Dessa forma, as telas dos anos 60 em diante to doloroso do veneno que entra em suas veias.
podem ser compreendidas como oriundas de Contrariamente a esse disfarce, segundo ele, o
uma liberdade de criação que o artista conhe- colar de pérolas quebrado que vemos próxi-
ceu com a morte de seu amigo, pela qual pôde mo ao corpo das amantes na tela de Courbet
desvincular sua obra da cena política e da at- atua como uma espécie de anti-serpente: não
mosfera ideológica do período e passar a reali- disfarça, mas reforça o motivo sexual da cena,
zar uma outra leitura do mundo, ainda política sendo o próprio símbolo da atração sexual e
à sua maneira. da distensão, do apaziguamento, que se segue
Mas passemos às telas. Podemos acompa- à sua satisfação. O sentido sexual do quadro
nhar ao longo das telas de Courbet em que pode ser apreendido ainda se comparamos a
figuram mulheres nuas e seminuas uma grada- cena lésbica que ele retrata ao conjunto das
tiva explicitação do motivo sexual que parece representações do amor entre mulheres que
as envolver. Se passamos de Les baigneuses (“As foram realizadas no período anterior – e mes-
banhistas”, de 1853) a “Vênus e Psique”, e des- mo posterior – a Courbet. Segundo Kosinsky,
ta para Les dormeuses (“As dorminhocas”8, de “As dorminhocas” deve ser visto como uma
1866), vemos como se torna cada vez mais cla- interpretação realista do tema lésbico que está
ro a presença de um desejo sexual constituin- implícito no mito de Diana, um tema freqüen-
do a narrativa da tela. Aquilo que está latente temente trabalhado nos séculos XVIII e XIX.
nas duas figuras femininas do primeiro qua- François Boucher, por exemplo, criou belas te-
dro, mais ainda enredado no tema do banho, las a respeito desse mito, como Diane sortant
torna-se mais aparente na postura de “Vênus du bain (“Diana saindo do banho”, de 1742),
e Psique”, para ser finalmente formulado por Diane après la chasse (“Diana depois da caça”,
meio do abraço íntimo e apertado das duas de 1745) e Jupiter déguisé en Diane et Callisto
jovens moças do quadro de 1866. Nesse úl- (“Júpiter disfarçado como Diana e Calisto”, de
timo quadro, é inescapável compreender qual 1759). Outro pintor que representou o tema

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 169-186, 2008


 | I P

do lesbianismo foi Toulouse-Lautrec, como na os de caráter erótico e pornográfico –, a qual ele


tela L’abandon ou Les deux amies (“O abando- se liga de maneira positiva.
no ou As duas amigas”, de 1895), em que o
erotismo que envolve as mulheres é claramen- 5. É fundamental conhecer as represen-
te tematizado, ainda que de maneira discreta. tações gráficas populares que circulavam na
Frente a esses quadros, no entanto, “Vênus e França, pré e pós-revolucionária, para que seja
Psique” e “As dorminhocas” são evidentemente possível compreender a maneira como se orga-
mais enfáticos no tratamento do desejo sexual. nizava o imaginário do país naquele momento
Neles, Courbet submergiu a narrativa mito- (bem como as mudanças pelas quais ele pas-
lógica, não apresentando pictoricamente, no sava) e o campo representacional possível em
que se refere ao primeiro desses quadros, por que estava inserido Courbet. No que se refere
exemplo, nenhuma referência à ira ciumenta a produção artística de Courbet, é conhecido o
de Vênus causada pela beleza de Psique, como quanto ela foi influenciada pelo “popular ima-
era dito no mito. Na verdade, a referência mi- gery” – para a usar a expressão do célebre artigo
tológica presente somente em seu título deve de Shapiro (1990) – do período. Shapiro mos-
ser entendida assim como a serpente na escul- trou como a tela Les paysans de Flagey revenant
tura de Clésinger, ainda como uma camufla- de la foire (“Camponeses de Flagery regressando
gem, da qual as amantes de “As dorminhocas” da feira”, de 1850) deve muito de sua compo-
se livrarão totalmente pouco tempo depois. sição a algumas gravuras que circulavam entre
Vemos, assim, como as telas de Courbet, os camponeses franceses no período, as quais
a exemplo da “Olímpia” de Manet, partici- Courbet usou como modelo. Também Savatier
pam do movimento de desintegração do nu e Kosinsky demonstram como para a tela “As
nas artes visuais, tensionando cada um dos dorminhocas” Courbet se inspirou em uma li-
elementos prescritos pela academia para a re- tografia de Achille Deveria de 1837, “Minda e
presentação do nu e suprimindo-os gradual- Brenda”, que havia sido realizada para ilustrar
mente, de modo que o desejo sexual passou o romance de W. Scott, “O pirata”.
cada vez mais a habitar os corpos representa- Nesse sentido, um reservatório especial de
dos e a sexualidade a se desenredar – das redes representações, realizadas muitas vezes por ar-
e do enredo que classicamente as envolviam –, tistas menores e gravuristas, que parecem ter
sendo abordada sem subterfúgios, em um mo- exercido considerável influência em Courbet e
vimento que terá um momento especial em “A suas telas sobre nudez, pode ser encontrado nas
origem do mundo”. Convém notar, contudo, páginas dos romances libertinos e pornográfi-
antes de passarmos finalmente a essa tela, e cos que circulavam pela Europa, tais como os
a fim de chegar a ela com mais propriedade, de Restif de la Bretonne e do Marquês de Sade,
que esse processo não se organiza apenas de em que – e com isso já começamos a entrar no
forma negativa, como se seu desenvolvimento mérito de “A origem do mundo” – a “vulgari-
fosse dependente apenas do fracasso da teoria dade”, o “baixo calão” e o “mau gosto” no trato
acadêmica do nu em zelar por seus padrões de do sexo, da sexualidade e do corpo, já vinham
representação e suas convenções e de sua grada- sendo ensaiados. Com efeito, as gravuras9 que
tiva desintegração. Ao contrário, ele se inspira ilustravam esses romances pornográficos pare-
também em uma outra tradição representati- cem ter usufruído uma liberdade de represen-
va, a das gravuras que ilustravam os folhetins, tação da sexualidade que a pintura demorou a
as revistas e os jornais populares – sobretudo conquistar. Nelas, abundavam representações

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 169-186, 2008


“A O  M”  G C:    | 

de relações sexuais, de genitálias em pleno uso provava que seus filhos eram de fato filhos do
e ação, e expressões de um desejo sexual carnal rei. Assim, a literatura libertina desempenhou
e livre de qualquer amarra moral. Isso se deveu, um importante papel no sentido de acusar a de-
em parte, à liberdade que a própria linguagem cadência moral da corte que os revolucionários
literária dessa época conheceu, a tal ponto de queriam erradicar. Além disso, ao representar os
ter originado um gênero propriamente erótico políticos, intelectuais e religiosos franceses em
e pornográfico, dotado de um razoável público poses extravagantes ou tendo relações sexuais,
leitor. As gravuras que estampavam as páginas muitas vezes com membros de todas as classes
desses romances participavam, assim, dessa li- sociais, acabavam por secularizar o corpo dos
berdade, já que tinham a função de materia- soberanos da nação, de forma que não apenas
lizar aos leitores as cenas que eram descritas, degradavam a realeza, mas elevavam o homem
de modo que eles pudessem apreciá-las com comum.
os olhos e não apenas com a imaginação. Se é
certo que a qualidade artística dessas gravuras Na nova ordem revolucionária, todos os políti-
era, na maior parte das vezes, desprezível, em cos descobriram que sua conduta estava sujeita à
razão da própria subsunção dessa linguagem crítica e ao escrutínio, e que a sátira pornográfi-
pictórica à linguagem literária que a envolvia ca fazia parte de uma insistência sobre a transpa-
e orientava, não se pode negar, contudo, que rência, a publicidade ou a sinceridade da prática
elas tiveram uma importância crucial para as política (Hunt, 1999, p. 360).
transformações que acometeram as formas
mais altas de representação artística posterior- Passado o período revolucionário, contudo,
mente, constituindo um primeiro exercício de a pornografia encaminhou-se para uma sensível
representação de uma determinada temática e despolitização, na medida em que perdeu um
de determinados valores que viriam penetrar foco político claro e passou a ter como função
com grande força na vida social e na economia provocar o escândalo e a excitação sexual. Se-
visual dos séculos XIX e XX. gundo Hunt, nesse período a pornografia teria
No que se refere ao impacto dessas represen- se autonomizado da filosofia e da política, já
tações na vida social, Lynn Hunt, em interessan- que agora ela “podia ser lucrativa”, não haven-
te artigo intitulado “A pornografia e a Revolução do “necessidade de outra justificativa” (Hunt,
Francesa” (Hunt, 1999), discorre sobre o efeito 1999, p. 363) para se manter.
político da pornografia durante a Revolução É dentro desse contexto político e cultural
Francesa. Segundo ela, enquanto até meados do que se desenvolveu a obra de Gustave Courbet.
século XVII os textos pornográficos dedicavam- É improvável, assim, que não tivesse conheci-
se a contar a vida perniciosa que levavam as pros- mento desses romances e desses retratos por-
titutas, a partir dessa data se tornaram uma forma nográficos, e que não tivesse se inspirado neles,
de ataque à vida de luxúria, licenciosidade e de- mais de uma vez, na elaboração de suas telas.
pravação que levavam os membros da nobreza Ainda que o tema e o enquadramento de “A
francesa, alvejando as principais figuras políticas origem do mundo” não tenha um precedente
da época. A própria rainha Maria Antonieta pas- preciso em telas ou gravuras anteriores – o que
sou a figurar como personagem nesses romances, leva Savatier a dizer que esse quadro é órfão de
sendo acusada de ter hábitos sexuais desregrados fonte artística, ao contrário da Olímpia de Ma-
e de, portanto, ser incapaz de garantir a legitimi- net, que tem ascendência inegável na La Veneri
dade do herdeiro do trono francês, já que nada di Urbino (“A Vênus de Urbino”, de 1538) de

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 169-186, 2008


 | I P

Ticiano –, pois ela representa o sexo feminino tecido branco. Pode-se dizer que a composição,
em estado bruto e libertado de qualquer ação de maneira esquemática, é composta por três
ou narrativa, não se pode negar que muito de triângulos: um, formado pela maneira como
sua liberdade criativa se deva a essa tradição e o corpo está posicionado; outro, formado pela
a essa atmosfera pornográfica que se formou vagina e pelos pêlos púbicos da mulher; e um
ao longo dos séculos precedentes. Nesse sen- terceiro, formado por um triângulo negro situ-
tido, se não podemos apontar com exatidão ado no canto superior direito do quadro, que
os elementos dessa tradição que Courbet teria dá a impressão da mulher se encontrar em um
aproveitado diretamente na composição de “A ambiente escuro. Isso se virmos a tela somente
origem do mundo”, há, contudo, um aspec- em sua primeira dimensão. Em duas dimensões,
to que a nosso ver é inegavelmente devedor percebemos que o corpo é composto a partir de
a ela. Era freqüente, nessas gravuras, a apre- formas ligeiramente arredondadas, assim como
sentação de cenas de voyerismo, em que uma o pano sobre o qual ela está deitada, que se apre-
figura espionava a intimidade de uma ou vá- senta com diversas dobras. Predominam cores
rias outras sem que ela(s) percebesse(m), seja sóbrias: o preto, o branco e o cinza, o tom de
levantando uma saia, seja escondendo-se atrás pele. Mas podemos reparar que os lábios vaginais
de uma parede, de forma que por meio delas e o mamilo – o sexo, em suma – são pintados em
instituía-se uma determinada relação entre ob- vermelho escarlate, de modo que destoam um
servado e observador, uma determinada relação pouco do conjunto e realçam seu motivo.
de visibilidade. Ora, nos parece que “A origem A pose da mulher suscita uma impressão
do mundo”, com sua exposição franca do sexo monumental. Se organiza como um trapézio
feminino, não faz mais que radicalizar essa rela- e seu ventre se lança em direção ao especta-
ção, deslocando-a do interior da tela para o ex- dor de maneira oferecida ao olhar, disponível,
terior, abrindo-a para o espectador, tornando-o provocante. Frente a ele, é difícil não se sentir
ele próprio o observador da cena indiscreta – o constrangido, em uma situação embaraçosa. A
voyeur. Esse argumento ganha um sentido mais célebre descrição que o crítico Marcel Du Camp
profundo se levarmos em conta a interpretação fez dele em fins do século XIX, quando o viu
do Realismo de Courbet oferecida por Fried, na casa do diplomata egípcio Khalil-Bey, seu
da qual demos notícias acima: “A origem do primeiro proprietário, é um ótimo testemunho
mundo” está, assim, inteiramente voltada para do efeito que o quadro provoca no espectador
o espectador, ela sabe de sua presença e o provo- e da dificuldade que se tem em descrevê-lo sem
ca, não havendo nenhum elemento pictórico perder a discrição:
que o absorva ou anule.
Passemos à tela. Quando se afastava o véu, ficava-se estupefato
ao perceber uma mulher em tamanho natural,
6. “A origem do mundo” é uma tela pe- vista de frente, emocionada e convulsiva, nota-
quena. Mede apenas 55 cm por 46 cm. Qua- velmente pintada, reproduzida con amore, como
se a totalidade da tela é ocupada pelo corpo de dizem os italianos, e dando a primeira palavra
uma mulher que, de pernas abertas, deixa ver do realismo. Mas, por um inconcebível esqueci-
seu sexo de maneira plena. A representação não mento, o artista que copiou seu modelo ao na-
nos permite conhecer o rosto da mulher, mas tural, havia negligenciado de apresentar os pés,
apenas parte de suas coxas, sua barriga e um de as pernas, as coxas, o ventre, o quadril, o busto,
seus seios, estando o outro encoberto por um as mãos, os braços, os ombros, o pescoço e a

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 169-186, 2008


“A O  M”  G C:    | 

cabeça (Marcel Du Camp apud Savatier, 2006, alizados, que acabavam por torná-la impossí-
p. 72)10. vel de ser desejada concreta e individualmente,
na tela de Courbet essa nudez foi materializa-
Como se nota, a tela é definida pelo críti- da em seus mínimos detalhes, em sua – com
co pela negativa, por tudo aquilo que ela não o perdão da feia palavra – carnosidade. Como
representa, pelas ausências que a marcam, não afirma Michel Haddad,
sendo enunciado em nenhum momento qual é
o seu real sujeito: a nudez escancarada da mu- suprimindo com um traço genial o rosto desse
lher, composta como uma “espécie de Giocon- corpo, Courbet quebrou o efeito pornográfico
da com um sorriso vertical”11. para alcançar o universal do símbolo, reatando
Só que “A origem do mundo” não é apenas com o mesmo golpe com o gosto romântico
um nu: a ausência de um rosto o sublinha. Tra- pelo fragmento (Haddad apud Savatier, 2007,
ta-se, ao contrário, da representação daquilo p. 19)13.
que sempre esteve faltante das representações
do nu feminino para figurar uma mulher com- Com efeito, a pesquisa levada a cabo por
pleta: nada menos que seu sexo. Dessa forma, Savatier, para descobrir quem foi a modelo que
Courbet criou uma tela que passou a ocupar posou para a realização do quadro, chegou à
um lugar singular na história da arte ocidental conclusão de que a modelo mais provável não
por ter dessublimado um “esquecimento” mi- foi Jô Hifferman, de Jô, la belle irlandaise (“Jô,
lenar. Segundo Savatier, a bela irlandesa”), tela de Courbet também
pintada em 1866, como sustenta a versão ofi-
da estatuária grega à pintura do século XIX, nu- cial, nem a mulher morena que contracenava
merosos são os nus masculinos completos com com Jô em “As dorminhocas”, mas provavel-
seu sexo (pensemos no David de Michelangelo), mente uma fotografia erótica de uma mulher
com sua pilosidade natural. Essa especificidade qualquer, como aquelas realizadas por Auguste
a arte – ou melhor, as regras e as convenções – Belloc, o que reforça a possibilidade de com-
recusou sistematicamente à mulher, que se viu preensão da tela como uma espécie de “brasão
sempre paramentada com uma folha de vinha, universal do corpo feminino”14 (Savatier, 2006,
com um oportuno pedaço de tecido, com uma p. 12) – e a possibilidade por nós levantada de
mão judiciosamente colocada [...] ou com qual- uma influência vinda da literatura e das gravu-
quer outro artifício mais ou menos verossímel ras pornográficas em sua composição.
que, com um cuidado onipresente, apagavam Tendo dito isso, gostaríamos de aproveitar
todo traço de pilosidade, com exceção de algu- a frase de Haddad para tecer algumas conside-
mas raríssimas e tímidas tentativas. Quando o rações a respeito do romantismo de Courbet e
artista, por razões estéticas, se livrou do tapa- de sua presença em “A origem do mundo”. É
sexo, o resultado foi pior ainda: ele representava inescapável observar como as opções formais
o nada, a ausência do sexo, o não-sexo, o vazio feitas por Courbet no momento de compo-
[...], em outros termos, a negação da feminilida- sição do quadro remetem à preferência ro-
de (Savatier, 2006, p. 18)12. mântica pela representação da partes, e não
do todo. Ora, podemos dizer que assim como
Nesse sentido, se antes a nudez da mulher as célebres telas de Courbet dos anos 40 e 50,
não era sexualizada em razão de seus traços e que retratam cenas cotidianas da vida dos
de sua figura demasiadamente genéricos e ide- camponeses de sua região de origem, também

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 169-186, 2008


 | I P

em “A origem do mundo” Courbet retratou as especialmente ilustrativo desse paradoxo que


particularidades de uma região... uma região cerca a presença do fragmento na história da
do corpo da mulher, uma parte, um fragmen- Arte o seguinte trecho de seu texto:
to dele. Nesse sentido, podemos comparar
essa tela de Courbet com as telas do pintor Nas pinturas de Géricault de fragmentos anatô-
romântico francês Théodore Géricault, em es- micos – algumas pernas e braços, neste caso – a
pecial a Têtes coupées (“Cabeças cortadas”, de coerência do corpo é totalmente estilhaçada. Os
1818-19) e Étude de pieds et de main (“Estudo fragmentos dispersados são então reunidos pela
de pés e mão”, de 1817-1819). vontade do artista em arranjos ao mesmo tempo
Segundo Linda Nochlin, no interessan- elegantes e horríveis, dramaticamente isolados
te ensaio The body in pieces: the fragment as a pela sombra e com sua veracidade sensual [...]
metaphor for modernity (1994), é constante na intensificada pelo que parecem ser luzes de ve-
história da arte a representação de fragmen- las. O humor desses trabalhos combinam cho-
tos, os quais são em geral trabalhados em dois cantemente a objetividade da ciência – a fria e
sentidos principais: um, de cunho nostálgico, clínica observação da mesa de dissecação – com
calcado em um sentimento de perda de uma o paroxismo do melodrama romântic15 (No-
totalidade da arte e da vida que nunca mais chlin, 1994, p. 118).
será reconquistada; e outro, dotado de um
sentimento de emancipação da tradição e da Ora, não é difícil aplicar esse comentário à
autoridade do passado, e que constitui, por tela “A origem do mundo”: também ele retrata
assim dizer, uma condição para a liberdade ar- um fragmento de um corpo (decepado de seus
tística. Segundo Nochlin, esses dois sentidos braços, de suas pernas, de seu pescoço e de sua
podem ser encontrados de maneira exemplar cabeça, como o descreveu Du Camp), também
na produção artística de todo o período revo- ele provoca um efeito ao mesmo tempo sedu-
lucionário francês, bem como na postura dos tor e assustador a quem o olha. O enquadra-
artistas e da população em geral frente à arte mento que Courbet fez do corpo nessa tela não
durante esse período: segundo ela, a destrui- deixa de ter, assim, alguma semelhança com os
ção das obras de arte durante o período do fragmentos de membros decepados pintados
Terror foi vista tanto como um gesto de liber- por Géricault, de forma que seu erotismo e
tação e de renovação quanto como um gesto o choque que ele causa estão intrinsecamente
de barbárie pura e simples, como um atestado mesclados à repugnância – e, inversamente, à
do caráter “nefasto” da revolução. Esse du- atração – que sentimos pela visão de um corpo
plo sentido pode ser visto na iconografia da destrinchado. É interessante atentar também,
época, pelas representações realizadas da de- a respeito dessa semelhança, o quanto a forma
capitação dos nobres franceses levada a cabo adotada por Courbet para a composição “A ori-
pelos revolucionários: algumas, representam o gem do mundo” deve alguns de seus aspectos
ato de arrancar a cabeça do rei e dos nobres a uma visão científica do corpo que estava em
como um gesto libertador, ao passo que ou- voga. Como se sabe, a ciência médica estava
tras, como a comprovação do caráter regres- se desenvolvendo rapidamente nessa época, de-
sivo da revolução para a civilização. Seguindo senvolvimento que foi impulsionado em grande
esse raciocínio, a referida série de quadros do parte pela quebra do tabu religioso que proibia
pintor francês Théodore Géricault é bastan- a dissecação de corpo humano. Começava en-
te ilustrativa do argumento de Linda, sendo tão a se tornar comum na prática médica o de-

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 169-186, 2008


“A O  M”  G C:    | 

cepamento de membros e partes do corpo para que emana do escondido, do impenetrável, e


a realização de estudos, assim como começava também do vulnerável. O que está por detrás
a ser freqüente a realização de gravuras e dese- disto é um modo de experiência pan-erótico,
nhos detalhados dos órgãos para a composição que percebe na natureza uma criatura feminina
de manuais e enciclopédias que tinham como e, conseqüentemente, projeta a experiência da
fim incentivar o ensino da medicina. Dessa for- caverna e da gruta no corpo da mulher17 (Hof-
ma, possivelmente também um desses manuais mann apud Fried, 1990, p. 210).
deve ter auxiliado e influenciado Courbet em
sua composição. De fato, se comparamos “A origem do mun-
Há, contudo, um aspecto desconcertante do” a telas como as duas La source de la Loue
na obra de Courbet que impede que seu rea- (“A nascente do Loue”, de 1863 e de 1864), é
lismo seja tão facilmente inserido no contínuo patente como elas se estruturam a partir de um
de racionalidade e objetividade crescente que mesmo esquema de composição, podendo ser
constitui uma das linhas mestras de interpreta- reciprocamente traduzidas uma à outra.
ção da história ocidental e das transformações Esse aspecto aponta para aquele caráter
pelas quais ela passa. Segundo alguns autores, alegórico do Realismo de Courbet do qual de-
como Fried, Lindsay e Hofmann, as pinturas de mos breve notícia acima. Como àquela altura
Courbet que retratam mulheres nuas retomam dissemos, o Realismo de Courbet não busca
freqüentemente o mesmo esquema de com- uma descrição positiva da realidade, mas antes
posição que suas telas que retratam paisagens praticar uma investigação pela qual se obtenha
da natureza. Argumentando a respeito da tela e se proporcione uma nova experiência dela,
Femme avec chaussettes blanches (“Mulher com pela qual seja possível alcançar e justapor sig-
meias brancas”, de 1861), Lindsay diz que nificados que aparentemente estão distantes e
não têm nada a dizer a respeito um do outro
se olharmos sua estrutura e fizermos um esque- – como o próprio título da tela que estamos
ma dela, mantendo o essencial de sua compo- analisando indica. Nesse sentido, o Realismo
sição, mas transformando as partes humanas de Courbet transmuta-se em um verdadeiro
em rochas e em arbustos, nós chegamos à uma simbolismo, que impossibilita uma interpreta-
típica landscape, bem ao tipo daquelas que pro- ção de sua obra em termos unicamente racio-
fundamente interessavam Courbet – a vagina nalistas e desencantados. Ainda que boa parte
formando a entrada de cavernas e grutas (...), dela de fato adira ao projeto de desencanta-
que são recorrentes em suas telas. Vale à pena mento do mundo – que é o que faz dela uma
fazer esse exercício, porque nos ajuda a ver obra moderna e política, no sentido amplo dos
como ele criou o sólido padrão do corpo pre- dois termos, sobretudo se lembrarmos da in-
sente nessa tela, e como um certo simbolismo terpretação que T. J. Clark (Clark, 2006) faz da
estava presente em muitos de suas landscapes16 tela de Jacques-Louis David La mort de Marrat
(Lindsay apud Fried, 1990, p. 209). (“A morte de Marrat”, de 1793) –, tal adesão
preserva em si uma certa ambivalência. Como
ao que é acompanhada por Hofmann, que sugere Hofmann, na obra de Courbet encon-
afirma que tra-se presente uma experiência pan-erótica do
mundo, experiência que, se remetermos à tese
o que sempre atrai os olhos de Courbet para as weberiana do “desencantamento do mundo” e
cavernas e grutas é a fascinação que ele tem pelo ao seu corolário – a deserotização do mundo –,

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 169-186, 2008


 | I P

não corresponde à experiência erótica propria- cial e da sexualidade que se construiu, segundo
mente moderna, na qual o erotismo foi “elevado Foucault, a partir do século XIX, colaborando,
à esfera do gozo consciente” e passou a se or- dessa forma, para o processo de disciplinari-
ganizar sobre a individualidade e a vida íntima zação dos corpos que se iniciou naquele mo-
dos homens. Ao contrário, a experiência pan- mento a partir das fábricas, das cadeias e dos
erótica de Courbet parece corresponder àquilo hospitais, a tensão simbólica que ele comporta
que Weber denominou “o naturalismo sóbrio em si possibilitou a Courbet forjar uma corpo-
camponês” (Weber, 1974, p. 394), experiência ralidade própria em suas telas, que o permitiu
erótica que não tem como suporte uma corpo- escapar a esse mesmo mecanismo de que fazia
ralidade bem definida e concentrada, realizan- parte – e a desafiá-lo de dentro. A exemplo da
do-se antes de maneira expansiva, por meio de “Olímpia” de Manet, portanto, “A origem do
uma livre relação entre sujeito e mundo. mundo” também representou um abalo nas
É curioso notar, assim, como “A origem formas de representação e de categorização da
do mundo”, que de certa forma pode ser lida vida social, ainda que tal argumento mereça
como precursora daquilo que, no século XX, ainda certas considerações para se sustentar.
viria a ser chamado de “pornografia”, preser-
va em si uma ambigüidade que a desloca desse 7. Acontece que a tela de Courbet per-
posto, na medida em que deixa entrever um maneceu clandestina por grande parte de sua
tipo de experiência do corpo e da sexualidade vida. Desde a casa de seu primeiro proprie-
que se distancia daquela possível no mundo tário, Khalil-Bey, onde ficava pendurada na
contemporâneo. Como se sabe, a pornografia salle de bain e encoberta por um pequeno
que se desenvolveu no século XX fez uso de véu, passando pelo período em que se tornou
aspectos e modos de representação que muito parte do espólio de guerra da União Soviética
devem ao Realismo de Courbet: uma de suas – que, quando invadiu a Hungria, a retirou
marcas constitui, inegavelmente, a obsessão de seu novo proprietário – e foi tida como
pela representação a mais realista e objetiva desaparecida, até o momento em que chegou
possível do sexo dos homens e, sobretudo, das às mãos de seu mais célebre possuidor, o psi-
mulheres, pela qual ela o aparta do restante do canalista francês Jacques Lacan, e permane-
corpo – por efeitos de zoom e outras técnicas de ceu escondida, em sua casa de campo, sob a
câmera – e o constrói como a materialização do tela do pintor surrealista André Masson Terre
interesse sexual, como local onde habita todo érotique (“Terra erótica”, de 1954), a existên-
desejo sexual e as sua possibilidades de consu- cia dessa tela foi marcada ora pela clandesti-
mação e satisfação. nidade, ora pelo impacto que provocava nas
Ora, mas como vimos acima, ainda que a poucas pessoas que tiveram a chance de vê-la
obra de Courbet, juntamente com a de outros antes de sua entrada no patrimônio cultu-
artistas de seu tempo, desempenhe um papel ral francês e sua exposição permanente no
crucial na produção da sexualidade moderna – Museu D’Orsay, em Paris. Essa condição a
constituindo-se como mais um propulsor das impediu, desde o momento de sua produção
espirais de saber e poder que cercaram o corpo (1866), de ser vista pelo grande público e de
no século XIX –, ela se constitui, ao mesmo exercer sobre o conjunto da vida ideológica e
tempo, como um momento de resistência. Se o dos discursos sociais de sua época o impacto
seu realismo pôde atuar como uma peça a mais que exercia sobre observadores individuais.
do vasto mecanismo de visualização da vida so- Manifestando sua existência apenas por meio

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 169-186, 2008


“A O  M”  G C:    | 

de segredos, rumores, informações cruzadas e and juridical knowledge that in the 18th and 19th
falsificações, “A origem do mundo” não ocu- centuries have articulated and produced a scien-
pou o lugar no campo de representações de ce about sexuality, which deeply reorganized the
seu tempo da forma como, em um exercício ways through which it should be enunciated and,
imaginativo, poderíamos suspeitar que ela especially, visualized in the modern societies.
possivelmente teria ocupado. Ainda assim, keywords Courbet. Realism. Erotism. Fou-
como tal ausência se deve à sua própria na- cault.
tureza interna, e não a um esquecimento ba-
nal ou uma injustiça histórica qualquer – seu
anonimato tendo sido estratégica e delibera- Notas
damente mantido ao longo dos anos por seus
sucessivos proprietários –, acreditamos que 1
Para o leitor interessado em aprofundar a discussão a
mesmo do fundo de seu considerável silêncio respeito do desenvolvimento do nu em diferentes tra-
dições artísticas – o que não constitui a preocupação
ela tenha participado da economia visual do
central do presente artigo -, conferir a interessante
século XIX e XX, repercutindo subterranea- comparação estabelecida pelo filósofo e sinólogo fran-
mente sobre ela. Isso porque o interdito que cês François Jullien entre as condições metafísicas de
a cercou é função da sociedade e da arte de possibilidade do nu na arte européia e, inversamente,
seu tempo e do equilíbrio das categorias que as condições de impossibilidade de desenvolvimento
as constituíam naquele momento, de forma deste gênero de pintura na cultura chinesa. Cf. De
l’essence ou du nu. Paris: Éditions du Seuil, 2000.
que inevitavelmente “A origem do mundo”
2
Reproduções gráficas de todas as telas ou esculturas
diz algo sobre elas.
citadas neste artigo podem ser encontradas facilmen-
te na internet, pelo portal de busca Google. Para o
leitor que não tem acesso à internet, encontram-se
“The origin of the world” by Gustave Cour- listados, na bibliografia ao final, catálogos onde é pos-
bet: realism and erotism sível encontrar reproduções de algumas delas.
3
A tradução desse trecho e de todos os seguintes é mi-
abstract This article aims to analyse the nha. No original, “against the grain of their ostensible
painting L’origine du monde (“The origin of the content”. In: FRIED, M. Courbet’s realism. Chicago:
The university of Chicago Press, 1990. p. 3.
world”) by the master of realism Gustave Cour-
4
No original, “certainly the painter who most embo-
bet (1819-1877), setting connections with his
dies the dual implications – both artistically and po-
social and artistic context. Realized in a privile- litically progressive – of the original usage of the term
ged moment in the history of Western art and ‘avant-garde’ is Gustave Courbet and his militantly
society, when they were being distangled from radical Realism, ‘Realism’”, Courbet declared fatly, ‘is
their traditional forms, “The origin of the world” democracy in art’. He saw his destiny as a continual
(1866) expresses the innovative character of its vanguard action against the forces of academicism in
art and conservantism in society. Far from being an
time through the originality of both its form and
abstract treatise on the latest social ideas it is a concre-
theme: in this painting, realism and sexuality oc- te emblem of what the making of art and the nature
cupy the center of the artistic representation. The of society are to the realistic artist. It is through Cour-
innovation realised by Courbet’s oeuvre is develo- bet (...) that all the figures partake of the life of this
pped here as an important piece of the formation pictorial world, and all are related to his direct expe-
process of what Foucault named “the sexuality rience; they are not traditional juiceless abstractions
like Thruth or Immortality, nor are they generalized
gadget”. It is argued here that a pictorial or vi-
platitudes like the Spirit of Electricity or the Nike of
sual knowledge joined the medical, educational Telegraph; it is, on the contrary, their concreteness

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 169-186, 2008


 | I P

wich gives them credibility and conviction (...) and XIX siècle, nombreux sont les nus masculins complets
wich, in addiction, ties them indissolubly to a parti- de leurs sexe (songeons au David de Michel-Angel),
cular moment in history” (Nochlin, 1989, p. 12). de leur pilosité naturelle. Cette spécificité, l’art – ou
5
No original, “la satire des abominations de son plutôt les règles et les conventions – la refusa systéma-
temps” (Savatier, 2006, p. 34). tiquement à la femme qui se vit tour à tour affublée
d’une feuille de vigne, du drapé opportun d’un tis-
6
Em interessante artigo, Petra Ten-Doesschate Chu
su, d’une main judicieusement posée (...) ou de tout
comenta, por exemplo, como Proudhon tinha uma
autre artifice plus ou moins vraisemblable avec un
concepção da família como embrião da “sociedade do
souci omniprésent de gommer tout trace de pilosité,
futuro”, visão da qual se desprende uma divisão sexual
à l’exception de raríssimes et timides tentatives (...).
do trabalho que reserva à mulher as tarefas domésticas
Lorsque l’artiste, pour des raisons esthétiques, dût
e ao homem as tarefas históricas. Segundo ela, foi essa
s’affranchir de cache-sexe, le résultat fut pire encore:
visão de mundo que Courbet procurou representar
il representa le rien, l’absence de sexe, le non-sexe, le
no retrato que fez do amigo como uma homenagem
vide (...), en d’autres termes, la négation de la fémini-
póstuma. Ora, as diversas telas de Courbet em que
té” (Savatier, 2006, p. 18).
figuram mulheres nuas e seminuas não parecem de
forma alguma querer atacar as mulheres “devassas”,
13
No original, “en supprimant d’un trait génial le visa-
antíteses da figura feminina idealizada por Proudhon, ge de ce corps, Courbet a brisé l’effet pornographique
mas antes apresentá-las sob um outro ponto de vis- pour atteindre à l’universel du symbole, renouant du
ta. Cf. Gustave Courbet’s Venus and Psyche: Uneasy même coup avec le goût romantique pour le frag-
Nudity in Second-Empire France, 1992. In: JStore. ment” (Savatier, 2006, p. 19).
7
No original, “Or, Proudhon mourut en 1865 et la
14
No original, “bláson univérsel du corps féminin” (Sa-
concordance des date ouvre une perspective: sa mort vatier, 2006, p. 12).
aurait pu, en quelque sorte, affranchir Courbet d’un 15
No original, “In Géricault’s paintings of anatomical
chaperonnage encombrant et pudibond” (Savatier, fragments – severed arms and legs, in this case – the
2006, p. 68). coherence of the body is totally shatered. He dipersed
8
O nome dessa tela foi freqüentemente traduzido fragments are then reconjoined at the will of the artist
para o português como “O sono”. Preferimos aqui, in arrangements both horrific and elegant, dramati-
no entanto, optar por uma tradução literal do título, cally isolated by shadow, their sensual veracity both as
referindo-nos a ela como “As dorminhocas”. individual elements and as asthetic construction in-
tensified by what seems like candlelight spotlighting.
9
Algumas dessas gravuras podem ser vistas no livro or-
The mood of these works shockingly combines the
ganizado por Hunt (1999).
objetivity of the science – the cool, clinical obser-
10
No original, “Lorsqu’on écartait la voile, on demeu- vation of the dissecting table – with the paroxism
rait stupéfait d’apercevoir une femme de grandeur of romantic melodrama” (Nochlin, 1994. p. 119).
naturelle, vue de face, émue et convulsée, remar- Ainda segundo a autora, “art historians like myself,
quablement peinte, reproduite con amore, ainsi qui wrapped up in the nineteenth century and in gender
disent les italiens, et donnant lê premier mot du réa- teory, have a tendency to forget that the human body
lisme. Mais, par un inconcevable oubli, l`artisan qui is not just objet o desire, but the site of suffering, pain
avait copié son modele d’après la nature, avait negligé and death, a lesson that scholars of older art, with its
de presenter les pieds, les jambes, les cuisses, le ventre, insistent iconography of martyrs and victims, of the
les hanches, la poitrine, les mains, le brás, les épaules, damned suffering in hell and the blesses sufering on
le cou et la tête” (Marcel Du Camp apud Savatier, erth, can never ignore”. Idem. p. 118.
2006, p. 72). 16
No original, “if we look its structure and make a ske-
11
Como disse o crítico de arte Gérard Lefort a respeito tch, keeping the essencial layout but transforming
da tela, em recente exposição sobre a obra de Cour- the human section into rocks, tree clumps and the
bet organizada no Grand Palais de Paris. Matéria da like, we arrive at a typical landscape of the kind that
Folha de São Paulo, caderno “Ilustrada”, dia 31 de deeply stirred Courbet – the vagina forming the cave
outubro de 2007. entry, the water grotto, wich recurs in his scenes. The
12
No original, “de la statuaire grecque à la peinture du point is worth making because it helps us to see how

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 169-186, 2008


“A O  M”  G C:    | 

he created the wonderfully compact pattern of the HUNT, Lynn. A pornografia e Revolução Francesa. In:
body here, and how a certain symbolism was present HUNT, Lynn (Org.). A invenção da pornografia: Obs-
in many of the landscapes (...)” (Fried, 1990, p. 209- cenidade e as origens da modernidade, 1500-1800. Tra-
210). dução de Carlos Szlak. São Paulo: Hedra, 1999. 371p.
17
No original, “what again and again draws Courbet’s JACOB, Margareth. O mundo materialista da porno-
eyes into caves, crevices, and grottoes is the fascina- grafia. In: HUNT, Lynn (Org.). A invenção da por-
tion that emanates from the hidden, the impenetra- nografia: Obscenidade e as origens da modernidade,
ble, but also the longing for security. What is behind 1500-1800. Tradução de Carlos Szlak. São Paulo: He-
this is a panerotic mode of experience that perceives dra, 1999. 371p.
in nature a female creature and consequently projects JULLIEN, François. De l’essence ou du nu. Paris: Éditions
the experience of cave and grotto into the female du Seuil, 2000. 152p.
body” (Fried, 1990, p. 210). KENNEDY, Ian. Ticiano. São Paulo: Taschen do Brasil,
2006. 96p.
KUHN, Annette. The power of the image: Essays on re-
presentation and sexuality. New York: Routledge &
Referências bibliográficas Kegan Paul, 1985. 146p.
LUCIE-SMITH, Lucie. L’erotisme dans l’Art Ocidental.
ARNOLD, Matthias. Toulouse-Lautrec. Koln: Taschen, Paris: Librairie Hachete, 1972. 201p.
2007. 96p. MASANÈS, Fabrice. Courbet. Koln: Taschen, 2007.
BATAILLE, Georges. L’erotisme. Paris: Les Éditions de 96p.
Minuit, 1957. 306p. MICHEL, Régis. Géricault: l’invéntion du réel. Paris: Gal-
CAMPBELL, Colin. A ética romântica e o espírito do limard, 1992. 84p.
consumismo moderno. Tradução de Mauro Gama. São NÉRET, Gilles. Delacroix. Koln: Taschen, 2007. 96p.
Paulo: Rocco, 2001. 400p. ______. Manet. Koln: Taschen, 2007. 96p.
CHU, Petra Ten-Doesschate. “Gustave Courbet’s Ve- NOCHLIN, Linda. Courbet’s «L’origine du monde»: The
nus and Psyche: Uneasy Nudity in Second-Empire Origin without an Original. October, v. 37, 1986. Oc-
France”. Art Journal, Vol. 51, No. 1, Uneasy Pieces, tober, vol. 37, p. 76-86, 1986.
p. 38-44, 1992. ______. The politics of vision: essays on ninettenth-century
CLARK, Kenneth. O nu: Um estudo sobre o ideal em art and society. New York: Harper & Row Publishers,
arte. [Nome do tradutor indisponível], 1956. 113p. 1989. 167p.
CLARK, Thimothy. Image of the people: Gustave Courbet ______. The body in pieces: the fragment as a metaphor for
and the Second French Republic 1848-1851. London: modernity. New York: Thames and Hudson, 1994. 36p.
Thames and Hudson, 1973. 209p. ______. The de-politization of Gustave Courbet: trans-
______. A pintura da vida moderna: Paris na arte de Ma- formation and rehabilitation under the Third Repu-
net e de seus seguidores. Tradução de José Geraldo Cou- blic. October, vol. 22, pp. 64-78, 1982.
to. São Paulo: Cia das Letras, 2004. 471p. ROBERTS, Mary Louise. Gender, consumption and
______. Modernismos. Tradução de Sônia Salzstein. São commodity culture. In: The American Historical Re-
Paulo: Cosac & Naify, 2007. 302p. view, v. 103, n. 3, 1998.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: A vonta- SAVATIER, Thierry. L’origine du monde: histoire d’un tab-
de de saber. Tradução de Maria Teresa da Costa Al- leau de Gustave Courbet. Paris: Bartillat, 2006. 231p.
buquerque e José A. Guilhon Albuquerque. Rio de WEBER, Max. Rejeições religiosas do mundo e suas dire-
Janeiro: Edições Graal, 1988. 176p. ções. In: GERTH, Hans; WRIGHT MILLS, C. Max
FRIED, Michael. Courbet’s realism. Chicago: TheThe Univer- Weber: Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar
sity of Chicago Press, 1990. 243p. Editores, 1974. 530p.
GOMBRICH, Ernst H. Arte e ilusão: Um estudo da psico-
logia da representação pictórica. Tradução de Raul de Sá
Barbosa. São Paulo: Martins Fontes, 1995. 267p.

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 169-186, 2008


 | I P

Agradecimentos (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP)


no segundo semestre de 2007, foi de funda-
Agradeço à Lilia Moritz Schwarcz pelo in- mental importância para o amadurecimento
centivo à elaboração deste artigo. A disciplina das questões que levaram à produção deste tex-
“Lendo imagens”, ministrada por ela na Facul- to, bem como para a orientação dos meus inte-
dade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas resses de pesquisa para a área de Estética.

autor Ian Packer


Bacharel em Ciências Sociais/USP

Recebido em 31/03/2008
Aceito para publicação em 12/11/2008

cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 169-186, 2008

Você também pode gostar