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7.

A «REVOLUÇÃO JEVQNIANA»

Jevons completou a reacção contra Ricardo que men­


cionámos anteriormente, como se pode deduzir do facto de
geralmente se associar o seu nome a uma revolução no
pensamento económico;* e se bem que Menger seja
mais representativo desse corte com a tradição elás-
sica, Jevons tinha aparentemente uma consciência mais
clara do seu papel na reorientação do «carro da ciên­
cia económica», que Ricardo dirigira tão perversamente
«num mau sentido».** O facto de a sua obra ter sido publi­
cada poucos anos após o primeiro volume de Das Ka-
pital, pode levar-nos a considerá-la como uma réplica
directa ao livro de Marx, inspirada pela contem­
plação dessa descendência tardia de Ricardo,*** tal como

* Stigler, utilizando uma expressão pouco feliz, chama-lhe «o


precursor da economia neoclássica», ao mesmo tempo que considera
a teoria de Menger como «muito superior à de Jevons» (G. J.
Stigler,Production and Dístribution Theories (N ova York, 1946),
pp. 13, 135).
** Prefácio da 2.“ edição (1879) da sua Theory of Political Eco-
nomy. Jevons era particularmente adverso a Mill, não só a respeito
da sua teoria económica mas também quanto às suas ideias sobre
a lógica. Keynes fala da «violência da aversão de Jevons por Mill,
levada quase até à morbidez». ( Essays in Biography, nova ed.
(Londres, 1951), p. 297).
*** Cf. John Maurice Clark: «A s teorias marginais da distribui­
ção foram desenvolvidas depois de Marx; a sua relação com as

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as inovações da escola Senior-Longfield tinham sido ins­
piradas pelas conclusões mais insatisfatórias dos «socia­
listas ricardianos». No entanto, não há prova de que
Jevons tenha tido essa intenção consciente, ou mesmo,
que tenha tido conhecimento da obra de Marx: uma vez
que esta última fora publicada em Hamburgo e era rela­
tivamente desconhecida, é muito pouco natural que Jevons
tenha tido oportunidade de a ler, e de qualquer modo as
ideias fundamentais de Jevons datavam de pelo menos
dez anos antes (provavelmente da época da sua estadia
na Austrália) e tinham já sido expostas numa comuni­
cação à British Association, em 1862. O caso dos austríacos
era diferente, particularmente o de Wieser e de Böhm-
-Bawerk, que tinha conhecimento não só da obra de Marx,
como também da propaganda lassalleana, estando mesmo
até certo ponto obcecado pelas potencialidades das mes­
mas. A simultaneidade das datas de publicação destas
novas ideias paralelas, que viriam a imprimir um
carácter e uma direcção inéditos ao pensamento eco­
nómico do último quarto do século, tem sido frequente­
mente sublinhada e é realmente digna de nota. A Theory
of Political Economy de Jevons foi publicada em 1871,
e os Grundsätze de Menger vieram a lume no mesmo ano;
os Elements de Walras apareceram em 1874.* A obra de

doutrinas do socialismo marxista é tão patente que leva a pensar


que o desafio do marxismo actuou como estímulo para a busca
de explicações mais satisfatórias. A s teorias marginais atacam
pela base a mais-valia marxista, ao proporem como fundamento
do valor a utilidade, em vez do custo do trabalho, e proporcionam
um substituto para todas as formas da doutrina da exploração,
marxista ou outras, através da teoria de que todos os factores
de produção... recebem remunerações baseadas nas suas contri­
buições específicas para o produto conjunto» ( ‘Distribution’ em
Encyclopaedia of Social Sciences, Readings in
1931; reeditado em
Income Distribution (Filadélfia, 1946), pp. 64-5).
* Walras referiu-se, no Prefácio da sua 4.“ edição (de 1900),
à «teoria da troca baseada na proporcionalidade dos preços e da
intensidade das últimas necessidades satisfeitas», afirmando que
esta teoria «fo i desenvolvida quase simultaneamente pelos tra­
balhos de Jevons, Menger e os meus próprios» (Méments, p. 44).
Ê claro que não se deve deixar de mencionar H. H. Gossen, muito

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Wieser e Bõhm-Bawerk foi publicada na década de 1880.
O Professor Shackle referiu-se nos seguintes termos
às inovações conjuntas desses autores: «Nos 40 anos pos­
teriores a 1870 elaborou-se uma Grande Teoria ou Grande
Sistema de Economia, em certo sentido completo
e auto-suficiente, apto a responder, nos seus próprios
termos, a todos os problemas que podiam ser formulados
de acordo com esses mesmos termos... Esta teoria, na sua
beleza e perfeição notáveis... parecia derivar dessas qua­
lidades estéticas o selo da sua própria autenticidade e da
sua supremacia sobre a inteligência dos homens.»*
Em termos gerais, podemos dizer que esta alte­
ração na estrutura e nas perspectivas da análise económica
se caracterizava por dois aspectos principais. Em primeiro
lugar, no que se refere às influências e determinantes
causais, deixou de ser atribuída uma importância primor­
dial aos custos de produção, resultantes das circunstâncias
e condições de produção, para se pôr em relevo a procura
e o consumo final; sendo colocado o acento tónico na capa­
cidade, por parte dos bens produzidos, para contribuir para
a satisfação dos desejos e das necessidades dos consu­
midores. Esta alteração de ponto de vista contribuiu
para imprimir uma direcção individualista ou atomista
ao pensamento económico moderno —-que se dedica essen­
cialmente à micro-análise dos comportamentos e acção
de mercado individuais e à generalização económica
baseada nesses micro-fenómenos. Sabemos já que tal se
tornou possível devido à descoberta (através da aplicação
do cálculo diferencial) do conceito de acréscimos margi­
nais de utilidade — o «grau de utilidade final» de Jevons—-
que permitiu superar os obstáculos que outros tinham

anterior: em particular a sua obra de 1854, da qual se fará,


menção mais adiante. Jevons, no Prefácio da sua 2.a edição,
reconheceu elegantemente que Gossen «o antecipou completamente
quanto aos princípios gerais e método da teoria económica» (2."
ed, Londres, 1879, p. X X X V ); e também Walras lhe prestou home­
nagem num artigo publicado no Journal des Économistes, em 1885.
* G. L. S. Shackle, The Years of High Theory (Cambridge,
1967), pp. 4-5.

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encontrado ao pretender sublinhar a importância do valor
de uso smithiano, dada a dificuldade que havia em esta­
belecer uma relação entre o valor de uso e o valor de troca.
Foi esta minimização do custo e da produção, a favor
da influência da procura e da utilidade do consumo, que
deu origem à alteração que deve ser descrita em termos de
desvio no sentido de uma Teoria Subjectiva do Valor.
Numa passagem muito frequentemente citada, do iní­
cio da sua obra, Jevons escrevia: «Uma reflexão e uma
análise aturadas levaram-me a adoptar o ponto de vista
inédito de que o valor depende inteiramente da utilidade.
As opiniões predominantes colocam o trabalho, e não
a utilidade, na origem do valor... O trabalho determina
frequentemente o valor, mas só de forma indirecta,
fazendo variar o grau de utilidade do bem através de um
aumento da oferta.»* No prefácio, explica que «tentei
nesta obra considerar a Economia como o Cálculo do
Prazer e da Dor»; e sublinha a analogia com «a ciência
da Mecânica Estática». No prefácio à segunda edição
(de 1879), renova o seu ataque a Ricardo, referindo-se
às «hipóteses confusas e absurdas da Escola Ricardiana»,
e acrescentando que «os nossos economistas ingleses têm
vivido num mundo idealizado». No parágrafo a rema­
tar a obra, escreve: «Ê uma contribuição positiva
interromper a repetição monótona de doutrinas duvidosas
correntes, mesmo que se incorra no risco de um novo
erro.»** Keynes refere-se à sua Tlneory como «o primeiro
tratado que expõe de forma completa uma teoria do valor
baseada em avaliações subjectivas» e «o princípio mar­
ginal.»***
Em segundo lugar, e em consequência do que aca­
bamos de dizer, aquilo a que podemos chamar os limites

* The Theory o f Political Economy (Londres, 1871), p. 2.


** Ibid., p. 267 (2." ed. 1879, p. 277).
*** Essays in Biography, 2.“ ed. (Londres, 1951), p. 284. E acres­
centa: «O primeiro livro moderno de economia, mostrou ser sin­
gularmente interessante para todos os espíritos lúcidos que abor­
daram o assunto pela primeira vez».

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da matéria, tal como a sua estrutura de relações
e dependencias causais, foram significativamente alte­
rados, se bem que ao tempo se não compreendesse até
que ponto. O sistema de variáveis económicas e a sua
área de determinação foram virtualmente identificados
com o mercado, ou com o conjunto de mercados inter-
-relacionados que constituem a esfera de troca. O que
acabamos de referir pode não nos parecer notável à
primeira vista, pelo menos na medida em que a teoria
económica consiste na teoria do valor, que, pela sua natu­
reza, seria essencial e necessariamente composta por rela­
ções de troca. Porém, há neste ponto uma implicação que
afecta a relação entre a repartição e a troca e que é menos
óbvia, acarretando consequências fundamentais para
a totalidade do campo de estudo. No sistema de deter­
minação adoptado por Ricardo, e a fortiori e mais expli­
citamente na perspectiva de Marx, a repartição
era considerada como anterior à troca num sentido
essencial: ou seja, as relações de preço e os valores
de troca só podiam obter-se após ter sido postulado
o princípio da repartição do produto total. Os factores
determinantes da repartição eram, como já vimos, iden­
tificados com as condições de produção (as condições
de produção de bens de consumo de Ricardo; as «relações
sociais de produção» de Marx, introduzidas do exte­
rior do mercado, na sua qualidade de bases socio-
-históricas dos fenómenos da troca). Per contra, a nova
orientação da análise económica reduzia o problema da
repartição ao preço atribuído aos inputs indispensá­
veis por um processo de mercado determinando simulta­
neamente o sistema inter-relacionado dos inputs e dos
outputs. Além disso, a repartição (ou o que dela restava
como capítulo independente da análise económica) não só
era determinada a partir do interior do mercado ou pro­
cesso de troca, como o era igualmente sob a forma dos
preços derivados de certos bens intermediários ou
factores produtivos: a determinação era considerada
como sendo imposta pelo mercado dos produtos finais,
e daí, em última análise, pela estrutura e intensidade
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da procura dos consumidores. Jevons* não chegou a desen­
volver explicitamente este ponto, pois limitou-se a levar
a cabo apenas metade da «revolução» marginal. Este
aspecto do problema torna-se porém evidente com Menger,
quando este se refere aos bens de «primeira ordem» e de
«ordem superior», sendo os preços dos segundos derivados
dos preços dos primeiros, pelo processo de «imputação»
(Zurechnung) , por outras palavras, de certo modo em
função da produtividade marginal dos bens do produtor
em termos dos bens do consumidor. Mesmo no sistema
walrasiano, esta derivação era perfeitamente explícita.
O próprio Walras o acentuou quando escreveu: «Embora
seja certo que os serviços produtivos são comprados e
vendidos nos seus próprios mercados especiais, os preços
destes serviços, não obstante, são determinados no
mercado de produtos.»** Evidentemente, este apareci­
mento da determinação unidireccional deve-se aos econo­
mistas austríacos (e também Walras, quanto ao essen­
cial) terem simplificado o seu problema admitindo
que se partia de ofertas dadas de factores produtivos,
cujos «serviços» entravam no processo de troca por um
«preço de aluguer». É esta, de facto, a base daquilo
que viria a ser a elegante redução do conceito de custo à
noção esbatida e contingente de «custo de oportunidade»
(isto é, o custo de oportunidades produtivas antecedentes,
destinadas a criar utilidades). Mas, se se puser de parte
esta hipótese de ofertas de factor dadas, a diferença que
daí resulta está apenas em substituir, à maneira mar-
shalliana, uma série de «escalas de ofertas de factores»
vagamente definidas e concebidas subjectivamente, de um
realismo e independência contestáveis (contestáveis por
dependerem de algum tipo de «custos reais» de repar­

* T. W. Hutchison, A Review of Economic Doctrines, 1870-1929


(Oxford, 1953), p. 44. Conforme acentua o Professor Hutchison,
Jevons chegou quase a aplicar o seu conceito marginal aos bens
ou factores do produtor. Cf. também Léon Walras, Elements of
Pure Economics, trad. W. Jaffé (Londres, 1954), p. 45.
** Ibid., p. 422.

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tição relativa de «esforços e sacrifícios»).* Efectua-se
então a determinação mútua, por meio de um equilíbrio
de condições marginais na oferta de serviços ou factores
produtivos, assim como em relação à procura dos consu­
midores. Foi este o espectro do chamado «ricardismo»
que subsistiu no sistema de Marshall.
No entanto, curiosamente, a repartição, à qual
Ricardo tinha atribuído esse predomínio, embora per­
dendo agora importância, ou até enfraquecendo de
todo, continuou a pretender uma certa prioridade,
mesmo no novo esquema conceptual. Esta ocorrência foi
muito minimizada, a tal ponto que se poderia pensar
que esta pretensão passasse despercebida, embora fosse
impossível não dar por ela. Tratava-se da sua prioridade de
influência na formação da estrutura da procura do con­
sumidor, através da mediação entre a utilidade ou
satisfação da necessidade do consumidor individual e
a sua expressão sob a forma de poder de compra
no mercado, e, portanto, de impulso real de mer­
cado. Conforme se mencionou no nosso Capítulo I,
teve de postular-se, consequentemente, certa reparti­
ção de rendimento preexistente, para que pudesse
ser considerada como determinada por um processo
de formação de preços na esfera da troca de mer­
cado. Uma vez reconhecido, este facto prejudicou as
elegantes linhas gerais da imagem conceptual, senão
mesmo a sua consistência interna — ainda que talvez
se pudesse sustentar (quando muito de maneira dis­
cutível) que, para fins práticos, a diferença decorrente de
admitir-se esta influência de retorno não tinha geral­
mente grande importância, salvo nalguns casos especiais.
Wieser, por exemplo, compreendeu bem esta interfe­
rência da repartição no modo de derivação do valor de
troca a partir da utilidade, à maneira da Escola Austríaca.
Na sua obra Natural Value, escreveu: «O preço dum bem
nunca exprime completamente o valor de troca que repre­

* O termo «sacrifícios» referia-se à «abstinência» de Sênior, ou


aquilo a que Marshall, de uma forma mais neutral chamou «espera».

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senta para o seu possuidor. Este valor depende ainda da
«equação pessoal» do dinheiro, para o possuidor... A «equa­
ção pessoal» do dinheiro é indispensável em qualquer
economia, para podermos repesar uns em relação aos ou­
tros, os bens avaliados segundo os seus valores de troca...
Cada acto isolado de troca depende disto.» E também:
«Na formação do valor de troca introduz-se um segundo
elemento, o poder de compra. Em valor natural, os bens
são avaliados apenas segundo a sua utilidade mar­
ginal; em valor de troca, são avaliados segundo uma
combinação de utilidade marginal e poder de compra...
O valor de troca, mesmo quando é considerado perfeito, é,
passe a expressão, uma caricatura do valor natural:
perturba a sua simetria económica, ampliando o que é
insignificante e diminuindo o que é importante.»* Mas não
se pode dizer que Wieser seguisse a lógica desta afirmação,
e menos ainda que resolvesse a dificuldade por ela criada.
De um modo geral, os seus colegas e discípulos também
não atacaram a dificuldade.**
Uma consequência importante do novo esquema con­
ceptual, foi que a separação que Mill tentou traçar entre
o carácter institucional e de relatividade histórica da
repartição, por um lado, e o carácter «natural» das
leis da produção, por outro, voltou a esbater-se, se
bem que não tenha desaparecido por completo. Admi-
tira-se que diferenças ou alterações institucionais podiam
modificar o regime de repartição do rendimento entre
pessoas (por exemplo, influindo sobre a quantidade
de propriedade na posse de diversos indivíduos); mas
o regime geral de repartição entre factores (o que
significava, essencialmente, entre capital e trabalho) não

* P. von Wieser, Natural Value, ed. W. Smart (edição de 1956)


pp. 49-50, 62.
** Sir Erich Roll faz o seguinte comentário: «Embora
analiticamente superior a tentativas análogas... a doutrina de
Wieser assenta na hipótese, comum a todas elasl de que é possível
conceber um valor social subjectivo. Esse conceito, como é evidente,
é inevitavelmente auto-contraditório» (A History of Economia
Thought (Londres, 1938) p. 402).

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podia ter essa influência, dada a relação entre as ofertas
relativas de factores e os seus usos produtivos, ou o seu
papel na produção e, portanto, na sua procura. Sendo
assim, na teoria económica não podia haver lugar para
qualquer caracterização de relatividade institucional, do
coeficiente rendimento-propriedade, por exemplo, ou do
coeficiente lucro-salário: estes coeficientes eram catego­
rias puramente económicas, no sentido de dependerem
da natureza da situação económica existente e do pro­
blema económico per se.
Dum ponto de vista ideológico, este foi sem dúvida
o resultado mais importante da mudança de orientação:
isto é, pela imagem que proporcionou do sistema econó­
mico, dos seus problemas e imperativos, e, portanto, pela
possibilidade de ajuizar da correcção ou incorrecção dos
diagnósticos correntes dos males sociais. A alteração
ficou associada, conforme notámos, ao traçado de diferen­
tes linhas de delimitação do «sistema económico», tratado
como «sistema isolado»; de forma que os problemas acerca
da posse de propriedade ou das relações e conflitos de classe
eram considerados exteriores ao domínio do economista,
nã oinfluenciando directamente, pelo menos em aspectos
importantes, os fenómenos e relações com os quais a
análise económica estava relacionada, e pertencendo,
em vez disso, aos domínios do historiador econó­
mico ou do sociólogo. Um problema como a proveniência
da mais-valia, sobre o qual falámos no capítulo anterior,
nem sequer podia ser apresentado dentro dos termos
estabelecidos da análise económica. No entanto esse facto
não era explícito; era posto de parte por não ter signifi­
cado ou cair fora dos limites da matéria.
Houve outras consequências que vieram a ser
tema de discussão ideológica; mas, globalmente, fo­
ram de importância secundária. A alusão de Jevons
à Mecânica Estática, por exemplo, como analogia apro­
priada para a metodologia da nova economia, revelou-se
profética; como resultado do facto de considerar seria­
mente esta analogia, a análise económica passou a
preocupar-se com situações de equilíbrio em condições
de concorrência; e na medida em que estas situações
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eram de equilíbrio completo, presumia-se virtualmente o
pleno emprego de todos os serviços ou factores de produção
produtivos.* Assim, a possibilidade de equilibrios múltiplos
(por exemplo, em vários níveis de emprego) pouca atenção
mereceu, se é que não foi completamente ignorada (isto é,
até à década de 1930 praticamente). Da mesma forma,
foram ignoradas as considerações dinâmicas; embora o
método da mecânica estática pudesse adaptar-se ao tra­
tamento dos problemas da chamada «estática compara­
tiva», não podia ser aplicado à estabilidade ou instabili­
dade das vias de movimento, e portanto a flutuações ou
à mudança como processo.**
Outro resultado, logicamente consequente ou não,
foi que a transferência do centro da investigação
para a análise do equilíbrio parcial deu origem a uma
concentração de esforços naquilo que viria a ser deno­
minado «microeconomia», com exclusão ou quase aban­
dono da mais ampla concatenação de interdependências
e efeitos, muito importantes para a formação das macro-
-relações mais vastas, mas também muito frequente­
mente escondidos por detrás duma cláusula ceteris paribus
e esquecidos depois. (Podemos citar como exemplo
o engenhoso dispositivo simplificador de Marshall, que
consistiu em admitir como constante a utilidade mar­
ginal do rendimento, e considerar que quaisquer efei­
tos mais amplos daquilo que estava a acontecer, podiam
ser tomados como uma «segunda ordem de pequenas quan­
tidades»; juntamente com a hipótese análoga, na esfera

* Já que, se existisse um excesso não utilizado de qualquer factor,


a concorrência faria descer o preço para zero, e se existisse uma
elasticidade da procura, o excedente seria absorvido.
** Cf. Sir John Hicks, Value and Capital (Oxford, 1939) pp. 115
seg\, 302, que conclui duvidando de que «um estado estacionário...
seja concebível, mesmo como caso especial»; também na sua obra Ca­
pital and Growth (Oxford, 1965), pp. 15 seg\: «os economistas estão
tão habituados a esta hipótese de equilíbrio, que têm tendência
para considerá-la um ponto assente», e no entanto «há formas de
mercado, não necessariamente destituídas de realismo ou de
importância, em que a simples existência de equilíbrio é duvidosa,
mesmo num mercado simples, ou talvez mais que duvidosa».

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da oferta, de preços de factores dados, a qual permitiu
utilizar a noção duma oferta a longo prazo ou curva
de custos duma indústria). Isto representou, sem sombra
de dúvida, um empobrecimento da economia (como passou
a chamar-se, em vez de economia política), o qual só foi
seriamente contestado na década de 1930, ou mesmo
depois, com a obra de Keynes e o desvio das atenções,
após a segunda guerra mundial, da estática jevoniana
para a teoria do crescimento.
Um subproduto especial da nova estrutura e meto­
dologia, que iria produzir corolários de nítida tenãenz
ideológica, foi o hábito da optimização. Este hábito nasceu
da união da utilidade com a técnica dos incrementos
e decrementos marginais, o que, por sua vez, levou direc­
tamente à consideração de problemas extremos. Efectiva­
mente, alguns autores identificaram virtualmente a mu­
dança introduzida por Jevons com o privilegiar das condi­
ções de «atribuição»* (simultaneamente das despesas dos
consumidores entre os produtos finais e dos recursos pro­
dutivos entre os usos produtivos, via uma escolha e
actuação das empresas); uma vez que a noção de maximi­
zação estava implícita na forma de estruturar o problema.
Não era difícil concluir que o suposto comportamento
maximizante (de utilidade em relação aos consumidores
e de lucro em relação aos entrepreneurs) tinha como
resultado que em condições de concorrência em todos
os mercados, o valor (líquido) produzido era maximi­
zado. Por meio dum prodígio de agregação, isto era
traduzido na afirmação de que o agregado social de
utilidades era maximizado — tradução ilícita, pois já vimos
que a relação entre valores e utilidades, e, consequen­
temente, a soma das últimas, depende da repartição do
rendimento (mais um exemplo de que a «prioridade» desta
se impõe por si própria). Este facto foi inicialmente indi­
cado por Jevons, ao afirmar que «na medida em que isto
é compatível com a desigualdade da riqueza em todas as

* Cf. Hutchinson, Economic Doctrines, pp. 42, 44, com as suas


referências à «fórmula da atribuição maximizante».

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comunidades, todos os bens são repartidos por meio de
troca, de modo a obter-se o máximo benefício».* Talvez o
seu mais conhecido enunciado a nível social seja o de
Walras, segundo o qual, «com a produção num mercado
regulado pela concorrência... asconsequências da livre
concorrência... podem resumir-se em que assim se
atinge, dentro de certos limites, a utilidade máxima»;**
ao que se seguia o óptimo modificado e contingente
(mas não menos influente) associado ao nome do seu
sucessor, Pareto. Embora na altura sujeito à crítica de
personalidades de relevo tais como Marshall e Wicksell
(este último contestou rudemente Pareto, afirmando:
« A doutrina de Pareto não traz nenhuma contribui­
ção»***), este corolário optimizante, ao qual voltare­
mos quando adiante falarmos da «Economia do Bem-
-Estar», veio a exercer uma grande influência como jus­
tificação dum régime de concorrência perfeita e de mer­
cado livre.
Fomos de opinião que reduzir a repartição à formação
dos preços dos serviços ou factores produtivos, teve como
resultado excluir as circunstâncias sociais dos indivíduos
(ou grupos sociais) associadas à oferta destes «serviços»
— até ao ponto de perder de vista a própria existên­
cia destes indivíduos. Quando muito, estes eram visí­
veis, num plano distante, como entidades envoltas
em sombra e fantasmagóricas, sem verdadeiro conteúdo
social ou até sem definição clara e distinta. O caso extremo
apresentou-se quando se postularam ofertas de factores
dadas, correspondendo a repartição apenas à formação
dos preços de n inputs de factores (caso em que nem
mesmo se podia considerar uma taxa de lucro uniforme,
visto que a sua formação implica alterações apropriadas
nas ofertas de bens de capital individuais). Neste ponto,
a ilusão de que a repartição se integra completamente

* Jevons; Theory of Political Economy, ed. 1871, p. 134.


** Walras, Elements of Pure Economics, pp. 125, 255.
*** K. Wicksell, Lectures on Political Economy ( Londres, 1934)
Vol. I, p. 83.

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no processo de troca atingiu o seu ponto culminante.
O conceito de ofertas de factores variáveis, governadas
por alguma escala de pregos de oferta, reintroduziu
a posição dos indivíduos por detrás das ofertas, pelo
menos até ao ponto de relacionar as suas acções e motiva­
ção com os factores-serviços. Mas essa relação foi de facto
simulada, concebida para permitir um certo grau de
atribuição do valor dos serviços aos indivíduos. Assim,
«abstinência» ou qualquer noção análoga desempenhou a
função de relacionar (ou, quando não de relacionar explici­
tamente, pelo menos de esbater a distinção entre) o efeito
produtivo daquilo que é possuído e do seu possuidor legal.
A forma extrema deste conceito foi a interpretação apre­
sentada por J. B. Clark para produtividade marginal: esta
significava que cada factor, e por implicação os respon­
sáveis pela sua oferta, recebiam o equivalente da sua «con­
tribuição» para a produção: «a própria lei», disse
Clark, «é universal, e, portanto, ‘natural’».* Embora esta
afirmação viesse depois a ser refutada nesta forma pro­
posta por Clark,** manteve-se uma certa implicação
de atribuição (e ainda mais de inevitabilidade), mesmo
em compêndios não populares, até ao ponto de o factor
e o seu fornecedor (ou proprietário) estarem relacionados
por qualquer conceito do tipo «abstinência» ou «es­
pera». Raramente se pensou que fosse necessário indicar
que a propriedade era o primeiro requisito para apre-

* J. B. Clark, The Distribution of Wealth (N ova Iorque, 1899),


p. 46. Cf. também pp. 7, 47, 323-4n.; 325.
** G. J. Stigler, Production and Distribution Theories (Nova
Iorque, 1946), p. 297: «apresentou aquilo que ficou conhecido como
uma ‘ingénua ética da produtividade’ — a sua teoria de produti­
vidade marginal continha simultaneamente uma prescrição e
uma análise..., Clark foi um alvo feito de encomenda para as
diatribes dum Veblen». No entanto, Clark não foi o único partidário
desta concepção. Conforme salienta Ian Steedman, também Jevons
falou de «leis naturais» que regulavam a repartição entre lucros
e salários, e implicavam a inutilidade dos sindicatos e uma
harmonia essencial entre capital e trabalho ('Jevon’s Theory
o f Capital and Interest’, The Manchester School, Março de 1972,
pp. 48-9).

223
sentar oferta, e que deste modo, uma vez mais, a repar­
tição e as suas determinantes sociais, entravam como con­
dição prévia pelas traseiras,
A nível puramente formal, poucas dúvidas podem res­
tar de que os novos métodos e o novo contexto, com a sua
analogia matemática, quando não forma matemática, tive­
ram como resultado uma maior precisão e rigor de
análise. Neste sentido — aquele a que Schumpeter atribuía
predominância — a análise económica per se pode bem
dizer-se que avançou. Os instrumentos de dissecação da
discussão económica tornaram-se mais penetrantes — se
foram ou não utilizados para dissecar muito profunda­
mente, isso é outra questão. Pelo menos no que diz respeito
aos fenómenos de mercado, não há dúvida de que a penetra­
ção da análise se tornou maior e que passou a haver maior
subtileza na compreensão da formação dos preços e das va­
riações dos preços de mercado (incluindo, mais tarde, a
compreensão de situações de desequilíbrio e de flutuações
em torno do equilíbrio). Apesar das falácias associa­
das ao seu uso, mesmo a apresentação de problemas de
atribuição em termos de problemas de extremos e de
maximização teve a sua importância, e não se lhes pode
negar uma aplicação frutuosa. Por exemplo, inspirou, se é
que não gerou, a técnica especial da programação linear,
com a sua evidente relevância para questões de planifi­
cação. Isto não significa aceitar a opinião de Schumpeter,
segundo a qual o progresso na análise «pura» constituiu a
característica importante da mudança, e que o seu carácter
ideológico mais não foi que acidental. Na realidade, é o
contrário que é verdadeiro. Além disso, estas realizações
formais devem ser postas em confronto com a abertura de
algumas vias falsas, e, relativamente a problemas mais
fundamentais, com uma atenção pouco esclarecedora vol­
tada para aparências superficiais e ilusórias.
A polémica contra a tradição ricardiana anterior, e
ainda mais contra o sistema marxista, cuja porta Ricardo
foi acusado de ter aberto, não se limitou a rejeitar
por parte de Jevons (contra a qual Marshal protestou,
224
dizendo que era demasiado irreverente e iconoclasta).*
A maior parte dos argumentos são tão conhecidos
que não carecem de repetição, pois figuraram cor­
rentemente em compêndios elementares durante várias
gerações (como a afirmação de que, ao ignorar a influên­
cia da procura, qualquer tipo de teoria do custo é incapaz
de determinar preços em condições em que o custo varia
com a quantidade produzida). Mas há uma acusação
especial à qual aludimos acima, no Capítulo 4, que talvez
mereça ser aqui repetida devido à sua aparente sub­
tileza e pelo facto de ter vindo simultaneamente de
Walras e de Jevons. Trata-se do facto de a teoria de Ricardo
ter procurado «determinar duas incógnitas com uma só
equação», ao sugerir que o preço é determinado pelos
salários mais os lucros (quando se exclui a renda),
considerando ao mesmo tempo o lucro como excedente
de valor produzido acima dos salários.** Esta crítica
conforme vimos, embora potencialmente válida contra
a teoria da «soma de componentes» de Smith, resulta
de um erro flagrante por parte de Ricardo, tal como
salientou Dmitriev. Em réplica, já por nós citada,
Dmitriev escreveu o seguinte (passagem que transcre­
vemos in extenso, porque toda esta questão há muito
vem sendo mal compreendida):

* Principies, App. I, p. 817. Para Marshall, Jevons «tratou


duramente Ricardo e Mill», devido ao seu «desejo de sublinhar
um aspecto do valor ao qual eles não tinham dado suficiente
atenção». A afirmação de Jevons de que «o valor depende apenas
da utilidade», afigurou-se a Marshall «não menos parcial e parcelar,
e muito mais enganadora do que aquela em que Ricardo frequente­
mente caiu, devido a um laconismo descuidado, relativa ao facto de o
valor depender do custo de produção».
** Cf. Walras, Elements of Pure Economics, p. 425. Walras refere-
s e sobretudo à «teoria inglesa» e não propriamente a Ricardo;
mas a referência é bem evidente. «É claro», escreve Walras, «que
os economistas ingleses ficam completamente desconcertados com
o problema da determinação do preço.» Jevons fez censura idêntica
à tentativa «radicalmente falaciosa» de derivar «duas quantidades
desconhecidas de uma equação»! e a referência a Ricardo é aqui
mais evidente (Theory of Political Economy, p. 258).

15 225
Uma só equação não é suficiente para determinar
duas incógnitas.
Desta forma, estamos aparentemente encerrados
num círculo vicioso: para definir o valor, temos de saber
a dimensão do lucro; e o próprio lucro depende da
dimensão do valor. Parece que não há outra saída que
não seja tornar a dimensão do valor, ou do lucro,
dependente de condições situadas fora da esfera da
produção: foi a um processo deste género que A. Smith
recorreu... colocando o nível de lucros dependente da
oferta e procura de capital. Mas esse processo significa
admitir a inconsistência da própria teoria das despesas
de produção. O mérito imortal de Ricardo consiste
precisamente na sua brilhante solução deste problema,
que parecia insolúvel.

Dmitriev prossegue mostrando que a originalidade


de Ricardo consistiu em «ser o primeiro a apontar
que entre as equações de produção existe uma que
possibilita a determinação directa de r [lucroJ (quer
dizer, sem recurso a outras equações). Esta equação
é-nos proporcionada pelas condições de produção de a
[o bem-salário], ao qual as despesas com todos os pro­
dutos, na análise final... são redutíveis.»*
Há uma questão suscitada a propósito que certamente
estará na mente de muitos, mesmo entre aqueles que
tendem a aceitar a crítica da ortodoxia pós-jevoniana.
Ainda admitindo as falhas e deficiências acima men­
cionadas, sucederá realmente que nada é, ou pode
ser dito a respeito da estrutura das relações de troca,
e que nada de importante para o conhecimento eco­
nómico foi afirmado pela sofisticação semi-matemática
do século decorrido após Jevons? Não existirão real­
mente algumas afirmações sobre as inter relações
de preços dentro do círculo da troca, com aplicação
geral a todos os tipos de sociedade de troca, mesmo
que não possam desempenhar o papel, que lhes

* V. K. Dmitriev, Essais économiques (Paris, 1968), pp. 46-7.


Ver acima p. 150.

226
é atribuído, de permitir elaborar uma teoria da deter­
minação da repartição do rendimento, e, a partir daqui,
uma teoria satisfatória do valor e repartição no sentido
clássico? Dado um certo padrão walrasiano de raretés,
não será verdade que se torna em certo sentido «neces­
sário» um certo padrão de preços; e, se assim for, não
será essa «necessidade» supra-institucional ?
Esta pergunta é evidentemente pertinente, e não pode
ser iludida pelos críticos da doutrina moderna. Se se
puder fornecer uma resposta em termos gerais, parece que
deverá fundamentar-se numa distinção entre diferentes
categorias de afirmações sobre fenómenos económicos.
Quando se fala em termos daquilo a que Marx teria cha­
mado a categoria de «preço de mercado» (à qual ele pró­
prio só chega a meio do seu terceiro volume), é certo
que se podem fazer várias afirmações a respeito
das relações oferta-procura; e porque o seu número é
bastante restrito, assim como o seu significado numa pers­
pectiva mais ampla, «macro», não decorre daí que não pos­
sam ter importância em certos contextos especializados.
A questão está em que, para se fazerem essas afirmações,
é necessário tomar um certo número de coisas como
dadas (por exemplo — para considerar o caso extremo —
em todas as afirmações a respeito de situações de «curto
prazo» ou quase curto prazo marshallianas): dados que
são variáveis dependentes doutro nível de análise, mais
«profundo». Para explicar menos, mais tem de ser postulado
independentemente. Isto, se for bem compreendido, equi­
vale (ou é análogo) àquilo que o Professor Hicks pretende
quando fala de «equilíbrio restrito», ao qual se chega
restringindo o número de escolhas «em aberto».* Fun­
damentalmente, é por isso que as afirmações relativas
à oferta-procura não podem, por razões que considerámos,
incluir (ou ir tão longe como) uma teoria de repartição
propriamente dita; nem este género de teoria de deter­
minação da procura pode proporcionar uma resposta ade­
quada ao tipo clássico de problema de valor (única razão

* Capital anã Growth (Oxford, 1965), pp. 25-6.

227
pela qual a designação de «neoclássica» que lhe é aplicada
não é apropriada, e pode até ser enganadora). No que
se refere à repartição, já dissemos, de facto, que se deve
postular alguma repartição de rendimento para conferir
significado ao «padrão de procura», e, portanto, fazer
qualquer afirmação geral ao nível global dum tipo
de oferta-procura.
Uma forma de explicar o significado de con­
textos nos quais são aplicáveis relações de troca
determinadas pela procura, pode ser a seguinte. Supo­
nha-se que todos os inputs produtivos foram ob­
jectos naturais disponíveis num certo momento em
certas quantidades determinadas pela natureza.* Quais­
quer relações de troca dentro do sistema reflectiriam, evi­
dentemente (e seriam explicáveis em termos de) bens di­
versos e estritamente limitados vis-à-vis o padrão
de procura de produtos finais produzidos a partir de
diferentes combinações de inputs. Mas então, obvia­
mente, o processo de produção que geralmente se con­
cede (fora dum mundo completamente automatizado)
não existiria. Poder-se-ia modificar então as condições
para incluir o trabalho como um input entre objectos
naturais (por exemplo, trabalho de colheita, adaptação,
organização); e continuar a ter o mesmo modo de relacio-
nação no que se refere à troca de objectos naturais,
e entre estes e os outros (consumidos) finais: os primei­
ros funcionariam como renten-guter, que exige mum preço
proporcional ao papel que desempenharam no processo de
transformação em produtos finais e à procura relativa
dos produtos em que tiveram uma importância pri­
mordial. Poderia dizer-se, de facto, que existe aqui uma
certa analogia com os problemas aos quais se aplica
a técnica da programação linear: o problema de distribuir
os objectos naturais (escassos) entre os usos produtivos e
a sua combinação óptima para cada uso — um óptimo que
é definido em termos de «uma função objectiva», inter­
pretada em geral como uma série de usos finais conve-

* Por exemplo, os meteoritos de Marshall.

228
nientemente ponderados. Neste aspecto, poderia con­
siderarle, de maneira não muito rigorosa, mais
como uma técnica do que como uma explicação
teórica da realidade. De facto, a analogia com a
programação linear pode ser utilizada neste ponto, pre­
cisamente porque, como se sabe, esta técnica de análise
é aplicável a alguns problemas duma economia so­
cialista, quer a nivel particular quer a nível geral,
assim como a uma economia capitalista, e, nesta medida,
deve referir-se a aspectos ou relações supra-institucionais.
Essa analogia pode ter pelo menos esta vantagem: apre­
senta usos finais que é necessário postular arbitraria­
mente a partir do exterior do sistema, quer na forma
dum dado plano de output (por exemplo, Kantorovitch),
quer (se for baseada numa procura de mercado explícita)
na da postulação implícita de urna dada repartição de
rendimento.
Per contra, na medida em que se atribui à activi­
dade humana um papel primordial no processo produtivo,
e em que inputs reprodutivos (produto do próprio pro­
cesso produtivo) substituem objectos naturais escassos, os
fúndamenos do problema económico tornam-se diferentes,
em primeiro lugar porque a questão da existência e pro­
veniência de um excedente de valor pode ser agora apre­
sentada de um modo relevante,* e em segundo lugar por­
que a proporção de qualquer valor-produto dado atribuída
aos salários (e assim contabilizada), e o modo de repar­
tição do excedente ou diferença entre ambos, será uma
determinante fundamental da estrutura de preços resul­
tante.
Mas, se se puder construir um modo formal de deter­
minação, em termos de relações de escassez («escassez»

* A razão pela qual essa questão não teria cabimento no nosso


caso hipotético anterior, é que, evidentemente, as «rendas», ou
preços de escassez, de meios ou inputs naturalmente escassos,
aumentariam no sentido do nível de preço dos outputs, ou, se
alguns destes inputs puderem ser mais rendosos como output
do que o exigido como inputs, depressa deixarão de ser bens
(naturalmente limitados) escassos .

229
definida e medida em referência ao conjunto de usos
finais), e esse modo de determinação puder fornecer al­
guma informação, numa situação de meios ou inputs
determinados naturalmente, porque não haveria ele de
servir igualmente em situações análogas, em que
qualquer conjunto de n meios ou inputs, embora não de­
pendentes de limitações naturais, são, não obstante, deter­
minados de qualquer outro modo quanto às suas ofertas?
Por outro lado, não poderão as relações de preço-
-escassez assim deduzidas, aplicar-se não só a produtos
mas também a estes meios ou inputs? Na verdade, isto
é perfeitamente possível; mas, conforme vimos ao refe­
rirmo-nos aos austríacos, sujeito à condição restritiva de
que o conjunto de n meios ou inputs exista previamente
como dado. A restrição é considerável. Exclui todas as si­
tuações em que estas ofertas têm probabilidades de altera­
ção (isto é, como efeito de «fudback» dos seus preços), e
uma análise sujeita a esta restrição não pode pronunciar-se
quanto às razões e meios por que estas alterações se produ­
zem ou quanto aos seus efeitos — motivo pelo qual falamos
das situações em que essa teoria se pode aplicar como
«situações de quase curto prazo». É evidente que daquilo
que essencialmente é uma teoria de curto prazo se não
pode esperar que resolva problemas de «longo prazo»
(por exemplo, a respeito de situações de equilíbrio que
envolvam uma taxa de lucro uniforme).* Procura-se fugir
a esta restrição tentando agrupar estes n meios ou inputs
em grupos de factores mais vastos, e relacionar as alte­
rações de oferta dos primeiros com as situações dos segun­
dos: uma fuga que tem as suas dificuldades específicas
(que consistem na necessidade de postular algumas enti­
dades distintamente estranhas, na realidade metafísicas,
como «factores» genéricos), que hoje vão sendo conhe­
cidas e às quais voltaremos a referir-nos.
Pode observar-se, a propósito, que qualquer dos
dois modos de tratar o problema (e mais manifestamente
no segundo) implica que as combinações partieula-

* No entanto, ver adiante> no final deste capítulo.

230
res de inputs, ou técnicas escolhidas dependem dos
(e variam com) os preços dos factores ou inputs esta­
belecidos pelas relações de preço resultantes do sistema
em geral. Isto, por sua vez, implica a noção duma «função
de produção», ou duma escala de substituição de factores
que defina todas as diferentes combinações de factores
ou inputs que possam produzir o mesmo output (sendo esta
curva de substituição «objectiva» no sentido de se basear
Unicamente em dados técnicos, num certo estado de conhe­
cimento técnico). Esta noção duma «função de produção»
inclui grandes dificuldades, conforme verificaremos daqui
a pouco, quando chegarmos às discussões travadas nos
últimos anos. Se este modo de tratar o problema for posto
de parte, é postulado, então, um conjunto de n processos
ou métodos de produção possíveis para cada indústria;
mas embora o processo ou método escolhido em qualquer
momento dependa da proporção salário-lucro (e da resul­
tante estrutura de preços dos produtos utilizados como
inputs), por razões que se tornarão evidentes não se ve­
rificará a obrigação que existe no primeiro caso (em que
os grupos de factores e as suas ofertas relativas desem­
penhavam um papel primordial), de considerar estes
processos alternativos ordenados de modo particular.

II

Anteriormente a Jevons, muitos parecem ter acre­


ditado que o «valor de uso» de Adam Smith não
podia ser quantificado. Portanto, apesar da referência de
Bentham a graus de intensidade de prazer e dor, e apesar
das sugestões de Say e outros que se lhe seguiram, não
houve tentativa sistemática para o introduzir como deter­
minante (distinto de condição) do valor de troca. O ele­
mento novo em Jevons, que actuou como factor decisivo,
foi evidentemente ter destacado «o grau final da utilidade»
e tê-lo equiparado ao valor de troca. Isto revelou que
apenas era necessário tratar diferenças de utilidade, dife­
renças relativamente pequenas, como quantitativas, na
medida necessária para serem comparáveis em termos
de maior ou menor. A comparação dessas diferenças,
231

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