Só vi Jean-Paul Sartre uma única vez em minha vida, em uma noite em Sie-
na. Nós Unhamos chegado tarde. Eu tinha andado à noite pelas ruas e fui até a
célebre Piazza dei Campo, na qual os restaurantes se inclinam para a praça
como em um anfiteatro. AI achava-se sentado um unico homem sozinho,
Jean-Paul Sartre. Todavia, tinha aprendido que nunca se deve flllllr com um ho
mem sozinho. Portanto, meu aval para falar sobre Jean-Paul Sartre é igual a
zero. Não obstante, se ouse falar sobre ele, isso acontece por um motivo que
vai além de minhas experiêndos pessoais. Gostaria de mostrar o quão difldl é
compreender um penslImenta filosófico francês a partir da tradiçao alema e o
quão difícil é também o inverso - por modéstia fala-se menos desse caso. Por
isso, gostaria de relatar o que aconteceu outrora quando li Sartre. Recebi poste
riormente a primeira edição de Cerre et te néanl. Foi um presente de Martin
Heidegger para mim. Ele tin ha cortado a parte de cima de qUllrenta páginas
25
desse volume ; ele não foi além com a leitura e isso não é de modo algum tão
espantoso. É preciso dizer inicialmente que esse livro é inacreditavelmente difí
cil de ler, na tradução ainda mais difícil do que no original, tal como sempre
acontece com traduções. Agora fiz a prova: depois de quase quarenta anos
exatos, li uma vez mais o livro na tradução alemã e gostaria, então, de reproduzir
algumas impressões de minha antiga apreensão das coisas e em relação Aqui
lo que talvez possa interessar em termos documentais. Sei que não posso dis
cutir esses coisas no nível dos questionamentos atuais, mas antes talvez no
nível de questões imperecíveis. Posso lembrar inicialmente que Sartre foi com
certeza desde Bergson o primeiro grande pensador francês a também encon
trar na Alemanha um eco autêntico. Seu nome ligou-se muito rapidamen te
com o nome de Merleau-Ponty, o fundador da revista Les Temps Modernes,
cuja articulação com Hussert alcançou concomitantemente a nossa consciên
cia pública dos anos de 1940. No entanto, não havia qualquer duvida de que o
primeiro impulso de nossa atenção proveio de Sartre.
25. Gadamer alude ao modo como es edições francesas antigas eram encadernadas. E1!ls vi
nham sempre fech!ldes de quatro em quatro páginas, de tal modo que era predso cortar a parte
de clma das folhas para poder seguir com a leitura (N.T.).
Parte 11. A virada hermenêutica 123
quando jovem como é que seu pai, um homem venerado em seus latifúndios
como um patriarca, como um amado e velho pai do todo, pôde ser tão brutal e
desconsideradamente aniquilado pela onda revolucionária que se elevou na
quela época quanto todos os outros proprietários, dos quais alguns não viviam
em um clima tão bom com seus camponeses. Era isso que o jovem Kojeve que
ria compreender. Por isso, ele estudou Marx e, nllturlllmente, Hegel. Ele certa
mente não encontrou aquilo que buscava. Como é que devemos mesmo
compreender todos os enigmas da alma humana, se nós mesmos somos todos
um enigma?!?
Ao mesmo tempo, a opinião pública ainda teve uma outra surpresa gigan
tesca. Mesmo Heidegger, que nos últimos emas não tinha sido propriamente fa
vorecido pelo regime nazista - ele não podia mais publicar seus trabalhos por
essa época - e que tinha perdido todo crédito na opinião pública depois de
1945, possou a dominar de uma vez s6 li cena. Convidei Heidegger uma vez,
estávamos certamente no final dos anos de 1950, para fazer uma conferência
em Heidelberg. Nessa ocasião, precisamos trabalhar no enorme auditório com
riell.A r, n 12
programas que as pessoas compravam por um marco. Somente assim foi pos
slvel que Heidegger chegasse efetivamente até a salll na qual ele tinha de falar.
Ninguém precisa achar bonito o fato de as coisas terem acontecido assim. Só
quero descrever o que estava acontecendo e sob que pressupostos nós - por
tanto, eu, por exemplo - lemos Sartre.
Como aluno de Heidegger, eu não era certamente nenhum seguidor por ele
reconhecido de suas ideias. Aprendi muito com ele e absorvi multo dele. No en
tanto, ele costumava dizer mais tarde com frequência: O senhor com o seu
mestre Natorpl Natorp era o cabeça da escola de Marburgo, o professor com o
qual tinha feito minha tese de doutorado em 1922 como um rapaz imatuTO. Ao
dizer isso, Heidegger tinha em vista o fato de eu nunca ter me livrado totalmen
te de meu mestre Paul Natorp. Não digo isso para perder crédito ou mesmo
para ganhar crédito, mas apenas para descrever uma vez mais como nos en
contrávamos outrora em uma situllç�o determinadamente marcante. Desse
modo, não fui só eu que fui guiado em muitos passos de penso!lmento tanto por
Husserl quanto por Heidegger. O mesmo aconteceu com Landgrebe, com Eu
gen Fink, com Gurwitsch e Biemel, o mesmo aconteceu com todas as pessoas
mais diversas possíveis que sobreviveram ao período nazista ou aos anos de
guerra não na Alemanha, mas na emigração ou na semiemigração, se é que
podemos contar aí Louvain. Todos eles procuraram trabalhar o elemento co
mum entre Husserl e Heidegger da maneira mais forte possível e não tomar ape
nas por sustentável enquanto tal a contradição que por razões políticas se adora
ria ter visto entre os dois. E como eles o fizeram! Não, por exemplo, na medida em
que mostraram que Heidegger se baseava totalmente em Husserl, mas inversa
mente na medida em que deixaram claro o fato de os pensamentos filosóficos de
Husser! em seus anos tardios se aproximarem totalmente de Heidegger. Há um
artigo de Ludwig Landgrebe, que eu mesmo ainda publiquei na Phllosophische
Rundschau e que se intitula: "Despedida do cartesianismo". Nesse artigo, Land
grebe queria mostrar que Husserl tinha abandonado em verdade por fim as posi
ções de partida cartesianas, que ele sempre acentuara uma vez mais por meio
de seu recurso aá 'eu transcendental, como consequência de seu próprio pen·
samento sobre o tempo e sobre a consciência do tempo, e seguido na mesma
direçào de pensamento que Heidegger. Isso descreve de maneira plástica a si
tuação filosófica, na qual me aproximei da leitura de Sartre.
ser um grllnde escritor, que pode ser reconhecido enquanto tal mesmo em
umll tradução, é difícil se colocar em alguma medida de acordo com ele e, com
isso, com a tradição francesa de pensamento por ele representada. Essa foi a
expectativa com a qual acolhi meu estudo de Sartre e a experiência também a
rlltificou. Não é tão fácil conjugar o ideal cartesiano da c/artil1 com a turva pro
fundidade da tradição romântica alemã que vai de Hamman, passâ por Herder
e Hegel e chega até Heidegger. No entanto, a questão é saber se é correto que
um lado não tome conhecimento algum do outro e se não é a hora de tentar
conduzir o dialogo a um desenvolvimento melhor, sem as unilaleralidades e as
parcialidades dos ideais estilísticos que são cultivados em circulos culturais di
versos. Essa é, em todo caso, a razão pela qual estou aqui.
Tentemos deixar claro para nós como Sartre, sob a influência tripla de Hus
serl, Hegel e Heidegger, realizou a adaptação desses pensadores. Já disse que
a fusão desses três pensadores em uma unidade é o enigma e o encanto propria
mente ditos desse pensamento. Nesse ponto, ele começa como fenomen6lo
go. Heidegger leu exatamente os pl:lr6grllfos, nos qUllis Sartre escreve sobre fe
nomenologia, e marcou algumas coisas. Quando ele me deu o livro de presen
te, essas marcações estavam aí. Em uma passagem afirma-se: �Husser1 ou Hei
degger diriam. .. n Heidegger riscou imediatamente o "ou" e colocou na margem
um ponto de interrogação. Ou bem Husserl, ou bem Heidegger, mas não os
dois de uma vez. Assim silo as coisas, nas quais buscamos nos perfilar. Preci
samos tentar destacar os passos modestos do próprio pensamento que são da
dos por nós, para que eles se tornem efetivamente visiveis. No caso de Heideg
ger, havia em verdade razão suficiente para insistir na diferença. Os pontos de
partida que Heidegger tinha encontrado em Husserl foram por fim repelidos
por ele com uma ousadia inacreditável, a fim de liberar talvez temas ainda mais
profundos de seu próprio filosofar. Conhece-se essa rejeição em gerl:ll como "a
viragem", na qual o questionamento transcendental no estilo de Husserl foi re
jeitado. Acredito que essa viragem é um retorno e não uma inversão: retorno
aos temas originários, semirreligiosos, sob os quais Heidegger tinha se enreda
do no pensamento.
mente diverso daquilo que está em curso na filosofia alemã de nossos dias, em
Husserl tanto quanto em Heidegger e naqueles que tinham tentado aprender
com Heidegger.
Como ê que Sartre conseguiu fazer então valer um motivo hegeliano a par
tir desse ponto de pl!lrtida heideggeriano radicalizado da fenomenologia? E Sar
tre conseguiu de fato fazer isso. De inicio, ele seguiu a boa tradição fenomeno
lógica e pensou a consciência como intencionalidade. Essa foi a liberação final
das representações risiveis de uma caixa da consciência, na qual nossas repre
sentações se encontrariam encerradas, de modo que nos achariamos diante da
questão precária sobre como sairiamos afinal daí até a realidade. Essa teorill da
consciência foi efetivamente substituída por um refinamento da teoria brentaniana
e, portanto, segundo a coisa mesma, por meio de um retomo à concepção grega
das coisas. Consciência é sempre já consciência de algo. Lembro-me de uma con
ferência de Heidegger em um ginásio de Darmstadt no começo dos anos de 1950,
na qual ele afirmou que seria um erro dizer: "Vejo que lá está a porta". "Eu" estou
"lá" quando vejo a porta. Aquilo que Scheler denominou a "extática" da cons
ciência, o completo ser-fora-de-si, também conquista em Sartre completamente
o seu direito. Mas, então, acrescenta-se algo. Sartre compreendeu o significado
da colocação da pergunta husserliana: O que é um objeto da percepção? Esse
copo, por exemplo, eu só consigo ver do meu lado e o senhor apenas do seu lado.
Posso virá-lo. Nesse caso, só vejo uma vez mais o meu lado - e não o lado detrás -
e o senhor do mesmo modo. Husserl denominou esse fato o "sombreamento" do
objeto da percepçao: o objeto da percepção obnubila-se continuamente. Husserl
afirmou, então, que esse ê o único sentido sustentável da doutrina kantiana da
coisa em si, que aparece nesse contínuo dos sombreamentos. Se esse caráter
continuo dos aspectos se apresenta assim como um contínuo, isso significa justa
mente que essa aparição ê o próprio corpo - e não um ser qualquer, um nou·
menon ou alguma outra coisa oriunda do "trasmundo". Meu professor Natorp
" 11, ti !U ca 129
dizia, de maneira similar, que a coislI em si não é outra coisa senào a tarefa infi.
nita da determinação do objeto do conhecimento.
29. Heidegger verbi'!ti�e e partl<::ule n.'io e crie assim um estrenho neologismo: das Nichten. Ga
damer vale-se deste neologismo aqui. Ptlftl llCOITlptlnhtlr o campo sem8ntico do original optllnlOS
pellIlocução "ftlzer-se n!o� (NT).
t;1 �1lI lica eftl !lrOsp"r iva
Se nós nos colocarmos essa questão juntamente com Sartre, então chega
remos II tese de que a ambiguidade cobre em verdade tudo nesse ser-por-si.
Nada é poupado dessa ambiguidade. Sartre dá exemplos. Ele descreve a an
gústia. De maneira significativa. ele recorre ao conceito heideggeriano e à ilus
tração heideggeriana da angústia como esse elemento aniquilante. No entan
to, em um sentido totalmente diverso. Ele descreve de maneira bastante
plástica como temos medo de ficar tontos em um caminho (ngreme na monta
nha, como nos dispomos a afastar o olhar o mais rápido possível do abismo.
Mas ele não descreveu tão bem o quão relaxante é olhar para o abismo e
esse é mesmo o demônio proprizr.mente dito da vertigem. As pessoas têm verti
gem pelo fato daquilo em que elas não encontram apoio algum atrair de manei
ra tão irresistivel. Todavia, o psicólogo Sartre estava seguramente consciente
dessa partlcularidade - apenas em um outro contexto. Não quero de rT)aneira
alguma ensinar-lhe alguma coisa aqui, mas apenas mostrar que ele descreveu
a angústia de modo unilateral, tanto quanto a insinceridade. N6s dizemos para
O
tanto "autenticidade" e �inautenticidade", em francês diz-se mauvaise foil •
Essa expressão não corresponde à nossa �mendacidade", mas se mostra ca
mo a indiferencialidade fatal na qual costuma se mover entre sincero e insince
ro o andar furtivo dos homens.
Talvez possamos passar aqui por cima de HusserJ, pois a teoria husserJiana
da intersubjetividade é um de seus desfiJadeiros3l• Esse é realmente um dos
pontos a cJ.ljos fenômenos HusserJ sempre teve dificuldade de fazer frente com
o seu ponto de partida monadol6gico; e isso apesar de ele mesmo estar con
vencido de que não residia aí nenhuma falha de seu pensamento. No entanto,
quando escuto como Husserl descrevia isso: eu vejo aí algo extenso, branco e
um pouco rosa, um pouco marrom, então empresto a essa descrição a minha
concepção vivificadora e digo: trata-se do homem aí. Em primeiro lugar, vejo
supostamente que há algo branco aí e, em seguida, reconheço nesse algo bran
co um de meus ouvintes. Não, eu vejo realmente o ouvinte e não o. branco. Isso
significa, porém, que compartilho em verdade da linha de Sartre. Qualquer um
sabe sobre Sartre ao menos que ele descreveu o fenômeno do olhar de uma ma
neira realmente genial em todGls as suas peculiaridades: aquilo que sucede na
troca de olhares e aquilo que acontece quando nós nos sentimos observados,
quando somos por assim dizer rebaixados a um objeto e não somos parceiros na
troca entre eu e tu. Mesmo as análises sobre a corporeidade que se encontram
nesse contexto, antes de tudo na esfera erótica, têm algo em comum com o mes
mo tema da transformação do outro em objeto ou do se tornar objeto ante o ou
tro, com o tema da autoelisão em relação ao outro. Sartre descreveu essa dialéti
ca de maneira maravilhosa. É em virtude dessas coisas que lemos Sartre, mes
mo se sabemos ou queremos saber muito pouco de filosofia.
Quem garante o quê aqui? Parece-me que nos dois casos, tanto na con
tra-anãlise sartriana da corporeidade quanto na sua contra-análise do outro, a
evidência mais forte está do lado daquilo a que segui em muitas coisas. O mila
gre da consciência não é nada derradeiro, nada primeiro. Ela é, como Heidegger
bem o mostrou, uma palavra bastante tardia que sugere muitas cpisas equivo
cadas como se fosse algo derradeiro e primeiro. Os gregos foram muito mais
inteligentes ao dizerem: a consciência é o lugar no qual as ide las se reúnem. Ê
compreensível para todos n6s o falo de esse universo da vi91lia conter ao mes
mo tempo a unificação de todas as nossas representações. Todavia, o ponto
de partida cartesiano do cogito talvez não consiga reconhecer o enigma propria
mente dito do ser-ai humano, o enigma que reside justamente nesse �aí", nessa
distinção do ser-humano inabarcável pelo pensamento, no ffjto de o mundo es
tar '"aí" pata o homem. Esse mistério não é descritível em uma conceptua idade
l
apropriada qualquer, mas é sempre uma vez mais demonstrável no negativo: o
mundo submerge quando mergulhamos no sono; o mundo submerge quando fe
chamos definitivamente os olhos.