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Artigo Da Carta de Caminha A Galdino Indios Na Mídia
Artigo Da Carta de Caminha A Galdino Indios Na Mídia
RESUMO
1. Introdução
1
Artigo submetido ao Grupo de Trabalho da II Conferência Sul-Americana e VII Conferência Brasileira de Mídia
Cidadã.
2
Jornalista, Prof.ª Dr.ª do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Amazonas (Ufam);
tutora do Programa de Educação Tutorial de Comunicação (PETCom) da Ufam; líder do Grupo de Estudos e
Pesquisa em Comunicação Social (GEPECS). E-mail: luindia@uol.com.br
3
Acadêmico do 2° período do curso de graduação em Jornalismo da Universidade Federal do Amazonas (Ufam);
bolsista do Programa de Educação Tutorial de Comunicação (PETCom) da Ufam; integrante do Grupo de Estudos e
Pesquisa em Comunicação Social (GEPECS). E-mail: gabriel.oliveira92@hotmail.com
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Revista Experiência, produzida pela Faculdade de Comunicação Social (Famecos), da Pontifícia Universidade do
Rio Grande do Sul (PUCRS).
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Marília Rothier Cardoso é professora da PUC-RJ, autora da tese de doutorado Gazeta de bruxo.
Mais tarde, o selvagem exótico se transforma em herói do Romantismo e, no
século XIX, em personagem da literatura. Isso se deve inicialmente à valorização das
teorias da bondade natural do homem, que marcaram tal período, sobretudo o
Romantismo europeu, no final do século XVIII.
A pesquisadora avança em seus argumentos ao explicar que o índio, então, virou
moda no mundo e, no Brasil, passou a ser referência para a criação de uma
nacionalidade. Os escritores assumiram a missão de formar uma consciência nacional e
os índios passaram a ser tratados como modelo dessa brasilidade. Assim, surgiram os
heróis das narrativas de José de Alencar e da poesia de Gonçalves Dias.
Nessas obras, prevalece uma imagem inspirada no modelo medieval do
Romantismo, criando, no Brasil, um movimento correspondente ao europeu, em busca
de raízes populares. Os romances Iracema e O Guarani, de José de Alencar, são
símbolos desse período. Ambos os livros podem ser designados como romances
fundadores, ou seja, obras ficcionais para representar metaforicamente o início de um
mundo ou de uma raça. Essa moda durou até o final do século XIX, quando o índio sai
de cena. Temporariamente, já que ele volta à literatura na década de 20, pelas mãos do
Modernismo.
A sociedade brasileira havia se transformado. O ar do campo cedeu lugar às
fábricas, aglomerados urbanos e populações de quase um milhão de habitantes. Nesse
cenário surge Macunaíma, o anti-herói criado por Mário de Andrade. Assim, o índio
passa a ser mostrado quase que como uma paródia do índio romântico. É um modo mais
refletivo que marca a diferença da cultura brasileira. O Modernismo também reforça a
identidade nacional, mas de outro modo: não mais a valorização do nacional como algo
exótico, mas como parte de um modelo nacional.
Concluindo seu pensamento, para Cardoso, depois do Modernismo, os índios
não desapareceram totalmente, mas ressurgiram de forma pontual, como nos livros de
Darcy Ribeiro, que, paralelamente à produção acadêmica, desenvolveu uma obra
literária. Ele traz o índio com uma atitude política, como uma crítica à ordem política e
como um elemento de informação antropológica.
Se a literatura por muito tempo se prendeu a estereótipos bem definidos sem
conexão com a realidade indígena, a mídia impressa também não aborda essa questão
com imparcialidade – como, aliás, não aborda assunto algum de maneira imparcial. Os
argumentos tendem para um “resgate” de elementos etnocêntricos cristalizados no
imaginário de grande parte da população brasileira, com olhares que vão do índio
mitificado e mistificado ao índio miscigenado, “adulterado” pela influência da cultura
europeia. Assim, os indígenas são revestidos de estereótipos que lhes atribuem uma
imagem ao mesmo tempo perversa e exótica. Portanto, (re)significar esse universo
conflitivo e ideológico, tendo como base o referencial teórico de Thompson (2009),
configura-se como o objetivo desse artigo.
3. O discurso da mídia
5. Análises
Antes das análises de nosso recorte, teceremos breves comentários sobre a Carta
de Pero Vaz de Caminha, por considerar que a mesma vislumbra grande parte dos
contextos ideológicos, políticos e socioculturais vivenciados pelos indígenas nos dias
atuais, através da mídia. Para Chamie (2002), Caminha observa nos índios traços que
decorrem de três atributos principais: a inocência, a bondade e a alegria. Caminha vai
enfocando os principais atributos do “outro”, o indígena, sempre em confronto com os
atributos ou referências do conquistador português. Aquilo que Caminha vê ou parece
ver no corpo do índio lhe vem como uma “outra realidade”, longe de seus referenciais:
“Caminha [...] estabelece comparações e expõe em seu texto o fascínio que a diferença
nativa exercerá, mediante os atributos da inocência, da bondade e da alegria, sobre a
mesmice ‘fanada’ dos valores culturais europeus” (Chamie, 2002, p. 30).
O atributo da inocência seria o primordial e, conforme o estudioso, “registra o
cerco crescente que a inocência do invadido avança sobre a vigilância do invasor”.
Chamie avalia três momentos em que este atributo aparece na Carta. O primeiro, em que
Caminha observa as características físicas dos índios, o adjetivo “bom” (de “bons rostos
e bons narizes” da descrição do cronista) é assim avaliado pelo intérprete: “[...] Pero
Vaz fixa atributos corporais do indígena em que o adjetivo ‘bom’ predomina”. O
adjetivo ‘bom’ qualifica indiscriminadamente formas e volumes, o que, a rigor, denota
uma impressão de conjunto (física, estética e psicológica) apreciável e favorecida. Um
pouco na linha de extração aristotélico-tomista de que o Bom, o Belo e o Bem são
verdadeiros, a impressão de conjunto parece, no fundo, ser ditada pela naturalidade da
nudez sem malícia nem constrangimento, coisa que em princípio a moralidade de
extração aristotélico-tomista-cristã denunciaria (Chamie, 2002, p. 30).
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A Revista Experiência é uma publicação experimental produzida por acadêmicos dos últimos anos da Faculdade de
Comunicação Social (Famecos), da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), dentro da
disciplina de Produção de Revista. É um veículo que preza pela publicação de textos de cunho mais literário.
qualquer relação com o começo da história escrita de nosso país. O que, de fato, se
discute ainda hoje é se o afastamento das caravelas portuguesas da costa africana foi
acidental ou se já havia uma determinação de chegar ao continente americano. Afinal, a
“descoberta do Brasil” ocorreu oito anos depois da chegada de Colombo, o que
configura tempo suficiente, portanto, para, no mínimo, se especular sobre a existência
de novas terras por estas bandas.
A despeito desse deslize, um dos pontos principais levantados pela autora é que
os indígenas hoje são tratados como se fossem todos iguais, indivíduos que
correspondem invariavelmente ao estereótipo arraigado. Trata-se de um dos modos de
operação da ideologia pontuados por Thompson (2000, p. 86), a unificação,
caracterizada por sustentar as relações de dominação através de uma “unidade que
interliga os indivíduos numa identidade coletiva”.
Nesse contexto da questão indígena, a unificação faz uso do recurso da
padronização para criar uma identidade coletiva aos índios: todos são seres de pele
parda, que vivem na floresta, nus ou com vestimentas exóticas, e que possuem hábitos
bem diferentes daqueles dos “civilizados”. A própria autora aponta a falsidade dessa
assertiva, quando afirma que “o termo ‘índio’ é genérico e mascara a existência de uma
pluralidade culturas. Esses povos nunca foram e nem serão singulares.” (Tavares, 2010,
p. 59).
Sendo assim, o grande mérito da reportagem é se propor a apontar como a visão
que se tem dos grupos indígenas hoje ainda é estereotipada, e contrapô-la com a
realidade atual. Tal imagem, como vemos, é gerada de acordo com os modos de
operação apontados por Thompson, servindo, portanto, para estabelecer uma ideologia
que beneficia a sustentação da classe dominante.
É interessante notar o seguinte: a própria reportagem observa que boa parte da
mídia propaga o estereótipo indígena, nas palavras de uma das entrevistadas, a
professora e doutora Maria Aparecida Bergamaschi, pesquisadora em educação
indígena: “numa tentativa de mostrar a diferença de tradições, veem os rituais e as
danças, como se fossem a totalidade de uma cultura”. Ou seja, é a visão dos seres
exóticos de Caminha, ainda mantida pelos mesmos veículos de comunicação que
deveriam ser responsáveis por desmistificá-la. Tal imagem estereotipada gerada por
esse processo de unificação remonta à descrição dos indígenas na carta de Pero Vaz de
Caminha; e o fato dela existir ainda hoje, em pleno século XXI, aponta a existência de
outro dos modos de operação da ideologia de Thompson, a reificação, ao retratar “uma
situação transitória e histórica como se fosse permanente”. Para tanto, nesse caso, esse
processo utiliza o recurso da eternização, ao pintar os índios como seres imutáveis,
como se fossem exatamente iguais àqueles com quem Caminha e os colonizadores se
defrontaram, ainda nos idos de 1500.
O texto de Tavares tenta mostrar uma visão contrária a esses estereótipos ao
enfatizar mais uma vez as declarações de Bergamaschi, quando pontua: “Tudo está
registrado como se os índios não vivessem ou desenvolvessem suas historicidades e as
suas culturas no decorrer de todo o período após a chegada dos europeus”.
No entanto, a jornalista acaba se incluindo entre aqueles que repetem
estereótipos, mesmo quando manifestam o desejo de não fazê-lo. É o que se nota, por
exemplo, quando ela escreve que “Não são muitas as comunidades indígenas existentes
no Brasil. A Fundação Nacional do Índio (Funai) estima que hoje há 220 grupos com
cerca de 180 dialetos diferentes.” (Tavares, 2010, p. 58) A primeira coisa a se perguntar
é: o que é “muito” para Tavares? O Brasil possui a maior diversidade linguístico-
cultural das Américas; não há outro país da região com tantos povos quanto o nosso.
Nosso ponto negativo não é a diversidade, mas a quantidade.
Portanto, Tavares (2010), apesar de se apoiar em pontos de vistas esclarecedores
que se afastam das visões eurocentristas, mantém um ranço de estereótipos e de
ausência de conhecimentos dos grupos indígenas atuais dentro de seus modos
produtivos e reprodutivos, e seus inúmeros contatos com os mais variados atores
sociais, como ONGs, organismos internacionais, missionários, evangélicos,
madeireiros, hidrelétricas, antropólogos, turistas, entre outros.
“Eles não tinham índio para queimar. Agora é prostituta”. O desabafo de um dos
policiais da 16ª DP-RIO, indignado com a atitude dos cinco agressores de Sirley
Dias de Carvalho Pinto, remete ao caso do índio pataxó Galdino Jesus dos
Santos, que, na madrugada de 20 de abril de 1997, foi queimado vivo quando
dormia num ponto de ônibus em Brasília. O crime foi praticado por cinco
jovens de classe média alta, um deles menor de idade, que jogaram álcool sobre
o corpo do índio e atearam fogo. Galdino, de 44 anos, chegou a ser levado para
o hospital, mas morreu horas depois. Ele estava na capital para festejar o Dia do
Índio. Naquele dia, chegou tarde à pensão onde estava hospedado e foi
impedido de entrar. Os réus alegaram ter feito “apenas uma brincadeira”.7
7
“Agressão à doméstica lembra morte do índio Galdino”. Publicada em 25/06/2007, às 09h12m. O Globo – Rio.
Disponível em: < http://www.oglobo.globo.com/rio/mat/2007/06/25/296499455.asp >
8
A Revista Veja, publicada pela Editora Abril, é atualmente um dos veículos de maior destaque na imprensa
brasileira. A publicação se propõe a tratar de temas do cotidiano da sociedade brasileira e internacional, desde política
a cultura e comportamento. A revista possui uma orientação ideológica clara, se assume como opinativa e é frequente
alvo de críticas relativas à sua parcialidade e sua política de direita.
alegoria serve para reforçar a dissimulação e oculta e desvia a atenção dos indígenas
para dois personagens: um histórico e outro desconhecido. Nessa estratégia, deslocam-
se os povos indígenas para o mito de que só eram indígenas no tempo da chegada de
Caminha, quando andavam nus e com seus adereços de plumárias com penas coloridas.
Passados mais de 500 anos, os pataxós não são mais índios, afinal “usam adereços à la
Vitor Meirelles para cobrirem suas partes pudendas e [pasmem] fingir-se de índios”.
Desse modo, os jornalistas esvaziam a situação histórica dos indígenas, reforçando e
duvidando de sua condição de índio porque estão vestidos como o branco, ou com
adereços da moda. Indaga-se: como os indígenas podem se fingir de índios?
Na última página, a reportagem ainda faz uma inglória tentativa de
contextualizar o grupo pataxó sem, contudo atentar para os fatos e situações em que
vivem no sul da Bahia:
Quase nada ficou da tradição: cocares que usam nas solenidades são
copiados das imagens de índios que veem em velhos livros escolares.
Na cerimônia fúnebre, uma pataxó chamada Michelle – sim: Michelle
– Souza Santos, 10 anos, desfilou orgulhosa seu cocar, emprestado de
um índio mais velho. No adorno havia peninhas cor de rosa tiradas de
espanador. (PINHEIRO & CAMAROTTI, 1997, p. 28)
Nas citações acima, prevalece o senso comum sobre o indígena como selvagem.
Para os autores, aquele que não tem seu símbolo de indianidade não é índio, pois para
sê-lo precisa estar de tanga, usar cocar e falar seu idioma; precisa estar da mesma
maneira que os índios retratados no quadro de Vitor Meirelles. Mas se um não-indígena
usar cocar, ele vai deixar de ser branco? A ironia “sobre as peninhas cor de rosa tiradas
de espanador” nos revela o preconceito enraizado e a falta de informação dos
jornalistas: já há algum tempo o Ibama vem tentando reduzir o uso de penas de aves em
adereços indígenas, tendo em vista a comercialização predatória tanto de grupos
indígenas quanto de não-indígenas. O texto termina com uma frase de efeito:
“Pensaram-se tratar-se de um mendigo. Era. Um mendigo índio.”
A reportagem da Veja aponta para os seguintes fatores: a) os povos indígenas, na
maioria das vezes, só aparecem na imprensa quando estão relacionados a invasões de
terra, ou quando são vítimas do sistema como no caso do pataxó Galdino; b) nas
matérias sobre esses temas, os índios não são ouvidos adequadamente, com a imprensa
se abastecendo quase somente pelas fontes oficiais (Funai, Ministério Público, Polícia
Federal e ONGs), apesar do fato de que a Veja sequer ouviu essas autoridades e muito
menos procurou a visão de alguma liderança indígena; c) a falta de conhecimento do
assunto do repórter ou editor pode reforçar estereótipos sobre essas sociedades.
6. Considerações finais
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHAMIE, Mário. Caminhos da Carta: uma leitura antropofágica da Carta de Pero Vaz de
Caminha. Ribeirão Preto: FUNPEC, 2002.
CHAPARRO, Manuel C. Pragmática do Jornalismo: buscas práticas para uma teoria das
ações jornalísticas. São Paulo: Summus, 1994.
GOMES, Wilson. Esfera pública política e media: com Habermas, contra Habermas. In:
RUBIM, Antônio Albino Canelas; BENTZ, Ione Maria Ghislene & PINTO, Milton José (org.).
Produção e Recepção dos Sentidos Midiáticos. Petrópolis, Vozes, 1998.
JUNQUEIRA, Lília. Identidade, representações e mudança social. IN: CUNHA, Paulo (org.).
Identidade(s). Recife, Editora Universitária, 1999.
MELO, Patrícia Bandeira de. O Índio na Mídia: discurso e representação social. Disponível em:
www.fundaj.gov.br/geral/observanordeste/indio.pdf. Acesso em 01 de set. de 2011.
PINHEIRO, Camila; CAMAROTTI, Gerson. Planalto Selvagem: numa noite de tédio cinco
garotos melancólicos e apáticos tocam fogo num índio para se divertir. Revista Veja. 30 de
abril de 1997. pp. 24-28.
TEIXEIRA, Cristina; GOMES, Isaltina Mello & MORAIS, Wilma. O movimento de sentidos
na mídia televisiva. Revista Lumina, vol. 2, nº 3, Juiz de Fora, UFJF, 1999, pp. 17-28.
THOMPSON, J. B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de
comunicação em massa. Petrópolis: Vozes, 2009.