J. S. MilI, Autobiografia.
"Sobre a Origem das Espécies", de Darwin, talvez o mais influente trabalho científico samente honesto de se referir a si mesmo, diz ele que suas emoções eram raquíticas,
de seu século, que logo contribuiu em muito para destruir o antigo acúmulo de dogmas enquanto sua mente era violentamente superdesenvolvida. Seu pai não duvidava do
e preconceitos e, em sua má aplicação na psicologia, na ética e na política, serviu para valor da experiência. Havia obtido sucesso ao produzir um ser humano perfeitamente
justificar o imperialismo violento e a competição crua. Quase simultaneamente, foi racional e excelentemente bem informado. A verdade dos conceitos de Bentham sobre
editado um ensaio de um obscuro economista que expunha uma doutrina de decisiva educação tinha sido totalmente comprovada.
influência sobre a humanidade. O autor era Karl Marx, o livro era a "Crítica da Os resultados de tal tratamento não assustariam ninguém em nossa era psico
Economia Política", cujo prefácio'continha a mais clara declaração da interpretação logicamente menos ingênua. Em sua adolescência, John Mill passou pela primeira crise
materialista da história - o cerne de tudo o que passa hoje em dia pelo nome de de angústia. Sentiu falta de objetivos, uma paralisia da vontade e um desespero terrível.
marxismo. O impacto sobre o pensamento político provocado pelo Tratado de Mill, Com seu hábito bem treinado e, com efeito, inarredável de reduzir a insatisfação
porém, foi mais imediato e talvez de igual permanência. Superou formulações an emocional a um problema formulado, fez a si mesmo uma questão simples: suponha-se
teriores sobre o individualismo e a tolerância, de Milton e Locke a Montesquieu e que se realize o nobre ideal benthamiano de felicidade universal - em que tinha
Voltaire, e, apesar de sua psicologia ultrapassada e da falta de força natural, permanece aprendido a acreditar e em que acreditava com a melhor de suas aptidões; iria isto, de
ainda como a clássica declaração da liberdade individual. Às vezes dizem-nos que o fato, satisfazer todos os seus desejos? Admitia a si mesmo, para seu horror, que não.
comportamento de um homem é, mais do que suas palavras, uma expressão genuína de
Qual seria, então, a verdadeira finalidade da vida? Não via propósito na existência:
suas crenças. A devoção inequívoca de Mill à causa da tolerância e da razão foi única,
tudo em seu mundo paracia agora vazio e frágil. Tentou analisar sua condição. Seria ele
mesmo entre as vidas mais dedicadas das personalidades do século XIX. O centenário
talvez completamente desprovido de sentimento - seria um monstro �m quem se
de sua profissão de fé, portanto, não poderia passar sem que se dissesse algo diante
tivesse atrofiado grande parte de sua natureza humana? Sentiu que não tinha motivos
deste Conselho.
para continuar a viver, e desejou a morte. Um dia, quando estava lendo uma estória
I patética nas memórias do hoje quase esquecido escritor francês Marmontel, foi
subitamente levado às lágrimas. Isto convenceu� de que era capaz de sentir emoção e
assim começou a recuperar-se. Essa recuperação tomou a forma de uma revolta lenta,
Todos conhecem a história da extraordinária formação educacional de John
oculta, relutante, mas profunda e irresistível, contra a visão da vida inculcada por seu
Stuart Mill. Seu pai, James Mill, foi o último dos grandes raisonneurs do século XVIII e
pai e pelos benthamistas. Leu a poesia de Woodsworth, leu Coleridge e identificou-se
permaneceu completamente imune às novas correntes românticas de seu tempo. Como
com ele; sua visão da natureza do homem, de ,sua história e de seu destino, trans
seu professor Bentham e os filósofos materialistas franceses, ele considerava o homem
formou-se. John Mill não era rebelde por temperamento. Amava seu pai e o admirava
um objeto natural e achava que se poderia e se deveria estabelecer, com sólidas bases
profundamente, e estava convencido da validade de suas principais posições filosóficas.
empíricas, um estudo sistemático da espécie humana - estudo desenvolvido em linhas Apoiava Bentham contra ci' dogmatismo, o transcendentalismo, o obscurantismo,
semelhantes aos da Zoologia, Botânica ou Física. Acreditava ter entendido os contra tudo o que resistia à marcha da razão, da análise e da ciência empírica. A essas
princípios da nova ciência do homem e estava firmemente convencido de que qualquer crenças apegou-se firmemente por toda a vida. No entanto, sua concepção do homem
homem educado à luz dessa ciência, educado como um ser racional por outros seres e, por conseqüência, de muitas outras coisas, sofreu uma grande mudança. Tornou-se
racionais, estaria, por conseguinte, preservado da ignorância e da fraqueza, as duas não propriamente um herege reconhecido do início do movimento utilitarista, mas sim
grandes fontes do irracional em pensamento e ação, por si só responsáveis pelas um discípulo que tranqüilamente abandonava as formas, preservando o que consi
misérias e pelos vícios da humanidade. James Mill educou seu filho, John Stuart,
derava verdadeiro ou válido, não se sentindo preso a nenhuma regra ou a nenhum
isolado de outras crianças menos racionalmente educadas: os irmãos e as irmãs eram
princípio do movimento. Continuou a professar que a felicidade era o único objetivo
praticamente seus únicos companheiros. O menino aprendeu grego aos cinco anos,
da existência humana, mas sua concepção a respeito do que contribuía para isto
álgebra e latim aos nove. Era alimentado com uma dieta intelectual cuidadosamente
mudou para algo muito diferente daquilo que diziam seus mentores, pois o que ele veio
distilada, preparada pelo pai e composta de ciência natural e literaturas clássicas. Nada
a apreciar mais não era a racionalidade nem a satisfação com o que se tem, mas sim a
de religião, de metafísica, muito pouco de poesia - nada do que Bentham havia
diversidade, a versatilidade, a plenitude da vida - o salto desmesurado do gênio in
estigmatizado como o acúmulo da idiotice humana e do erro humano poderia atingi-lo.
dividual, a espontaneidade e a unicidade de um homem, de um grupo, de uma civiliza
A música, talvez porque se supunha que não poderia facilmente propor uma
ção. O que odiava e temia era a estreiteza, a uniformidade, o efeito deformador da
interpretação falsa do mundo real, era a única forma de arte que ele pôde livremente
perseguição, o esmagamento dos homens pelo peso da autoridade, do costume ou da
abraçar. A experiência foi, de certo modo, um sucesso extraordinário. John Mill, ao
opinião pública; colocou-se contra a adoração da ordem e da limpeza ou mesmo da
chegar aos doze anos, possuía o conhecimento de um homem de trinta anos excep
paz, se fossem compradas ao preço da obliteração da diversidade e da cor dos seres
cionalmente intelectualizado. Em seu modo próprio, sóbrio, claro, literal e peno-
humanos não domados com paixões inextinguíveis e fantasias destemperadas. Isto
180 Isaiah B erlin Quatro Ensaios sobre a Uberdade 18 1
talvez tenha sido uma compensação bastante natural por sua infância e adolescência ao contrário de seus antecessores franceses que confiaram em especialistas em moral e
emocionalmente torturadas e confusas. ciências, afirmara que o homem é o melhor juiz de sua própria felicidade. No entanto,
Aos dezessete anos estav� plenamente formado do ponto de vista intelectual. O esse princípio permaneceria válido para Bentham, mesmo depois que todos os homens
equipamento cultural de John Mill possivelmente era único naquela época ou em tivessem engolido a pl1ula da felicidade e a sociedade tivesse sido alçada ou reduzida à
qualquer outra época. Tinha a mente clara, era puro, altamente articulado, inten condição de êxtase sereno e geral. Para Bentham, o individualismo é um dado psico
samente sério e desprovido de traços de medo, de vaidade ou de humor. Durante os lógico, para Mill, é um ideal. Mill aprecia a contestação, a independência, os pensadores
dez anos seguintes, escreveu artigos e críticas, com todo o peso do herdeiro presuntivo solitários, os que desafiam o establishment. Em artigo escrito aos dezessete anos
oficial do movimento utilitarista sobre seus ombros; e, embora seus artigos tenham (pedindo tolerânca para um ateu hoje em dia quase esquecido, chamado Carlyle), bate
tornado seu nome famoso - e ele se tivesse tornado um formidável divulgador e fonte em uma tecla que soa e ressoa em sua obra pelo resto da vida: "Cristãos, cujos
de orgulho de seus mentores e de seus aliados, o tônus de seus artigos não era o reformadores pereceram na fogueira ou na cruz como heréticos, apóstatas, blasfemos...
mesmo do dos outros. Ele elogiava o que seu pai elogiara: racionalidade, método cristãos, cuja religião inspira caridade, liberdade e perdão a cada linha... e eles, tendo
empírico, democracia, igualdade; e criticava o que os utilitaristas criticaram: religião, ganhado o poder do qual foram vítimas, iriam dele fazer uso da mesma maneira... em
crença em verdades intuitivas e indemonstráveis e suas conseqüências dqgmáticas, que, perseguição vingadora... isto é monstruoso" 1. E, pelo resto da vida, continuou como
a seu ver, levavam ao abandono da razão, a sociedades hierarquizadas, a interesses defensor dos heréticos, dos apóstatas, dos blasfemos, da liberdade e do perdlro.
velados, à intolerância quanto à livre crítica, ao preconceito, à reação, à injustiça, ao Seus atos se harmonizavam com suas palavras. As atitudes públicas às quais o
despotismo e à miséria. Mas a ênfase se deslocara. James Mill e Bentham desejavam nome de Mill estava associado como jornalista, como reformador e como político,
literalmente apenas o prazer obtido pelos meios que se caracterizassem como mais raramente se relacionavam com os projetos tipicamente utilitaristas defendidos por
efetivos. Se alguém lhes tivesse oferecido um remédio capaz de, comprovada e cien Bentham e posteriormente implementados por muitos de seus discípulos: grandes
tificamente, colocar as pessoas em um estado de eterno contentamento, suas premissas esquemas industriais, financeiros e educacionais, reformas de saúde pública ou a or
os levariam a aceitá-lo como a panacéia contra tudo o que consideravam um mal. ganização do trabalho e do lazer. Os temas a que se dedicou Mill em seus artigos ou em
Desde que o maior número possível de homens pudesse ser dotado de felicidade seus atos, relacionavam-se com algo diferente: a ampliação da liberdade individual,
duradoura ou mesmo de libertação da dor, não importava de que modo isso poderia ser especialmente da liberdade de expressão, e raramente com outra coisa. Quando Mill
conseguido. Bentham e Mil acreditavam na educação e na lei como os caminhos que declarou que a guerra era melhor do que a opressão, que uma revolução que matasse
levavam à felicidade. Mas se se descobrisse um atalho, na forma de pl1ulas, de técnicas todos os homens com renda superior a 1:. 500 anuais poderia melhorar em muito todas
de sugestlro subliminar ou de outros meios que condicionam o ser humano - que tanto as coisas, que o imperador Napoleão m, da França, era o maior vilão vivo, quando
progresso fizeram no nosso século - então, sendo homens de fanática coerência, expressou alegria pela que4a de Palmerston em virtude da lei que procurava tornar
poderiam aceitar isso como uma alternativa melhor, porque mais efetiva e talvez menos conspiração contra déspotas estrangeiros uma ofensa criminal na Inglaterra, quando
custosa, do que os meios que advogavam. John Stuart Mill, como deixou claro em sua denunciou os estados do Sul na Guerra Civil Americana, quando se fez violentam
ente
vida e em seus escritos, teria rejeitado completamente tal solução. Tê-Ia-ia condenado impopular ao discursar na Casa dos Comuns em defesa de assassinos fenianos (e talvez
como degradante da natureza humana. Para ele, o homem difere do animal prima assim lhes tenha salvo a vida) ou dos direitos das mulheres, dos trabalhadores, dos
cialmente não por ser possuidor de razão ou por ser inventor de instrumentos e de povos colonizados, tomando-se dessa forma o mais apaixonado e o mais famoso de
métodos, mas por ser capaz de escolher, por ser so bretudo ele mesmo ao escolher e não fensor na Inglaterra dos humilhados e dos oprimidos, é difícil supor que não era a
ao ser escolhido, o cavaleiro e não o cavalo, o que busca fmalidades e não simples liberdade e a justiça (a qualquer custo), mas a capacidade de ser útil (que conta o
mente meios, finalidades que cada um persegue a seu próprio modo: com o corolário custo) que prevalecia em sua mente. Seus artigos e seu apoio político salvaram Durham
de que, quanto mais variados esses modos, mais ricas se tornam as vidas dos homens, e seu Relatório, quando ambos corriam o IriSCO de serem derrotados pela combinação
quanto mais extensa a relação entre os indivíduos, maiores as oportunidades do novo e de adversários de esquerda e de direita, e com isso muito fizeram para assegurar o
do inesperado, quanto mais numerosas as possibilidades de alterar seu próprio caráter autogoverno na Comunidade Britânica. Ajudou a destruir a reputação do Governador
em alguma nova ou inexplorada direção, mais caminhos são abertos diante de cada ,Eyre, que havia perpetrado brutalidades na Jamaica, salvou o direito de reunião pú
indivíduo e mais ampla será a sua liberdade de ação e de pensamento. blica e de livre expressão em Hyde Park, contra um governo que desejava destruí-lo.
Em última análise, mesmo com as aparências em contrário, é isto o que, para Escreveu e defendeu a representação proporcional porque apenas isso, a seu ver,
mim, Mill se preocupou em dizer, mais do que qualquer outra coisa. Ele está ofi permitiria às minorias (não necessariamente virtuosas ou racionais) fazer ouvir sua voz.
cialmente comprometido com a busca exclusiva da felicidade. Acredita profundamente Quando, para surpresa dos radicais, ele se opôs à dissolução da Companhia das fndias
na justiça, mas a sua voz é mais a sua voz quando descreve as glórias da liberdade Orientais, para a qual, como seu pai havia feito, trabalhara tão devotadamente, fê-lo
individual ou quando denuncia o que parece impedi-la ou destruí-la. Bentham também, porque temia mais a mão do governo do que os regulamentos paternalistas e desu-
182 Isaiah Berlin Quatro Ensaios sobre a Liberdade 183
manos dos funcionários da Companhia. Por outro lado, não se opunha à intervenção Mill, de cair no que Bentham chamava de \>'aga generalidade", que nos leva a per
do Estado como tal, apoiava-a na educação e na legislação trabalhista por achar que guntar qual era de fato a verdadeira escala de valores de Mill conforme mostrada em
sem ela os mais fracos seriam escravizados e dizimados, e porque aumentaria a margem suas obras. Se sua vida ou as causas que defendia s[o alguma prova, então parece claro
de escolha para a grande maioria dos homens, mesmo que a limitasse para alguns. O que na vida pública os maiores valores para ele quer os chame, ou não, de "fins
que é comum a todas essas causas não é qualquer conexão direta que pudessem ter secundários" - eram a liberdade individual, a diversidade e a justiça. Se desafiados
com o princípio da "grande felicidade", mas sim o fato de que envolvem o tema dos sobre a diversidade, Mill a teria defendido sob a alegação de que, sem um grau su
direitos humanos - o que signif ica liberdade e tolerância. ficiente de diversidade, muitas (hoje completamente imprevisíveis) formas de felici
Naturalmente não pretendo sugerir que não havia tal conexão na mente de Mill . dade humana (satisfação, realização ou níveis mais elevados de 'vida, não importa a
Freqüentemente, ele parece defender a liberdade na base de que, sem ela, a verdade maneira que se use para determinar ou comparar esses graus) continuariam desco
não pode ser descoberta - não podemos realizar em pensamento ou na vida aquelas nhecidas, não tentadas ou irrealizada�' entre elas, vidas mais felizes que qualquer outra
jamais experimentada. Essa é sua tese, e ele preferiu chamá-la de utilitarismo. Mas, se
experiências que nos revelam novos e inimaginados modos de maximizar o prazer e
houvesse alguém disposto a argumentar que um dado arranjo social, real e atingível,
minimizar a dor - a única fonte última de valor. A liberdade, então, é válida como
portasse bastante felicidade - que com as limitações praticamente intransponíveis da
meio e não como fim. Mas, quando perguntamos a Mill o que quer dizer prazer ou
natureza do homem e seu meio-ambiente (como, por exemplo, a alta improbabilidade
felicidade, a resposta não é muito clara. O que quer que seja felicidade, para Mill, não é
de o homem tornar-se imortal ou de crescer tão alto quanto o Everest), seria mais
o mesmo que era para Bentham, pois sua concepção da natureza humana é muito
aconselhável concentrar-se no melhor que temos, já que a mudança levaria, como toda
estreita e inteiramente inadequada: ele não tem visão imaginativa da história, da so
probabilidade empírica, ao rebaixamento do nível de felicidade geral, e assim deveria
ciedade ou da psicologia do indivíduo; não compreende o que une, ou deveria unir, a
sociedade: idéias comuns, lealdades, caráter nacional; não tem consciência da honra, ser evitada; podemos estar seguros de que Mill teria rejeitado esse argumento. Ele
dignidade, cultura ou amor à beleza, ordem, poder, ação; ele compreende apenas os estava comprometido com a resposta: nunca podemos definir (até que tenhamos
aspectos "empresariais" da vida. São essas metas, que Mill certamente considera tentado) onde poderão ser encontradas a maior verdade ou a maior felicidade (ou
fundamentais, tantos meios para atingir um objetivo universal, que é a felicidade? Ou qualquer outra forma de experiência). Dessa forma, a finalidade é, em princípio,
são modalidades? MiIl nunca nos diz claramente. Ele diz que a felicidade ou capaci impossível: todas as soluções devem ser tentativas e provisórias. Esta é a palavra de um
dade de ser útil - é inútil como critério de conduta - destruindo com um só golpe a discípulo de Saint-Simon e Constant ou de Humboldt. Está diretamente oposta ao
mais orgulhosa pretensão e certamente a doutrina fundamental do sistema de utilitarismo tradicional - isto é, do século XVIII, que se baseava no princípio de que
Bentham. "Achamos" - diz em seu ensaio sobre Bentham (só publicado após a morte existe uma natureza inalterável das coisas e de que as respostas aos problemas sociais e
do pai) - "que a capacidade de ser útil ou felicidade é um fim muito complexo ou aos outros problemas podem, em princípio, ser definitiva e cientificamente encon
indefinido para buscar-se, a não ser através de vários fins secundários, a respeito dos tradas de uma vez por todas. Isso é que, apesar de seu medo pela democracia ignorante
quais pode haver, e geralmente há, consenso entre pessoas que divergem quanto aos e irracional e o conseqüente apelo em favor de um governo dos esclarecidos e dos
padrões finais". Isto é b�stante simples e defmido em Bentham, mas MiIl rejeita sua especialistas (e a insistência, no início e no final de sua vida, na importância dos
fórmula porque se baseia em falsa visão da natureza humana. Ela é "complexa e objetos de adoração comum e mesmo não-críticos) talvez tenha acabado com o seu
indefinida" em Mil! porque ele acrescenta muitos fms diversos (e nem sempre com saint-simonismo, que o dispôs contra Comte e preservou-o da tendência elitista de seus
patíveis) que os homens de fato buscam por si mesmos, e que Bentham havia ignorado discípulos fabianos.
ou classificado erroneamente sob o título de prazer: amor, ódio, desejo de justiça, de Havia um idealismo fabuloso e incalculável em seu espírito e em suas ações que
ação, de liberdade, de poder, de beleza, de conhecimento, de auto-sacrifício. era totalmente alheio à desapaixonada e penetrante ironia de Bentham, ou ao vaidoso e
Nas obras de J. S. Mil!, a felicidade passa a significar algo como "realização de teimoso racionalismo de James MiIl. Conta-nos ele que os métodos educacionais de seu
desejos pessoais", quaisquer que possam ser tais desejos. Isso estende seu significado ao pai o transformaram em uma máquina de calcular desidratada, não muito longe da
ponto da vacuidade. A letra pennanece, mas o espírito - a antiga e teimosa visão de imagem popular do desumano filósofo utilitarista; sua própria tomada de consciência
Bentham segundo a qual a felicidade, se não for um critério de ação claro e concreto, disso faz com que nos perguntemos se poderia ter sido totalmente verdadeiro. Apesar
da solene calvície, das roupas escuras, da expressão grave, das frases medidas, da total
não é nada, tão sem valor como o relâmpago intuitivo "transcendental" que devia
falta de humor, a vida de Mill é uma revolta incessante contra as opiniões e os ideais do
substituí-lo - o verdadeiro espírito utilitário - e que logo desapareceu. MiII, com
pai, e maior ainda por ser uma revolta sufocada e não-reconhecida.
efeito, acrescenta que "quando dois ou mais dos princípios secundários entram em
conflito, o apelo direto a algum primeiro princípio torna-se necessário"; tal princípio é Mill não possuía praticamente nenhum dom profético. Ao contrário de seus
a capacidade de ser útil, mas não dá indicação de como essa noção, desprovida de seu contemporâneos Marx, Burckhardt e Tocqueville, não tinha ele uma visão do que po
velho, mas inteligível conteúdo materialista, poderá ser aplicada. É essa tendência de deria trazer o século XX, nem das conseqüências políticas e sociais da industrialização,
18 4 Isaiah B erlin Quatro Ensaios sobre a liberdade 18 5
nem da descoberda da força dos fatores irracionais e inconscientes do comportamento bem e o mal e seria equivalente à moral coletiva e ao suicídio intelectual. Um respeito
humano, nem mesmo das técnicas aterrorizantes a que este conhecimento conduziu e cético pelas opiniões de nossos adversários parece-lhe melhor do que a indiferença e o
está conduzindo. A resultante transformação da sociedade - a ascensão das ideologias cinismo. Mas mesmo essas atitudes são menos nocivas do que a intolerância ou do que
seculares dominantes e a luta entre elas, o despertar da África e da ÁSia, a peculiar uma ortodoxia imposta que eliminem a discusslio racional. Essa é a crença de Mill ,
combinação entre nacionalismo e socialismo em nossos dias - escapou ao horizonte de crença que ganhou sua formulação clássica no folheto sobre a liberdade, que ele come
Mill. Mas, se ele não foi sensível aos contornos do futuro, foi agudamente consciente çou a escrever em 18 5 5 em colaboração com sua mulher, que, depois do pai, foi a figu
dos fatores destrutivos que atuavam em seu próprio tempo. Detestava e temia a padro ra dominante em sua vida. Até a sua morte, ele, Mill, acreditava que ela possuía um ta
nização. Percebeu que, em nome da fllantropia, da democracia e da igualdade, estava lento muito superior ao seu. Publicou o ensaio após a morte da mulher, em 18 59, sem
sendo criada uma sociedade em que os objetivos humanos eram fabricados artificial os aperfeiçoamentos que ele estava certo somente as altas qualificações que ela possuía
mente, eram mais estreitos e mais mesquinhos, e que a maioria dos homens estava sen poderiam impor ao texto. E é esse acontecimento que convido a celebrarmos na data
do convertida, para usar uma expresslio de seu prezado amigo Tocqueville, em mero de hoje.
"rebanho industrioso", em que, para usar suas próprias palavras, a "mediocridade cole
tiva" estrangulava gradativamente a originalidade e os dons individuais. Ele era contrá 11
rio ao que se chamava de "homem de organização", uma classe de pessoas quanto às
quais Bentham não teria, em princípio, nenhuma objeção racional. Mill conhecia, te Não vou abusar da paciência dos ouvintes apresentando-lhes um resumo das posi
mia e odiava a timidez, a fraqueza, o conformismo natural, a falta de interesse pelos ções de Mill. Gostaria de lembrar-lhes apenas algumas idéias relevantes, aquelas a que
problemas humanos. Este era um campo comum entre ele e seu amigo, seu suspeito e Mill atribuía maior importância - crenças que seus adversários atacavam durante sua
desleal amigo Thomas Carlyle. Acima de tudo, guardava-se ele contra os que, para se vida e atacam até mais veementemente no dias atuais. Essas propostas estão ainda lon
rem deixados em paz, a cuidar de seus jardins, estavam prontos para vender seu direito ge de se evidenciarem por si mesmas, o tempo nlio as transformou em lugares<omuns,
humano fundamental ao autogovemo nas esferas públicas da vida; essas características ainda hoje n[o são pressupostos incontestáveis de um ponto de vista civilizado. Vou
de nossa vida nos dias de hoje, ele as teria percebido com horror. Considerava como tentar falar sobre elas resumidamente:
certa e definitiva a solidariedade humana, talvez demasiadamente certa e definitiva. Os homens desejam reduzir as liberdades dos outros homens a) porque desejam
Não temia o isolamento de indivíduos ou grupos, os fatores que levam à alienaç[o e à impor seu próprio poder sobre os outros; b) porque desejam o conformismo - não
desintegraç[o dos indivíduos e da sociedade. Preocupava-se com os males opostos da querem pensar de modo diferente dos outros, nem querem que os outros pensem de
socializaçlio e da uniformidade3. Ansiava pela mais ampla diversidade da vida e do modo diferente deles, ou, frnalmente, c) porque acreditam que, à pergunta a respeito
caráter humano. Viu que isto nlio poderia ser obtido sem que se protegessem os indi da maneira como alguém d!lve viver, pode haver (como qualquer pergunta legítima)
víduos um do outro e, principalmente, do terrível peso da press[o social. Foi isso que uma e só uma resposta verdadeira; e pode-se chegar a essa resposta por meio da razão,
o levou aos insistentes e persistentes apelos em favor da tolerância. da intuição, da revelação direta, de uma forma de vida ou da "unificação entre teoria e
A tolerância, conforme nos disse o Professor Butterfield em sua conferência des prática"; sua importância pode ser descrita como uma dessas avenidas do conhecimen
ta mesma série, implica um certo desrespeito. Tolero as crenças absurdas e os atos to final: qualquer desvio constitui um erro que faz perigar a salvação humana, o que
tolos de alguém, embora eu os reconheça como absurdos e tolos. Acho que Mill estaria justifica a legislação contra (ou mesmo a extirpação) aqueles que se afastam da verda
de acordo com essa opini[o. Ele acreditava que manter uma opini[o com firmeza é de, quaisquer que sejam seu caráter ou suas intenções. Mill abandona as duas primeiras
lançar seus sentimentos dentro dessa opini[o. Certa vez, declarou4 que, quando nos motivações por considerá-las irracionais, já que põem em jogo qualquer apelo de base
preocupamos demais, devemos desprezar aqueles que se opõem a nós. Ele preferia isso intelectual e, por isso, não podem ser respondidas com argumentos racionais. A única
a temperamentos e opiniões frios. Pedia-nos que não nos sentíssemos obrigados a res motivação que está perparado para levar a sério é a última, isto é, que, se as verdadei
peitar os pontos de vista dos outros - longe disso! - apenas que tentássemos com ras finalidades da vida podem ser descobertas, os que se opõem a essas verdades estlio
preendê-los e tolerá-los. Apenas tolerar; reprovar, falar mal, se necessário caçoar e des espalhando falsidades perniciosas e devem ser reprimidos. A isso responde ele que os
prezar, mas tolerar. Porque, sem convicção, sem algum sentimento antipático, n[o have -homens não são infalíveis, que o ponto de vista supostamente pernicioso poderia ser
ria convicção profunda e, sem convicção profunda, não haveria frnalidade na vida, e verdadeiro, que os que mataram Sócrates e Cristo acreditavam sinceramente terem sido
assim o terrível abismo na borda do qual uma vez até ele esteve, nos engolfaria. Mas, eles provedores de males e falsidades, e eram homens tão dignos de respeito corno
sem tolerância, estariam destruídas as condições para a crítica racional, para a conde qualquer contemporâneo; que Marco Aurélio, "o mais nobre e o mais cavalheiresco dos
naç[o racional. Assim, ele apela para a razão e para a tolerância a qualquer custo. Com governantes", conhecido como o homem mais esclarecido de seu tempo e um dos mais
preender não é necessariamente perdoar. Podemos discutir, criticar, rejeitar, condenar insignes, no entanto autorizou a perseguição ao Cristianismo como um perigo moral e
com paixão e ódio. Mas n[o podemos proibir, nem reprimir, pois isso seria destruir o social, e que nenhum argumento usado por qualquer perseguidor nlio lhe fora igual-
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mente apresentado. Não podemos supor que a perseguiça'o nunca elimina a verdade. nhoso se suas idéias, talvez mais poderosas hoje em dia do que no próprio século de
"� um sentimentalismo vão" - observa Mill , - "que a verdade, meramente como ver Mill, tiverem que ser contestadas racionalmente. Mas pode-se dar que, em liberdade
dade, tenha qualquer poder inerente negado ao erro, ou prevalecente à fogueira ou à total de discussão, a verdade não pode emergir. No entanto, esta poderá ser apenas
cruz" 5. A perseguição apenas historicamente tem muitas conseqüências. "Para citar uma condição necessária, não uma condição suficiente, para sua descoberta; a verdade
somente opiniões religiosas: pelo menos vinte reformas eclodiram antes de Lutero, e poderá, apesar de todos os nossos esforços, permanecer no fundo do poço e, entre
foram reprimidas. Arnold de Brescia foi reprimido, Fra OoIeino foi reprimido, Savona mentes, a causa pior poderá vencer e causar enormes danos à humanidade. Será tão
rola foi reprimido. Os albigenses foram reprimidos, os valdenses foram reprimidos, os evidente que devemos permitir opiniões que defendam, por exemplo, que o ódio ra
101ardos foram reprimidos, os hussitas foram reprimidos. Na Espanha, Itália, Flandres, cial seja expresso livremente, porque Milton declarou que "embora todos os ventos da
Império Austríaco, o protestantismo foi erradicado, e muito provavelmente teria ocor doutrina sejam liberados sobre a terra... quem poderia ver a verdade colocada no seu
rido a mesma coisa na Inglaterra se Maria Stuart tivesse vivido e Elizateth tivesse morri pior momento em um encontro livre e aberto?" por que "a verdade deverá sempre pre
do ... Ninguém em seu raciocínio pode duvidar que o Cristianismo talvez tivesse sido valecer em um combate justo contra a falsidade?" São julgamentos corajosos e otimis
, tas, mas até que ponto lhes valerá de alguma coisa hoje em dia a comprovação empíri
extirpado no Império Romano, 6. E se contra isso se disser que, s6 porque erramos
no passado, seria covardia evitar combater o mal quando ele existe no presente no caso ca? Os demagogos e os mentirosos, os canalhas e os fanáticos serão coibidos no tempo
de estarmos de novo enganados, que, em outros termos, mesmo não sendo infalíveis, se e recusados no final? Será muito elevado o preço a pagar para se conseguir a liberdade
quisermos continuar vivos, devemos tomar decisões e agir, e devemos fazê-lo com base de debates? Muito elevado, sem dúvida; mas será ilimitado? Se não, quem poderá dizer
apenas na probabilidade, de acordo com nossos entendimentos, com constante risco de que o sacrifício é, ou não é, muito grande? Mill prossegue dizendo que uma opinião
erro, pois toda a vida envolve risco, que alternativa teremos? Mill responde que "Aí tida como falsa poderá ainda ser parcialmente verdadeira, pois não há verdade absolu
está a maior diferença entre presumir que uma opinião é verdadeira porque, com todas ta, apenas diferentes caminhos para atingi-la; a supressão de uma falsidade aparente
as oportunidades para contestá-la, ela não foi contestada, e pressupor sua verdade com pode também suprimir o que há de verdade nela e toda a humanidade sairá perdendo.
o propósito de não permitir _que �ja contestada"7. Pode-se efetivar impedir "que os Esse raciocínio também n[o será aceito por aqueles que acreditam que a verdade abso
homens maus pervertam a sociedade com pontos de vista falsos ou perniciosos"s, luta possa ser descoberta de uma vez por todas, seja por argumentos metafísicos ou
mas apenas se se outorgar aos homens a liberdade de negar que o que nós mesmos cha teológicos, ou por alguma interpretação direta, ou por conduzir a algum tipo de vida,
manos de mau e de pernicioso, de pervertido e de falso, o é realmente; pois, caso con ou, como os próprio mentores de Mill acreditavam, por métodos científicos ou empí
trário, a nossa convicção se teria baseado simplesmente no dogma e não seria racional, ricos.
não poderia ser analisada nem alterada à luz de qualquer novo fato ou de qualquer Seu raciocínio é plausível apenas no sentido em que, soubesse ou não, Mill o
nova idéia. Sem infalibilidade, como pode a verdade emergir a salvo das discussões? interpretou muito obviamente, ou seja, que o conhecimento humano em princípio
Não há, a prif'ri, nenhum caminho que leve a isso; uma nova experiência ou um novo nunca é completo e é sempre falível, que não há uma verdade única e universalmente
argumento poderão sempre, em princípio, alterar nossas opiniões, por mais bem sus visível, que cada homem, cada nação, cada civilizaç[o poderia tomar seu próprio cami
tentadas que sejam. Fechat possibilidades é negar-se deliberadamente ã verdade, é con nho para seu próprio objetivo, caminho que n[o se harmonizaria necessariamente com
denar-se ao erro incorrigível. os dos outros, que os homens se modificam, assim como se modificam as verdades em
Mill possuía um cérebro firme e sutil e seus argumentos nunca podem ser deixa que eles acreditam, mediante novas experiências e mediante suas pr6prias ações - o
dos em segundo plano. No caso, é claro que a sua conclusão apenas resulta de premis que ele chama de "experiências de vida" ; e, conseqüentemente, a convicção, comum
sas que ele n:Io deixa explícitas. Tratava-se de um empírico, isto é, acreditava que as aos aristotélicos e a muitos escolásticos crist:ros e mesmo a materialistas ateus, de que
verdades não são, ou não podem ser, racionalmente estabelecidas, exceto com a prova existe uma natureza humana básica cognoscível, uma e a mesma em todas as épocas,
da observação. Novas observações, em princípio, poderiam sempre prejudicar a con em todos os lugares, em todos os homens - uma substância estática e imutável debaixo
clusão baseada nas anteriores. Ele julgava que, se essa regra era verdadeira para as leis das aparências cambiantes, com necessidades permanentes, ditadas por uma meta única
da física, e mesmo para as leis da 16gica e da matemática, muito mais lógica, portanto, e discernível, ou um padrão de metas, o mesmo para toda a humanidade - essa convic
seria para os campos "ideológicos", onde nenhuma certeza científica prevalecia - em ção é errônea; da mesma forma, a noção que a ela está ligada, de uma única doutrina
ética, política, religião, história, todos os campos de assuntos humanos onde apenas a verdadeira, guia de salvação para todos os homens em todos os lugares, contida no di
probabilidade predomina; aqui, a não ser que seja permitida liberdade total de opinião reito natural, ou a revelação de um livro sagrado, ou a visão de um homem de gênio,
e de expressão, nada pode ser racionalmente estabelecido. Mas os que descordam e ou a sabedoria natural dos homens comuns, ou os cálculos feitos por uma elite de cien
acreditam em verdades intuídas, que, em princípio, não podem ser corrigidas pela tistas utilitaristas que decidem governar a humanidade.
experiência, não considerarão o argumento. Mill pode classificá-los como obscurantis Mill - corajosamente para um utilitarista assumido - observa que as ciências hu
tas, dogmáticos, irracionalistas. Mas é necessário algo mais que o mem repúdio desde- mans (quer dizer, sociais) são muito confusas e inseguras para serem chamadas de ciên-
188 lsaiah Berlin Quatro Ensaios sobre a Liberdade 189
cias - não há nelas generalizações válidas nem leis e, por conseguinte, nenhuma predi premissas nada existe de ilógico. Se essa permissas que Mill rejeita e, a meu ver, rejeita
ção ou norma de ação podem �las ser devidamente deduzidas_ Honrou a memória de n[o como o resultado de uma corrente de raciocínio, mas porque acredita· - mesmo
seu pai, cuja ftlosofia se baseava inteiramente no pressuposto contrário; respeitou que, pelo que sei, nunca o admita explicitamente - que nlfo há verdades fmais que não
Augusto Comte e forneceu subsídios para Herbert Spencer, sendo que ambos reivindi possam ser corrigidas pela experiência, pelo menos no que hoje em dia é conhecido
cavam ter lançado as fundações de exatamente uma ciência da sociedade. No entanto, como ésfera ideológica - a de juízos de valor e de visão geral e atitude perante a vida.
sua própria impressão semi-articulada contradiz isso. Mill acredita que o homem é Mas nesse quadro de idéias e vaiares, apesar de toda a pressão sobre o vaIor das "expe
espontâneo, que tem a liberdade de escolha, que molda seu próprio caráter, que, como ri�ncias de vida", e do que podem revelar, Mill está pronto para reforçar a verdade de
resultado da interação dos homens com a natureza e os outros homens, algo de novo suas convicções acerca daquilo que ele julga os mais profundos e permanentes interes
surge continuamente, e essa novidade é precisamente o que é mais característico e maIS ses dos homens. Embora seus motivos provenham da experiência e nllo de um conheci
humano no homem. Porque a visão compeita de Mill a respeito da natureza humana mento apriorístico, as próprias proposições são muito semelhantes às defendidas em
acaba por recair não no conceito de repetição de um modelo idêntico, mas na sua per termos metafísicos pelos tradicionais defensores da doutrina dos direitos naturais. Mill
cepçlfo de vidas humanas como sujeitas a um perpétuo nlfo-acabamento, autotransfor acredita na liberdade, isto é, na rígida limitação do direito de coagir, porque está segu
maçli'o e originalidade, suas palavras continuam ainda hoje vivas e pertinentes aos nos ro de que os homens não se podem desenvolver e florescer, não podem tornar-se com
sos problemas, enquanto que a obra de James Mill de Buck1e, de Com te e de Spencer
, pletamente humanos, se não estiverem livres da interferência de outros homens em
permanecem como restos de navio no mar do pensamento do século XIX. Ele nli'o uma determinada (e mínima) área de suas vidas, que ele considera - ou deseja tornar
exige nem prediz condições ideais para a solução final de problemas humanos ou para - inviolável. Esta é a sua visão do que são os homens e, portanto, de suas. necessidades
a obtençlfo da concordância universal em todos os assuntos cruciais. Ele assume que o básicas morais e intelectuais, e ele formula suas conclusões em máximas célebres, se
finalisrno é impossível e deixa implícito que também é indesejável. Não demonstra gundo as quais "o indivíduo n[o é responsável por suas ações perante a sociedade,
isto, pois o rigor nlfo é um dos dotes de seu raciocínio. Mas é essa crença, que solapa as desde que essas ações só se relacionem com os interesses de sua própria pessoa"l3 e
fundações sobre as quais Helvétius, Bentham e James Mill construíram suas doutrinas "O único motivo pelo qual o poder pode ser corretamente exercido sobre qualquer
- um sistema que ele nunca repudiou formalmente - é essa crença que lhe confere membro de uma comunidade civilizada contra sua vontade é impedir que se cause mal
plausibilidade e humanidade. aos outros. Seu próprio bem, físico ou moral, não é uma garantia suficiente. Ele n[o
Os argumentos remanescentes slfo ainda mais frágeis. Declara ele que, se nlfo pode ser compelido a fazer ou suportar ... porque na opinião dos outros fazer isto nlfo
contestada, a verdade irá degenerar em dogmas ou preconceitos; os homens n[o mais a seria sábio nem mesmo correto"l4. Essa é a profiss[o de fé de Mill e a base ulterior
sentiriam como verdade viva, é necessário que haja oposição para manter viva a verda do liberalismo político e, portanto, o próprio alvo de ataque - em termos psicológicos
de. "Tanto os professores quanto os estudantes vão repousar em suas guaritas assim e morais (e sociais) - usado, pelos adversários de Mill durante sua época e mesmo de
que os inimigos desaparecem ao longe", vencidos que estilo pelo "profundo sono de pois. Carlyle reagiu com fúna característica em uma carta a seu irmllo Alexander: "Co-
,
uma opiniilo defmitiva ,9. Mill acreditava nisso com tanta firmeza, que declarou que, mo se fosse um pecado controlar ou coagir, com o fim de atingir melhores métodos, os
se não houvesse contestadores genuínos, teríamos a obrigaç[o de inventar argumentos
porcos humanos . . Ach Gott in Himme/!"l5
.
contra nós mesmos, para que nos mantivéssemos em estado de prontid[o intelectual .
Críticos mais sóbrios e mais racionais não deixaram de realçar que os limites dos
Isso se assemelha a nada menos que a opinillo de Hegel sobre a necessidade da guerra domínios privado e público são de difícil remarcação; que tudo o que um homem faz
para evitar a estagnação da sociedade humana. Mas, se a verdade sobre os assuntos pode, em princípio, frustrar a outros; que nenhum homem é uma ilha; que n[o se po
humanos em princípio pudesse ser demonstrada, como ocorre na matemática, pratica dem desenredar, na prática, os aspectos sociais e individuais dos seres humanos de mo
mente nlfo se faria necessária a invenç1to de falsas proposições para serem derrotadas pa do geral. Mill ouviu que, quando os homens criticam formas de adoração nas quais
ra preservar nossa compreens[o dessa verdade. O que Mill parece estar procurando é a outros homens persistem, não como meramente "abomináveis" em si mesmas, mas co
diversidade de opinião por si mesma. Ele faia da necessidade de "jogo limpo em todos mo uma ofensa a eles ou a seu Deus, podem estar sendo irracionais e fanáticos, mas
os lados da verdade"lO, expresslfo que um homem dificilmente empregaria se acredi
não estlfo necessariamente mentindo; e que, quando pergunta retoricamente por que
tasse em verdades simples e completas como acontecia com os utilitaristas; e ele se utiliza os muçulmanos não deveriam proibir a todos comer carne de porco já que isso lhes é
de argumentos deficientes para esconder seu cetismo, talvez até de si mesmo. "Em, um
autenticamente repulsivo, a resposta, em premissas utilitaristas, é sempre evidente. Po
estado imperfeito de mente humana" -diz ele, - "os interesses da verdade requerem uma der-se-ia argumentar que não há uma razão a prior; para se supor que a maioria dos
diversidade de opiniões"lJ. Ou, ainda, "Aceitamos realmente a lógica dos persegui homens não seria mais feliz - se é esta a meta - em um mundo totalmente sociali
dores, (e afirmamos que) podemos perseguir os outros porque estamos certos, e eles zado onde a vida privada e a liberdade pessoal estão reduzidas a um ponto evanes
,,
n[o nos podem perseguir porque estão errados? 12. Católicos, protestantes, judeus cente, do que na ordem individualista preconizada por Mill; e que, verdadeiro ou nli'o,
e muçulmanos justificaram a perseguição com esse argumento, em sua época, e em suas trata-se de fato para verificação experimentai. Mill com freqüência protesta contra o
190 Isaiah Berlin
Q uatro Ensaios sobre a Liberdade 191
fato de que as regras sociais e legais são na maior parte das vezes determinadas pelo
se ar-se na noção d e uma meta final e claramente discemível, porque via que o s homens
"gostar ou desgostar da sociedade" , e mostra de forma correta que essas normas são
diferiam e se desenvolviam, n[o apenas como resultado de causas naturais, mas tam
em muito irracionais ou se baseiam na ignorância. Mas, se o dano aos outros homens
bém pelo que eles mesmos faziam para alterar seus próprios caracteres, muitas vezes sem
é o que mais o preocupa (como professa), então o fato de que a resistência desses ho
intenção. S6 isso torna sua conduta imprevisível e produz leis ou teorias, inspiradas por
mens a esta ou aquela crença seja instintiva, intuitiva ou baseada em algo não racional,
analogias com mecanismos ou com a biologia, mas incapacitadas para abarcar a com
não a torna menos penosa e, por extens[o , menos danosa a eles. Por que teriam os
plexidade e as propriedades qualitativas até de um caráter individual, quanto mais de
homens racionais mais direito à satisfaç[o de suas metas que os irracionais? Por que
um grupo de homens. Assim, o fato de impor-se tal interpretaç[o a uma sociedade viva
não os irracionais, se a maior felicidade para o maior número (e o maior número rara
está fadada, em suas palavras favoritas de advertência, a enanizar, diminuir , encolher, e
mente é racional) é o único propósito j ustificado da ação? Somente um psicólogo so
enrugar as faculdades humanas.
cial competente poderá apontar o que tornará mais feliz uma determinada sociedad e .
Esta convicçao foi responsável por sua maior ruptura com o pai : por sua crença
Se a felicidade é o único critério, o sacrifício humano ou a queima de feiticeiras, em
(nunca explicitamente admitida) em que condições particulares requeriam, cada uma,
épocas em que tais práticas tinham significativo apoio popular , realmente, a seu modo,
tratamento específico; em que a aplicação do diagnóstico correto, ao curar uma doen
contribuíram para a felicidade da maioria. Se n[o há outro critério moral, a questão
ça social, significava pelo menos tanto quanto o conhecimento das leis de anatomia ou
de se a matança de velhas inocentes (juntamente com a ignorância e o preconceito
de farmacologia. Ele era um empirista britânico , n[o um racionalista francês ou um
que tornaram o fato aceitável) ou o avanço em conhecimento e racionalidade (que
metafísico alemão, sensível aos fatos cotidianos das circunstâncias, às diferenças de
acabou com tais abominações, mas roubou aos homens ilusões reconfortantes) - se
"clima" , bem como à natureza individual de cada caso, como n[o o eram Helvetius,
algum desses fatos proporcionou um maior equihb rio de felicidade , é apenas assunto
Saint-Simon ou Fichter, que se interessavam pelas grandes Iignes do desenvolvimento.
para cálculo notarial. Mill n[o ligava para tais considerações: nada poderia chocar-se
Daí, sua ansiedade incessante, tão grande quanto a de Torqueville, maior que a de
mais violentamente com o que ele sentia e em que acreditava. No centro do pensamen
Montesquieu, para preservar a variedade, abrir as portas para a mudança, para resis
to e do sentimento de Mill está, não o seu utilitarismo, nem a preocupação com o
tir aos perigos da pressão social e , acima de tud o , a seu ódio contra a malta humana a
esclarecimento, nem a divisão entre os domínios público e privado - pois ele mesmo
gritar contra a vítima, seu desejo de proteger os dissidentes e os heréticos. O �e total
reconhece que, às vezes, o Estado pode invadir o domínio privado, para promover a �
.
de sua carga contra os "progressistas" (com esse tenno ele se refere aos utilttanstas e
higiene, a educação , a previdência social e a j ustiça -, o que está no centro de seu pen
talvez aos socialistas) é que, regra geral, eles apenas tentam alterar a opinião social para
samento é a crença apaixonada de que os homens se tornam humanos por sua capaci
torná-la mais favorável a este ou aquele esquema ou refonna, ao invés de investir con
dade de escollia - tanto do bem quanto do mal. A falibilidade, o direito de errar, co
tra o próprio princípio monstruoso segundo o qual a opinião social "deveria ser uma
mo corolário da capacidade de auto-aperfeiçoamento , o desprezo à simetria e ao fana
lei para os indivíduos"17.
tismo como inimigos da liberdade - são esses os princípios que Mill nunca abandona.
O desejo poderoso de Mill pela variedade e pela individualidade por si pró rias
Ele está cieJ1te, de maneira bem aguda, das muitas faces da verdade e da irredutível �
aflui de muitas fonnas. Ele observa que "a Humanidade é constituída pelos méUores
complexidade da vida, que descarta qualquer possibilidade de soluções simples ou a
vencedores por impingir a cada um viver como melhor lhe parece, do que por compelir
idéia de uma resposta final para qualquer problema concreto . Muito corajosamente, e
cada um a viver como parece mellior para o resto"18, um truísmo - declara ele -
sem considerar o sóbrio puritanismo intelectual em que foi educado, ele prega a neces
que "pennanece oposto à tendência geral da opinião e da prática existentes". Em ou
sidade do entendimento e da obtenção de esclarecimentos de doutrinas que são incom
tras ocasiões, fala de maneira mais cortante. Acentua que "é habito de nossa época n[o
patíveis entre si - como , por exemplo , as de Coleridge e Bentham : ele explicou em sua
desejar nada ardentemente. O ideal de caráter de nossa época é n[o ter nenhum caráter
autobiografia a necessidade de compreender e aprender de ambos l 6•
marcado, é diminuir por compressão , como o pé de uma dama chinesa, toda parte da
natureza humana que sobressaia - e que tenda a tornar a pessoa bem dessemelhante no
1II
confronto com os outros seres humanos normais" 19. E prossegue : "A grandeza da
Kant certa vez observou que, "da matéria-prima d e feituosa da humanidade, nun
Inglaterra agora é toda coletiva; individualmente pequenos, só parecemos apaze� e
�
�
algo grandioso através de combinações, e com isso nossos filantropos moréUS e religIO
ca se produziu nada de bom". Mill acreditava nisso . Isto e a sua desconfiança quase
sos estão perfeitamente satisfeitos. Mas foram homens de outra estirpe que fizeram da
Hegeliana de modelos simples e fórmulas fáceis para cobrir situações complexas, con
Inglaterra o que ela é, e homens de outra estirpe ser[o necessários para evitar o seu de
traditórias e cambiantes, tornaram-no um adepto muito hesitante e inseguro de parti
cl ínio, , 20. O tom dessa declaração, se n[o o seu conteúdo, teria chocado Bentham,
dos e programas organizados. Apesar das teses defendidas por seu pai, apesar d a fé
como tamb ém ocorreria com a seguinte e amarga declaração de Tocqueville : "Falando
apaixonada da Senhora Taylor na solução final de todos os males sociais através de
em tennos comparativos, eles agora lêem as mesmas coisas, ouvem as mesmas coisas,
alguma grande mudança institucional (no seu caso , a do socialismo), ele nllo podia ba-
vêem as mesmas coisas, vão aos mesmos lugares, têm suas esperanças e temores dirigi-
Quatro Ensaios sobre a Liberdade 193
192 lsaiah Berlin
isto , como o próprio Tocqueville sustentara (talvez sem muita convicçlIo) é mais demo
dos aos mesmos objetos, têm os mesmos direitos e liberdades e os mesmos meios de
cracia25 , que só ela pode educar um número suficiente de indivíduos para a inde
assegurá-los ... Todas as mudanças políticas da época promovem isso , já que tendem a
pendência, a resistência e a força. A disposiçlIo do homem para impor seus pontos de
levantar o baixo e a abaixar o alto. Cada ampliaçlIo da educação promoveu-o, porque
vista aos outros é tão forte que, para Mill , somente a restringe o desejo do poder; este
a educação levou as pessoas a sofrerem influências comuns. O aperfeiçoamento dos
poder está crescendo e, por isso, se outras barreiras nlIo for�m erigidas, ele cres erá
meios de comunicação promove-o ... o incremento do comércio e da indústria promo �
.
ainda mais, levando a uma proliferação de "conformistas, acólitos, subservientes, hipó
ve-o ... A ascendência da opinião publica ... forma uma massa tão grande de influência ,
critas, criados pela opinião que se impõe, 26 e, fInalmente, a uma sociedade onde a
hostil à individualidade21, (que) nesta época o simples exemplo de nlIo-conformis timidez terá eliminado o pensamento independente, e os homens se tertro confinado à
mo, a mera recusa em curvar a cabeça ao costume, tudo isso constitui atos que em si
posição de súditos tranqüilos.
mesmos representam um serviço,,22. Chegamos a um tal ponto, que as diferenças,
Mas, se levantamos as barreiras muito alto e não interferimos na opinilIo, isto não
a resistência pela própria resistência, o protesto como tal, agora são o bastante. O con
terminará, como advertiram Burke e os hegelianos, na dissolução da textura social, na
formismo e a intolerância (que é o seu braço ofensivo e defensivo) sa-o para Mill sempre atomizaçlIo da sociedade - na anarquia? Mill responde que "a inconveniência que sur
detestáveis e sobretudo aterrorizantes numa época que se considera iluminada, na qual,
ge da conduta que nlIo viola o dever específIco para com o público, nem fere a u de
no entanto, um homem pode ser mandado para a prisão por vinte e um meses por �
terminado indivíduo, pode ser suportada pela humanidade em troca do bem maIOr da
ateísmo ; recusam-se jurados e nega-se justiça a estrangeiros porque nlIo abraçam cren ,,
liberdade humana 27 . Isso equivale a dizer que, se a própria sociedaQe, apesar da
ças religiosas reconhecidas; não se oferecem verbas públicas à escolas hindus ou muçul
necessidade de coesão social, falhou ao educar seus cidadtros para serem homens civili
manas em virtude de uma "demonstração de imbecilidade" de um sub-secretário, ao
zados, não tem o direito de puni-los por perturbarem os outros, por serem desajusta
declarar que a tolerância só é desejável entre cristãos, nlIo para os descrentes. E nlIo é
,, dos ou por não se conformarem com o padrão aceito pela maioria . Talvez se pudesse
melhor quando os trabalhadores empregam a "polícia moral 23 para evitar que criar uma sociedade harmoniosa e equânime, ao menos por um certo tempo , mas seu
alguns membros do sindicato tenham salários maiores, merecidos em razão de sua habi preço seria muito elevado. Platão observou corretamente que, para que possa surgir
lidade superior, que os salários pagos a quem não dispõe desses atributos. Essa conduta
é ainda mais abjeta quando interfere nas relações privadas entre indivíduos. Declarou
uma sociedade sem atritos, os poetas têm que ser expulsos; o que �orroriza aqueles que
se revoltam contra essa atitude nlIo é tanto a expulsão dos poetas sedentos de fantasia,
ele que "o que qualquer pessoa pode fazer com respeito às relações sexuais" deveria ser mas o desejo subjacente de pôr um fIm à diversidade, ao movimento, à individualidade
considerado como sem importância e como um assunto da esfera puramente privada, c!e qualquer tipo, uma obsessão por um modelo fIxo de vida e de pensamento, sem tempo ,
que só diz respeito à pessoa; que atribuir responsabilidade de uma pessoa à outra, e ao sem mudança e uniforme. Sem o direito de protesto e sem a faculdade de protestar,
mundo, pelo próprio fato (exceto quando a eventuais conseqüências, como o nasci pàra Mill não há justiça, n:Io'há fIns que valham a busca. "Se toda a humanidade menos
mento de fIlhos, o que evidentemente cria deveres, e estes deveres devem vigir social
um tivesse uma só opinião, e uma só pessoa fosse de opiniãO contrária, a humanidade
mente) seria um dia considerado como uma das superstições e barbaridades da raça hu
não teria justillcativa para tentar silenciar essa pessoa e, da mesma maneira, se essa
mana. O mesmo lhe parecia aplicar-se à vigência da temperança ou à observaça'o do
pessoa tivesse poder para isso , não teria justifIcativa para tentar silenciar a huma
Sabbath, ou qualquer assunto em relaçlIo ao qual "membros importunamente religio ,,
, nidade 28.
sos da sociedade deveriam receber ordens no sentido de cuidarem apenas de sua vida, 24
Na conferência que pronunciou hesta série, ã qual já me referi anteriormente,
Sem dúvida as intrigas a que Mill se expôs em virtude de seu relacionamento com
Sir Richard Livingstone, cuja simpatia para com Mill não se põe em dúvida, critica-o
� Senhorã Taylor antes de casar-se com ela - relacionamento que Carlyle ironizou co
por atribuir demasiada racionalidade aos seres humanos : o ideal da liberdade sem freios
mo platônico - tornaram-no particularmente sensíveis a essa forma de perseguiçlIo so
pode ser o direito dos que atingiram a maturidade de suas faculdades, mas seria isto
cial. Mas isso constitui uma de suas mais profundas e mais permanentes convicções.
verdade com relação a quantos homens hoje ou em quase todas as épocas? Será que
A vaga noçlIo que Mill tinha a respeito da democracia como a única forma de go
Mill pede demais e é excessivamente otimista? Certamente há um sentido importante
verno justa, porém potencialmente mais opressiva, deriva das mesmas raízes. Conster
a respeito do qual Sir Richard tem rezão : Mill não era profeta. Muitos avanços sociais
nado, ele se perguntava se a centralização da autoridade e a inevitável dependência de
causaram-lhe preocupação, mas ele nlIo teve vislumbre do crescente poder das forças
cada um a todos e a "vigilância de cada um por todos" não iriam acabar por reduzir
irracionais que moldaram a história do século XX. Burckhardt, Marx, Pareto e Freud
todos a "uma uniformidade domesticada de pensamento, relações e ações" e produzir
foram mais sensíveis às correntes mais profundas de seus tempos, e viram com bem
"autômatos em forma humana" e "liberticidas". Tocqueville escrevera de modo pessi
mais acuidade as molas do comportamento individual e social. Mas não disponho de
mista sobre os efeitos morais e intelectuais da democracia na América. Mill concordara provas de que Mill tenha superestimado a iluminaçlIo de seu tempo ou que tenha ima
com ele. AfIrma que, mesmo que esse poder na'o destruísse, evitaria a existência; ele
ginado que a maioria dos homens de sua época se constituía de indivíduos maduros e
comprimia, enervava, extinguia e estupidifIcava um povo , tornando-o um rebanho de
racionais, ou que, em breve, se tornariam maduros e racionais. O que ele de fato obser-
"animais tímidos e industriosos dos quais o governo é o pastor". Mas a única cura para
1 94 Isaiah Berlin Quatro Ensaios sobre a Liberdade 195
vou foi o espetáculo de alguns homens, civilizados segundo qualquer padrã'o, que fica
neo, facetado, destemido, livre , mas inda assim racional e autogovernado. Mill observa
ram por baixo, foram discriminados ou perseguidos pelos preconceitos, pela estupidez que os europeus devem muito à "pluralidade de caminhos". A tolerância, a diversidade
ou pela "mediocridade coletiva" ; ele viu esses homens desprovidos do que considerava e a humanidade são simples resultado das diferenças e discordâncias. Em repentina
como seus direitos essenciais, e protestou . Acreditava que todo progresso humano, to explosão de sentimento anti-igualitário , ele elogia a Idade Média porque os homens
da grandeza, virtude e liberdade humanas dependiam principalmente da preservaçã'o eram mais indivudualistas e mais responsáveis: os homens morriam por idéias e as mu
desses homens e da preparação dos caminhos à frente deles. Mas não queria que se tor lheres eram iguais aos homens. "A pobre Idade Média, seu Papado, o cavalheirismo, o
nassem29 conhecidos como "guardiães platônicos". Achava que outros como eles feudalismo , sob que mãos morreram? Sob as mãos do advogado , da bancarrota fraudu
poderiam ser educados e, quando fossem educados, estariam preparados para realizar ,,
lenta, do moedeiro falso 30 . Esta é a linguagem nlfo de um fIlósofo radical, mas a de
escolhas, e essas escolhas não deveriam, dentro de certos limites, ser bloqueadas ou di Burke, Carlyle ou Chesterton . Em sua paixã'o pela textura e �la cor da vida, Mill esque
rigidas por outros. Não defendia apenas a educação deixando de lado a liberdade para
ceu sua lista de mártires, os ensinamentos de seu pai, de Bentham ou de Condorcet.
a qual dirigiria os educados (como o fizeram os comunistas), nem pressionava em favor
Lembra-se apenas de Coleridge , apenas dos horrores de uma sociedade de classe-média
da total liberdade de escolha, esquecendo que, sem educação adequada, todos seriam
nivelada, a congregação cinzenta e conformista que adora o princípio maldoso segundo
levados ao caos e, como reaçã'o, a uma nova escravidão (como o fizeram os anarquis
o qual "é direito social absoluto de cada indivíduo que todo outro indivíduo deva agir
tas). Mill reivindicava a ambas. Mas nã'o achava que esse processo seria rápido, fácil ou
em qualquer assunto exatamente como ele próprio"31 , ou, pior ainda, "é dever de
universal ; era ele, em conjunto, um homem pessimista e , conseqüentemente , a um só
um homem que o outro deva ser religioso", porque "Deus não só abomina os atos do
tempo, defendia a democracia e desconfiava dela, pelo que foi devidamente atacado e
descrente, mas nos considerará culpados se os deixarmos sem castigo" 32 . Esses sã'o
ainda é duramente criticado. Sir Richard observou que Mill tinha plena consciência das
os resquícios da Inglaterra vitoriana, e se esta é a concepção da justiça social dessa
circunstâncias de sua época, e não viu mais além. A meu ver, este representa um co
época, é melhor que seja eliminada. Em um momento anterior e similar de aguda indig
mentário justo. A doença da Inglaterra vitoriana era a claustrofobia - havia um senti
nação com as defesas autodeterminadas da exploração dos pobres, Mill expressou seu
mento de sufocação e os melhores e mais bem dotados homens do período, Mill e
entusiasmo para com a revoluçã'o e o assassinato, já que a justiça é mais preciosa que a
Carlyle, Nietzsche e Ibsen, homens da direita e da esquerda, gritavam por mais ar e
vida. Ele tinha vinte e cinco anos quando escreveu isso . Vinte e cinco anos mais tarde,
mais luz. A neurose de massa de nossa época é a agorafobia; os homens estiro aterrori
declarou que era melhor que sucumbisse uma civilização que não possuía força interior
zados pela desintegração e por tão pouca orientaçã'o : eles imploram, como os homens
para resistir ao barbarism033 . Pode não ser a opinião de Kant, mas não é tampouco
sem mestre de Hobbes no estado natural, por muralhas que barrem o oceano enraive
a do utilitarismo, embora talvez sej a a de Rousseau ou de Mazzini.
cido, imploram por ordem, segurança, organizaçã'o , autoridade definida e reconhecida,
Mas Mill raramente continua com esse tom. Sua solução não é revolucionária. Se
e estã'o alarmados com a perspectiva de demasiada liberdade , que os deixa perdidos em
a vida humana deve ser tornada tolerável, a informaçã'o deve ser centralizada e o
um vácuo imenso e inamistoso, em um deserto sem trilhas, marcas ou pontos de che
poder disseminado. Se todos sabem o máximo possível, e não têm muito poder, então
gada. Nossa situação é diferente da do século XIX, assim como nossos problemas: a área
ainda podemos evitar um estado que "transforma seus homens em anões" e no qual
da irracionalidade parece milis extensa e mais complexa do que Mill poderia imaginar.
"há uma norma absoluta originária da mente do executivo e que recai sobre a concre
A psicologia de Mill tornou-se antiquada e fica mais velha a cada nova descoberta. Ele ,,
gação de indivíduos isolados, todos iguais, mas todos escravos 34 . Com homens me
é justamente criticado por cuidar apenas dos obstáculos espirituais ao uso proveitoso ,,
díocres, "não se podem realizar grandes tarefas 35 . Há um grande perigo em credos
da liberdade - falta de luzes morais e intelectuais, atendo-se muito pouco (mas não
e formas de vida que "comprimem" , "substituem" e "diminuem" os homens. A perspi
como dizem seus detratores à pobreza, à doença e suas causas e às fontes comuns e à
caz conscientização, em nossa época, do efeito desumanizador da cultura de massa, da
interação de ambas, além de concentrar-se muito estritamente na liberdade de pensa
destruição dos propósitos genuínos, individuais e comunitários pelo tratamento dispen
mento e de expressão . Tudo isto é verdade. Mas, que soluções encontramos, com todo
sado aos homens como criaturas irracionais a serem enganadas e manipuladas pelos
nosso conhecimento tecnológico e psicológico e novos e grandes poderes, exceto a an
meios de propaganda e pela comunicação de massa - e tão alienadas dos fundamentos
tiga prescrição advogada pelos criadores do humanismo, Erasmo e Spinoza, Locke e
básicos dos seres humanos por serem expostas ao jogo das forças da natureza intera
Montesquieu, Lessing e Diderot - razão , educação, autoconhecimento , reponsabilida
gindo com a ignorância humana, vício, estupidez, tradição e sobretudo auto-embuste
de, sobretudo auto conhecimento? Que outra esperança há para o homem, ou já houve
e cegueira institucional - tudo isto foi devida e penosamente sentido por Mill , como
para o homem?
por Ruskin e William Morris. Nesse assunto, ele difere dos outros apenas na conscien
tização mais nítida do dilema criado pelas necessidades simultâneas da auto-expressão
IV
individual e da comunidade humana. Sobre esse tema foi composto o Ensaio sobre a
o ideal de Mill não é original. E uma tentativa de fusão do racio nalismo e do Liberdade. "Deve-se temer" - acrescenta Mil!, - "que os ensinamentos (do seu ensaio)
romantismo : o objetivo de Goethe e de Wilhelm Humboldt, um caráter rico. espontâ- retenham seu valor por muito tempo".
196 lsaiah Berlin Quatro Ensaios sobre a Liberdade 197
Creio ter sido Bertrand Russell - aftlhado de Mill - que observou, em algum Buckle, e mesmo Carlyle e Ruskin - ftguras que muito representaram ef!l sua gera
escrito, que as mais profundas convicções dos f1lósofos raramente estão contidas em ção - estão voltando para as sombras do passado (ou sendo por elas engolidos), Mill
seus argumentos formais : cren�as fundamentais e visões abrangentes da vida sA'o como perrnanesse real.
cidadelas que devem ser protegidas do inimigo . Os f1lósofos gastam seu poder inte Um dos sintomas desse tipo de qualidade autêntica, completa, tridimensional,
lectual em argumentos contra as objeções reais e possíveis a suas doutrinas, e embora é estarmos seguros de saber dizer qual teria sido sua opinião com respeito aos temas
as razões que descobrem e a lógica que usam possam ser complexas, engenhosas e im de hoje. Poderá alguém duvidar de qual teria sido a sua posiçA'o no Caso Dreyfus, ou
portantes, constituem armas defensivas; a fortaleza interior - a visão da vida, a razão na Guerra dos BoeIS, ou quanto ao fascismo e o cumunismo? Ou, ainda, quanto a
de a guerra estar sendo travada - se mostrará, como regra, relativamente simples e Munique, Suez, Budapeste ou o apartheid, o colonialismo ou o Relatório Wolfenden?
sem sofisticação. A defesa que Mill faz de sua posição no Ensaio sobre a Liberdade não Poderemos estar tão seguros no que concerne a outros moralistas vitorianos? Carlyle,
é, como tem sido apontado, da mais alta qualidade intelectual : a maioria de seus argu Ruskin ou Dickens? Ou mesmo Kingsley, Wilberforce ou Newman? Claro que isto,
mentos pode ser usada contra ele; certamente nenhum é conclusivo ou capaz de con por si só, é uma prova da permanência dos temas de que Mill tratou e do grau de sua
vencer a algum adversário determinado. Desde a época de James Stephen, cuja crítica visA'o em relaçA'o a eltls.
às posições de Mill foi publicada no ano de sua morte, até os conservadores, socialistas,
autoritários e totalitaristas de nossos dias, os críticos de Mill em geral, excederam ao
, v
número de seus defensores. Mas a cidadela interior - a tese central - passou pela
prova. Pode precisar de elaboração ou aperfeiçoamento, mas ainda é a mais clara, mais Mill é em geral representado como um professor vitoriano, justo e altaneiro, hon
pura, mais persuasiva e mais comovente exposiçA'o do ponto de vista daqueles que dese rado, sensível, humano, mas "sóbrio, crítico e tristonho;" um pouco de ganso, um
jam uma sociedade aberta e tolerante. A razão disso nA'o é apenas a honestidade do tanto de gato, um homem nobre e bom, mas frio, sentencioso e seco; um boneco de
pensamento de Mill nem o encanto moral e intelectual de sua prosa, mas o fato de que cera entre outros bonecos de cera, de uma época já morta, passada e enrijecida com
ele diz algo verdadeiro e importante sobre algumas das características e aspirações fun tantas efígies iguais. Sua autobiografta, um dos mais emocionantes relatos da vida hu
damentais dos seres humanos. Mill nA'o produz implesmente uma corrente de propostas mana, modifica a impressA'o anterior. Mill certamente era um intelectual, e muito côns
claras (cada uma, vista por si só, é de plausibilidade duvidosa) conectadas entre si por cio e sem pejo desse fato. Reconhecia que seu interesse principal repousava nas idéias
elos lógicos que ele mesmo fornece. Ele percebeu algo de profundo e de essencial no gerais, em uma sociedade muito desconftada delas : "Os ingleses" - escreveu ele para
efeito destrutivo dos maiores esforços do homem em direção ao auto-aperfeiçoamento seu amigo d'Eichthal, - "invariavelmente desconftam das verdades mais evidentes se
na sociedade noderna; nas conseqüências imprevisíveis da democracia moderna, na aquele que as propõe é suspeito de ter idéias gerais". Excitava-se com as idéias e as
falácia e nos perigos práticos das teorias pelas quais algumas das piores dessas conse queria as mais interessantes ROssível. Admirava os franceses por respeitarem os intelec
qüências foram (e ainda sA'o) defendidas. Por isso, e apesar da fraqueza da argumenta tuais, como não faziam os ingleses. Observou que havia muita conversa na Inglaterra
ção, dos fms não muito delineados, dos exemplos datados, do toque de acabamento sobre a atividade intelectual no país, mas permaneceu cético. Perguntava-se se "a nossa
desgovernado que Disraeli tão maliciosamente observou, apesar da falta total daquela atividade intelectual não seria uma atividade sobre nA'o necessitar do intelecto, suprin
audácia de concepção que só os homens de gênio original possuem, seu ensaio educou do a nossa deftciência em gigantes pelo esforço reunido da multidão de anões em cons
sua geração, e ainda é controverso. As proposições básicas de Mill não são truísmos, tante crescimento". A palavra "anões" � o medo à pequenez invadem todos os seus
não são nunca evidentes. São declarações de uma posição que foi contestada e rejeitada escritos.
pelos descendentes modernos de seus mais notáveis contemporâneos, Marx, Carlyle, Por acreditar na importância das idéias, estava preparado para mudar, caso
Dostoiewsky, Newman, Comte, e são ainda atacadas porque sA'o ainda contemporâ outros pudessem convencê-lo da inadequação das suas ou quando obtinha uma nova
neas. O "Ensaio sobre a Liberdade" trata de temas sociais específtcos em termos de revelação, como através de Coleridge ou de Saint-Simon, ou, como acreditava, pelo
exemplos tirados de matéria genuína e desconcertante daquela época, e seus princí gênio transcendente da Senhora Taylor . Gostava de críticas. Detestava adulações e
pios e conslusões estA'o em parte vivos porque emanam de agudas crises morais da até louvores a seu trabalho. Atacava o dogmatismo nos outros e estava verdadeiramen
vida de um homem e em seguida de uma vida consumida no trabalho por causas te livre dele. Apesar dos esforços de seu pai e de seus mentores, reteve uma mente inu
concretas, tomando decisões genuínas e muitas vezes perigosas. Mill enfrentava as sitadamente aberta e sua "calma e fria aparência" alia-se (para citar seu amigo Stirling)
,,
questões que o intrigavam diretamente e não através de óculos presenteados por uma "cabeça que raciocina como funciona uma grande máquina a vapor 36 e a uma
qualquer ortodoxia. Sua revolta contra a educação promovida pelo pai, seu bravo "alma quente, escorreita e realmente arejada", além de uma emocionante e pura dispo
avocar dos valores de Coleridge e dos românticos foi o ato libertador que espatifou nibilidade para sempre aprender com qualquer um, a qualquer momento. NA'o tinha
esses óculos no chão. Dessas meias-verdades ele também se libertou, tornando-se um vaidade e pouco ligava para sua reputação e, portanto, nA'o se apegava à coerência por
pensador com peso próprio. Por essa razA'o, enquanto Spencer e Cornte, Taine e si própria, nem a sua própria dignidade pessoal, se o que estava em jogo era alguma
Q uatro Ensaios sobre a Liberdade 199
I
198 Isaiah Berlin
Por possuir uma mente excepcionalmente honesta, aberta e civilizada, que en
questão hu
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na. Era leal a movimentos, causas e partidos, mas n[o se deixava manipu
controu expressão natural em prosa lúcida e admirável; por combinar uma incansável
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lar para a Ola-l s ao preço de dizer o que n[o considerasse verdadeiro. Um exemplo
busca da verdade com a crença de que era uma casa com muitos quartos, de tal modo
.
caractenshco disto é a sua atitude em relação à religião . Seu pai educou-o segundo o
que mesmo "homens vesgos como Bentham podiam ver o que homens de visão normal
mais restrito e estrito dogma ateu. Ele revoltou-se. Não abraçou nenhuma fé reconheci ,
não podiam ,37; porque, apesar de suas emoções inibidas e seu intelecto superdesen
da, mas não desprezou a religão , como fizeram os enciclopedistas franceses e os ben
volvido, apesar de seu caráter desprovido de humor, cerebral e solene, sua concepção
thamistas, como se fosse um tecido de fantasias e emoções infantis, de ilusões recon
do homem era mais profunda, sua vislro da história e da vida mais ampla e menos sim
fortantes, murmúrios místicos e mentiras deliberadas. Achava que a existência de Deus
ples que a de seus antecessores utilitaristas e seguidores liberais; por tudo isso , sobres
era possível, até provável, mas não comprovada , e que, se Deus era bom, n[o podia ser
saiu como um pensador político maior em nossos próprios dias. Rompeu com o mo
onipotente, já que permitia a existência do mal. Não queria preocupar-se com um ser
delo pseudocientífico, herdado do mundo clássico e da Idade da Razlfo , de uma natu
ao �esmo tempo bom e onipotente cuja natureza desafiava os cânones da lógica huma reza humana determinada, provida em todos os tempos e lugares das mesmas e inal
na, Já que re �u�ava a crença em mistérios por considerá-la mera tentativa de escapar
teráveis razões, emoções e necessidades, respondendo diferentemente apenas a dife
aos te� s agorucos. Se ele nlro entendia (o que deve ter acontecido com freqüência),
renças de situações e de estímulo ou desenvolvendo-se segundo algum modelo inalte
não fmgta entender. Embora estivesse preparado para lutar pelo direito dos outros de
rável. A isto ele substituiu (nem sempre conscientemente) a imagem do homem como
terem urna fé desligada da lógica, ele a rejeitava para si. Reverenciava a Cristo como o
criativo, incapaz de completar-se a si mesmo e por isso nunca totalmente previsível :
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lho� omem ue já existiu e considerava o teísmo como um nobre, porém para ele
falível, complexa combinação de opostos, alguns conciliáveis, outros incapazes de
lTUnteliglvel conjunto de crenças. Considerava possível a imortalidade, mas classificava
serem resolvidos ou harmonizados; impossibilitado de interromper sua busca da verda
a muito b�xo na tebela de probabilidades. Era, de fato, um agnóstico vitoriano que
de, da felicidade, do novo, do livre, mas sem segurança teológica, lógica ou científica
_ se sentIa à vontade com o ateísmo e considerava a religilro como algo de foro
nao
de ser capaz de atingi-las: um ser em liberdade, imperfeito, capaz de determinar seu
exclusivamente individual. Quando foi convidado a concorrer a uma cadeira no Parla
próprio destino em circunstâncias favoráveis do desenvolvimento de sua razão e de
mento, e foi devidamente eleito, declarou estar preparado para responder a qualquer
seus dons. Foi atormentado pela questão do livre arbítrio, n[o tendo encontrado solu
pergunta que os eleitores de Westminster quisessem colocar, exceto aquelas relaciona
ção, como todas as pessoas, embora algumas vezes tenha pensado tê-la resolvido . Acre
das com suas opiniões em matéria de religião . Não se tratava de covardia , seu compor
ditava não serem o pensamento racional ou o domínio da natureza, mas sim a liberda
tamento n curso das eleições foi tão sincero e tão imprudentemente destemido, que al
� de de escolher e de experimentar, o que distingue os homens do resto da natureza; de
guém até disse que mesmo Deus Todo-Poderoso não podia esperar ser eleito se fIZesse uso
todas as suas idéias, esta é que assegurou a sua fama duradoura38• Por liberdade,
da plataforma de Mill . Seu raciocínio era o de que o oomem, tem um direito inalienável de
compreendia uma condição pela qual não se proibia aos homens escolher o objeto e a
preservar sua vida privada e de lutar por esse direito , se necessário. Quando, muito maneira de sua adoração. Para ele, apenas uma sociedade em que esta condiçlro se con
te�po depoi�, sua enteada Helen Taylor e outros chamaram-lhe a atenção por n[o se cretizasse poderia ser chamada de completamente humana.
.
alinhar maIS firmemente com os ateus, acusando-o de contemporizar e de titubear ele
Ninguém merece mais a homenagem deste Conselho que Mill , pois que foi criado
não se �hocou. Suas dúvidas eram de sua propriedade: ninguém estava capacita o a d para servir a um ideal que ele prezava como mais precioso que a vida mesma .
extorqUir dele uma confissão de fé , a não ser que seu silêncio pudesse prejudicar a
outros; desde que isso não poderia ser alegado, não via motivos para com prometer-se
publicame nte. Como Acton mais tarde, Mill considerava a liberdade e a tolerância reli
giosa co �o a proteção indispensável de toda verdadeira religião , e a distinção feita
� � .
�
pela I re a � ntre os po eres temporais e espirituais como uma das maiores realizações
. .
�
�o Cnstlarusmo, pnnclpa mente porque possibilitava a liberdade de opini[o . A esta
última ele val ? nzava maIS que tudo. tendo defendido Bradlaugh apaixonadamente,
embora (e por ISSO) não concordasse com suas opiniões.
_ �oi o pr� fessor de uma geração. de uma nação . e não mais que um professor;
nao fOi um cnador nem um renovador. Não é conhecido por nenhuma descoberta
ou invenção durado ra. Não foi responsável por avanços significa t i vos na lógica , na
�
filosofia, na economia ou no pensamento politico . No entanto, u seu alcance e a sua
capa �idade de aplicar idéias em campos onde poderiam ser proveitosas foram inesti
máveIS. Não foi original, mas transformou a estrutura do conhecimento humano de
sua época.
Notas
(1) Esta Conferência, pronunciada durante o "Robert Waley Cohen Memorial" no Salão de Con
ferências, County Ha11, Londres, a 2 de dezembro de 1 959, foi publicada pela primeira vez pelo
"Council of ChristÚlns and Jews " (Conselho de Cristãos e Judeus), Kingsway Chambers, 162 a
Strand, Londres, W.C.2, no mesmo ano.
(2) Extraído de um tributo a John Stuart Mill, por James Bam, citado no complexo e interes-
sante Life ofJohn Stuart Mill, de Michael St. John Packe, pág. 54 .
(3) Mill não parecia considerar o socialismo, doutrina que, sob a influência da Senhora Taylor,
defendeu em Politicol Economy e, posteriormente, como um JlCIi80 à liberdade individual, do mes
mo modo que a democracia, por exemplo, poderia ser. Não cabe aqui examinar a relação muito pe
culiar entre as convicções socialistas e individualistas de MilL Apesar de suas citações socialistas,
nenhum dos üderes socialistas da época - Louis Blanc, Proudhon, Lassalle ou Herzen - para não
falar de Marx - parece tê-lo considerado até mesmo como um companheiro de viagem. Para eles,
Mill era a total corporüicação de um tranqüilo liberal reformista ou de um radical bwgês. Apenas
os fabianos declararam-no seu antecessor.
( 3) Liberty, pág. 1 1 5 .
(15) New Letters of Thomas Carlyle, (ed. A. Carlyle), voL 11, pág. 1 96 .
202 Isaiah Berlin Quatro Ensaios sobre a Liberdade 203
( 1 6) E nos ensaios sobre Coleridge e Bentham. algumas garantias contra os vícios da democtacia irrefreada, simplesmente esperando que, de qual
quer modo, enquanto a ignorância e a irracionalidade ainda estivessem difundidas tele não era
mU ito otimista quanta à taxa de crescimento da educação), a autoridade tenderia a ser exercida
(17) Liberty, pág. 1 3 .
pelas pessoas mais racionais, justas e bem informadas da comunidade. No entanto, uma coisa é
dizer que M ill era nervoso quanto às maiorias, e outra acusá-lo de tendências autoritárias de favore
( 1 8) Liberty, pág. 1 8. '
Cimento do governo de uma elite racional, não importa o que os fabianos tenham tirado dele como
mspuação. Ele não era responsável pelas opiniões de seus discípulo s. especialmente dos que não
( 1 9 , 20) Liberty, pág. 86.
c colheu c nem conhecia. M ill é o último homem a ser acusado de defender aquilo que Bakunin,
por ocaslção de uma crítica a Marx, descreveu como a "pedantocracia", o governo dos professores,
(21) Liberty, págs. 90- 9 l .
o que ele considerava uma das mais opressivas de todas as COMIas de despotismo.
(26) O que, de qualquer modo, ele considerava como inevitável e, talvez, num enfoque mais
amplo que a do seu próprio tempo, porém mais justo e mais generoso.
(30) Essa é a linha que o separa de Saint-Simon e Comte, e de H. G. Wells e dos tecnocratas.
(37) E prossegue: "Quasi:! todos os ricos veios da especulação original e extraordinária têm sido
abertos por meio-pensadores sistemáticos". Essay on Bentham.
(38) Observar-se-á pelo teor geral deste ensaio que não estou de acordo com aqueles que desejam
representar Mill como favorecedor de algum tipo de hegemonia de intelectuais de direita. Não vejo
de que forma isso pode ser considerado como a conclusão de Mill : não apenas em vista das conside
rações que apresentei, mas também de suas próprias advertências contrl!- o despotismo comteano, o
qual contemplava precisamente tal hierarquia. Ao mesmo tempo , ele era, em comum com muitos
outros liberais do século XiX, na I nglaterra e em outros países, não apenas hostil à influência do
tradicionalismo não criticado ou ao poder da inércia, mas também mostrava-se apreensivo quanto
à regra da maioria democrática deseducada, e, conseqüentemente, tentou inserir no seu sistema