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SUBSÍDIOS DE

Antônio
Carlos
FILOSOFIA DA
Persegueiro LINGUAGEM

1
PRESIDENTE DA REPÚBLICA: Michel Temer

MINISTRO DA EDUCAÇÃO: José Mendonça Bezerra Filho


Presidência da COORDENAÇÃO DE APERFEIÇOAMENTO DE PESSOAL DE NÍVEL
SUPERIOR – CAPES - Abilio Baeta Neves
Diretor de Educação a Distância da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES), Carlos Lenuzza

UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CENTRO-OESTE UNICENTRO


REITOR: Aldo Nelson Bona
VICE-REITOR: Osmar Ambrósio de Souza

COORDENADORA NEAD/UAB/UNICENTRO: Maria Aparecida Crissi Knüppel


COORDENADOR ADJUNTO NEAD/UAB/UNICENTRO: José Carlos Sansana
COORDENAÇÃO DO CURSO LICENCIATURA EM LETRAS PORTUGUES E SUAS LITERATURA:
Sonia Merith Claras
COORDENAÇÃO de tutoria DO CURSO LICENCIATURA EM LETRAS PORTUGUES E SUAS
LITERATURA: Célia Bassuma Fernandes

Nota: O conteúdo da obra é de exclusiva responsabilidade dos autores.


SUBSÍDIOS DE
FILOSOFIA DA
LINGUAGEM
Antônio Carlos Persegueiro

3
Conselho Editorial
Bruno Fernandes de Oliveira
Eduardo Alexandre de Oliveira
Evandro Oliveira Brito
Marcelo Prates
Neli Maria Teleginski

Revisão ortográfica: Ruth RiethLeonhardt


Projeto gráfico e editoração: Anderson Costa
Capa: pexels.com
Editor responsável: Luciano Ortiz

Dados Internacionais da CatalogaçãonaPublicação (CIP)


Bibliotecáriaresponsável: VâniaJacó da Silva, CRB 1544-9

Persegueiro, Antônio Carlos

P466s Subsídios de filosofia da linguagem / Antônio Carlos Persegueiro.–


Guarapuava: Apprehendere, 2017.
60 p.

Bibliografia
ISBN 978-85-68398-21-0

1. Filosofia. 2. Linguagem. I. Título.

CDD 20.ed. 401

2017
APPREHENDERE
(42) 3304-0263
Rua Saldanha Marinho, 1591
Sala 05 - Centro - Guarapuava - PR
apprehenderepr@gmail.com
Todos os direitos reservados

4
APRESENTAÇÃO

É com grande prazer que apresentamos aos


alunos e demais interessados o material preparado pelo
Professor Antônio Carlos Persegueiro, docente do De-
partamento de Filosofia da Universidade Estadual do
Centro-Oeste – UNICENTRO. Esse texto, ricamente
acompanhado de referências visuais, indicações biblio-
gráficas e subsídios que estimulam a curiosidade dos
estudantes e permitem ao leitor aprofundar seus estu-
dos, é uma contribuição importante para a bibliografia
brasileira na área.
A filosofia da linguagem, enquanto problema,
está presente na história da filosofia pelo menos desde
os sofistas da Antiguidade grega, que pela primeira vez
chamaram a atenção para a importância do fenômeno
linguístico na busca pela verdade ou, muitas vezes, no
ocultamento desta. Enquanto disciplina, a filosofia da
linguagem se torna uma preocupação central no começo
do século XX com a assim chamada virada linguística,
e é possível defender que a filosofia da linguagem é, de
fato, um elemento central para caracterizar a filosofia
contemporânea. Com efeito, se a filosofia moderna, des-
de Hobbes, passando por Locke e Descartes e chegando
a Kant, se caracteriza pela ênfase no pensamento como
representação e a consequente eleição da teoria do co-
nhecimento como disciplina mestra, a passagem à con-
temporaneidade se dá, entre outros aspectos, pela to-
mada de consciência da centralidade da linguagem para
a filosofia e a inauguração da semântica filosófica como
disciplina reguladora.
Ao tomar consciência de que a filosofia se apre-

5
senta essencialmente como discurso, e se faz com o instrumento inescapável da
linguagem, os filósofos contemporâneos invertem o axioma clássico de que a lingua-
gem é uma expressão do pensamento e do conhecimento para, ao contrário, assumir
que a natureza da linguagem é anterior e determina a natureza do pensamento. As
consequências dessa virada são profundas e influenciam a filosofia seja na sua ver-
tente analítica, seja naquela fenomenológico-hermenêutica. Quase todos os grandes
filósofos do século XX, de Carnap a Heidegger, de Wittgenstein a Gadamer, de Der-
rida a Habermas, tornaram a linguagem um tema central de sua reflexão.
Aos estudantes de Letras, o conhecimento dessa reflexão é essencial e per-
mite produzir a trans e a interdisciplinaridade tão necessárias às Humanidades,
muitas vezes isoladas na especificação requerida pela especialização inerente à di-
visão intelectual do trabalho na Academia e correspondente departamentalização
do saber em áreas isoladas e muitas vezes não comunicantes.
O professor Persegueiro adota, nesta introdução ao tema, uma aborda-
gem histórica, percorrendo de modo selecionado a totalidade da história da filo-
sofia, desde a filosofia grega até hoje, apresentando ao estudante o mapa de um
território extenso que convida ao estudo continuado. Utilizando-se de sua ampla
experiência no ensino, o autor se pauta pela preocupação em oferecer ao leitor uma
reflexão bastante completa sobre o assunto, que será útil não apenas ao curso para
o qual se destina, mas igualmente como material a ser utilizado de modo frutífero
em aulas no ensino médio e superior.
Finalmente, devemos lembrar que a produção deste material para o ensi-
no à distância representa o resultado de uma colaboração que envolve diversos ato-
res dentro e fora da UNICENTRO, quais sejam a Editora da UNICENTRO, o Mi-
nistério da Educação e Cultura (MEC), por meio do programa Universidade Aberta
do Brasil (UAB), os departamentos de Letras e de Filosofia (DELET e DEFIL) e os
setores da universidade envolvidos na viabilização de um amplo e já consolidado
programa de educação à distância na UNICENTRO, que permite levar o ensino
superior a muitos que a ele não teriam acesso em condições normais.

Ernesto Maria Giusti


Professor do Departamento
de Filosofia da UNICENTRO

6
SUMÁRIO

05 APRESENTAÇÃO

09 I - A FILOSOFIA DA LINGUAGEM
E OS PRINCIPAIS OBJETIVOS

19 II - PLATÃO E A
CONVENCIONALIDADE DO SIGNO

25 III - ARISTÓTELES: PROPOSIÇÃO,


LINGUAGEM E PENSAMENTO

33 IV - SANTO AGOSTINHO E A
FINALIDADE DA LINGUAGEM

43 V - A VIRADA LINGUÍSTICA (THE


LINGUISTIC TURN) E GOTTLOB FREGE

53 VI - WITTGENSTEIN: PROPOSIÇÃO
E JOGOS DE LINGUAGEM

7
8
CAPÍTULO I

A FILOSOFIA DA
LINGUAGEM E
OS PRINCIPAIS
OBJETIVOS
“O trabalho do filósofo da linguagem
refere-se à análise dos conceitos que
são habitualmente usados para explicar
a estrutura e o funcionamento da
linguagem”.
(Carlo Penco)

A linguagem constitui, em nossa civilização,


objeto de estudo da filosofia desde a Antiguidade. Mas,
diante da riqueza cultural produzida pela humanidade
em seu conjunto, é necessário reconhecer que, para além
deste período, outras civilizações e filosofias de distintas
matrizes também atribuem atenção especial à linguagem.
Todavia, frente à cada vez maior riqueza de perspectivas
advindas de autores e escolas de elevada distinção, este
escrito será restrito a recortes provenientes da tradição
filosófica ocidental. Isso se deve à necessidade de o estu-
dante receber uma introdução à Filosofia da Linguagem
a partir da Filosofia Ocidental para, quem sabe, em outra
oportunidade e etapa formativa, tomar contato com aná-
lises comparadas, o que não é o foco aqui apresentado.
Desse modo, registra-se que a linguagem, antes

9
de qualquer outra consideração, trata-se de “[...] uma grande realização humana.
Ela permitiu ao homem partilhar conhecimento, experiência e sentimentos com
seus semelhantes. Assim, a linguagem foi o fator decisivo no desenvolvimento da
cultura e sua transmissão de uma geração a outra.” (PERRY, 2002, p. 05). Frente
a tão significativas contribuições de apresentar e traduzir pensamentos, socializar
conhecimentos, particularmente o popular, artístico, mitológico, religioso e filosó-
fico-científico, a linguagem figura como elemento caro à filosofia e outras ciências.
Este capítulo delimitaremos aos elementos fundamentais oriundos da tra-
dição filosófica Ocidental, constituída a partir do encontro (e posteriores heranças)
da cultura judaica, filosofia grega, Cristianismo e Direito Romano. Veremos, pri-
meiramente, o conceito e, logo mais, as características da Filosofia da Linguagem,
sua formação e inserção em currículos acadêmicos universitários, como é este caso.

O que é linguagem? E Filosofia da Linguagem?

Em linhas gerais, a linguagem é o conjunto de sinais emitidos pelo indiví-


duo com objetivo de apresentar os mais diversificados pensamentos e sentimentos.
Nela estão abarcadas a articulação lógica dos sons, da escrita e, igualmente, da lín-
gua da qual este indivíduo e os que formam seu grupo ou comunidade fazem uso1.
Para a tradição filosófica Ocidenal, o interesse pela linguagem remonta à expressão
grega lógos (λóγος), a certos Diálogos de Platão e do Corpus Aristotelicum2. Nesse
sentido, além de linguagem, pensamento ordenador e estudo, este vocábulo também
diz respeito à “[...] razão, faculdade intelectual do homem, considerada como caráter
específico; e todas as formas de sua atividade”. (GOBRY, 2007, p. 89).
Conforme observado, lógos remete ao pensamento caracterizado por exa-
me, constante reflexão e predominância racional dirigidas para fins determinados.
Ao mesmo tempo, faz menção à diversidade de realizações humanas, evocadas pela
linguagem, seja ela corporal, simbólica, oral ou grafada em alguma língua em par-
ticular. Isso sem mencionar as linguagens artificiais, cada vez mais presentes na
atualidade.
Antes, porém, de ater-se a outras significações, cumpre frisar que “[...] o
primeiro sentido de lógos (do verbo légein/λέγειν, falar) é fala, linguagem.” (GO-
1 Existem inúmeras concepções de linguagem, a ponto de algumas contradizerem outras. Nesta
unidade apenas há a modesta apresentação de uma delas, sem comparações e maiores discussões
entre acepções.
2 O Corpus Aristotelicum é o nome atribuído ao conjunto das obras de Aristóteles. Após sua morte
(322 a. C.), muitos dos textos foram furtados, contrabandeados e perdidos. Mais tarde, o filósofo
grego Andrônico de Rodes (~130-60 a. C.) ordenou, classificou e comentou-os, passando, então,
a assim denominá-lo.
10
BRY, 2007, p. 89). Ao enunciá-lo, observa-se que pensamento e linguagem não
agem separados; complementam-se e dão norteamentos à vida humana, à produ-
ção de inúmeros artefatos, invenções e, inclusive, ao próprio melhoramento e evo-
lução da linguagem. No âmbito da relação entre pensamento e linguagem, emerge
a detecção de atribuição de sentido, seja a uma pessoa, palavras, objetos, ritos e a
toda manifestação compreendida pela diversidade cultural.

Pintura do flamengo Peter Bruegel, o Velho (~1525-1569), intitulada Torre de


Babel (Museu de História da Arte. Viena). Créditos da imagem: © Site Vírus da
Arte. Gravura disponível em: http://virusdaarte.net/pieter-bruegel-o-velho-a-torre-
de-babel/. Acesso em 20/02/2017.

O autor, influenciado pela leitura bíblica, retrata o surgimento de novas línguas


e linguagens.

“1Todo o mundo se servia de uma mesma língua e das mesmas palavras. 2Como
os homens emigrassem para o Oriente, encontraram um vale na terra de Senaar e
aí se estabeleceram [...]. 4
Disseram: ‘Vinde! Construamos uma cidade e uma torre
cujo ápice penetre os céus! Façamo-nos um nome e não sejamos dispersos sobre
toda a terra!’
5
Ora, Iawheh desceu para ver a cidade e a torre que os homens tinham
construído. 6E Iahweh disse: ‘Eis que todos constituem um só povo e falam uma
só língua. Isso é o começo de suas iniciativas! [...] 7Vinde! Desçamos! Confundamos
a sua linguagem para que não mais se entendam uns aos outros.’ 8Iahweh os
dispersou daí por toda a face da Terra, e eles cessaram de construir a cidade. 9Deu-
se-lhe por isso o nome de Babel, pois foi aí que Iahweh confundiu a linguagem
de todos os habitantes da Terra e foi aí que Ele os dispersou sobre toda a face da
Terra.” Gn. 11, 1-9.
11
E o que dizer da Filosofia da Linguagem? Esta é uma subárea da Filo-
sofia que, mesmo sendo inserida em currículos acadêmicos na era moderna, tem
vasta riqueza textual por problemas, autores, orientações e teorias. Para se ter
uma noção dos estudos filosóficos acerca da linguagem, na atualidade, há quem
afirme haver em torno de duzentas grandes teorias de investigação sobre a lin-
guagem provenientes da Filosofia! Tão expressivo quanto este número, são as
produções acadêmicas de universidades que dispõem de linhas, grupos de pes-
quisas, Mestrados e Doutorados cujo foco é, justamente, a linguagem. Eis, então,
uma entre tantas constatações a respeito da investigação sobre a linguagem sob
o prisma da Filosofia.
Feitas essas considerações, emerge uma questão, a princípio singela, mas
de profunda necessidade e validade: por que a Filosofia se interessa pela lingua-
gem? Uma resposta é dada por Luiz Henrique de Araújo Dutra, filósofo brasilei-
ro. Segundo ele, “[...] porque se reconhece como uma atividade essencialmente
discursiva que versa sobre práticas humanas que são, todas elas, pelo menos em
parte, também atividades discursivas.” (DUTRA, 2014, p. 15). A Filosofia é um co-
nhecimento fundamentalmente discursivo que, no caso de nossa tradição, é ma-
joritariamente escrito e fazem-se plausíveis reflexões, leituras e apresentações de
avanços no tocante à linguagem. E ainda, quando feita a versão3 da expressão
discurso à língua grega, há a direta referência a lógos, particularmente, a signifi-
cação de enunciados e sentenças articulados, coesos e racionalmente elaborados,
formando, portanto, um discurso.
Observada a íntima vinculação entre linguagem e filosofia, é preciso acres-
centar que “[...] não há uma compreensão razoável dos problemas filosóficos que
não passe por uma discussão de determinados aspectos da linguagem humana ou
mesmo de uma investigação sistemática sobre ela.” (DUTRA, 2014, p. 15). Afinal,
pensamentos também são frutos do contexto cultural, social, religioso, político e,
de modo peculiar, linguístico. Disso se depreende o jargão popular segundo o qual
a filosofia é filha de seu tempo, no sentido que ela se pronuncia sobre os problemas
vividos – e provocados – pelos indivíduos, suas motivações, anseios e necessida-
des. Desse modo, é inconcebível dissociar filosofia de linguagem, haja vista a im-
bricação e, igualmente, dependência detectadas entre ambas.
Visualizada a concomitância entre linguagem e filosofia, utilizaremos a
analogia, a seguir, para melhor explicitar o interesse por esta primeira. Por exem-
plo, ao observarmos um trabalhador da construção civil, notamos que ele, seguidas
vezes, efetua a organização do ambiente, como também separa o material de melhor
qualidade, comparado ao inferior. Retira impurezas da parte bruta e do acabamen-
3 Exercício por meio do qual o estudante traduz um texto ou sentenças de seu idioma para a língua
em que foram escritos.
12
to, primando pela excelência da obra. Contudo, nem sempre isso acontece, infeliz-
mente. Por outro lado, supondo-se que o leitor tenha vivido uma situação como a
supracitada. Em hipótese afirmativa, o diferencial deste trabalhador é o que cha-
ma a atenção. Quem não aspiraria ter alguém com tais virtudes prestando-lhe ser-
viços? Pois bem, no plano da linguagem, a filosofia efetua um trabalho análogo ao
deste pedreiro: busca melhor entender definições, construções frasais, elementos
denotativos, conotativos, simbólicos e peculiaridades presentes na linguagem e na
língua da qual emissor e receptor servem-se para manifestar pensamentos4. Sob
esta perspectiva, é possível afirmar que “[...] o filósofo da linguagem defronta-se
com a tarefa de analisar conceitos como, por exemplo, expressão, enunciado, as-
serção ou afirmação, sentido, etc. (PENCO, 2006, p. 14). Diferentemente do que se
pensa à primeira vista, tais termos são passíveis de investigação filosófica. Afinal,
não são monolíticos, tampouco portadores de significação absoluta.
Devido, então, à constatação de certa dinamicidade das expressões, está
em questão, quando se afirma a importância da linguagem para a filosofia, efetuar
ajustes, melhoramentos e correções racionais em enunciados, sejam orais ou es-
critos. Não se enseja menosprezar ou reescrever pensamentos outrora manifestos,
negando-lhes a existência ou distorcendo-os. Não obstante, o trabalho empreen-
dido pelo estudioso da linguagem objetiva, acima de tudo, aprender com as limi-
tações, erros e avanços que dizem respeito a esta faculdade tão ímpar e indelével
do ser humano. Assim sendo, tais detecções e intervenções no plano da linguagem
correspondem às principais tarefas mediante as quais se ocupa a filosofia. Auxi-
liam-no a imergir em um vasto e profundo universo, lamentavelmente desbravado
por poucos, embora seja parte da natureza de todas as pessoas.

Principais objetivos da filosofia da linguagem

Independentemente de possíveis caminhos e rumos teóricos aos quais a


linguagem possa levar, não temos como negar sua validade, sentido e fascínio exer-
cidos sobre todos os seres humanos. Para expor os objetivos aos quais se propõe
esta nova, porém densa subárea da Filosofia, ater-nos-emos aos recortes prove-
nientes do texto do Professor Sylvain Auroux.

4 Não confundir com as atividades inerentes às aulas de gramática e outras subdivisões da língua.
Em Filosofia da Linguagem efetua-se a análise, ou seja, decomposição, ajustes, correções e orde-
nação lógica de pensamentos manifestos em linguagem e, é claro, em uma língua específica. As-
sim, o trabalho do profissional de letras e do filósofo da linguagem não se confundem, tampouco
realiza-se sob a mesma perspectiva.
13
A Filosofia da Linguagem não corresponde nem a um conceito, nem
a um campo disciplinar bem constituído. Entende-se por Filosofia da Lin-
guagem um conjunto de reflexões bem distintas: observações dos filósofos
a respeito da linguagem, análises técnicas construídas a partir dos forma-
lismos lógicos, avaliações do papel da linguagem comum, representações
construídas a partir dos saberes positivos que tomam a linguagem como
objeto (Filosofia da Linguística). Apesar de sua heterogeneidade [...], trata-
-se provavelmente do mais importante e mais difícil campo da Filosofia.
Com efeito, a questão da linguagem afeta aquilo que constitui a
especificidade da humanidade e a natureza da racionalidade. Cada campo
de nossa experiência é objeto de construções teóricas (aquilo que chama-
mos de ‘ciências’), as quais dão lugar a problemas filosóficos delicados; o
infinito para a matemática, a estrutura última da matéria para a física,
a natureza da vida para a biologia, a liberdade para o direito e a moral.
Para a linguagem, esses problemas são de duas ordens. A primeira se
refere à natureza da significação. Que tipo de entidade é a significação de
uma palavra ou de uma frase? De onde vem que a linguagem signifique? A
segunda refere-se à universalidade. Como é que me compreendem quando
falo e, ainda por cima, como posso ser traduzido para outra língua? Essa
questão, evidentemente, tem a ver com a natureza do pensamento.
Poderíamos dizer, no fundo, assim como o infinito é a chave meta-
física da matemática, a universalidade é a chave metafísica das ciências da
linguagem. [...] A filosofia da linguagem claramente não se reduz à filo-
sofia das ciências da linguagem. Muitos filósofos não têm nem mesmo um
conhecimento muito profundo da questão. E há várias razões para isso.
[...] Cada um de nós se encontra imerso na linguagem como seu
lugar natural, ali onde dominamos nossa presença no mundo e nossa
humanidade. Disso decorre uma apresentação espontânea da natureza
da linguagem, quase sempre apoiada nos conhecimentos elementares que
todo mundo adquire com a gramática escolar. [...] O homem se define pela
linguagem e pela razão, o que significa que, sem linguagem, não haveria
racionalidade. A razão e a linguagem podem ser confundidas como supu-
nham os projetos de língua universal? O que significa para a razão humana
o fato de a linguagem nos ser dada sob a forma de uma multiplicidade de
línguas diferentes?
(Auroux, Sylvain. Filosofia da linguagem.
p. 7-10, grifos no original)

14
Após observar as considerações atinentes ao que se propõe a Filosofia da
Linguagem, retornaremos a um dos tantos textos clássicos que a abordam. Neste
caso, selecionamos uma passagem do diálogo Fedro, no qual figura a escrita, sua
origem e conexões com a memória, jogos, números e demais atividades nas quais,
inegavelmente, a linguagem está implicada.

Texto complementar

Platão (427-348 a.C.) foi o primeiro grande filósofo a se preocupar em


resgatar os relatos míticos, que possuem, entre outras, as funções de preservar a
memória, apresentar feitos heroicos e contribuir para a educação do indivíduo.
Tais relatos constituem em verdadeiras referências para a reflexão e para ações
virtuosas, afinal, portam lições que serão retiradas pelo sujeito. Até o momento
de sua vida adulta, grande parte dos mitos eram relatados de pais para filhos, na
Assembleia (Ágora), em batalhas e pelos poetas aedos ou rapsodos. Ao seu modo,
Platão salva muitos mitos do esquecimento por meio de inserção em boa parte de
seus Diálogos. Enriquece nossa civilização com relatos de inegável valor, como
este, que trata da origem da escrita e os possíveis efeitos para todos nós.

Desde um passado
imemorial, o ser
humano necessita
representar seus
pensamentos por
pinturas e, mais tarde,
caracteres. À esquerda,
observa-se a Pintura
Rupestre do Sítio Xique-
Xique I, em Carnaúba
das Antas, Seridó, Rio
Grande do Norte. Note-
Créditos da imagem: ABAR (Associação Brasileira de
se, sobretudo, a presa
Arte Rupestre). Disponível em: http: //www.global-
presença da linguagem
rockart2009.ab-arterupestre.org.br/arterupestre.asp.
corporal.
Imagem acessada em 20/02/2017.

15
O valor atribuído à escrita: uma contribuição de Platão
A origem da escrita. (Fedro 274c-275b; 275c-275e.)
Sócrates: “Pelo menos posso te narrar uma tradição dos antigos
[274]. Eles conhecem a verdade. Se pudéssemos, por nós mesmos, descobrir a
verdade, importar-nos-íamos ainda com aquilo que as pessoas acreditam?”
Fedro: “Que pergunta! Mas me conta essa tradição de que falas.”
Sócrates: “Bem, ouvi dizer que viveu perto de Eucrates, no Egi-
to, um dos antigos deuses daquele país. Chamam Íbis ao pássaro que lhe
é consagrado e ele mesmo é chamado Tot [d]. Foi ele quem inventou os
números com o cálculo, a Geometria, a Astronomia e também o jogo de
damas, os dados e, enfim, e sobretudo, a escrita. Naquele tempo, daquela
grande cidade da região elevada que os gregos denominavam Tebas, do
Egito e a cujo deus chamam Amon, Tamuz reinava sobre todo o Egito. Tot
veio encontrar-se com ele e mostrou-lhe as artes que tinha inventado, di-
zendo-lhe que era preciso difundi-las entre os outros egípcios. Então, o rei
perguntou-lhe qual podia ser o uso de cada uma delas. À medida que Tot
os expunha e dependendo das explicações lhe parecerem boas ou más, o rei
reprovava isso, louvava aquilo. Dizem que numerosas foram as observa-
ções que Tamuz fez a Tot, a favor ou contra cada arte. Seria muito longo
relatá-las em detalhes.”
“Mas quando se chegou à escrita: ‘Este é, ó rei’, disse Tot, ‘um co-
nhecimento que tornará os egípcios mais sábios e lhes aumentará a memó-
ria; memória e ciência encontram seu remédio’.”
“O rei respondeu-lhe: ‘Muito engenhoso Tot, uma coisa é ser capaz
de inventar as artes. Outra, julgar em que medida prejudicarão ou serão
úteis àqueles que as deverão usar.E tu, neste momento, como és o pai da
escrita, lhes atribuis, por [275] benevolência, os efeitos contrários ao que
tem, pois, por negligenciarem a memória: ela fará aumentar o esqueci-
mento na alma daqueles que a tiverem adquirido; fiando-se na escrita, é
do exterior, mediante caracteres estranhos, e não do interior e graças ao
esforço pessoal, que se fará aflorarem à memória as lembranças. Portanto,
não encontraste um remédio para fortificar a memória, mas para ajudar a
rememoração [...]’.”
Fedro: “Que facilidade tens, Sócrates, em criar histórias [...] ao
seu alvedrio! [...]”
Sócrates: “[c] Assim, pois, aquele que acredita deixar depois de si

16
uma arte registrada por meio dos caracteres da escrita e aquele que, por
sua vez, a recolhe com a ideia de que dela provirão a certeza e consistência
são, sem dúvida, tolos e desconhecem, certamente, o Oráculo de Amon, se
creem que discursos escritos são algo mais do que um meio de fazer relem-
brar àquele que [d] já o conhece aquilo de que trata aquele escrito.”
Fedro: “É isso mesmo.”
Sócrates: “A escritura apresenta, meu caro Fedro, um inconvenien-
te que, aliás, se encontra também na pintura. Efetivamente, os seres que esta
última dá à luz têm a aparência de vida, mas, caso se lhes faça uma per-
gunta, manterão, dignamente, silêncio. O mesmo acontece com os discursos
escritos. Poderíamos crer que falam como seres sensatos, mas se os interro-
garmos com a intenção de compreender o que dizem, limitam-se a exprimir
uma única coisa, sempre a mesma. Uma vez escrito, cada discurso chega aos
mais [e] variados lugares e é recebido tanto por aqueles que entendem do as-
sunto quanto por aqueles que não podem entendê-lo; ignora a quem deve e a
quem não se deve dirigir. Se vozes discordantes se fazem ouvir a seu respei-
to, se é injustamente injuriado, tem sempre que recorrer ao seu pai. Sozinho,
com efeito, é incapaz de repelir um ataque ou se defender.”
Fedro: “Perfeitamente.”
Fragmentos citados por DRÓZ, Geneviève.
Os mitos platônicos. p. 167-168.

Neste capítulo houve a intenção de promover a familiarização do estudan-


te com a Filosofia da Linguagem. Salientamos a conceituação de linguagem segui-
da de uma curta explanação sobre a parte da Filosofia que a investiga. Optamos
por apresentar o relato bíblico atinente à origem das diferentes – porém relaciona-
das – línguas e linguagens. Em seguida, foram mencionados alguns dos principais
objetivos da filosofia da linguagem. Por fim, ocorreu a inserção de fragmentos do
diálogo Fedro, texto com o qual Platão, pela boca de Sócrates, ilustra a origem da
escrita, dos números e jogos, entre outras artes.
Feito isso, passaremos a estudar um dos pilares da filosofia ocidental, Pla-
tão. Conforme sabido, mesmo com vasta obra, limitar-nos-emos a abordar a con-
vencionalidade do signo e algumas de suas implicações. Note-se que, antes mesmo
de ocorrer o desmembramento da disciplina moderna de Filosofia da Linguagem,
havia profundas discussões que não se furtaram a tratar da linguagem, problema-
tizá-la e a, de fato, inseri-la na pauta das preocupações filosóficas.

17
18
CAPÍTULO II
PLATÃO E A
CONVENCIONALIDADE
DO SIGNO

“Nessa luta entre os nomes, em que uns se


apresentam como semelhantes à verdade
e outros afirmam a mesma coisa de si
próprios, que critérios adotaremos e a
quem deveremos recorrer? [...]Teremos
que procurar fora dos nomes alguma
coisa que nos faça ver sem os nomes qual
das duas classes é a verdadeira, o que ela
demonstrará indicando-nos a verdade
das coisas.” (PLATÃO)5

Ao estudar a convencionalidade do signo6, Pla-


tão (428-347 a. C.) alerta para o risco da linguagem ser
fonte de erro. Paralelamente, se ela não o for, ainda a
maneira pela qual é articulada pode conduzir o indiví-
duo a equívocos. Esses erros são provenientes do que
tomamos como significado dos nomes ou conceitos em-
pregados, respectivamente, no dia a dia. Embora todas
as pessoas – letradas e não-letradas – mencionem ou
evoquem a significação, Platão chama a atenção para os

5 Resposta de Sócrates a Hermógenes a respeito da correção de no-


mes. No diálogo há a discordância entre o filósofo e o discípulo,
pois Hermógenes sustenta que “[...] a correção dos nomes se ba-
seia em outra coisa que não a convenção e o acordo. [...] Seja qual
for o nome que se dê a uma determinada coisa, esse é o seu nome
certo” (PLATÃO, 1973, 384c-d).
6 Expressão originária do grego semeíon/σημειον e do latim sig-
num que designa “[...] qualquer objeto ou acontecimento, usado
como menção de outro objeto ou acontecimento” (ABBAGNA-
NO, 2000, p. 894). Sem, no entanto, tratar dos diversos tipos de
signo, tem-se que seu desmembramento linguístico indica o ins-
trumento racional por meio do qual nos é representada a ideia.
Pressupõe, via de regra, a relação firmada entre uma noção e um
som, quer dizer, entidades mentais.
19
enganos, propondo que, ao serem constatados, lhes façamos correções. Para tanto,
redige um diálogo intitulado Crátilo ou da correção dos nomes que, além de ho-
menagear um aluno 7, tem, acima de tudo, o objetivo de investigar a linguagem, o
significado e suas relações com a realidade.
Quando mencionada a significação, somos reportados aos exercícios
etimológicos e consultas voltadas à elucidação do que dizem nomes e conceitos.
Apesar de os aplicar, torna-se claro que, nem sempre, os mesmos exercícios são
suficientes. Diante disso, Platão atém-se à natureza da linguagem e do significado.
Constata a existência de uma essência e propriedades creditadas à linguagem. Para
ele, a natureza, em seu conjunto, proporciona a compreensão de elementos uni-
versais que permeiam a linguagem e, certamente, influenciam o significado. Assim
procedendo, Platão não se restringe a apenas estudar a origem e os significados dos
nomes, mas, acima de tudo, reflete se o que lhe fora atribuído corresponde ou não
à verdade. Finalmente, averigua se o nome e suas significações têm alguma vincu-
lação com a realidade da qual fazem parte os interlocutores.

O que é convencionalismo e naturalismo linguístico?


De modo geral, entende-se por convencionalismo a “[...] doutrina
segundo a qual a verdade de algumas proposições válidas, em um ou mais
campos, se dê em acordo comum ou entendimento (tácito ou expresso)
daqueles que utilizam essas proposições” (ABBAGNANO, 2000, p. 207).
Indica que o grupo, comunidade ou outra agregação humana, por acordos
informais ou formais, define a importância e a consequente validade de no-
mes, noções e unidades de pensamento expressas por meio de encadeamen-
to de enunciados. Tanto que, ao empregar esses vocábulos e proposições, o
indivíduo raramente se indaga acerca do significado; apenas o reproduz
mecanicamente.
Já o naturalismo entende a linguagem como um produto ou efeito
da natureza. Afirma que o meio ambiente e social possuem, respectivamen-
te, suas influências e que a linguagem é natural e, igualmente, inata. No
caso de Platão, visualizamos Hermógenes dialogando com Sócrates. Du-
rante certa altura das indagações efetuadas pelo mestre, o jovem declara:
“[...] o nosso Crátilo sustenta que cada coisa tem por natureza um nome
apropriado e que não se trata da denominação de alguns homens conven-
cionaram dar-lhes, com designá-las com determinadas vozes de sua língua,
mas que por natureza tem sentido certo, sempre o mesmo, tanto entre os
7 Platão homenageia alguns alunos, nomeando os livros, como Crátilo com a linguagem e Timeu
com a cosmologia, etc.
20
Helenos, quanto entre os bárbaros em geral” (PLATÃO, 1973, 383a-b).
Uma das possíveis diferenças entre eles é que o convencionalismo
reconhece a primazia do acordo entre as pessoas. Também entende que,
na maioria das vezes, impera a atribuição dada pelo indivíduo possuidor
de maior status ou poder. De todo modo, prevalece o acordo e uma relação
social – e cultural – entre os indivíduos. Em contrapartida, o naturalis-
mo sustenta que a natureza, ou seja, o conjunto de elementos que lhe são
íntimos ao nome, objeto ou conceito está em sincronia com suas atribui-
ções. Diferentemente do convencionalismo, o naturalismo vê-se despontar
primeiramente, pois a dita natureza existe antes de toda convenção.

Conforme observado, mesmo não sendo satisfatória, ou melhor, com re-


sultados a contento para todas as expressões, a correção de nomes e conceitos au-
xilia no distanciamento de falsidades e imprecisões detectadas na enunciação de
inúmeros vocábulos. Então, o problema não está nos nomes e noções, mas naquilo
que lhes atribuímos irrefletidamente. Em todo caso, a correção “[...] se encontrará
em quase toda a tradição filosófica e reaparecerá de modo bastante explícito no
pensamento moderno, sendo questionado [...] apenas no período contemporâneo,
após a assim chamada ‘virada linguística. 8’” (MARCONDES, 2010, p. 13). Por sé-
culos o exercício da correção, embora limitado em alguns casos, foi utilizado no
intuito de, ao menos, minimizar erros nas atribuições e, se estas não fossem ade-
quadas, repensá-las, culminando, portanto, em suas substituições.
Após observar a urgência em atribuir significação a nomes e conceitos,
preferencialmente da melhor forma possível, destaca-se o diálogo entre Sócrates
e Hermógenes cujo objetivo é, justamente, atentar à atribuição de significado aos
nomes e conceitos. Compenetrado a refutar o jovem Hermógenes, Sócrates, pela
boca de Platão, interpela-o, pois, a princípio, este discípulo mostra-se partidário
do convencionalismolinguístico. Para Hermógenes, “[...] a correção dos nomes se
baseia em outra coisa que não a convenção e o acordo. Para mim, seja qual for o
nome que se dê a uma determinada coisa, esse é o seu nome certo.” (PLATÃO,
1973, 384c-d).
Em contrapartida, contesta Sócrates: “[...] É de todo indiferente manter a
convenção, tal como foi estabelecida, ou admitir outra inteiramente oposta, para
dar o nome de grande ao que denominamos pequeno e o de pequeno ao que deno-
minamos grande.” (PLATÃO, 1973, 433e). Neste trecho, depreendemos o confor-
mismo de Hermógenes. Até porque o nome diz o que se entende à primeira vista

8 Sobre o movimento denominado Virada Linguística, consultar o capítulo 5.


21
e resulta da convenção ou acordo. No entanto, Sócrates, pensador marcado por
vasta experiência argumentativa e acurada observação da linguagem, afirma que o
convencionalismo é falho e insuficiente. De acordo com Sócrates, os nomes “[...] só
representam alguma coisa para os que convencionaram formá-los depois de terem
o conhecimento dessa coisa, baseados precisamente na convenção, a correta for-
mação dos nomes” (PLATÃO, 1973, 433e).
Neste caso, o convencionalismo mostra-se problemático, pois tanto na
época de Sócrates quanto hoje, empregamos nomes e conceitos oriundos de dis-
tintas tradições, ambientes, idiomas e, por fim, do contexto local. O uso de nomes
e noções expressa que, em grande medida, não os conhecemos e, caso os assimila-
mos, ainda os definiremos com tremenda dificuldade; apenas os empregamos va-
gamente. Diante disso, será que, de fato, representam algo para quem os enuncia?
Talvez, muito pouco haja vista a deficiência em explicitá-los.
Por conseguinte, apesar de, em alguns casos, haver um convencionalismo
natural, já em outros, prevalecer um nome que, lentamente, sedimentou-se no ima-
ginário por influência ou enunciação de alguém, qual é, então, a consequência des-
te processo, seja ele convenção ou imposição? A de que, para uma pessoa, objeto,
comunidade ou cidade o nome não dizer, na verdade, aquilo a que faz menção e
remeter a inverdades. Não obstante, “[...] o nome só pode significar se contiver uma
propriedade inerente à própria coisa; de certo modo, ele limita as coisas e não temos
escolha se quisermos utilizar o justo termo.” (AUROUX, 2009, p. 16). Este elemento
é o que Platão denomina essência, o que permanece na enunciação, pois é universal
e refere-se, de fato, a uma adequada atribuição dirigida ao nome e conceito.
Mesmo assim, há contradições e ausência de sincronia entre nomes e sig-
nificados. Como exemplo temos pessoas que reclamam do significado de seus no-
mes. Depois de apresentarem justificativas, solicitam à Justiça que as autorize a
mudar o nome, haja vista constrangimentos ocasionados. E ainda, em sua origem,
tal nome pode significar algo inadequado à natureza de seu portador, atestando
algo contrário à pessoa nomeada. Paralelamente, temos situações em que, ao che-
garmos em uma cidade ou outra localidade, observamos que o nome não tem, à
primeira vista, a ver com ela. Sem maiores delongas, ainda podem ser observadas
contradições em termos das qualificações expressadas pelo nome.
A este respeito emergem Oceano Pacífico, com algumas das piores intem-
péries climáticas e sísmicas já registradas e Cabo da Boa Esperança, rota de na-
vegação na África do Sul, conhecida por inúmeras mortes e acidentes com navios
devido aos fortes ventos e correntes marítimas, entre outros. De modo geral, o
convencionalismo exerce influências sobre a compreensão advinda do nome, po-
rém não podemos afirmar sua validade universal, até porque, em discordância à
22
posição de Crátilo e Hermógenes, o nome que é enunciado ou atribuído a pessoas,
objetos e localidades é, na maioria das vezes, passível de questionamentos e, con-
forme o caso, correções, ajustes e, finalmente, substituição. Isso é rotineiramente
presenciado, seja porque o nome não expressa o que é o objeto, pessoa ou localida-
de, seja também para lhe distorcer o significado.
Nestas e em outras ocasiões, visualiza-se a atualidade e importância do que
Sócrates, pela boca de Platão, ensina. Após desconfiar e detectar incoerências e fal-
sidades sobre o que afirmam os nomes, sugere que “[...] teremos de procurar fora
dos nomes alguma coisa que nos faça ver sem os nomes qual das duas classes9 é a
verdadeira, o que ela demonstrará indicando-nos a verdade das coisas,” (PLATÃO,
1973, 438d-e). Esta procura assinala que não podemos utilizar nomes soltos, isola-
damente. Teremos de, alicerçados nos ensinamentos socráticos, empregá-los em um
contexto frasal, textual, cultural, sócio-político e, evidentemente, linguístico.
Em seguida, poderemos almejar, além das correções, obter a correspon-
dência entre nomes, conceitos e verdade. Inevitavelmente, far-se-á necessário ela-
borarmos proposições, unidades linguísticas compostas de sujeito e predicado,
podendo unirem-se a outras, por meio das quais depreenderemos significados.
Afinal, “[...] a linguagem se constrói a partir das proposições. Este fato leva os fi-
lósofos, desde a Antiguidade até nossos dias, a exigirem uma noção mais precisa
do termo ‘proposição’ dando surgimento à várias teorias da proposição.” (SILVA,
2001, p. 167). Sem abordá-las, torna-se imperioso assimilar a importância do con-
vencionalismo e da detecção de erros para, logo mais, refinar enunciações, pro-
posições e textos, além da própria oralidade. Embora o Crátilo não ofereça uma
solução ao convencionalismo e assuma o uso do naturalismo linguístico, impele,
há mais de vinte e três séculos, a propormos recursos voltados ao enobrecimento
da linguagem, faculdade íntima à razão e, por extensão, ao pensamento. Por isso,
somos, antes de mais nada, viri loquentes (homens que falam).
Neste capítulo tratamos do convencionalismo e naturalismo linguísticos.
Vimos que, sucintamente, ao enunciar ou evocar nomes e conceitos não lhes atribu-
ímos a devida significação. Também notamos que, embora Sócrates, pelas palavras
de Platão, não solucione a questão, acaba por problematizá-lo, ação de expressiva
validade. Paralelamente, observamos dificuldades ao nos dirigir a nomes e conceitos
sem lhes atribuir convenções ou acordos nos quais estamos imersos. Não obstante,
em Platão há outras passagens, Diálogos nos quais figuram, unidas à linguagem, re-
tórica, busca do verdadeiro e do falso, preservação de mitos aplicados à linguagem e
à escrita que, em razão do foco adotado para a disciplina, aparecerão a seguir.

9 Os nomes que se assemelham à verdade e aqueles que dizem a mesma coisa de si mesmos.
23
24
CAPÍTULO III
ARISTÓTELES:
LINGUAGEM E
PENSAMENTO E A
IMPORTÂNCIA DA
PROPOSIÇÃO

“[...] O homem é, por natureza, um


animal político. [...] A natureza, como
se afirma frequentemente, não faz nada
em vão, e o homem é o único animal
que tem o dom da palavra. [...] O poder
da palavra tende a expor o conveniente
e o inconveniente, assim como o justo
e o injusto. Essa é uma característica
do ser humano, o único a ter noção do
bem e do mal, da justiça e da injustiça”
(ARISTÓTELES).

Aristóteles (384-322 a.C.) oferece muitas he-


ranças que abrangem diversas áreas do conhecimento.
Englobam ética, moral, filosofia política, metafísica, ló-
gica, teoria do conhecimento, biologia, botânica, entre
outras. Porque tantas áreas são enriquecidas por suas
contribuições, grande parte dos estudiosos o chamam de
pai das ciências, haja vista o fato de defini-las, organizá-
-las, classificá-las, sistematizá-las e legar sólidos alicer-
ces. Diante desses e de outros feitos, é possível afirmar
que Aristóteles é o maior filósofo da Antiguidade e, ao
lado de Platão, uma das colunas do pensamento filosófi-
co-científico da civilização Ocidental.
Assim sendo, neste capítulo atemo-nos, pontu-
25
almente, à relação firmada entre linguagem e pensamento acrescida da proposição
e de sua respectiva importância. Desse modo, cumpre registrar que Aristóteles não
escreveu um texto específico de filosofia da linguagem. Mas, de forma admirável,
redigiu escritos de lógica, ciência das leis e organização do pensamento, sua vali-
dade, detecção de erros e contradições. Segundo Aristóteles, a lógica é o ponto de
partida para o estudo de todas as áreas e objetos do conhecimento, inclusive, da
linguagem. Tem uma função propedêutica 10.
Antes, porém, de investigar a relação entre linguagem e pensamento, é
oportuno lembrar que, em Aristóteles, ocorrem a conexão e complementabilidade
entre as áreas do conhecimento, o que engloba, necessariamente, a linguagem. Esta
se vincula, além da lógica, à gramática, retórica e dialética. Diz respeito à externa-
lização de pensamentos e, atualmente, a estenderíamos à própria cultura como um
todo. Até porque “[...] a linguagem é a expressão de tudo o que é, e Aristóteles a
estuda onde quer que apareça, pois é só através de seu exame que a realidade pode
ser examinada.” (NEVES, 1981, p. 57).
No intuito de melhor averiguá-la bem como entender sua articulação a
partir de Aristóteles, observamos um breve trecho do Órganon, texto referente à
lógica e à íntima – e indissociável – relação com a linguagem. Em seguida, há a
fixação na relação firmada entre linguagem e pensamento acrescida da proposição,
modalidade enunciativa que é peculiar em função do uso da razão e, ademais, da
correta apresentação de enunciados e sentenças.

O Órganon
O sistema de livros que a tradição liceal11 formulou com os es-
critos lógicos de Aristóteles e discípulos, destinado à escola peripatética 12,
intitula-se Órganon, que se traduz por órgão, instrumento. Órgão é ele-
mento de aparelho, e nesta acepção Aristóteles inventou o nome: elemento
do aparelho analítico, a Analítica, que a escolástica latina baptizou (sic)
com o nome de Lógica. O aparelho inclui, além da Analítica, a Gramática
e a Retórica, mas os fundamentos do trívio13 constam deste compêndio
do pensamento rigoroso e não paralogista dos livros orgânicos, fonte da
10 Propedêutica significa uma introdução a determinado conhecimento, relacionado aos demais.
É preliminar aos demais cujo objetivo é fazer a compreensão avançar. Visa preparar o indivíduo
para etapas formativas mais complexas.
11 Quer dizer, dos textos e ensinamentos comuns ao Liceu, escola fundada por Aristóteles, em
Atenas.
12 Escola Peripatética era outro nome atribuído à instituição de Aristóteles. Era comum vê-lo lecionar
caminhando com seus alunos. De perípathos derivamos a expressão, os que estudam andando.
13 Trívio vem do latim Trivium, quer dizer, o trivial, elementos ou conteúdos indispensáveis,
fundamentais.

26
lógica formal, a pontos de o próprio Aristóteles reconhecer que, antes dele,
nada havia a citar, apesar da penosidade que sofreu em busca de eventuais
fontes anteriores, de onde o seu exercício analítico e retórico constituir o
primeiro na escola grega e, por efeito, nas demais escolas.
Organizador da lógica dedutiva, baseada no instrumento racional
do silogismo14, que funciona qual operação aritmética de matemática pura,
ainda hoje a humanidade não dispõe de outra lógica dedutiva que não seja
a de Aristóteles. [Francis] Bacon, no Novum Organon, ensaiou uma lógica
indutiva, mas não conseguiu, nem alterar as regras universais da lógica
dedutiva, nem demonstrar erro nas teses de Aristóteles quanto à indução,
que minorava, por achar que, nos acidentes15, não há forma de progredir
senão pela análise de acidente a acidente, sem hipótese de universalização
de uma série, classe ou conjunto de acidentes. [...]
O uso da dedução racional é uma analítica, que melhor se exprime
na forma verbal usada por Aristóteles, a épistémê. O substantivo lógica, é
uma forma adjectivada (sic), refere o próprio do lógos, o discurso lógico,
mas é forma tardia, mais devida ao eclectismo alexandrino e romano do
que ao magistério liceal.
O Organon é o conjunto de seis livros sobre a arte de filosofar, a
propedêutica a toda a arte de filosofar. Não é a filosofia propriamente dita, é
a arte de exercitar a filosofia, como o adro16 que está antes do santuário. [...]
(Prefácio de Pinharanda Gomes à edição portuguesa do Órganon
de Aristóteles. p. 09-10, grifos no original).

Linguagem e pensamento

Uma das razões para a linguagem despontar como tema filosófico é, entre
outros elementos, a íntima relação estabelecida com o pensamento. Ambos, além
de dependentes e complementares, exercem influências mútuas sobre o indiví-

14 Silogismo é o tipo de raciocínio formado por duas proposições que antecedem a conclusão, denomi-
nadas de premissas. Normalmente a primeira é chamada de premissa maior, seguida da premissa
menor e, finalmente, a proposição que encerrará a afirmação ou negação intitulada conclusão, de-
preendida das suas premissas. Ex.: Todos os humanos são mortais. Ora, Antônio Carlos é homem.
Logo, Antônio Carlos é mortal.
15 Acidentes significam elementos acessórios à substância, o que subsiste e não necessita de outro
para tal. Por exemplo, na noção de carro a substância é, justamente, o veículo e acidentes são seus
acabamentos e demais adereços.
16 Adro é o pátio frontal ou lateral de um templo. Segundo o texto, é um local adequado para conver-
sar, ao passo que, em seu interior, o ambiente é propício às orações e ao silêncio.
27
duo, grupos e comunidades. Todavia, sem especificá-las, dado o foco ora proposto,
cumpre ater-nos, brevemente, à vinculação entre linguagem e pensamento sob o
prisma de Aristóteles. Segundo o filósofo, a vinculação acontece, necessariamente,
pela atuação da mente. Pelos sentidos, ocorre a assimilação do mundo exterior e de
seus objetos. Assim, a linguagem está imbricada com outra relação, entre matéria
e forma mediada pela mente.
É no plano mental, além da realidade sócio-política que observamos e es-
tudamos a linguagem, pois, para Aristóteles, ela tem vinculações com o pensamen-
to e vice-versa. Segundo ele, na instância do pensamento, a mente é responsável
por relacionar e ordenar logicamente palavras, enunciados, sentenças, proposições
e períodos. Ademais, “[...] o conhecimento que se constitui pelo pensamento ante-
cede a linguagem e é autônomo em relação a ela. A linguagem expressa, portanto,
um pensamento que se constitui de maneira prévia e autônoma em relação à sua
expressão linguística.” (MARCONDES, 2010, p. 23). Nem todos os pensamentos
são expressos por meio da linguagem. Quando o são, passam a ser alvo de investi-
gação a partir da relação entre linguagem e pensamento. Se ainda não são lingusi-
ticamente expressos, podem ser estudados, mas sob outra perspectiva.
Todavia, ao observar, particularmente, as palavras, unidades pertencen-
tes ao conjunto da língua e, amplamente, da linguagem humana, Aristóteles distin-
gue duas classes, a saber:

As palavras faladas são símbolos das afecções 17 de alma, e as palavras


escritas são símbolos das palavras faladas. E como a escrita não é igual
em toda a parte, também as palavras faladas não são as mesmas em
toda a parte, ainda que as afecções da alma de que as palavras são sig-
nos primeiros, sejam idênticas, tal como são idênticas as coisas de que
as afecções referidas são imagens. (ARISTÓTELES, 1985, II, 16a).

Tal diferenciação deve-se ao fato de que, quando enunciadas, embora pos-


suam um valor objetivo, portanto, lógico, as palavras não se isentam também de
elementos subjetivos. Por isso, Aristóteles as define como afeções da alma, aqui
sinônimo de mente, razão e inteligência. Tais afeções “[...] são representações in-
ternas do sujeito falante. [...] Esses estados são os mesmos para todos, pelo fato de
serem determinados pelo mundo.” (AUROUX, 2009, p. 23). Diferentemente deles,
nota-se uma diversificada variação de escrita e de acepções das palavras. Como
portam vários sentidos, as expressões têm diversas implicações à compreensão (e
incompreensão) dos interlocutores.
17 Afecções (no português brasileiro leia-se afeções) são modificações causadas por forças externas
detectadas em uma pessoa. Envolvem desde mudanças emocionais até enfermidades.
28
Assim procedendo, a variação de sentido das expressões não consiste
em um problema, tampouco em estorvo ao estudo da linguagem. Assinala que
o ser humano possui a condição de depreender mais de um significado prove-
niente das palavras. Com efeito, para bem fazer esta atribuição, “[...] a análise
do significado dos signos deve se realizar através da relação entre a mente, isto
é, o pensamento, e a realidade. A relação entre as palavras, enquanto signos lin-
guísticos, e a realidade depende da mediação da mente.” (MARCONDES, 2010,
p. 22). Conforme observado, a mente une e equaliza elementos distintos prove-
nientes do pensamento e do mundo exterior. Juntamente com esta atividade, é
necessário que o indivíduo atente à existência de um contexto no qual palavras e
proposições foram ditas ou escritas.
Para tanto, tem-se que “[...] é na composição e na divisão que o verdadei-
ro e o falso consistem” (ARISTÓTELES, 1985, II, 1, 16a). Ao analisar a linguagem,
sobretudo sob a forma de enunciados e proposições, o filósofo sustenta que no
momento de elaboração e divisão das frases é que ocorrem muitos erros, exage-
ros e propagação de mentiras. Isso é, certamente, intencional ou, em menor grau,
resultado da falta de atenção ou outro motivo. Mas, como a o objetivo da lógica é
detectar contradições e incoerências, Aristóteles sugere que, justamente na forma-
ção frasal, ela seja aplicada, para dirimir tais problemas, haja vista o risco de serem
perpetuadas incoerências e demais erros.
Por conseguinte, em relação aos nomes, Aristóteles reconhece que, em
grande parte, estes são frutos da convenção, especialmente no tocante às atribui-
ções de sentido efetuada. Desse modo, além do que expressam em si, os nomes
têm expressivos sentidos provenientes do grupo ou comunidade, se comparado
somente ao indivíduo. Segundo o filósofo, “[...] o nome é uma locução, que possui
um significado convencional, sem referência ao tempo, e de que nenhum a parte
tem significação própria quando tomado separadamente.” (ARISTÓTELES, 1985,
II, 2, 1). Embora a partir da modernidade, a ênfase para denotações e significados
objetivos seja crescente, tem-se que, por outro lado, a orientação aristotélica porta
validade e atualidade. Até porque a enunciação isolada de nomes não leva ao en-
tendimento. Pelo contrário, conduz a incompreensões.
No intuito de assegurar entendimento mediante o uso das palavras, suas
significações e empregos dentro de enunciações e sentenças, passamos agora a ob-
servar as proposições. Quando ocorre a articulação de palavras sob o formato pro-
posicional há, além de evolução lógica, infinitas chances de se fazer compreender e
auferir o retorno por parte dos interlocutores.
A proposição

29
Dentre as enunciações, Aristóteles investiga a proposição. Esta consiste
na apresentação de um juízo falso ou verdadeiro, ou ainda, o tipo de enunciado
que, após ser apresentado, é passível de prova. Além destas acepções, a proposição
é uma unidade linguística formada por sujeito e predicados, propensa de união
com demais proposições, estejam estas subordinadas à primeira ou vice-versa.
Nesse sentido, extrai-se que “[...] toda a proposição depende necessariamente de
um verbo ou da flexão de um verbo e, com efeito, a noção de homem, à qual não
acrescentemos, nem é, nem era, nem será, nem nada deste género (sic), ainda não
constitui uma proposição.” (ARISTÓTELES, 1985, II, 2, 5).
Conforme observado, a proposição distingue-se do conceito pelo fato de
ser um tipo de enunciação, apresentar elementos e julgamentos atinentes ao su-
jeito e, por outro lado, não explicar o que é o objeto, o ser humano ou o nome. Ao
mesmo tempo, é a proposição “[...] que exprime, seja uma coisa, seja uma unidade
de coisas resultante da ligação das partes [...].” (ARISTÓTELES, 1985, II, 2, 5). À
distinção de Platão, no Crátilo, em que o nome, muitas vezes isolado, figura como
foco dos estudos sobre a linguagem, na proposição acontece outra situação, pois
uma vez solto da enunciação, o nome não permite averiguar o sentido do conjunto,
o que somente é dado pela proposição. “[...] não podemos raciocinar indo da na-
tureza das palavras à das coisas (condenação da etimologia ‘cratiliana’) e, de certo
modo, nada limita as possibilidades de um som ser o signo de um conceito qual-
quer.” (AUROUX, 2009, p. 24). Para Aristóteles está em questão a análise do todo,
da sentença apresentada sob a forma de proposição. Nela examina-se o significado
do nome, sem somente fazer com que a investigação gravite em torno dele. Para
além do nome, é pertinente inquirir enunciados e proposições, bem como seus pe-
ríodos. Dessa forma, encaminhamos a análise da linguagem ao conjunto do escrito,
como ensina Aristóteles.
No âmbito do todo aristotélico, as proposições são divididas em simples
e compostas. A simples é “[...] uma emissão de voz com um significado relativo à
presença ou à ausência de um predicado em um sujeito, em conformidade com os
tempos.” (ARISTÓTELES, 1985, II, 2, 5). Diz respeito ao particular ou individu-
al, no caso, a um sujeito com ou sem elementos que podem ser predicados. Já as
proposições compostas são as “[...] que exprimem multiplicidade, e não um uno,
ou em que as partes não estão ligadas.” (ARISTÓTELES, 1985, II, 2, 5). São partes
diversificadas desse todo que se relacionam diretamente e indiretamente. Também
ocorrem em diversas sentenças cujo objeto seja-lhes distinto, porém, mesmo as-
sim, remetem à dita multiplicidade. Importa, enfim, “[...] que a proposição de que
tal coisa pertence ou não pertence a um sujeito se aplique tanto ao universal como
30
ao particular (ARISTÓTELES, 1985, II, 2, 7-17b).
Neste capítulo estudamos algumas contribuições de Aristóteles à investi-
gação sobre a linguagem. Vimos que, embora a filosofia da linguagem propriamen-
te dita surgiu na modernidade, os préstimos aristotélicos são de expressiva impor-
tância e validade. Afinal, sem a lógica, instrumento do pensamento e propedêutica
das ciências, o que poderia ser feito em termos de linguagem? Certamente, nada.
E ainda, observamos que, embora conceitualmente distintos, linguagem
e pensamento se relacionam particularmente pela interação firmada com a mente.
Além desta ação implicar na produção do conhecimento, auxilia a ordenar pen-
samentos, enunciados e sentenças. Neste exercício, Aristóteles apresenta a pro-
posição, modalidade de emprego das palavras e asserções voltadas à detecção de
verdade ou mentira, juntamente com juízos de valor e estéticos, por exemplo.
Em seguida, mudamos de assunto em relação à linguagem. Saímos de um
contexto lógico-analítico para enveredar por breves recortes provenientes de San-
to Agostinho, filósofo que investiga a finalidade da linguagem. Limitar-nos-emos
aos questionamentos do diálogo com Adeodato, seu filho: a linguagem nos leva a
conhecer? E, por ela, podemos ensinar alguém?

31
32
CAPÍTULO IV
SANTO AGOSTINHO
E A FINALIDADE DA
LINGUAGEM

“Não eram pessoas mais velhas que me


ensinavam as palavras, com métodos,
como pouco depois o fizeram para
as letras. Graças à inteligência que
Vós, Senhor, me destes, eu mesmo
aprendi, quando procurava exprimir
os sentimentos do meu coração por
gemidos, gritos e movimentos diversos
dos membros, para que obedecessem
à minha vontade. Não podia, porém,
exteriorizar tudo o que desejava, nem
ser compreendido daqueles a quem me
dirigia.” (AGOSTINHO)

Aurélio Agostinho vive entre 354 a 430 d.C.,


natural de Tagaste, norte da África, cidade hoje situa-
da na Argélia, à época pertencente ao Império Romano.
Este filósofo e teólogo tem vastas contribuições, indo da
relação entre fé e razão, autoconhecimento, ética, filo-
sofia política, filosofia da história e, especificamente, fi-
losofia da linguagem. Diante destes e outros préstimos,
é preciso registrar que Santo Agostinho tem destacável
crescimento intelectual nos anos em que vive em Milão
e Roma, cidades em que é aluno e, mais tarde, Orador da
Corte, Professor e, finalmente, como convertido ao ca-
tolicismo, passa de catecúmeno a Bispo. Em termos te-
ológicos, Santo Agostinho sistematiza vários elementos
doutrinários do Cristianismo, particularmente a Trinda-
de. Concomitantemente, enriquece a filosofia Ocidental,
conforme mencionado, sendo classificado como um dos
33
maiores neoplatônicos.
Neste momento histórico, século IV d.C., a Filosofia é helenística18, her-
deira da cultura grega, embora receptiva a outros tipos de pensamento como, há
alguns séculos, elementos oriundos das filosofias judaica e cristã, além de diversas
outras. No âmbito helênico, embora fosse educado em latim, Santo Agostinho es-
creve suas obras em grego koiné19, a língua do mundo, tanto em termos comerciais
quanto acadêmicos. Paralelamente, observa-se no contexto do filósofo a coexis-
tência e miscigenação de várias culturas, reflexo da integração já promovida muito
antes de seu nascimento. Constatam-se, então, fusões de culturas, sobretudo entre
as matrizes persa, egípcia, judia, mesopotâmica, grega e romana.
Por outro lado, apesar da integração cultural ser evidente e admirável,
Santo Agostinho já visualiza desgastes e transformações na estrutura política, ter-
ritorial e militar do Império Romano, juntamente com mudanças de ares na vida
social e nas relações de poder20. Desses e de outros eventos decorre a afirmação
segundo a qual Santo Agostinho é, via de regra, o último dos antigos e o primeiro
dos modernos, haja vista a capacidade de antever situações. O filósofo observa,
reflete e compreende peculiarmente a realidade circundante, o que significa estar
à frente de seu tempo. Todavia, no momento presente, pronuncia-se, então, sobre
as transformações, dando luzes atinentes à indagações cognitivas, ético-políticas,
teológicas e civilizacionais alicerçadas no legado da cultura clássica.

Santo Agostinho e a linguagem: breves apontamentos

Em Santo Agostinho observamos a existência de uma teoria sobre a lin-


guagem. Seu foco é a função sinalizadora, que se manifesta por meio da enunciação
de palavras. Desse modo, a emissão de vocábulos não é um evento mecânico ou
18 O Helenismo é, entre outras acepções, o processo de expansão da cultura e civilização grega sobre
a romana, a partir das conquistas de Alexandre Magno, iniciadas no século IV a. C. Também é
definido como o “[...] conjunto cultural de base grega, mas como influências asiáticas diversas.”
(SILVA & SILVA, 2005, p. 179).
19 Este termo indica o idioma grego do período helenístico (séculos. IV a.C.- III/IV d.C.). Diferencia-
-se do grego ático, aquele possivelmente falado pelos Pré-Socráticos, Sócrates, Platão e Aristóte-
les. Para alguns, tem certas sutilezas em relação à variante clássica da língua; já outros sustentam
que, no contexto da expansão da cultura grega, o koiné é tão importante quanto o inglês atual.
Como exemplos de uso desta variação, há a tradução da Bíblia do aramaico e hebraico ao grego
koiné, além de versões, outras traduções e comentários a diversas obras (filosofia e literatura, por
exemplo) feitas na Biblioteca do Farol de Alexandria, maior centro de estudos do mundo antigo.
20 As transformações referem-se aos crescentes conflitos entre os romanos e seus inimigos. Some-se a
estes a fragilidade política, institucional e social observada no Império. Ademais, Santo Agostinho
tem o olhar da periferia, pois, além de ser africano, viveu com menor infraestrutura e no clima árido.
Destaca também o aumento da corrupção e perda de valores. Paralelamente, constata a existência e
interação entre várias línguas, mesmo com muitos sendo fluentes em latim e em grego.
34
sem sentido; remete, então, às realidades física e mental. Na perspectiva agosti-
niana, ao proferir palavras, o indivíduo precisa observar que, primeiramente, estas
representam sinais. Na verdade, as palavras não dirigem a algo, elas portam sina-
lizações! Até porque não são concebidas enquanto condutoras de pensamentos,
tampouco ferramentas da razão desprovidas de sinalização em si mesmas. As pala-
vras, por assim dizer, representam os sinais.
Tal teoria sobre a linguagem faz-se presente no De Magistro (Sobre o
Mestre), diálogo estabelecido entre Santo Agostinho e seu filho Adeodato. Divi-
dido em quatorze capítulos, o texto aborda, entre outros elementos, a finalidade,
a significação e a relação entre pensamento e linguagem, componentes plausíveis
aos estudos clássicos e, também, contemporâneos. E ainda, à época de Santo Agos-
tinho – e após sua morte – houve progressos na lógica, teoria do conhecimento e
metafísica, áreas afins e imprescindíveis aos estudos linguísticos. Tanto que a teo-
ria em estudo corresponde a um desses avanços, pois, em Santo Agostinho, a “[...]
ocupação com filosofia da linguagem alcança, nas diferentes fases biográficas, um
nível absolutamente respeitável.” (HORN, 2006, p. 06).
Assim procedendo, a teoria sobre a linguagem foca-se na palavra (verba)
e, em seguida, na finalidade da linguagem. O núcleo da teoria reside na defini-
ção segundo a qual “[...] as palavras são sinais.” (AGOSTINHO, 1980, p. 352). Ao
ser proferida, a palavra indica algo peculiar, remete a algo e, em si mesma, por-
ta a significação. Frente a isso, é preciso entender a importância das expressões,
a começar pelas mais simples ou coloquiais até os vocábulos formais, técnicos e
acadêmicos, preferencialmente expressos e redigidos de maneira adequada. Afi-
nal, vivemos em um momento de certo descaso para com a palavra e as atividades
intelectuais em geral.
Mas, ao pressupor a natureza sinalizadora da palavra, depreende-se que o
indivíduo necessita de, diuturnamente, buscar clareza conceitual naquilo que diz e
escreve, pois a palavra não é intermediária. É, distintamente disso, a representação
de algo como, por exemplo, objeto, alma, pessoa e qualquer outro componente do
mundo. Frente a tamanha atribuição dada a este desmembramento da língua e,
por extensão, da linguagem, urge assimilar que “[...] jamais dispomos das coisas
independentemente das palavras que as indicam.” (HORN, 2006, p. 10). Inclusive
no pensamento, não recorremos a outra coisa para manifestar, definir e, não me-
nos importante, traduzir o que está nesta instância sem, obrigatoriamente, recor-
rer à linguagem.
Nesse sentido, já no início de Sobre o Mestre, Santo Agostinho, após in-
terpelar e ouvir Adeodato, chega juntamente com o filho a uma concordância em
termos de palavra. Complementa que:
35
[...] mesmo sem emitir som algum, nós falamos enquanto intimamente
pensamos as próprias palavras em nossa mente; assim, com as palavras
nada mais fazemos do que chamar a atenção; entretanto, a memória, a
que as palavras aderem, em as agitando, faz com que venham à men-
te as próprias coisas, das quais as palavras são sinais. (AGOSTINHO,
1980, p. 351).

Explicitada a acepção de palavra, que engloba tanto a dimensão social do


ser humano, como também sua intimidade, torna-se destacável, a relação entre
linguagem e pensamento. Particularmente ao mencionar a memória, componente
indissociável do último, Santo Agostinho sustenta que, uma vez fixadas nesta fa-
culdade, as palavras já afloram ao entendimento enquanto sinais. Em outros ter-
mos, ao evocar ou pensar a palavra, imediatamente se depreende que ela se refere,
nomeia e representa a pessoa, o objeto e a multiplicidade do mundo em geral e em
suas particularidades. Paralelamente, Santo Agostinho estende a teoria da língua
à linguagem, visto que “[...] o conceito de sinal21 tem também de incluir gestos e,
como um todo, a linguagem do corpo.” (HORN, 2006, p. 10).
Extrai-se, então, que a linguagem é compreendida em seu conjunto me-
diante a função sinalizadora detectada nas palavras. Para isso, há que se observar
a finalidade da linguagem. Mas, antes de enunciá-la, é necessário acompanhar a
indagação do filósofo ao seu filho.
A princípio, Santo Agostinho (1980, p. 349) pergunta:
“— Que te parece que pretendemos fazer quando falamos?”
A resposta de Adeodato (1980, p. 349) é a seguinte:
“— Pelo que de momento me ocorre, ou ensinar ou aprender.”
Apesar de ainda não haver um ponto final sobre isso, Agostinho, ao
mencionar, tal qual fora citado acima, a importância da recordação, eco da remi-
niscência platônica, já assinala que a finalidade da linguagem, sobretudo o que
enunciamos pelas palavras, é ensinar. Contudo, ao mesmo tempo, deve promover
lembranças em nós e nas outras pessoas, ação que fomenta o conhecimento imbri-
cado com a linguagem. Assim procedendo,

21 Segundo o filósofo, sinal é aquilo que é utilizado para indicar outra coisa. Em seu conjunto, “[...]
denomino sinais a tudo o que se emprega para significar alguma coisa para além de si mesmo.”
(AGOSTINHO, 2002, p. 43). Esta definição implica alguns tipos de sinais, relacionados e diferen-
ciados pelo autor. Porém, devido à delimitação da disciplina, tais elementos não serão abordados.
Para maiores estudos, consultar A Doutrina Cristã e Sobre o Mestre.
36
[...] — Há todavia, creio, certa maneira de ensinar pela recordação, ma-
neira sem dúvida valiosa, como se demonstrará nesta nossa conversa-
ção. Mas, se tu pensas que não aprendemos quando recordamos ou que
não ensina aquele que recorda, eu não me oponho; e desde já declaro
que o fim da palavra é duplo: ou para ensinar ou para suscitar recorda-
ções nos outros ou em nós mesmos. (AGOSTINHO, 1980, p. 350).

Verificada a finalidade da linguagem, a de representar o que está pré-de-


finido na realidade por meio daquilo que se manifesta no interior do indivíduo em
sincronia com o mundo exterior, agora é necessário questionar: podemos indicar
algo sem recorrer a sinais? Em outro trecho, Adeodato replica sobre esta questão.

[...] Tu, porém, indagas de coisas que, sejam quais forem, de modo
nenhum podem considerar-se palavras; e, no entanto, também sobre
essas tu me interrogas com palavras. Começa tu a interrogar-me sem
palavras, para que depois eu te possa responder da mesma forma.
(AGOSTINHO, 1980, p. 355).

Após a resposta de Adeodato, Santo Agostinho afirma:

— Tens razão, confesso-o; porém se te perguntasse o significado destas


três sílabas: ‘paries’(parede), não poderias tu mostrar-me com o dedo,
de maneira que eu a visse, a coisa mesma de que é sinal esta palavra de
três sílabas, demonstrando-a assim e indicando-a tu mesmo, sem usar
palavra alguma? [...] (AGOSTINHO, 1980, p. 355).

No intuito de refutar, ou ao menos confundir o raciocínio do pai, Adeoda-


to diz:
“— Concedo que se possa fazer isso, mas só com aqueles nomes que sig-
nificam corpos e quando estes corpos estejam presentes.” (AGOSTINHO, 1980, p.
355). E, logo mais, ao negar a indicação desprovida de sinal quando se aponta para
a parede, continua Adeodato:

[...] — Mas também esta, como resulta do desenvolvimento de nosso


raciocínio, não pode ser mostrada sem sinal. Pois o ato de apontar o
dedo certamente não é a parede, mas é apenas a maneira com que se dá
um sinal, por meio de que a parede pode ser vista. Não vejo, portanto,
nada que possa ser indicado sem sinais. (AGOSTINHO, 1980, p. 357).

37
A esta altura do diálogo, juntamente com a intenção do filósofo de testar e
promover a capacidade de raciocínio e de arguição do filho, fica explícita a impos-
sibilidade de dirigir-se a algo, seja a parede, uma pessoa ou objeto, sem recorrer
a sinais. Portanto, embora Santo Agostinho possa, em termos, confundir o pensa-
mento do filho, quer aplicar-lhe um recurso pedagógico, enfatizando a validade e
necessidade da dialética para que, apresentada uma afirmação ou pergunta, poder
chegar a algum lugar. Nos fragmentos em análise, é observada a reafirmação da
função sinalizadora da linguagem, sua relevância intrínseca para que o indivíduo
diga algo sobre si mesmo, o outro e, por fim, o mundo circundante.

Agostinho e a teoria dos sinais


[...] A pergunta de partida reza assim: o que queremos causar
através da fala? De acordo com a primeira tese do diálogo, todo falar per-
segue a intenção de ensinar (docere) ou, porém, de aprender (discere), isto
é, ou bem transmitir saber ou produzir saber (1,1). De acordo com a forma
externa, De magistro é um diálogo que Agostinho conduz com o seu filho
Adeodato, falecido muito cedo, que é apresentado aqui como um jovem
brilhantemente talentoso. De início, a atenção dos parceiros de diálogo se
volta para a tese de que todas as palavras poderiam ser entendidas como
sinais (2,3). Se todas as palavras são sinais para algo, nesse caso aquilo
que é designado por elas sempre tem de poder ser indicado. Agostinho pro-
blematiza essa visão, na medida em que põe a pergunta a Adeodato para
o que conjunções, pronomes negativos ou preposições – expressões como
‘se’, ‘nada’ ou ‘de’1 – poderiam ser sinais. A resposta de Adeodato se mostra
defeituosa apenas; de fato, com a interpretação de ‘se’ como uma expres-
são para dúvida do espírito ele parece alcançar algo verdadeiro, mas no
caso de ‘nada’ e de ‘de’ não se apresentam quaisquer soluções satisfatórias
comparáveis.
Nessa passagem, mostra-se que a intenção de Agostinho não pode
ter consistido em dizer que palavras são como que nomes de coisas e, por
isso, devem ser entendidas, em geral, segundo o modelo dos substantivos
‘mesa’, ‘cadeira’ e ‘pão’, como assume aquela crítica famosa que Ludwig
Wittgenstein apresentou, em duas passagens dos seus escritos (Philoso-
phische Untersuchungen §§ 1-5,32; Braunes Buch, p. 117). Wittgenstein se
apoia na seguinte passagem das Confessiones: “Se os adultos nomeassem
algum objeto e, ao fazê-lo, se voltassem para ele, eu perceberia isto e com-
preenderia que o objeto fora designado pelos sons que eles pronunciavam,
pois eles queriam indicá-lo. Mas deduzi isto dos seus gestos, a linguagem
38
natural de todos os povos, e da linguagem que, por meio da mímica e dos
jogos com os olhos, por meio dos movimentos dos membros e do som da
voz, indica as sensações da alma, quando esta deseja algo, ou se detém, ou
recusa ou foge. Assim, aprendi pouco a pouco a compreender quais coisas
eram designadas pelas palavras que eu ouvia pronunciar repetidamente
nos seus lugares determinados em frases diferentes. E quando habituara
minha boca a esses signos, dava expressão aos meus desejos”2 (Confessio-
nes I,8; citado segundo a tradução de Wittgenstein, a partir das Investiga-
ções filosóficas).
[...] Como prova o diálogo De magistro, é impossível Agostinho
ter acreditado que palavras representam etiquetas que foram coladas nos
objetos (por conseguinte, nos estados de coisas). Ele dirige, sim, justamente
dúvidas contra a concepção de que cada palavra possui um significado em
termos de um objeto de referência indicável. Quando ele, contudo, entende
palavras isoladas, não num primeiro momento proposições, como unida-
des portadoras de significado, nesse caso ele tem de querer dizer com isso
que cada palavra possui uma dictio não-objetual (Burnyeat 1987). No De
magistro, exige-se, a partir daí, que Adeodato, ao invés de indicar para ex
apenas o sinônimo de, deve apontar para a coisa designada ela mesma.
Mas, como se pode fazer isso? Aparentemente, não podemos fazer mais
do que dar, para palavras não-entendidas, sinônimos ou perífrases. Não
há nada, portanto, que poderia ser mostrado ou introduzido sem sinais?
Agostinho, de fato, é da opinião de que jamais dispomos das coisas inde-
pendentemente das palavras que as indicam. Para tornar isso plausível,
afirma que o conceito de sinal tem também de incluir gestos e, como um
todo, a linguagem do corpo. [...] Com isso fica claro que um mostrar sem
sinais é impossível (3,6). Também os exemplos de ir, comer, beber, etc.,
postos em consideração, não formam, a partir daqui, quaisquer exceções
convincentes. [...]
[...] Não conhecemos nem aprendemos nada através de sinais,
mas somos já sempre postos em conhecimento sobre possíveis conteúdos de
aprendizado. Afinal, para entender os objetos de referência de sinais lin-
guísticos, os conteúdos já têm de ser conhecidos por mim, antes dos sinais.
Em determinados casos, assim argumenta Agostinho, o ouvinte não pode
sequer identificar palavras de uma língua estranha como sinais portadores
de significado. Em si, palavras não ensinam nada além do seu som. Mesmo
que o ouvinte saiba que, junto aos sons desconhecidos, trata-se de pala-
vras, a partir de uma indicação, como, por exemplo, um apontamento com

39
o dedo não se depreende, porém, nada de explícito sobre aquilo com o que
a palavra se relaciona. Dito de outro modo: nem sinais linguísticos nem
gestos podem explicar em razão do que um ouvinte está em condições de
entender um objeto indicado, sobretudo quando palavras podem também
ser ambíguas. Antes, pelo contrário, a coisa designada já tem de ser conhe-
cida, caso deva haver a possibilidade de prová-la com um sinal.
[...] Nesse momento, a tese de partida do diálogo é refutada. Pala-
vras são, com efeito, sinais, mas elas não possuem nenhuma força constitu-
tiva de conhecimento. Antes, sua função consiste unicamente em ‘lembrar’
ou ‘admoestar’ (admonere). Com isso, Agostinho alcançou um ponto ao
qual chega com especial prazer nos seus escritos iniciais e intermediários:
o exterior é meramente apto a nos chamar algo à consciência, enquanto a
verdade ensina ‘no interior’ do ser humano (cf. Foris admonet, intus docet:
De libero arbitrio II,14,38). Isso em nada muda o fato de que palavras,
para Agostinho, têm uma utilidade significativa; somente é o caso que
essa não consiste numa fundação do conhecimento, tal como se pode ver
no diferir de palavra e coisa. Afinal, um falante pode, com suas palavras,
equivocar-se sobre a realidade de quatro maneiras: primeiramente, no
caso de uma mentira; em segundo lugar, num erro; em terceiro lugar, na
reprodução sem entendimento de um conteúdo; em quarto lugar, numa
confusão de palavras. Fôssemos nós instruídos nas palavras, ao invés de
conhecer os próprios estados de coisas, nesse caso não poderíamos em ab-
soluto notar tal engano de conteúdo das palavras (14,46). A intenção coma
qual essa teoria é apresentada é a comprovação de que, através da nossa
experiência ou através dos mestres humanos, não aprendemos nada, mas
exclusivamente através de Cristo como o ‘mestre interior’ ou através da
‘luz interior’ (11,38). Somente o mestre interior intermedeia os conteúdos
sensíveis e os espirituais, aos quais os mestres humanos podem meramente
chamar atenção por meio do seu uso de sinais.
HORN, Cristoph. Agostinho e a teoria dos sinais. Veritas.
Porto Alegre: EDIPUC-RS, v. 51, no. 01, p.9-13, março de 2006.

Neste capítulo estudamos uma das teorias clássicas a respeito da lingua-


gem. Vimos que o ato de sinalizar é inseparável da palavra. Igualmente, é acentu-
ada a relevância em se emitir vocábulos de qualquer natureza, haja vista o valor
delas para a interação humana. Associa-se, ainda, o estilo pedagógico presente nos

40
fragmentos de Santo Agostinho, afinal, lemos, mesmo que pouquíssimas passa-
gens, de um dos maiores autores clássicos da civilização.
Em seguida, seguiremos para uma mudança de ares na filosofia da lingua-
gem. Longe de desprezar contribuições nominalistas, realistas e conceitualistas,
típicas da Idade Média, voltaremos nossa atenção à modernidade, época de muitos
avanços e contradições. Especificamente com a filosofia da linguagem, pontuare-
mos em que consiste e quais são as principais motivações da Filosofia Analítica
e do movimento intitulado Virada Linguística (The Linguistic Turn). Logo após,
analisaremos alguns dos préstimos de dois expoentes da área: Gottlob Frege e Lu-
dwig Wittgenstein.

41
42
CAPÍTULO V
A VIRADA
LINGUÍSTICA E
GOTTLOB FREGE

“A conexão regular entre um sinal,


seu sentido e sua referência é de tal
modo que ao sinal corresponde um
sentido determinado e ao sentido, por
sua vez, corresponde uma referência
determinada, enquanto que uma
referência (um objeto) pode receber
mais de um sinal. E ainda, um mesmo
sentido tem em diferentes linguagens;
ou até na mesma linguagem, diferentes
expressões. É verdade que exceções a
essa regra ocorrem. Certamente, a cada
expressão que pertença a um sistema
perfeito de sinais22 deveria corresponder
um sentido determinado; as linguagens
naturais, porém, raramente satisfazem
a essa exigência e deve-se ficar satisfeito
se a mesma palavra, no mesmo contexto,
sempre tiver o mesmo sentido.”
(Gottlob Frege)

Após as contribuições de Santo Agostinho, a Fi-


losofia continua o processo de investigação a respeito da
linguagem e adquire considerável enriquecimento teóri-
co. Tanto que durante a Idade Média muitas discussões
polarizaram-se em torno das propostas nominalistas,

22 “Sistema perfeito de sinais”, expressão comum a Frege, significa


o conjunto de conceitos ou conceitografia. Quer dizer, expressam
relações com demais termos sem a dependência de suas proprie-
dades específicas. E ainda, o dito sistema ou conceitografia re-
fere-se, igualmente, a expressões formulares, a saber, nomes e
sinais os quais se referem a algo universal. 43
realistas e conceitualistas. Na modernidade e atualmente, também observamos in-
fluências decorrentes dessas abordagens. Todavia, no período histórico em ques-
tão o que muda é a predominância de tais propostas em relação à outras, como o
naturalismo e convencionalismo linguístico, por exemplo.
Desse modo, no nominalismo ocorre o amplo destaque dado aos nomes
em relação aos demais termos. Inclusive, juntamente com a atenção atribuída a
esses vocábulos, despontam, seus significados. Ao mesmo tempo, emerge o realis-
mo, postura segundo a qual os termos e a linguagem, devem corresponder à reali-
dade. Ainda, neste período, detecta-se também a coexistência do conceitualismo,
o interesse pelas noções em detrimento de outros tipos de expressões. Conforme
se depreende, ao entrar em contato com as três posturas, encontra-se o emprego
do exercício etimológico, a busca pelas raízes das palavras que, em muitos casos,
determinam seus significados.
Logo mais, sobretudo no século XVI, há o surgimento da modernidade23,
época de profundas transformações, avanços e contradições. Tal período é marca-
do pelo desgaste e redução do sistema escolástico24, deixando de ser a filosofia pre-
dominante. Ocorre, agora, a partilha de espaço com outras formas de interpretação
do mundo, tanto na filosofia, quanto nas demais ciências. A modernidade desen-
volveu-se de maneira irregular em várias localidades. Prova disso é que em alguns
países e regiões ela se iniciou durante o Renascimento e Humanismo, embora an-
tes destes movimentos já eram detectados sinais de mudanças relativos à forma de
compreender o mundo, o conhecimento e a vida cotidiana. Em contrapartida, em
outros países aconteceu a modernidade tardia com a lenta implementação destas
transformações. Neste caso, podemos citar como exemplo o Brasil, tanto em ter-
mos filosóficos, quanto sócio-políticos e educacionais.
Mas, antes de prosseguir, o que é modernidade? Entre tantas possíveis
definições, “[...] umperíodo histórico que é ao mesmo tempo passado e presen-
te.” (CRUZ, 2011, p. 33). Equivale a profundas modificações na mentalidade, nos
comportamentos, na relação do indivíduo com a escola, a política, a religião e a so-
ciedade como um todo. Se comparada à Idade Média, a modernidade porta maio-
res transformações, pois há um favorecimento contextual voltado às mudanças da
época. Paralelamente, há maiores possibilidades de inovação em diversas áreas do

23 A etimologia de“[...] ‘moderno’ parece ser o advérbio latino ‘modo’, que significa ‘agora mesmo’,
‘neste instante’, ‘no momento’, portanto designando o que nos é contemporâneo, é este o sentido
que ‘moderno’ capta, opondo-se ao que é anterior, e traçando, por assim dizer, uma linha, ou
divisão entre os dois períodos.” (MARCONDES, 2004, p. 140).
24 A Escolástica (do lat. Scholastica) é o pensamento filosófico e teológico de origem cristã, predo-
minante entre os séculos VIII e XVI. Concilia fé e razão tendo como base as filosofias de Platão
e, sobretudo Aristóteles. Em termos de linguagem, nominalismo, realismo e conceitualismo são
denominadas de escolasticismo, sinônimos de parte desta filosofia.
44
conhecimento, sendo que estas devem a determinadas mentes inquietas, patroci-
nadores (mecenas) e, acima de tudo, amantes desinteressados do conhecimento,
suas próprias existências.
Ademais, importa acentuar que a modernidade atinge seu ápice entre os
séculos XVII e XVIII, com a Revolução Científica Moderna, o Iluminismo (Au-
fklärung25) e, mais tarde, em 1831, com a morte de Georg Wilhelm Fredrich Hegel.
Embora seus ecos sejam visíveis ainda hoje, tem-se que “[...] o conceito de mo-
dernidade está sempre relacionado para nós ao ‘novo’, àquilo que rompe com a
tradição. Trata-se, portanto, de um conceito associado quase sempre a um sentido
positivo de mudança, transformação e progresso.” (MARCONDES, 2004, p. 139,
grifo no original). Dentre seus principais traços está a valorização do indivíduo, a
referência ao progresso, o afastamento em relação à crença na ação e influências
divinas na vida humana e a contestação da tradição. Apesar de cada um desses
aspectos se manifestar em situações específicas, afirma-se as influências e efeitos
da modernidade até hoje. Estudiosos nos definem como filhos da era moderna26.
Feitas essas considerações, são auferidos alguns dos traços e ações da
modernidade, o que não encerra a explanação, pois ela se mostra inesgotável em
diversos temas. Na sequência, estudamos alguns dos principais elementos da filo-
sofia da linguagem de Gottlob Frege, um dos maiores teóricos desta área. Cumpre
registrar que o filósofo também sofre influências da modernidade e de outros auto-
res de seu tempo. Para tanto, teremos de preceder, a título de informação e preparo
do leitor, duas grandes manifestações filosóficas imprescindíveis ao entendimento
da linguagem: Filosofia Analítica e Virada Linguística.

Filosofia Analítica

Filosofia Analítica é uma daquelas expressões que, por melhor definida,
ainda porta inúmeras outras formas de ser feita. Assim procedendo, o vocábulo ori-
gina-se de análise, ou seja, o exercício de “[...] demolir ou decompor alguma coisa.”
(STRAWSON, 2002, p. 15). Em termos filosóficos, o emprego desta palavra é antigo,
mas com significações diferenciadas. Mas, sem efetuar um histórico acerca da análi-

25 O movimento cultural denominado Iluminismo, ocorrido entre os séculos XVII e XVIII, conheci-
do nas tradições filosóficas alemã por Aufklärung (Esclarecimento) e inglesa Enlighnment (Ilumi-
nação, Movimento das Luzes), significa valorizar e aplicar a razão em prol da emancipação do ser
humano, favorecendo, então, sua autonomia e emancipação. É uma das manifestações e heranças
da modernidade em nossa civilização.
26 É provável que você já tenha lido ou apreciado alguma fala sobre a pós-modernidade, um momen-
to que se iniciou a partir da década de sessenta do século XX. Esta é uma discussão complexa que
não será tratada aqui.
45
se e das acepções atribuídas, importa dizer que o uso desta palavra implica em uma
espécie de reforma de discursos, refletindo detalhadamente sobre eles. À diferença
de outras modalidades de se fazer filosofia, a análise foca-se na linguagem, em sua
modalidade enunciativa27. Portanto, Filosofia Analítica é a parte do pensamento que
investiga a constituição e a significação de enunciados e proposições.
O exemplo da reforma é pertinente pelo fato de, ao propor efetuá-la, não
estamos inteiramente certos sobre o que será encontrado nesta execução. Analo-
gamente ao imóvel a ser ajustado, passar por intervenções e melhorado, está o
discurso, sobretudo o que emitimos oralmente sem maior atenção e, igualmente, o
que escrevemos. Diante disso se afirma que “[...] o papel do filósofo analítico con-
siste em endireitar a postura de nosso pensamento ou auxiliar em nossa reforma
intelectual; consiste em libertar-nos de confusões obsessivas, dos falsos modelos
que dominam o pensamento e nos tornar capazes de ver claramente o que está
diante de nós.” (STRAWSON, 2002, p. 16).
Embora desenvolvida por filósofos muito diferentes, depreende-se que o
ponto comum detectado na Filosofia Analítica é a promoção e decomposição de
sentenças, frases e períodos com o objetivo de evitar omissões, devaneios e equí-
vocos. Nesse sentido, “[…]concebe a análise da linguagem como método filosófico,
como procedimento por meio do qual a reflexão filosófica se desenvolve.” (MAR-
CONDES, 2004b, p. 17). Frente a este elemento comum à Filosofia Analítica é im-
possível serem preteridas e, também, encontradas incompreensões decorrentes do
mau uso da linguagem e do pensamento. Tal emprego diz respeito à irrefletida e
ausente organização lógica na enunciação, à deficitária formação do indivíduo ou
grupo, além de problemas de falta de educação, o que depõe contra a dignidade e
importância das palavras, enunciações e da linguagem como um todo.
Visando, então, constatar a existência de discursos claros, bem erigidos,
passíveis de investigação e questionamentos, pontua-se que, a partir do início do
século XX, quando filósofos se inclinam à linguagem, com afinco, sob um prisma
até então pouco ou nem observado, ela torna-se um dos maiores temas de pesqui-
sas filosóficas. Até porque, no âmbito do desenvolvimento, contradições e proble-
mas da modernidade, urge “[...] depurar a linguagem de elementos subjetivos, ar-
bitrários e de todos os que, uma vez confrontados, comprometam a objetividade”
(PERSEGUEIRO, 2014, p. 42, grifo no original). Cada um, ao seu modo, aventura-
-se neste exercício, em diuturna busca por significação e ajustamento discursivo.

27 Entre o final do século XIX e início do século XX começa a ganhar força uma mudança de ares
relativa a elementos transcendentais os quais, agora, passam a não figurar tanto quanto antes em
pesquisas de Filosofia da Linguagem. Há, por exemplo, “[...] a passagem efetuada entre a noção de
ideia, (predominante do período grego clássico até a filosofia moderna), a enunciados e proposi-
ções, em tese, rigorosamente elaborados, ajustados e articulados” (PERSEGUEIRO, 2014, p. 68).
46
Virada linguística

A Virada Linguística (The Linguistic Turn) é o movimento desenvolvido


no início do século XX que se caracteriza pela maior atenção conferida à relação
entre filosofia e linguagem. Embora presente em outras áreas humanísticas, não
entraremos nelas e permaneceremos no âmbito da primeira. Portanto, a Virada
Linguística engloba indagações atinentes à natureza e estrutura da linguagem,
analisa definições e características da linguagem bem como a constituição e a re-
formulação de enunciados. Nesse sentido, a modalidade de linguagem eleita como
foco de estudos por este movimento são os enunciados, apesar de não ocorrerem
desprezos ou subjugações a outras vertentes da linguagem. Os quesitos natureza
e estrutura fazem parte das inquirições epistemológicas e lógicas, atinentes ao co-
nhecimento científico e à ordenação, validade e composição de frases, sentenças e
proposições. Afinal, a linguagem também é responsável pela transmissão e perpe-
tuação do conhecimento.
Outro elemento tão importante quanto a natureza e estrutura é o conjunto
das chamadas práticas linguísticas ou pragmática da linguagem. Pragma e prag-
matikós, na etimologia grega, significam aquilo que é tratado a partir de causas,
elementos históricos ou origens, seguidos de eficiência, resultados, objetividade e
praticidade. Todavia, nem tudo pode ser enquadrado nas duas últimas categorias,
haja vista que, nem sempre, ser objetivo indica clareza, tampouco praticidade que
não é sinônimo do melhor a se fazer. De modo geral, a ressalva dirigida à atitude
pragmática é a falta de paciência e maturação conceitual, de leituras, análises de
fatos e pronunciamentos a respeito de algo ou alguém. Até porque, diferentemente
de outras investigações, o pragmatismo cresce consideravelmente desde o início do
século XX seja na filosofia da linguagem, seja em outros domínios do conhecimen-
to e da vida sócio-política.
Não obstante, as práticas linguísticas ou pragmática da linguagem reme-
tem às interações sociais e seus respectivos contextos. A este respeito emerge o
filósofo estadunidense Richard Rorty (1931-2007), que não será abordado neste
curso, um autor pragmático e estudioso das práticas. Assim procedendo, nossa in-
teração social e seus contextos podem (e, de fato, o fazem) favorecer a formação
de regras e tratamentos próprios aplicados à linguagem. A propósito, o que isso
significa? Que em boa parte de nossa sociabilidade fechamo-nos em determinadas
regras ou um conjunto delas, contribuindo para isolar diferentes linguagens em si
mesmas. É como se, analogamente, desconectássemos fios interligados, mas ainda

47
esperando que o objeto funcionasse.
É evidente que, no plano linguístico, a situação porta maior complexidade
do que o sucinto exemplo. Tais práticas linguísticas demandam investigação, pois
o modo como são conduzidas geram incompreensões, conflitos e não aceitação dos
porquês ou justificações de crenças. Tudo isso é resultado de nossa própria culpa e
omissão diante de ações mal observadas, ajustadas e ausentes de autocorreções e
correções mútuas feitas, em tese, no seio da comunidade dos indivíduos.
Em seguida, apresentamos determinados préstimos de Gottlob Frege,
pensador que proporcionou à Filosofia da Linguagem o enriquecimento teórico.
Pertencente à matriz analítica, ele orienta a empreender um caminho em sincronia
com a objetividade e fixar-se na significação, principais recortes aqui abordados.

Gottlob Frege e a teoria do significado

A questão do significado envolve, como sabido, várias perspectivas e au-


tores. Todavia, a partir dos estudos de Gottlob Frege (1848-1925), um destacável
matemático, lógico e filósofo alemão, são constatadas novidades e avanços tanto
na lógica quanto na filosofia da linguagem. Este item focará trechos do texto Sobre
o sentido e a referência, redigido em 1892 e, mais tarde, incorporado aos demais
escritos do filósofo. Todavia, cumpre dizer que permaneceremos no plano de algu-
mas menções e de breves caracterizações, condiderando a profundidade e conside-
rável volume dos textos fregeanos.
Desse modo, a teoria do significado, de Frege, engloba as seguintes ex-
pressões linguísticas: termos particulares, enunciados e predicados, sendo todos
imprescindíveis. Mas, antes de apresentar algumas de suas inovações, é pertinente
registrar que o filósofo inicia o texto indagando sobre a igualdade, a identidade28
de termos. Cita como exemplo “a” e “b”. Afirma que “a” significa o mesmo que “b”
ou ambos estão em coincidência, afinal, a relação de igualdade é estabelecida entre
nomes e sinais. Conforme o filósofo, “[...] por ‘sinal’ e por ‘nome’, entendo qualquer
designação que desempenhe o papel de um nome próprio, cuja referência seja um
objeto determinado (esta palavra tomada na acepção a mais ampla), mas não um
conceito ou uma relação.” (FREGE, 2011, p. 132).
Segundo se depreende, Frege distingue primeiramente sinal e nome de
outros termos. Para ele, ambos são nomeações, portam o diferencial de, objetiva-
mente, dizer quem é o indivíduo, como também os objetos pertencentes à realida-

28 Identidade diz respeito a uma relação estabelecida entre sinais ou objetos.


48
de material e ao plano do conhecimento. Então, nomes e sinais, uma vez postos
diante de objetos, reportam a algo que não é, segundo Frege, noção ou apenas rela-
ção entre termos. Na verdade, “a” e “b” são nomes estão em função de predicados
e são muito amplos diante das palavras com as quais estão em relação, ora mani-
festas sob enunciação. À diferença do que há em outras abordagens de filosofia da
linguagem, quando Frege emite o vocábulo nome, explicita determinado sinal ou
ligações de sinais que se referem a algo. Isso é diferente de dizer que o nome indica
a coisa, sentença não compactuada pelo filósofo.
Por conseguinte, sentido (sinn) “[...] é onde está contido o modo de apre-
sentação do objeto.” (FREGE, 2011, p. 131). Em outros termos, é a maneira de
explanação detectada no signo linguístico. Não obstante, atente-se ao fato de o
sentido ser decorrente do conhecimento do objeto, previamente ocorrido para, na
sequência, o indivíduo ater-se à apresentação do signo.Com base em Frege deriva-
-se o entendimento de que o sentido diz respeito ao “[...] conteúdo conceitual ou
informativo.” (PENCO, 2006, p. 55). Não é, portanto, nem conceito nem objeto,
mas a forma de se apresentar o objeto como o nome ou sinal.
Já a referência (Bedeutung) é aquilo a que o signo se refere, também de-
nominada de referente. Segundo o filósofo, o referente ou referência emerge “[...]
unido a um sinal (nome, combinação de palavras, letras), além daquilo por ele
designado [...].” (FREGE, 2011, p. 131). Pressuposta sua validade e importância,
faz-se oportuno registrar que, de acordo com o tipo de signo teremos diferentes
referências. Para o nome próprio, a referência é o objeto designado. Por exemplo,
Antônio Carlos sentou-se à mesa. O signo é o nome ao passo que o objeto é a mesa.
Nesse sentido, “[...] a designação de um objeto singular pode consistir em várias
palavras ou sinais. Para sermos breves, chamaremos de nome próprio toda desig-
nação desse gênero.” (FREGE, 2011, p. 132).
O filósofo também menciona a referência de uma expressão pertencente
ao predicado, o conceito. Como exemplo podemos citar: A Casa Rosada é a sede do
governo argentino. Segundo se observa, o signo da sentença é governo argentino
e a referência é a Casa Rosada, local da sede. Concomitantemente, Frege trata da
referência de uma sentença que é o valor de verdade. Pelo referido “[...] entendo
a circunstância de ela ser verdadeira ou falsa. Não há outros valores de verdade.”
(FREGE, 2011, p. 139). Assim, as frases: 1) Frege é um filósofo alemão e 2) Mus-
solini foi benevolente com os adversários políticos. As referências das respectivas
frases, taxativamente dizem, juntamente com provas históricas, que 1 é verdadeira
e 2 falsa.

49
Sentido e referência de enunciados: o pensamento
Frege procurava uma teoria semântica sistemática em que cada
expressão tivesse tanto um sentido como uma referência. Como estender a
distinção aos enunciados? Frege define ‘pensamento’ como o sentido de um
enunciado e ‘valor de verdade’ como a sua referência. Para chegar a essas
duas definições, serve-se de dois argumentos diferentes:
O primeiro argumento tem por base uma ideia intuitiva: se dois
enunciados podem ser racionalmente julgados um verdadeiro e outro fal-
so, então exprimem pensamentos diferentes (princípio da diferença intuiti-
va de pensamentos). Por exemplo, uma pessoa [...] sem contradizer-se pode
acreditar que seja verdade que a Estrela da manhã é um planeta, e ao mes-
mo tempo acreditar que seja falso que a Estrela vespertina é um planeta.
Esses dois enunciados, portanto, representam pensamentos diferentes. Na
base dessa ideia está o seguinte argumento: O que há de diferente nos dois
enunciados? Somente a expressão Estrela vespertina e Estrela da manhã,
expressões com a mesma referência e sentido diferente [...]
O segundo argumento tem uma base intuitiva e se fundamenta so-
bre a diferença entre poesia e ciência, e sobre motivos pelos quais estamos
interessados na verdade de um enunciado. Frege se pergunta que diferença
se dá ao considerar ‘Ulisses desembarcou em Ítaca’ no caso de ‘Ulisses’ se
referir a um indivíduo de carne e osso ou no caso de se achar que ‘Ulisses’
seria simplesmente um nome de ficção poética [...] A diferença entre os dois
modos de se compreender a frase é que no primeiro caso não estamos inte-
ressados na verdade, mas apenas em seu valor poético; e no segundo caso,
estamos, ao contrário, interessados na verdade. Estamos, assim, interes-
sados na verdade só quando se pensa que as partes componentes de um
enunciado tenham uma referência. A passagem do interesse pelo sentido
ao interesse pela referência coincide com a passagem do interesse pela po-
esia ao interesse pela pela verdade. [...] Portanto, é razoável identificar a
referência de um enunciado com seu valor de verdade (uma consequência
que se costuma atribuir a Frege a partir dessas ideias é que um enunciado
que contenha um nome sem referência não tem referência, ou seja, não tem
valor de verdade).”
PENCO, Carlo. Introdução à filosofia da linguagem.
p. 59-60, grifos no original.

50
Neste capítulo estudamos os traços da modernidade e percebemos suas
determinações em nossas vidas, ficando apenas no planos do pensamento, do co-
nhecimento e da vida sócio-política. A modernidade trouxe muitas contradições e,
aos poucos, mostrou crises, algumas que perduram até hoje. Logo após, observa-
mos a eclosão da Filosofia Analítica seguida pela Virada Linguística. Aprendemos
que, cada uma ao seu modo, mudou a forma de fazer filosofia e, paralelamente,
orientou-nos a ter maior atenção com a linguagem, a ponto de hoje ser ela um dos
maiores campos de investigação filosófica.
Por fim, fomos apresentados, sucintamente, à teoria do significado de
Gottlob Frege, pensador que inovou a lógica e a filosofia da linguagem. Particular-
mente notamos uma atenção peculiar conferida aos nomes e sinais, bem como a
demais termos acrescidos do valor objetivo e universal de determinados vocábulos,
juntamente com o sentido e a referência, imprescindíveis à filosofia da linguagem.
Agora, estudaremos outro filósofo de orientação analítica, Ludwig Wittgenstein,
tão importante quanto Frege, e observaremos, então, algumas de suas peculiarida-
des e valiosos préstimos conferidos à linguagem.

51
52
CAPÍTULO VI
WITTGENSTEIN:
PROPOSIÇÃO
E JOGOS DE
LINGUAGEM

“A linguagem é um traje que disfarça


o pensamento. E, na verdade, de um
modo tal que não se pode inferir, da
forma exterior do traje, a forma do
pensamento trajado; isso porque a forma
exterior do traje foi constituída segundo
fins inteiramente diferentes de tornar
reconhecível a forma do corpo.”
(Ludwig Wittgenstein)

No âmbito da Filosofia Analítica emerge a fi-


gura de Ludwig Wittgenstein (1889-1951), jovem excên-
trico que, sem exageros, podemos denominar de gênio.
Nascido na Áustria, o jovem Wittgenstein estudou Enge-
nharia Mecânica em Berlim e Manchester. Em seguida,
foi a Cambridge e se destacou em Filosofia, tendo sido
aluno de Bertrand Russell (1872-1970), responsável por
incentivá-lo a aprofundar os estudos notoriamente ino-
vadores (lógica e filosofia da linguagem, além de filosofia
da matemática e, atualmente, o que chamamos de filo-
sofia da mente). No entanto, com a eclosão da Primeira
Guerra Mundial (1914-1918), à época, morando no inte-
rior da Noruega, Wittgenstein alista-se como voluntário
no exército austríaco.
Paralelamente à luta entricheirada, nos descan-
sos da artilharia, Wittgenstein redigiu um texto monu-

53
mental, árido e inesgotável, o Tractatus Logico-Philosophicus29. O manuscrito foi
concluído em 1918, momento em que Wittgestein era prisioneiro de guerra dos
italianos30 e, graças ao mestre Bertrand Russell, foi encaminhado para publicação.
Este livro, embora de difícil assimilação, exerce influências e causa curiosidade nos
amantes da linguagem. Nele é apresentado que “[...] a forma gramatical e a forma
lógica da linguagem não coincidem.”(MARCONDES, 2010, p. 104). Detecta, por
assim dizer, a ausência de sincronia entre dois aspectos caros e imprescindíveis à
linguagem que ocorrem sem a devida tomada de atenção.
Para Wittgenstein, uma das maiores preocupações do Tractatus é inves-
tigar a constituição, o que é próprio da linguagem, bem como sua relação com o
mundo. Assim como demais autores da tradição filosófica analítica, elege como foco
de pesquisa as enunciações, visto que “[4] o pensamento é a proposição com senti-
do” (WITTGENSTEIN, 1993, p. 165). Nesta afirmação há a valorização conferida à
modalidade de linguagem, da língua – lógica e gramaticalmente organizada – que
explicita pensamentos dotados de conteúdos detectáveis na própria apresentação.
Aliás, embora já estudada, o que é mesmo proposição? É a enunciação
frasal dotada de juízo considerada verdadeira ou falsa mediante averiguação racio-
nal. Também diz respeito aos enunciados iniciais (e de outros trechos) do discurso,
propriamente da etapa através da qual se explana o que será discutido. Importa,
em todo caso, acentuar que a proposição devidamente articulada, que isolada ou
em seu conjunto tem um ou mais argumentos corresponde a “[...] essa condição
necessária [que]31 distingue os argumentos de vários gêneros dos não-argumentos
com que são, às vezes, confundidos.” (COPY, 1978, p. 30).
No intuito de promover o pensamento ordenado e transmitido em con-
sonância com as leis da lógica e da gramática, portanto, linguisticamente dado, o
filósofo infere que “[4.01] a proposição é uma figuração da realidade. A proposição
é um modelo da realidade tal como pensamos que seja.” (WITTGENSTEIN, 1993,
p. 165). A propósito, o que vemos, aquilo que é usual e a própria presença de al-
guém ou algo corresponde à figuração. A mesma manifesta-se porque o mundo
e a linguagem estão intimamente relacionados. Ao indivíduo compete, no uso de
sua razão, explicitar a figuração por proposições, dado que “[4.021] [...] sei qual é
a situação por ela representada, se entendo a proposição. E entendo a proposição
29 O Tractatus Logico-Philosophicus apresenta em toda sua estrutura a redação ordenada em for-
mato de aforismos, a saber, sentenças, em geral, pequenas ou médias (extensão) que, à moda de
máximas, exprimem enunciações relativas à linguagem, à realidade, ao conhecimento, à lógica, à
ética, dentre outros.
30 Conforme observamos, o Tractatus Logico-Philosophicus tem peculiaridades em relação a outros
tipos de textos. “[...] Foi publicado em alemão em 1921 e pouco tempo depois em alemão e inglês
com uma introdução de Russell. O Tractatus [...] consiste numa série de parágrafos numerados,
muitos dos quais apenas com uma única frase.” (KENNY, 1999, p. 453).
31 Minha inserção.
54
sem que seu sentido me tenha sido explicado.” (WITTGENSTEIN, 1993, p. 169).
Ressalve-se que não está em discussão o menosprezo pela subjetividade,
tampouco emoções, empatias e antipatias, mas a constatação de que, na imbrica-
ção entre linguagem e mundo a proposição é emitida justamente pelo contato tido
com, independentemente de qual tipo, a realidade. Ademais, sem elencar, tampou-
co classificá-las, é preciso ter em mente que “[4.001] a totalidade das proposições
é a linguagem.” (WITTGENSTEIN, 1993, p. 165). A esta altura, percebemos uma
diferença de Wittgenstein a respeito do que é abarcado enquanto linguagem. Se
comparado à grande maioria dos filósofos, observaremos que muitos elementos
que não podem ou não são apresentados sob a forma de proposições ficarão de fora
desta concepção de linguagem. A esta postura denominamos de reducionismo lin-
guístico, pois elementos de ordem metafísica, de crença e que não são assimiláveis
e facilmente abstraídos não serão englobados na totalidade das proposições.
O filósofo efetua determinado reducionismo típico do início do século XX,
haja vista o foco investigativo adotado, bem como o objetivo de melhor empre-
ender o uso da linguagem. Notamos, assim, no primeiro momento da filosofia de
Wittgenstein, o florescimento da teoria pictórica do significado, isto é, a aborda-
gem segundo a qual “[...] a linguagem consiste em proposições que representam o
mundo pictoricamente32. As proposições são as expressões perceptíveis dos pensa-
mentos e estes são imagens lógicas dos factos; o mundo é a totalidade dos factos.
(sic)” (KENNY, 1999, p. 453). Por isso, a insistência quanto à figuração da reali-
dade seguida da valorização do mundo, instância por meio da qual a linguagem
se desenvolve eé avaliada, discutida e compreendida em termos proposicionais.
Novamente, evidenciamos o reducionismo do autor e o interesse frente ao uso de
palavras e proposições por meio da seguinte inferência: “[4.0031] Toda filosofia é
‘crítica da linguagem’.” (WITTGENSTEIN, 1993, p. 165). Eis mais um dos reflexos
de que, na contemporaneidade, a linguagem é um dos maiores problemas com os
quais a filosofia se ocupa, sob uma perspectiva lógico-analítica bem peculiar.
Por conseguinte, entre os anos trinta e quarenta do século XX, Wittgens-
tein redireciona suas preocupações, o que favorece a elaboração da chamada teoria
dos jogos de linguagem. Devido a esta guinada na vida intelectual de Wittgenstein,
“[...] tradicionalmente seu pensamento se divide em duas fases: a primeira apre-
sentada pelo Tractatus e a segunda [...] tem como obra principal as Investiga-
ções Filosóficas [...]” (MARCONDES, 2010, p. 103). Desse modo, também há uma
mudança na própria concepção de filosofia, pois com o Tractatus ela é restrita à
análise e crítica da linguagem ao passo que, com as Investigações Filosóficas, des-
tacam-se os jogos de linguagem e, a partir do segundo texto, não estamos perqui-

32 A saber, análogo a uma pintura ou gravura.


55
rindo significados fixos e definitivos de proposições, mas observamos seus usos e
articulações.
Com efeito, no segundo Wittgenstein, o foco de pesquisa é a linguagem,
porém, a filosofia é compreendida como uma atividade em construção vinculada
à articulação de termos presentes no seio da linguagem. Mas, o que são, então, os
jogos de linguagem? São as articulações, mais dinâmicas do que parecem, entre
palavras e, também, destas com os objetos. Até porque, ao falar nos ditos jogos,
pressupõe-se “[...] o conjunto da linguagem e das atividades com as quais está li-
gada.” (WITTGENSTEIN, 1, 7, 1999, p. 30). Ademais, quando nos atemos ao uso
de palavras, aí sim é que, com maior facilidade, visualizamos a presença dos jogos
de linguagem.
O uso corresponde a, segundo o filósofo, “[...] um daqueles jogos por meio
dos quais as crianças aprendem sua língua materna. [...] E poder-se-ia chamar tam-
bém de jogos de linguagem os processos de denominação das pedras e da repetição
da palavra pronunciada. Pense os vários usos das palavras ao se brincar de roda.”
(WITTGENSTEIN, 1,7, 1999, p. 30). Todavia, sem adentrar na esfera dos exemplos
que são inúmeros, importa registrar que, no ato de aprendizagem da linguagem e
da língua, ocorre uma íntima relação entre as palavras e a realidade. Depois, quan-
do evoluímos em termos de idioma e compreensão de mundo, observa-se o melhor
trato com palavras abstratas ou adversas da realidade do indivíduo, o que atesta,
enfim, a importância e validade do segundo Wittgenstein.

A filosofia de Wittgenstein
Wittgenstein pensava que se prosseguirmos com a análise da
proposição, chegaremos finalmente a símbolos que denotam inteiramente
objetos não complexos. Assim, uma proposição completamente analisada
consistirá numa combinação muito longa de proposições atómicas, cada
uma das quais conterá nomes de objectos simples, nomes relacionados
entre si de formas que representarão pictoricamente, verdadeira ou fal-
samente, as relações entre os objectos que representam. Uma tal análise
completa de uma proposição é sem dúvida humanamente impossível; mas
o pensamento expresso pela proposição encerra já a complexidade da pro-
posição completamente analisada. O pensamento relaciona-se com a sua
expressão na linguagem comum por meio de regras extremamente compli-
cadas que operam inconscientemente a cada momento.
A conexão entre a linguagem e o mundo é feita pela correlação
entre os elementos últimos destes pensamentos escondidos e os objectos
56
simples ou átomos que constituem a substância do mundo. Wittgenstein
não explica como se operam estas correlações; é um processo profunda-
mente misterioso que cada um de nós, ao que parece, deve empreender por
si mesmo, criando, por assim dizer, uma linguagem privada. Grande parte
do Tractatus é consagrada a mostrar como, com a ajuda de várias técnicas
lógicas, se podem analisar proposições de diferentes tipos em combina-
ções de imagens atómicas. O valor de verdade das proposições da ciência
dependeria do valor de verdade das proposições atómicas a partir das
quais aquelas se constroem. As proposições dialógica seriam tautologias,
isto é, proposições complexas que são verdadeiras independentemente dos
valores de verdade das suas proposições atómicas; um exemplo óbvio é a
proposição «p ou não -p», que é sempre verdadeira, quer p seja verdadeira
quer p seja falsa. Pretensas proposições insusceptíveis de análise em pro-
posições atómicas revelam-se afinal pseudoproposições, que não fornecem
imagens do mundo. Entre estas surgem as proposições da filosofia, incluin-
do as proposições do próprio Tractatus. No fim do livro, Wittgenstein com-
para-o a uma escada que se deve subir e depois deitar fora se quisermos
ver o mundo correctamente.
Os metafísicos tentam descrever a forma lógica do mundo, mas
isso é impossível. Uma imagem tem de ser independente do que é repre-
sentado; tem de poder ser uma imagem falsa. Mas uma vez que qualquer
proposição contém a forma lógica do mundo, não pode representá-la. O
que o metafísico tenta dizer não pode ser dito, pode apenas ser mostrado.
A filosofia não é uma teoria, mas antes uma actividade: a actividade de
clarificar proposições não-filosóficas.(sic)
KENNY, Anthony. História concisa da Filosofia. p. 455-456.

Sobre os jogos de linguagem

[23] Quantas espécies de frases existem? Afirmação, pergunta e


comando, talvez? – Há inúmeras de tais espécies: inúmeras espécies dife-
rentes de emprego daquilo que chamamos de ‘signo’, ‘palavras’ e ‘frases’. E
essa pluralidade não é nada fixo, um dado para sempre; mas novos tipos
de linguagem, como poderíamos dizer, nascem e outros envelhecem e são
esquecidos [...]
O termo ‘jogo de linguagem’ deve aqui salientar que o falar da

57
linguagem é uma parte de uma atividade ou de uma forma de vida.
Imagine a multiplicidade dos ‘jogos de linguagem’ por meio destes
exemplos e de outros:
Comandar e agir a comandos –
Descrever um objeto conforme a aparência ou medidas –
Produzir um objeto segundo uma descrição (desenho) –
Relatar um acontecimento –
Conjeturar sobre o acontecimento –
Expor uma hipótese e prová-la –
Apresentar o resultado de um experimento e por meio tabe-
las e diagramas –
Inventar uma história; ler –
Representar teatro –
Cantar uma cantiga de roda –
[...]
Pedir, agradecer, maldizer, saudar, orar –
– É interessante comparar a multiplicidade das ferramentas
da linguagem e seus modos de empregos, a multiplicidade de espécies de
palavras e frases com aquilo que os lógicos disseram sobre a estrutura da
linguagem (E também o autor do Tractatus Logico-Philosophicus)”.
WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. p. 33-34.

Neste capítulo fomos, preliminarmente, apresentados a recortes da filo-


sofia da linguagem de Ludwig Wittgenstein. Vimos que o autor desenvolve o Trac-
tatus de uma forma inusitada e, em dado momento, sofre uma mudança da pró-
pria forma de fazer filosofia, o que não minimiza seus esforços. Aprendemos que
a linguagem pode ser tratada sob duas ou mais perspectivas e que as mudanças
conduzem a amadurecimentos e de leitura de mundo. Também observamos que
Wittgenstein, a princípio, tratava de proposições e da própria linguagem sob um
ponto de vista restrito, o que muda em sua segunda fase intelectual, haja vista a
atenção dada à dinamicidade da linguagem apresentada por meio dos jogos.

58
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60
ANTÔNIO CARLOS PERSEGUEIRO é Licenciado
em Filosofia pela Universidade Estadual do Centro-O-
este, UNICENTRO (2003-2006), Especialista em Filoso-
fia e Sociologia (2007) por esta mesma Universidade e
Mestre em Filosofia Moderna e Contemporânea pela
Universidade Estadual do Oeste do Paraná, UNIOES-
TE, Toledo (2012-2014). Possui experiência docente no
Ensino Médio na rede pública (QPM-SEED-PR.) e pri-
vada. Também lecionou no Ensino Superior Privado,
concentrando-se em Disciplinas de Filosofia, Antropo-
logia e Sociologia. É Professor Colaborador do Depar-
tamento de Filosofia da UNICENTRO, Guarapuava, PR.
(2011 até o presente), setor o qual leciona Disciplinas
desta área em demais cursos, tendo interesses princi-
pais em Licenciaturas e na formação docente.

No Curso de Filosofia leciona Disciplinas cujo


foco é a profissionalização do graduando, especial-
mente Práticas e Metodologia de Ensino bem como
Estágio Supervisionado em Filosofia. Na UAB-MEC le-
cionou Histórias da Ideias Filosóficas I e II (2012-2013)
na Graduação em História, Orientações Teórico-Meto-
dológicas para TCC na Especialização em Ensino de
Sociologia (2015), Filosofia do Ensino de Filosofia e Di-
dática na Especialização em Ensino de Filosofia para o
Ensino Médio (2015-2016).

Possui as seguintes pesquisas: A Hermenêutica


de Hans-Georg Gadamer aplicada ao Ensino de Filo-
sofia (2005-2009) e A questão da linguagem na filoso-
fia de Popper (2012 até o presente).

61

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