Então para quem não está muito afeito ainda ao modo de agir, ao
modo de pensar, de refletir próprio da fenomenologia, fica aqui mais
uma vez o convite à assistir as primeiras aulas sobre o que é a
Psicologia, que são aulas nas quais eu apresento para vocês alguns
dos conceitos mas apenas só eles.
Já começo essa aula com esse título “Estrutura ôntica”, vocês já vão
entender logo o que eu estou querendo chamar com essa
expressão.
Um cão tem uma vida íntima, querendo ou não, sabemos que ele
tem uma vida íntima; que ele sonha, mas não temos acesso a esse
sonho; sabemos que ele tem memória mas, não tenho acesso a
estrutura dessa memória; sabemos que um cão é capaz de algumas
tarefas racionais, só que não temos ideia de como isso acontece.
Eu não quero saber o que está em jogo, o fato é que há uma vida
íntima. Estes mesmos que fazem trabalho com essa fotografia
mostraram como, por exemplo, uma planta reage a certos estímulos
auditivos.
Não quero entrar nesse mérito, o fato é que, eu quero dizer que há
uma quantidade bastante grande de formas, de gêneros de sujeitos
na realidade. Mas há um em particular que nos interessa, a mim e a
vocês, que é o sujeito chamado pessoa.
Você leu uma coisa como essas e vê que é verdade, tem mesmo um
momento que parece isso. Alguém fala de uma coisa animalesca e
parece mesmo, parece algo um pouco mecânico, meio
desordenado, um mecânico meio desordenado, mas ao mesmo
tempo, harmônico, e preciso, e impreciso.
Tem uma série de coisas que vão surgindo à tona e que, no entanto,
nasceram do quê? De alguma avaliação crítica da peça? Não. Veio
mera e simplesmente do impacto com corpos se movendo, de uma
determinada maneira que, de tal forma que expressam algo para
nós. E nós não conseguimos não ver isto que está sendo expressado.
O que eu quero convidar vocês hoje nesse primeiro passo no
reconhecimento de si mesmo, da pessoa que vocês são como
estrutura ôntica, é olhar para o próprio corpo.
Texto do slide: 2.
“O corpo existe e por ser pego.
É suficientemente opaco para que se possa vê-lo.
Se ficar olhando anos você pode ver crescer o cabelo.
O corpo existe porque foi feito.
Por isso tem um buraco no meio
O corpo existe, dado que exala cheiro.
E em cada extremidade existe um dedo.
O corpo se cortado espirra um líquido vermelho.
O corpo tem alguém como recheio”.
Arnaldo Antunes, momento VIII)
Só que eu quero fazer vocês darem o passo comigo, quero que vocês
venham junto comigo nesse passo de compreensão do corpo, como
um dos primeiros elementos para a compreensão da pessoa que
vocês são com estrutura ôntica.
Você pode tocar o corpo, pode ver um corpo porque ele tem uma
opacidade, mas é essa opacidade que esconde alguém como
recheio.
Essas duas frases se conectam de um jeito muito bonito por essa
frase central. “O corpo existe porque foi feito, por isso tem um
buraco no meio”, esse buraco no meio é algo que precisamos
começar a aprender a identificar.
Esse corpo que vocês viram dançando, de uma certa maneira, é algo
deste corpo expressivo, volitivo, senciente e vivo, a que eu quero
fazer referência.
Exatamente isso.
Vamos lá dar um passo a mais aqui e vamos dar seis passos hoje,
muito objetivo, tentando ao máximo oferecer para vocês
saídas para possíveis nós que vocês possam encontrar enquanto
vocês estão caminhando comigo.
Uma coisa muito simples que serve apenas como um primeiro passo
para que vocês sejam capazes de reconhecer a si mesmos como
subjetividade.
Então, quando eu olho para ela como pessoa que ela é, eu sou
convidado a descobrir aquilo que é o próprio da pessoa na Gabriele.
Então, eu não posso lidar com ela, por exemplo, como se ela fosse
um rato, não posso lidar como se ela fosse somente a narrativa dos
traumas que ela viveu no seu passado, não posso lidar com ela como
se ela fosse apenas um feixe de sentimentos (atrapalhados ou bem
coordenados).
Tenho que olhar para a Gabriele como pessoa que ela é, e como
pessoa tem algo de uma categoria essencial do existente pessoa,
que é ser único e irrepetível.
Precisamos ter acesso aos poucos a este copo. E mesmo tátil, com
uma mão grande suficiente, eu conseguiria ter acesso a ele todo?
Não. A aparição do copo é uma aparição que pressupõe um
conjunto, uma somatória de formas de aparecimento desse copo.
Se deem conta do corpo vivo e material que vocês são, quer dizer,
notem no seu corpo, olhem para as suas mãos, olhem para suas
pernas, para seu tronco e percebam, toquem seu corpo.
Então, esqueçam agora, não estou refletindo sobre o que faz o meu
corpo um corpo vivo, estou dizendo: o seu corpo é um corpo vivo,
material.
Olhar para o corpo vivo material esse corpo que está na sua frente,
que você toca, que você vê e reconhecer nele algo que tenha
identidade com o corpo que você pensa, com a imagem que você
faz de si mesmo. São problemas de autoimagem.
Então façam esse esforço. Como que eu consigo colocar a outra mão
no mesmo lugar que essa mão está ocupando? Não tem jeito,
porque ela é espacial. O meu corpo é espacial e, portanto, obedece
às leis da geometria euclidiana, não tem como colocar dois corpos
materiais em um mesmo lugar, no mesmo espaço.
Nosso corpo é tridimensional, se você fecha um dos olhos você
perde a tridimensionalidade, você vê o mundo chapado, tudo fica no
mesmo plano, ficam bidimensionais.
Muita gente acha que ser pessoa é estudar na escola direito, estudar
todo conteúdo formal escolar e depois fazer uma universidade
porque você precisa de um diploma, e estar incluído na sociedade.
Outro passo, o corpo vivo como um corpo material pode ser dado a
uma consciência compreensiva. Vamos pensar o seguinte: o seu
corpo vivo, pode ser dado como o corpo vivo material, há uma
consciência compreensiva.
Pensa na sua esposa, no seu esposo, irmão, mãe, pai, quer dizer, que
olham para você agora.
Quando eles olham para você agora, olham como um corpo vivo
material e, portanto, a consciência compreensiva do seu pai, da sua
mãe, do terceiro, a consciência compreensiva dele vai se dirigir a
você apenas para aquilo que de você, neste momento, do teu corpo
material, daquilo que de você se apresenta para eles, da perspectiva
na qual eles se encontram.
Se sua mãe está sentada no sofá da tua sala enquanto você está no
seu tablet assistindo aula; se ela olha para você, ela vai ver de você
aquilo que a perspectiva que ela tem sobre você lhe permite ver.
Quer dizer, tem uma certa condição que impõe a consciência
compreensiva da sua mãe, uma certa face das infinitas
possibilidades de representação do teu corpo material. Quer dizer,
não tem jeito, ela não vai te compreender por inteiro, ela vai ver uma
certa face tua agora.
Com o seu corpo material que está na frente do seu marido, da sua
esposa, do seu filho, ele não se distingue em nada de qualquer outra
coisa que haja no espaço euclidiano da sua sala.
O sujeito conhecedor (que é a sua mãe, seu esposo, seu filho, sua
namorada), porém ele olha para você sentado nesse sofá, e olha para
você levando em consideração a sua pessoa, o que vai acontecer?
Ele vai perceber que há uma diferença entre você e a cadeira na
qual você está sentado.
Cada corpo animado tem um sujeito que não pode mostrar todas as
suas possíveis parcialidades. Por exemplo, o meu bonsai é uma
jabuticabeira, há um sujeito nesta jabuticabeira que eu sei que está
lá porque de ontem para hoje eu vi que nasceu um broto de folha.
Há um sujeito que me faz crer que em breve eu posso colher
jabuticaba nele.
Todo Cadu pega o copo, sente o copo, é Cadu quem sente o copo,
apesar de serem os receptores de tato que estão sentindo a dureza
do copo. É todo Cadu quem faz a experiência de sensação física do
copo. Faz sentido isso?
Texto do slide: 6. O corpo vivo senciente pressupõe a consciência.
Por exemplo, vocês não conseguem ver que eu cortei o dedo esse
final de semana, um corte profundo que quase chegou no osso. Eu
estava brincando de dar tiro com meus filhos e estava com a
espingarda (de chumbinho), pus o chumbinho nela e fechei o cano,
e quando fiz isso, meu dedo estava na dobra.
Mas quando eu estava mirando para atirar, olhei meu dedo e estava
pingando sangue e foi aí que percebi que era um corte fundo.
Mas enquanto estava ali, não tinha reação instantânea (a dor que
geralmente temos). Então, corpo vivo senciente pressupõe a
consciência.
Tem uma frase da Edith Stein que nos ajuda a entender isso: “A
dependência dos processos causais do mundo material não existe
apenas para sensações físicas, mas também para sensações não
localizadas de um ponto de vista corpóreo”. Vamos pensar nisso, tem
em um certo espaço do mundo material, ao meu redor, um certo
ambiente material que promove mais ou menos consciência.
E ele coloca uma mão em uma caixa e sente algo pegajoso, sente
nojo daquilo e também sente um cheiro desagradável (desse
mundo material). Ele vai fazer uma experiência sensível
completamente diferente, se ele tivesse de olhos abertos e visse que
aquela coisa pegajosa, era um balde de leite condensado, de nutella.
Ela pode até se mover, posso até empurrar o tronco de madeira e ele
ir ladeira abaixo. Ele vai estar se movendo, mas não se move a partir
de dentro, e sim a partir de fora; não é um movimento próprio, que
teve a sua origem a um impulso interno.
Este núcleo é aquilo que me permite dizer ao Pedro que ele vive,
que ele é animado. A vida de Pedro, a vida de Cadu, se exprimem no
fato de que o núcleo se autodetermina, e isto se verifica pela
totalidade do ser vivo.
Cadu foi feito e quando ele foi feito, há algo nele de nuclear, que me
permite dizer: Cadu vive. E este algo de nuclear é exatamente aquilo
que me faz dizer que, Cadu não foi inventado pela minha cabeça;
não é um artifício da minha imaginação, não é algo que eu posso
destruir, à revelia da minha vontade a construir à revelia da mesma
vontade.
Se esse bonsai morrer, não tenho como trazer ele à vida de novo, ele
se autodetermina, claro que ele é muito dependente. Caso fosse
uma árvore, teria uma independência, como essa cerca viva que tem
no meu jardim (que se molha quando chove), mas ele tem
autodeterminação.
Quer dizer, uma série de aspectos desta coisa material, vai mudar a
depender das condições externas. Do contrário, vai apenas
permanecer invariável. Essa pedra (que eu já tenho comigo há uns
30 anos), veio do primeiro acampamento que eu fiz, com barraca nas
costas.
Texto do slide: 11. Até aqui, não foi fundamental falar de uma vida de
consciência.
Vou dar um exemplo para ficar claro: a força vital é o que me faz
dizer que estou cansado ou então não, estou com muita energia,
capaz de seguir em frente com muita facilidade.
Essa força vital em mim, esse cansaço, esse frescor de alma que me
deixa mais ativo energizado, também indica algo do organismo do
ser vivo que eu sou.
Mas, chego em casa e tão logo chego, tenho uma excelente notícia
(que esperava há muito tempo): consegui o emprego que eu estava
procurando. Quer dizer, meu cansaço físico não determina, porém,
uma reação à boa notícia reduzida na sua exuberância.
Enfim, são coisas que o corpo vivo consegue fazer como ações de
um corpo livre, resultado de uma vontade. Essa vontade não só
revela um conjunto de ações que eu vejo no corpo, como também
ações essas que impactam o mundo ao meu redor.
A vida íntima do Cadu, que não é a relação dele com a esposa e com
as filhas, mas sim a vida íntima que está escondida, sob o corpo, sob
aquela capa misteriosa.
Texto do slide: 13. O corpo vivo tem uma função que só se encontra
na pessoa: expressar a vida interior.
Mímica.
Mímica alguma dura para sempre, uma hora ela para. Também ela é
uma expressão daquilo que eu reconheço de uma imitação que
estou fazendo, então toda mímica não será verdadeira se não for
resultado daquilo que eu, ou o Kleber, ou o padre Wesley, estão
imitando de quem quer que seja que eles estão imitando.
Tem algo que na mímica que revela o próprio. Gosto muito do Alba
Expider, porque ele é um imitador, mas se você ver as imitações
dele, você percebe que tem ali um certo jeito que é muito próprio
dele.
Pensem nesses seis passos que demos: o corpo vivo como corpo
material; o corpo vivo como corpo senciente; o corpo vivo como
organismo vivo; o corpo vivo como ser vivo; o corpo vivo como
expressão da vontade e o corpo vivo como órgão de expressão.
Quero que vocês olhem para o corpo de vocês e façam pequenos
registros, não quero nenhuma sistematicidade. Quero apenas que
vocês aprendam a olhar para vocês, segundo o corpo de vocês.
Então gastem alguns minutos olhando para o espelho, vejam como
é a materialidade do seu corpo vivo.
Não vou entrar nesse mérito, mas o Girard é uma pessoa genial para
falar disso aqui. É exatamente isto aqui. A teoria mimética do Girard
nesse sentido, para quem tem vontade de conhecer um pouco mais
aquilo que o Gustavo está falando, é exatamente isso.
Aquilo que eu sou ainda não é totalmente, eu não diria tanto que é
na morte que eu me realizo completamente. A morte é como se
fosse um momento em que a sinfonia inteira se apresentou e se
apresentou de uma maneira tal que poderíamos quase ver a
sinfonia.
A morte é como se fosse uma passagem do ouvir para o ver, de
repente eu me torno aquilo que ao longo de todo um tempo foi se
realizando e eu entro para a eternidade dessa forma. Monto um
quadro que entra para a eternidade dessa forma.