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O Inconsciente: Criatividade, Linguagem e Comunicação

Arte e Criatividade

Reuben Fine

Uma vez estabelecido o significado dos sonhos na vida humana, e elaboradas as


técnicas para a sua interpretação, Freud percebeu que tinha uma importante chave para
toda a experiência humana. Logo ele voltou sua atenção para o trabalho criativo e a arte,
1
visando todo o esforço criativo, independente do meio. Contudo, nos primeiros anos,
antes da Primeira Guerra Mundial, Freud ocupou-se principalmente da busca de
evidências para suas teorias, então ridicularizadas pela maioria dos seus colegas
profissionais. Em conseqüência, ele abordou o artista com uma visão um tanto estreita,
que só lentamente se expandiu, com o decorrer do tempo. Novamente, embora Freud
tivesse dado o impulso, a maioria das contribuições psicanalíticas à arte e criatividade
proveio de outros analistas.
Historicamente, o artista tem sido considerado um gênio ou um louco. Uma das
principais contribuições de Freud foi trazê-lo de volta à terra, e mostrá-lo como um ser
humano. Para isto, Freud teve de demonstrar que os mecanismos que operam no artista
criativo não são essencialmente diferentes daqueles em outras pessoas. Por isso, por um
longo tempo, seu interesse esteve nos impulsos contidos na produção artística,
juntamente com os meios usados pelo artista para distorcer ou ocultar estes impulsos.
Já em 1897, numa carta a Fliess, ele escreveu que os mecanismos da escrita
criativa (Dichtung) são os mesmos que os das fantasias histéricas. “Portanto, Shakespeare
estava certo em sua justaposição da poesia e loucura (fine frenzy).” 2
Descoberta a idéia do complexo de Édipo, ele percebeu que este era visível em
muitas das grande obras da literatura. Nas edições da Interpretação dos Sonhos, depois
de 1914, ele acrescentou vários parágrafos sobre Hamlet, com seus temas de assassinato
do pai e incesto com a mãe. Conquanto frisasse a existência destes temas na obra de
Shakespeare, ele não tentou na verdade simplificar excessivamente a interpretação.
Escreveu que:
Assim como todos os sintomas neuróticos, e de resto também os sonhos, são passíveis de serem
“superinterpretados”, e de fato precisam sê-lo, para serem plenamente compreendidos, da mesma forma
todos os escritos genuinamente criativos são o produto de mais de um motivo e mais de um impulso na
mente do poeta, e são abertos a mais de uma interpretação. No que escrevi, somente tentei interpretar a
camada mais profunda de impulsos na mente do escritor criativo.3

A primeira discussão extensa de Freud sobre a questão da produção artística


surgiu num artigo sobre “Personalidades Psicopatológicas no Palco”, que foi escrito em
1904 e apresentado ao Dr. Max Graf, embora nunca tivesse sido publicado durante a vida
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de Freud. Ali ele apresentou muitas das importantes observações que desde então
tornaram-se as fundações da teoria psicanalítica da arte.
O drama, diz Freud, é uma forma de tornar acessíveis fontes de prazer ou
satisfação na nossa vida emocional, grande parte das quais é de outra forma inacessível.
Assistir a uma peça faz para os adultos o que brincar faz para as crianças. O dramaturgo e
ator permitem que os adultos o façam levando-os a se identificarem com um herói.
Como o drama tantas vezes ocupa-se do sofrimento, o prazer do espectador
deriva-se de uma dupla ilusão: primeiro, que é outro e não ele que está representando e
sofrendo no palco, e em segundo lugar, porque se trata, afinal, de apenas um jogo, que
não pode representar perigo para sua segurança pessoa. Contudo, os conflitos retratados
no palco devem estar dentro do âmbito da experiência do espectador. Por isso, se o
sofrimento no palco torna-se intenso demais, o espectador deve ser muito neurótico para
sentir prazer com isso. Assim, há um entre-jogo entre o autor e a audiência, da mesma
forma que nos chistes. Conclui Freud: “Em geral, pode-se talvez dizer que somente a
instabilidade neurótica do público e a habilidade do dramaturgo em evitar resistências e
oferecer satisfações pode determinar os limites impostos à utilização de personagens
anormais no palco.” 5
Em 1907, Freud publicou um artigo sobre um romance do escritor alemão
Wilhelm Jensen. A questão abordada por Freud era se um sonho num romance pode ser
interpretado da mesma forma que um sonho de uma pessoa real; e ele conclui que sim,
sob certas circunstâncias.
Depois, em 1908, veio seu artigo teórico mais importante até então, sobre o
6
processo criativo, “Escritores Criativos e Devaneio”. Aqui ele abordou a questão das
fantasias e de como o escritor criativo produz seus efeitos. As fantasias, sustentava ele,
são um substituto para as brincadeiras da infância; depois de um certo ponto, a criança,
em vez de brincar, fantasia. A fantasia é inerentemente mórbida: “Podemos afirmar que
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uma pessoa feliz nunca fantasia, somente aquela insatisfeita.” As fantasias centram-se
em dois conjuntos principais de desejos: eróticos e ambiciosos.
Em sua discussão subseqüente ele ressaltou o caráter perigoso das fantasias: “Se
as fantasias tornam-se muito ricas e poderosas, estão criadas as condições para um acesso
de neurose ou psicose. As fantasias, ademais, são os precursores mentais imediatos dos
perturbadores sintomas de que nossos pacientes se queixam. Aqui uma ampla vereda leva
à patologia.” 8
O escritor criativo lida com desejos e satisfação de desejos; sob este aspecto, ele é
semelhante a todos os outros mortais, e suas fantasias lidam com temas universais
semelhantes. “Uma peça de escrita criativa, como um devaneio, é uma continuação e um
substituto do que outrora era a brincadeira da infância.” 9 Entretanto, o escritor esmaece
o caráter de seus devaneios egoístas (diríamos hoje narcisistas) através da alteração e
disfarce de seus desejos. Isto permite ao espectador desfrutar do esforço artístico pelo
mesmo mecanismo que opera nos chistes: a arte tem o caráter de prazer antecipado, e
nosso prazer com uma obra imaginativa depende de uma liberação de tensões.
O primeiro longo estudo de Freud sobre a personalidade de um grande artista
abordou Leonardo da Vinci, em 1910. Este livro, o primeiro estudo de fôlego sobre um
grande artista em linhas psicanalíticas, abriu o terreno para todo um gênero literário,
chamado de início patografia (biografia patológica), depois de biografia psicológica, e
finalmente, simplesmente psico-história. Na introdução, Freud sentiu-se forçado a
desculpar-se por estudar um grande homem: “Ela [a psicanálise] não pode deixar de
achar digno de compreensão tudo que se pode reconhecer nestes modelos ilustres, e
acredita que não há alguém tão grande que possa ser diminuído por se sujeitar às leis que
rezem a atividade normal e patológica com igual rigor.” 10
O estudo de Freud foi guiado por seu desejo de explicar duas facetas da vida de
Leonardo, as inibições em sua vida sexual e em sua atividade artística. Ele foi capaz de
11
ligar ambas às circunstâncias da infância de Leonardo. Filho ilegítimo, Leonardo foi
criado pela mãe até os 5 anos de idade, quando passou à guarda de seu pai, para nunca
mais ver a mãe. Fiel a esta, ele nunca teve uma vida sexual. Em seu trabalho artístico ele
buscava sua mãe perdida; sua hesitação constante era provocada pela compreensão de
que poderia procurá-la mas nunca encontrá-la. Freud negou explicitamente que sua
patografia incluía uma explicação do gênio de Leonardo: “Como o talento e capacidade
artísticos estão intimamente ligados à sublimação, devemos admitir que a natureza da
função artística nos é também inacessível em linhas psicanalíticas.” 12
Duas outras questões enfrentadas por Freud em seus escritos deste período foram
o significado dos materiais simbólicos em obras de arte e a interpretação de uma obra de
arte. Em “O Tema dos Três Escrínios” (1913), ele toma um tema de O Mercador de
Veneza, de Shakespeare, no qual Pórtia se compromete, por ordem de seu pai, a tomar
como marido somente aquele de seus pretendentes que escolher o escrínio certo dentre os
que são apresentados: de ouro, de prata e de chumbo. O correto é o de chumbo. Os
escrínios representam três mulheres; o chumbo simboliza a nudez ou a morte, e por uma
transformação torna-se a Deusa do Amor, a mais formosa, a melhor e a mais desejável e
amável das mulheres.
Em “O Moisés de Michelangelo” (1914), Freud, pela primeira vez, estudou
exaustivamente uma escultura. Sua meta era explicar a intenção de Michelangelo ao criar
a estátua; ele concluiu que Michelangelo “acrescentou algo novo e mais do que humano
`figura de Moisés; de forma que a figura gigantesca, com sua tremenda força física,
torna-se apenas uma expressão concreta da maior conquista mental que é possível a um
homem, a de lutar com sucesso contra uma paixão interna, em prol de uma causa a que se
devotou”. 13 Pouca dúvida pode haver de que Freud tinha uma forte identificação pessoal
com Moisés, a quem dedicou uma enorme quantidade de tempo e a mais especulativa de
suas obras (Moisés e o Monoteísmo, 1938).
Embora Freud tenha feito muitos outros comentários sobre artistas e produções
artísticas em seus escritos, ele nunca elaborou uma teoria sistemática da arte. Spector tem
toda a razão ao observar que Freud, a despeito de suas muitas percepções, parece
introduzir alguns de seus próprios problemas na discussão da arte; 14 por exemplo, ele não
podia compreender a moderna arte abstrata, portanto evitou quais quer comentários a
respeito. Da mesma forma, Freud não era musical, portanto ignorou a música.
A primeira descrição coerente da abordagem psicanalítica à arte surgiu com o
trabalho de Hanns Sachs e Otto Rank. Eles editavam o novo periódico Imago, fundado
por Freud em 1911, que continua ainda hoje como The American Imago. Em 1013, Rank
e Sachs publicaram uma monografia sobre O Significado da Psicanálise para as
Ciências Sociais (Geisteswissenschaften). Diversos outros artigos e livros consagraram-
nos como as duas principais autoridades psicanalíticas em arte e no que veio a ser
conhecido como psicanálise aplicada. Em O Inconsciente Criativo (1942), Sachs reuniu
seus mais importantes ensaios sobre este tópico. Rank resumiu suas idéias em A Arte e o
Artista (1932). Estes dois livros abrangem a abordagem freudiana primitiva à arte, cada
um dos autores acrescentando algumas de suas próprias idéias.
O artista, escreveu Sachs, está mais próximo do seu id do que a pessoa mediana.
Sempre atento a uma nova inspiração, o artista torna-se mais narcisista. Inerentemente, é
uma forma sadia de narcisismo, mas pode ser distorcida. Contudo, o narcisismo é
transferido a seu trabalho, e ele o partilha com uma audiência, em lugar focalizá-lo em si
próprio. Uma vez transferido o narcisismo a sua obra, surge uma série de possibilidades:

1. Pode haver uma aceitação de impulso em todos os sentidos. Esta é a imagem do


homem da Renascença – um indivíduo vigoroso, capaz de desfrutar plenamente a
vida. Rank encarava este tipo de homem como normal, em contraste com o
mediano conformista e o neurótico de vontade tolhida.
2. O artista pode ficar preso a seu narcisismo. Tem contato íntimo com uma pequena
parcela da realidade, mas fora desta esfera não é diferente da pessoa comum,
inibida.
3. Devido à oportunidade de gratificação narcisista, muitas pessoas são atraídas para
a arte como um meio de liberação de seu narcisismo. Podem ter pouco ou nenhum
talento para a arte, ou pouco ou nenhum interesse por ela. Fazem-se de artistas
para serem boêmios, em vez de serem boêmios porque isto é indispensável à sua
arte.
4. Freqüentemente, este processo fracassa, porque o artista está lidando com material
perigoso. Os impulsos sobrevêm com muita energia, e ele se torna mais
interessado em satisfazê-los do que em fazer o seu trabalho. A satisfação dos
impulsos sem freios traz consigo todos os perigos de psicose, suicídio e atividade
autodestrutiva como nas pessoas que não são artistas. Esta é uma razão pela qual é
tão comum a patologia entre os artistas – eles estão brincando muito perto do
fogo.
5. De novo, o narcisismo pode tornar-se tão severo que toma o lugar da arte. Neste
caso, o artista já não tem mais a defesa de sua produção artística – torna-se
diretamente interessado em se exibir. Um tal aumento de narcisismo, da mesma
forma, leva a um grau maior ou menor de patologia.
6. A liberação narcisista pode ser temporariamente assustadora, de forma que a
produtividade artística é interrompida. Isto causa o bloqueio criativo, o sintoma
mais freqüentemente observado entre os artistas. Leva-os mais à análise do que
qualquer outro motivo. Isto é prontamente compreendido através de uma análise
das circunstâncias.
7. A absorção narcisista pode tornar-se tão fatigante que o artista abandona a sua
arte para retornar à vida comum. Isto não é tanto bloqueio criativo como fadiga
criativa. Às vezes a fuga é permanente; mais freqüentemente é temporária. É a
absorção narcisista que explica a “solidão” do artista (Niederland, 1976).

O Papel do Ego
À época da Primeira Guerra Mundial, estava bem determinado que os impulsos
instintivos encontrados em neuróticos estavam presentes universalmente em todas as
pessoas. O artista apenas encontrou um meio de expressar impulsos proibidos de uma
forma socialmente aprovada. Assim, o artista não era louco nem gênio, como se supunha
anteriormente. Mas que tipo de homem era ele? Ou, nos termos mais técnicos da
psicanálise, o seu id era como o das outras pessoas, mas como era o seu ego? Foi esta
questão que a pesquisa psicanalítica abordou a partir da década de 1920, especialmente
depois que Freud formulou sua teoria da psicologia do ego, em 1923.
Freud permaneceu ambivalente a respeito da psicologia do artista. De um lado, ele
sustentava que as pessoas sadias não criam fantasias, o que fazia do artista, per se, um
neurótico. De outro lado, ele afirmava que a psicanálise não pode explicar o gênio.
Assim, ele ficou preso ao velho dilema: o artista é um louco ou um gênio? O resumo final
e amadurecido da posição de Freud pode ser encontrado em suas Conferências
Introdutórias (1916-1917), onde ele escreve:

Há um caminho que leva de volta, da fantasia para a realidade – o caminho da arte. Um artista é
mais uma vez, em rudimentos, um introvertido, não muito distante da neurose. É oprimido por
necessidades instintivas excessivamente poderosas. Deseja honrarias, poder, riqueza, fama e o amor das
mulheres; mas não tem meios de atingir estas satisfações. Conseqüentemente, como qualquer homem
insatisfeito, ele se afasta da realidade e transfere todo o seu interesse, e também sua libido, para as
construções de desejo da sua vida de fantasia, um caminho que pode levar à neurose...
Para os que não são artistas, o prazer a ser obtido com as fontes de fantasia é muito limitado...
Um homem que é um verdadeiro artista tem mais à sua disposição. Em primeiro lugar, ele sabe como
elaborar seus devaneios de maneira a fazer com que eles percam o que é pessoal demais e repele os
estranhos, e a tornar possível que outros partilhem do gozo. Ele também compreende como atenuá-los, de
forma que eles não traiam facilmente sua origem de fontes proscritas. Ademais, ele possui o misterioso
poder de moldar algum material particular até que ele se torne uma imagem fiel de sua fantasia; e sabe
ainda como ligar uma fonte de prazer tão grande a esta representação e sua fantasia inconsciente, de
forma que, pelo menos no momento, as repressões são superadas e suspensas. Se é capaz de conseguir
tudo isto, ele faz com que outras pessoas possam mais uma vez extrair consolação e alívio de suas
próprias fontes de prazer em seu inconsciente, que se tornaram inacessíveis a elas; ele obtém sua gratidão
e admiração, e assim obteve através de sua fantasia o que originalmente só tinha conseguida na sua
fantasia: honrarias, poder e o amor das mulheres.

Paul Federn: Narcisismo Sadio versus Narcisismo Patológico


A primeira abordagem psicanalítica do ego do artista apareceu em termos de seu
narcisismo. Qual a razão da diferença entre uma regressão narcisista para a psicose e a
capacidade narcisista de realizar uma bela obra de arte? Uma contribuição significativa a
este problema foi oferecida por Paul Federn em 1929, com o primeiro de seus artigos
sobre narcisismo sadio e patológico. A importância deste artigo foi obscurecida devido à
sua conexão com a teoria idiossincrática de Federn sobre o Ego (discutida mais adiante);
ele deve na verdade ser lido sem se fazer referência a suas proposições metapsicológicas.
Suas conclusões principais, em suas próprias palavras, são como segue: 15

1. O narcisismo sadio é empregado como contracatexia aos anseios objetais e em


apoio a eles (por exemplo, esperança, ambição), mas não como seu substituto.
Quanto mais funciona o narcisismo como substituto, mais patológico ele se torna.
16

2. As fronteiras do ego são resistentes no narcisismo normal; o ego é


suficientemente estável, devido às contracatexias narcisistas adequadas.
3. Os afetos são resolvidos sem sentimentalismo, mas sem intensidade – isto é, sem
um renovado investimento de narcisismo.
4. O nível da satisfação antecipada resultante das catexias narcisistas não é muito
elevado; enquanto que o nível de tal satisfação antecipada inerente ao sentimento
permanente do ego é geralmente tão grande quanto possível.
5. A satisfação nas fantasias narcisistas conscientes e inconscientes depende das
descargas libidinais objetais reais, embora a condicionalidade inversa não esteja
ausente. No narcisismo patológico, esta última predomina [isto é, a libido objetal
depende das fantasias narcisistas].
6. Os conteúdos das fantasias narcisistas conscientes e inconscientes estão mais de
acordo com a realidade, são menos infantis e são catexizados por menos
componentes sexuais infantis, perversos.
7. O item 6 é ainda confirmado pelo fato de que a promessa magicamente
estabelecida nestas fantasias torna-se mais grandiosa e mais impossível na mesma
medida que a atitude narcisista contribuinte desvia-se da normalidade.

As idéias de Federn foram adotadas por muitos outros autores analíticos, muitas vezes em
linguagem diferente. Uma exposição mais clara, embora com as mesmas idéias
essenciais, encontra-se no artigo de Erich Fromm sobre “Egoísmo e Auto-Amor” (1939).
Nas palavras de Fromm, o amor por outros e o amor por nós mesmos não são
alternativas. Pelo contrário, uma atitude de amor em relação a si próprio será encontrada
em todos aqueles que são capazes de amar outros. O amor, em princípio, é indivisível, no
que diz respeito à ligação entre objetos e o eu próprio. O amor genuíno é uma expressão
de produtividade e implica em atenção, respeito, responsabilidade e conhecimento. Não é
um “afeto”, no sentido de ser afetado por alguém, mas um anseio ativo pelo crescimento
e felicidade da pessoa amada, enraizado na capacidade própria de amar.

Rank: O Indivíduo Criativo como Superior


Outra contribuição significativa proveio de Otto Rank, que frisou o elemento criativo
na personalidade humana como algo superior, e não uma sublimação neurótica, como
Freud tendia a pensar. Rank publicou suas idéias numa série de obras. Ele abordou o
problema em termos de uma tríade de impulso-medo-vontade, especialmente a última. O
indivíduo normal (isto é, culturalmente médio) é aquele que torce a sua própria vontade
para conformar-se com a maioria. O neurótico foi “quebrado na roda do destino”; ele
abandona a atividade devido a inibições neuróticas. Somente o indivíduo criativo é capaz
de afirmar sua vontade independente e alçar-se acima das normas convencionais.
Rank não glorificou o artista como tal, mas sim o indivíduo criativo, cujas expressões
variavam com as condições culturais em que ele se encontrava. Sua meta, dizia ele, era
revelar o impulso humano criativo, ampla e geneticamente, e depois chegar a uma
compreensão de suas manifestações especificamente artísticas através de seu
desenvolvimento cultural e significado espiritual. É portanto necessário considerar todas
as formas de expressão da cultura humana, por mais variadas que sejam, primeiro em
relação a suas origens no impulso criativo, e depois em relação a sua ação recíproca. De
fato, sustentava Rank, o artista criativo ainda está buscando na arte um refúgio que seria
melhor abandonar, retornando à vida real. Uma vez feito isto, ele se torna o homem novo
que a psicanálise busca criar.

Ella Sharpe: Semelhanças entre Arte e Ciência


As numerosas discussões sobre a criatividade logo levaram à questão: qual é a
diferença entre o artista e o cientista? Obviamente, podem-se encontrar em ambos grande
gênio e extraordinária criatividade. Ella Sharpe, uma analista inglesa, sugeriu uma
resposta amplamente aceita. Ela afirmou que mecanismos semelhantes operam em
ambos, mas nenhum deles atingiu a primazia genital. Ela frisou o papel da introjeção e
projeção em ambos, e ligou a realização criativa com o domínio da agressão muito mais
coerentemente do que tinha sido feito até então.
O artista, sustentou ela, ao produzir uma obra de arte que exibe as características de
harmonia e invenção, está-se identificando com a boa experiência que significa a vida
física e psíquica. Ele restaura portanto o ritmo de seus impulsos agressivos.
Por outro lado, o cientista descobre fatos com base na experiência corporal, aliada à
observação de acontecimentos em seu ambiente externo, e experiências de prazer e dor.
A necessidade de conhecer, de investigar, é acentuada pela fantasia agressiva. A projeção
se torna mais maciça devido ao medo da responsabilidade por ferir a mãe. O
conhecimento da realidade é um baluarte contra a fantasia, mas o fato do conflito com a
realidade, o poder real de descobrir causas e leis, baseia-se não na agressão per se, mas
numa experiência fundamental da realidade psíquica e física, a saber, a ordem rítmica.
Isto triunfa sobre a agressão e, na fantasia, preserva a boa imagem.

Melanie Klein: Arte como Reparação à Mãe Ferida


Em 1925, Melanie Klein publicou o primeiro de muitos estudos pioneiros sobre a
expressão artística, na qual ela tentou mostrar que a criatividade provém do desejo de
reparar o sofrimento causado psicologicamente pelo filho. Este tema de sofrimento e
reparação, para Klein, está na raiz da criação artística. Assim, ela também mostrou que,
na análise de crianças, quando a representação de desejos destrutivos é seguida de uma
expressão de tendências reativas, constantemente verificamos que desenhar e pintar são
usados como meio de restaurar as pessoas. Esta ansiedade sobre reparação e culpa é um
dos principais incentivos à realização. Hanna Segal (em M. Klein, 1953) assim diz:

A memória da boa situação, onde o ego da criança continha todo o objeto amado, e a
compreensão de que ele foi perdido pelos próprios ataques dela leva a um intenso sentimento de
perda e culpa, e ao desejo de restaurar e recriar o objeto amado perdido, fora e dentro do ego. Este
desejo de restaurar e recriar é a base da sublimação e criatividade posterior. 17
Rickman (1940) igualou “feio” a destruído, o objeto incompleto. A beleza, um ritmo
não-perturbado num todo composto, parece corresponder ao estado em que nosso mundo
interior está em paz. Contudo, tanto a beleza como a feiúra devem estar presentes para
uma plena experiência estética.
Uma série de estudos de artistas e obras de arte mostrou a relevância desta teoria de
culpa e reparação. Levey (1938) mostrou como uma paciente sua usava a poesia como
defesa contra suas ansiedades, e como seus poemas refletiam as vicissitudes da
transferência. Joan Riviere (1955) ofereceu inúmeros exemplos da fantasia inconsciente
de um mundo interior refletido em exemplos da literatura; o tratamento deste mundo
interior pela autora toca o âmago do processo criativo. Bunker (1953) mostrou como um
escritor levou isto mais adiante, fazendo da mãe má o objeto perseguidor que não lhe
permitiria publicar sua poesia. Bergler (1949) mostrou que tal orientação masoquista é o
conflito central de muitos artistas.

Melanie Klein: Identificação Projetiva como Artifício Artístico


A identificação sempre foi conhecida como um dos principais mecanismos na
produção e gozo artístico; Freud dirigiu atenção para ela no seu primeiro artigo sobre o
tópico, em 1904. Em 1946, Melanie Klein acrescentou o mecanismo aliado da
identificação projetiva para o processo durante a posição esquizo-paranóico, em que
partes do ego são separadas e projetadas para o mundo exterior. Como produção artística
ela ilustrou a tese com a análise de um romance do escritor francês Julian Green. A
essência da história é que o herói, Fabian, adquire o poder mágico de se transformar em
outras pessoas fazendo um pacto com o diabo, que lhe ensina uma fórmula secreta
através da qual pode-se efetuar a transformação. A parte separada de Fabian submerge
em vários graus em seus objetos e perde as memórias e características pertencentes ao
Fabian original.

Imortalidade, Luto e Criatividade Artística


Muitos autores comentaram sobre a busca de imortalidade pelo artista, que decorre do
luto por um ente perdido e o medo da morte. Pollock dedicou uma longa série de artigos a
este tópico. Num artigo ele discutiu o papel da música no luto e memorialização (1975b),
e em outro ele mostrou como o luto influenciou a criatividade musical de Gustav Mahler
(1975c).
Shakespeare deu uma bela expressão a este desejo no seu famoso soneto 55. 18

Not marble nor the gilded monuments


Of princes shall outlive this powerful rhyme…
So, till the judgment that yourself arise,
You live in this and dwell in lovers’ eyes.*

Como muitos observaram (v. Peters, 1961), a arte recria, une, restaura e retém objetos
perdidos. O artista pode descatexizar o que é perdido e depois recatexizar o objeto recém-
criado. Talvez o objetivo final da arte seja conquistar a morte ou o medo da morte, e
assim atingir a imortalidade. Com efeito, este é um motivo bastante consciente e
difundido entre os próprios artistas, que freqüentemente falam de obras de arte “grandes”,
“imortais”, “eternas”, e são constantemente perseguidos pelo medo de que sua obra será
esquecida. Pollock observa que, antes que possa haver uma nova criação, deve haver um
processo de luto pela artista, seja ela o objeto perdido, o ideal perdido ou a criação
perdida.

Ernst Kris: A Regressão a Serviço do Ego


Em 1936, Ernst Kris publicou um artigo muito aclamado, no qual levantou a hipótese
de que a diferença entre o artista e o neurótico é que o artista pode realizar uma regressão
a serviço do ego, enquanto o neurótico não pode fazê-lo, limitando-se a regredir.
Subseqüentemente, esta conceitualização foi aplicada em muitas estruturas diferentes.
Contudo, a tese de Kris baseia-se na premissa de que a consciência do impulso é de
alguma forma necessariamente “regressiva”, ignorando o fato de que muito da inibição
neurótica decorre do fracasso em reconhecer o impulso. Bush (1969) ofereceu a crítica
mais incisiva à posição de Kris. Para uma discussão mais detalhada, veja o Cap. 11.
Phyllis Greenacre: A Infância do Artista
Em 1957, Greenacre publicou um artigo sobre a infância do artista, no qual lançou a
hipótese de que a criança potencialmente dota da possui uma sensibilidade nitidamente
maior do que a média à estimulação sensorial, que pode significar tanto uma
intensificação da experiência como uma ampliação dela, para incluir não só o objeto
primário que é focalizado, mas objetos mais periféricos que estão relacionados em algum
grau ou maneira ao primário, em sua capacidade de despertar respostas sensoriais algo
semelhantes. Ela tentou vincular esta habilidade acrescida ao desenvolvimento da fase
libidinal, embora tenha declarado que continuava basicamente convencida de que o
gênio é um “dom dos deuses” e formado desde o nascimento.
Seu artigo era principalmente de natureza teórica, contudo, derivando-se mais do
raciocínio metapsicológico do que de um estudo de casos reais. Embora seja sabido que
muitos artistas sofreram sérias privações na infância, isto não ocorreu com outros. O
19
único fato que parece bem estabelecido é que o talento notável na vida posterior
depende de alguma habilidade que amadurece prematuramente. Enquanto Mozart quase
não tem paralelos, o músico medianamente competente esteve ativo, ou tocando ou
mesmo compondo, desde a tenra infância; o mesmo é verdadeiro em outros campos
(Fine, 1967). Talvez a principal conclusão a se extrais do significado do trabalho é que o
talento sem uma devoção contínua ao trabalho duro, em si, é desperdiçado. O escultor
Chaim Gross comentou que ele costumeiramente dedica 5 a 10 horas por dia a sua
pintura, e observou que a maior parte de seus colegas competentes fazem o mesmo
(Fried et al., 1964).
Estudos psicológicos (Oden, 1968) mostraram que uma grande habilidade em
qualquer campo da vida adulta é precedida por uma grande habilidade, na infância, de
uma natureza geral. Terman verificou que muitos cientistas eminentes também foram
artistas talentosos quando crianças, mas abandonaram a arte para se dedicarem à ciência.
Isto lança considerável dúvida sobre a opinião expressa por muitos analistas, de que os
artistas tiveram em geral experiências profundamente perturbadoras na infância. Podem-
se encontrar muitos casos específicos, que foram apontados na literatura, mas nunca se
mostrou que o artista per se é mais perturbado que seus colegas não-artistas. De fato, esta
idéia parece ser uma continuação, dentro da análise, da velha noção de que o artista é um
louco ou um gênio.

A Liberação da Criatividade na Psicanálise


No campo clínico, o contato entre a criatividade e a psicanálise ocorreu em duas
dimensões diferentes, embora relacionadas. Antes de tudo, muitos indivíduos criativos
buscaram a psicanálise para superar inibições em seu trabalho, bloqueios criativos. Em
segundo lugar, muitos indivíduos até então não-criativos encontraram uma nova liberação
e capacidade criativas em si próprios em conseqüência de sua psicanálise.
Em 1964, Fried et al. Publicaram um estudo dos resultados terapêuticos em seis
personalidades criativas tratadas no Centro de Pós-Graduação em Nova Iorque. O
difundido medo entre os artistas, de que a psicanálise embotaria ou destruiria suas
qualidades criativas, revelou-se completamente infundado. Exatamente ao contrário: os
pesquisadores verificaram que, tanto no que diz respeito à quantidade de produção como
à construtividade e adequação dos padrões de trabalho, houve um desenvolvimento
positivo. Em muitas áreas, ocorreram melhorias notáveis e decisivas.
Quanto à outra questão, a liberação da criatividade no paciente analítico mediano,
são mais difíceis de obter dados claros. Não obstante, é parte da experiência de todo
analista ter pacientes que, tendo estado anteriormente seriamente tolhidos ou inibidos,
superaram estas inibições e floresceram em várias direções. Às vezes o crescimento está
na área do que tecnicamente é chamado de criatividade, isto é, realização numa das artes.
Mas, mais freqüentemente, envolve uma liberação de espontaneidade ou criatividade
interior (Fine, 1975b). Se se encara a neurose como estereotipia e repetitividade, então
torna-se claro que superar estes bloqueios, liberando variedade e espontaneidade, torna-se
em maior ou menor grau uma meta de todo tratamento analítico. O grau em que este terá
sucesso, naturalmente, é variável.
A liberação da criatividade interior está ligada a outro fenômeno vitalmente
significativo, a mudança na população de pacientes depois da Segunda Guerra Mundial,
especialmente nos Estados Unidos. Isto é abordado em mais detalhes no Cap. 19. Basta
dizer aqui que um grande número de pessoas aparentemente em bom funcionamento
ficaram convencidas, pelos ensinamentos da psicanálise, de que suas vidas tornaram-se
tediosas, não-criativas, rígidas, repetitivas e frustrantes, e vieram à psicanálise em busca
de “ar fresco” (nas palavras de um paciente). Há muito que se observou (Eitingon, 1928)
que a população de pacientes que ia à psicanálise mudou espetacularmente após a
Primeira Guerra Mundial. Parte da base ideológica para esta mudança estava no
reconhecimento de que a vida criativa do indivíduo tende a ser sufocada pelas condições
da nossa cultura, ao que a psicanálise constitui um remédio indispensável. Assim, a
população de pacientes mudou gradualmente dos que são primordialmente “doentes”, no
sentido convencional, para os que são “não-criativos”, no sentido analítico.

A Contribuição das Técnicas Projetivas


As técnicas projetivas, que se tornaram parte do equipamento-padrão do psicólogo
clínico depois de 1945, lançaram uma nova luz sobre o problema da criatividade.
Essencialmente, estas técnicas implicam numa solicitação ao sujeito para que libere sua
criatividade, sob as condições impostas pelo teste. Algumas são diretamente similares às
formas artísticas comuns, como o Teste Desenhe-Uma-Pessoa, no qual pede-se ao sujeito
que desenhe uma pessoa, ou no Teste de Apercepção Temática, no qual se pede ao sujeito
que invente uma história; outros são indiretos, como o Rorschach, que envolve percepção
criativa, ou o Teste Kahn de Disposição de Símbolos, que envolve o uso de símbolos. No
presente, há uma grande quantidade de dados disponíveis que mostram conclusivamente
que há um enorme corpo de potencial artístico não-liberado na população geral. É
inescapável a conclusão de que todo ser humano tem algum potencial criativo; por que
alguns o liberam, enquanto outros não (ou somente de forma disfarçada), é tema para
uma análise psicossocial.

Todo Homem como Artista: A Abordagem Empírica


De todas estas facetas do estudo da arte e criatividade, resultou uma abordagem
empírica que evita as generalidades fáceis do passado. Para a realização criativa, tanto o
id como o ego são necessários (impulso criativo e domínio criativo) (Schneider, 1950). O
artista não é necessariamente um louco ou um gênio.É uma pessoa com uma dose
variável de talento, cujas circunstâncias da vida permitiram-lhe expressar seu talento de
alguma maneira que faz sentido para seus próximos. Somente poucos artistas conseguem
criar a “síntese mágica” (Arieti, 1976); a grande maioria é composta de artesãos
competentes que produzem obras de variável grau de excelência.
Não é de se prever que algum conjunto particular de circunstâncias da infância, por si,
levará à formação de um artista; fatores sociais, econômicos e cognitivo-psicológicos
desempenham um papel equivalente (Egbert, 1970). Conseqüentemente, conquanto todos
os fatores acima citados possam desempenhar um papel na obra de alguns artistas, não é
possível generalizar. Rothenberg ressaltou esta abordagem empírica à criatividade
(Rothenberg, 1969), que se encaixa muito bem em nosso conhecimento da estrutura do
ego (Rothenberg e Hausman, 1976).
Num debate sobre criatividade realizado pela Associação Psicanalítica Internacional
(Grinberg, 1972), Bernard Meyer manifestou bem este moderno ponto de vista:

Parece improvável que uma atividade tão universal... que tem início tão cedo no transcurso
da vida de cada indivíduo, possua um significado mental único. Parece mais plausível encarar o
impulso criativo como comparável a uma função biológica, como a respiração ou o parto, que sob
certas circunstâncias pode tornar-se veículo de uma imensidade de significados psicológicos e
conseqüentemente largas flutuações de funcionamento. 20

Estudos de Artistas
O primeiro estudo de um grande artista foi o livro de Freud sobre Leonardo da Vinci,
e, 1910. Desde então, surgiram inúmeros ensaios sobre uma grande variedade de pintores,
escritores, escultores e outros indivíduos criativos famosos, assim como sobre suas
produções criativas. Embora não haja mais objetivo teórico neste material, o fascínio
inerente à “dissecação” de uma grande personalidade permanece tão forte que não cessa o
fluxo de publicações.
De Levita (em Grinberg, 1972) dividiu os escritos psicanalíticos sobre a arte em
quatro fases de desenvolvimento:
1. Uma obra de arte é utilizada para ilustrar mecanismos psíquicos, como por
exemplo o “Gradiva” de Freud (1907), no qual ele abordou a questão de se um
sonho num romance pode ser interpretado da mesma maneira que um sonho na
vida real.
2. O estabelecimento de conexões entre dados biográficos do artista e elementos de
sua obra, como por exemplo o estudo de Freud sobre Leonardo. Shakespeare foi
tema de dezenas de estudos, talvez centenas (Holland, 1966).
3. A questão abordada a seguir é a distinção entre produção artística e outros
fenômenos psíquicos. Um exemplo é o estudo de Kafka por Selma Fraiberg.
4. Finalmente, há o esboço da atividade artística como um processo.

Além do American Imago, diversas outras revistas foram dedicadas à arte e


criatividade, inclusive Literature and Psychology e, nos últimos anos, The
Psychoanalytic Review. Mesmo um simples resumo da literatura existente sobre este
tópico tomariam um volume. À parte as obras citadas acima, Phillips reuniu uma série de
excelentes artigos em Arte e Psicanálise (1957). Uma boa discussão teórica de toda a
questão encontra-se no livro de J.J. Spector, A Estética de Freud.

O Introjeto: Os Três Primeiros Anos de Vida


Embora Freud sempre tivesse falado do mundo interior, ou realidade psíquica, o
reconhecimento de que muito acontecia nos três primeiros anos de vida só teve lugar
gradualmente no mundo analítico. Um primeiro passo tentativo foi dado por Freud em
seu artigo de 1911, quando ele descreveu a transição do princípio do prazer para o
princípio da realidade. Dois anos depois, Ferenczi (1913, em Artigos Reunidos, 1916)
continuou com um artigo sobre “Fases no Desenvolvimento do Senso de Realidade”,
onde delineou a onipotência, a satisfação alucinatória de desejos, mágica e simbolismo
como preliminares ao domínio da realidade: eram todos processos psíquicos ativos na
criança muito jovem, mesmo antes da fase anal. Freud (1914) apresentou depois suas
formulações um tanto surpreendentes sobre o narcisismo. Particularmente duvidosa era a
idéia de um narcisismo primário ao início da vida; por exemplo, ao equivaler sono e
narcisismo (1917), Freud confundiu um estado fisiológico com outro psicológico.
Depois do artigo sobre narcisismo, Freud fez uma série de tentativas de esclarecer os
primeiros anos. Elas culminaram no conceito de um objeto internalizado, ou superego,
derivado dos pais, que resolvia os conflitos da fase edipiana.
Visto que o superego não se cristaliza até cinco ou seis anos de idade (Gould, 1972),
surgiu então a questão do que acontecia antes. Havia um introjeto,. Formado
anteriormente, que seria um precursor do superego?
Nas décadas de 1920 e 1930, com o advento da análise de crianças e o tratamento
analítico de psicóticos, muitos analistas começaram a suspeitar que muito acontecia antes
do período edipiano, que tinha simplesmente escapado a Freud. A exploração deste
período, que cobre aproximadamente os três primeiros anos de vida, abriu então toda uma
nova área de investigação. Na medida em que os acontecimentos psíquicos deste período
têm de ser reconstruídos a partir da análise de adultos e crianças, e inferidos de
observação direta, a investigação mostrou-se extremamente difícil, ainda que
indispensável.
Deve-se dar pleno crédito a Melanie Klein por ter sido a primeira a explorar em
detalhes este período da vida. Sem tentar esclarecer as numerosas ambigüidades, a partir
de 1921 ela começou a expor a noção de um objeto bom, ou seio bom, internalizado. De
início, considerou que isto se desenvolvia por volta dos seis meses de idade, mais tarde
fê-lo remontar virtualmente ao início da vida. Na sua última obra importante, em 1957,
ela disse:

Repetidamente expus a hipótese de que o objeto bom primal, o seio da mãe, forma o núcleo
do ego e contribui vitalmente para o seu crescimento, e muitas vezes descrevi como a criança sente
que internaliza concretamente o seio e o leite que ele fornece. Também há já em sua mente alguma
ligação definida entre o seio e outras partes e aspectos da mãe... Se este objeto primal, que é
introjetado, enraíza-se no ego com relativa segurança, está lançada a base para um desenvolvimento
satisfatório. 21
Contudo, presa como estava à absurda teoria da pulsão de morte, Melanie Klein
nunca deixou claro que o objeto bom é na realidade uma incorporação da mãe boa. Ela
escreveu (1957):

A luta entre os instintos de vida e de morte e a ameaça decorrente de aniquilação do eu e do


objeto por impulsos destrutivos são fatores fundamentais na relação inicial do bebê com sua mãe.
Pois seus desejos implicam em que o seio, e logo a mãe, devem afastar estes impulsos destrutivos e a
dor da ansiedade de perseguição. 22

Os anos de 1920 a 1940 testemunham consideráveis discussões desta questão da


prematura internalização. O introjeto era chamado diversamente de objeto interno, objeto
internalizado primitivo (ou relacionamento objetal) e imago paternal. Sullivan (1940)
descreveu as primeiras experiências em termos do bom-eu, e não-eu, todos derivados de
avaliações refletidas dos pais. Daí em diante, a questão foi discutida sistematicamente por
uma grande variedade de teóricos, centrando-se em duas questões principais: O que se
pode dizer sobre os primeiros introjetos, e serão eles derivados dos pais ou inatos?
Para ver como progrediu o conhecimento deste período, pode-se fazer de início
referência a um artigo de Fuchs (1937), “Sobre a Introjeção”, que fornece uma imagem
precisa do estado da teoria àquela época. Fuchs define os termos principais como segue.
23

Identificação primária. Todo o mundo é tomado como parte do ego. Isto, de acordo
com Freud, é a primeira relação objetal. Está na base da projeção e introjeção primária,
precursora da formação de símbolos, todos eles na raiz da formação do ego [superego].
Não está sempre mantido claramente distante da identificação [secundária], que só pode
ter lugar se o ego já existe.
Seria mais correto falar da fase inicial da completa ausência de distinção do ego e do
mundo exterior, e considerar a diferenciação gradual em ego e mundo exterior. Isto
tornaria o termo desnecessário.
Identificação secundária [identificação]. A inclusão de características de um ente
estranho no ego. Há uma grande variedade de formas diferentes de identificação, não
suficientemente conhecidas ou mantidas à parte.
Introjeção. Uma incorporação instintiva à mente.
Este termo ainda é usado vagamente, muitas vezes, para indicar qualquer inclusão na
mente, segundo a concepção original [de Ferenczi]. Cada vez mais, contudo, é usado para
designar a natureza instintiva de tal absorção, que, filo-geneticamente falando, ao menos,
era uma verdadeira ingestão.
24
Apessoalização. Adoção de parte das emoções, experiências e ações de outra
pessoa.
Projeção. As tendências inconscientes, de uma pessoa são atribuídas a outras pessoas,
muitas vezes depois de transformação, especialmente no oposto. Novamente, deve-se
considerar a grande variedade de formas de projeção.
Ejeção. Correspondente à introjeção, o ato instintivo de transplantar para o mundo
exterior; por exemplo, eliminação anal ou oral num plano mental

O Mundo Interior ou Representacional


Uma formulação mais elegante do que a de Melanie Klein Foi a de Sandller e
Rosenblatt (1962), que tentaram conceitualizar seu material como o mundo
representacional. Este era considerado como central à psicanálise, o mundo subjetivo da
criança, um mundo que só gradualmente é diferenciado, no decorrer do
desenvolvimento, em conseqüência de processos de adaptação biológica e psicológica.
Inclui o mundo interior de Freud (1938) e o mundo interior de Hartmann (1939) e está
ligado aos conceitos do mundo da criança descritos por Piaget (1973) e Werner (1940),
assim como ao trabalho de Head (1926) e Schilder (1935) sobre o esquema ou imagem
do corpo.

Crítica de Melanie Klein


Nos anos 70, as idéias de Melanie Klein encontraram apenas uma audiência limitada,
e quase nenhuma nos Estados Unidos, por serem consideradas muito “fantasiosas” suas
descrições da vida mental da criança. Kernberg (1969), por exemplo, relacionou como
uma crítica da posição kleiniana, do ponto de vista da psicologia do ego: as teorias de
uma pulsão de morte inata e de um conhecimento sexual inato são incorretas; as
considerações estruturais são negligenciadas; as terminologia é ambígua; há um foco
excessivo sobre conflitos e mecanismos primitivos; a análise do caráter é negligenciada
em favor de primitivas interpretações profundas; os mecanismos de defesa são
negligenciados em favor do conteúdo das fantasias inconscientes.

Margaret Mahler: Constância Objetal e Separação-Individuação


Insatisfeitos com a cronologia de Melanie Klein, os analistas e outros pesquisadores
pediátricos voltaram suas atenções, na década de 1950 e depois, à investigação real da
consecução da constância objetal pela criança, isto é, quando a mãe é introjetada e se
torna um bom objeto interno (ou mau objeto interno, conforme seja). Em seu primeiro
livro, Mahler usou os 3 anos como a época aproximada em que a criança atinge a
constância objetal, mas em seu livro posterior (1975), ela fala desta idade como
25
apropriada apenas em “casos ideais”. Naturalmente, é verdade que a plena consecução
da constância objetal prossegue por um período de anos, de forma que são de se esperar
grandes diferenças entre indivíduos.

A Mãe Verdadeira como Fonte do Introjeto


O estabelecimento da mãe verdadeira como fonte de segurança e a internalização de
um bom objeto, nas obras de Spitz, Ribble, Sullivan, Bowlby, Winnicott e muitos outros
(v. Cap. 6) pode ser considerado um trabalho das duas décadas de 1940 a 1960. Depois,
quando a Organização Mundial de Saúde encomendou a Bowlby uma descrição das
características da boa mãe, as evidências pareciam inequívocas. Não obstante, persistiam
e ainda persistem vestígios da antiga ênfase na “perversidade inata da criança”. 26

A Auto-Imagem e Diferenciação Eu-Objeto


Nos anos 50, tornou-se visível que o estabelecimento de um objeto interno traz
consigo o estabelecimento de uma auto-imagem, de forma que se torna possível uma
diferenciação eu-outro ou eu-objeto.
No início dos anos 60, os conceitos de representações do eu e de objetos, seu
desenvolvimento e diferenciação tinham sido revistos muitas vezes, e o campo estava
pronto para alguns estudos integradores. O próprio Sullivan, embora tivesse tido muitas
das idéias essenciais, não as desenvolveu mais, assim como nenhum de seus seguidores
imediatos. Jacobson (1964) descreveu as seguintes fases da infância no processo de
diferenciação energética e estrutural: 27
1. A condição primal (embrionária) de dispersão difusa de energia de impulsos
indiferenciada no eu psicofisiológico “primal”, não-estruturado.
2. Com o nascimento, crescente catexia dos sistemas de percepção e memória,
do aparato motor e das zonas erógenas pré-genitais.
3a. A fase de início de diferenciação estrutural e formação do ego.
3b. Quando a criança aprende a caminhar e falar, e adquire controle urinário e dos
intestinos, estabelece-se uma fase mais organizada. Cresce a consciência objetal e
do eu, e se expandem a percepção e organização de traços da memória.
4.A sexualidade infantil atinge seu clímax: estabeleceu-se a fusão e neutralização
de impulsos sexuais e agressivos.
5. A neutralização de impulsos é grandemente acentuada pela formação do
superego; começa o período de latência.

Nas palavras de Schmale (1972), há gradualmente o reconhecimento de que tanto


gratificação como não-gratificação podem provir de objetos, em resultado da aceitação da
necessidade e da gratificação como parte das representações objetais. Isto é o inicio do
que geralmente é denominado de objeto ou relação objetal mantida ambivalentemente.
Esta fase envolve uma aceitação parcial de necessidades como provindas do eu, e a
aceitação da qualidade intermitente e quantidades variadas de gratificação das
necessidades.
Juntamente com esta aceitação de frustração e satisfação pela atividade de
relacionamento está a capacidade biológica de diferenciar mais realisticamente entre a
gratificação objetal e gratificação do eu. Isto, por sua vez, leva a uma maior diferenciação
da satisfação de necessidades psíquicas em representações de objeto e do eu no aparato
mental. O modo como a mãe-objeto trata a ambivalência da criança influenciará
grandemente a rapidez e o grau com que ocorrerá esta diferenciação. Este período de
auto-diferenciação estende-se provavelmente de cerca de 16 meses até os 36 meses, e
abrange o período anal do desenvolvimento libidinal.
Schafer (1968) tornou explícita a “imortalidade” do objeto. Como evidência desta
imortalidade psíquica, ele citou: a natureza da ideação no processo primário; a história da
representação objetal em relação à representação do eu; e a mudança sistêmica que pode
ser ocasionada pela identificação. Schafer distinguiu ainda três possíveis destinos (não
mutuamente exclusivos) para o objeto psíquico imortal: estabelecimento como introjetos
ou outras presenças de processo primário; transformação em identificações que, até certo
ponto, podem assumir o caráter de regulações sistêmicas impessoalizadas; ou
preservação como um objeto, com a característica de ser externo ao eu subjetivo.
Ainda que mais uma vez as definições precisas tenham-se mostrado fugidias (Koff,
1961; Meissner, 1974), a literatura ocupou-se cada vez mais com estas identificações
precoces ou introjetos, a diferenciação eu-objeto e primeiras relações interpessoais
(relações objetais). Volkan (1976) reviu a literatura sobre o que ele chamou de relações
objetais internalizadas, encarando tais relações como especialmente importantes em
personalidades esquizofrênicas, fronteiriças e narcisistas. Para ele, as relações objetais
internalizadas podem ser consideradas primitivas quando processos catéxicos que
envolvem representações objetais e do eu refletem-se no relacionamento introjetivo-
projetivo, quando a divisão primitiva baseada na negação e não na repressão é a defesa
dominante (enquanto a presença de divisão primitiva indica o fracasso em atingir a
tolerância da ambivalência), e quando o teste de realidade não é adequado.
Kohut (1977) seguiu uma direção algo diferente, com sua ênfase na categoria
relativamente nova de distúrbio narcisista de personalidade. Para ele, há duas linhas
separadas de desenvolvimento, uma para o narcisismo e a outra para relações objetais.
Sua posição mostra uma certa semelhança com a doutrina de Jung, da introversão-
extroversão inatas, e difere da de outros analistas contemporâneos. Kohut postula um
período na infância quando uma auto-imagem grandiosa é normal. Ele agrupa os
distúrbios do eu em cinco categorias (1977): psicoses, estados fronteiriços,
personalidades esquizóides e paranóides (estas três, sustenta ele, são em princípio não-
analisáveis), distúrbios narcisistas da personalidade e distúrbios narcisistas do
comportamento. Kohut, entretanto, não tenta delinear com mais precisão quando tem
lugar a diferenciação eu-objeto, ou como ela ocorre.
Mais sistemático é Kernberg (1976), que apresenta uma teoria geral de: origem das
“unidades” básicas (auto-imagem, imagem objetal, disposição de afetos) das relações
objetais internalizadas; o desenvolvimento de quatro estágios básicos em sua
diferenciação e integração; o relacionamento entre o fracasso nestes desenvolvimentos e
a cristalização de diversos tipos de psicopatologia; e as implicações desta seqüência de
fases para os desenvolvimentos estruturais gerais do aparato psíquico.
Os cinco estágios que ele enumera são: “autismo” normal, ou estágio primário
indiferenciado – o primeiro mês de vida; “simbiose” normal, ou estágio das
representações eu-objeto primárias indiferenciadas – do segundo ao sexto ou oitavo mês;
diferenciação entre as representações do eu e as objetais – do sexto ou oitavo mês até a
terminação, entre o décimo oitavo e o trigésimo sexto mês; integração de representações
do eu e representações objetais e desenvolvimento da estrutura de mais alto nível,
intrapsíquica, derivada das relações objetais – da última parte do terceiro ano, através do
período edipiano; consolidação da integração do superego e do ego – a começar com o
término da integração de todos os níveis do superego. “Um eu integrado, um mundo
estável de representações objetais integradas, internalizadas, e um autoconhecimento
realista reforçam-se mutuamente.” 28
No mesmo livro (1976), Kernberg apresenta também uma sistematização da
psicopatologia com base nos níveis de desenvolvimento acima. Ele distingue três níveis
gerais. No mais baixo, predomina a clivagem como mecanismo de defesa; no nível
intermediário, a repressão; e no nível mais elevado está a pessoa ideal descrita acima. Os
níveis mais baixos são definidos primordialmente pelos tipos de perturbações nas
relações objetais internalizadas.

Resumo e Crítica
A exploração do mundo interior nos três primeiros anos de vida levou, especialmente
em conjunção com a observação direta das crianças, a enormes percepções da vida
psíquica inicial. Em lugar de uma ênfase nos impulsos, o destaque passou para as
relações objetais, ou relações interpessoais, e a patologia foi encarada primordialmente
nestes termos, em vez de em termos dos impulsos. Isto assinala um importante passo à
frente na teoria e também na prática. Contudo, embora se atribua tanta significação ao
ambiente inicial, as características do ambiente tendem a ser negligenciadas pela maioria
dos autores citados nesta seção; as restrições de Kernberg (1969) à teoria de Melanie
Klein podem ser aplicadas igualmente à sua própria teoria atual. Por outro lado, as
pessoas que lidam com o ambiente – teóricos da família, sociólogos e assim por diante –
tendem geralmente a negligenciar os fatores internos. Assim, criou-se uma divisão que
indubitavelmente será transposta no futuro próximo.

Linguagem e Comunicação
O poeta inglês Francis Thompson escreveu:

We speak language taught we know not how


And what it is that from us flows
The listener better than the utterer knows. *
The Hound of Heaven

* N.T.: “Falamos uma linguagem que não sabemos como foi ensinada
E aquilo que de nós flui
Sabe melhor o ouvinte do que o orador.”

Isto pode ser tomado facilmente como texto da teoria psicanalítica da linguagem e
comunicação. Como se indicou anteriormente, embora tivesse feito vários comentários
sobre o tópico, Freud não atentou sistematicamente para a questão da linguagem. Em
conformidade, ela foi investigada mais intensamente desde sua morte.
Assim que se reconheceu o significado dos sonhos, imediatamente tornou-se claro
que, como as pessoas não comunicam seus sonhos, muito que é de importância vital entre
as pessoas permanece não-verbalizado. À medida que a população de pacientes de
psicanálise começou a mudar para os grupos mais normais (v. Cap. 19), os teóricos
passaram a compreender crescentemente que mesmo o indivíduo mais normal sofre de
uma variedade de problemas de comunicação. 29
As Neuroses Sintomáticas (Clássicas)
Freud já tinha descoberto que os sintomas clássicos das neuroses são formas
inconscientes de comunicação. Na histeria, o paciente fala na linguagem dos sintomas, o
que se torna possível porque o ouvinte não compreende o significado do sintoma. Assim,
por exemplo, a cena típica da dama vitoriana que desmaiou na sala de visitas e a quem
logo se aplicaram sais aromáticos, desapareceu hoje, porque todos saberiam que ela
estava apenas tentando receber atenção, e correriam para chamar o psiquiatra mais
próximo. A posição arc-de-cercle da mulher nunca é vista hoje, porque é obviamente
uma apresentação sexual. Na neurose obsessiva, idéia e afeto isolam-se um do outro; têm
de ser desenredados para que se chegue ao que está sendo comunicado. Acredita-se
geralmente hoje em dia que as neuroses mistas (ou neuroses de “caráter”) são a norma na
prática clínica. Nestas, o estudo da comunicação torna-se parte do estudo da estrutura
total do ego.
Rose Spiegel (1959) propôs uma classificação em cinco tipos da comunicação
manipulativa: cruamente destrutiva, autoritária, disjuntiva, pseudocomunicativa e não-
comunicativa. Isto pode ser útil na compreensão de todos os tipos de material.

Informação, Teoria de Sistemas e Comunicação


Incentivados pelo desenvolvimento das teorias matemáticas do processamento de
informações e estrutura de sistemas, muitos psicólogos empreenderam um estudo mais
intenso de todo o processo de comunicação. Destacam-se entre as contribuições sobre
este tópico três livros de Jurgen Ruesch: Comunicação: A Matriz Social da Psiquiatria
(com Gregory bateson, 1951), Comunicação Perturbada (1957) e Comunicação
Terapêutica (1961).
Em seu artigo “Valores, Comunicação e Cultura” (em Ruesch e bateson, 1951),
Ruesch estabeleceu a estrutura conceitual básica da teoria. Esta estrutura envolve:
delineação do universo; situação social; comunicações interpessoais; comunicação
intrapessoal; comunicação de massa; aparato de comunicação; limitações da
comunicação; função da comunicação; efeito da comunicação; interferência e
comunicação; ajustamento; perturbações da comunicação;terapia psiquiátrica (que visa
aperfeiçoar o sistema de comunicação do paciente); natureza da psicoterapia; o sistema
de valores do psiquiatra; o psiquiatra e a mudança cultural; comunicação distorcida e
status marginal dos pacientes; higiene mental. “OO trabalho do psiquiatra visa ajudar o
paciente a adquirir um sistema de comunicações que é semelhante ao do grupo central.”30
Em Comunicação Perturbada (1957), Ruesch ofereceu um guia para a observação
clínica do comportamento comunicativo. Ele centra-se em seis focos: sistemas de
comunicação; funções da comunicação; linguagem e codificação; conteúdo e informação;
metacomunicação; e correção, realimentação e réplica. Em Comunicação Terapêutica
(1961), ele distinguiu uma série de atitudes terapêuticas que promovem melhoria na
comunicação, como por exemplo uma permissividade discriminadora, a revelação do
não-mencionável, a disposição expectante, a audição catártica, a compreensão da
linguagem do paciente e a disposição incondicional de responder. Isto lembra a
observação do século XIX, de que a maioria das pessoas tem o “fardo de um segredo”
que anseiam por contar a alguém, e que, quando contado, traz grande alívio (Ellenberger,
1970).
Dedicou-se muita atenção às peculiaridades da comunicação na esquizofrenia, onde
realmente elas são muito óbvias. Já em seu livro sobre Afasia (1891), Freud tinha
distinguido entre funções de “palavra” e “coisa”, uma distinção que ele trouxe a sua obra
analítica. No ensaio sobre “O Inconsciente” (1915), ele foi mais explícito: “Na
esquizofrenia, as palavras são sujeitas ao mesmo processo que extrai as imagens de
sonho dos pensamentos de sonho latentes – o que chamamos de processos psíquico
primário.” 31
Em “O Caso Schreber” (1911), o próprio Freud deslindou muitas das declarações
bizarras de Schreber, um juiz que se tornara paranóide e tinha escrito suas memórias.
Subseqüentemente, inúmeros autores psicanalíticos (e outros) tentaram sistematicamente
decifrar as complexidades e confusões da linguagem esquizofrênica. As diferenças em
ênfase, com o decorrer do tempo, refletem o crescente deslocamento da psicologia do id
para a psicologia do ego. A observação fundamental hoje é que na família esquizofrênica
há uma transmissão de irracionalidade (v. Caps. 6 e 13).

Lingüística e Psicanálise
O desenvolvimento da lingüística como uma disciplina quase-independente foi muito
recente. Como ocorreu com outras áreas da psicologia cognitiva, a contribuição da
psicanálise à teoria básica foi pequena, na medida em que a linguagem é uma função
autônoma do ego. A contribuição da psicanálise, desde o princípio, foi uma compreensão
das interferências do id no funcionamento do ego (Freud, 1901).
Ekstein (1965) distingue seis estágios nas conceitualizações psicanalíticas do
desenvolvimento da linguagem:
1. O modelo freudiano primitivo de 1895, desenvolvido no contexto de
considerações neurofisiológicas, atribuiu o surgimento da fala ao desamparo
inicial da criança. Isto foi uma estrutura inicial útil.
2. No início do século, a origem da linguagem foi ligada especulativamente a
diversos fatores psicossexuais.
3. Na década de 1920, alguns autores, utilizando reconstruções a partir da análise
de adultos e crianças, frisaram o relacionamento mãe-filho pré-edipiano e a
importância da “fala amorosa primitiva”, em termos das necessidades a serem
satisfeitas pela linguagem materna.
4. A partir dos anos 50, o domínio da psicologia do ego tornou-se sempre mais
claro, juntamente com o ponto de vista adaptativo e noções de diferenciação
de funções psíquicas. Considerações moleculares da mecânica da fala e
suposições freqüentemente literais demais sobre a origem dos elementos da
fala deram lugar a modelos mais sofisticados, ligando a origem da fala ao
desenvolvimento das funções do ego (Edelheit, 1969).
5. Desde a década de 1960, a ênfase voltou-se para a observação direta de
crianças, tanto sob condições empíricas como experimentais (Emde et al.,
1976). Nesta fase houve uma disposição crescente de colaborar com outros
cientistas comportamentais.
6. Todo este tempo estudou-se a linguagem na esquizofrenia e distúrbios afins,
particularmente por ocorrerem estes distúrbios na infância. Apareceram
teorias cada vez mais sofisticadas, com o crescente conhecimento da
psicologia do ego, a partir da obra de Spitz sobre as origens do diálogo (Não e
Sim, 1959).
Dentre as mais interessantes interações da psicanálise e a lingüística está o trabalho
de Victor Rosen, que chefiou um grupo de estudos especiais sobre este tema no Instituto
Psicanalítico de Nova Iorque durante muitos anos a partir dos anos 60 (Rosen, 1977).
Samuel Atkin, na introdução ao livro de Rosen, divide a pesquisa de Rosen em quatro
categorias: a aplicação da lingüística a problemas especiais da psicologia do ego; a
psicologia do desenvolvimento, na qual ele tentou demonstrar o desenvolvimento
interativo e correlacionado da faculdade da linguagem e as fases psicológicas do
desenvolvimento da personalidade; a informação que a psicanálise e a psicolingüística
partilham; uma crítica da psicanálise e psicolingüística como ciências, e uma
conceituação de um modelo teórico que acomoda ambas no mesmo campo. As regras da
linguagem entram na operação das funções do ego, desenvolvimento do superego, regras
sociais e o relacionamento da linguagem com o pensamento. Rosen (1977) também
publicou um exame dos distúrbios da comunicação na psicanálise, distinguindo entre
distúrbios paraverbais, paramimétricos, de símile e da contigüidade.
A despeito do progresso feito, toda a área é ainda território quase virgem.

Comunicação Não-Verbal
Embora pareça intuitivamente óbvio que o corpo pode ser e é usado por todos em
diversas comunicações, tem sido extremamente difícil traduzir este conhecimento
cotidiano numa teoria científica. Os primeiros estudos de Freud sobre a histeria e outras
neuroses estabeleceram o sentido comunicativo de muitas ações não-verbais, mas não
resultou qualquer princípio geral, exceto, talvez, aquele de que a comunicação verbal está
num nível genético superior à não-verbal.
Uma das contribuições mais significativas nesta área foi a de Wilhelm Reich (1933),
com sua noção de couraça do corpo ou couraça do caráter. Reich julgava que o
endurecimento do ego, expresso em constelações corporais típicas, tem lugar
essencialmente com base em três processos: identificação com a realidade frustrante,
especificamente com a pessoa principal que representa esta realidade; o desvio contra si
próprio da agressão que foi mobilizada contra as pessoas frustrantes e que causava
ansiedade; a formação pelo ego de atitudes reativas com relação aos impulsos sexuais e o
uso das energias destas atitudes reativas para manter à distância estes impulsos.
Muitos outros autores descreveram diversos aspectos da comunicação corporal.
Sandor Feldman (1959) estendeu algumas das observações de Freud sobre as parapraxias
(lapsos freudianos) (v. Também Cap. 7).
A despeito destes artigos sugestivos e de outros, toda a área da comunicação não-
verbal está ainda em sua infância. O campo não-analítico quanto a este tópico continua
especulativo (Birdwhistell, 1970).

Chistes e Humor
Os chistes e o humor, em geral, são importantes expressões da fantasia. O livro de
Freud sobre os chistes (1905) ainda é o tratamento clássico do assunto; outras
contribuições foram basicamente elaboração de suas teses.
Freud deixa bem claro que o chiste é uma forma de comunicação:

A experiência reconhecida de modo geral, de que ninguém pode satisfazer-se m fazer um chiste para
si próprio... Eu mesmo não posso rir de um chiste que me ocorreu, que eu fiz, a despeito do prazer
inconfundível que ele me dê. É possível que minha necessidade de comunicar o chiste a outra pessoa esteja
de alguma forma ligada ao riso que é produzido por ele, que me é negado mas está manifesto na outra
pessoa. 32

O efeito agradável dos chistes, segundo Freud, depende de dois fatores: uma técnica
especial e a tendência do chiste. Num chiste com um jogo de palavras, a técnica mais
comum é a condensação. Também se observam outros mecanismos semelhantes aos
encontrados nos sonhos. Quanto ao objetivo dos chistes, os inocentes apenas oferecem
prazer; os tendenciosos, contudo, provêm da liberação de desejos sexuais e agressivos.
Num artigo subseqüente sobre “Humor” (1927), escrito depois de ter sido formulado o
sistema estrutural, Freud atribui parte do prazer à mitigação da severidade do superego,
fazendo do chiste novamente, assim, um exercício de comunicação. Freud chega a
sustentar que, em regra geral, há três pessoas envolvidas num chiste: o contador, o
ouvinte e uma terceira pessoa que é o personagem do chiste; assim, o chiste é
verdadeiramente um processo social-interpessoal. 33
Uns poucos estudos posteriores suplementam a obra de Freud. Wolfenstein (1954)
estudou o desenvolvimento do humor das crianças, mostrando as mudanças de
desenvolvimento na atitude em relação aos chistes. Grotjahn (1957) considerou o
humorista como um tipo de personalidade. Murdock (1949) resumiu as evidências sobre
relacionamentos chistosos em outras sociedades, mostrando que em geral tal
relacionamento só é permitido entre parentes com relacionamento sexual potencial
mútuo. Israel Zwerling (1955) e Joseph Richman (dados não publicados) mostraram
como se podem extrair conclusões de diagnósticos dos chistes que os pacientes contam.

Comentários Finais sobre a Vida de Fantasia


Com seu trabalho sobre a fantasia, Freud abriu todo um novo mundo de investigação,
e toda uma nova abordagem à psicologia. Isto culminou no reconhecimento do
desenvolvimento de um mundo interior ou representacional, que é decisivo para a
maneira pela qual o indivíduo pensa e procede. Cada vez mais a psicanálise ocupou-se
deste mundo interior e o explorou em todas as áreas de atividade humana. A ênfase na
fantasia, tanto consciente como inconsciente, é um dos aspectos mais distintivos da
psicologia psicanalítica.

(Extraído de A História da Psicanálise, LTC/EDUSP, 1981. Tradução de Ronald Fucs e Bernardo Jablonski)

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