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Sumário

1.0 PSICOLOGIA SOCIAL .................................................................................................. 5


1.1 Impacto da ciência na interação social ................................................................... 7
1.2 Viés Prescritivo da Teoria Psicológica .................................................................... 8
1.3 Teoria psicológica e mudança cultural .................................................................. 19
1.4 Implicações para uma ciência histórica do comportamento social ................... 23
2.0 PSICOLOGIA SOCIAL NO BRASIL ............................................................................... 31
2.1 Uma (breve) história da Psicologia Social no Brasil................................................. 32
2.2 A diversidade da Psicologia Social brasileira ............................................................ 37
2.2.1 A análise institucional ............................................................................................ 37
2.2.2 A Psicologia Sócio-Histórica ................................................................................. 39
2.2.3 A Teoria das Representações Sociais ................................................................ 41
2.2.4 Abordagens construcionistas................................................................................ 43
3.0 PSICOLOGIA SOCIAL E DISCIPLNAS AFINS ............................................................ 46
4.0 ABORDAGENS DA PSICOLOGIA SOCIAL E SEU ENSINO .................................... 51
4.1 Ciências naturais, ciências sociais e a Psicologia Social....................................... 56
4.2 As principais "tradições" da Psicologia Social ......................................................... 60
4.3 A "crise" da Psicologia Social: abordagens latino-americanas .............................. 65
4.4 Outras abordagens em Psicologia Social no Brasil ................................................. 71
5.0 IDENTIDADE NO CONTEXTO ORGANIZACIONAL ................................................... 73
5.1 Identidade Pessoal ........................................................................................................ 74
5.2 Identidade Social ........................................................................................................... 77
5.3 Identidade no Trabalho ................................................................................................. 82
5.4 Identidade Organizacional ............................................................................................ 87
5.5 Distinção e Integração entre os Níveis de Análise ................................................... 92
5.6 Implicações para estudos organizacionais ................................................................ 94
6.0 O PAPEL DAS INSTITUIÇÕES NO DESENVOLVIMENTO....................................... 97
6.1 A influência das leis no meio social .......................................................................... 101
7.0 PSICOLOGIA INSTITUCIONAL .................................................................................... 112
7.1 A Psicologia Institucional de Bleger: uma visão Psicanalítica .............................. 116
7.2 A análise institucional de Lapassade: uma intervenção política .......................... 117
7.3 O Psicólogo e as Instituições ..................................................................................... 121
8.0 PERSEPÇÃO SOCIAL.................................................................................................... 123
8.1 A dimensão social da percepção .............................................................................. 127

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8.2 A atenção conjunta ...................................................................................................... 130
8.3 Princípios teóricos de interpretação da atenção conjunta..................................... 133
9.0 IDEOLOGIA E ALIENAÇÃO .......................................................................................... 137
9.1 Ideologia ............................................................................................................................ 137
9.1.1 Para que serve a ideologia? ............................................................................... 142
9.1.2 Tipos de ideologia ................................................................................................ 144
9.2 Alienação Social........................................................................................................... 145
10.0 A PSICOLOGIA SOCIAL E O PAPEL DO PSICÓLOGO NA SOCIEDADE
CONTEMPORÂNEA .............................................................................................................. 147
11.0 O PROCESSO DE SOCIALIZAÇÃO .......................................................................... 150
11.1 O indivíduo: ser social ............................................................................................... 150
11.2 Cultura ......................................................................................................................... 152
11.3 Agentes socializadores do processo de socialização .......................................... 154
11.4 Papéis sociais ............................................................................................................ 156
11.5 Identidade social e consciência de si mesmo .................................................... 158
12.0 PROCESSO DE SOCIALIZAÇÃO, GRUPOS E PAPÉIS SOCIAIS ...................... 162
13.0 PSICOLOGIA COMUNITÁRIA .................................................................................... 164
14.0 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA FAMÍLIA E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA ........ 168
14.1 O conceito de família enquanto sistema ................................................................ 171
14.2 A estrutura familiar dinâmica ................................................................................... 175
14.3 Os diferentes tipos de fronteiras familiares ........................................................... 177
14.4 A família e as mudanças ao longo do ciclo vital ................................................... 179
15.0 VIOLÊNCIA FAMILIAR: CONCEITUAÇÃO E CARACTERÍSTICAS DE SUA
SUSTENTAÇÃO ..................................................................................................................... 183
15.1 Os tipos de violência com crianças e idosos......................................................... 185
15.2 O psicólogo lidando com questões de violência familiar ..................................... 189
15.2.1 Genograma.......................................................................................................... 194
15.2.2 Mapa de redes .................................................................................................... 198
16.0 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER .................................................... 202
16.1 Caracterização da violência ..................................................................................... 204
16.2 Gênero e Violência. ................................................................................................... 206
16.3 Os tipos de violência ................................................................................................. 208
16.3.1 Física .................................................................................................................... 210
16.3.2 Psicológica .......................................................................................................... 210
16.3.3 Sexual .................................................................................................................. 211
16.3.4 Patrimonial........................................................................................................... 212
16.3.5 Moral..................................................................................................................... 212
16.4 Fatores Determinantes que Levam as Mulheres a se Sujeitarem a Violência. 213

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16.5 Consequências Trazidas Para as Vítimas............................................................. 214
16.6 Perfil do agressor....................................................................................................... 216
16.7 Violência conjugal contra o homem ........................................................................ 218
16.8 O papel do psicólogo com as vítimas de violência doméstica ........................... 222
REFERÊNCIA: ........................................................................................................................ 232

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1.0 PSICOLOGIA SOCIAL

A psicologia é usualmente definida como ciência do comportamento humano


e a psicologia social como aquele ramo dessa ciência que lida com a interação
humana. Um dos maiores propósitos da ciência é o estabelecimento de leis
gerais por meio da observação sistemática. Para o psicólogo social, tais leis
gerais são desenvolvidas a fim de descrever e explicar a interação social. Essa
visão tradicional da lei científica repete-se de uma ou outra forma em quase
todas as pesquisas fundamentais do campo. Em sua discussão sobre o papel da
explicação nas ciências do comportamento, DiRenzo (1966) apontou que uma
"explicação completa" nas ciências comportamentais "é aquela que assumiu o
estatuto invariável de lei" (p. 11). Krech, Crutchfield e Ballachey (1962)
declararam que "enquanto estivermos interessados em psicologia social como
uma ciência básica ou como uma ciência aplicada, um conjunto de princípios
científicos é essencial" (p. 3). Jones e Gerard (1967) propagaram esta visão: "a
Ciência busca compreender os fatores responsáveis por relações estáveis entre
eventos" (p. 42). Como Mills (1969) colocou, "psicólogos sociais querem

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descobrir relações causais que permitam estabelecer princípios básicos que
explicarão o fenômeno da psicologia social" (p. 412).

Esta visão da psicologia é, certamente, descendente direta do pensamento


setecentista. Em um tempo em que as ciências físicas produziram contribuições
notáveis ao conhecimento, poder-se-ia ver com grande otimismo a possibilidade
de aplicação do método científico ao comportamento humano (Carr, 1963). Se
princípios gerais do comportamento pudessem ser estabelecidos, talvez fosse
possível eliminar os conflitos sociais, dar um fim aos problemas de doença
mental e criar condições sociais em máximo benefício dos membros da
sociedade. Como outros esperaram outrora, poderia mesmo ser possível dar a
tais princípios uma forma matemática, desenvolver "uma matemática do
comportamento humano tão precisa quanto a matemática das máquinas"
(Russell, 1956, p. 142).

O notável sucesso das ciências naturais em estabelecer princípios gerais


pode ser atribuído em grande medida à estabilidade geral dos eventos no mundo
da natureza. A velocidade da queda dos corpos ou a combinação dos elementos
químicos, por exemplo, são eventos altamente estáveis ao longo do tempo. São
eventos que podem ser recriados em qualquer laboratório, 50 anos atrás, hoje,
ou 100 anos depois. Porque são tão estáveis, largas generalizações podem ser
estabelecidas com muita confiança, explicações podem ser empiricamente
testadas e formulações matemáticas podem ser desenvolvidas com êxito. Se os
eventos fossem instáveis, se a velocidade da queda dos corpos ou a composição
dos elementos químicos estivesse em fluxo contínuo, o desenvolvimento das
ciências naturais estaria drasticamente impedido. Leis gerais não apareceriam,
e o registro de eventos naturais destinar-se-ia principalmente à análise histórica.

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Se os eventos naturais fossem caprichosos, a ciência natural seria amplamente
substituída pela história natural.

1.1 Impacto da ciência na interação social

Tal como Back (1963) mostrou, a ciência social pode proveitosamente ser
vista como um extenso sistema de comunicações. Na execução da pesquisa, os
cientistas recebem mensagens transmitidas pelo sujeito do experimento. Em sua
forma crua, tais mensagens geram apenas "ruído" para o cientista. Teorias
científicas servem como dispositivo decodificador que converte o barulho em
informação útil. Embora Back tenha usado esse modelo de várias maneiras
instigantes, sua análise termina no ponto da decodificação. Esse modelo precisa
ser estendido além do processo de coleta e decodificação das mensagens. A
tarefa do cientista é também aquela do comunicador. Se suas teorias provam ser
dispositivos úteis de decodificação, elas são comunicadas à população a fim de
que ela possa beneficiar-se de sua utilidade. Ciência e sociedade
retroalimentam-se.

Esse tipo de relação do cientista com a sociedade expandiu-se


progressivamente durante a última década. Canais de comunicação
desenvolveram-se rapidamente. No nível da educação superior, mais de oito
milhões de estudantes anualmente deparam-se com cursos oferecidos no
domínio da psicologia, ofertas que se tornaram, nos últimos anos, insuperáveis
em popularidade. A educação liberal de hoje exige familiaridade com as ideias
centrais da psicologia. Os veículos de comunicação de massa vêm também
satisfazer o vasto público interessado em psicologia. A imprensa monitora

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cuidadosamente os encontros profissionais tanto quanto os periódicos da
profissão. Editoras acharam rentável apresentar a visão dos psicólogos sobre os
padrões contemporâneos de comportamento, e revistas quase exclusivamente
voltadas à psicologia ostentam hoje um total de mais de 600.000 leitores.
Quando acrescentamos a essas marcas a ostensiva expansão do mercado de
brochuras, a crescente demanda governamental por conhecimento justificando
o investimento público na pesquisa psicológica, a proliferação de encontros
técnicos, o estabelecimento de empreendimentos comerciais vendendo
psicologia através de jogos e pôsteres, e a crescente confiança das grandes
instituições (comerciais, governamentais, militares e sociais) depositada na
competência de seus cientistas comportamentais; começa-se então a sentir a
força do laço pelo qual os psicólogos encontram-se vinculados, em mútua
comunicação, à cultura que lhes envolve.

A maioria dos psicólogos sustenta o desejo de que o conhecimento


psicológico irá causar algum impacto na sociedade. Muitos de nós nos sentimos
gratificados quando tal conhecimento pode ser utilizado para fins benéficos. De
fato, para muitos psicólogos sociais, o comprometimento com o campo depende
em grande medida da crença na utilidade social do conhecimento científico.
Contudo, não se assume corriqueiramente que tal utilização alterará o caráter
das relações causais da interação social. Esperamos sim que o conhecimento
do funcionamento seja utilizado na alteração de comportamentos, mas não
esperamos que uma tal utilização afete o caráter subsequente do próprio
funcionamento. Nossas expectativas, nesse caso, podem ser bastante
infundadas. Não apenas a aplicação de nossos princípios pode alterar o dado
sobre o qual eles estão baseados, como o próprio desenvolvimento dos
princípios pode vir a invalidá-los. Três linhas de argumentação são pertinentes:
a primeira é derivada do viés avaliativo da pesquisa psicológica; a segunda, dos
efeitos libertadores do conhecimento; a terceira, da importância dos valores
prevalecentes na cultura.

1.2 Viés Prescritivo da Teoria Psicológica

Como cientistas da interação humana, estamos engajados numa


dualidade peculiar. Por um lado, cientificamente, avaliamos
desinteressadamente o comportamento. Estamos bem avisados dos efeitos

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enviesadores de intensos compromissos normativos. Por outro lado, como seres
humanos socializados, nós sustentamos inúmeros valores acerca da natureza
das relações sociais. Raro o psicólogo social em que seus valores não
influenciam o tema de sua pesquisa, seus métodos de observação, ou mesmo
os termos de sua descrição. Na geração de conhecimento sobre a interação
social, comunicamos também nossos valores pessoais. O receptor do
conhecimento provê-se assim de duas classes de mensagens: mensagens que
desinteressadamente descrevem o que parece ser, e aquelas que
sutilmente prescrevem o que é desejável.

Este argumento é mais evidente nas pesquisas sobre disposições


pessoais. A maioria de nós sentir-se-ia insultado se fosse caracterizado como
possuindo baixa autoestima ou alto grau de busca de aprovação, cognitivamente
indiferenciado, autoritário, compulsivo anal, dependente do campo, ou de
mentalidade fechada. Em parte, nossas relações refletem nossa aculturação.
Não é preciso ser psicólogo para ofender-se por tais rótulos. Mas, igualmente
em parte, tais reações são criadas pelos conceitos utilizados na descrição e
explicação de fenômenos. Por exemplo, no prefácio a The Authoritarian
Personality (Adorno, Frenkel-Brunswik, Levinson & Sanford, 1950), os leitores
são informados de que "em contraste com o intolerante de antigamente, (o
autoritário) parece combinar as ideias e as habilidades de uma sociedade
altamente industrializada a crenças irracionais e antirracionais" (p. 3). Discutindo
a personalidade maquiavélica, Christie e Geis (1970) notaram que

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Inicialmente, nossa imagem dos maquiavélicos foi negativa,
associada a manipulações sombrias e desagradáveis. Entretanto ...
encontramo-nos nós mesmos diante de uma admiração perversa pela
habilidade daqueles para ultrapassar os outros em situações
experimentais (p. 339).

Em sua capacidade prescritiva, tais comunicações tornam-se agentes de


mudança social. Num nível elementar, o estudante de psicologia poderia
certamente desejar excluir da observação pública comportamentos rotulados
pelos respeitados acadêmicos como autoritários, maquiavélicos e assim por
diante. A comunicação do conhecimento pode, dessa maneira, homogeneizar os
indicadores comportamentais de disposições subjacentes. Num nível mais
complexo, o conhecimento dos correlatos da personalidade pode induzir o
comportamento a suprimir os correlatos. Não é estranho que muitas pesquisas
sobre diferenças individuais coloquem os psicólogos profissionais em alta conta.
Assim, mais os sujeitos assemelham-se aos profissionais - em termos de
educação, condição econômica, religião, raça, sexo e valores pessoais -, mais
vantajosas suas posições em exames psicológicos. Elevada educação, por
exemplo, favorece diferenciação cognitiva (Witkin, Dyk, Faterson, Goodenough
& Karp, 1962), baixo grau de autoritarismo (Christie & Jahoda, 1954),
mentalidade aberta (Rokeach, 1960) etc. Munidos dessas informações, aquelas
pessoas depreciadas pela pesquisa poderiam contrabalancear a fim de evadir-
se do estereótipo ofensivo. Por exemplo, mulheres que aprenderam que são
mais persuasíveis que homens (cf. Janis & Field, 1959) podem retaliar, e, ao
longo do tempo, a correlação é invalidada ou revertida.

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Embora vieses avaliativos sejam facilmente identificados em pesquisas
sobre personalidade, eles não estão de modo algum limitados a esta área. A
maioria dos modelos de interação social também contém juízos de valor
implícitos. Por exemplo, pesquisas sobre conformidade frequentemente tratam
o conformado como um cidadão de segunda categoria, uma ovelha social que
abre mão de convicções pessoais em troca das opiniões errôneas dos outros.
Assim, modelos de conformidade social sensibilizam-no a fatores que poderiam
levá-lo a ações sociais deploráveis. Com efeito, o conhecimento protege contra
a eficácia futura destes mesmos fatores. Pesquisas sobre mudança de atitude
frequentemente levam a essas mesmas implicações. Saber sobre a mudança de
atitude estimula a crer que se tem o poder de mudar os outros.
Consequentemente, outros são relegados ao status de manipuláveis. Assim,
teorias de mudança de atitude poderiam sensibilizar em direção à proteção
contra fatores que poderiam potencialmente influenciá-lo. Do mesmo modo,
teorias de agressão usualmente condenam o agressor, modelos de negociação
interpessoal desaprovam a espoliação e modelos de desenvolvimento moral
depreciam aqueles abaixo do estágio ótimo (Kohnlberg, 1970). A teoria da
dissonância cognitiva (Brehm & Cohen, 1966; Festinger, 1957) podia parecer
neutra, porém a maioria dos estudos nesta área tem apresentado o redutor de
dissonância em termos nada elogiosos. "Quão estúpido", dizemos, "que as
pessoas tenham que trapacear, tirar notas baixas em exames, mudar suas
opiniões sobre os outros, ou mesmo comer alimentos indesejáveis, apenas para
manter a consistência".

A observação crítica subjacente a estas notas não é inadvertida. Parece


infeliz que uma profissão dedicada ao desenvolvimento objetivo e imparcial do
conhecimento devesse usar esta posição para fazer propaganda àqueles que
inocentemente recebem esse mesmo conhecimento. Os conceitos do campo
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são raramente desprovidos de valor, e muitos poderiam ser substituídos por
conceitos de uma carga valorativa bastante diferente. Brown (1965) indicou o
fato interessante de que a personalidade autoritária clássica, tão temida em
nossa própria literatura, era bastante similar à "personalidade tipo-J" (Jaensch,
1938), em alta conta entre os alemães. Aquilo que nossa literatura nomeou
rigidez foi visto por eles como estabilidade; flexibilidade e individualismo na
nossa literatura foram vistos como falta de firmeza e excentricidade. Tais
rotulações enviesadas percorrem nossa literatura. Por exemplo, elevada alta-
estima poderia ser nomeada egoísmo; necessidade de aprovação social poderia
ser traduzida por necessidade de integração social; diferenciação cognitiva como
perfeccionismo; criatividade como desvio; controle interno como egocentrismo.
Do mesmo modo, se nossos valores fossem outros, conformidade social poderia
ser vista como comportamento solidário; mudança de atitude como adaptação
cognitiva; e o desvio em direção ao risco como uma conversão corajosa.

Ainda assim, mesmo que os efeitos de disseminação da terminologia


psicológica precisem ser lamentados, é importante traçar suas fontes. Em parte,
a carga valorativa dos termos teóricos parece bastante intencional. O ato de
tornar público implica o desejo de ser ouvido. Entretanto, termos neutros têm
pouco valor para o leitor potencial, e a pesquisa não-valorativa rapidamente
torna-se obscura. Se obediência fosse renomeada para comportamento alfa e
não fosse tornada deplorável a partir de associações com Adolph Eichman, o
interesse público seria indubitavelmente menor. Além de angariar o interesse do
público e da profissão, conceitos carregados de valor provêem também um
considerável meio de expressão para os psicólogos. Conversei com inúmeros
estudantes graduados que se voltaram para a psicologia como decorrência de
profundas preocupações humanísticas. Dentre muitos se encontra um poeta
frustrado, filósofo ou humanitário que vê, no método científico, simultaneamente,
um meio para expressar seus valores e um obstáculo à livre expressão. Triste é
o fato aparente de que a chave para a livre expressão na mídia profissional é
uma vida próxima ao laboratório. Muitos desejam compartilhar seus valores
diretamente, sem serem limitados pela constante demanda por evidência
sistemática. Para eles, conceitos sobrecarregados de valor compensam o
conservadorismo usualmente oriundo dessas demandas. O psicólogo de maior
reputação pode perdoar-se mais diretamente. Normalmente, no entanto, nós não

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costumamos ver nossas opiniões como propagandísticas, mas sim como o
reflexo de "verdades básicas".

Ainda que a comunicação de valores através do conhecimento seja em


certa medida intencional, ela não o é de todo. A defesa de valores é quase um
produto inevitável da existência social, e como participantes da sociedade
raramente nos dissociamos desses valores ao perseguir metas profissionais.
Além disso, se confiamos na linguagem da cultura para a comunicação científica,
é difícil encontrar termos dizendo respeito à interação social desprovidos de valor
prescritivo. Nós poderíamos reduzir as prescrições implícitas contidas em
nossas comunicações se adotássemos uma linguagem completamente técnica.
Entretanto, mesmo uma linguagem técnica torna-se avaliativa sempre que a
ciência é usada como veículo de mudança social. Talvez nossa melhor opção
seja mantermo-nos tão sensível quanto possível aos nossos vieses e comunicá-
los tão abertamente quanto possível. A defesa de valores pode ser inevitável,
mas podemos evitar mascará-la como reflexões objetivas da verdade.

Conhecimento e Liberação Comportamental

É comum na prática de pesquisa em psicologia evitar comunicar


quaisquer premissas teóricas ao sujeito antes ou durante a pesquisa. A pesquisa
de Rosenthal (1966) indicou que mesmo as pistas mais sutis das expectativas
do experimentador podem alterar o comportamento do sujeito. Desse modo,
sujeitos ingênuos são requeridos pelos padrões comuns de rigor. As implicações
dessa cautela metodológica simples são de considerável significância. Se os
sujeitos possuem conhecimento preliminar, tais como premissas teóricas, não

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podemos testar adequadamente nossas hipóteses. Da mesma maneira, se a
sociedade é psicologicamente informada, teorias sobre isso mesmo que é
informado tornam-se difíceis de serem testadas sem o risco de contaminação.
Eis aqui uma diferença fundamental entre as ciências naturais e sociais.
Formalmente, o cientista não pode comunicar seu conhecimento aos sujeitos de
seu estudo de tal forma que suas disposições comportamentais sejam
modificadas. Nas ciências sociais tal comunicação pode ter um impacto vital no
comportamento.

Um exemplo simples pode ser suficiente. Parece que numa enorme


variedade de condições, grupos de tomada de decisão realizam decisões
arriscadas através de grupos de discussão (cf. Dion, Baron, & Miller, 1970;
Wallach, Kogan & Bem, 1964). Investigadores nessa área acautelam-se
bastante para que os sujeitos experimentais não ignorem seu conhecimento
neste assunto. Esses sujeitos, uma vez cientes, poderiam resguardar-se dos
efeitos do grupo de discussão ou responder apropriadamente a fim de ganhar a
aprovação do experimentador. Entretanto, se o desvio em direção ao risco viesse
a se transformar em conhecimento comum, sujeitos ingênuos tornar-se-iam
inalcançáveis. Membros da cultura poderiam sistematicamente compensar as
tendências em direção ao risco produzidas pelo grupo de discussão até tais
comportamentos tornarem-se normais.

Como premissa geral, admite-se que o profundo conhecimento de


princípios psicológicos liberte os sujeitos de suas implicações comportamentais.

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Princípios estabelecidos do comportamento tornam-se estímulos à tomada de
decisão de alguém. Como Winch (1958) indicou, "na medida em que
compreender algo envolve compreender sua contradição, alguém que,
inteligentemente, realiza X deve ser capaz de visualizar a possibilidade de fazer
não-X" (p. 89). Princípios psicológicos também sensibilizam os sujeitos a
influências que agem sobre eles e dirigem sua atenção a certos aspectos do
meio e deles mesmos. Nesse processo, seus padrões de comportamento podem
ser fortemente influenciados. Como May (1971) expôs mais apaixonadamente,
"cada um de nós herda da sociedade um fardo de tendências que nos modelam
inevitavelmente; porém nossa capacidade de ser consciente desse fato salva-
nos de sermos estritamente determinados" (p. 100). Dessa forma, o
conhecimento de signos não-verbais de estresse ou calma (Eckman, 1965)
habilita-nos a utilizá-los toda vez que nos é útil fazê-lo. Saber que pessoas em
problema são menos dispostas a serem ajudadas quando há um grande número
de espectadores (Latané & Darley, 1970) pode aumentar o desejo de oferecer
ajuda em tais condições. Saber que o estado de excitação pode influenciar a
interpretação de eventos (cf. Jones & Gerard, 1967) pode suscitar cautela
quando esse mesmo estado se encontra em grau elevado. Em cada caso, o
conhecimento aumenta as alternativas de ação, e padrões prévios de
comportamento são modificados ou dissolvidos.

Fuga em direção à Liberdade

A invalidação histórica da teoria psicológica pode ser mais profundamente


investigada em sentimentos comumente observados no interior da cultura
ocidental. Da maior importância é o desconforto geral que as pessoas parecem
sentir quando têm o número de suas alternativas de respostas diminuído. Como
Fromm (1941) viu, o desenvolvimento inclui a aquisição de fortes desejos de
autonomia. Weinstein e Platt (1969) discutiram bastante o mesmo sentimento
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em termos de "desejo do homem de ser livre", e vincularam esta disposição à
estrutura do desenvolvimento social. Brehm (1966) usou essa mesma disposição
como pedra angular de sua teoria da reatância psicológica. A prevalência desse
valor aprendido teve importantes implicações para a validade, a longo prazo, da
teoria psicossociológica.

Teorias válidas sobre o comportamento social constituem significantes


instrumentos de controle social. Na medida em que o comportamento de um
indivíduo é previsível, ele torna-se vulnerável. Outros podem alterar as
condições ambientais ou seu próprio comportamento em relação a ele a fim de
obter um máximo de recompensa com um mínimo de custo. Da mesma maneira
que um estrategista militar entrega-se a uma derrota quando suas ações se
tornam predizíeis, que um oficial de uma organização pode ser traído por seus
subordinados, e que esposas manipuladas por seus maridos farristas quando
seus padrões de comportamento são confiáveis. O conhecimento torna-se assim
poder nas mãos de outros. Segue-se que princípios psicológicos colocam uma
ameaça potencial a todos aqueles com que estão relacionados. Investimentos
em liberdade podem assim potencializar um comportamento visando invalidar a
teoria. Estamos satisfeitos com princípios de mudança de atitude até o momento
em que os encontramos sendo usados em campanhas dedicadas à modificação
de nosso comportamento. Nesse ponto, podemos nos ressentir e reagir
recalcitrante mente. Maior o poder da teoria em prever o comportamento, maior
seu público de disseminação e mais prevalente e reverberante sua reação.
Assim, as teorias fortes podem estar sujeitas à invalidação mais rapidamente do
que as fracas.

O valor comum atribuído à liberdade pessoal não é o único ponto que


responde pela ruína de uma teoria psicossociologia. Na cultura ocidental, parece
haver um grande valor atribuído à singularidade ou individualidade. A imensa

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popularidade de Erikson (1968) e Allport (1965) pode se dever ao grande apoio
que esses autores dão a este valor, e recente pesquisa em laboratório (Fromkin,
1970, 1972) demonstrou a força desse valor na alteração do comportamento
social. A teoria psicológica, na sua estrutura nomotética, é insensível às
ocorrências singulares. Indivíduos são tratados como exemplares de classes
maiores. Uma reação comum é a de que a teoria psicológica é desumanizante,
e como Maslow (1968) notou, pacientes sustentam um forte ressentimento ao
receberem a rubrica ou serem rotulados com termos clínicos convencionais.
Similarmente, negros, mulheres, ativistas, suburbanos, educadores e idosos têm
todos reagido amargamente a explicações sobre seus comportamentos. Dessa
forma, podemos nos esforçar em invalidar teorias que nos seduzem por sua
aparência impessoal.

Psicologia dos Efeitos de Esclarecimento

Até agora discutimos três modos através dos quais a psicologia social
altera o comportamento que ela pretende estudar. Antes de passarmos a um
segundo grupo de argumento em favor da dependência histórica da teoria
psicológica, devemos lidar com um importante meio de combate aos efeitos
descritos até agora. A fim de preservar a validade transhistórica dos princípios
psicológicos, a ciência poderia ser removida do domínio público e a
compreensão científica reservada a uma elite seleta. Essa elite seria,
evidentemente, cooptada pelo Estado, uma vez que nenhum governo poderia
admitir o risco da existência de um estabelecimento privado desenvolvendo
ferramentas de controle público. Para a maioria de nós, tal proposta é
repugnante, e nossa inclinação é, ao contrário, procurar uma solução científica
ao problema da dependência histórica. Muito do que se disse aqui sugere uma

17
resposta desse tipo. Se pessoas que são psicologicamente esclarecidas reagem
aos princípios gerais contra dizendo-lhes, ratificando-lhes, ignorando-lhes, e
assim por diante, então deveria ser possível estabelecer as condições sob as
quais essas várias reações ocorrerão. Baseado em noções de reatância
psicológica (Brehm, 1966), profecias auto realizadoras (Merton, 1948) e efeitos
de expectativa (Gergen & Taylor, 1969), poderíamos construir uma teoria geral
das reações à teoria. Uma psicologia dos efeitos de esclarecimento deveria
habilitar-nos a predizer e controlar os efeitos do conhecimento.

Embora uma psicologia dos efeitos de esclarecimento pareça um


promissor suplemento a teorias gerais, sua utilidade é seriamente limitada. Uma
tal psicologia pode investir-se de valor, aumentar nossas alternativas
comportamentais, e pode ser ofensiva por sua ameaça a sentimentos de
autonomia. Assim, a teoria que prediz reações à teoria é também suscetível à
violação ou justificação. Nas relações entre pais e filhos ocorre frequentemente
algo que ilustra esse ponto. Pais estão acostumados a usar recompensas diretas
a fim de influenciar o comportamento de suas crianças. Com certo tempo, as
crianças adquirem consciência da premissa dos adultos de que uma
recompensa atingirá os resultados desejados e tornam-se obstinadas. O adulto
pode então reagir com uma psicologia ingênua dos efeitos de esclarecimento e
expressar desinteresse pela realização da tarefa por parte da criança,
novamente com a intenção de alcançar o objetivo desejado. A criança pode
responder apropriadamente, mas muito frequentemente irá emitir alguma
variação de "você só está dizendo que você não se importa porque você
realmente quer que eu faça". Nos termos de Loevinger (1959), "... um aumento
no controle parental é contrabalanceado por um aumento no controle filial" (p.

18
149). Em bom português, nomeia-se lhe psicologia reversa, e é frequentemente
malvista. Certamente, pode-se contar com pesquisa sobre reações à psicologia
dos efeitos de esclarecimento, porém rapidamente pode-se ver que essa troca
de ações e reações poderia ser estendida indefinidamente. Uma psicologia dos
efeitos de esclarecimento está sujeita às mesmas limitações históricas como
outras teorias de psicologia social.

1.3 Teoria psicológica e mudança cultural

O argumento contra leis transitórias em psicologia social não apenas


reside na consideração do impacto da ciência na sociedade. Uma segunda
importante linha de pensamento merece consideração. Se examinarmos as mais
proeminentes linhas de pesquisa durante a última década, logo perceberemos
que as regularidades observadas e, assim, os princípios teóricos mais
importantes, estão firmemente vinculados a circunstâncias históricas. A
dependência histórica dos princípios psicológicos é mais notável em áreas onde
o foco incide sobre o público. Psicólogos sociais têm se preocupado muito, por
exemplo, em isolar indicadores de ativismo político durante a última década (cf.
Mankoff & Flacks, 1971; Soloman & Fishman, 1964). Entretanto, se se examina
esta literatura ao longo do tempo, inúmeras inconsistências aparecem. Variáveis
que predizem com êxito o ativismo político durante os primeiros estágios da
guerra do Vietnã são distintos daqueles que predizem com êxito o ativismo
durante os períodos finais. Parece clara a conclusão de que os fatores
mobilizadores do ativismo político mudaram com o tempo. Assim, qualquer teoria
do ativismo político construída de achados anteriores seria invalidada por
achados posteriores. Pesquisas futuras em ativismo político encontrarão ainda,
indubitavelmente, outros indicadores mais úteis.

19
Tais alterações nas relações funcionais não estão limitadas em princípio
às áreas concernentes ao público imediato. A teoria da comparação social de
Festinger (1957), por exemplo, e a extensiva linha de pesquisa dedutiva (cf.
Latané, 1966) estão baseadas na dupla suposição de que (a) pessoas desejam
avaliar-se corretamente e (b) a fim de fazê-lo, comparam-se com outros. Há
pouquíssimas razões para achar que tais disposições são geneticamente
determinadas, e podemos facilmente imaginar pessoas, e mesmo sociedades,
nas quais tais suposições não se sustentariam. Muitos de nossos comentadores
sociais são críticos da tendência comum a buscar na opinião dos outros a
definição de si e tentam mudar a sociedade com sua crítica. Com efeito, toda a
linha de pesquisa parece depender de um conjunto de propensões aprendidas,
propensões que poderiam ser alteradas pelo tempo e circunstâncias.

Da mesma maneira, a teoria da dissonância cognitiva depende da


suposição de que as pessoas não toleram cognições contraditórias. A base de
tal intolerância não parece ser geneticamente dada. Há certamente indivíduos
que entendem tais contradições de modo bastante diferente. Escritores
existencialistas recentes, por exemplo, celebram o ato inconsistente.
Contrariamente, devemos concluir que a teoria é preditiva em razão do estado
atual das disposições aprendidas. Do mesmo modo, o trabalho de Schachter
(1959) sobre afiliação está sujeito aos argumentos elaborados a partir da teoria
da comparação social. O fenômeno da obediência de Milgram (1965) é
certamente dependente das atitudes contemporâneas frente à autoridade. Na
pesquisa sobre mudança de atitudes, a credibilidade do comunicador é um
potente fator porque aprendemos a confiar em autoridades na nossa cultura, e a

20
mensagem comunicada tornar-se dissociada de sua fonte com o passar do
tempo (Kelman & Hovland, 1953) porque, atualmente, não nos parece útil reter
a associação. Em pesquisas sobre conformidade, pessoas conformam-se mais
a amigos do que a não-amigos (Back, 1951) parcialmente porque aprenderam
que amigos punem comportamentos desviantes na sociedade contemporânea.
Pesquisas em atribuição causal (cf. Jones, Davis & Gergen, 1961; Kelley, 1971)
dependem da tendência culturalmente dependente a perceber o homem como a
fonte de sua ação. Essa tendência pode ser modificada (Hallowell, 1958) e
alguns (Skinner, 1971) de fato demonstraram que isso pode acontecer.

Talvez a garantia principal de que a psicologia social nunca desaparecerá


pela sua redução à fisiologia seja a de que a fisiologia não pode dar conta das
variações do comportamento humano ao longo do tempo. As pessoas podem
preferir roupas de cores abertas e alegres hoje e fechadas e sóbrias amanhã;
podem valorizar autonomia nessa era e dependência na próxima. Certamente, a
variação das respostas ao meio repousa em variações na função fisiológica.
Todavia, a fisiologia nunca pode especificar a natureza do estímulo ou do
contexto da resposta a que cada indivíduo está exposto. Não pode nunca dar
conta do contínuo deslocamento dos padrões do que é considerado bom e
desejável na sociedade, de uma série de fontes de motivação primária para o

21
indivíduo. Entretanto, ainda que a psicologia social esteja imunizada do
reducionismo fisiológico, suas teorias não estão isoladas da mudança histórica.

É possível inferir dessa última classe de argumentos um compromisso


com pelo menos uma teoria da validade transhistórica. Tem-se argumentado que
a estabilidade nos padrões de interação sob a qual a maioria de nossas teorias
repousa depende de disposições adquiridas de duração limitada. Isso sugere
implicitamente a possibilidade de uma teoria da aprendizagem social
transcendendo as circunstâncias históricas. No entanto, tal conclusão não é
confiável. Consideremos, por exemplo, uma teoria elementar de reforço. Poucos
duvidariam de que a maioria das pessoas responde às contingências
recompensadoras e punitivas em seu meio, e é difícil imaginar um tempo em que
isso não seria verdadeiro. Tais premissas parecem assim válidas
transhistoricamente, e a primeira tarefa do psicólogo poderia ser o isolamento
das formas funcionais precisas relacionadas aos padrões de recompensa e
punição do comportamento.

Esta conclusão peca em dois pontos importantes. Muitos críticos da teoria


do reforço têm sustentado que a definição de recompensa (e punição) é circular.
Reforço é tipicamente definido como aquilo que aumenta a frequência de
resposta; aumento de resposta é definido como aquilo que reforça. Assim, a
teoria parece limitada à interpretação post hoc. Apenas quando a mudança do
comportamento ocorreu pode-se identificar o reforçador. A réplica mais
significante a esse criticismo reside no fato de que recompensas e punições
ganham valor preditivo tão logo são indutivamente estabelecidas. Assim, isolar
a aprovação social como um reforço positivo para o comportamento humano
depende inicialmente de uma observação post hoc. Contudo, uma vez

22
estabelecida como um reforçador, a aprovação social prova ser, no que concerne
à predição, um bem-sucedido meio de modificação do comportamento (cf.
Barron, Hecknmueller, & Schultz, 1971; Gewirtz & Baer, 1958).

Entretanto, parece também que o reforço não permanece estável ao longo


do tempo. Reisman (1952), por exemplo, convincentemente demonstrou que a
aprovação social tem um valor reforçador muito maior em nossa sociedade
contemporânea do que há um século. E enquanto orgulho nacional poderia ser
um forte reforçador do comportamento juvenil nos idos de 1940, para a juventude
contemporânea tal sentimento provavelmente seria aversivo. Com efeito, a
circularidade essencial na teoria do reforço pode a qualquer momento ser
recolocada. Como os valores reforçadores mudam, assim também a validade
preditiva dessa pressuposição de base.

A teoria do reforço encara outras limitações históricas quando a


consideramos em suas determinações mais precisas. Igualmente à maioria das
teorias da interação humana, a teoria está sujeita ao investimento ideológico. A
noção de que o comportamento é totalmente governado por contingências
externas é vista por muitos como vulgarmente desprovida de sentido. O
conhecimento da teoria habilita-nos a evitar ser capturado por suas predições.
Assim como terapeutas da modificação do comportamento sabem, pessoas que
estão familiarizadas com essas premissas teóricas podem subverter seus efeitos
desejados com facilidade. Finalmente, já que a teoria se provou tão efetiva na
alteração do comportamento de organismos inferiores, torna-se particularmente
ameaçador a alguém que valorize a autonomia. De fato, muitos de nós não
gostaríamos que tentassem modelar nosso comportamento através de técnicas
de reforço, e inclinar-nos-íamos a quebrar a expectativa do ofensor. Em suma, a
elaboração da teoria do reforço não é menos vulnerável a efeitos de
esclarecimento do que outras teorias da interação humana.

1.4 Implicações para uma ciência histórica do comportamento social

23
Sob a luz dos presentes argumentos, a tentativa contínua de construir leis
gerais do comportamento social parece mal direcionada, e a crença associada a
ela de que o conhecimento da interação social pode ser acumulado como nas
ciências naturais revela-se injustificada. Em essência, o estudo em psicologia
social é fundamentalmente um empreendimento histórico. Estamos
essencialmente engajados em incontáveis questões contemporâneas.
Utilizamos metodologia científica, porém os resultados não são princípios
científicos no sentido tradicional. No futuro, historiadores poderão voltar-se para
tais relatos do passado a fim de alcançar uma melhor compreensão acerca da
vida atualmente. Entretanto, é provável que os psicólogos do futuro encontrem
pouco valor no conhecimento contemporâneo. Esses argumentos não são
puramente acadêmicos e não se limitam a uma simples redefinição de ciência.
Aqui estão implicadas significantes alterações na atividade de campo. Cinco
dessas alterações merecem atenção.

Rumo à Integração do Puro e do Aplicado

Entre psicólogos acadêmicos encontra-se difundido um preconceito


contra a pesquisa aplicada, um preconceito que é evidenciado pelo enfoque
dado à pesquisa pura pelos periódicos de prestígio e pela dependência de
promoção e manutenção de contribuições à pesquisa pura em oposição à
pesquisa aplicada. Esse preconceito baseia-se, em parte, na suposição de que
a pesquisa aplicada é de valor transitório. Enquanto está se limitaria a resolver
problemas imediatos, a pesquisa pura contribuiria para um conhecimento básico
e duradouro. Do ponto de vista atual, o solo no qual se assentam tais
preconceitos não é merecedor de respeito. O conhecimento que a pesquisa pura
se dedica em estabelecer é também transitório; generalizações nessa área de
pesquisa geralmente não perduram. A tal ponto que, quando generalizações da

24
pesquisa pura têm grande validade transhistórica, podem estar refletindo
processos de interesse periférico ou importantes para o funcionamento da
sociedade.

Psicólogos sociais são treinados para usar ferramentas de análise


conceitual e metodologia científica a fim de explicar a interação humana. No
entanto, dada a esterilidade em aperfeiçoar os princípios gerais ao longo do
tempo, essas ferramentas mostram-se mais produtivas quando usadas na
resolução de problemas de importância imediata para a sociedade. Isso não
implica que tais pesquisas devam ser de alcance restrito. Um defeito
fundamental de grande parte das pesquisas aplicadas é que os termos usados
para descrever e explicar são relativamente concretos e específicos para o caso
em mãos. Enquanto os comportamentos concretos estudados pelos psicólogos
acadêmicos são frequentemente mais triviais, a linguagem explicativa é
altamente geral, e assim mais amplamente heurística. É assim que os
argumentos presentes sugerem uma intensa focalização em assuntos sociais
contemporâneos, baseados na aplicação de métodos científicos e ferramentas
conceituais largamente generalizadas.

Da Predição à Sensibilização

25
O objetivo central da psicologia é tradicionalmente encarado como a
predição e o controle do comportamento. Do nosso ponto de vista, esse objetivo
é despropositado e oferece pouca justificativa para a pesquisa. Princípios do
comportamento humano podem ter valor preditivo temporalmente limitado, e seu
alto conhecimento pode torná-los impotentes como ferramentas de controle
social. Todavia, previsão e controle não precisam servir de pedras angulares do
campo. A teoria psicológica pode desempenhar um papel excessivamente
importante enquanto dispositivo de sensibilização. Pode esclarecer-nos acerca
da gama de fatores que potencialmente influenciam o comportamento sob várias
condições. A pesquisa pode também oferecer algumas estimativas da
importância desses valores num determinado momento. Seja no caso do
domínio da política pública ou dos relacionamentos pessoais, a psicologia social
pode aguçar a sensibilidade de um indivíduo para influências sutis e apontar
suposições sobre o comportamento que não se mostraram úteis no passado.

Quando se pede um “conselho” ao psicólogo social sobre um provável


comportamento em uma situação concreta, a reação consiste em desculpar-se.
É necessário explicar que o campo ainda não se encontra suficientemente
desenvolvido a ponto de que predições confiáveis possam ser feitas. Do nosso
ponto de vista, tais desculpas são inapropriadas. O campo pode raramente

26
fornecer princípios para que predições confiáveis possam ser feitas. Padrões de
comportamento estão sob constante mudança. Contudo, o que o campo pode e
deve oferecer são pesquisas informando o inquiridor do número de possíveis
ocorrências, ampliando assim sua sensibilidade e preparando-o para uma
acomodação mais rápida à modificação ambiental. Pode prover ferramentas
conceituais e metodológicas com as quais um número maior de juízos de
discernimento pode ser efetuado.

Desenvolvendo Indicadores de Disposições Psicossociais

Psicólogos sociais evidenciam uma contínua preocupação com processos


psicológicos básicos, ou seja, processos que influenciam um vasto e variado
conjunto de comportamentos sociais. Simulando a preocupação de psicólogos
experimentais com processos básicos, como visão em cores, aquisição da
linguagem, memória e assim por diante, psicólogos sociais detiveram-se em
alguns processos, tais como dissonância cognitiva, nível de aspiração e
atribuição causal. Entretanto, há uma profunda diferença entre os processos
estudados nos domínios da psicologia geral experimental e no domínio da
psicologia social. No primeiro caso, os processos estão frequentemente
guardados biologicamente no organismo, não estão sujeitos a efeitos de
esclarecimento e não dependem de circunstâncias culturais. Ao contrário, a

27
maioria dos processos de domínio social é dependente de disposições sujeitas
a modificação ao longo do tempo.

Assim sendo, é um erro considerar os processos em psicologia social


como básicos no sentido das ciências naturais. Antes, podem ser largamente
considerados a contrapartida psicológica de normas culturais. Da mesma
maneira que um sociólogo preocupa-se em medir preferências parciais ou
padrões de mobilidade no decurso do tempo, o psicólogo social poderia atentar
para os padrões de mudança das disposições psicológicas e a sua relação com
o comportamento social. Se a redução de dissonância é um processo importante,
então deveríamos estar aptos a medir a prevalência e a força de tal disposição
no seio da sociedade ao longo de tempo e os modos de redução de dissonância
prediletos num dado momento. Se a elevação da estima parece influenciar a
interação social, os amplos estudos culturais deveriam revelar a extensão dessa
disposição, sua força em várias subculturas, e a forma do comportamento social
com a qual se encontra mais associada a um dado momento. Embora
experimentos em laboratório sejam adequados ao isolamento de disposições
particulares, são pobres indicadores da série e da significância dos processos
da vida social contemporânea. São extremamente necessárias metodologias
que estabeleçam contato com a prevalência, força e forma das disposições
sociais no tempo. Com efeito, uma tecnologia dos indicadores sociais
psicologicamente sensíveis (Bauer, 1969) é desejada.

Pesquisa em Estabilidade Comportamental

28
O fenômeno social pode variar consideravelmente na medida em que se
submete à mudança histórica. Certos fenômenos podem ser mais estreitamente
vinculados a dados fisiológicos. A pesquisa de Schachter (1970) sobre estados
emocionais parece ter uma forte base fisiológica, assim como o trabalho de Hess
(1965) sobre afeto e constrição pupilar. Embora disposições adquiridas possam
vir a superar algumas tendências fisiológicas, tais tendências deveriam se
reafirmar gradualmente. Outras propensões fisiológicas, ainda, podem ser
irreversíveis. Pode haver também disposições que são suficientemente
poderosas para que nem o esclarecimento e nem mesmo as mudanças
históricas venham a causar-lhe algum impacto. Algumas pessoas geralmente
evitarão estímulos físicos dolorosos, apesar de suas sofisticações ou das
normas correntes. Devemos pensar, então, em termos de um contínuo de
durabilidade histórica, com fenômenos altamente suscetíveis à influência
histórica num extremo e processos mais estáveis no outro.

Assim, métodos de pesquisa habilitando-nos a discernir a durabilidade


relativa do fenômeno social são bastante necessários. Métodos interculturais
poderiam ser empregados para esse fim. Embora a replicação intercultural seja
repleta de dificuldades, similaridade numa dada função entre culturas
amplamente divergentes atestaria fortemente sua durabilidade no tempo.
Técnicas de análise de conteúdo poderiam também ser empregadas no exame

29
de períodos históricos recentes. Até agora, tais empreendimento têm fornecido
pouco além de citações indicando que algum grande pensador pressentiu uma
hipótese familiar. Temos ainda que travar contato com a vasta quantidade de
informações referentes aos padrões de interação nos últimos períodos. Embora
a progressiva sofisticação dos padrões de comportamento ao longo do espaço
e do tempo fornecesse valiosas compreensões referentes à durabilidade, alguns
difíceis problemas apresentar-se-iam. Alguns padrões de comportamento podem
permanecer estáveis até uma observação minuciosa. Outros podem
simplesmente tornar-se disfuncionais com o passar do tempo. A confiança do
homem num conceito de deidade tem uma longa história e é encontrada em
numerosas culturas. Entretanto, muitos são céticos sobre o futuro desta crença.
Taxas de durabilidade teriam assim que contribuir para a estabilidade potencial
tanto quanto atual do fenômeno.

Ainda que a pesquisa por disposições culturais mais duráveis seja


extremamente valiosa, não deveríamos de aí concluir que seja mais útil ou
desejável que estudar os padrões passados de comportamento. Grande parte
da variabilidade do comportamento social deve-se indubitavelmente a
disposições historicamente dependentes, e o desafio de capturar tais processos
"em luta" e durante períodos preciosos da história é imenso.

Rumo a uma História Social Integrada

Sustentou-se que a pesquisa em psicologia social é fundamentalmente o estudo


sistemático da história contemporânea. Assim sendo, parece miopia manter a
separação disciplinar (a) do estudo tradicional de história e (b) de outras ciências
historicamente fronteiriças (incluindo sociologia, ciência política e economia). As

30
particulares estratégias de pesquisa e a sensibilidade do historiador poderiam
elevar a compreensão da psicologia social, passada e presente. Particularmente
útil seria a sensibilidade do historiador às sequências causais no curso do tempo.
Muitas pesquisas em psicologia social centram-se em segmentos momentâneos
de processos em andamento. Temos nos concentrados muito pouco na função
desses segmentos dentro de seu contexto histórico. Temos pouca teoria lidando
com a inter-relação entre eventos dentro de longos períodos. Da mesma feita,
historiadores poderiam beneficiar-se das mais rigorosas metodologias
empregadas pelos psicólogos sociais tanto quanto de sua sensibilidade a
variáveis psicológicas. Contudo, o estudo da história, passada e presente,
deveria ser empreendido da maneira mais ampla possível. Fatores políticos,
econômicos e institucionais são todos fatores necessários à compreensão numa
perspectiva integrada. A concentração em psicologia apenas oferece uma
compreensão distorcida de nossa condição presente.

2.0 PSICOLOGIA SOCIAL NO BRASIL

No Brasil, a Psicologia Social é uma arena de diversidades: ela possui


várias definições, abordagens teóricas e objetos de estudo. Algumas(uns)
autoras(es) a consideram uma subárea da Psicologia, outras(os) acreditam que
ela é a interseção da Psicologia com a Sociologia. Há ainda aquelas(es) que
afirmam que o adjetivo "social" não delimita uma subdivisão temática ou
conceitual, mas enfatiza a importância do compromisso político que toda(o)
psicóloga(o) deve ter. Umas(nos) baseiam-se nas leituras do Materialismo
Histórico e Dialético para estruturar suas pesquisas ou sua prática profissional.
Outras(os) preferem as leituras contracionistas ou ainda a Teoria das
Representações Sociais. Há psicólogos(as) sociais cognitivistas, behavioristas,
psicanalistas, comunitários... (Cordeiro, 2017; Cordeiro & Spink, 2014).

Diante de tamanha diversidade, seria impossível escrevermos um artigo que


apresentasse a história da Psicologia Social brasileira. Desse modo, falaremos
apenas de algumas psicologias sociais que são feitas em nosso país. Assim
como qualquer recorte, o que fazemos aqui é fruto de escolhas. Escolhas
guiadas por nossas trajetórias de pesquisa, por nossas experiências como
docentes da área, por nossos posicionamentos. Escolhas que produzem uma

31
narrativa singular do que foi e do que é a Psicologia Social em nosso país. Mais
exatamente, produzem uma narrativa dividida em duas partes: a primeira retoma
o modo como costumamos contar a história dessa ciência; e a segunda
apresenta algumas das abordagens teórico-metodológicas que fazem parte de
sua história.

2.1 Uma (breve) história da Psicologia Social no Brasil

Diversas(os) autoras(es) (Bernardes, 2001; Bock & Furtado, 2007;


Cordeiro, 2013; Ferreira, 2011; Mancebo, Jacó-Vilela & Rocha, 2003; Tittoni &
Jacques, 2001) dividem a história da Psicologia Social brasileira em dois grandes
momentos: um anterior e o outro posterior à chamada crise de referência, que
assolou essa área do conhecimento na década de 1970. Sustentam que, antes
de tal crise, a Psicologia Social brasileira era marcada pela hegemonia do
modelo norte-americano, tinha uma base positivista e defendia a neutralidade da
ciência, passando, após a crise, a fazer uma severa crítica ao modelo biologista
e, principalmente, a defender uma ciência comprometida com a transformação
social.

Mas é importante pontuarmos que essa crise de referência não aconteceu


somente no Brasil e nem foi um fenômeno restrito à Psicologia Social. Pelo
contrário, este movimento de questionamento – ou, como diria Lallement (2008),
de "pulverização metodológica" e "abalo teórico" – afetou também outras áreas
do conhecimento, tal como a Sociologia. De acordo com o autor, as décadas de
1960 e 1970 foram marcadas por uma Sociologia que traduzia, inicialmente, o
declínio do impulso modernizante do pós-guerra. O enfraquecimento da fé na
igualdade de oportunidades, bem como o esgotamento das garantias de coesão
social pelo simples crescimento econômico, fez com que instituições – como a
escola, a prisão e a fábrica – fossem questionadas. No caso específico da
América Latina, o abalo teórico foi impulsionado, sobretudo, pela situação
política vivenciada por alguns países da região. Diante da repressão político-
cultural dos regimes autoritários e de uma profunda crise paradigmática,
começaram a ganhar espaço abordagens sociológicas "alternativas", como a
Sociologia Nacional, a Teoria da Dependência e a Teoria do Novo Autoritarismo
(Liedke Filho, 2003).

32
Nesse mesmo período, a Psicologia Social norte-americana começou a
ser problematizada pelos europeus. Na França, por exemplo, a tradição
psicanalítica foi retomada após o movimento de maio de 1968 e a tradição norte-
americana foi criticada por ser "uma ciência ideológica, reprodutora dos
interesses da classe dominante, e produto de condições históricas específicas"
(Lane, 1984/2007, p. 11). Esse movimento repercutiu na Inglaterra: em 1972,
Israel e Tajfel analisaram a "crise" sob o ponto de vista epistemológico – era "a
crítica ao positivismo, que em nome da objetividade [perdia] o ser humano."
(Lane, 1984/2007, p. 11). Dois anos mais tarde, é publicado o
livro Reconstructing Social Psychology (Armistead et al., 1974), com
contribuições de muitos psicólogos críticos ao status quo da disciplina.

Foi também nesse período que, no Brasil, começaram a ganhar força as


críticas ao conceito de doença mental e ao modelo hegemônico de intervenção
psiquiátrica. O foco é deslocado da patologia para a saúde e se enfatiza a
importância de ações preventivas junto a populações pobres e desatendidas
pelo Estado. Ganhou força, também, a preocupação com a educação popular.
Fundamentada nas ideias de Paulo Freire, a alfabetização de adultos passa a
ser vista como uma ferramenta de conscientização e resistência contra a
opressão do regime militar (Lane, 1996).

Foram, portanto, vários movimentos, várias críticas e vários acontecimentos que


criaram o solo epistêmico, social e político para que a chamada "crise de
referência" acontecesse, trazendo à tona a necessidade de refletir sobre o papel
da Psicologia em um contexto marcado pela violência de Estado, pela miséria e
pela desigualdade social.

Quem somos? O que buscamos? Qual nossa contribuição social? Críticas


duras eram feitas aos profissionais que serviam ao sistema nas fábricas e
consultórios particulares. A quem estamos servindo? – era a pergunta chave.
Começava a cair por terra a visão de uma ciência neutra e uma prática
descomprometida. (Bock & Furtado, 2010, p. 510).

De acordo com Bernardes (2001), esse movimento de questionamento da


Psicologia Social hegemônica começou a se fortalecer no Brasil e em outros
países da América Latina durante os Congressos da Sociedade Interamericana
de Psicologia (SIP) realizados em Miami, EUA (1976) e em Lima, Peru (1979).

33
Os principais motivos de insatisfação eram: a dependência teórico-metodológica,
principalmente dos Estados Unidos, a descontextualização dos temas
abordados, a superficialidade e a simplificação das análises desses temas, a
individualização do social e ausência de preocupação política. Em suma, "a
palavra de ordem era a transformação social." (p. 31) 1.

No caso específico do Brasil, essas insatisfações levaram ao


desenvolvimento e/ou à adoção de diferentes teorias e metodologias: um grupo
de pesquisadores, liderado por Georges Lapassade, Osvaldo Saidon e Gregorio
Baremblitt, desenvolveu a Análise Institucional; já Silvia Lane coordenou o grupo
que estabeleceu os fundamentos do que mais tarde viria a ser conhecido como
a Escola Sócio Histórica; outro grupo, liderado por Ângela Arruda e Celso Sá,
começou a realizar trabalhos a partir de teorias europeias, especialmente a das
Representações Sociais (Jacó-Vilela, 2007). Poderíamos acrescentar a essa
lista várias outras abordagens, tais como: as (pós)contorcionistas, a Psicanálise
Social, a Psicologia da Libertação e a Escola de Frankfurt.

Essas correntes costumam ser agrupadas sob o rótulo de "Psicologia


Social Crítica". Mas não podemos deixar de considerar que esse é um termo
polissêmico, que abriga teorias com posicionamentos epistemológicos,
ontológicos e políticos distintos. Nas palavras de Spink e Spink (2007), a
Psicologia Social Crítica é muito mais "uma frente de luta ampla do que um
movimento articulado; uma aliança de argumentos e práticas em vez de uma
escola." (p. 576). A despeito de suas divergências, no geral, essas abordagens
expressam seu caráter crítico de quatro maneiras: 1) se contrapondo às bases
epistemológicas do conhecimento, "recolocando a ciência como prática social
sujeita às vicissitudes dos fazeres humanos" (p. 577); 2) considerando a
centralidade da linguagem na produção dos conhecimentos (tanto dos científicos
quanto dos do senso comum); 3) radicalizando o potencial transformador da
ciência e 4) rompendo com o paradigma positivista de ciência.

Com o fortalecimento das abordagens críticas, começou a se pensar na


necessidade de criar uma associação brasileira que representasse as "novas"
Psicologias Sociais. No congresso da SIP, em Lima, essa demanda foi
amplamente discutida. Falava-se na importância de "fortalecer a organização
dos psicólogos ligados à área da Psicologia Social, criando espaços para o

34
diálogo e o avanço desse campo. Além disso, caminhava-se para o
fortalecimento de um pensamento latino-americano na Psicologia, a partir da
Psicologia Social." (Lane & Bock, 2003, p. 146). Após o congresso, foi nomeada
uma comissão para redigir o estatuto da nova associação. No ano seguinte,
durante a reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
(SBPC), esse estatuto foi votado e aprovado, instituindo oficialmente a
Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO). Segundo as autoras, as
intenções políticas da ABRAPSO sempre foram a construção de uma psicologia
social crítica, voltada para os problemas nacionais, acatando diferentes
correntes epistemológicas, desde que filiadas ao compromisso social de
contribuir para a construção de uma sociedade mais justa. A ABRAPSO nasceu
da insatisfação com a psicologia europeia e americana. Os problemas de nossa
sociedade, marcada pela desigualdade social e pela miséria, não encontravam
soluções na psicologia social importada como um saber universal dos países do
Primeiro Mundo. (p. 149).

Hoje, a ABRAPSO é responsável, entre outras coisas, por organizar


encontros locais, regionais e nacionais, bem como por editar livros e publicar a
revista Psicologia & Sociedade.

Além dessa associação, foram criados programas de pós-graduação


específicos da área. De acordo com Bomfim (2003), os primeiros cursos de
mestrado em Psicologia Social foram criados na década de 1970, na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e na Universidade de São Paulo
(USP), "engrossando o material disponível para consultas bibliográficas" (p.
138). Hoje, há 7 programas em funcionamento que indicam que sua área básica
é Psicologia Social, além de outros 2 programas que possuem "Psicologia
Social" em seu nome (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior [Capes], 2016a) (quadro 1). Além disso, há 45 programas com
formação geral em Psicologia que possuem linhas de pesquisa voltadas à
Psicologia Social (CAPES, 2016b).

35
Quadro 1: Programas de pós-graduação com nome e/ou área básica em Psicologia Social

36
2.2 A diversidade da Psicologia Social brasileira

2.2.1 A análise institucional

A história da Análise Institucional (AI) no Brasil não pode ser contada sem
considerar o contexto político dos países latino-americanos – principalmente, da
Argentina. De acordo com Cunha, Dorna e Rodrigues (2006), essa abordagem
começou a ser desenvolvida na França na década de 1960. Logo em seguida,
psicanalistas argentinas(os) entraram em contato com as obras de seus
principais expoentes – como René Lourau, Georges Lapassade, Giles Deleuze
e Félix Guatarri –, passando a utilizar as ferramentas teóricas e metodológicas

37
por eles propostas para promover transformações, de cunho libertário, nos
campos da saúde mental, educação e formação. Mas com o golpe militar de
1976, muitas(os) dessas(es) psicanalistas foram forçados ao exílio e
algumas(ns) se mudaram para o Brasil – tais como Gregório Baremblitt e
Osvaldo Saidón –, o que acabaria imprimido "marcas argentinas e psicanalíticas"
na AI brasileira.

No entanto, apesar dessa influência, o desenvolvimento dessa


abordagem foi influenciado, permeado e performado também por outros atores
e eventos – motivo pelo qual as autoras preferem não falar em história da AI,
mas em história do grupal ismo-institucionalismo, um "termo composto mais
apto a sintetizar a mescla de perspectivas francesas, argentinas e ‘nativas'
característica de nosso processo histórico de emergência e expansão da AI."
(Cunha, Dorna & Rodrigues, 2006, p. 3).

A entrada dessa perspectiva francesa – mais ligada aos campos


psicossociológico e sociológico – no Brasil está intimamente relacionada à
história do Setor de Psicologia Social da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG).

Desde o final dos anos 1960, "o Setor" − alcunha pela qual ficou conhecido
− incorporou a AI francesa como um de seus referenciais, tendo recebido, em
1972, a visita de Georges Lapassade.... Visita "intempestiva", por sinal, para os
tempos ditatoriais, visto que a AI francesa constitui pensamento/prática tendente
ao marxismo libertário e/ou ao anarquismo, e Lapassade fora, além do mais,
ativo militante do movimento de maio de 1968, enfatizando, à época da estada
no Brasil, temas como o anticolonialismo, a afirmação da homossexualidade e a
denúncia do racismo. (Cunha, Dorna & Rodrigues, 2006, p. 3).

O "Setor" reunia professoras(es) e estudantes de Psicologia e


caracterizava-se por colocar em pauta temas praticamente esquecidos (ou
negados) pela Psicologia de então, tais como alfabetização de adultas(os),
saúde pública, antipsiquiatria, análise de discurso e de conteúdo,
psicossociologia francesa, práticas comunitárias e a relação entre Psicologia e
poder. Além disso, oferecia treinamento em dinâmica de grupos e comunidades
terapêuticas, realizava levantamentos socioeconômicos, intervenções
psicossociologias, pesquisas de opinião e de atitudes, preocupando-se sempre

38
"em produzir uma psicologia social comprometida com as necessidades da
população, especialmente com as classes populares. E é justamente a partir das
intervenções realizadas junto a diferentes movimentos e grupos que a Psicologia
Social do Setor vai sendo construída." (Cunha, Dorna & Rodrigues, 2006, p. 5).

Por meio de um projeto de cooperação com a Embaixada da França no


Brasil, o Setor recebia professoras(es) francesas(es) e enviava algumas(uns) de
suas(seus) integrantes para estudar na França. Entre as(os) professoras(es) que
vieram dar cursos e participar de seminários organizados pelo Setor, podemos
citar Max Pagès, André Lévy, Georges Lapassade, Pierre Fédida e Michel
Foucault (Cunha, Dorna & Rodrigues, 2006). O contato frequente com essas(es)
pesquisadoras(es) deu à AI mineira uma nuance francesa.

2.2.2 A Psicologia Sócio-Histórica

Assim como a AI, a Psicologia Sócio Histórica começou a se desenvolver


no Brasil no final da década de 1970, impulsionada pelo movimento de
contraposição às práticas psicológicas hegemônicas daquele período. No
entanto, as histórias, influências teóricas e preocupações centrais dessas duas
abordagens psicossociais são bastante diferentes.

A "Psicologia Sócio Histórica" (ou "escola de São Paulo") começou a ser


desenvolvida por um grupo de professoras(es) e estudantes da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Insatisfeitas(os) com os rumos
que tomavam as pesquisas e intervenções psicossociais na década de 1970,
lideradas(os) por Silvia Lane e fortemente influenciadas(os) pela Psicologia
Histórico-Cultural de Vigotski, essas(es) pesquisadoras(es) buscavam se
contrapor às dicotomias (como indivíduo/sociedade e teoria/prática) sustentadas

39
pelo modelo positivista de ciência e construir uma Psicologia comprometida com
a transformação da realidade brasileira. Ou seja, buscavam construir uma
Psicologia que considerava o "conhecimento científico como práxis, unidade
entre saber e fazer" (Bock, Ferreira, Gonçalves & Furtado, 2007, p. 48), na qual
teoria e prática deveriam ser vividas sempre como militância. Para isso,
propunham adotar uma nova concepção de "homem": o "homem" social e
histórico, bem como um novo método: o materialismo histórico e dialético (Lane,
1984/2007).

Uma das experiências que contribuíram para essa insatisfação com a


Psicologia Social hegemônica e para o desejo de construir uma Psicologia
comprometida socialmente foi o trabalho que o grupo de Silvia Lane desenvolveu
com sindicatos e comunidades operárias de Osasco, na Grande São Paulo. Com
a colaboração de Alberto Abib Andery e Odette de Godoy Pinheiro – também
docentes da PUC-SP – esse projeto tinha como finalidade a prevenção em saúde
mental da população trabalhadora de um bairro periférico do referido município
e, para isso, propunha o desenvolvimento de ações de caráter educativo-
preventivo e ações de atendimento ambulatorial (Andery, 1984). Segundo Bock,
Ferreira, Gonçalves e Furtado (2007), alunas(os) da PUC-SP naquele período,
os trabalhos de Osasco permitiram um profundo questionamento tanto da
metodologia quanto da teoria da psicologia social. Recuperou-se a experiência
já consagrada de Paulo Freire com sua obra "Pedagogia do oprimido", leu-se
Alberto Merani, debateu-se a necessidade e preponderância do método
qualitativo de pesquisa, falou-se em pesquisa-ação o ou pesquisa participante.

40
Questionou-se profundamente o parâmetro teórico da psicologia social. De uma
hora para outra, apenas a discussão crítica da Psicologia Social americana não
era mais suficiente. (p. 48, destaque dos autores)

Foi, também, importante para o desenvolvimento da Psicologia Sócio


Histórica a aproximação de Lane com psicólogas(os) sociais de outros países
latino-americanos, como as venezuelanas Maritza Montero e Maria Auxiliadora
Banchs, a peruana Gladys Montecinos, o cubano Fernando Gonzalez Rey e o
espanhol, radicado em El Salvador, Ignacio Martín-Baró (Bock, Ferreira,
Gonçalves & Furtado, 2007).

Atualmente, a Psicologia Sócio-Histórica está presente em diversos


programas de pós-graduação e cursos de graduação em Psicologia, tais como
os oferecidos pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-
RS), pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), pela Universidade Federal
de Santa Catarina (UFSC), pela Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho (Unesp) e pela própria PUC-SP. Possui, também, um grupo de
trabalho na ANPEPP, intitulado "A Psicologia Sócio Histórica e o Contexto
Brasileiro de Desigualdade Social".

2.2.3 A Teoria das Representações Sociais

O termo "representações sociais" foi utilizado pela primeira vez por Serge
Moscovici em Psychanalyse: son image et son public (1961) para se referir aos
saberes populares e do senso comum, elaborados e partilhados coletivamente
com o objetivo de construir e interpretar o real (Oliveira & Werba, 2007).
Moscovici havia percebido que os meios de comunicação difundiam uma série
de conceitos psicanalíticos e que esses eram incorporados à linguagem
cotidiana de diferentes grupos sociais de uma forma bem "livre", sem fazer
referência alguma à fundamentação teórica original. Havia percebido também
que, nesse movimento, conceitos complexos eram transformados em
conhecimento acessível, útil para dar sentido à realidade e justamente é esse
processo de transformação de noções acadêmicas em ideias do senso comum
que o autor enfoca nessa obra (Álvaro & Garrido, 2006).

41
Segundo Celso Pereira de Sá (2007), a Teoria das Representações
Sociais (TRS) chegou ao Brasil em 1978, com a publicação da primeira parte do
livro de Moscovici. Pouco tempo depois, estudantes latino-americanas(os) –
dentre elas(es), algumas(uns) brasileiras(os) – começam a procurar o laboratório
de Moscovici na França para fazer cursos de pós-graduação. Segundo o autor,
foi a partir da iniciativa dessas(es) estudantes que a TRS penetrou efetivamente
no Brasil: "de fato, no seu segundo ingresso no país, em 1982, a teoria veio
corporificada na pessoa de uma pesquisadora francesa, Denise Jodelet, que,
atendendo aos convites de suas estudantes latino-americanas, após passar pela
Venezuela, desembarcou em Campina Grande, Paraíba." (p. 598).

Jodelet foi uma figura importante para a familiarização de estudantes e


estudiosas(os) brasileiras(os) com TRS. Além de desenvolver parcerias com
grupos de pesquisa de várias universidades do país, incentivou a realização de
eventos sobre a abordagem, promovendo, com isso, aproximações entre
pesquisadoras(es) brasileiras(os) e várias(os) autoras(es) europeus – entre
elas(es), o próprio Moscovici. De acordo com Sá (2007), com o passar dos anos,
"os pesquisadores brasileiros foram se tornando cada vez mais competentes e
autônomos em suas atividades de ensino –inicialmente em nível de pós-
graduação, mas hoje também na graduação – e de produção de conhecimento
nesse domínio da psicologia social." (p. 598). Desse modo, segundo o autor,
embora os vários grupos já consolidados de pesquisa ainda mantenham
parcerias com países europeus, há um crescente esforço de associação e
cooperação internas, cujos resultados têm se mostrado mais evidentes nas
atividades do Grupo de Trabalho sobre Representações Sociais, da Associação
Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP) e nas
Jornadas Internacionais sobre Representações Sociais. Esse esforço de

42
cooperação resultou, também, na criação de centros e redes de pesquisa, tais
como o "Centro Internacional de Estudos em Representações Sociais e
Subjetividade – Educação" (CIERS-ed), o "Centro Internacional de Pesquisa em
Representação e Psicologia Social ‘Serge Moscovici'" e a "Rede Internacional de
Pesquisa sobre Representações Sociais em Saúde" (RIPRES) (Jodelet, 2011) 3.

Segundo Jodelet (2011), hoje, podemos até mesmo falar em uma "escola
brasileira" da TRS . Afinal, já temos um "um grupo de pesquisadores unido por
um mesmo estilo e uma mesma preocupação ou orientação" (p. 22). Para a
autora, apesar de possuírem divergências teóricas e metodológicas, as(os)
pesquisadoras(es) que fazem parte dessa "escola" têm em comum a
preocupação de entender os (e intervir nos) problemas sociais de seu país. Em
suas palavras: os trabalhos são desenvolvidos essencialmente em torno de
temas ou domínios chamados de "aplicação", mas que em efeito, são domínios
onde surgem problemas sociais importantes: educação, saúde, ambiente,
política e justiça social, movimentos sociais, memória e história... essa
orientação social é característica de uma "escola" radicalmente diferente da
perspectiva das escolas europeias. Estas se dedicam a processos e temas
definidos de maneira teórica para enriquecer a teoria, afinar as metodologias, no
laboratório ou no campo; ou para oferecer novas vias de análise dos fenômenos,
conceitos e temas da disciplina "psicologia social", opondo-se as correntes
tradicionais. (p. 22).

2.2.4 Abordagens construcionistas

Em texto publicado em 1985, no American Psychology, Kenneth Gergen


define a investigação construcionista como aquela que se preocupa com a
explicitação dos processos por meio dos quais as pessoas descrevem e
explicam o mundo em que vivem. Não é propriamente uma teoria, mas um
movimento de questionamento das formulações representacionistas sobre
produção de conhecimento, que perpassa diferentes campos do saber, tais
como a filosofia, a antropologia, a sociologia, a física e a própria Psicologia Social
(Spink & Spink, 2007).

Para Lupicinio Iñiguez (2008), a principal característica desse movimento


é o contínuo questionamento daquilo que é considerado óbvio, natural, correto e
evidente. Para assumir essa postura crítica e, ao mesmo tempo, reflexiva,

43
autoras(es) construcionistas costumam se basear em alguns pressupostos: o
primeiro deles é o antiessencialismo, ou seja, a adoção de uma postura
desnaturalizadora, que considera que tanto as pessoas como o mundo em que
elas vivem são produtos de processos sociais específicos. Assim, não existiriam
objetos naturais: "os objetos são como são porque nós somos como somos, os
fazemos, tanto como ele nos fazem e, portanto, não há objetos independentes
de nós, nem nós somos independentes deles" (Ibañez, 2001, p. 578). É neste
sentido que autoras(es) construcionistas afirmam que a realidade é construída.

Desse modo, a postura construcionista problematiza o modo como


aprendemos a olhar para o mundo e para nós mesmos. Questiona a ideia de que
podemos produzir conhecimento a partir da observação objetiva e imparcial da
realidade – como se a ciência fosse um "espelho" que reflete as coisas tal como
elas são. Sustenta que a verdade, o bom e o correto são construções sociais
(Iñiguez, 2008). Essa é, portanto, uma postura relativista, mas não no sentido de
"um idealismo desenfreado porque, ao assumir que nossos critérios para definir
valores e verdades são construções nossas, a nossa responsabilidade de adotar
posturas éticas e assumir valores aumenta." (Spink & Spink, 2007, p. 578).

A postura construcionista nos convida a problematizar a essencialização


do mundo social e natural, bem como a entender a historicidade e o caráter
situado de nossas maneiras (científicas ou não) de compreender o mundo em
que vivemos. Ao fazer isso, a linguagem deixa de ser apenas expressiva e
adquire um caráter performativo, passando a ser uma "forma de construção da
realidade por gerar as categorias a partir das quais pensamos e damos sentidos
aos eventos do nosso cotidiano. Como consequência, o conhecimento passa a

44
ser tomado como uma construção coletiva resultante de práticas sociais
culturalmente localizadas." (Spink & Spink, 2007, p. 578).

A reflexão construcionista adentrou no Brasil por duas vias: uma em


interlocução com pesquisadores associados ao Taos Institute, que têm Kenneth
Gergen como principal referência, e a outra decorrente de aproximações com a
filosofia da linguagem, sobretudo Rorty (1994) e mais conectada a
pesquisadores da Universidade Autônoma de Barcelona, que têm Tomas Ibañez
por principal referência. A interlocução com o Taos Institute se deu por meio de
visitas de pesquisadores à Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão
Preto, sobretudo Sheila McNamee, e por meio da realização de estágios
sanduíche em universidades norte-americanas com linhas de pesquisa
inspiradas nas reflexões construcionistas. Nesse âmbito, um marco importante
foi a tradução do livro "Terapia como construção social" publicada em inglês em
1992 e traduzida para o português em 1998 (McNamee & Gergen, 1998).

A influência de pesquisadores da Universidade Autônoma de Barcelona


foi pontuada por visitas recíprocas de pesquisadores do Programa de Estudos
Pós-graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo e da UAB, sobretudo em diálogo com Lupicinio Iñiguez. Contudo, as
reflexões construcionistas já se faziam presentes no Núcleo de Estudos e
Pesquisas em Práticas Discursivas no Cotidiano (NUPRAD), com forte influencia

45
da "virada linguística" na filosofia e das correntes da Psicologia Discursiva (por
exemplo, Potter & Wetherell, 1987). Assim, em 1999, pesquisadores afiliados ao
NUPRAD organizaram e publicaram uma primeira apresentação da abordagem
de análise de práticas discursivas pautada na abordagem construcionista (Spink,
1999).

Embora compartilhem de pressupostos tais como a especificidade cultural


e histórica das maneiras de conhecer o mundo e a valorização da postura crítica
e reflexiva, há algumas diferenças decorrentes dessas influências. A corrente
derivada das propostas de Gergen tem foco mais relacional, dando primazia aos
relacionamentos humanos na produção e sustentação do conhecimento
(Rasera, Guanaes & Japur, 2004; McNamee, 2011). Em contraste, a corrente
associada às reflexões de Tomas Ibañez é mais fortemente influenciada pelos
estudos de ciência e tecnologia que levam a aproximações com vertentes da
sociologia simétrica, sobretudo a Teoria Ator-Rede (Law & Hassard, 1999).

3.0 PSICOLOGIA SOCIAL E DISCIPLNAS AFINS

Os psicólogos sociais estudam atitudes e convicções, conformidade e


independência, amor e ódio. Em termos mais formais, a psicologia social é o
estudo científico da maneira como as pessoas pensam, influenciam e se
relacionam umas com as outras (MYERS, 2000).

A psicologia social ainda é uma ciência jovem. Os primeiros experimentos


de psicologia social foram relatados há apenas um século (1898), enquanto o
primeiro texto de psicologia social foi publicado há apenas três quartos de século
(1924). Só na década de 1930 é que a psicologia social assumiu sua forma atual.

46
E foi só depois da Segunda Guerra Mundial, para a qual os psicólogos
contribuíram com estudos imaginativos de persuasão e moral dos soldados, que
ela começou a se destacar como o campo vibrante que é hoje. Em apenas três
décadas, o número de publicações especializadas em psicologia social mais do
que dobrou (MYERS, 2000).

Hoje, o campo em expansão da psicologia social enfatiza (MYERS, 2000):

- O poder da situação: somos criaturas de nossas culturas e contextos. Assim,


as situações ruins, às vezes, sufocam as boas intenções, induzindo as pessoas
a aceitar falsidades ou a consentir com a crueldade.

- O poder da pessoa: somos os criadores de nossos mundos sociais. Se um


grupo é mau, seus membros contribuem (ou resistem) para tal. Enfrentando a
mesma situação, pessoas diferentes podem reagir de maneiras diferentes.
Depois de anos de prisão política, uma pessoa exala amargura. Outra, como
Nelson Mandela, da África do Sul, trata de seguir em frente e se empenha para
unir seu país.

- A importância da cognição: as pessoas reagem de maneiras diferentes em


parte porque pensam de maneiras diferentes. Sempre importa como
raciocinamos intuitivamente. A maneira como reagimos ao insulto de um amigo
depende de como explicamos o fato: um reflexo de hostilidade ou apenas um
mau dia.

A realidade social é uma coisa que interpretamos de um modo subjetivo.


Nossas convicções a respeito de nós mesmos também importam. Temos uma
perspectiva otimista? Sentimos que estamos no controle? Vemos a nós mesmos
como superiores ou inferiores? Tais pensamentos (cognições) influenciam
nossas atitudes e comportamentos.

- O emprego dos princípios de psicologia social: os psicólogos sociais estão


mais e mais aplicando seus conceitos e métodos, as preocupações sociais
atuais, como o bem-estar emocional, a saúde, a tomada de decisão em tribunais,
a redução do preconceito, o projeto e a conservação ecológica e a busca pela
paz.

47
Os psicólogos sociais interessam-se profundamente pela maneira como
as pessoas pensam, influenciam e se relacionam umas com as outras. Mas isso
também ocorre com os sociólogos e os psicólogos da personalidade (MYERS,
2000).

• Psicologia social e sociologia

As pessoas muitas vezes confundem a psicologia social com a sociologia. Os


sociólogos e os psicólogos sociais partilham um interesse pela maneira como as
pessoas se comportam em grupos. Mas a maioria dos sociólogos estuda desde
grupos menores até maiores (sociedades e suas tendências), enquanto a
maioria pensa sobre os outros, é influenciada pelos outros, ou se relaciona com
os outros. Isso inclui estudos de como os grupos afetam o indivíduo e como o
indivíduo afeta os grupos (MYERS, 2000).

48
Alguns exemplos: ao estudar relacionamentos íntimos, um sociólogo pode
estudar tendências nos índices de casamento, divórcio e coabitação; um
psicólogo social pode examinar como certos indivíduos se sentem atraídos uns
pelos outros. Ou um sociólogo pode investigar como as atitudes raciais das
pessoas de classe média de um grupo diferem das atitudes das pessoas de
baixa renda. Um psicólogo social pode estudar como as atitudes raciais se
desenvolvem dentro do indivíduo (MYERS, 2000).

Embora os sociólogos e os psicólogos sociais usem alguns dos mesmos


métodos de pesquisa, os psicólogos sociais baseiam-se muito mais nos
experimentos em que manipulam um fator, como a presença ou ausência da
pressão de colegas, a fim de verificar qual é o efeito. Os fatores que os
sociólogos estudam, como classe socioeconômica, são tipicamente difíceis ou
aéticos para manipular (MYERS, 2000).

• Psicologia social e psicologia da personalidade

A psicologia social e a psicologia da personalidade são aliadas em seu


foco no indivíduo. A diferença está no caráter social da psicologia social. Os
psicólogos da personalidade concentram-se no funcionamento interno particular
e nas diferenças entre indivíduos; por exemplo, por que alguns indivíduos são
mais agressivos do que outros. Os psicólogos sociais concentram-se na nossa
humanidade comum, como as pessoas, em geral, encaram e afetam uma as
outras. Indagam como as situações sociais podem levar a maioria dos indivíduos
a agir com bondade ou crueldade, a se conformar ou ser independente, a sentir
simpatia ou preconceito (MYERS, 2000).

49
Há outras diferenças: a psicologia social tem uma história mais curta.
Muitos representantes da psicologia da personalidade, como Sigmund Freud,
Carl Jung, Karen Horney, Abraham Maslow e Carl Rogers, viveram e
trabalharam durante os primeiros dois terços deste século. A maioria dos
contribuintes da psicologia social está viva. A psicologia social também possui
poucos teóricos famosos e muito mais pesquisadores desconhecidos e criativos
que contribuem para conceitos de menor escala (MYERS, 2000).

Estudam-se os seres humanos de diferentes perspectivas, conhecidas


como disciplinas acadêmicas. Estas perspectivas variam de ciências básicas,
como física e a química, a disciplinas integrativas, como a filosofia e a teologia.
Qualquer perspectiva é relevante, dependendo daquilo sobre o que se quer falar.
Veja o amor, por exemplo. Um fisiologista pode descrever o amor como um
estado de excitação. Um psicólogo social pode examinar como várias
características e condições – boa aparência, a semelhança entre parceiros, a
pura exposição reiterada – acentuam os sentimentos a que chamamos amor.
Um poeta enalteceria a sublime experiência que o amor pode às vezes ser. Um
teólogo pode descrever o amor como o objetivo dos relacionamentos humanos
determinado por Deus (MYERS, 2000).

50
Não se presume que qualquer um desses níveis é a verdadeira
explicação. As perspectivas fisiológica e emocional do amor, por exemplo, são
apenas duas maneiras de se considerar o mesmo evento. Da mesma forma, uma
explicação evolucionista dos tabus universais contra o incesto (em termos da
penalidade genética que a prole paga pela endogamia) não substitui uma
explicação sociológica (que pode considerar os tabus de incesto como uma
maneira de preservar a unidade familiar) ou uma teológica (que pode se
concentrar na verdade moral). As várias explicações podem se complementar
(MYERS, 2000).

Se toda verdade é parte de uma só estrutura, então os níveis diferentes


de explicação devem se ajustar para formar um quadro geral. O reconhecimento
do relacionamento complementar de vários níveis explicativos nos livra de
discussões inúteis se devemos encarar a natureza humana em termos científicos
ou subjetivos: não é uma questão de ou isso/ou aquilo. O sociólogo Andrew
Greeley (1976) explica: “Por mais que tente, a psicologia não pode explicar o
propósito da existência humana, o significado da vida humana, o supremo
destino da pessoa humana.” A psicologia social é uma importante perspectiva
da qual podemos nos considerar e compreender, mas não é a única (MYERS,
2000).

4.0 ABORDAGENS DA PSICOLOGIA SOCIAL E SEU ENSINO

O ensino de Psicologia Social, nos cursos de graduação em Psicologia de


todo país, nem sempre segue uma mesma diretriz. Ao compartilharmos opiniões
com estudantes de diferentes universidades, seja em eventos científicos ou de

51
cunho político, deparamo-nos com um mosaico de teorias e de práticas
inspiradas na Psicologia Social. Muitas vezes, encontrar pontos em comum entre
as distintas abordagens torna-se um trabalho intelectual árduo, digno de
fervorosas horas de discussões político-acadêmicas – regado pelo mais alto
grau de comprometimento afetivo com a transformação social em nossa pátria.

Ávidos por transformar a realidade, muitos estudantes esperam de seus


mestres uma atitude crítica em relação à sociedade. Querem mudá-la para
melhor, trazendo o bem-estar, igualdade e justiça social em diferentes níveis:
individual, familiar, grupal, comunitário, institucional e até mesmo nacional ou
internacional.

O aspecto comum a essas calorosas discussões estudantis parece ser o cunho


prioritariamente social da futura prática profissional, mais do que um ponto de
vista teórico específico. Em outras palavras, o desejo de atuação com
compromisso social leva à busca de teorias e métodos de intervenção social,
muitas vezes esperados no ensino de disciplinas de Psicologia Social.
Destrinchando essa inquietação dos estudantes, percebemos que o "social" da
Psicologia é o que parece definir a Psicologia Social, e não o status como
disciplina científica e como campo profissional desta última.

52
Diante desse panorama, encontramos um lapso na formação em
Psicologia Social dentro dos cursos de graduação em Psicologia no Brasil. Como
argumenta Stralen (2005), a maioria dos cursos de Psicologia está marcada por
uma estrutura curricular tradicional, em que a "Psicologia Social aparece apenas
como uma disciplina básica que permite compreender os aspectos sociais do
comportamento psicológico" (p. 94). Isso significa que o lapso contido na
formação é o de que se ensina Psicologia Social como uma abordagem em
Psicologia, ao invés de considerá-las como disciplinas que possuem interfaces
entre si.

Como explicam Ávaro e Garrido (2006, p. 06), tende-se a confundir


abordagens sociais em Psicologia com a disciplina científica Psicologia Social
pela sua própria rotulação. Stralen (2005, p. 94) complementa que, no Brasil, tal
confusão ocorre também: a) pela formação de psicólogos sociais dar-se em
cursos de graduação em Psicologia; b) pela diminuição cada vez maior do
número de disciplinas de Psicologia Social em cursos de ciências humanas e
ciências sociais aplicadas; c) pela ação do Conselho Federal de Psicologia
(CFP), que regulamenta supervisão de estágio supervisionada por psicólogos
inscritos nos Conselhos de Psicologia, o que dificulta a contratação universitária
de psicólogos sociais não graduados como psicólogos.

A Psicologia Social é uma disciplina diferente da Psicologia, apesar das


estreitas ligações que resguarda com esta, como veremos mais adiante. Ao

53
longo do texto traremos argumentos que reforçam este nosso ponto de vista,
parcial e refutável como qualquer outro viés científico.

Nos EUA, é possível graduar-se em Sociologia com ênfase em Psicologia


Social, ou graduar-se em Psicologia com ênfase em Psicologia Social,
dependendo da universidade cursada. Na Argentina, existem cursos superiores
específicos de Psicologia Social. Também há casos de graduação específica em
Psicologia Social em países europeus. Por que, então, no Brasil ensina-se
Psicologia Social como uma das vertentes em Psicologia? Essa é uma pergunta
que remete à criação dos cursos de Psicologia no Brasil e à regulamentação da
profissão de psicólogo, como lembra Krüger (1986), mas que ainda merece
maior aprofundamento por parte dos pesquisadores. Por outro lado, remete-nos
também a outro debate de cunho teórico: examinarmos quais foram as distintas
influências das diferentes abordagens da Psicologia, ainda em emergência,
decisivas na constituição dos também distintos vieses teóricos da Psicologia
Social, com lembra Rey (2004).

Segundo escrevem Stralen (2005, p. 93) e Álvaro e Garrido (2006), a


Psicologia Social é uma disciplina que se constitui no espaço de interseção entre
a Psicologia e Sociologia. Rose (2008) e Mailhiot (1976) entendem que a
Psicologia Social pode ser considerada uma disciplina de ciências sociais. Por
outro lado, Krüger (1986, p. 08) argumenta que situá-la entre as ciências
humanas e sociais esbarra na dificuldade de estabelecerem-se limites rigorosos
entre tais ciências. Nessa linha, Rodrigues (1978) expõe aspectos comuns entre
a Psicologia Social e a Sociologia, Antropologia Cultural, Filosofia Social e outros
setores da Psicologia, descrevendo que cada disciplina possui objeto formal
distinto de estudo, que delimita o campo de cada uma delas, mas que por se
tratar de áreas afins, possuem interseção bastante nítida em seu objeto material.
Um exemplo dado por Rodrigues é o da delinquência juvenil: este objeto material
pode ser estudado segundo distintas abordagens disciplinares, variando a
ênfase, a unidade de análise e os métodos empregados, mas "a diferença é,
para todos os efeitos práticos, inexistente" (Rodrigues, 1978, p. 09-10).

54
Essa dificuldade de inscrição da Psicologia Social dentro das ciências
humanas e/ou sociais se dá, em grande parte, por conta do momento em que
surgiram não apenas ela, mas também a Psicologia, Sociologia e Antropologia.
Trata-se do contexto do destacamento das ciências sociais das ciências naturais
no final do século XIX, em que antigos temas de especulação passaram a ser
estudados segundo o paradigma científico moderno: teoria, levantamento de
hipóteses, teste empírico das hipóteses levantadas, análise dos dados colhidos,
confirmação ou rejeição das hipóteses, generalização. Por outro lado, nos
primórdios da Psicologia Social moderna, nos Estados Unidos do final do século
XIX e começo do século XX, os primeiros pesquisadores dessa área
encontraram respaldo em centros tanto de Psicologia quanto de Sociologia (Farr,
1998). Isso resultou em origens plurais da disciplina, em disputas pelo seu status
como ciência social ou ciência humana e até mesmo em sua negação como área
de investigação autônoma.

Diante de tais questões, este artigo visa localizar a emergência da


Psicologia Social em suas diferentes abordagens, contextualizando-a dentro dos
paradigmas das ciências sociais e sua posterior evolução, com o objetivo de dar
subsídios aos estudantes de graduação e pós-graduação a respeito das distintas
vertentes que a disciplina oferece atualmente. Para tanto, faremos uma breve
recapitulação do destacamento das ciências sociais das naturais no final do
século XIX, localizando a Psicologia Social dentro desse cenário. Em seguida,
faremos uma didática apresentação das vertentes mais proeminentes na
disciplina, mostrando período e país de origem, e abordaremos a "crise" na
Psicologia Social nos anos 1960. Então dissertaremos a respeito das linhas
contemporâneas – incluindo aquelas utilizadas na América Latina e Brasil, dando
maior destaque à Psicologia Social comunitária.

55
4.1 Ciências naturais, ciências sociais e a Psicologia Social

A ciência moderna surge a partir do século XVII, embora seu embrião


encontre-se no século precedente (Ludwing, 2009). De modo geral, o
pensamento moderno plasmou-se como consequência do declínio da cultura
medieval e consolidou-se pela necessidade de separação entre teologia, filosofia
e as nascentes áreas da ciência. Reforçado pelo Iluminismo e pela Revolução
Francesa, um de seus aspectos centrais era o destaque concedido à razão como
instrumento de obtenção do saber e, para tal, se aceitava "somente as verdades
resultantes da investigação da razão através de procedimentos demonstrativos"
(Ludwing, 2009, p.14). Nesse ponto é que o método científico ganha centralidade
na produção do conhecimento. Sua construção ocorreu, primeiramente, na área
das ciências da natureza e teve em Galileu Galilei (1564-1642) e Francis Bacon
(1561-1626) os fundadores do método experimental: observação de fatos,
proposição de hipótese e verificação por meio de experiências controladas. O
reforço desse tipo de método veio no século XIX, com a emergência do
Positivismo, com seu rigor e acento na universalidade e objetividade científica.

Graças ao método experimental, as ciências naturais puderam evoluir de


maneira consistente, consolidando disciplinas como a Química, Física e Biologia.
Vale lembrar: como campo de estudos e especulação, os temas envolvendo
essas disciplinas modernas são antigos, mas a maneira como se constituíram
nesse novo contexto está marcada pelos modelos da ciência moderna. As
ciências sociais passaram a se desenvolver graças a métodos próprios, a partir
do final do séc. XIX, apesar de haverem iniciado usando os métodos das ciências
naturais. Dentre os novos métodos, Ludwing (2009, p.17-20) enuncia: dialético,
fenomenológico, estrutural e funcionalista. Lembramos que, para o autor, as

56
ciências sociais e humanas são colocadas juntas na diferenciação das ciências
naturais.

Álvaro e Garrido (2006) localizam a Psicologia Social nesse contexto mais amplo
da diferenciação das ciências sociais. E relembram dois aspectos importantes,
que destacamos no trecho abaixo:

Desde seu surgimento, no pensamento social europeu do século XIX, a


Psicologia Social se definia como uma disciplina plural. A pluralidade, tanto de
enfoques teóricos como de objetos de estudo, continuou caracterizando a
Psicologia Social à medida que ocorria sua diferenciação e sua consolidação
definitiva como disciplina científica independente, o que aconteceu
simultaneamente na Psicologia e na Sociologia (Álvaro & Garrido, 2006, p. 40).

O primeiro destaque refere-se ao fato de que a diversidade nas formas de


entender os fenômenos psicossociais foi fundante de cada uma dessas três
disciplinas, marcando campos de estudo, métodos, profissão e nicho de atuação.
Portanto, a delimitação disciplinar ocorreu tanto como tentativa de demarcação
dos domínios para cada tipo de cientista, quanto pela necessária fragmentação,
à mentalidade da época, para desenvolvimento de campos do saber. Em nosso
ponto de vista, o que marcou as distinções disciplinares estava mais ligado aos
cientistas do que à ciência em si, pois as barreiras entre Psicologia, Sociologia
e Psicologia Social eram tênues e havia muitas intersecções entre elas.

57
O segundo destaque é o da pluralidade na constituição da Psicologia
Social, o que significa origens múltiplas, e não apenas pela obra de um ou outro
autor. Para Rodrigues (1978, p. 39), os manuais de Psicologia Social diferem
consideravelmente a respeito das origens modernas dessa disciplina. Segundo
Krüger (1986, p. 10), "o início das especulações, interpretações e doutrinas a
respeito do Homem e do seu comportamento social remonte a filósofos das
civilizações clássicas, helênicas e romana, que alimentam as raízes da cultura
ocidental até hoje". Nesse sentido, o autor menciona que se encontra já em
Platão (428-347 a. C.) e Aristóteles (384-322 a. C.) as bases filosóficas que
constituem a pré-história da Psicologia Social. Para Mailhiot (1976, p. 17-18),
encontramos os primórdios da Psicologia Social nas obras de Auguste Comte
(1793-1857).

No entanto, se levarmos em consideração a Psicologia Social do ponto de


vista da implementação de métodos, técnicas de pesquisa e construção
conceitual (Krüger, 1986, p. 11), remontaremos às obras publicadas por Small e
Vincent em 1894 (num manual de sociologia), Gustave Le Bon em 1895, Gabriel

58
Trade em 1898, o início do curso de Psicologia Social ministrado por George H.
Mead em 1900, a obra de Charles Ellwood em 1901 e, por fim, Felix Le Dantec
em 1911. No entanto, como lembram Álvaro e Garrido (2006, p. 40), credita-se
o início da Psicologia Social como ciência independente com as obras de William
McDougall e de Edward A. Ross, ambas em 1908 e contendo no título
"Psicologia Social".

Para Farr (1998), as raízes da Psicologia Social moderna são encontradas


nas obras desses e outros autores, na interface com a Psicologia e a Sociologia
– o que resultou em enfoques de Psicologia Social psicológica e de Psicologia
Social sociológica. Colocado por outro ângulo, a pluralidade da Psicologia Social
esteve estreitamente ligada à utilização de métodos de investigação. Do lado da
Psicologia Social psicológica, predominou a experimentação em laboratório e a
compreensão de ciência segundo objetivismo e universalidade, inerentes à visão
positivista. Do lado da Psicologia Social sociológica, a busca por novas
metodologias resultou no desenvolvimento de pesquisas aplicadas e métodos
qualitativos, não obstante estes tenham coexistido com estudos de caráter
quantitativo.

Isso significa que o desenvolvimento das vertentes em Psicologia Social


também ocorreu sob o crivo das discussões a respeito da
objetividade/subjetividade, pesquisa quantitativa/qualitativa,
experimentalismo/pesquisa aplicada, inerentes aos debates que permeavam o
destacamento das ciências sociais das naturais. As respostas a essas questões
vieram marcar as diferenças nos fundamentos epistemológicos e estatuto
ontológico de cada uma das linhas teóricas da disciplina – e ainda causa
inquietação e dissenso entre profissionais, docentes e estudantes nos trabalhos
de investigação e intervenção.

Para Corga (1998), a Psicologia Social é uma disciplina que tenta entender o
Homem em seu contexto social, mas entre suas diferentes abordagens parece
ter em acordo apenas o nome. Sua pluralidade (que gera tensões e divisões)
deve ser observada segundo dois tipos de diversidade:

1) Diversidade Gestáltica. A diversidade vista a partir da totalidade da Psicologia


Social enquanto disciplina, cujas tensões de divisão aparecem: pelos estudos

59
centrados nas inter-relações sociais a partir do ponto de vista do indivíduo; e por
aqueles centrados nos aspectos sociológicos das relações sociais entre
indivíduos.

2) Diversidade Analítica. Fruto desta primeira, a diversidade tratada


analiticamente, em seus fundamentos científicos, com delimitações de: objeto de
estudo, método, conceitos, teorias, etc.

Em suma, podemos perceber que a pluralidade na Psicologia Social deve-se


tanto à ênfase em pontos de vista focados seja nos indivíduos ou nos aspectos
mais sociológicos das relações, quanto nos fundamentos científicos que
configuraram cada abordagem. Quais as linhas teóricas decorrentes desses
momentos iniciais e os seguintes desdobramentos, especialmente na América
Latina, isso é o que veremos a seguir.

4.2 As principais "tradições" da Psicologia Social

A partir dessa diversidade na disciplina, Corga (1998) circunscreve


agrupamentos segundo quatro principais ";tradições"; da Psicologia Social, que
a autora compreende

como um conjunto dos fundamentos, convicções e expressões que


compõe e dinamiza uma cultura. Esse conjunto é reconhecido por uma
comunidade, tal qual suas marcas, como as características pertencentes a este
grupo, e que, portanto, o diferencia dos demais (Corga, 1998, p. 70).

A autora complementa que é por meio de congressos, sociedades


científicas, revistas, centros de pós-graduação e handbooks que tais tradições
são cultivadas. Em outras palavras, pela maneira como os paradigmas
científicos são compartilhados, que Kuhn (2006) entende como " o conjunto de
60
regras, padrões, modelos e valores compartilhados por um determinado grupo
de praticantes da ciência que legitimam um campo de pesquisa" (p. 30). Como
já afirmamos anteriormente, é pelo trabalho dos cientistas que os paradigmas
científicos são validados – e não pela ciência em si, como algo independente das
pessoas que a praticam.

Para Corga (1998, p.75-183), existem quatro principais "tradições" em


Psicologia Social, que se sobressaíram não apenas nas origens da disciplina,
mas que até hoje têm fortes influências tanto no ensino quanto nas pesquisas.
São elas:

A) a tradição sociológica americana do interacionismo simbólico, iniciada


por George Herbert Mead (1934/1962) nos EUA, entre 1900 e 1931, e
desenvolvido por seus discípulos, entre eles, Blumer (1969), que alcunha o termo
"interacionismo simbólico". Posteriormente, dentro desta tradição, Sarbin (1968)
desenvolve a teoria do papel e Stryker a teoria da identidade (Styker & Burke,
2000). As teorizações de Mead continuam influenciando teóricos
contemporâneos, como por exemplo Habermas (1990), que afirma que "a única
tentativa promissora de apreender conceitualmente o conteúdo pleno do
significado da individualização social encontra-se na Psicologia Social de G. H.
Mead" (p. 185).

B) a tradição do experimentalismo psicológico (Psicologia Social


experimental), ocorrida nos EUA também no início do século XX, com seu
desenvolvimento e transformações por meio das influências do Behaviorismo
(Allport, 1924), Neobehaviorismo (Hull, 1952; Skinner, 1938), Gestalt (Lewin,
1951, 19702; Asch, 1952/1977), e Psicologia Cognitiva. A Psicologia Social
ganhou visibilidade principalmente pelos autores provenientes desta tradição.
Farr (1998) aponta Asch como um dos precursores da Psicologia Social
cognitiva, nos EUA. No entanto, por ter boa parte de suas idéias inspiradas na
Gestalt, Corga (1998) o localiza ainda sob as influências desta última, e não da
Psicologia Cognitiva.

61
C) a tradição dos "estudos de grupos sociais". Corga localiza vários
autores que contribuem para a edificação desta tradição, nos primeiros anos de
produção acadêmica norte-americana: 1) os estudos de Mayo (1933/1945), com
pequenos grupos de trabalhadores da Western Electric Company em
Hawthorne, Chicago, entre 1924 e 1932; 2) os estudos sociológicos da Escola
de Sociologia de Chicago, nos anos 1930, em ambientes naturais; 3) alguns
trabalhos de F. H. Allport, sobre "facilitação social" e "conformismo"; 4) as
inovações de J. L. Moreno no trabalho de psicoterapia de grupo; 5) as
contribuições de Sherif (1948, 1962), que em 1936 publica "A psicologia das
normas sociais", na qual aponta como os sujeitos se aproximam no grupo para
criar normas para situações ainda não estruturadas. Posteriormente, na década
de 1960, com o prosseguimento das pesquisas, elabora um modelo explicativo
das relações intergrupais para a questão do conflito e cooperação intergrupo. 6)
as contribuições de Lewin, que mesmo considerado como consolidador da
Psicologia Social experimental, tem em sua obra importante marco para as
pesquisas nesta "tradição". Além do Centro de Pesquisas em Dinâmica de
Grupo, Lewin também funda um outro centro, nomeado "comissão para inter-
relações comunitárias", no qual guiou estudos sobre as raízes do anti-semitismo,
práticas de socialização para a conscientização coletiva da discriminação social
e sobre o preconceito de forma global. 7) os trabalhos de Festinger (1957/1975,
1974; Festinger et al., 1950/1963), com sua teoria de "comparação social" e
"dissonância cognitiva"; a "teoria do intercâmbio social", de Thibaut e Kelley
(1959/1967); as pesquisas sobre a "Personalidade Autoritária", de Adorno et al.
(1950/1965); os trabalhos do sociólogo Homans (1951), com a teoria do
intercâmbio e a proposta de uma análise sociológica alternativa ao
funcionalismo; e as contribuições de Asch nas investigações sobre as minorias.

62
Os estudos a respeito de grupos sociais diminuíram consideravelmente
nos anos 1960, nos EUA, devido aos contextos sócio-político-econômicos.
Entretanto, o interesse dos psicólogos sociais a respeito de processos grupais e
intergrupais é retomado no final dos anos 1970 (Corga, 1998). Desta vez, com
força na Europa, perdurando e tendo produção expressiva até hoje. Algumas
escolas (grupos universitários) representam tal "tradição", como a Escola de
Bristol, com estudos da compreensão das relações intergrupais, seus conflitos e
discriminações, por meio de conceitos como identidade social, categorização
social e comparação social. As figuras proeminentes são seu precursor Tajfel
(1972, 1978, 1981) e seu discípulo Turner (1987), este último com a teoria da
auto-categorização, entre outros autores. Além da Escola de Bristol, existe
também a Escola de Genebra e outros grupos de pesquisadores ingleses,
americanos, canadenses e alemães, todos dedicando-se ao estudos de grupos
sociais.

D) a tradição sociológica européia das representações sociais, iniciada


Serge Moscovici (1978), a partir dos anos 1960 na França, com a publicação do
livro "A representação social da psicanálise". Moscovici se inspira na obra de
Émile Durkheim (com seus conceitos de representação individual e coletiva), que
critica duramente a Psicologia, mas que acrescenta:

não temos nenhuma objeção a que se caracterize a Sociologia como um


tipo de Psicologia, desde que tenhamos o cuidado de acrescentar que a
Psicologia Social tem suas próprias leis, que não são as mesmas da Psicologia
individual (Durkheim, 1898 citado por Farr, 1998, p. 152-3).

63
Nessa esteira é que Moscovici vai constituindo sua obra, diferenciando-
se de Durkheim, na qual pretende analisar os processos através dos quais os
indivíduos e os grupos em interação constroem uma "teoria" sobre um objeto
social, a qual norteará e orientará seus comportamentos, tomando como ponto
de partida as representações sociais da Psicanálise na França (Corga, 1998, p.
95). Álvaro e Garrido (2006) localizam as contribuições de Moscovici dentro do
contexto da Psicologia, por se tratar de um psicólogo, não obstante tenha se
inspirado em idéias de Durkheim. As teorizações de Moscovici possuem
discordâncias da Psicologia Social cognitiva tradicional, com o enfoque
individualista para leituras dos processos cognitivos e, por isso, Corga (1998) o
insere dentro da tradição sociológica de Psicologia Social.

Como se nota, há "tradições" em Psicologia Social no contexto da


Sociologia e aquelas no contexto da Psicologia, como preferem descrever Álvaro
& Garrido (2006), com teóricos que se influenciam mutuamente e que são,
prioritariamente, de origens européia e norte-americana. As "tradições" no
contexto da Sociologia seguiram mais inovações metodológicas das abordagens
qualitativas, enquanto aquelas no contexto da Psicologia desenvolveram-se
mais segundo metodologias quantitativas.

A importância dos norte-americanos para a Psicologia Social vai além do


desenvolvimento teórico-metodológico de teorias que tentassem explicar os
fenômenos psicossociais (com as ressalvas das diferenças já explicitadas). Para
Farr (1998, p. 28-31), após a Segunda Guerra, muitos psicólogos sociais norte-
americanos, entre eles Cartwright e Festinger (discípulos de Lewin), ajudaram
os europeus com suas pesquisas até então isoladas, no apoio logístico
necessário para a constituição de sociedades científicas. Entre elas, a
Associação Européia de Psicólogos Sociais Experimentais, que fora liderada por
personalidades proeminentes como Tajfel e Moscovici. Segundo Farr (1998),
Cartwright chega a influenciar até mesmo no apoio ao estabelecimento da
Psicologia Social no Japão.

Por outro lado, Lane (1981, p. 76-7) descreve que a produção da


Psicologia Social (prioritariamente experimental, norte-americana e de viés
pragmático), desde seu florescimento até os anos 1960, tinha seu foco de
pesquisas centrado nos estudos dos fenômenos de liderança, opinião pública,

64
propaganda, preconceito, mudanças de atitudes, comunicação, relações raciais,
conflitos de valores, relações grupais, etc. Em suma, todos estudos e
experimentos que procuravam procedimentos e técnicas de intervenção nas
relações sociais, que se traduziam em fórmulas de ajustamento e adequação de
comportamentos individuais ao contexto social. A crítica a esse tipo de produção
foi um dos motivos da chamada "crise" da Psicologia Social, que teve
repercussão direta nas produções latino-americanas, como veremos a seguir.

4.3 A "crise" da Psicologia Social: abordagens latino-americanas

No final da década de 1960, críticas vindas principalmente da Europa


começam a colocar a Psicologia Social tal como praticada em solo norte-
americano em xeque. No mesmo período, um movimento de autocrítica também
chega aos psicólogos sociais norte-americanos e aos seguidores latino-
americanos, que se inspiravam nessas teorizações. Este momento foi
denominado de "crise da Psicologia Social". Os questionamentos vieram de
vários lados e os artigos e livros produzidos nessa linha

refletiam criticamente a Psicologia Social, como os de Bruno, Poitou,


Pêcheux e outros publicados na Nouvelle Critique sob o título "Psicologia Social:
uma utopia em crise", assim como o prefácio de Moscovici numa obra organizada
por ele com o título Introduction de la psychologie sociale. Por outro lado, Merani
na Venezuela, Sève na França, Israel e Tajfel na Inglaterra contribuíram para
uma reflexão mais profunda, assim como a releitura de Politzer, George Mead e
Vigotski trouxeram novas perspectivas de estudo (Lane, 2006, p. 68-9).

65
Corga (1998, p. 152-154) aponta que tais críticas tinham como foco
principal o questionamento do laboratório como ambiente de produção científica,
complementando que passou-se a problematizar os avanços dos experimentos
em laboratório em detrimento da relevância do que se estava produzindo para o
enfrentamento de problemas sociais. Lane (1981, p. 78-80; 2006, p.67-8)
descreve que as críticas dirigiam-se principalmente ao caráter ideológico e
mantenedor das relações sociais das teorias e técnicas que vinham sendo
produzidas e que, na América Latina, mais um fator veio contribuir para reforçar
os questionamentos sobre teorias e metodologias: o caráter político da
Psicologia Social e da atuação dos psicólogos diante das ditaduras militares.

Esse movimento de crítica atinge diretamente a (re)produção latino-


americana. Em 1973, no XIV Congresso da Sociedade Interamericana de
Psicologia (SIP), realizado em São Paulo, questionou-se a produção da
Psicologia (como ciência) ter leis universais para o comportamento humano, uma
vez que este muda em função das diferenças históricas, culturais e sociais de
cada momento (Maluf, 2004). No congresso de 1976 (Miami, EUA), foram
explicitadas as críticas aos modelos teórico-metodológicos, mas sem propostas
de superação. No congresso seguinte, em 1979 (Lima, Peru), psicólogos dos
diferentes países latino-americanos passam a reconhecer que suas produções
deveriam estar voltadas para as condições próprias de cada um de seus países.
O encontro de brasileiros nesse congresso gerou a força necessária à criação
da Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO), segundo Lane
(1981). O impulso definitivo da criação da ABRAPSO veio em Novembro de
1979, por meio do I Encontro de Psicologia Social, sediado em São Paulo, com
o tema "Psicologia Social e Problemas Urbanos", e sua fundação oficial veio em
Julho de 1980, no Rio de Janeiro, durante a 32ª Reunião Anual da Sociedade
Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) (Abrapso, 2009).

Nesse contexto de questionamento teórico, metodológico e político, nasce


a Psicologia Social comunitária, ou simplesmente Psicologia Comunitária.
Segundo Andery (1984, p. 204), o termo aparece primeiro na Inglaterra e depois
nos EUA, enquanto Psicologia "na" comunidade. Entretanto, Montero (2004a)
precisa que a origem dessa vertente prático-teórica ocorreu tanto na América
Latina quanto nos EUA, como tentativas de redirecionamentos da Psicologia
Social para o enfrentamento de sua "crise".

66
Aprofundando-nos neste ponto, Montero (2004a) argumenta que entre os
anos 1960 e 1970, a emergência da Psicologia Social comunitária ocorreu: a) a
partir das discordâncias da Psicologia Social psicológica norte-americana e o
caráter estritamente subjetivista e experimental com que vinha sendo produzida
até então. b) Pelo impulso de outras disciplinas das ciências sociais que tinham
leituras macrossociais voltadas à comunidade.

Fato importante a ser mencionado, tal vertente da Psicologia Social surge,


na América Latina, em um contexto em que as desigualdades sociais e o
momento político explicitavam uma urgência de trabalhos críticos voltados para
a realidade de seus povos. Segundo Montero (2004b, p. 42-49), a Psicologia
Social comunitária nasce de uma prática emergente e transformadora de
psicólogos sociais colocados diante de situações concretas, apelando para uma
pluralidade de fontes teóricas e revisões críticas delas, que os conduziram à
elaboração de um modelo teórico próprio às realidades latino-americanas. A
autora expõe que o desenvolvimento dessa vertente na América Latina ocorreu
por meio de primeiras influências, influências mais centrais e por relações Inter
influentes, entre três correntes: a Psicologia Social comunitária, ela mesma; a
Psicologia da Libertação (Martín-Baró, 1998); e a Psicologia Social crítica (Lima,
2010).

Diante desse campo emergente, Freitas (1999, p. 50) agrega que o tipo
de práxis da Psicologia Social comunitária vem se desenvolvendo por duas
preocupações básicas: a) a construção do conhecimento, que configura esse
campo. b) Aquela comprometida explicitamente com a transformação da
realidade. Nessa linha, Montero (2004a, p. 53) argumenta que os modelos
construídos dentro dessa abordagem são tratados em seis frentes: prático-
teórico, ontológico, epistemológico, metodológico, ético e político.

67
Em linhas gerais, pode-se afirmar que a Psicologia Social comunitária é
um ramo da Psicologia Social que aborda as comunidades e que é realizada com
elas. Ou, nas palavras de Montero (2004a), o ramo da psicologia [social] cujo
objeto é o estudo dos fatores psicossociais que permitem desenvolver, fomentar
e manter o controle e poder que os indivíduos podem exercer sobre seu
ambiente individual e social para solucionar problemas que os afetam e lograr
mudanças nesses ambientes e na estrutura social (p. 70, tradução nossa).

Segundo Sawaia (1997, p. 86), pode-se dizer que o objetivo


dessa práxis psicossocial é de atuar pela legitimação social dos envolvidos, que
pressupõe a legitimidade individual na vida pública e na privada, no sentido de
buscar firmar o exercício da autonomia e da criação no espaço coletivo. Ou seja,
atua-se pela potencialização das ações individuais e coletivas em prol do bem
comum e da felicidade particular.

Um dos impulsionadores das vertentes críticas aos modelos vigentes em


Psicologia Social foi Martín-Baró (1998; 1999; 2001), com suas contundentes
colocações a respeito da disciplina e do caráter histórico das teorias, do caráter
ideológico das práticas dos psicólogos e do ético-político a ser adotado na
atuação transformadora. Como exposto por Blanco (1998), Martín-Baró propõe
a atuação do psicólogo por meio do compromisso pela emancipação,
desideologização e bem-estar, o que configuram a própria libertação. Adotando
a ideia de conscientização de Paulo Freire, Martín-Baró (2001, p.169-172) afirma

68
ser este o horizonte primordial do fazer dos psicólogos, trabalhando-se pela
desalienação da consciência social. Ao falar sobre a consciência, o autor a
descreve da seguinte maneira:

A consciência não é simplesmente o âmbito privado do saber e sentir


subjetivo dos indivíduos, mas sobretudo aquele âmbito onde cada pessoa
encontra o impacto reflexo de seu ser e de seu fazer em sociedade, onde
assume e elabora um saber sobre si mesmo e sobre a realidade que lhe permite
ser alguém, ter uma identidade pessoal e social. A consciência é o saber e o
não-saber sobre si mesmo, sobre o próprio mundo e sobre os demais, um saber
prático antes que mental, já que se inscreve na adequação às realidades
objetivas de todo comportamento (Martín-Baró, 2001, p.167-8, tradução nossa).

Sendo a consciência um objeto de estudos privilegiado pela Psicologia (e


Psicologia Social), como colocado por Martín-Baró, é importante que a
consideremos como uma realidade psicossocial, ou seja, um saber dialético das
pessoas sobre si mesmas e sobre a coletividade. Nesse sentido, o trabalho de
conscientização visa:

a) romper com a alienação, constituída em esquemas fatalistas


sustentados ideologicamente, que consideram a maioria popular como indolente,
preguiçosa e incapaz de transformar sua realidade;

b) sair da reprodução da relação dominação/submissão;

c) recuperação da memória histórica, para assumir a ligação do passado


e presente numa perspectiva de futuro que integrem o pertencimento e as lutas
políticas no âmbito pessoal e social.

Dentro dessa perspectiva de atuação comprometida com a realidade,


Montero & Martín-Baró (1987) entendem que este campo teórico e metodológico,
de processos políticos e de formas de intervenção psicopolítica são,
eminentemente, marcantes da Psicologia Política – uma outra vertente da
Psicologia Social. A Psicologia Social comunitária latino-americana (ou
Psicologia Comunitária, como preferem denominar alguns grupos brasileiros)
desenvolveu-se em algumas direções, enquanto a Psicologia Política veio se
desenvolvendo por outros caminhos, apesar de haver intersecções dentro das
perspectivas atuais em ambas, como lembra Freitas (2001).

69
Do ponto de vista metodológico, a abordagem da Psicologia Social
comunitária não poderia deixar de ser de cunho participativo, uma vez que suas
posturas rompem com a neutralidade do pesquisador em relação aos "objetos"
de estudo (as pessoas), o que implica a consideração de uma postura ética e
política diferenciada do pesquisador. Além do rompimento da neutralidade, há
também a intenção de emancipação nas ações que configuram o grau de
participação da pesquisa, delineadas em função de acordos firmados junto aos
envolvidos na Co construção do conhecimento.

Como vimos até este momento, após a "crise" da Psicologia Social, muitos
psicólogos passaram a atuar com base em teorias mais condizentes com a
realidade latino-americana. Não obstante já exista produção prático-teórica
relevante na área, para Corga (1998) essa vertente não é tratada como "tradição"
por ainda não possuir sedimentação paradigmática suficiente, tal qual aquelas
citadas anteriormente. Em suma, temos mais estas duas correntes compondo a
gama de opções prático-teóricas da Psicologia Social:

E) a Psicologia Social comunitária (ou Psicologia Comunitária), que na América


Latina já apresenta produção teórica relevante e expressiva.

F) e a Psicologia Política, que também vem ganhando força no cenário europeu,


norte-americano e latino-americano.

70
4.4 Outras abordagens em Psicologia Social no Brasil

Apesar da "crise" na Psicologia Social ter conduzido inúmeros psicólogos


a explorar novas possibilidades técnico-teóricas, em muitos centros de pesquisa
se realizam trabalhos em todas as vertentes citadas acima. Encontramos nos
diferentes centros de pós-graduação em Psicologia Social no Brasil
investigações dentro das linhas citadas até então. Além delas, é importante
mencionar também outras vertentes, estudadas pelos pesquisadores da
Psicologia Social no Brasil:

G) a Psicologia Social fundada pelo argentino Enrique Pichon-Rivière


(2002, 2003) e seus discípulos, cujos trabalhos são mais conhecidos pela
contribuição dos grupos operativos, mas que de longe não estão restritos a
estes.

H) as interfaces entre a Psicologia Social e as leituras da Psicanálise dos


fenômenos sociais e aquelas provenientes da Psicanálise de abordagem grupal
e institucional, com autores advindos da escola argentina, inglesa e francesa de
psicanálise (Castanho, 2005).

I) a Psicologia Social em sua interface com a Psicossociologia, pelas


contribuições do movimento institucionalista (socio psicanálise, psicoterapia
institucional, socio análise e esquizoanálise) (Machado & Roedel, 2001), também
com autores argentinos e franceses, e da qual emerge recentemente a
Psicologia Social clínica proposta por Barus-Michel (2004).

J) a corrente nomeada como Psicologia Social crítica (ou Psicologia


Crítica), que adota discussões de autores marxistas, neomarxistas e da Escola
de Frankfurt (Lane, 1981, 2006; Lima, 2010; Monteiro, 2006).

71
K) as contribuições dos russos A. N. Leontiev, L. S. Vygotsky e A. R. Luria,
que dão base às teorizações da Psicologia Sócio-Histórica (B ock, Gonçalves &
Furtado, 2004), com contribuições pertinentes às discussões da Psicologia
Social, em especial pelo estudo a respeito: da constituição social da
subjetividade; da historicidade como noção básica nos processos de formação
do sujeito; da consciência e atividade como categorias centrais para
compreender o indivíduo/sociedade; da aquisição da linguagem, aprendizagem
e socialização como fenômenos do âmbito individual/social.

L) O construcionismo social inaugurado por K. J. Gergen (1973; 2008),


afim às teorizações do interacionismo simbólico e teoria psicossocial de G. H.
Mead, à fenomenologia social de Alfred Schütz (que combina a fenomenologia
de Husserl e a sociologia de Weber) e aos desdobramentos dados por Berger e
Luckmann (2008), no difundido "A construção social da realidade". Atualmente,
o construcionismo social ganha força, como indicam Ibañez Gracia (2004),
Iñiguez (2004), Mol (2008), Spink e Menegon (2004).

Além, é claro, de muitas outras leituras em Psicologia Social realizadas


dentro do contexto da Psicologia e Sociologia contemporâneas, não referidas
acima e que recebem o devido valor em seus respectivos centros de estudos,
manuais e livros da área. Todas as tradições e correntes teriam,
paradoxalmente, um mesmo ponto em comum e de litígio: a relação indivíduo-
sociedade. Segundo Corga (1998, p. 240), todas essas abordagens são
consideradas como pertencentes à grande disciplina Psicologia Social por tentar

72
estudar o indivíduo psicológico e a sociedade num único objeto, deixando de
lado tanto a supremacia do psicologismo quanto do sociologismo, por meio de
metodologias quantitativas e qualitativas.

5.0 IDENTIDADE NO CONTEXTO ORGANIZACIONAL

O estudo da identidade envolve múltiplos níveis de análise. No âmbito


geral, dois níveis são mencionados nos estudos sobre essa temática: o pessoal
e o social (Antaki e Widdicombe, 1998; Gioia, 1998; Ruano-Borbalan, 1998;
Castells, 1999; Brown e Starkey, 2000; Howard, 2000). Essa é a primeira
classificação a que normalmente os estudiosos do assunto recorrem para
distinguir o fenômeno em seus níveis de percepção. A identidade pessoal está
ligada a uma construção individual do conceito de si, enquanto a identidade
social trata do conceito de si a partir da vinculação da pessoa a grupos sociais.

Nos estudos organizacionais, outras classificações têm demonstrado sua


aplicabilidade. São os conceitos de identidade no trabalho (Sainsaulieu, 1977) e
identidade organizacional (Whetten e Godfrey, 1998; Brown e Starkey, 2000;
Gioia, Schultz e Corley, 2000; Pratt e Foreman, 2000; Scott e Lane, 2000).

Embora se estabeleça essa diferenciação para fins de estudo, há uma


ligação entre as distintas formas estabelecidas, pois todas elas estão
embasadas no comportamento de indivíduos ou grupos. Mesmo a identidade
organizacional, que parece mais centrada nas organizações, só pode ser
explicada a partir do comportamento humano nas organizações. Entretanto a
distinção é importante para fins de análise, pois cada uma das classificações
contém elementos próprios, que melhor possibilitam a sua compreensão. Nessa

73
perspectiva, apresentam-se, a seguir, abordagens sobre cada um desses níveis
e, na sequência, suas interfaces, iniciando-se assim pelas considerações acerca
da identidade pessoal.

5.1 Identidade Pessoal

A identidade constitui uma tentativa de explicação do conceito de si,


sendofruto de uma construção psicológica. É processo em construção, definido
pela intermediação constante das identidades assumidas e das identidades
visadas (Dubar, 1996). Essa distância existente entre tais tipos de identidades é
exatamente o espaço de conformação do eu, ou seja, da construção da
identidade. É sob esse espaço que vão se processar as interações sociais e
ocorrerá a participação dos outros na construção da própria identidade.

A dinâmica da identidade é alimentada pela busca constante de unidade


subjetiva por parte dos indivíduos, pois eles adotam frequentemente padrões
comportamentais direcionados para preencher as expectativas do outro sobre
sua própria conduta, contrariando muitas vezes sua autodeterminação (Ricoeur,
1990). Entretanto, se essa dissonância ocorrer com muita intensidade, pode
resultar em fragilidade e em ruptura da unidade subjetiva (Moessinger, 2000).
Construir a própria identidade é, portanto, permanente desafio no sentido de
encontrar o equilíbrio entre aquilo que se é e o que os outros esperam que nós
sejamos. O outro é o espelho social que permite ao indivíduo reconhecer-se,

74
avaliar-se e aprovar-se. Sob essa perspectiva, o eu não existe, a não ser em
interação com os outros (Whetten e Godfrey, 1998).

Desse modo, embora exista em cada indivíduo um senso de


individualidade, a construção do autoconceito é inseparável do outro; portanto
as experiências desocialização constituem o principal referencial para formação
das identidades. É por meio delas que os processos de identificação são
deflagrados e os modelos são construídos no imaginário de cada um, fornecendo
o suporte para o processo de internalização por parte daqueles que se
identificam, porque a identificação "é a modelagem em pensamento, sentimento
ou ação de um indivíduo sobre outra pessoa" (Symonds apud Sainsanlieu, 1977,
p.305). Ao viver essas experiências, o indivíduo busca a noção de si, da
presença subjetiva, na tentativa de definir as fronteiras de si, de preservá-las e
de reencontrá-las. Nesse sentido, a identidade é resultante de múltiplas
identificações (Maffesoli, 1998; Miranda, 1998).

Assim as estruturas identitárias encontram-se constantemente renovadas


pelo seu caráter dinâmico e múltiplo, construídas e reconstruídas a todo o
momento. Os sucessivos processos de socialização conferem à palavra eu o
conteúdo de diversos eus (Craib, 1998), os quais o indivíduo procura
constantemente ordenar.

75
A identidade é sobretudo uma luta entre o processo consciente e
inconsciente. Os processos inconscientes ressoam no consciente, produzindo
significados. A ausência dessa transferência produziria uma vida estéril, como
uma concha vazia, e é somente por meio dela que a maturidade do indivíduo
acontece (Chodorow, 1989). No momento em que ele organiza o inconsciente,
a individuação torna-se mais forte e resulta na formação de um autoconceito
mais diferenciado.

A memória exerce papel importante na construção da identidade, porque


a representação de si é inseparável do sentimento de continuidade temporal. O
passado, o presente e o futuro são importantes para prover continuidade ou
consistência subjetiva (Haviland et al., 1994). A partir dos múltiplos mundos
classificados, ordenados e nominados na memória, segundo a lógica do
indivíduo e de sua categorização social, que consiste em reunir o que se parece
e separar o que difere, o indivíduo vai construir sua própria identidade (Candau,
1998). Ao narrar seu autoconceito, o sujeito ordena, segundo sua autoridade, os
eventos que ele selecionou, consciente e inconscientemente, e registrou na
memória. Não só o passado, mas também o futuro age na conformação das
identidades, por meio das representações desejadas de si, ou seja, da
idealização do eu (Markus e Nurius, 1986). O self desejado é, desta forma, fonte
de motivação para novas formas de identidade.

A identidade é ainda um fenômeno que se processa ao longo da vida do


indivíduo, atuando como mecanismo regulador das interações sociais e da
presença do outro na vida pessoal. Erickson (1994) atribui a formação da
identidade a diferentes fases do ciclo de vida; para este autor, a infância e a

76
adolescência são períodos nos quais a influência dos outros na definição das
identidades é mais forte. Na idade adulta os espelhos que orientam as escolhas
não estão tão disponíveis como na infância ou na adolescência; mas, mesmo
assim, o indivíduo continua buscando referências, protótipos e modelos até
atingir determinado nível de composição entre a sua interioridade e a
exterioridade, que corresponde ao processo de individuação. No entanto o nível
de interioridade nunca será pleno, pois algum nível de interação social será
sempre necessário que exista.

O conceito de si é, portanto, uma construção mental complexa, fruto de


uma relação dialética que considera o indivíduo igual a seus pares, mas único
na sua existência, na sua experiência e vivência pessoal. A igualdade e a
diferença permeiam a todo o momento as tentativas de auto-representação por
parte dos indivíduos. Assim uma identidade bem construída é aquela que
delineou os limites entre a individualidade e os grupos aos quais a pessoa está
vinculada. O resultado é que, embora reunidos na presença física, o eu e o grupo
se encontram separados nos processos psíquicos.

5.2 Identidade Social

A identidade social é "a representação que um indivíduo dá a si mesmo


por pertencer a um grupo" (Tajfel apud Whetten e Godfrey, 1998). Nesse sentido,
ela é o fruto da interação dos mecanismos psicológicos e dos fatores sociais.
Trata-se de processo social dinâmico, em contínua evolução, que se constrói por
semelhança e oposição.

77
A identidade de um grupo repousa sobre uma representação social
construída, sobre a qual uma coletividade toma consciência de sua unidade pela
diferenciação dos outros (Dubar, 1996), pois a vida no grupo cria um imaginário
social (Maffesoli, 2000). Dessa forma, a identidade social é constituída não
somente pela representação que o indivíduo faz dele mesmo no seu ambiente
social, referindo-se a diferentes grupos aos quais ele pertence, mas também aos
grupos de oposição, aos quais ele não pertence (Zavalloni apud Chauchat e
Durand-Delvigne, 1999), pois essa identidade é guiada pela necessidade do
indivíduo de ser no mundo, assim como pela sua necessidade de pertencer a
grupos sociais. Isso ocorre porque a definição do outro e de si mesmo é
largamente relacional e comparativa (Ashforth e Mael, 1989).

Pertencer a um grupo representa para o indivíduo uma possibilidade de


redução da incerteza subjetiva (Hogg e Terry, 2000), pois o significado emocional

78
implícito na relação entre eles constitui, para o sujeito, um estímulo afetivo, na
medida em que ele se sente integrante do grupo. Não só o sentimento de
pertencer, mas também a sua autopercepção como membro do grupo são as
bases requeridas para a identificação social, propiciando assim uma orientação
para a ação, compatível com a sua participação no grupo. A adesão ao grupo
requer, portanto, pensar, agir e sentir-se como integrante, a fim de que todos
tenham em comum uma mesma lógica de atuar nas posições sociais que
ocupam (Sainsanlieu, 1977).

A representação de um grupo é comum, porque deriva de histórias vividas


em conjunto e de saberes comuns. As crenças constituem a característica
mental de um grupo e exprimem a experiência comum de seus membros
(Deschamps et al., 1999). Elas orientam a escolha dos meios e dos fins para as
ações particulares e servem de critério de avaliação de acontecimentos. Elas
contribuem também para estabelecer as fronteiras simbólicas do grupo (Cuche,
1996). São elas também que colaboram para consolidar a unidade do grupo, a
qual é também definida porelementos como o tamanho e a diversidade (McGarty
apud Sherman, 1999). É por meio do interacionismo, que consiste na premissa
de que as pessoas atribuem um significado simbólico a objetos,
comportamentos, pessoas e outros, que é desenvolvido e transmitido pela
interação dos membros (Howard, 2000), que o grupo assegura a sua coesão.
Dessa forma, o grupo constitui a imagem de uma totalidade unificada; a
identidade social resulta na sua unidade e no processo de identificação e

79
distinção, pelo qual cada um procura fundar sua coesão e marcar sua posição
em relação a outros grupos.

A identidade social é, portanto, "um processo de justaposição na


consciência individual, uma totalidade dinâmica, em que os diferentes elementos
interagem na complementaridade ou no conflito, pois o indivíduo tende a
defender sua existência e sua visibilidade social, sua integração à comunidade,
ao mesmo tempo que ele se valoriza e busca sua própria coerência" (Lipianski
apud Ruano-Borbalan, 1998, p.144).

Em consonância com a Teoria da Identidade Social, os indivíduos (Tajfel


e Turner apud Worchel e Austin, 1986):

 sempre procuram manter uma identidade social positiva;


 a identidade social positiva está ligada à comparação positiva que o
indivíduo faz de grupos aos quais se vincula;

80
 quando a identidade social for insatisfatória, o indivíduo abandona o seu
grupo e busca vinculação em outros grupos.

Como resultado desse processo, o indivíduo sacrifica sua vida pessoal,


liberdade e recursos pessoais por grupos que se tornam centrais na sua
identidade (Worchel, 1998). A categorização dos indivíduos pode ocorrer, então,
por diferentes finalidades e, deste modo, eles fazem normalmente parte de vários
grupos, os quais fornecem múltiplas bases para a categorização de si em
diferentes momentos (Sherman et al. apud Abrams e Hogg, 1999).

Algumas classificações dos grupos assim os distinguem: (1) grupo primário,


como sendo estável, caracterizado por uma vida comum, relações pessoais e
íntimas entre seus membros; (2) grupo secundário, no qual os indivíduos são
motivados por um objetivo determinado e suas relações são formais e funcionais
(Lipiansky apud Ruano-Borbalan, 1998). O mesmo autor apresenta outra
distinção: (1) grupos de vinculação, como aqueles de que o indivíduo faz parte
e; (2) grupos de referência, aqueles que fornecem valores, normas e modelos de
atitude, de opinião e comportamento a seus membros.

Por outro lado, Lipiansky (apud Ruano-Borbalan, 1998) salienta que a


identidade social não é somente constituída pelos traços positivos que o
indivíduo assinala nos grupos, mas também pelos negativos, que precisam ser
evitados. Estes caracterizam a identidade negativa, projetada sobre o outro (o
inimigo, o estrangeiro etc.), "o que permite purificar, unificar e confortar a

81
comunidade, evitando os elementos que ameaçam a sua coesão social" (Ruano-
Borbalan, 1998, p.146). Dessa forma, a violência e formas de contestação
podem acompanhar certos casos de afirmação identitária. Este autor ressalta
que grupos que se opõem podem influenciar-se mutuamente, num processo de
"aculturação antagonista".

Grosso modo, a identidade social se funda sob determinadas categorias,


como, por exemplo, a etnia, a identidade sexual, a classe social, os portadores
de deficiências, a idade, entre outras. Unidos sob o mesmo fundamento, os
indivíduos procuram sua contextualização no tempo e no espaço, buscando
fortalecer suas identidades. Por essa razão é que as manifestações ligadas a
nacionalismos e a movimentos sociais se processam num dado contexto de
construção social das identidades, que a todo o momento são construídas e
desconstruídas. Por isso a identidade social é também associada a bases de
poder (Deetz, 1994; Antaki e Widdicombe, 1998).

Resumidamente, o conceito de identidade social articula o processo cognitivo


de categorização e vinculação social e é "a estrutura psicológica que realiza a
ligação entre o indivíduo e o grupo" (Baugnet, 1998, p.66). Ela é importante, pois
haverá sempre uma ligação entre a experiência afetiva oriunda dos
relacionamentos e a experiência cognitiva da descoberta de um sentido ao
mundo, às coisas e à ação.

5.3 Identidade no Trabalho

82
Baugnet (1998) salienta que, pelo exercício de papéis, os indivíduos
constroem ativamente suas identidades. Na mesma direção, os papéis ligados
ao mundo do trabalho compõem uma face da estrutura identitária dos indivíduos
e, de acordo com Sainsanlieu (1995), a empresa constitui um lugar de
socialização importante para os indivíduos que nela trabalham. "Ela é uma
verdadeira instituição secundária de socialização, a qual, após a escola e a
família, modela atitudes, comportamentos, a ponto de produzir uma identidade
profissional e social" (Sainsanlieu, 1995, p.219).

A socialização dos indivíduos no mundo do trabalho é fruto da experiência


das relações de poder, vivenciadas no universo produtivo, as quais geram
normas coletivas de comportamento e fornecem a possibilidade de construir uma
identidade no trabalho, entendida como: "a maneira de elaborar um sentido para
si a multiplicidade de papéis sociais, e de fazê-la ser reconhecida por seus
companheiros de trabalho" (Sainsanlieu, 1995, p.217).

De acordo com Sainsanlieu (1995), as identificações possíveis por parte


do indivíduo na organização estão vinculadas: (1) ao trabalho que realiza, sendo
que quanto mais intensa, maior a probabilidade de resultar em progressão
profissional; (2) com a empresa, e, nesse caso, o resultado é um sentimento de
proteção por parte do indivíduo; (3) com uma trajetória, constituindo uma
identidade visada, pautada num projeto pessoal que o indivíduo imagina para si
no trabalho, ou seja, sua possível identidade. Segundo o autor, são também
importantes na construção das identidades no trabalho os tipos de
relacionamentos, aos quais o indivíduo está submetido na empresa, geralmente
mantidos numa hierarquia entre colegas ou com outras pessoas na empresa.

83
Além desses fatores, os sistemas de representação existentes nas empresas
são variáveis importantes no processo de constituição das identidades na esfera
organizacional. Para Sainsanlieu (1995) as representações ligadas à legitimação
da autoridade na empresa, aquelas ligadas às finalidades do trabalho e da
empresa, estão entre as diretamente relacionadas com o autoconceito no
trabalho.

O tipo de relações de trabalho e de poder que é mantido no universo


empresarial influencia sobremaneira a construção de identidades. Assim, ao
estudar a identidade em um ambiente com estrutura hierárquica rígida,
Sainsanlieu (1977, p.334) observou que "nas circunstâncias de total
dependência e de incapacidade de se opor aos outros, colegas ou chefes, os
indivíduos não podem senão interpretar sua experiência de trabalho de maneira
imaginária, alucinatória e fantasmagórica". Ele verificou também que havia uma
tendência dos indivíduos em se diferenciarem de seus inferiores e se
identificarem com seus superiores, numa tentativa de reduzir a sua distância
social. Para ele, esse tipo de identificação com os mais poderosos pode ser
ainda interpretada como produto de uma avaliação permanente dos meios, de
que o indivíduo dispõe para se engajar no combate à ordem estabelecida,
sustentando a sua diferença no sistema social no qual se insere. No entanto
"esses processos são entraves para o avanço e a igualdade entre pares, em face
da tentação permanente do favoritismo" (Sainsanlieu, 1977, p.310), que pode se
estabelecer entre os membros da organização, na tentativa de reduzir as
desigualdades e dissonâncias.

84
A identidade no trabalho também se processa no plano afetivo e cognitivo.
O fato de viver sob uma estrutura institui uma espécie de mentalidade coletiva,
com a qual o indivíduo se conforma, assimilando suas regras e normas de
comportamento e estabelecendo vínculos afetivos com as pessoas com as quais
convive nesse ambiente. Esse processo pode derivar em identificações por parte
do indivíduo, as quais podem conter significados distorcidos. Sobretudo quando
os espaços de autonomia do indivíduo na organização são reduzidos, há a
possibilidade de engendrar processos de identificação que tenham natureza
projetiva, nos quais o indivíduo se imagina no lugar do outro, buscando assim a
destituição do lugar ocupado, ou os de natureza introjetiva e imitativa, quando o
indivíduo copia o outro e procura viver a vida do outro.

Ao analisar a identidade no trabalho, especialmente em modelos


organizacionais com predomínio de modernas relações de trabalho, os quais
pressupõem uma certa autonomia dos indivíduos, Sainsanlieu (1995) constatou
que há pluralidade de modelos identitários no universo do trabalho, que se
distinguem principalmente pelos tipos de socialização compartilhada entre os
indivíduos e por seus modos de integração na empresa. Essa variedade de
lógicas implica a possiblidade de existirem várias maneiras de se definir com
relação às situações de trabalho e, portanto, diversos tipos de motivação afetam
os indivíduos. Ele classificou seis modelos identitários, ordenados sob a variável
coerência identitária, passando de variável, fraca a extremamente forte nos
seguintes tipos, respectivamente: (1) regulamentar; (2) comunitário; (3)

85
profissional; (4) profissional de serviço público; (5) temporário; e (6)
empreendedor.

No ambiente de trabalho, tanto a identidade pessoal como a social pode


ser construída, de acordo com as modalidades concretas de experiência. Assim,

"quando os meios de ser reconhecido como autor do resultado do


trabalho não são acessíveis senão em nível coletivo, porque cada um é
muito fraco para sustentar sozinho uma relação de desafio, a
racionalidade não é acessível senão ao preço de certo grau de fusão entre
os desejos realizados por meio dos processos de identificação projetiva
recíproca entre os pares. Quando, enfim, cada um dispõe de meios
suficientes para obter sozinho o reconhecimento de suas ações pelos
outros, o indivíduo pode conciliar por ele mesmo o desejo, a reflexão e a
ação, a ponto de edificar uma lógica pessoal e particular" (Sainsanlieu,
1995, p.335).

A construção das identidades no trabalho não está desvinculada dos


interesses pessoais e coletivos, que estão sendo constantemente articulados
nas organizações. Os arranjos sociais que se desdobram nas empresas são
dinâmicos e permeiam a memória dos seus integrantes. Os indivíduos
selecionam, assim, aqueles relacionamentos que constituirão parte de seu
universo relacional, para que, a partir daí, construam as experiências e os
relacionamentos com os quais irão fazer face às pressões que objetivam elevar

86
os espaços de poder na organização. A identidade no trabalho constitui, dessa
forma, componente importante no processo motivacional, que concorre também
para a construção de uma auto-estima positiva. Conseqüentemente, não só a
realização do trabalho, mas também a esfera social organizacional é
positivamente afetada, podendo resultar em formas de trabalho mais criativas,
que contribuem para integrar a subjetividade, a socialização e o trabalho.

Não resta dúvida de que a força dos processos de categorização na


organização contribuirá para maior solidificação da identidade no trabalho,
porque eles resultam em sentimentos de vinculação e diferenciação, que
favorecem uma visão simbólica de si como integrante de um espaço imaginário
maior na organização. Nessa atmosfera, simultaneamente, acontece um
fenômeno que liga psiquicamente o indivíduo à organização, ou seja, a
identidade organizacional.

5.4 Identidade Organizacional

Outro desdobramento nas pesquisas sobre identidade trata da identidade


organizacional. Os trabalhos dessa natureza são relativamente recentes na
teoria organizacional; contudo os resultados têm demonstrado a sua
aplicabilidade no referido campo, incluindo desdobramentos que associam a
identidade a outras variáveis de estudo. De modo geral, o pressuposto que
baseia essa área é que as organizações e seus grupos são categorias sociais e,
portanto, existe em seus membros a percepção de que são membros dela. De
forma significativa, portanto, as organizações existem na mente de seus
membros e a identidade organizacional é parte da identidade individual deles.
As necessidades e comportamentos são coletivos e a ação dos membros da
organização é influenciada por suas autoimagens organizacionais (Brown,
1997).

87
A identidade organizacional compreende o processo, atividade e
acontecimento por meio dos quais a organização se torna específica na mente
de seus integrantes (Scott e Lane, 2000). Esse processo compreende as crenças
partilhadas pelos membros da organização sobre o que é central, o que a
distingue e é duradouro na organização (Albert e Whetten apud Whetten e
Godfrey, 1998). Ele se constrói, dia após dia, quando o indivíduo vai
internalizando a crença de que a organização na qual está inserido é a mesma
que era ontem, simbolizando a sua existência temporal. Nessa perspectiva,
Machado-da-Silva e Nogueira (2001), ao estudarem a identidade organizacional
de duas organizações, procuraram destacar os seus aspectos distintos e
duradouros, para interpretarem, a partir deles, as referidas identidades. Também
Albert e Whetten (apud Whetten, 1998) ressaltam que a identidade
organizacional tem três dimensões: (1) a definida pelos membros da
organização, que é a central; (2) o que distingue a organização de outras; e (3)
o que é percebido como traço contínuo, ligando o passado ao presente.

A representação da organização é expressa por seus membros por meio


de comportamentos, comunicação e simbolismo. A idealização e a fantasia
também fazem parte desse processo e explicam a tendência de as pessoas se
identificarem com as organizações, principalmente quando elas representam
uma possibilidade de conexão com seus atributos e desejos pessoais. Nesse
sentido, a identificação com a organização tem uma associação linear e positiva
com a realização de desejos (Mael e Ashforth, 1992). Entretanto os objetivos, a
missão, as práticas e os valores presentes na organização também contribuem
para dar forma às identidades organizacionais, diferenciando uma da outra, aos
olhos dos seus integrantes (Scott e Lane, 2000).

88
Para Jo Hatch e Schultz (1977, p.361) a identidade organizacional é "o
produto reflexivo do processo dinâmico da cultura organizacional". A cultura
provê o material simbólico com o qual as imagens serão construídas e
comunicadas. Ao correlacionar cultura, identidade e imagem, os autores
sustentam que a experiência de trabalho dos participantes da organização e a
visão da capacidade de liderança dos níveis estratégicos da organização são os
elementos determinantes. Todavia para os autores a identidade organizacional
sofre também influências externas, por meio do processo de formação de
imagens.

Embora exista distinção entre identidade e imagem organizacional, esta


última é nitidamente relacionada com a formação da identidade organizacional.
Enquanto a identidade é associada à visão interna na empresa, a imagem está
ligada também a uma visão externa. Por isso qualquer deterioração da imagem
pode constituir um risco para a identidade organizacional. Por outro lado, a
imagem está associada à identidade corporativa (Gioia, Schultz e Corley, 2000).
Para Rindova e Schultz (apud Whetten e Godfrey, 1998) existe uma
complementaridade entre a identidade organizacional e a identidade corporativa,
que permite conjugar as percepções interna e externa da organização. Nesse
sentido, a identidade corporativa é frequentemente chamada de identidade
visual, pois se utiliza de formas visuais; a identidade organizacional é formulada
e expressa por meio da palavra. A primeira tem foco na externalidade e nas
percepções do mercado; a última tem foco interno nas crenças dos membros da
organização. Além disso, a identidade organizacional cria um senso de
identificação entre os membros da organização, enquanto a identidade
corporativa estimula a diferenciação da empresa no mercado. Esses elementos

89
caracterizam um processo circular, que envolve dependência mútua entre
cultura, imagem e identidade (Rindova e Schultz apud Whetten e Godfrey, 1998).

As associações entre cultura e identidade têm permeado estudos na


esfera organizacional, tais como o de Pavlica e Thorpe (1998), que estudaram a
autopercepção gerencial comparativa entre gerentes da República Tcheca e da
Grã-Bretanha e o de Belle (1991), associando identidade profissional, gênero e
cultura de empresa. Outra comparação presente nos estudos sobre identidade
no âmbito organizacional, é aquela ligada à ideologia corporativa, como uma das
formas de construção da identidade organizacional. Sob esse aspecto,
destacam-se os estudos sobre a crise identitária de gerentes intermediários em
contextos de reestruturação organizacional (Rouleau, 2001; Turnbull, 2001).

No âmbito organizacional a identidade pode apresentar diferentes


configurações. Albert e Whetten (apud Pratt e Foreman, 2000) apresentam os
seguintes tipos de identidades: (1) ideográfica, quando não há uma unidade
sobre a identidade da organização; consequentemente diferentes grupos,
subgrupos e unidades da organização mantêm múltiplas identidades; (2)
holográfica, isto é, múltiplas identidades são compartilhadas por todos na
organização. Para Pratt e Foreman (2000) múltiplas identidades organizacionais
podem ser gerenciadas, resultando até mesmo em vantagens para as
organizações, como, por exemplo, a maior possibilidade de satisfazer as
expectativas de seus membros, melhorar a sua capacidade de criatividade e
aprendizado, além de facilidade em reter mão-de-obra diversificada. Outro
aspecto é ponderado por Asforth e Mael (1996), que consideram as identidades
organizacionais como flexíveis e mutáveis. Elas podem passar de positivas a

90
negativas ou vice-versa, dependendo dos acontecimentos, resultados e
impactos das empresas.

Ao discutir a identidade organizacional, a identificação está presente, pois


não há identidade sem identificação. A identificação organizacional constitui "um
envolvimento baseado no desejo de afiliação" (Kelman's apud Ashforth e Mael,
1989, p.23). Essa identificação é, por vezes, utilizada como sinônimo de
compromisso, embora ela seja mais internalizada do que este e possa engendrar
aderência a valores e normas grupais, assim como homogeneidade de atitudes
e comportamentos. Uma identificação forte com a organização "aumenta a
cooperação entre os membros e a competição com os não membros" (Dutton,
Dukerich e Harquail, 1994). Estes autores salientam que a identificação
organizacional pode ter efeitos positivos e negativos sobre o autoconceito dos
membros da organização. Nesse sentido, Ashforth e Mael (1989) chamam a
atenção para a identificação cega, que pode se tornar problemática para a
instituição ou para o equilíbrio de seus integrantes. Um processo intenso de
identificação é discutido por Pratt (2000) que, ao relatar o caso da Amway,
demonstra como a identificação é construída sob identidades projetadas,
principalmente em termos de aspirações pessoais. "Os sonhos são considerados
centrais para ser membro da família" (Pratt, 2000, p.465). Eles constituem o elo
entre os membros e a companhia, numa tentativa de vinculação e de ratificação
do desejo de afiliação, na medida em que a realização dos desejos está ligada
à vinculação organizacional. Pratt (2000) ilustra também outras estratégias que
visam a: (1) reduzir o círculo de relacionamentos de seus integrantes à esfera da
companhia; e (2) categorizar as pessoas em termos ambivalentes como
membros da Amway ou não.

91
A identidade organizacional, tal como as outras modalidades da
identidade, remete ao vivido e à subjetividade. Ela orienta a ação dos indivíduos
e é dinamicamente construída por meio de interações sociais, identificações e
afiliações. Portanto o contexto identitário no âmbito organizacional é constituído
pelo indivíduo, pelo grupo e pela organização. A fim de articular a discussão em
torno dos níveis apresentados, aborda-se a seguir uma integração entre os tipos
de identidade discutidos neste trabalho.

5.5 Distinção e Integração entre os Níveis de Análise

Os níveis de identidade considerados até o momento, estão ligados à


formação do autoconceito por parte dos indivíduos e resultam em influências na
esfera pessoal, social, assim como no âmbito organizacional. Isso significa que
há multiplicidade de identidades construídas simultaneamente, o que contribui
para a complexidade do fenômeno em estudo. É possível, no entanto, delinear
alguns limites entre cada categoria, para visualizar os impactos de cada uma
delas. No Quadro 1 procurou-se reunir os aspectos principais de cada um dos
tipos de identidade discutidos, evidenciando as diferenças de enfoque para cada
abordagem. Embora todos os níveis estejam centrados na conformação do eu,
está se processa em diferentes maneiras, bem como em diferentes momentos
da vida do indivíduo. Também a multiplicidade de relacionamentos está presente
em todas as identidades e consiste em um elemento importante para sedimentar
os processos cognitivos e afetivos, indispensáveis para uma coerência
identitária.

92
Por outro lado, se cada um dos níveis apresenta suas particularidades no
processo de definição da identidade, há profunda complementaridade entre eles,
resultando que a formação da identidade pessoal, por meio do grupo, do trabalho
ou da organização envolve a todo o momento construção e desconstrução, pois
o contexto social é dinâmico e complexo. Desse modo, a formação do
autoconceito, englobando a noção de grupo, incorporando o trabalho e as
organizações, alicerça-se em etapas gradativas, construídas sobre processos de
identificação, originalidade e conformação, os quais são permeados pela
emoção e pela cognição, conforme demonstra a Figura 1. Dessa maneira, o
indivíduo identifica-se com o grupo ou grupos aos quais pertence, com o trabalho
que realiza e com a organização à qual pertence. Também esses elementos
interagem na configuração do auto representação do indivíduo. Além disso, a
organização é o reflexo do trabalho realizado em seu interior e dos grupos que
a constituem. O grupo ou grupos podem ser conhecidos pelo retrato do trabalho
que realizam; o trabalho, por sua vez, também engloba o imaginário do grupo.

93
Ao analisar a identidade no contexto organizacional é importante
considerar que o agir e o interagir dão forma às identidades. A todo o momento,
portanto, realizar e pertencer são condições para que os processos de
identificação sejam desencadeados e gerem estímulos, novas descobertas e
maneiras de realizar as atividades, transformando o espaço organizacional em
importante palco para potenciação das existências. Desse modo, o grupo, o
trabalho e a organização passam a constituir as bases centrais de representação
do eu para o indivíduo. Por último, é importante salientar que, quanto maior o
reconhecimento do indivíduo em todos os âmbitos, ou seja, no trabalho
realizado, no grupo ou na organização à qual o indivíduo está vinculado, maior
é a força desses elementos na construção do conceito de si. Do ponto de vista
organizacional, isso implica um ambiente de trabalho favorável, no qual seus
integrantes manifestam autonomia e segurança na realização de suas tarefas.
Outras implicações organizacionais são discutidas a seguir.

5.6 Implicações para estudos organizacionais

O campo de estudos sobre identidade na esfera organizacional revela-se


amplo e fecundo. As possibilidades de conhecer a realidade social da
organização a partir do estudo das identidades, são também formas importantes
para compreender a estruturação da ação nesse ambiente, pois as identidades

94
têm também o papel de estruturar a ação, por parte de indivíduos, grupos ou
organizações.

Alguns estudos, mencionados no decorrer do texto, estabeleceram


importantes associações, como, por exemplo, sobre os efeitos da identidade
social na produtividade de grupos (Worchel, 1998), da associação entre
identidade organizacional e identidade corporativa (Rindova e Schultz apud
Whetten e Godfrey, 1998; Gioia, Schultz e Corley, 2000) ou da associação entre
a subjetividade e a identidade no trabalho (Sainsanlieu, 1977, 1995).

Ainda assim, há um campo vasto a ser explorado no que tange às


configurações da identidade no meio organizacional e suas possíveis
associações. Por exemplo, a existência de uma associação entre tempo de
trabalho, identidade organizacional e identidade pessoal. Nessa perspectiva, ao
realizar um estudo com aposentadas que se tornaram empreendedoras,
Machado (1999) constatou que, para aquelas mulheres que trabalharam durante
muitos anos na mesma instituição, a organização era uma referência muito forte
em suas identidades pessoais e a ação empresarial nas empresas que criaram,
estava intensamente ligada às orientações e valores adquiridos na experiência
organizacional anterior. Ao mencionar a organização em seus discursos, as
mulheres a referenciavam como um grupo primário de sua socialização, na
medida em que, a todo o momento, estabeleciam associações entre a empresa,
a figura materna ou paterna.

Outro aspecto ainda pouco explorado nos estudos desta natureza, está
relacionado com a possibilidade de associação entre stress e identidade no
trabalho. Não se sabe até que ponto níveis elevados de identidade no trabalho

95
resultam em alta dedicação, que pode conduzir ao stress, ou se o exercício de
um trabalho ao qual o indivíduo não se identifica contribui para o stress no
trabalho.

É provável que uma elevada categorização social favoreça a coesão


grupal na esfera organizacional; no entanto pouco foi explorado sobre a relação
entre essa categorização social e a construção de uma identidade organizacional
ou até mesmo com a identidade no trabalho. Além disso, em contextos de
mudança organizacional, a categorização social exerce, certamente,
considerável influência.

Outra associação importante foi estabelecida por Davel e Machado (2001)


entre a liderança e a identificação nas organizações contemporâneas. Trata-se
de uma abordagem da liderança alicerçada sobre questões políticas, cognitivas
e emocionais, envolvendo constantemente reconhecimento e consentimento.
Esse enfoque de estudos demonstra que a identidade e a liderança são
fenômenos a serem estudados em conjunto, principalmente no ambiente de
trabalho atual, orientado para a valorização da autonomia do indivíduo e do
trabalho em grupo.

Enfim, essas reflexões fortalecem a premissa de que o contexto socio


psíquico é, em grande parte, determinante da vida organizacional e a identidade
é um instrumento útil para melhor compreender a realidade organizacional.
Especificamente, ao abordar a identidade, a principal das implicações aqui
presente é a compreensão de que ela é fonte importante de estruturação da
ação, sob qualquer das múltiplas perspectivas: o indivíduo, o grupo ou a
organização. Embora níveis de estudos da identidade se sobreponham, há uma
forma distinta de construir o autoconceito nos diversos planos: pessoal, no grupo,

96
no trabalho e na empresa. Todavia, no plano imaginário, eles se encontram
interligados e orientam a atuação do indivíduo.

Reconhecer a importância da identidade no âmbito das organizações,


procurando a conjugação dos diferentes níveis de sua análise, implica a
tendência em: (1) contribuir para ampliar a autonomia e a segurança da ação
individual nas organizações; (2) estimular o trabalho em grupo, cooperativo e
engendrado sob uma lógica consentida; (3) estimular a criatividade, resultante
da experiência afetiva no trabalho; (4) favorecer o comportamento participativo
nas organizações, na medida em que ele resulta da integração simbólica
existente entre o indivíduo, o grupo e a organização.

Ao buscar a unidade, a partir da diferenciação, a identidade é capaz de


harmonizar a igualdade e a soberania, na medida em que parte sempre do
pressuposto de que somos iguais, mas únicos. Sob essa perspectiva, é possível
articular o movimento de indivíduos, grupos e organizações em direção à
integração e à autonomia.

6.0 O PAPEL DAS INSTITUIÇÕES NO DESENVOLVIMENTO

Alexis de Tocqueville dizia-nos que, no mundo civilizado, a igualdade e a


liberdade tendem a ser crescentemente desejadas. No entanto, acrescentava:
"o amor pela igualdade é maior do que o amor pela liberdade".

Tal proposição gera consequências bastante desconfortáveis. A


sociedade democrática, ao alimentar o desejo pela igualdade, correria o risco de
destruir a liberdade. Deixados à própria sorte, os seres humanos procurariam
exercer o máximo de liberdade individual, sacrificando a liberdade dos outros e,
portanto, a igualdade da maioria.

Como reduzir a desigualdade quando os homens querem o máximo de


liberdade? O próprio Tocqueville resolveu esse paradoxo, ou seja, para que a
liberdade floresça sem comprometer a igualdade, dizia ele, é preciso impedir que
o poder se concentre nas mãos de poucos. Para tanto, as sociedades humanas
têm de criar regras impessoais e que se aplicam a todos os cidadãos.

97
Esse é o papel das instituições. Na ausência de regras que garantem o
direito à propriedade, por exemplo, os seres humanos teriam de defender esse
direito caso a caso, o que, além de oneroso, tumultuaria as transações, os
investimentos, o desenvolvimento econômico e o progresso social.

Na linguagem dos institucionalistas da atualidade – como Douglass North


–, as instituições garantem regras que reduzem os custos de transação. A
liberdade, a igualdade e a democracia só sobrevivem com base no poder
controlado. A função principal das instituições é ajustar os limites da igualdade
aos limites da liberdade. Liberdade e igualdade são preservadas como bens
comuns na razão direta da eficiência das instituições.

Platão ensinava que a virtude de um objeto está no seu bom desempenho.


A virtude de uma faca é o bom corte. A virtude da monarquia é a lealdade. A
virtude da ditadura é a obediência. A virtude da democracia é a tolerância.

A tolerância, entretanto, está longe de ser uma virtude natural. Ela é


construída pelos homens, palmo a palmo, e por eles cultivada através de
instituições capazes de recolher os descontentamentos e harmonizar soluções.
Ocorre que, muitas vezes, as instituições não conseguem garantir uma
transação equilibrada entre liberdade e igualdade. Nessas sociedades, a tarefa
maior não é promover eleições para escolher os novos governantes, mas, sim,
o de fazê-los governar sob o controle de instituições eficientes.

O processo de desenvolvimento resulta de mudanças muito mais


profundas do que a simples melhoria da produção e da produtividade. Ele implica
mudar ideias, atitudes e, sobretudo, condutas.

98
Honestidade, confiança, respeito e outros valores sociais são importantes
quando compartilhados por todos. São bens públicos. Entretanto, pela sua
natureza, os seres humanos praticam a honestidade só dentro do seu grupo –
mas não fora dele. Os membros da máfia, por exemplo, são gente de honra em
relação aos seus pares. Contudo, com relação aos de fora do grupo, a regra é
tirar vantagem, por qualquer meio.

Thorstein Veblen, ao se dedicar ao estudo dos "vested interests"


(interesses camuflados), aprofundou a conduta maximizadora dos seres
humanos que procuram conseguir o máximo de benefício com o mínimo de
custo. Ocorre que esse custo mínimo pode ser máximo quando se considera que
a conta é, muitas vezes, paga pelos excluídos. Isso não promove a cooperação
e tem efeitos deletérios sobre a governança e a justiça social.

As normas que conduzem ao bom governo e ao desenvolvimento justo


não são fáceis de serem produzidas. Muito depende de como as leis são
cunhadas.

99
Quando um grupo é muito forte e outro muito fraco, as leis criam
instituições de modo enviesado, garantindo a liberdade de uns ao custo da
desigualdade de outros. Surge, então, a mais brutal de todas as desigualdades
– a desigualdade legal.

As regras justas, que deveriam ser garantidas pela lei como um bem
público, transformam-se, na verdade, na principal fonte dos males públicos.

A teoria dos jogos explica que os seres humanos nascem e crescem com
desejos essencialmente egoístas. Poucas pessoas atuam altruisticamente por
força de sua natureza. São as instituições de boa qualidade que estabelecem as
regras segundo as quais a melhor maneira de satisfazer o egoísmo de cada um
é cumprindo com suas obrigações em relação aos outros. Essa é a matemática
que move a defesa intransigente do interesse individual para o alcance de
resultados coletivos.

Numa palavra, a virtude desse tipo de instituição é a de proteger quem


precisa ser protegido e, numa linguagem mais da moda, de incorporar os
excluídos ao mundo dos incluídos.

Os excluídos são frágeis para influenciar a criação de instituições


equalizadoras. A vida exige deles um imediatismo constante. Sua preocupação
central é com a próxima refeição. São pessoas que, por não contarem com

100
regras de proteção, precisam transacionar caso a caso as ações que garantam
a sua sobrevivência.

Assim é a vida dos pobres. Eles têm de procurar fazer pequenos avanços,
de forma calculada e cautelosa, e, com isso, evitar naufragar na sua tênue
existência.

6.1 A influência das leis no meio social

Uma lei é de boa qualidade quando as regras por ela criadas protegem
essas vidas, dando às pessoas condição de administrar sua trajetória com um
mínimo de previsibilidade.

Permitam-me examinar, com exemplos, o impacto de algumas de nossas


leis no campo social:

1. Dos 70 milhões de brasileiros que trabalham, apenas 28 milhões são


protegidos pelas instituições do trabalho e da Previdência Social; 42 milhões são
desprotegidos.

Os desprotegidos do mercado informal, quando ficam doentes, não


dispõem de licença remunerada para tratar da saúde; quando ficam
desempregados, não há seguro-desemprego; quando param de trabalhar, não
há FGTS; quando envelhecem, não há aposentadoria; quando morrem, não
deixam nada para seus descendentes.

Essa é a vida dos excluídos. São os que mais necessitam de proteção e,


ao mesmo tempo, os que nada possuem. Eles não têm proteção para os quatro
momentos mais críticos de suas vidas, a saber: (a) quando perdem o trabalho,
101
(b) quando perdem a saúde, (c) quando perdem a juventude e (d) quando
perdem a vida; em outras palavras, na hora do desemprego, da doença, da
velhice e da morte. Não há como dizer que a nossa lei é um bem público; está
bem mais próxima do mal público.

Por que é assim? Porque as leis foram cunhadas com este viés: os
incluídos contam com direitos; os excluídos contam com destino.

Isso tem a ver com o processo de elaboração das leis. Observem que, na
maioria das vezes, os projetos que visam proteger os excluídos acabam, no final
de sua tramitação, reforçando a proteção dos incluídos. Por que isso acontece?

Durante o processo legislativo, os incluídos agem através de


organizações bem montadas que, se necessário, espalham até o terrorismo de
informações para assustar os parlamentares, muitos dos quais estariam
dispostos a transacionar alguns graus de liberdade por graus de igualdade.

Na discussão de projetos de lei, os excluídos nunca são convocados. Eles


são pretensamente representados por integrantes de corporações que usam a
retórica da igualdade para manter sua liberdade dentro de cidadelas protegidas
por leis anteriores e derivando benefícios das novas proteções. É isso que
mantém a proteção de 40% dos brasileiros e a desproteção de 60% de nossos
irmãos.

102
2. Querem mais um exemplo de mal público? A Lei 9.601/98, que visou
incorporar uma parte dos trabalhadores informais dentro do mercado formal
através da contratação por prazo determinado e protegido, estabelece que a
referida contratação só pode ser feita com a aprovação do sindicato que
representa os empregados na empresa onde há vagas, ou seja, uma lei que
visava proteger os excluídos colocou o seu destino nas mãos dos incluídos. Que
tipo de justiça social pode surgir desse tipo de regra? Não é à toa que essa lei
não pegou. Os incluídos rejeitam a entrada dos excluídos. A lei está a seu favor.
E a empresa não pode admitir o empregado que está disposto a aceitar as
condições oferecidas. Essa não é uma lei do tempo de Getúlio Vargas. É uma
lei cunhada na esquina do século XXI – em janeiro de 1998.

3. Vejamos outro exemplo. No Brasil, somos 170 milhões de habitantes e temos


cerca de 3 milhões de ações trabalhistas por ano. O Japão, com uma população
de 135 milhões de habitantes, tem apenas 1.500 ações trabalhistas/ano.

Será que os juízes japoneses são 2 mil vezes mais rápidos do que os
brasileiros? Não. A diferença está nas leis e nas instituições. No Brasil, as leis
trabalhistas são extremamente detalhadas, o que instiga a desavença e o
conflito. No Japão, as leis estabelecem princípios gerais, deixando os detalhes
para empregados e empregadores, o que instiga a negociação e o consenso.
Culpa de quem? De instituições elitistas e da ação preservacionista de grupos
de elite que vivem do conflito. Toda vez que se pretende reduzir o peso do
detalhismo e aumentar a criatividade da negociação, esses grupos passam a

103
atuar com argumentos sofisticados a que os excluídos não têm o que dizer – e
nem são chamados para falar. Para o sistema japonês, bastam 14 mil
advogados; para o brasileiro, são mais de 600 mil. Para quem ganha a vida com
o conflito, reduzir as injustiças pela via da negociação constitui séria ameaça.
Por isso preferem – e conseguem – manter instituições obsoletas. Enquanto o
resto do mundo baseia o contrato na negociação flexível, o Brasil continua
insistindo em leis rígidas e detalhadas.

Não são, no entanto, apenas os que vivem profissionalmente do conflito


que resistem a essas mudanças. A negociação não interessa também aos
incluídos, que estão ancorados em leis e estatutos empresariais que lhes
asseguram os chamados "direitos adquiridos" ou "privilégios adquiridos". As
organizações dos funcionários estatutários, de empresas estatais, de servidores
"celetistas", de funcionários de fundações e autarquias e alguns outros
protegidos pelas instituições atuais não aceitam a ideia de compatibilizar
liberdade com igualdade para muitos e não para poucos.

As ações organizadas desses grupos tendem a contribuir muito mais para


a estabilidade do que para a transformação que o País precisa. Tudo isso
sustentado por leis de má qualidade.

4. Neste campo surgiu uma lei de boa qualidade em 2002. Foi a Lei 9.958, que
criou as Comissões de Conciliação Prévia que dão às partes o direito de resolver
seus problemas diretamente, sem a interferência de advogados, funcionários
públicos ou juízes.

Em menos de dois anos, formaram-se 1.200 comissões desse tipo. Em


uma amostra analisada no primeiro semestre de 2002 ficou claro que, em cerca
de 80 mil casos analisados diretamente por empregados e empregadores, com
a participação dos sindicatos, 85% foram resolvidos diretamente, em clima

104
cordial, e dentro de 15 dias – Uma enorme economia de tempo e de outras
despesas! As Varas e Tribunais do Trabalho começam a registrar uma queda no
número de ações ali propostas.

Ocorre que, em algumas dessas comissões, houve fraudes. Umas


passaram a cobrar exorbitâncias pelos serviços prestados. Outras negociaram o
que não podia ser negociado –verbas do FGTS, INSS e outras. Finalmente, há
as que forçaram os trabalhadores a aceitar o que não queriam.

As más comissões são a minoria, mas foi o suficiente para as corporações


dos advogados, procuradores e magistrados alarmarem a imprensa e proporem,
em última análise, a extinção desse novo mecanismo: um ato do mais puro
corporativismo de quem deseja viver a vida toda à custa de conflitos banais que
podem ser resolvidos pelas próprias partes.

Por erros de uma minoria, pretende-se desamparar a maioria. É como a


decisão do prefeito que resolve acabar com a banda porque o clarinetista
desafinou ou de quem deseja jogar fora a água suja do banho junto com a
criança.

As fraudes ocorrem em todos os setores e são para ser combatidas e


punidas. Ao que me consta, ninguém propôs acabar com a Justiça do Trabalho
porque o Juiz Nicolau dos Santos Netto participou de um assalto ao Tribunal
Regional do Trabalho de São Paulo – casa que lhe dava o emprego e a
responsabilidade de fazer justiça.

5. Vejam o que ocorre com o seguro-desemprego: os 20% mais pobres recebem


apenas 3% dos seus recursos, e o restante é apropriado pelos não-pobres. Essa
105
injustiça vem se perpetuando desde que se implantou o seguro-desemprego no
Brasil.

Ai daquele que tentar mexer nisso! A reação dos não-pobres é forte – e


vencedora, como ocorreu na derrota da proposta que pretendeu juntar os
recursos do seguro-desemprego com os do FGTS para criar um sistema mais
racional para proteger quem precisa ser protegido.

6. Vejam o que ocorre na previdência social: os 20% mais pobres ficam com
apenas 7% do que o País gasta com aposentadorias e pensões; o restante vai
para os não-pobres. Assim é a lei. É mais um exemplo de mal público.

7. Há outras injustiças garantidas por lei. Vejam esta: o valor médio da


aposentadoria dos pobres que recebem do INSS é de 1,8 salário mínimo; o valor
da aposentadoria dos funcionários públicos é de 14,4 salários mínimos.

Os fatos não deixam dúvida. Entre os brasileiros pobres, a previdência


social é um luxo; entre os de renda alta é uma regra. Isso é assim porque as leis
previdenciárias são assim. Todos acompanharam o fracasso da pretensão de se
tornar a previdência social mais justa. As corporações agiram com eficiência.
Houve até um voto errado, de autoria do Deputado Antônio Kandir, que foi crucial
para deixar tudo do jeito que está.

106
Não há como esconder. A Constituição Federal de 1988 consagrou a
tendência de se fazer uma fachada igualitária para instituições que, na realidade,
aprofundam as desigualdades.

8. Vejamos alguns exemplos no campo da educação. Enquanto os mais pobres


têm enormes dificuldades para concluir a 8a. série, os mais ricos, que fazem os
cursos médios em escolas caríssimas, cursam universidades públicas
inteiramente gratuitas.

As pesquisas evidenciam que 75% dos estudantes das universidades


públicas (gratuitas) podem pagar pelos seus estudos. No entanto, ai daquele que
tentar fazê-los a gerar uma receita para cobrir as bolsas de estudo a serem
dadas a quem não pode pagar. Surgem nessa hora as mais sofisticadas teorias,
que os excluídos não conseguem refutar.

A qualidade precária da educação dos pobres é um dos principais


determinantes da baixa renda dessa população. E, ficando na pobreza, os
pobres deixam de ter acesso a uma série de outras proteções.

O que impede fazer essa reforma? Leis elitistas que protegem quem já
está protegido e desprotege quem precisa de proteção.

9. Há outras desigualdades extravagantemente criadas por lei: a nossa


Constituição Federal exige a frequência obrigatória à escola dos 7 a 14 anos,
mas só permite o jovem trabalhar quando completar 16 anos. São mandamentos
constitucionais. Têm de ser obedecidos.

107
Ora, o que o jovem vai fazer entre os 14 e 16 anos? Sabemos que a
maioria não pode continuar os estudos. E a Constituição diz que a totalidade não
pode trabalhar. Quem não estuda e não trabalha faz o quê? Será essa a melhor
maneira de proteger os jovens?

As causas da desigualdade sociais são múltiplas. Porém, as leis de má


qualidade são o principal determinante na área social. No passado, as
oligarquias dos ricos dominaram a cunhagem das leis e o próprio Estado. Hoje
são os grupos neocorporativistas que impedem a ampliação da justiça social.

Nem tudo está perdido. No meio de tanta desigualdade criada por lei, há
institutos que conseguiram varar a barreira dos "lobbies" e se colocarem como
verdadeiros bens públicos. Lembro aqui a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Lei
do SIMPLES.

A caminhada, porém, na área social é enorme. Nessa área, temos de


praticar muito mais a transação de liberdade por igualdade e reduzir a
concentração de poder que continua nas mãos de poucos.

O que fazer? Sonhar com um surto de magnanimidade dos que controlam


a cunhagem das leis? Neste ponto, peço licença para especular. E o grande
desafio é fazer os excluídos participarem das decisões que tratam de seus

108
problemas. Para tanto, nutro fortes esperanças na incorporação das novas
tecnologias no campo social.

Irei direto ao assunto. Acredito estarmos perto da democracia digital,


quando os excluídos poderão se pronunciar sobre assuntos que lhes dizem
respeito sem sair de onde vivem.

Seria o renascimento da democracia da Grécia? Um sonho sem base


empírica? Uma utopia sem rumo? Penso que não. Os meios para discutir e votar
a distância já estão disponíveis. Os especialistas preveem a sua universalização
em curto prazo, como ocorreu com outras tecnologias. O telefone celular
expandiu-se em poucos anos e adentrou as camadas sociais mais pobres, que
hoje o dominam com maestria, da mesma maneira que aprenderam a lidar com
os segredos dos caixas automáticos dos bancos, com o voto eletrônico e com a
própria Internet.

Convém ressaltar que estamos em plena cultura do videogame, em que


a juventude não teme a comunicação eletrônica.

Em muitos países, inúmeras decisões locais já são tomadas com a


participação direta da população através da comunicação mediada pela

109
informática. Manuel Castells cita inúmeros exemplos de experimentos pioneiros
que se tornarão, dentro em breve, rotina na vida dessas comunidades.

A participação virtual começa com os grupos mais educados e, de


maneira concêntrica, penetra nos grupos menos educados. Em uma pesquisa
realizada pelo Economist em 1999, mais de 50% dos europeus apoiaram a ideia
de acompanhar – e até votar! – todas as matérias em discussão nos
parlamentos. Cerca de 75% estão certos de que a comunicação eletrônica vai
melhorar a qualidade das leis, tirando proveito da vocalização dos que sempre
estiveram excluídos.

A literatura sobre esses processos cresce de maneira frenética. No início,


a prática da democracia digital não exigirá a posse privada de computadores,
mas apenas o acesso a pontos de contato que podem estar nas escolas, nas
empresas, nos supermercados, nas farmácias, nos clubes, nos "cyber-cafés" e
em vários outros locais.

Como diz Castells, porém, está surgindo um novo tipo de excluído: o


excluído digital. As pessoas vivem hoje em comunidades que têm dois tipos de
populações: uma pequena minoria de "aldeões eletrônicos" que residem na
fronteira da tecnologia e uma multidão transitória que entra e sai das redes nos

110
momentos precisos e para dar opinião ou um voto sobre assunto de seu
interesse.

Isso, porém, deve mudar rapidamente. Há 10 anos, ninguém imaginava


que as informações seriam grátis, como ocorre hoje com o livre acesso à
Internet. A ciência de todo o mundo está sendo disponibilizada na casa de cada
um. E dizem os especialistas que estamos apenas adentrando na era digital. O
Brasil já possui cerca de 18 milhões de computadores domésticos e tem muito a
crescer quando esses equipamentos baratearem, como aconteceu com o
telefone celular.

Aos poucos, aquelas duas populações irão se mesclar a ponto de os


excluídos serem incorporados no mundo de quem tem opinião. Os governados
começarão a controlar os governantes. Quando isso se generalizar, estaremos
diante de um processo de participação que simboliza o mais genuíno bem
público.

Para quem acha que isso é irreal, convém enfatizar que líderes
autoritários já se preocupam com o acesso de seus povos aos órgãos decisórios.
Os governantes da China e Coréia do Norte, por exemplo, estão tentando, sem
sucesso, evitar que seus governados explorem o desconhecido através dos
novos meios de comunicação. Da mesma forma, as oligarquias econômicas e os
representantes do neocorporativismo buscam impedir que seus representados
participem de modo direto de decisões que lhes dizem respeito.

Nina Hachigian (pesquisadora da "Rand Corporation" para assuntos da


Ásia), em trabalho recente, mostra o realismo da comunicação digital para
enfraquecer os ditadores e os defensores de privilégios.

Na história, poucos tiveram sucesso em impedir a penetração das


tecnologias que ajudaram os consumidores a satisfazer seus desejos e os
produtores a se tornarem mais eficientes. Será uma surpresa se, em pleno do
século XXI, alguém conseguir barrar os eleitores de se pronunciarem não só nas
urnas – como querem os candidatos –, mas também nos momentos mais críticos
para a solução de seus problemas.

111
Estamos no meio de um período em que a história corre muito depressa.
Há pouco mais de 10 anos, a cortina de ferro estava em pé. O Japão era exemplo
de desenvolvimento. Nelson Mandela era tratado como prisioneiro de guerra. E
Fernando Henrique Cardoso era esquerdista convicto. Em tão pouco tempo, a
cortina ruiu. O Japão entrou em recessão. Mandela é um ícone da democracia
mundial. E Fernando Henrique é rotulado de neoliberal.

As novas tecnologias vão surpreender os cépticos quando começarem a


colaborar na solução dos mais intrincados problemas sociais, como a
criminalidade, a corrupção, o abuso de poder, as injustiças e as desigualdades
entre os seres humanos.

Com a ampliação da participação a distância, mas em tempo real, elas vão


ajudar a bloquear os desejos daqueles que, para satisfazer sua ânsia infinita de
liberdade, sacrificam, sem constrangimento, os mais elementares princípios da
igualdade. Daí para frente, a humanidade vai testemunhar o afastamento dos
aproveitadores, tornando infernal a vida dos espertos que exploraram os mais
fracos com a retórica da falsa justiça.

7.0 PSICOLOGIA INSTITUCIONAL

112
A Psicologia Institucional é o termo usado para designar a abordagem da
psicologia nas instituições, fundamentada no referencial psicanalítico. Surgiu na
Argentina na década de 60 e difundiu-se no Brasil através do estado de Rio
Grande do Sul.

José Bleger contribuiu de maneira fundamental para o desenvolvimento


de métodos de trabalho a nível institucional, ampliando seus estudos sobre
grupos e entendendo que a instituição é um grupo que resulta de acordos que
se fazem entre a organização e as pessoas a quem a organização confia as
atribuições contidas nas funções.

Entendendo a dinâmica institucional, este teórico, enfatiza a importância


dos objetivos do psicólogo e os objetivos da instituição, e propõe que a
Psicologia Institucional é constituída por um processo de investigação e ação,
onde o método clínico de indagação operativa é um instrumento básico de
pesquisa.

O criador da Psicologia Institucional afirma ainda que ocorreu uma


mudança de paradigma em relação aos campos de atuação do psicólogo, no
âmbito individual e privado, relacionados somente a problemas
psicopatológicos e no campo de promoção a saúde, abriu assim amplas
possibilidades para atuação em grupos, empresas e instituições.

Portanto, podemos entender que para o psicólogo, atuar em uma


instituição está lhe interessará como organismo concreto, mas sem deixar de
lado que seu principal objetivo é o de estudar os fenômenos humanos que se
dão em relação com a estrutura, a dinâmica e os objetivos da instituição.

113
Há aproximadamente três décadas, começou a se tornar visível, entre
nós, a preocupação de estender a psicologia para além das áreas em que
habitualmente se exercia: pesquisas de laboratório, psicodiagnóstico,
psicoterapias, treinamento e seleção profissional, predominantemente. Por
currículo e por lei, ora mais e ora menos contraditoriamente1, o ensino e a
atuação profissional vão produzindo o desenho de uma psicologia que não
parece querer ficar à margem das reflexões filosóficas e sociológicas, feitas nas
salas de aula, ou à margem de ações políticas das agremiações estudantis e dos
movimentos sociais e comunitários em geral.

Nesse desenho da profissão, ganhou espaço o trabalho junto a


instituições (aqui entendidas como organizações), sobretudo as de saúde,
educação e promoção social. Em 1982, o governo do estado de São Paulo abriu
vagas para psicólogos, nos serviços públicos, contribuindo para a extensão dos
limites institucionais da profissão. Vários egressos das faculdades dirigiram-se
para esses atendimentos que tomaram um caráter multiprofissional, dada a
abertura feita, também em outras áreas. Os mestres universitários e profissionais

114
mais experientes (entre eles, estavam psicólogos e psicanalistas que migraram
da Argentina para cá) dedicavam-se à supervisão desses trabalhos. Não tardou
a aparecer uma disciplina na Universidade de São Paulo, ainda optativa:
Psicologia Institucional. Com o passar do tempo, os currículos de outras
faculdades foram incorporando o mesmo título.

É assim que, cada vez mais, psicologia e instituição vão se tornando um


binômio conhecido e reconhecido. Tal efeito, no entanto, não resolve as
questões oriundas de um trabalho que, apesar de tudo, ainda não tinha um
respaldo suficiente na formação e no currículo. E, sendo as práticas concretas o
carro-chefe, multiplicaram-se, quase às raias da dispersão, os modos de
compreensão e intervenção. Estamos falando agora do estado das coisas no
final da década de 1980 e início da de 1990. Isto de tal forma que parecia haver
tantos modelos de trabalho quantos fossem os mestres e supervisores em
campo. Uns se diziam socio psicanalistas, outros psicólogos institucionais,
outros ainda, analistas institucionais (e aqui, agrupava-se a maior variedade de
posições, desde os adeptos de Lapassade até os de seu parceiro intelectual,
Lourau; ou, desde os que assinavam uma autoria pessoal até os que se filiavam
à orientação de Delleuze e Guattari; e assim por diante).

Apesar da liberalidade na nomeação daquilo que faziam, profissionais e


autores sobre o tema produziam trabalhos até certo ponto diferentes sob a
insígnia institucional. Em parte, deriva dessa diversidade, no limite da
indiferenciação, uma vantagem para o exercício da psicologia: multiplicaram-se
(e se multiplicam) iniciativas e tentativas de alargar os horizontes do pensamento
e do fazer concreto, extrapolando os já distantes limites legais e provocando os
115
psicólogos a abandonar determinadas certezas cristalizadas em suas
modalidades de atuação, para abraçar desafios ainda muito tensos e informes.
O que está longe de ser algo negativo.

Gradativamente, permanecem dois títulos a significar os trabalhos “junto


às instituições”, como se costuma dizer: Psicologia Institucional e Análise
Institucional. Seriam elas a mesma coisa? A rigor, não. Vejamos.

7.1 A Psicologia Institucional de Bleger: uma visão Psicanalítica

Psicologia Institucional é um termo cunhado por J. Bleger, psiquiatra


argentino de orientação psicanalítica inglesa, que a um certo momento, buscou
aliar psicanálise e marxismo para pensar a atuação do profissional em
psicologia, para além das práticas terapêuticas e consultorias. Em nome dele e
por meio de seus escritos, nos idos de 1970, a Psicologia Institucional cruzou
fronteiras e, assim, apesar dos efeitos da repressão política que forçava os mais
inquietos a “falarem de lado e olharem para o chão3”, novos ares pareciam poder
soprar nestes brasis.

Trabalhar com psicologia institucional, portanto, é trabalhar com uma


determinada abordagem psicanalítica específica. E, como Bleger o define, com
essa abordagem, toma-se a instituição como um todo, como alvo da intervenção.

116
Em seu livro Psicohigiene e Psicologia Institucional (Bleger, 1973/1984), fica
claro que o psicólogo opera com os grupos, desde os de contato direto com a
clientela até a direção, por meio de um enquadre que preserva os princípios
básicos do trabalho clínico psicanalítico, bem como suas justificativas. Ainda: a
compreensão que tem das relações interpessoais guarda uma formulação muito
interessante: a da simbiose e ambiguidade nos vínculos e ele mesmo aproxima
essa compreensão às ideias de M. Klein a respeito de posições nas relações de
objeto; mais do que ao conceito de narcisismo em Freud (Bleger, 1977/1987).

Tudo isto implica que se alguém se diz trabalhando com psicologia


institucional, estará, ao mesmo tempo, tomando, tanto a instituição e suas
relações quanto a intervenção do psicólogo, a partir de uma perspectiva
psicanalítica; ou da perspectiva de uma psicanálise. Interpretações ou
assinalamentos, informados por esta compreensão das relações institucionais,
definem sua inserção nos grupos, seu fazer.

Assim, apenas sumariada, a proposta de Bleger perde muito de sua


riqueza e força... operativa. Para que se lhe faça justiça e para que se possam
apreciar as alterações que ele mesmo faz na psicanálise que em princípio
credita, recomendosobretudo a leitura dos textos O Grupo como Instituição e o
Grupo nas Instituições (Bleger, 1979/1981) e Psicologia Institucional (Bleger,
1973/1984).

7.2 A análise institucional de Lapassade: uma intervenção política

117
Análise Institucional, por sua vez, é o nome dado a um movimento que
supõe um modo específico de compreender as relações sociais, um conceito de
instituição e um modo de inserção do profissional psicólogo que é de natureza
imediatamente política. Desalojado do lugar de intérprete dos movimentos
grupais ou interpessoais, ele não se delega a tarefa diferenciada da interpretação
ou de assinalamentos; ele é, acima de tudo, um instigador da autogestão dos
grupos nas organizações, um favorecedor da revelação dos níveis institucionais,
desconhecidos e determinantes do que se passa nesses grupos. É um
provocador de rachaduras e rupturas na burocracia das relações instituídas. Está
do lado do instituinte, ainda que se questione sempre esse lugar e a própria
análise como facilitadores da “liberação da palavra social dos grupos”
(Lapassade, 1974/1977).

O idealizador da Análise Institucional é Georges Lapassade, psicólogo de


formação, que passou a trabalhar com psicossociologia e prosseguiu com um
intrigante caminho intelectual e político, o qual desembocou nesse movimento
autodenominado Análise Institucional.

Por que “movimento”? Porque, num tom acalorado e ruidosamente


polêmico, em princípio pelo estilo de sua escritura, praticamente, convoca
adeptos a uma causa. Propõe uma forma de agir e pensar que deveria mobilizar
todos os níveis institucionais ao mesmo tempo; e isto seria justificável por
finalidades políticas (supostamente) óbvias (e) que todo leitor deveria ter!
Funciona quase como uma convocação à militância. E o leitor se sente nessa
condição de chamado aos brios: “Mexa-se! O que você está fazendo aí sentado?
Venha engrossar as fileiras dos que rompem com a burocracia, liberam a palavra
social e fazem a revolução permanente!”.

Tal chamado, porém, como uma segunda voz nos escritos de seu livro
mais conhecido entre nós (Lapassade, 1974/1977), traz já a ambiguidade,
assumida por ele, de apresentar e criticar radicalmente a Análise Institucional
que ele mesmo propõe. No “Prólogo à Segunda Edição” dessa obra, acaba por
dizer, enfaticamente, sobre a ineficácia da Análise Institucional, na medida em
que conta com a ação de técnicos como coordenadores e preceptores de
mudança; a menos que se queira considerar, por um artifício, que a análise se

118
dá no nível da palavra e, portanto, não tem relação automática com uma
mudança na ação concreta. Por isso, não menos enfaticamente, afirma que o
que se deve fazer é a Ação Direta (análise em ato), por aqueles mesmos que
constituem os grupos de uma determinada instituição e/ou organização, com as
lideranças nascidas de seu interior. Segundo ele, essa é a verdadeira revolução
permanente que “decapita o rei”, as instituições sociais dominantes. Tudo, por
inspiração dos momentos históricos da revolução de 1968, na França, e ainda
visando à liberação da palavra social. Ora, poucos anos mais tarde, registra-se
em um “Prólogo à Terceira Edição”, que a liberação a ser feita é a do corpo e
que o que, então, se sustenta como ação de um profissional da psicossociologia
e da psicologia é Crise Análise.

São de Lapassade distinções conceituais importantes que parecem


frequentar o discurso de institucionalistas e de psicólogos afeitos a essa
perspectiva de trabalho. Nem sempre citada a fonte, alguns desses termos
parecem ter ganhado um sentido muito próximo ao de sua origem nesses outros
discursos.

A primeira delas é a distinção instituinte/instituído. O instituinte é uma


dimensão ou momento do processo de institucionalização em que os sentidos,
as ações ainda estão em movimento e constituição; é o caráter mais produtivo
da instituição. O instituído é a cristalização disso tudo; é o que, na verdade, se
confunde com a própria instituição.

119
A segunda é a distinção entre dois outros termos: organização e
instituição. Organização é um nível da realidade social em que as relações são
regidas por estatutos e acontecem no interior de estabelecimentos, espaços
físicos determinados. A instituição é o nível da lei ou da Constituição que rege
todo o tecido de uma formação social; está acima dos estatutos das
organizações. Ainda, segundo Lapassade, a instituição pode ser considerada o
brique-braque das determinações daquilo que atravessa os grupos de relação
face a face numa organização social. A sala de aula é exemplar nesse sentido:
a relação entre as pessoas é regida por normas que, em última instância, estão
apoiadas no que prevê a lei maior para o ensino; nesse contexto, o professor
poderá ser considerado um representante do Estado frente a seus alunos.

Menos conhecida é a concepção de burocracia que anima essa proposta.


Em poucas palavras, a novidade que esse autor nos apresenta é a de que
burocracia é, em princípio, uma questão de poder. Uma questão de divisão no
poder, entre grupos de decisão e grupos de execução do fazer institucional,
sendo que os primeiros decidem não apenas o que, mas também, o como fazer.
A normatização e a comunicação vêm de cima para baixo, e não há previsão de
canais legais ou legítimos para que essa relação se inverta. A regra de ouro é a
obediência e a organização acaba sendo um fim em si mesma. Indivíduos e
grupos acabam se munindo de um radar que possa sondar as necessidades e
interesses que não os próprios. É a heteronomia de grupos e sujeitos, que corre
em sentido oposto ao da autonomia.

Sobretudo com essa concepção de burocracia, Lapassade faz um


mapeamento das relações institucionais, trazendo para elas a organização da
separação, pelo poder de decisão, e a produção de sujeitos sem autonomia,
alienados e alienadores da palavra social. As relações de poder e a ideologia
têm, assim, seu contexto constituinte.

Podemos derivar daí um alvo para ação do psicólogo. E, com isso,


voltamos ao início e título desse item: trata-se, nessa perspectiva, de um trabalho
imediatamente político, e apenas mediatamente psicológico.

Tudo o que aqui se apressou em dizer é apenas um convite ao leitor para


que consulte esse intrigante livro (Lapassade, 1974/1977).

120
Como dissemos anteriormente, a nomeação Análise Institucional
estendeu-se a uma variedade de compreensões e modos de atuação, sobretudo
os psicanalíticos. De tal forma que, hoje, a referência comum tem sido o fato de
se tratar de trabalhos institucionais e/ou junto a instituições. Em geral, quando
conduzidos na forma de supervisão do trabalho de profissionais de ação direta.

7.3 O Psicólogo e as Instituições

Toda civilização necessita de um universo com signos e significados que


é construído pela linguagem. Através dela o indivíduo pode entrar em contato
com os demais.

O psicólogo institucional para efetuar um trabalho de maneira plena, não


deve ser funcionário da instituição para que tenha liberdade em atuar sem ter
vínculo financeiro, pois vai intervir nas relações, sendo assim não pode ser parte,
é necessário um distanciamento para ter uma visão ampla.

O psicólogo ao ser chamado para prestar seus serviços, ouvirá o


responsável pela contratação a problemática e o objetivo, entretanto nem
sempre os objetivos que o profissional de psicologia julgará com necessário a
ser atingindo irá de acordo com o que foi mencionado pelo responsável da
empresa. Em alguns casos que os objetivos são muitos antagônicos, a própria
parte que contratou os serviços tenta boicotar os serviços para que não continue
a se desenvolver.

Alguns comportamentos que são reproduzidos pelos funcionários da


instituição, têm relação direta com o ambiente de trabalho.

Para estudar instituições o psicólogo levará em consideração: a estrutura


física, a história da instituição, os objetivos pelo qual existe, organização, as
regras e as pessoas que a compõe.

121
Para Bleger o objetivo do psicólogo institucional é proporcionar a psico-
higiene, ou seja, qualidade de vida para as pessoas que estão naquele ambiente,
principalmente nesse ponto em específico os objetivos do psicólogo instituição
se opõe, as instituições que visam apenas números e lucros desconsiderando o
sujeito biossocial.

A linguagem é a primeira instituição que o sujeito tem contato, para Bleger


a linguagem é o instrumento mais poderoso de controle da sociedade sobre os
seus membros.

Por esse motivo o psicólogo deve conhecer a história da instituição e de


seus membros, para compreender como se relacionam e por onde deve começar
atuar.

Ao estudar a linguagem, o psicólogo deve ir mais fundo em compreender


não o que é dito explicitamente, mas os conteúdos implícitos. Nessas análises é
possível captar os conflitos velados que ocorre nas relações, que não são
propriamente verbalizados, porém os membros identificam que existe, mas como
não é exposto mantem-se essa dinâmica ruim.

A linguagem é uma instituição pé existente ao sujeito, e contém alguns


princípios a

baixo:
 Exteriorização: É exterior a vontade do indivíduo, que a aprende sem
questionar e é primordial para se inserir na sociedade.

122
 Objetividade: Reproduz as ações, determinadas coisas só existem se
estiverem no exterior, no campo objetivo, para maioria das pessoas.
 Coercitividade: Impõe dificuldades para que as mudanças não possam
acontecer, caso for contra a algo instituído pode ser lembrado pelas
regras, normas de forma agressiva e punitiva.
 Autoridade moral: Só a coerção não é o suficiente para manter a ordem
da instituição é preciso torna-la legitima, criando ameaças de sofrimento.
 Historicidade: A instituição já existia antes do indivíduo nascer e
provavelmente continuará após. A história é contada de geração, a
geração, através de conversas, escritos se mantendo na história.

Bleger recupera os processos grupais, a questão institucional e política, pois


trabalhar grupos é trabalhar relações, insere questões sociais na prática.

O grupo inicialmente se caracteriza pelo sincretismo (regredido,


atrapalhado, ambíguo) que é provocado pelo medo e ansiedade. Através das
intervenções, o objetivo é que

ocorra uma organização egoica dos membros e uma separação do eu e o outro.

Para que o psicólogo consiga atuar primeiramente, já na primeira


conversa com a instituição é necessário expor o enquadre, sendo possível
controlar algumas variáveis, compreender o lugar que o profissional de
psicologia ocupa no ambiente, auxiliando a identificar o problema, porém quem
irá resolver propriamente é a instituição e seus membros.

8.0 PERSEPÇÃO SOCIAL

123
Conceitualmente, a percepção social estuda a forma como formamos
impressões sobre outras pessoas e sobre como fazermos inferências sobre elas.
As conclusões mostram a importância de abordar o papel dos valores no
processo subjetivo-objetivo e nas relações do indivíduo e da sociedade.
Portanto, é através desses aspectos que podemos dá sentido ao mundo social
que nos rodeia, é também, através dela que podemos ter a capacidade de formar
impressões de maneira rápida e objetiva sobre esse mundo.

124
Na psicologia, o estudo da percepção é de extrema importância porque o
comportamento das pessoas é baseado na interpretação que fazem da realidade
e não na realidade em si. Por este motivo, a percepção do mundo é diferente
para cada um de nós, cada pessoa percebe um objeto ou uma situação de
acordo com os aspectos que têm especial importância para si própria, ou seja, é
através da percepção que um indivíduo faz do outro que se pode notar a forma
de como esse indivíduo organiza e interpreta as suas impressões sensoriais para
atribuir significado ao seu meio. Portanto a percepção tem uma grande
importância, ela pode ser relacionada pela a imagem que se faz do outro, pelo
conteúdo da memória, conceitos de valor e normas sócios culturais, ou seja, a
percepção está ligada a valores específicos do indivíduo ou de grupos distintos.

O pescador de Ilusões é um filme produzido em 1991, dirigido por Terry


Gilliam no filme podemos observar de uma maneira clara as mais variadas
formas de percepção do indivíduo envolvendo valores, atitudes ou até mesmo a
transformação social do outro. E, é possível perceber também na cena escolhida
descrita abaixo mudanças de comportamentos que vão atribuir componentes
indispensáveis para a construção pessoal de cada pessoa.

O filme retrata a história de Jack Lucas um radialista bem-sucedido, sem


compromisso ético, que em um de seus programas ele brinca com um psicótico
durante seu programa e o aconselha a fazer o que deseja. O homem vai a um
restaurante, atira em várias pessoas e depois se mata. Anos mais tarde, ainda
corroído pelo remorso, o radialista é salvo de um incidente por Parry um mendigo
louco, que acolhe em seu abrigo e lhe oferece comida e dormida. Vendo a
situação de abandono e pobreza ele ficou muito comovido. Mas ele apenas se
sensibilizou mesmo no dia em que descobriu que aquele mendigo tinha sido um
ex-professor de história, e apenas tinha chegado àquela situação devido a um
trauma horrível, desde o dia que mataram a esposa que ele tanto amava, com
um tiro na cabeça na frente dele, exatamente naquele restaurante que o psicótico
aconselhado por Jack foi, fazendo a esposa de Parry mais uma das vítimas
daquele incidente, desde esse dia ele torna-se um mendigo com problemas
mentais que procura pelo Santo Graal.

O radialista traz consigo o peso da culpa pela morte da mulher do mendigo


e tentando reparar seu erro tentando ajudá-lo, em todos os sentidos desde o

125
financeiramente até o de tentar protegê-lo e com o passar do tempo acabam se
tornando amigos. Até que um dia o mendigo se apaixonou por uma mulher que
ele via na rua, quando ela ia ao trabalho, a partir daí ele passou a observá-la,
seguindo-a, mas não tenha como ter uma aproximação dela e Jack ao saber
disso resolveu a ajudá-lo, convidando os dois para a sua casa, para um jantar
na tentativa de aproximá-los. No começo a mulher por nome Lydia Sinclair não
queria aceitar o convite, mas com muita insistência acabou aceitando, dessa
forma os dois se apaixonaram um pelo outro, Parry se curou de seus traumas e
problemas mentais, e passou a viver uma vida nova. Tudo com a ajuda de Jack
que mostrou que os valores e atitudes podem mudar o comportamento das
pessoas, e daí por diante ele passou a não se sentir mais culpado e começou de
novo a viver a sua vida normal se tornando uma pessoa bem melhor.

Na leitura da obra da professora Sílvia Tatiana Maurer Lane fica clara


também que a interação humana ao se compartilhar objetivos, regras, valores e
entre outros, exerce uma influência considerável no processo de construção da
identidade de cada indivíduo.

A professora Sílvia Tatiana Maurer Lane tem uma trajetória de vida


profissional, no campo da Psicologia Social, que faz dela uma das mais
importantes influências no desenvolvimento de um novo projeto para a
Psicologia: o projeto do compromisso social. Seu trabalho, sempre aliado ao de
outras pessoas, produziu novos caminhos para a Psicologia. Sua produção
teórica permitiu a construção de novas perspectivas no campo da Psicologia
Social, sendo responsável pelo desenvolvimento da perspectiva sócio histórica
na Psicologia Social no Brasil. Suas ideias sobre a prática permitiram a
construção da Psicologia Social Comunitária. Seu empenho na América Latina
criou intercâmbios e trocas, fortalecendo o diálogo no campo da Psicologia entre
profissionais deste continente. Seus princípios permitiram apoio na construção
de um novo projeto de Psicologia.

Sua preocupação básica em construir uma psicologia social voltada para


a realidade brasileira e latino-americana, com vistas a contribuir para a
superação das desigualdades e das situações de opressão, demandava uma
construção teórica que permitisse compreender o homem como participante do
processo social. Nesse sentido, entendia que o conhecimento da psicologia

126
deveria levar à compreensão dos mecanismos que provocam a alienação e
contribuir para ampliar a consciência dos homens. Sua teoria sobre o psiquismo
teve essa direção.

Lane discute claramente como a psicologia social coloca como objeto as


relações interpessoais e a influência de fatores sociais no indivíduo, mas
estabelecendo uma dicotomia entre indivíduo e sociedade e dentro de uma
perspectiva naturalizante. Tais formulações estão baseadas em um método
experimental, que busca relações causais entre variáveis e estabelece a
necessidade de verificação empírica de princípios teóricos. Baseado no
positivismo, o método prega a neutralidade do conhecimento científico e a
distinção entre o conhecimento e a ação, ou seja, entende que o conhecimento
deve ser objetivo e desvinculado de qualquer intenção em relação a seu uso.

Em entrevista concedida à revista Psicologia e Sociedade, em 1995, ela


reafirmava a convicção sobre a necessidade de democratizar o saber, em nossa
sociedade profundamente desigual e excludente. Para ela, a aceitação das
diferenças, a luta contra o preconceito e a discriminação dependiam dessa
democratização, isto é, da presença do intelectual fora dos muros da academia,
atuando e interagindo com os grupos sociais. E isto deveria ser feito

[...] abrindo esse espaço para todo mundo, para quem quiser
aprender e mais: fazendo o esforço de falar a linguagem de todo o
mundo. Transmitir nosso saber numa linguagem do cotidiano. É um
desafio. Mas é uma briga entre o poder autoritário e o poder
democrático. Acho que esta é a questão fundamental da academia.
(LANE, 1995, p.9)

Assim despojada e generosa, Sílvia se revela em sua extrema


sensibilidade e em sua paixão pelo conhecimento, que ela quer transmitir a
todos, pois o que é bom deve ser de todos, sem discriminação. E desse modo
se despediu de nós, deixando um legado de dignidade e de grande força
intelectual. Viva Sílvia Lane!

8.1 A dimensão social da percepção

127
Nossa experiência é essencialmente intersubjetiva. Merleau-Ponty (1945)
reporta-se à nossa relação com aspectos básicos da espacialidade, como a
profundidade, a iluminação e a forma das coisas. Essa dimensão das nossas
vivências constitui o que se poderia chamar, segundo o filósofo, de mundo físico,
ou mundo natural. Mas o mundo físico, mesmo no sentido fenomenológico da
expressão, que escapa às acepções das ciências naturais, não passa de um
recorte abstrato da nossa experiência. É preciso compreender, como faz
Merleau-Ponty (1945), que "quase toda a nossa vida" (p.31) se passa no mundo
cultural. Estamos cercados por pontes, estradas, casas e utensílios, como
óculos, cadeiras e colheres. "Cada um desses objetos carrega implicitamente a
marca da ação humana à qual ele serve", comenta Merleau-Ponty (1945, p.399).
E estamos rodeados, principalmente, pela presença corpórea de outras pessoas.
"O primeiro dos objetos culturais e aquele pelo qual eles todos existem, é o corpo
de outrem enquanto portador de um comportamento", complementa o filósofo
(Merleau-Ponty, 1945, p.401). Orientando-nos pelo tema da percepção, é
possível identificar, portanto, dois problemas básicos referentes à
intersubjetividade: a questão da percepção do outro e a questão do vetor social
que marca a nossa relação com as coisas.

Essa distinção aparece na literatura filosófica e científica contemporânea


na forma dos problemas da cognição social, relativos a "como compreendemos
os outros" (Gallagher, 2010, p.112), e da realização participativa de sentido
(participatory sense-making), que diz respeito a "como compreendemos o mundo
circundante com e mediante os outros" (Gallagher, 2010, p.112, grifos do autor).
De acordo com Gallagher, trata-se de duas questões intimamente relacionadas,

128
mas que, todavia, merecem ser diferenciadas. Pode-se afirmar que a diferença
fundamental concerne ao objeto intencional em cada tipo de circunstância. Na
realização participativa de sentido, o objeto central é o mundo e as coisas
mundanas. O interesse recai, nesse caso, sobre a constituição de sentido no
campo da interação intersubjetiva, ou, de modo mais geral, sobre a "Co
constituição de um mundo significativo [meaningful world]" (Gallagher, 2010,
p.113). No âmbito da cognição social, o objeto são os outros agentes, as
pessoas, e o seu comportamento.

A dimensão social da percepção pode ser evidenciada quando a


examinamos à luz dos problemas referentes à atenção. Constata-se, conforme
as teorias fenomenológicas, que a aparição de um objeto exige o recuo do
horizonte perceptivo. Na atividade perceptiva, operam-se, continuamente,
seleções, de modo que algo possa aparecer. Não é possível ouvir ou ver tudo
ao mesmo tempo. Identifica-se, portanto, na percepção, o que Weizsäcker
(1939/1962) chama de restrição constitutiva, que coincide, em grande medida,
com o tornar-se atento a alguma coisa. Esse acontecimento não é, todavia, um
fenômeno solitário. Somos, frequentemente, cativados pelo outro, que se torna
nosso objeto de atenção, ou por aquilo a que ele dedica atenção. A atenção
dedicada a algo de modo partilhado pode se dar no plano de uma "Co atenção
presencial" (Citton, 2014, p.127), caso em que duas ou mais pessoas,
conscientes da presença de outrem, interagem com o mundo juntas, e no plano
mais amplo de uma comunidade, ou mesmo no de uma sociedade de massas,
em que as pessoas não compartilham, ao mesmo tempo, o mesmo lugar. O
conceito de atenção conjunta, que analisaremos a seguir, diz respeito ao nível
da co-atenção presencial, e nos endereça à intersecção das questões relativas
à cognição social, ou, em termos mais gerais, à nossa percepção do outro
enquanto ser sensível, e à percepção conjunta das coisas, quer dizer, à
realização participativa de sentido. Por meio do exame dos problemas
envolvidos na atenção conjunta, é possível desenvolver temas relativos a um
importante aspecto da percepção: a sua dimensão corpórea, que demanda que
as ideias de cognição e de sentido sejam discutidas com base em elementos da
esfera sensório-motora, principalmente a ação e o movimento.

129
8.2 A atenção conjunta

A atenção conjunta (joint attention) pode ser considerada uma plataforma


conceitual que reúne pesquisas interdisciplinares voltadas ao estudo das origens
da cognição humana, especialmente a linguagem e a compreensão social
(Meltzoff, Kuhl, Movella & Sejnowski, 2009). Nesse âmbito de pesquisa,
concorda-se em definir a atenção conjunta como "um fenômeno profundamente
social" (Seemann, 2011, p.195), com importante função na comunicação e na
aquisição de conceitos.

Na psicologia do desenvolvimento, a atenção conjunta unifica,


conceitualmente, uma série de habilidades sociais, por parte das crianças, no
âmbito da percepção e da ação. Constata-se que a atenção conjunta começa a
ocorrer em torno do nono e do décimo segundo mês de vida. Observa-se, nessa
fase, que os bebês transpõem um regime diádico de interação, ora com coisas,
eventos ou situações, ora com outra pessoa. No esquema diádico, a criança,
engajada atentamente na manipulação de algum objeto, não interage com o
sujeito que por acaso esteja à sua volta. Ou, no caso de regozijar-se com a
presença de alguém, não concede atenção aos objetos do ambiente. A partir dos
nove meses de idade, passam a ser cada vez mais frequentes atividades em
que a criança partilha com outrem um objeto de interesse, configurando, então,
esquemas triádicos de interação, ou seja, ações que abarcam, além da criança,
um parceiro e um objeto de percepção conjunta. Nessa nova estrutura de

130
coordenação da percepção e da ação, a criança e o adulto conjugam sua
atenção em relação a objetos e eventos (Tomasello, 1999; Moll & Meltzoff, 2011).
É justamente essa forma de interação, e os comportamentos a ela associados,
que foi designada como atenção conjunta, desde os trabalhos pioneiros de
Bruner (1983).

As pesquisas realizadas em torno do assunto (Bruner, 1983; Tomasello,


1999; Moll & Meltzoff, 2011; Bimbenet, 2011; Sheinkopf et al., 2016; Hurwitz &
Watson, 2016) revelam que os episódios primordiais de atenção conjunta e as
habilidades correspondentes a ela emergem segundo um determinado padrão
de desenvolvimento, que indica diferentes níveis de especificidade do triângulo
referencial entre a criança, seu parceiro de atividades e os objetos circundantes.
São mais comuns, inicialmente, situações em que, embora a interação por parte
da criança com o adulto seja mediada por um objeto, a referência partilhada é
incipiente, por exemplo, quando, atraída por uma coisa qualquer, a criança olha
para o rosto do outro, buscando verificar se este se encontra envolvido na
mesma cena e se se mostra ciente daquele mesmo objeto. Constata-se, nesses
casos, a alternância do olhar da criança entre seu objeto de interesse e o seu
parceiro social. Pouco a pouco, passam a se manifestar, de modo mais estável,
atos em que o bebê acompanha o olhar ou as indicações gestuais do adulto,
focalizando, então, sua ação perceptiva naquilo que prende a atenção do outro.
Verifica-se, nessas circunstâncias, maior precisão em relação ao que olham e
ao que se referem a criança e o seu par. Faz parte dessa categoria de
realizações o aprendizado por imitação (imitative learning), caracterizado por
situações em que a criança age com os objetos da forma como os adultos atuam
sobre eles. A própria criança passa, mais tarde, a apontar e mostrar objetos e
acontecimentos aos seus pares, dirigindo, então, a atenção e o comportamento
destes.

131
Para Tomasello (1999), a emergência da atenção conjunta por volta dos
nove a doze meses de idade configura um fenômeno coerente, ou seja, bem
delineado, no desenvolvimento infantil. Mas seria preciso um passo a mais nos
estudos, no sentido de se elaborar uma explanação, igualmente lógica, em torno
do papel desenvolvimento da atenção conjunta. A hipótese teórica geral que
congrega essa linha de pesquisas integra os comportamentos triádicos ao
problema da cognição social na infância. A hipótese específica é de que a
atenção conjunta implica o início da compreensão, por parte da criança, do outro
como agente intencional como ela mesma. Tomasello (1999) explica o sentido
que dá à intencionalidade: "Agentes intencionais são seres animados que têm
objetivos e que fazem escolhas ativas entre as formas comportamentais
disponíveis para atingir aqueles objetivos, incluindo escolhas ativas sobre em
que prestar atenção na busca desses objetivos" (p.68). A atenção seria, portanto,
um tipo de percepção intencional, na medida em que, para Tomasello (1999), os
indivíduos "(...) escolhem intencionalmente atentar [intentionally choose to
attend] a certas coisas e não a outras" (p.68) em seu processo de busca por suas
metas no ambiente. O autor dá o exemplo de um pintor e de um alpinista que,
preparando-se para a realização de suas respectivas atividades, voltam seus
olhares para uma determinada montanha. Embora vejam a mesma coisa, os dois
atentam a aspectos distintos dela3. Os comportamentos triádicos, especialmente
aqueles em que a criança dá indícios de identificar com alguma precisão a "que"
o adulto se dirige ou o "que" está fazendo, denotam, segundo Tomasello (1999),
"uma clara compreensão da atenção do adulto" (p.69), embora ainda haja, por

132
parte da criança, muito a conhecer acerca da relação entre a direção de um olhar
e o foco de atenção.

Bruner (1983) também se reporta à possibilidade da referência conjunta,


embora dirigida a um mesmo tópico atencional, envolver grande variação de
exatidão. O exemplo aludido por ele é o de uma mãe, detentora de
conhecimentos especializados em física, que alerta seu filho de quatro anos
sobre o perigo de sofrer um choque elétrico ao explorar uma tomada. Este objeto
não é visado da mesma maneira pelos dois, sobretudo em virtude da ideia de
eletricidade que a mãe e a criança são capazes de atualizar nesta situação.
Importa, todavia, que as partes envolvidas em uma "troca referencial" (Bruner,
1983, p.68) saibam que partilham alguma justaposição "em sua atenção focal"
(Bruner, 1983, p.68).

O que convém enfatizar, portanto, é que, em situações de atenção


conjunta, a criança não apenas compreende o outro como fonte de auto
movimento e de poder causal, mas como ser capaz de realizar escolhas
comportamentais e perceptivas. Aliás, segundo Tomasello (1999), esta
"distinção crítica" (p.74) estaria ausente, por exemplo, nas teorias de Piaget, que
se limitaria a identificar, na criança, a capacidade de atribuir poderes causais ao
outro. Para autores como Bruner (1983) e Tomasello (1999), está em questão,
na atenção conjunta, a emergência da compreensão, por parte da criança, de
outrem como percipiente, como ser dirigido a objetivos da mesma forma que ela
mesma. Esta seria a base para que a criança se compreenda como participante
em interação com o outro, com atenção focal justaposta, e para que a
comunicação gestual evolua rumo à aquisição da linguagem.

8.3 Princípios teóricos de interpretação da atenção conjunta

Os princípios norteadores da posição adotada por precursores, como


Bruner (1983) e Tomasello (1999), acerca dos problemas da ontogênese
envolvidos na atenção conjunta advêm da filosofia da mente e dos seus
desdobramentos nas ciências cognitivas, principalmente no que se
convencionou chamar de teoria da mente. Admite-se, nesse contexto teórico,
que o sujeito da cognição, em suas relações com outrem, ocupa-se

133
predominantemente com a explicação do comportamento alheio, sobretudo com
a previsão do curso ulterior das ações desse agente físico e das suas
consequências no ambiente. Concorda-se, além disso, em atribuir a esse
sistema comportamental, externo ao sujeito cognoscente, estados internos
prováveis. De acordo com Petit (2004), a relação intersubjetiva, nesse enquadre
filosófico, é sintetizada em um sujeito que, na interação com um outro, torna-se
"'um atribuidor de propriedades mentais' a um 'objeto-alvo' do ambiente e do qual
ele quer 'predizer o comportamento' afim de antecipá-lo" (p.128)4. No que diz
respeito aos processos internos do sujeito perceptivo que estariam envolvidos
na interação com outrem, trata-se, para os pesquisadores, de investigar os
mecanismos representacionais que possibilitariam a compreensão, constituída
perceptivamente, da vida mental do outro. As hipóteses explicativas acerca
desse processo passam, sem pretensão a uma listagem exaustiva, pela
suposição de módulos mentais especializados na detecção da direção ocular de
alguém, em mecanismos de compartilhamento da atenção, que seriam
responsáveis pela formação de representações triádicas, além das teorias
inferencial e da simulação, que tiveram grande aceitação nos programas de
pesquisa voltados à atenção conjunta (Fuchs & De Jaegher, 2009; Bimbenet,
2010, 2011; Seemann, 2011).

A teoria inferencial, também conhecida como teoria da teoria, e a teoria


da simulação representam as principais interpretações da atenção conjunta
atreladas à teoria da mente. Sua análise permite a identificação da permanência
de concepções solipsistas no seio dos debates sobre o caráter social da vida
mental.

Ambas se baseiam, no que se refere às pesquisas voltadas ao


desenvolvimento infantil, em estudos que evidenciam a intensa sociabilidade das
crianças desde fases bastante precoces da ontogênese. Das protoconversações
em que os bebês se engajam junto com os seus cuidadores à capacidade do
recém-nascido de imitar comportamentos dos adultos, como protusões da língua
e abertura da boca, constata-se a tendência das crianças de se identificar com
seus coespecíficos (Tomasello, 1999), ainda que com base em expedientes
exclusivamente sensório-motores, destituídos de uma faculdade categorizadora.
Meltzoff (1999), contudo, chega a assumir que os bebês, bem cedo, mediante
os jogos de imitação recíproca na interação com outros agentes, adquirem

134
informação sobre "(...) como o outro é 'igual a mim' [like me]" (Meltzoff, 1999,
p.256). Concorda-se em afirmar, de todo modo, a capacidade do bebê de se
identificar em profundidade com seus Co específicos, fato que constitui uma
importante diferença na comparação comportamental entre os seres humanos e
outros primatas.

Um segundo pressuposto das teorias inferencial e da simulação decorre


das premissas básicas da teoria da mente: considera-se que, nas interações
sociais, o sujeito perceptivo tem acesso direto ao comportamento do outro, mas
não é capaz de experimentar diretamente suas crenças, desejos e intenções.
Estes elementos são encarados como estados mentais que repousam, ocultos,
sob o comportamento alheio. Seria necessário, portanto, construir, o tempo todo,
teorias sobre as intenções dos outros. Este gênero de exercício inferencial teria
origem bem cedo em nosso desenvolvimento. Meltzoff (1999) afirma: "é
nossa teoria de que crianças têm teorias" (p.253, grifos do autor), sobretudo no
que concerne à compreensão do comportamento intencional de outrem. Na
teoria da simulação, defendida por Tomasello, o processo representacional de
leitura das intenções estrangeiras baseia-se na ação mental de "colocar-se no
lugar do outro". O pressuposto, nesse caso, é que o funcionamento psicológico
das outras pessoas é compreendido com base no psiquismo do próprio
percipiente, conhecido mais direta e intimamente por ele mesmo. Tomasello
(1999) considera que, nesse sentido, as crianças, na medida em que adquirem
a capacidade de se compreender como entes intencionais, no sentido de seres

135
com propósitos referidos ao meio circundante, passam a aplicar esta
compreensão ao comportamento de outrem. O outro pode, então, ser tratado
como um agente psicológico, possuidor de interesses próprios e centro de uma
atenção voltada a entidades que lhe são exteriores (Carpenter, Nagell &
Tomasello, 1998).

Consideramos as pesquisas em torno da atenção conjunta ricas em


descrições e reflexões sobre a dimensão social da percepção. Desses estudos
sobressai a inscrição da relação às coisas e ao mundo no contexto da
sociabilidade, principalmente a emergência da consciência "de um ver em
comum" (Bimbenet, 2011, p.309). Não se trata, simplesmente, do ponto de vista
da criança, de olhar para aquilo que o outro olha, mas de tomar consciência de
que o outro olha uma mesma coisa. O olhar conjunto constitui um ato, ao mesmo
tempo, de referência e de comunicação, constatado ainda mais claramente
quando a criança passa "a 'declarar' a coisa para o outro" (Bimbenet, 2011,
p.309), apontando-a e mostrando-a para ele, quando se volta àquilo que
interessa o outro, quando interroga sua atitude em relação ao objeto,
expressivamente e, mais tarde, verbalmente.

136
Os estudos inaugurais da atenção conjunta denotam, por outro lado, um
compromisso teórico com ideários mentalistas e intelectualistas. Seus
pressupostos solipsistas comprometem a compreensão das bases psicológicas
da relação com o outro e a conotação social de interação com o mundo (Petit,
2004). A abordagem da atenção conjunta realizada por autores como Tomasello
e Meltzoff, denominada de perspectiva representacionalista (Fuchs & De
Jaegher, 2009), ou sócio-cognitiva (Bimbenet, 2010), acaba, com efeito, por
enfatizar uma proto-compreensão, por parte da criança, de seus estados mentais
e a ocorrência de processos reflexivos e de projeção desse conhecimento no
outro. Desde que se considere a mente como um domínio interior apenas
acessível ao próprio sujeito mental, a vida mental do outro não pode ser
acessada senão indiretamente, segundo os indícios revelados pelo seu
comportamento (Bimbenet, 2011). O pressuposto da teoria da mente é, além
disso, de que o outro apenas pode ser reconhecido, desde o início, "como um
outro eu mesmo" (Bimbenet, 2010, p.98). Do mentalismo decorre o
intelectualismo. "Se o outro é constitutivamente um problema, é ao
conhecimento, então, que ele se oferece em primeiro lugar", afirma Bimbenet
(2011, p.349). Como o outro não se apresenta diretamente na relação social, seu
entendimento exige processos de interrogação e de elaboração de um saber
explicativo ou preditivo.

Em suma, tomado como parâmetro acerca das discussões


contemporâneas sobre a percepção social, o conceito de atenção conjunta
expressa a preocupação científica com a dimensão comum da nossa relação
com o mundo. As interpretações preponderantes da atenção conjunta denotam,
contudo, a primazia de um ideário mentalista capaz de comprometer a
apreensão da conotação propriamente social da percepção.

9.0 IDEOLOGIA E ALIENAÇÃO

9.1 Ideologia

137
Ideologia “é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações
(ideias e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem
aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que
devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem
sentir, o que devem fazer e como devem fazer. Ela é, portanto, um corpo
explicativo, de representações e práticas (normas, regras e preceitos) de caráter
prescritivo, normativo, regulador, cuja função é dar aos membros de uma
sociedade dividida em classes uma explicação racional para as diferenças
sociais, políticas e culturais, sem atribuir tais diferenças à divisão da sociedade
em classes. Pelo contrário, a função da ideologia é a de apagar as diferenças,
como as de classes, e de fornecer aos membros da sociedade o sentimento de
identidade social, encontrando certos referenciais identificadores de todos e para
todos, como, por exemplo, a humanidade, a liberdade, a igualdade, a nação, ou
o Estado.” (Marilena Chauí, o que é ideologia 1980).

Além dessa definição da filósofa Marilena Chauí, no decorrer da história


do pensamento sociológico, muitos sociólogos se preocuparam em achar uma
definição adequada para este conceito que tanto nos intriga. A palavra ideologia
foi criada por Destutt de Tracy, no séc. XIX, e significa, etimologicamente, ciência
das ideias. Posteriormente, concluiu-se que esta palavra ganharia um sentido
novo quando Napoleão chamou De Tracy e seus seguidores de "ideólogos" no
sentido de "deformadores da realidade". No entanto, os pensadores da

138
Antiguidade Clássica e da Idade Média já entendiam ideologia como o conjunto
de ideias e opiniões de uma sociedade.

Isso mesmo, também podemos definir Ideologia como um conjunto de


ideias, concepções, opiniões sobre algum tema, quando perguntamos por
exemplo, qual é a ideologia de um determinado pensador, estamos nos referindo
à doutrina, a um conjunto de posicionamentos e ideias seguidos por ele diante
determinados fatos.

Karl Marx conceituou Ideologia como um sistema de pensamento, ou seja,


uma forma de conceber o mundo que abrange, principalmente, os seus aspectos
sociais (relações entre os homens e a sua atividade); "Visão do mundo", isto é,
produto e reflexo de uma época e de uma sociedade, mais especificamente de
grupos sociais reais, estratos e classes, expressando os seus interesses, a sua
atividade e o seu papel histórico; Não seria, para este pensador, um sistema de
pensamento neutro, pois para ele a ideologia teria uma função que é a de
legitimar, justificar e contribuir, ou para a manutenção da ordem social existente,
ou para a sua transformação. Marx compreende a ideologia como uma
consciência falsa, proveniente da divisão entre o trabalho manual e o intelectual.
Nessa divisão, surgiriam os ideólogos ou intelectuais que passariam a operar em
favor da dominação ocorrida entre as classes sociais, por meio de ideias capazes
de deformar a compreensão sobre o modo como se processam as relações de
produção. Neste sentido, a ideologia (enquanto falsa consciência) geraria a
inversão ou a camuflagem da realidade, para os ideais ou interesses da classe
dominante.

139
Ideologia também pode indicar Teoria, no sentido de “constituição”,
configuração dos conhecimentos para nortear a ação de indivíduos e
instituições, há uma ideologia religiosa, a de uma igreja, de uma religião
específica, estabelece um código de conduta aos fiéis, há uma ideologia para as
escolas, cada escola segue uma ideologia específica, e, claro há a ideologia de
um partido político, ou seja, um estatuto que estipula as concepções acerca de
diversos temas de interesse do partido e de seus afiliados, como por exemplo,
de poder e fornece uma série de orientações de ação aos seus militantes.

Cabe aqui citarmos também uma outra definição de ideologia, muito


importante, a do pensador Antônio Gramsci, para ele a ideologia significava uma
concepção de mundo, manifestando-se de modo tácito na arte, no direito, na
atividade econômica, enfim em todas as manifestações da vida, e ainda de
acordo com Gramsci, a ideologia tem por função conservar a unidade de toda
sociedade.

Segundo Gramsci, as ideologias: “(…) organizam as massas humanas, formam


o terreno sobre o qual os homens se movimentam, adquirem consciência de sua
posição, lutam etc.”

140
Mas o que é reificação? O que seria reificar? é o processo de tomar uma
ideia ou conceito e tratá-los como se fossem algo concreto e real. "Sociedade",
por exemplo, é um conceito usado pela maioria dos sociólogos para descrever a
organização da vida social. A sociedade não é algo que possamos tocar, no
sentido físico, material, nem "ver" ou “experimentar" de alguma forma usando
nossos sentidos. A sociedade também não é capaz de pensar, sentir ou agir,
mas sim os indivíduos que fazem parte de uma determinada sociedade.

Ainda assim, as pessoas, nós, reificamos frequentemente a sociedade,


referindo-se a ela como se fosse uma entidade viva, concreta, possuindo
necessidades, vontades, intenções e comportamento, como se fosse um ser
consciente que pode ser julgado culpado por vários resultados, não sei se estou
exagerando, mas um exemplo disso é a citação de Rousseau, quando este
afirma "todo homem nasce bom, e a sociedade o corrompe".

No mundo escolar existem várias ideias, concepções, pensamentos etc.


que, sem percebermos, podem ser distinguidas como ideológicas, essas ideias

141
podem ser expressas por professores, alunos (as), funcionários, pais, diretores
ou mesmo podem ser trazidas de fora da escola por eles.

Exemplos:

“A escola dá oportunidades a todos os alunos de aprenderem as coisas da vida.”

“A função do professor é ensinar, a do aluno é aprender, e só.”

“Professor não pode falar de política em sala de aula.”

Todas estas frases demonstram pensamentos e ideias disseminadas não


só na escola, mas em toda sociedade. Elas prescrevem normas, representam a
realidade, generalizam o particular, têm um discurso lacunar, além de inverter a
realidade, naturalizar e ocultar os fatos. E, prescrever normas é elaborar, repetir
e manter a ordem dita “normal” das coisas.

Por exemplo, quem disse que os alunos e alunas não sabem nada e o
professor (a) é o único dono(a) da verdade? E as experiências pessoais dos
alunos(as).Não podemos asseverar que a função do professor é unicamente
ensinar e os alunos (as) devem apenas aprender, pois na verdade o professor(a)
é um mediador(a), um facilitador(a) e os alunos(as) podem muito bem ensinar
coisas e compartilhar seus conhecimentos com os professores.

9.1.1 Para que serve a ideologia?

Partindo da concepção clássica proposta por Destutt de Tracy, a ideologia


serviria para compreender e organizar historicamente o conjunto de ideias
formuladas pela sociedade. Para a vertente crítica, a ideologia serviria para
manter a aparente veracidade de um discurso falso, com a finalidade de manter
uma estrutura de dominação sobre as pessoas ou de tornar uma ideia falsa ou
pequena como hegemônica.
Podemos exemplificar com alguns casos para tornar a compreensão da
ideologia mais fácil:

 Meritocracia: no sistema capitalista liberal, marcado pela desigualdade de


classes e pela dominação de uma classe social mais forte, criou-se uma
ideologia do mérito. Nesse sistema, acredita-se que o esforço individual é que

142
faz a desigualdade. Quem estuda mais, trabalha mais e possui qualidades
administrativas mais desenvolvidas consegue sobrepor-se economicamente.
Consequentemente, as camadas mais pobres seriam compostas por pessoas
que não merecem a riqueza por não terem se esforçado o bastante para
conseguir a riqueza ou por não saberem administrar o dinheiro.

 Ideologia de gênero: a partir do século XX, começou-se a discutir mais sobre


as questões de gênero em razão do impulso dado pelos
movimentos feministas à discussão do papel da mulher na sociedade. Com isso,
passou-se a se discutir o que é ser mulher e o que é ser homem, e algumas
teorias chegaram à conclusão de que ser homem e ser mulher não está
vinculado ao sexo biológico, mas, sim, a uma questão de papéis sociais e
culturais. Isso se tornou uma legitimação para pessoas transsexuais se
assumirem enquanto pertencentes a um gênero oposto. Como modo de
desqualificar essas teorias, setores conservadores da sociedade, chamaram as
teorias de gênero de “ideologia de gênero”, conseguindo, assim, desqualificar
o discurso de gênero como um discurso falso no âmbito da linguagem. É preciso
deixar claro que uma pessoa que concorda com as teorias de gênero nunca deve
usar a expressão “ideologia de gênero”, pois isso significa automática
reprovação do discurso sobre o gênero.

143
9.1.2 Tipos de ideologia

Do mesmo modo que se deve ter cuidado com o uso do termo


ideologia aliado ao termo gênero, deve-se ter cuidado com a utilização do termo
ideologia aliado a outros termos políticos. Se você concorda com um tipo de
visão política, jamais a chame de ideologia. Se você acha que tal teoria
compreende um conjunto de ideias falsas, ilusórias ou enganadoras, aí se
justifica chamá-la de ideologia.
Porém, o senso comum chama de ideologia qualquer tipo de discurso, teoria ou
conjunto de ideias, achando que qualquer visão política pode ser chamada de
ideologia política. Assim sendo, criou-se um conjunto de “ideologias”, estando
algumas delas dispostas a seguir:

 Ideologia capitalista;
 Ideologia liberal;
 Ideologia conservadora;
 Ideologia comunista;
 Ideologia anarquista;
 Ideologia democrática;
 Ideologia nazista;
 Ideologia fascista.

144
9.2 Alienação Social

Alienação social é um termo que se refere à maneira pela qual membros


de uma sociedade tornam-se padronizados e perdem – ainda que parcialmente
– seu senso crítico. Dessa forma, surge como consequência o “senso comum”,
que é um conjunto de crenças e suposições populares edificadas a partir da falta
de reflexões profundas. Ou seja, o senso comum é o que torna tudo raso e
supérfluo.

A palavra “alienação” vem do latim alienus, e significa “algo que vem de


outra pessoa”. Karl Marx foi um dos principais filósofos que estudaram o
significado da palavra “alienação”, bem como suas causas e consequências. Em
suas obras, o pensador alemão relacionou essa palavra diretamente à noção de
trabalho, explicando que os homens, para sobreviver, submetem-se à venda de
sua força de trabalho, e isso gera desigualdade social e ocasiona uma divisão
das relações sociais. Assim, para Marx, um sujeito submete-se à alguma coisa
sem ao menos questionar sobre as razões históricas e sociais que fizeram com
que tal coisa se tornasse aquilo que é.

145
Há uma categorização elaborada em torno do tema “alienação social”, que
a divide em três classes: a alienação econômica, a intelectual e a social. Na
econômica os produtores não se veem como produtores; na social o homem
sente-se separado do meio externo e coloca a sociedade como sendo “o outro”;
e na intelectual os indivíduos consideram as ideias como sendo universais,
tomam-nas como verdades absolutas, reproduzem-nas e tendem a perder seu
senso reflexivo. Todas elas, apesar de suas diferenças, possuem um aspecto
em comum: resultam num mesmo fator, que é o surgimento de uma Ideologia. A
Ideologia é uma elaboração intelectual da classe dominante e dirigente, que
passa a ser incorporada pelas outras classes sociais. Assim, essas outras
classes (compostas pelos cidadãos alienados) irão reproduzir as ideias,
pensamentos e opiniões dos dominantes ou dirigentes. Dentro de tal contexto,
aqueles que se tornam alienados e, conforme já mencionado anteriormente,
perdem sua capacidade crítica, passam a reproduzir o que lhes é passado pelos
outros e acabam por viver num mundo de aparências e dissimulações, pois
encaram e vivem seu cotidiano somente sob uma perspectiva já formulada por
outros, e não por eles próprios (conforme a tradução da terminologia latina citada
anteriormente: algo que vem de outra pessoa). Portanto, esses indivíduos
alienados irão se submeter aos valores pregados pelas instituições vigentes.

146
O grande problema da Alienação Social, qualquer que seja a categoria
em que se manifeste, é que o indivíduo atingido por ela se torna padronizado e
tem seus pensamentos limitados. Filosoficamente isso é um grande obstáculo,
pois representa a perda da autonomia dos homens, além de significar uma
aceitação e um plágio inconsciente do que outras pessoas dizem e pensam. A
Filosofia deve atuar na batalha contra a perda do senso crítico, pois é capaz de
despertar a indagação no ser humano e levá-lo a examinar a realidade que o
cerca, podendo assim instaurar a emancipação do pensamento, da consciência
e da subjetividade de um homem.

10.0 A PSICOLOGIA SOCIAL E O PAPEL DO PSICÓLOGO NA SOCIEDADE


CONTEMPORÂNEA

A Psicologia Social é vista como uma senhora de pouco mais de 100 anos,
cujo período mais vindouro é caracterizado pelas últimas seis décadas, sendo
sua gênese marcada por uma dupla paternidade, ora pautada na Psicologia, ora
fundamentada na Sociologia.

147
A Psicologia Social, apesar de apresentar um longo passado, sua história
como disciplina científica ainda é curta. As preocupações sobre a relação entre
sujeito e sociedade tiveram início com o desenvolvimento do pensamento
filosófico. No entanto, os antecedentes da Psicologia Social como disciplina
científica remetem à segunda metade do século XIX, momento em que a
Psicologia e a Sociologia estão se estabelecendo como disciplinas científicas,
independentes da Filosofia, influenciadas, assim como as demais ciências
humanas, pelo desenvolvimento do positivismo. É neste contexto de reflexão
acerca destas duas disciplinas que se manifestará uma perspectiva psicossocial.

Contemporaneamente a psicologia social é tida como o estudo científico


da maneira como pensamentos, sentimentos e comportamentos de uma ou mais
pessoas são influenciados pelas características de outrem. Assim, os psicólogos
sociais examinam essas questões, procuram entender como as pessoas
influenciam umas às outras e estudam fatores que determinam a interação
humana, a atração interpessoal.

Para Lane e Codó (2010, p. 31) “o psicólogo social enxerga o homem


como um ser que vivem em grupos, sociedades, culturas e organiza sua vida em
relação a outros seres humanos, influencia e é influenciado pela história, pelas
instituições e pelos comportamentos”.

148
Através do trabalho do psicólogo social nos auxilia a entender a necessidade
que sentimos do outro e a importância da comunicação frente ao comportamento
alheio.

Os psicólogos sociais se interessam em saber como as pessoas


influenciam umas às outras no contexto da sociedade, entender as atitudes,
como o preconceito se forma, a conformidade e saber se as pessoas se
comportam diferente quando estão em grupo ou sozinhas.

Outra abordagem que tem sido foco do psicólogo social é a atuação frente
as políticas públicas, colaborando para que as pessoas possam desenvolver e
compreender suas habilidades e utilizá-las para romper com a vulnerabilidade.
Ou seja, instrumentalizar as pessoas para que rompam com a situação de
manipulação e opressão.

A especialidade de Psicologia Social fica instituída com a seguinte


definição: I - Atua fundamentada na compreensão da dimensão subjetiva dos
fenômenos sociais e coletivos, sob diferentes enfoques teóricos e
metodológicos, com o objetivo de problematizar e propor ações no âmbito social.
O psicólogo, nesse campo, desenvolve atividades em diferentes espaços
institucionais e comunitários, no âmbito da Saúde, Educação, trabalho, lazer,
meio ambiente, comunicação social, justiça, segurança e assistência social. Seu
trabalho envolve proposições de políticas e ações relacionadas à comunidade
em geral e aos movimentos sociais de grupos étnico-raciais, religiosos, de
gênero, geracionais, de orientação sexual, de classes sociais e de outros

149
segmentos socioculturais, com vistas à realização de projetos da área social e/ou
definição de políticas públicas. Realiza estudo, pesquisa e supervisão sobre
temas pertinentes à relação do indivíduo com a sociedade, com o intuito de
promover a problematização e a construção de proposições que qualifiquem o
trabalho e a formação no campo da Psicologia Social (Resolução CFP Nº
05/2003, art. 3).

11.0 O PROCESSO DE SOCIALIZAÇÃO

11.1 O indivíduo: ser social

Cada indivíduo, ao nascer, segundo Strey (2002, p. 59), “encontra-se num


sistema social criado através de gerações já existentes e que é assimilado por
meio de inter-relações sociais”. O homem, desde seus primórdios, é considerado
um ser de relações sociais, que incorpora normas, valores vigentes na família,
em seus pares, na sociedade. Assim, a formação da personalidade do ser
humano é decorrente, segundo Savoia (1989, p. 54), “de um processo de
socialização, no qual intervêm fatores inatos e adquiridos”. Entende-se, por
fatores inatos, aquilo que herdamos geneticamente dos nossos familiares, e os
fatores adquiridos provém da natureza social e cultural.

O homem é um animal que depende de interação para receber afeto,


cuidados e até mesmo para se manter vivo. Somos animais sociais, pois o fato
de ouvir, tocar, sentir, ver o outro fazem parte da nossa natureza social. O ser
humano precisa se relacionar com os outros por diversos motivos: por

150
necessidade de se comunicar, de aprender, de ensinar, de dizer que ama o seu
próximo, de exigir melhores condições de vida, bem como de melhorar o seu
ambiente externo, de expressar seus desejos e vontades.

Essas relações que vão se efetivando entre indivíduos e indivíduos,


indivíduos e grupos, grupos e grupos, indivíduo e organização, organização-
organização, surgem por meio de necessidades específicas, identificadas por
cada um, de acordo com seu interesse.

Vivemos em diversos grupos (familiares, de vizinho, de amigos, de


trabalho) nos quais interagimos e crescemos. Os mais diversos grupos sociais
influenciam na vida do indivíduo.

O indivíduo tem, para si, claras as características que o diferencia dos


demais, como seus fatores biológicos, seu corpo físico, seus traços, sua psiquê
que envolve emoções, sentimentos, volições, temperamento. Todavia, o
indivíduo, como objeto de estudo da psicologia social e da sociologia, é
considerado, segundo Ramos (2003, p. 238), da seguinte maneira:

indivíduo dentro dos seus padrões sociais, vive em sociedade,


como membro do grupo, como “pessoa”, como “socius”. A própria
consciência da sua individualidade, ele a adquire como membro do grupo
social, visto que é determinada pelas relações entre o “eu” e os “outros”,
entre o grupo interno e o grupo externo.

151
Então, quando estudamos sobre o indivíduo, percebemos a forma como
ele organiza o seu pensamento, seu comportamento. Assim, iremos concluir que
essa construção e organização ocorrem, a partir do contato que tem com o outro.
Por isso, temos a necessidade de estudar não só o indivíduo enquanto ser social,
mas este influenciado por padrões culturais diante da sociedade em que vive,
pois a cultura fornece regras específicas. Assim, para compreendermos o
indivíduo e a sociedade, precisamos entender a cultura à qual pertencemos.

11.2 Cultura

O indivíduo, enquanto ser particular e social, desenvolve-se em um


contexto multicultural, em que temos regras, padrões, crenças, valores,
identidades muito diferenciadas. Assim, a cultura torna-se um processo de
“intercâmbio” entre indivíduos, grupos e sociedades.

A partir do momento em que faz uso da linguagem, o indivíduo se encontra


em um processo cultural, que, por meio de símbolos, reproduz o contexto cultural

152
que vivencia. Strey (2002) aponta que o indivíduo tanto cria como mantém a sua
cultura presente na sociedade. Cada sociedade humana tem a sua própria
cultura, característica expressa e identificada pelo comportamento do indivíduo.
Segundo Strey (2002, p. 58), “o homem é também um animal, mas um animal
que difere dos outros por ser cultural”. Para ele, a cultura refere-se ao conjunto
de hábitos, regras sociais, intuições, tipos de relacionamento interpessoal de um
determinado grupo, aprendidos no contexto das atividades grupais.

Assim, não podemos considerar a cultura como algo isolado, mas como
um conjunto, integrado de características comportamentais aprendidas. Essas
características são manifestadas pelos sujeitos de uma sociedade e
compartilhadas por todos. Com isso, a cultura refere-se ao modo de vida total de
um grupo humano, compreendendo seus elementos naturais, não naturais e
ideológicos. Segundo Ramos (2003, p. 265), “as culturas penetram o indivíduo
[...] da mesma forma que as instituições sociais determinam estruturas
psicológicas [...] o homem pensa e age dentro do seu ciclo de cultura”.

Partindo desses princípios, devemos considerar o indivíduo como sujeito


ativo no contexto cultural. Ele tem a liberdade de tomar decisões, por meio de
novas interpretações. Ele recebe a informação e constrói, criativa e
coletivamente, um processo cultural voltado à época histórica atual que vivencia.
Ele mesmo constrói suas regras, por meio das atividades coletivas, podendo
alterá-las, da mesma forma que é afetado por elas. Podemos considerar a cultura
153
como uma herança social, que é transmitida por ensinamento a cada nova
geração.

Portanto, devemos conhecer a realidade cultural do indivíduo para


compreender suas práticas, costumes, concepções e as transformações que
ocorrem na sua vida. E é nessa realidade sociocultural que o indivíduo se
socializa. Sua personalidade, suas atitudes, opiniões se formam a partir dessas
relações sóciocultural, em que controla e planeja suas próprias atividades.

Assim, Savoia (1989, p. 55) garante que “o processo de socialização


consiste em uma aprendizagem social, através da qual aprendemos
comportamentos sociais considerados adequados ou não e que motivam os
membros da própria sociedade a nos elogiar ou a nos punir”. Daí a necessidade
de estudarmos os agentes socializados do processo de socialização.

11.3 Agentes socializadores do processo de socialização

Vimos que nós fazemos parte de diversos grupos sociais e que é por meio
desses grupos que o nosso processo de socialização ocorre. Temos, então,
como agentes socializadores, de acordo com Savoia (1989), três grupos: a
família, a escola (agentes básicos) e os meios de comunicação em massa.

O primeiro contato que o ser humano tem, ao nascer, é a família:


primeiramente, com a mãe, por meio dos cuidados físicos e afetivos, e,
paralelamente, com o pai e os irmãos, que transmitem atitudes, crenças e
valores que influenciarão no seu desenvolvimento psicossocial. Num segundo
momento, tem a interferência da escola. Geralmente, nessa fase, o indivíduo já
traz consigo referências de comportamentos, de orientação pessoal básica,
devido ao contato inicial com a família.

Já os meios de comunicação em massa são considerados como agente


socializador, diante das inovações tecnológicas na atualidade histórica, porém
nem sempre eles têm consciência do seu papel no processo de socialização e
na formação da personalidade do indivíduo. Na família e na escola, existe uma
relação didática e, com a TV, a relação é diferente, visto que a comunicação é
direta e impessoal (SAVOIA, 1989).

154
O processo de socialização ocorre durante toda a vida do indivíduo
(SAVOIA, 1989); por isso, esse processo é dividido em etapas:

 socialização primária: ocorre na infância com os agentes socializadores


citados anteriormente, que exercem uma influência significativa na
formação da personalidade social;
 socialização secundária: ocorre na idade adulta. Geralmente, nessa
etapa, o indivíduo já se encontra com sua personalidade relativamente
formada, o que caracteriza certa estabilidade de comportamento. Isso faz
com que a ação dos agentes seja mais superficial, mas abalos estruturais
podem ocorrer, gerando crises pessoais mais ou menos intensas. Nesse
momento, surgem outros grupos que se tornam agentes socializadores,
como grupo do trabalho;
 socialização terciária: ocorre na velhice. Pela própria fase de vida, o
indivíduo pode sofrer crises pessoais, haja vista que o mundo social do
idoso muitas vezes se torna restrito (deixa de pertencer a alguns grupos
sociais) e monótono. Nessa fase, o indivíduo pode sofrer uma
dessocialização, em decorrência das alterações que ocorrem, em relação
a critérios e valores. E, concomitantemente, o indivíduo, nesta fase,
começa um novo processo de aprendizagem social para as possíveis
adaptações a nova fase da vida, o que implica em uma ressocialização.

155
Todo esse processo de socialização que os seres humanos vivenciam está
ligado à cultura do indivíduo, como também a uma estruturação de
comportamentos, à medida que aprendemos e os internalizamos. Essa
estruturação e atribuição de significados ocorrem por meio da interação com os
outros. Isso faz com que criamos expectativas sobre esses comportamentos
diante do grupo social, desenvolvendo papéis sociais, pois o processo de
socialização pode ser visto também como um processo pelo qual cada indivíduo
configura seu conjunto de papéis

11.4 Papéis sociais

156
Ao nascer, já temos alguns papéis prescritos como idade, sexo ou posição
familiar. À medida que adquirimos novas experiências, ampliando nossas
relações, vamos nos transformando, adquirindo outros papéis que são definidos
pela sociedade e cultura (SAVOIA, 1989). Em cada grupo no qual relacionamos,
deparamo-nos com normas que conduzem as relações entre as pessoas,
algumas são mais sutis, outras mais rígidas. São essas normas que caracterizam
essencialmente os papéis sociais e que produzem as relações sociais (LANE,
2006).

Entende-se que os papéis que adquirimos nas nossas experiências e


relações vão designar o modelo de comportamento que caracteriza nosso lugar

157
na sociedade. Esses papéis podem ser objetivos ou subjetivos. Em relação a
isso, Savoia (1989, p. 57) assevera que

Outro aspecto do papel social é que ele pode ser objetivo –


aquilo que os outros esperam de nós, ou subjetivo -, como cada
indivíduo assume os papéis de modo mais ou menos fiel aos
modelos vigentes na sociedade. Quando esses dois aspectos não
coincidem, podem transformar-se em obstáculo na interação social.

Isso significa que a objetividade e a subjetividade se configuram como um


processo dialético de desenvolvimento da configuração social, dinâmico, e está
em constante interação na vida do indivíduo, como ser histórico, capaz de
promover transformações sociais, visto que o desempenho do papel nunca é
solitário.

Porque desempenhamos vários papéis sociais (de filha(o), pai ou mãe,


patrão ou empregado), estes podem se cruzar por meio de uma situação
divergente gerando conflito de papéis. Essas incompatibilidades podem ocorrer
por diferentes motivos, como, por exemplo, o conflito de valores, que Pisani
(1996, p. 140) cita: “um cientista pode perceber que seus valores religiosos não
se coadunam com a experiência de laboratório que precisa desenvolver”. O que
se percebe é que o conflito de papéis pode variar quanto à intensidade, diante
da importância que se dá a cada papel de conflito, o que pode provocar
perturbações na pessoa.

Além disso, dependendo do papel que o indivíduo exerce, ele adquire um


lugar na sociedade que é denominado de status, que, juntamente com os papéis
sociais, determinam sua posição social (PISANI, 1996). Então, papel é o
comportamento, a ação, enquanto o status é o prestígio que se adquire. Savoia
(1989, p. 60) afirma que “o papel é o comportamento que os outros esperam de
nós e o status é o que acreditamos ser”. Nesse sentido, os papéis que
desempenhamos e os status que acreditamos ter, diante da sociedade, explicam
nossa individualidade, nossa identidade social e consciência de-si-mesmo que
adquirimos, a partir das nossas relações sociais. Assunto esse que abordaremos
a seguir.

11.5 Identidade social e consciência de si mesmo

158
Se alguém perguntar a você sobre quem é você, o que responderia? E se
perguntassem sobre a sua identidade, como a definiria?

Procure responder esses questionamentos, antes de dar continuidade a leitura


do capítulo. E aí? Parou para pensar?

Agora pergunto: já nascemos com a nossa identidade definida?

Se procurar responder esses questionamentos, você perceberá que não é tão


simples respondê-los. Existem vários fatores que precisamos discutir e
conhecer. Então, vamos mergulhar nessas páginas que nos ajudarão não
somente a compreender os outros, mas a nós mesmos.

Dar a resposta de “quem sou eu” é fazer uma representação da nossa


identidade. Mas é preciso analisar como se dá esse processo. Muitas vezes,
tendenciamos responder a esse questionamento, falando das nossas
características físicas, sexo, características da personalidade, signo, idade,
profissão etc. Então, para entendermos esse processo de autoconhecimento, a
psicologia construiu o conceito de identidade, que para Sawaia (2006, p. 121)
tem “valor fundamental da modernidade e é tema recorrente nas análises dos
problemas sociais”.

Quando pensamos em conceito de identidade, logo pensamos em


imagens, representações, conceito de si mesmo, como se o indivíduo se
reconhecesse identificando traços, imagens, sentimentos, como parte dele

159
mesmo. Mas esse conceito é produzido a partir das relações que mantemos com
os outros (LANE, 2006).

A partir do momento em que reconheço o outro, reconheço a mim mesmo


como um ser único particular. Essa diferenciação geralmente ocorre com a mãe,
que é o primeiro “outro” com quem temos contato. Nesse momento, por meio
das relações, começamos a construir nossa identidade. E, à medida que
adquirimos novas experiências ampliando nossas relações sociais, vamos nos
transformando, adquirindo novos papéis.

Então a identidade é algo mutável em permanente transformação. É um


processo que se dá desde o nascimento do ser humano até sua morte. Por isso,
podemos dizer que a nossa identidade está em constante mudança. Lane (2006,
p. 22) enfatiza que “apenas quando formos capazes de [...] encontrar razões
históricas da nossa sociedade e do nosso grupo social que explicam por que
agimos hoje da forma como o fazemos é que estaremos desenvolvendo a
consciência de nós mesmos”. Isso nos faz entender que a consciência de si pode
alterar a identidade social, na medida em que interrogamos os papéis que
desempenhamos e suas funções históricas (LANE, 2006). Essa consciência é
reconhecer quem sou eu enquanto indivíduo, enquanto integrante de um grupo
social, a partir das relações do meu ser social. Isso só será possível, a partir do
momento em que tenho o “outro” como referência. Sawaia (2006) afirma que
essa consciência não pode ser consciência “em si”, mas para si e para o outro.

E Myers (2000) reafirma isso, quando diz que o autoconceito que o


indivíduo adquire de si mesmo decorre das experiências sociais vivenciadas, que
influem no papel que ele desempenha nos julgamentos sobre si e sobre outras
pessoas e as diversidades culturais. Nesse sentido, percebemos que a
construção da nossa identidade se da por meio das relações sociais, dos papéis
que desenvolvemos.

160
O indivíduo constrói a sua história, como um ser individualizado e, ao
mesmo tempo, social. Esse processo de transformação pode trazer angústia,
dúvidas o que pode gerar uma crise de identidade, diante da contradição que o
indivíduo vive, entre a necessidade de se padronizar para ser aceito em um
grupo e a necessidade de se destacar como único (SAWAIA, 2006). Essa crise
é geralmente percebida na transição da infância para a adolescência, em que o
indivíduo passa por diversas transformações tanto físicas, como psicológicas e
sociais. Mas isso pode ser superado a partir da tomada de consciência e das
relações que mantém com o outro.

A objetividade e subjetividade são fundamentais para o processo de construção


da nossa identidade. A experiência humana se objetiva na realidade criando
singularidades (hábitos, tradição) e as instituições são subjetivadas, por meio da
introjeção pela socialização.

A psicologia social crítica busca a compreensão da relação individual –


social, por meio dessa interação indivíduo/sociedade, visto que a identidade do
indivíduo se dá por meio dessa relação, considerando o indivíduo com a sua
história particular como um ser de transformações.

A atividade do indivíduo é a sua realização concreta, e a expressão da


sua subjetividade diante da definição papeis exercidos por ele. Ela é subjetiva
(envolve afeto de um eu individual) e objetiva (contato com o mundo exterior).
Nesse processo o indivíduo constrói o seu mundo, da mesma forma que constrói
a si mesmo, sua identidade, suas relações, suas experiências vivenciadas.

161
12.0 PROCESSO DE SOCIALIZAÇÃO, GRUPOS E PAPÉIS SOCIAIS

Para entendermos sobre temas emergentes em Psicologia Social é fundamental


compreendermos o processo de socialização, grupos sociais e os papéis sociais
desenvolvidos na sociedade.

As atitudes do ser humano são importantes, pois são elas que norteiam
nosso comportamento. Há a influência dos motivos, interesse e necessidades
com que nos apresentamos na situação. Este conjunto de aspectos psicológicos
permite-nos entender, atribuir significado e responder ao outro (BOCK,
FURTADO, TEIXEIRA, 1999).

A partir da percepção do meio social e dos outros, o indivíduo vai


organizando as informações, relacionando-as com afetos (positivos ou
negativos) e desenvolvendo uma predisposição para agir (favorável ou
desfavoravelmente) em relação às pessoas e aos objetos presentes no meio
social (BOCK, FURTADO, TEIXEIRA, 1999).

Para a Psicologia Social, nós desenvolvemos atitudes, como crenças,


valores e opiniões, em relação aos objetos do meio social.

A formação do conjunto de nossas crenças, valores e significações dão-


se no processo de socialização, em que o indivíduo torna-se membro de um
determinado conjunto social, aprendendo seus códigos, suas normas e regras
básicas de relacionamento, apropriando-se do conjunto de conhecimentos já

162
sistematizados e acumulados por um determinado conjunto social (BOCK,
FURTADO, TEIXEIRA, 1999).

Existem as organizações ou elementos que servem de intermediários


entre o conjunto social mais amplo e o indivíduo. Essa intermediação é feita
pelos grupos sociais.

Assim, quando se dá esse nosso encontro, poderíamos dizer que estão


se encontrando representantes de diferentes grupos sociais: você representando
sua família, seus grupos de amigos, seu grupo racial, seu grupo religioso entre
outros. E por outro lado, nós representando nossos grupos de pertencimentos
ou de referência, que são aqueles a que pertencemos ou em que nos
referenciamos para saber como nos comportar, o que dizer como perceber o
outro, do que gostar ou não gostar (BOCK, FURTADO, TEIXEIRA, 1999).

Os grupos sociais são pequenas organizações de indivíduos que,


possuindo objetivos comuns, desenvolvem ações na direção desses objetivos.
Para garantir essa organização, possuem normas; formas de pressionar seus
elementos para que se conformem as normas; um funcionamento determinado,
com tarefas e funções distribuídas entre seus elementos; formas de cooperação
e de competição; seu líder e apresentam aspectos que atraem os indivíduos,
impedindo que abandonem o grupo (BOCK, FURTADO, TEIXEIRA, 1999).

Em relação aos papéis sociais, na sociedade há um conjunto de posições


sociais, como a médica, o professor, o aluno, o filho, a mãe, o pai, entre
outros(as), todas as expectativas de comportamento estabelecidas pelo conjunto
social para os ocupantes das diferentes posições sociais determinam o chamado
papel prescrito. Assim, sabemos o que esperar de alguém que ocupa uma
determinada posição (BOCK, FURTADO, TEIXEIRA, 1999).

Todos os comportamentos que manifestamos no nosso encontro são


chamados, na Psicologia social, de papel desempenhado. Tais comportamentos,
por sua vez, podem ou não estar de acordo com a prescrição social, isto é, as
normas prescritas socialmente para o desempenho de um determinado papel
(BOCK, FURTADO, TEIXEIRA, 1999).

Os papéis sociais permitem-nos compreender a situação social, pois são


referências para a nossa percepção do outro, ao mesmo tempo que são
referências para o nosso próprio comportamento. Se no encontro social nos

163
apresentamos como ocupantes da posição de professores ou autores de um
livro, sabemos como nos comportar, porque aprendemos no decorrer de nossa
socialização o que está prescrito para os ocupantes dessas posições. Se formos
convidados a proferir uma palestra na sua escola, não iremos vestidos como se
estivéssemos indo para o clube (BOCK, FURTADO, TEIXEIRA, 1999).

Os diferentes papéis sociais e a nossa enorme plasticidade como seres


humanos permitem que nos adaptemos às diferentes situações sociais e que
sejamos capazes de nos comportar diferentemente em cada uma delas.
Aprender os nossos papéis sociais é, na realidade, aprender o conjunto de rituais
que nossa sociedade criou (BOCK, FURTADO, TEIXEIRA, 1999).

13.0 PSICOLOGIA COMUNITÁRIA

A Psicologia Comunitária surge em meados da década de 60, no decurso


de um período de grandes transformações, não somente na área da Saúde
Mental, mas também na sociedade em geral. Colocaram-se novas questões
relacionadas com os problemas sociais, acrescidas de um ritmo de mudança
acelerado e abrangente o que levou a que, metodologias até aí utilizadas para a
compreensão dos fenómenos sociais, se tornassem inadequadas.

Um momento decisivo para a abordagem comunitária, foram as


propostas de mudança apresentadas pelo Presidente Kennedy ao Congresso
Americano em 1963, onde defendeu a reintegração dos doentes mentais na
comunidade e apelou a uma perspectiva preventiva do sofrimento humano e à
promoção de uma visão positiva da Saúde Mental. Este conjunto de propostas
deu origem à Lei dos Centros de Saúde Mental Comunitários, que
desempenharam um papel decisivo na criação de um novo paradigma de
intervenção na comunidade.

A prestação de cuidados numa base comunitária, foi inspirada


conceptualmente a partir de métodos e modelos desenvolvidos com soldados
durante a II Guerra Mundial, por exemplo, a ideia de que a ajuda deveria
localizar-se estrategicamente no local onde as problemáticas ocorrem e
proporcionada de forma tão breve, quanto possível. O sucesso alcançado na
prestação de suporte estruturado durante situações de crise, representou um

164
desafio claro à ineficácia anteriormente sentida em relação às crises
desencadeadas pelas doenças mentais.

A Psicologia Social Comunitária utiliza-se do enquadre teórico da


Psicologia Social, privilegiando o trabalho com os grupos, colaborando para a
formação da consciência crítica e para a construção de uma identidade social e
individual, orientada por preceitos eticamente humanos (Freitas, 1996). Assim,
visa desenvolver trabalhos capazes de contribuir para promover relações de
cooperação e solidariedade e para a construção de sujeitos mais críticos e
reflexivos, problematizadores e transformadores da realidade, utilizando-se de
métodos de inserção e atuação comunitária (Góis, 2005 & Monteiro, 2004).

Tradicionalmente, a utilização de teorias e métodos da Psicologia


Comunitária foi aplicada às populações de baixa renda. Já nas décadas de 1980
e 1990, com a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), essa perspectiva
se modifica e os psicólogos passam a trabalhar também em outros dispositivos
públicos.

A Psicologia Social Comunitária enfatiza, em termos teóricos, a


problematização da relação entre produção teórica e a aplicação do
conhecimento; em termos de metodologia, utiliza-se, sobretudo, a metodologia
da Pesquisa Participante; e, em termos de valores, a ética da solidariedade, os
direitos humanos fundamentais e a busca da melhoria da qualidade de vida da
população focalizada (Campos, 2002).

165
Desse modo, a Psicologia Social Comunitária visa promover a
consciência e minimizar a alienação, procura promover a participação reflexiva
dos grupos com os quais trabalha na definição das prioridades de atuação,
planejamento, execução e avaliação de suas atividades. Para Campos (2002), a
produção teórica e prática da Psicologia Social Comunitária é marcada pela
busca do desenvolvimento da consciência crítica, da ética, da solidariedade e de
práticas cooperativas ou mesmo auto gestionárias, a partir da análise dos
problemas cotidianos da comunidade.

A Psicologia Social Comunitária tem envolvido trabalhos interdisciplinares


de modo a coletivizar e facilitar o entendimento entre a comunidade e seus
diversos aliados. Propõe trabalhar com a comunidade, incorporando seus
membros em todas as fases do trabalho. Contudo, um dos grandes desafios que
encontra atualmente é encontrar, no trabalho conjunto com esses atores sociais,
alternativas originais de desenvolvimento que visem à sustentabilidade humana
e social. O caminho para a construção desse desenvolvimento deve ser pautado
na realidade local e estar relacionado ao desenvolvimento pessoal e coletivo dos
moradores da comunidade.

A Psicologia Social Comunitária emerge de uma psicologia preocupada


com a cidadania e tem se constituído ao longo das últimas décadas a partir de
um esforço de intervenção com os diversos grupos sociais. Essa interação tem

166
se dado, de maneira geral, a partir da ênfase na autonomia e no protagonismo
das populações com as quais se tem trabalhado por maio da ampliação da
criticidade desses sujeitos em relação ao contexto e aos problemas que
apresentam, em busca da construção de um conhecimento social e comunitário.

Portanto, ao destacar a importância do papel ativo dos sujeitos na busca


de soluções para os problemas relacionados à sua realidade, parece pertinente
destacar a importância da Psicologia Social Comunitária diante a busca por
alternativas de desenvolvimento mais sustentáveis. Assim, o poder criativo e
inventivo do homem passa a ser colocado como questão chave diante da
sustentabilidade.

O psicólogo atua neste sentido como um analista-facilitador, que como um


profissional que toma as iniciativas de solucionar os problemas da comunidade.
Segundo Nisbet (1974), “comunidade abrange todas as formas de
relacionamento caracterizado por um grau de intimidade pessoal, profundeza
emocional, engajamento moral e continuado no tempo”.
Ela encontra seu fundamento no homem visto em sua totalidade e não
neste ou naquele papel que possa desempenhar na ordem social. Sua força
psicológica deriva de uma motivação profunda e realiza-se na fusão das
vontades individuais, o que seria impossível numa união que se fundasse na
mera convivência ou em elementos de racionalidade.
A comunidade é a fusão do sentimento e do pensamento, da tradição e
da ligação intencional, da participação e da volição. E Sawaia complementa: “O
elemento que lhe dá vida e movimento é a dialética da individualidade e da
coletividade.
A perspectiva da psicologia comunitária enfatiza que, em termos teóricos,
o conhecimento se produza na interação entre o profissional e os sujeitos da
investigação, e em termos de metodologia, utiliza-se sobretudo a pesquisa-
participante, a pesquisa-ação e a análise institucional.
Segundo William César Castilho, “a metodologia do trabalho comunitário
é válida ao passo que promove uma construção de conhecimento por parte de
intelectuais organicamente comprometidos, na qual a proposta de trabalho
comunitário pretende promover aos indivíduos procedimentos de autogestão,
desenvolvendo o sentido de cidadania neste processo. Este planejamento
desempenha papel fundamental para a conscientização que ajuda grupos e

167
indivíduos a identificarem as características históricas e sociais de seus
problemas e a criarem estratégias para a solução coletiva.”
Desta forma este, tipo de trabalho vai além do saber acadêmico e
científico, o saber popular ganha força e torna peça fundamental para a
elaboração de uma teoria própria das experiências cotidianas se firmam neste
âmbito.
A pesquisa-ação, segundo Nasciutti, “se define essencialmente pelo elo
entre o saber e o fazer. Ela parte de uma perspectiva epistemológica
interdisciplinar e que inclui assim diferentes saberes acadêmicos, além da
relação entre saber científico e saber popular (…) implicando como
consequência a reelaboração coletiva de aspirações e valores psicossociais, a
participação comunitária e a ação organizada.”

14.0 REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DA FAMÍLIA E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

"Família é a base de tudo"(1), afirmação taxativa como título de obra, fruto


da emissão de conversas cotidianas dada como respostas frequentes, de
sujeitos variados, a questões colocadas por pesquisadores(as). Traz a ideia de
família que parece circular na sociedade como "instituição afetiva" e harmoniosa;
um lugar de proteção.

A família é abordada como refúgio, num mundo que não tem coração (2).
É a base social, enfim, uma instituição que tem como características ser abstrata,

168
higiênica, nuclear e privada (3). Pode-se afirmar que, na maioria das sociedades,
essa parece ser a família pensada e idealizada.

Ao fazer referência à família, entretanto, dentre as primeiras questões que


se pode colocar estão: que família é essa? Em que época essa família está
situada? Que condições socioeconômicas possui? A que cultura pertence?

No entanto, cabe, aqui, ressaltar que a própria ideia de família é uma


construção social e o modelo que hoje parece natural não é o único existente,
tampouco o mais "correto".

Há o risco que se corre ao considerar os modelos de relações sociais que


se conhece como modelos naturais, pois a cultura "se acha, para os que nela
nasceram, na ordem das coisas, e a ordem das coisas é concebida como se
impondo por si mesmo por uma espécie de força imanente" (4).

Em termos de Brasil (5), seria, portanto, mais apropriado desnaturalizar a


ideia de família e falar de "famílias, no plural, tendo em vista a multiplicidade
étnico-cultural que embasa a composição demográfica brasileira".

Sendo assim, a ideia hegemônica de família ainda parece vinculada


àquela de família nuclear burguesa. Do ponto de vista acadêmico, "não existe,
histórica e antropologicamente falando, um modelo padrão de organização
familiar; não existe a família regular"(5)*. Do ponto de vista das representações
sociais, que circulam no imaginário social, parece existir apenas esse modelo
"ideal" de família, mesmo que seja um padrão a ser atingido a qualquer preço.

169
Se a família é pensada como núcleo de convivência harmoniosa entre pai,
mãe e filhos, espaço de afeto e proteção como, no pensamento social, se
articulam tais representações de família com a ideia de violência doméstica?

Presente no cotidiano, difundida pela mídia, assunto nas conversas


informais, fonte de preocupação de adultos, jovens e crianças, objeto cultural
multifacetado por excelência, a violência tem desafiado o esforço de
pesquisadores(as), que ensejam enquadrá-la em um conceito fechado e
acabado.

Seja em função dos responsáveis pelos atos de violência, quais sejam o


sujeito individual, a instituição ou o Estado independente das formas como esse
ato é executado, podendo ser pelas próprias mãos ou a mando de outros, seja
pelas formas com que se manifesta, dentre essas a humilhação moral e o
homicídio, ou pelos sentidos que assume nos diferentes grupos sociais. Dessa
forma, a conceituação da violência tem se modificado ao longo do tempo e
assumido diferentes significados nos diversos espaços.

No tocante à violência contra a mulher, passa por um processo de


violência doméstica e traz consigo essa vivência quando é atendida no serviço
de saúde que, por sua vez, também a violenta. Em lugar de a violência ser
considerada como questão de saúde, ela não é contemplada como tal. Dessa
forma, aumenta a exposição da mulher, pois, tal fenômeno já está cristalizado,
não sendo, na maioria das vezes, percebido pela própria mulher e pelos
profissionais de saúde (6).

No quadro da Psicologia Social e, em especial, na perspectiva da Teoria


das Representações Sociais - TRS, dizer que o fenômeno da violência é cultural

170
corresponde a concebê-la como um objeto social que suscita representações
diversas, que intervêm na construção de uma dada realidade social.

Dentro desse quadro geral, em que se toma a atividade simbólica e


representacional como constitutiva da prática social, faz-se necessário
reconhecer o papel fundamental que exercem as representações sobre as
práticas sociais, sejam essas violentas ou não. Nesse sentido, parece bastante
pertinente estudar as representações sociais da violência como sistema
complexo, no qual um conjunto de representações e práticas entra em interação.

O conhecimento das representações sociais sobre violência doméstica


oferecerá subsídios para a compreensão desse fenômeno, que tanto afeta a
saúde da população, e possibilitará aos profissionais de saúde pensar novas
formas de cuidado às pessoas em situações crônicas de violência e/ou de risco.

Destarte, o acima ressaltado, um estudo dessa natureza divulga o saber


científico sobre o tema violência e família, apresentado sob a forma de
dissertação e tese, não só na área da enfermagem como também na área de
serviço social, demonstrando que a complexidade do tema necessita de
investigações sob os mais variados olhares.

14.1 O conceito de família enquanto sistema

A família, enquanto um grupo de pessoas, tem se constituído ao longo


dos tempos como uma referência vital para o desenvolvimento humano no qual
uma criança pode ser nutrida, cuidada e ensinada. Enquanto configuração e

171
organização, esse grupo, denominado de família, foi sofrendo o impacto das
mudanças da sociedade a partir do conjunto de valores e regras sociais
predominantes que influenciavam diretamente no entendimento do papel dos
indivíduos. Assim, ao longo do processo histórico humano, encontramos uma
diversidade de formas, organizações, funções e papéis atribuídos à família, que
foram se ancorando, seja numa perspectiva ideológico-religiosa, política ou
econômica ou jurídica, seja sociológica, antropológica e psicológica. Hoje,
observamos e convivemos com uma diversidade maior de configurações
familiares que revelam explicitamente como esse grupo humano foi se
moldando, principalmente, ao conjunto de valores éticos, morais e científicos que
predominam na sociedade atual. Nesse processo histórico de mudanças e
acomodações do grupo familiar, é importante destacar que o entendimento da
família como uma matriz humana de identidade foi se sustentando e se
afirmando com maior vigor a partir Século XVI. Atualmente, a família é
reconhecida por estudos científicos dos mais variados campos como uma das,
senão a mais, importante rede social significativa de referência para o
desenvolvimento humano.

No marco dessas colocações, que apontam para as características da


família quanto às mudanças, permanências e adaptações e dos estudos sobre
família na perspectiva do pensamento sistêmico, que fundamentam o
desenvolvimento da terapia familiar a partir da década de 1950, é que passamos
a discorrer sobre a família enquanto um sistema singular, dinâmico e em
constante desenvolvimento.

172
Relacionado a isto, a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2002) aponta
que o conceito de família não pode ser limitado a laços de sangue, casamento,
parceria sexual ou adoção. Qualquer grupo cujas ligações sejam baseadas na
confiança, suporte mútuo e um destino comum, deve ser encarado como família.
Nessa linha de pensamento, Minuchin (1990), terapeuta familiar reconhecido
internacionalmente e um estudioso da família, afirma que a organização, a
estrutura e os padrões de interação de uma família são responsáveis por
selecionar e qualificar as experiências de seus membros. Nesse sentido, a
família tem dois objetivos principais: um interno, que se refere à função de
proteger seus membros e outro externo, ao transmitir a seus descendentes a
cultura na qual estão inseridos. É importante destacar que as funções de
“proteção” e “transmissão” se constituem em possibilidades de serem
desempenhadas pelos diferentes integrantes da família, à luz de sua história
familiar.

Toda família , segundo Minuchin (1990, p. 57), tem “um conjunto invisível
de exigências funcionais que organiza a interação dos seus membros,
considerando-a igualmente como um sistema que opera através de padrões
relacionais”. Por sua vez, o autor nos chama a atenção apontando que no interior
da família os indivíduos podem construir subsistemas, havendo diferentes níveis
de poder, a exemplo da ideologia presente no patriarcado, em que prevalece o
domínio físico e decisório do homem nas relações familiares, sociais e
comunitárias, afetando e influenciando decisivamente os demais integrantes da
família, em termos de desenvolvimento psicossocial. Destacamos que a família
enquanto sistema é considerada uma unidade social que tem como tarefa

173
principal ações de desenvolvimento de seus membros, tarefa esta que, enquanto
forma e implementação, podem variar de acordo com os parâmetros culturais
onde ela está inserida, mas sempre ela responderá a uma organização singular
de funcionamento que vai se gestando ao longo do tempo.

Nas obras de Maurício Andolfi, o autor define família como “um sistema
de interação que supera e articula dentro dela os vários componentes
individuais”. Ele nos traz um aporte importante quando defende que a família é
um sistema entre sistemas e que é essencial a exploração das relações
interpessoais e das normas que regulam a vida dos grupos significativos a que
o indivíduo pertence, para uma compreensão do comportamento dos membros
e para a formulação de intervenções eficazes.

Existem diferentes configurações familiares, podendo ser:

• famílias nucleares: composta por pai, mãe e filhos;

• famílias extensas: com três ou quatro gerações;

• famílias adotivas: sem relações consanguíneas entre pais e filhos;

• famílias monoparentais: chefiadas somente pelo pai ou pela mãe;

• famílias homoafetivas: composta por casais homossexuais, incluindo ou


não crianças;

• famílias reconstituídas (ou recasadas) após o divórcio (Kaslow, 2001


apud SZYMANSKY, 2002).

Tendo como referências os conceitos acima apresentados sobre a


compreensão de família enquanto sistema, é interessante aqui resgatar o
conceito de sistema, proposto pelo Biólogo Ludwig Bertalanfly, quando diz que:
“um sistema é um todo integrado cujas propriedades não podem ser reduzidas
às propriedades das partes, e as propriedades sistêmicas são destruídas quando
o sistema é dissecado” (VASCONCELLOS, 2009, p. 200).

Assim, quando pensamos ou refletimos sobre a família como sistema,


todo o grupo familiar deve ser considerado, pois eles constituem uma trama
relacional em constante interação se afetando mutuamente. Sob esse prisma,
enquanto princípio de escuta da família, é que deve ser realizada a intervenção.

174
14.2 A estrutura familiar dinâmica

Neste item, convidamos você para adentrar na família, como um sistema


relacional, composta por diferentes subsistemas: conjugal, parental e fraternal,
em que cada um de seus membros desempenha diferentes funções e níveis de
poder e é capaz de aprender novas habilidades. Cada membro da família pode
pertencer a diferentes subsistemas e em cada um deles aprende novas
habilidades e desempenha diferentes funções, de acordo com o papel
estabelecido em cada um deles (CERVENY; BERTHOUD; BERGAMI; LUISI,
1997; MINUCHIN, 1990).

Vejamos, a seguir, os diferentes subsistemas e suas principais


características:

• Subsistema conjugal: geralmente é formado por duas pessoas que têm por
propósito formar uma família. Cada cônjuge possui tarefas e funções que são
complementares e recíprocas, vitais para o funcionamento da família. Deve ser
desenvolvida uma relação de complementaridade e apoio. O casal pode ajudar
tanto a desenvolver aspectos positivos quanto negativos em seu parceiro.

• Subsistema parental: Este subsistema se configura a partir do nascimento ou


adoção do primeiro filho. Este é o momento em que o subsistema conjugal
deverá desempenhar tarefas referentes à socialização da criança, sem perder
as características de apoio que devem estar presentes no subsistema conjugal.
Conforme a criança cresce, passa a ter novas exigências em torno do seu
desenvolvimento que faz com que o subsistema parental se adapte e mude para
atender as necessidades dos filhos. Assim, quando a criança é pequena as
funções principais são a de nutrição e afeto. Na medida em que cresce, os pais
têm a função de controle e orientação. Tanto na infância como na adolescência,
as regras impostas pelos pais nem sempre são aceitas pelos filhos, até porque
estes últimos mostram suas necessidades em diferentes graus de nitidez e
fazem exigências quanto ao comportamento dos pais. Os pais, fazendo uso de
sua autoridade, devem guiar, nutrir e controlar de acordo com as necessidades
dos filhos.

• Subsistema fraternal: Este subsistema passa a existir quando há uma


irmandade, ou seja, caracteriza-se pelo nascimento ou adoção de um ou mais

175
irmãos. Este subsistema permite que as crianças socializem e aprendam umas
com as outras. As crianças aprendem como fazer amigos, ter aliados, negociar,
cooperar e competir. Quando as crianças passam a ter contato com iguais
pertencentes às relações extrafamiliares, elas levam o novo conhecimento, as
novas aprendizagens para o seu subsistema fraternal. Por outro lado, se a
família estabelece barreiras com o mundo extrafamiliar, os filhos podem ter
dificuldades de se inserir em outros sistemas sociais.

Consideramos que compreender a estrutura de uma família


necessariamente implica em conhecer sua dinâmica, pois ambas são faces da
mesma moeda, na qual uma não pode ser compreendida sem a outra. Quando
se menciona a estrutura está se referindo a certa organização que permanece
no tempo, dadas às posições dos integrantes na família, bem como os papéis
que eles desempenham nos diferentes subsistemas. Associado a isso, no
processo de desenvolvimento do ciclo vital da família essas posições e esses
papéis, que fazem parte da organização, são desafiados e são colocados à prova
no jogo interacional da família, e a partir deste jogo é que há de se constituir a
dinâmica familiar.

Cumpre destacarmos dois aspectos importantes da dinâmica familiar,


principalmente quando falamos de interações ao longo do tempo. Explicitamente
aqui, nos referimos às histórias dos vínculos afetivos construídos ao longo da
história familiar e que se expressam através da forma como se dá a comunicação
familiar. A coesão do sistema familiar depende da comunicação que nele ocorre,
uma vez que proporciona o ajustamento das diferentes partes que o constitui, a
adaptação do sistema ao meio em que a família está inserida, sendo graças à
comunicação e à informação que os sistemas delimitam as suas fronteiras
(identidade) face aos outros sistemas (ANDOLFI, ÂNGELO; MENGHI; NICOLO-
CORIGLIANO, 1987).

A título de conclusão deste ponto, gostaríamos de questionar o uso da


palavra estrutura, pois este vocábulo faz referência a um processo rígido. No
entanto, a estrutura familiar nada mais é do que aquilo que permanece ao longo
do tempo, sustentado por regras, rituais, valores, crenças. Por sua vez, a história
dos vínculos afetivos construídos e a forma de comunicação familiar estão
presentes na dinâmica da família. Assim, aludir à estrutura e à dinâmica familiar

176
significa referir-se ao mesmo fenômeno, que é a família em constante
movimento. Uma não pode ser pensada sem a outra.

14.3 Os diferentes tipos de fronteiras familiares

Neste item, gostaríamos de chamar a atenção para uma conceituação


interessante, utilizada na terapia familiar, que é o conceito de fronteira do sistema
ou dos subsistemas familiares.

Então, podemos afirmar que as famílias estão rodeadas por fronteiras, ou


seja, por limites que, à semelhança de membranas semipermeáveis, permitem
a passagem seletiva da informação, tanto entre os diversos subsistemas
familiares, como entre a família e o meio sociocultural em que está inserida.
Nesse sentido, considerar a presença das fronteiras permite estabelecer os
limites e as trocas entre seus membros, gerando condições para a manutenção
dos relacionamentos, assim como para que seus membros adquiram novas
competências, tanto na relação com os outros subsistemas, como com pessoas
externas à família (MINUCHIN, 1990). De acordo com o autor supramencionado,
as fronteiras de um sistema ou subsistema podem ser:

• Nítidas: quando os limites são bem definidos e é permitido contato entre os


outros subsistemas e pessoas externas à família.

• Difusas: quando não há limites entre os subsistemas. Diante de circunstâncias


estressantes, o sistema familiar pode se tornar sobrecarregado e precisar
adquirir recursos para poder mudar ou se adaptar a uma determinada situação.

• Rígidas: quando há limites excessivos e os membros da família possuem pouco


ou nenhum contato com os outros subsistemas.

Na Figura 1, é possível observar os traçados correspondentes a cada tipo


de fronteira, os quais são úteis quando descrevemos ou apresentamos uma

177
demanda de família para equipe, com uma linguagem comum para todos
poderem entender melhor o funcionamento das famílias.

Tendo como referência o cotidiano das famílias, em termos de exemplo,


convidamos você a pensar no subsistema conjugal, o qual deve conseguir
construir uma fronteira (em termos de funcionamento) que o proteja da
interferência e necessidades de outros sistemas ou subsistema, sendo que o
casal deve ter seu espaço próprio para acolher um ao outro nas suas
necessidades emocionais de adultos e de apoio mútuo. Quando a fronteira em
torno do casal é difusa, outros subsistemas, tais como filhos ou parentes afins,
podem facilmente interferir no funcionamento do sistema conjugal, gerando
muita tensão. Numa posição extrema, se o sistema conjugal tem uma fronteira
rígida, ou seja, se não permite a entrada de informação ou trocas com os demais
subsistemas, isto leva ao seu isolamento e, como consequência, ao aumento da
tensão familiar (MINUCHIN, 1990).

Na prática profissional de acolhimento familiar é possível observar como


as crianças muitas vezes constituem-se numa espécie de campo de batalha dos
pais, de maneira a suprir suas próprias demandas emocionais em termos da
necessidade de atenção que eles, como casal, não conseguem desenvolver.
Este é um exemplo de fronteiras difusas que podem causar paralisia nos
processos de desenvolvimento psicossocial dos envolvidos e por consequência
sofrimento psíquico.

Assim, diante do que foi apresentado, convidamos você a pensar nas


famílias atendidas em sua prática e observar, a partir da forma como seus
integrantes se comunicam e se comportam, os tipos fronteiras. Veja que, a partir
do reconhecimento das fronteiras, torna-se possível pensar em estratégias de
ajuda, caso seja necessário.

178
Um exemplo no cotidiano da prática é quando, numa entrevista com a
família, observam-se filhos desempenhando as funções do sistema parental, ou
seja, quando o poder de decisão dos filhos ultrapassa as decisões dos pais. Este
seria um exemplo de “fronteiras difusas” entre o sistema parental (pai e mãe) e
fraternal (filhos). A estratégia de intervenção seria evidenciar essa inversão das
funções, convidando os pais a compreender a importância das funções parentais
tanto para o desenvolvimento da família bem como de seus integrantes.

14.4 A família e as mudanças ao longo do ciclo vital

Nesta seção, apresentamos como a família evolui ao longo do tempo,


evidenciando suas transformações, que ultrapassam diferentes etapas, tendo
como funções primordiais o desenvolvimento, proteção e socialização dos seus
membros. O caminho traduz-se no ciclo vital da família, em que são
consideradas as tarefas de cada elemento, a presença de crianças e as suas
idades.

A definição de ciclo vital familiar é entendida como: “(...) o conjunto de


etapas ou fases definidas sob alguns critérios (idade dos pais, dos filhos, tempo
de união de um casal entre outros) pelos quais as famílias passam, desde o
início de sua constituição em uma geração até a morte do ou dos indivíduos que
a iniciaram” (CERVENY et al., 1997, p. 21).

A partir do pressuposto de que é importante estudar a família em seu


contexto sociocultural, Cerveny et al. (1997) elaboraram a classificação das
fases do ciclo com base nas famílias brasileiras. Essa pesquisa foi realizada no
estado de São Paulo, entre 1996 e 1997 e resultou na seguinte caracterização:

• Família na Fase de Aquisição: Envolve o nascimento da família, união


do casal e fases iniciais da família. O termo aquisição é utilizado pelas autoras,
por ser essa uma fase em que há o predomínio do adquirir, tanto em aspectos
materiais como emocionais.

• Família na Fase Adolescente: Engloba o período em que os filhos entram


na fase da adolescência, havendo questionamentos de crenças, regras e
valores. Acarreta reorganização da família em termos de relacionamentos e
alterações de papéis.

179
• Família na Fase Madura: É a fase em que os filhos estão na idade adulta,
se tornando independentes dos pais, muitas vezes saindo de casa, não
requerendo mais tanto o cuidado. Nessa fase, ainda há necessidade de um
rearranjo no casal, além dos pais terem que enfrentar a morte de seus
progenitores, o que leva a um novo período de renegociação de regras de
funcionamento.

• Família na Fase Última: Fase caracterizada pelo envelhecimento dos


pais e por transformações na estrutura familiar. É a fase em que o casal está
aposentado e está mais suscetível a doenças

A teoria do ciclo vital familiar descreve o processo de desenvolvimento do


indivíduo integrado com o da família, sendo interessante apontar que nesse ciclo
convergem três contextos (contexto do ciclo vital familiar, contexto
intergeracional da família e contexto sociocultural), em que a pessoa cresce e
acompanha o movimento concomitante à sua família (ANDOLFI et al., 1987). Em
continuação, reunimos, no Quadro 1, todas as funções da família nas diferentes
fases. Os dados nele contidos são parâmetros importantes para visibilizar as
tarefas principais na evolução das famílias, assim como o significado de quando
se sobrepõem nas diferentes fases do ciclo vital.

No referido Quadro, é importante destacar, também, a inclusão das fases


de divórcio e recasamento, as quais têm se tornado uma presença regular no
ciclo vital da família na contemporaneidade. Indo ao encontro disso, dados do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2011) apontam para um
aumento significativo no índice de separação de casais, o qual chega atingir
45,6% dos casamentos oficiais, quando comparado aos números de outros
censos.

180
Cabe mencionar, que o modelo de compreensão da família em fases, não
é linear. Embora ocorra na dimensão linear do tempo, deve-se sempre visualizar
a relação de três ou mais gerações convivendo, passando pelos momentos de
transição entre uma fase e outra do ciclo da vida, já que, inevitavelmente, um
evento em uma geração afeta todas as outras.

De maneira complementar, as pesquisadoras Carter e McGoldrick (1995),


apresentam em seu livro “As mudanças no ciclo de vida familiar – Uma estrutura
181
para a terapia familiar”, uma figura que consideramos didática para visualizar a
evolução da família ao longo do tempo, apresentando dois aspectos importantes
que o acompanham: os estressores verticais e os estressores horizontais,
conforme mostra a Figura 2.

Para finalizar este ponto, destacamos o que as autoras Carter e


McGoldrick (1995) denominam de transições ao longo do ciclo da vida e que
182
entendemos que este conhecimento poderá lhe auxiliar em sua prática. A
passagem de uma fase para outra, no ciclo vital da família, é denominada de
transição ecológica. Assim, podemos ter:

• Transições Normativas: que são os períodos de mudanças de papel ou


de ambiente esperadas dentro do ciclo de vida da família, de acordo com a
cultura ou subcultura;

• Transições Não-normativas: transições não esperadas, ou as esperadas


que ocorrem fora do tempo previsto em uma determinada cultura ou subcultura.

Veja no Quadro 2 uma relação das principais transições ecológicas


observadas nas famílias brasileiras. Embora tenha transições que são
esperadas, sua acomodação pode gerar diferentes níveis de estresse em que,
dependendo da história da família, podem tanto auxiliar em seu
desenvolvimento, como desestabilizar totalmente uma estrutura familiar.

15.0 VIOLÊNCIA FAMILIAR: CONCEITUAÇÃO E CARACTERÍSTICAS DE SUA


SUSTENTAÇÃO

Segundo Fuster (2002) a família humana é o grupo mais violento dos


grupos de animais que habitam na terra, mesmo com a nossa capacidade de
raciocínio e discriminação das situações em que estamos envolvidos.
Acreditamos que essa ideia nos defronta com o desafio de compreender as
interações que sustentam a violência no contexto familiar.

Em termos de conceituação, cumpre destacar que utilizaremos a


denominação de violência familiar, a qual é o foco deste módulo. Assim,

183
seguindo as diretrizes da Organização Mundial da Saúde (2002) relacionadas ao
conceito, também presente nas diretrizes do Ministério da Saúde (2002),
entendemos por violência familiar aquela que se caracteriza por “ações ou
omissões que prejudiquem o bem-estar, a integridade física, psicológica ou a
liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento de outro membro da família. Pode
ser cometida dentro ou fora de casa por algum membro da família, incluindo
pessoas que passam a assumir função parental, ainda que sem laços de
consanguinidade, e em relação de poder à outra”.

Mas, por que acontece uma ação violenta no contexto familiar? Que
condições têm que existir para ela emergir e se sustentar? Ancorados nos
aportes da Terapeuta Familiar argentina, Maria Cristina Ravazzola, que trabalha
o tema da violência familiar, apresentaremos, de forma didática um conjunto de
condições necessárias que geralmente ocorrem e que estão estreitamente
relacionadas entre si.

• Falta de autonomia dos integrantes familiares, excessiva dependência


de um com os outros ou impedimento da aliança com outros integrantes, seja
com pessoas da família ou externos a ela. As pesquisas evidenciam que é
comum o sistema familiar em situação de violência apresentar ruptura com redes
sociais significativas, tais como amigos e vizinhos. (MORÉ; SANTOS;
KRENKEL, 2014).

• A existência de um padrão de interação entre o autor da violência e a


pessoa em situação de violência, em que o primeiro é o único responsável da
relação, que a decide e define o que acontece. Segundo Ravazzola (2005, p.
42), existe como consequência desse padrão de interação, “a suposição de
desigualdade hierárquica fixa, que faz que integrantes da família deleguem a
decisão das práticas adequadas naquele que reconhecem como autoridade.”

• A existência de uma intensidade constante desse padrão de interação


no contexto familiar sustenta a crença de que o abuso ou ação violenta é legítimo
ou deve permanecer silenciado, o que contribui para a impunidade do autor da
violência.

De certa forma, o conjunto destas condições pode explicar por que as


pessoas em situação de violência não acionam recursos eficazes de controle
social, visto que a violência passa a ser considerada natural, na presença de

184
relações afetivas familiares. Em continuação, no Quadro 3, destacamos a
proposta de Ravazzola (2005) em que é possível visualizar variáveis que podem
auxiliar no melhor entendimento de uma situação de violência.

Nesse sentido, podemos verificar a utilidade do Quadro 3 e que, de certa


maneira, gera otimismo, no sentido de que é possível interromper circuitos
estabelecidos pela violência, na medida em que se tem conhecimento sobre
eles.

15.1 Os tipos de violência com crianças e idosos

185
A seguir, apresentamos os conceitos e as repercussões da violência
familiar para famílias com filhos pequenos, mulheres na relação conjugal e para
os idosos. Esses integrantes familiares e fases do ciclo vital específicas foram
escolhidos por considerarmos os mais vulneráveis dentro do sistema familiar,
sem, no entanto, desconfirmar ou minimizar quaisquer outras pessoas e
configurações desse sistema, especialmente o papel dos homens adultos.

Ao apresentarmos cada um separadamente também não há a intenção


de fragmentar um fenômeno complexo, mas de mostrar as singularidades
presentes no entorno de cada uma das fases.

186
Ainda sobre as repercussões, destacam-se o uso e abuso de álcool e
outras drogas, iniciação sexual precoce, comportamentos criminosos, violentos
e de alto risco, além de relacionamentos pessoais inadequados. Também pode
haver comprometimento no desempenho escolar, hiperatividade ou atrasos de
desenvolvimento cognitivo (BRASIL, 2002).

É importante mencionarmos que as repercussões da violência nem


sempre ocorrem quando a criança é quem sofre diretamente, mas o fato de estar
exposta à violência entre os pais ou cuidadores é um elemento bastante
significativo para o surgimento de alguns indicadores mencionados, sobretudo
os de ordem psicológica, sendo isto um exemplo de “efeito dominó”.

Com o crescimento da população idosa que tem ocorrido nos últimos anos
em nosso país, a violência dirigida contra essas pessoas tornou-se um fenômeno
recente em termos de sua visibilização. De acordo com Minayo (2005), a
violência à pessoa idosa pode ser definida como ações ou omissões cometidas
uma vez ou muitas vezes, prejudicando a integridade física e emocional das
pessoas desse grupo etário e impedindo o desempenho de seu papel social. A
violência acontece como uma quebra de expectativa positiva dos idosos em
relação às pessoas e instituições que os cercam (filhos, cônjuge, parentes,
cuidadores e sociedade em geral). De acordo com dados estatísticos, 90% dos
idosos vivem com familiares e é justamente na família onde ocorre a maioria das
violências, sendo que 2/3 são praticadas por filhos, parentes ou cônjuges
(BRASIL, 2014). Os idosos4, em geral, não falam sobre o fato de sofrerem
violência por medo de possíveis retaliações por parte do autor da violência, pelo
receio de serem mandados para uma casa asilar onde temem sofrer violência

187
também ou ainda para proteger o autor da violência (filho, neto, genro, nora...),
tendo em vista os laços afetivos presentes na relação (BRASIL, 2014;
GONZÁLEZ; ZINDER, 2009).

Dentre os fatores de risco relacionados à violência contra o idoso, pode-


se citar, com base no Caderno de Violência contra Pessoas Idosas (BRASIL,
2007): fragilização das relações familiares, estresse do cuidador, isolamento
social, psicopatologia, dependência química, relação desigual de poder entre
autor da violência e pessoa idosa, existência de antecedentes de violência
familiar, comportamento da pessoa idosa. Em continuação, apresentamos no
Quadro 5, elaborado pela Organizacional Mundial da Saúde (2002), alguns
indicadores relativos à violência contra o idoso e que consideramos importante
compartilhar, visto que congrega informações valiosas, em termos de
intervenção, relativos aos diferentes tipos de violência praticada contra a pessoa
idosa.

188
15.2 O psicólogo lidando com questões de violência familiar

É importante falarmos aqui da necessária tarefa, em termos institucionais,


da educação continuada dos profissionais que atuam junto às famílias em
situação de violência no contexto da atenção à saúde, em termos de uma
sensibilização e instrumentalização para melhor acolher a família e seus
integrantes, principalmente, para não cair na armadilha de revitimizá-los e assim
sustentar o complô do silêncio que envolve o tema da violência familiar
(RAVAZZOLA, 2005; MORÉ, 2014; FUSTER, 2002).

É consenso entre os estudiosos de família e no contexto da produção


científica de um modo geral, que o profissional de saúde, além de aprender
novos conhecimentos e técnicas, precisa ter clareza de suas crenças e valores,

189
de sua conduta ética e principalmente, questionar-se acerca do que pensa sobre
violência e a sua tolerância ou sobre atos violentos.

É necessário estarmos cientes da realidade complexa e multifacetada que


desafia cotidianamente os profissionais que trabalham em serviços de atenção
à saúde e também das implicações da violência que, enquanto fenômeno,
encontra no contexto familiar um campo de expressão máximo, deixando marcas
imbricadas historicamente, visíveis ou invisíveis em todos os seus integrantes,
sustentando dilemas humanos extremos (MORÉ, 2014). Isto, por sua vez, afeta
decididamente o profissional e sua formação, colocando também em xeque o
conjunto de crenças e valores que fundamentam sua história de vida em termos
pessoais. Nesse sentido, é importante construir, em termos profissionais,
recursos de enfrentamento, que permitam uma diferenciação com nossa história
pessoal.

Ao se ter como pano de fundo os conhecimentos apresentados na


Unidade 1, considera-se importante apontar pressupostos de referências
evidenciados por Moré (2014), que como fortes crenças profissionais, devem,
necessariamente, estar presentes na postura profissional, permeando toda e
qualquer reflexão, conhecimento ou ação, imprescindíveis para o enfrentamento
dessa realidade humana, à luz dos contextos de intervenção. Os pressupostos
de referência são:

• Acreditar na família, seja qual for sua configuração, como a principal


fonte de recursos para as mudanças frente a um problema. A exposição à
violência, seja qual for sua intensidade, faz com que os recursos potencialmente
protetores dos integrantes de uma família se encontrem sem possibilidade de
expressão, sendo a intervenção um caminho eficaz para seu resgate.

190
• Acreditar na importância das redes significativas e de apoio da família e
nos recursos comunitários enquanto redes efetivas que podem gerar mudanças.
A violência gera ou sustenta o isolamento social, por sua vez, o trabalho em rede
abre possibilidades efetivas de interferir nesse isolamento, gerando novos
caminhos de comunicação e implicando seus integrantes, através da
corresponsabilização de ações, tendo como consequência, a distribuição da
responsabilidade do apoio às famílias.

• Acreditar que a escuta profissional e a informação fazem diferença na


prevenção da violência. A conversação profissional pode ser transformadora, na
medida em que gera a possibilidade de inferir no campo de significação da
violência, através da construção de novos sentidos e significados atribuídos a
ela, pelos integrantes de um sistema familiar.

• Compreender que um saber não cobre o fenômeno da violência como


um todo. Diante do reconhecimento da complexidade da temática da violência
familiar, torna-se necessário desenvolver uma posição de humildade profissional
com relação aos nossos saberes e acolhê-los sob a perspectiva de uma
construção conjunta, para poder refletir e agir nos contextos de violência. Isto
seria o cerne para o desenvolvimento da postura interdisciplinar e do trabalho
ancorado na perspectiva de uma clínica ampliada, no sentido da conjugação de
diferentes saberes e práticas para o melhor acolhimento da família.

191
• Compreender que todo saber a ser comunicado precisa,
necessariamente, ser ancorado e coconstruído à luz dos contextos socioculturais
nos quais a família está inserida. Os diálogos profissionais, as mensagens ou
palavras que possam vir a serem construídos com a família, terão significado e
sentido enquanto possibilidade de transformação ou mudança, quanto mais
próxima aos contextos socioculturais em que a família e suas redes estejam
inseridas.

Acredita-se que esses pressupostos, constituem-se em parâmetros de


reflexão para o desenvolvimento de uma postura profissional diferenciada para
a escuta da família e sua rede, em situação de violência, que, por sua vez,
implicam a necessária ressignificação de saberes tradicionalmente presentes na
formação profissional. Formação esta que por um lado sustenta uma postura
assistencialista que retira a possibilidade do protagonismo dos envolvidos e, por
outro, sustenta uma postura individualista de ação, fazendo perder a perspectiva
da equipe. O trabalho em equipe, compreendido aqui como as múltiplas vozes
que se somam para pensar ações junto às famílias em situação de violência, é
uma condição primordial para a intervenção.

• Com relação à comunidade e seus recursos, deve-se considerar:

a. qual o contexto de moradia da família;

b. tempo na comunidade;

c. identificar se são famílias migrantes,

d. quais os recursos comunitários em termos de Unidades Locais da


Saúde, Equipes da Estratégia de Saúde da Família, Escolas, Centros
comunitários, ONGs etc.

Estes dados permitem visualizar, por sua vez, os diferentes níveis de


vulnerabilidade sócio comunitária a que a família está exposta, assim como,
192
encontrar interlocutores e aliados para nossa intervenção e espaços estratégicos
de inserção da família e escuta para além do sistema de saúde.

• Com relação à demanda de intervenção familiar: a. quem criou o


problema ou fez o encaminhamento. Aqui é importante escutar a pessoa ou
profissional que está levantando a demanda, no sentido de melhor discriminar a
sua leitura sobre ela. Lembremos que sempre estamos realizando uma
interpretação da demanda original.

• Existe reincidência da mesma demanda na família?

• Que tipos de fronteiras o sistema familiar identificado tem? Rígidas,


difusas ou nítidas?

• Como se dão as relações de poder nesse sistema e que é possível


visualizar através da forma como a família se comunica com a equipe?

• Quais os subsistemas mais oprimidos ou submetidos pela violência?

• Quais os comportamentos ou reações do sistema opressor e o do


oprimido?

• Houve já tentativas de comunicação dessa família com a equipe ou com


alguma pessoa ou rede social presente na comunidade?

Acreditamos que o entendimento destes itens auxilia o profissional a não


se converter num simples executante de ações, sendo importante o
reconhecimento de que a demanda, na maioria das vezes, não é criada pela
família, é uma demanda que geralmente é de fora do sistema familiar violento, o
qual exige uma atenção especial no processo de aproximação da família.

• Com relação à família e suas redes:

a. identificar o ciclo vital em que a família se encontra e o ciclo vital de


seus integrantes;

b. mapear as redes, seja na família atual, na família extensa ou vizinhos


que podem vir a conhecer o problema da família. Por sua vez, considera-se
importante o reconhecimento dos diferentes ciclos que a família atravessa,
sendo que cada novo ciclo representa uma ameaça à sua organização, assim
como qualquer mudança na sua configuração (como, por exemplo, a saída de
membros) interfere decididamente na dinâmica familiar. Conforme apresentado

193
na Unidade 1, o convívio num mesmo sistema familiar em diferentes fases do
ciclo de desenvolvimento aumenta a fragilidade da família, principalmente
afetando seus fatores potencialmente protetores.

• Com relação à rede institucional e seus recursos:

a. a família já foi atendida em outros níveis de atenção à saúde ou de atenção


psicossocial ou até de denúncia policial?

b. qual a experiência da família (ou seus representantes) de acolhimento nesses


diferentes sistemas de apoio? Sentiu-se acolhida?

c. qual foi o comportamento da família? d. quem são os interlocutores a que a


família esteve exposta? e. quais são os serviços de apoio possíveis de
acolhimento das famílias para propor alguma intervenção específica?

Esses aspectos são trazidos com ênfase especial, pois observamos que
muitas vezes, equipes ex postas em seu cotidiano a demandas intensas e
complexas não reconhecem ou não sabem as possibilidades e potencialidades
de seu próprio contexto de atuação, afetando diretamente seu processo de
trabalho, o que gera ações fragmentadas ou isoladas. Entende-se que o esforço
pela busca da articulação das famílias e suas redes significativas, com a
comunidade e redes suporte institucional é um processo de trabalho permanente
e que depende diretamente da postura diferenciada do profissional, mais do que
da Instituição com sua trama complexa. A sensibilização dos profissionais para
uma postura de trabalho em rede constitui-se em um caminho fundamental,
possível e efetivo, tanto de acolhimento e cuidado, como de prevenção da
violência na família.

15.2.1 Genograma

Em termos históricos é interessante apontar que a utilização do


Genograma no contexto sistêmico familiar remete a Murray Bowen (1991),
através de seus estudos de árvores genealógicas de famílias americanas que
abarcavam um período de 100 a 300 anos. Segundo Andolfi (2003), a partir de
seus estudos, evidenciou o processo de transmissão de características
familiares de uma geração para a outra, e como é possível focalizar e estudar
diversos fenômenos humanos através da perspectiva intergeracional.

194
Seguindo essa perspectiva, Andolfi (2003) define e descreve o
genograma diferenciando-o do que anteriormente se conhecia como árvore
genealógica. Afirma que a árvore genealógica tem como principal característica
a de ser utilizada no contexto da anamnese médica e centraliza-se nos fatores
hereditários ou etiopatogênicos. Já no que diz respeito ao genograma, o autor o
define como uma rede ampla de pessoas e eventos, cujo acesso às informações
pode ir além de nomes, considerando-se, ainda, a idade de todos os membros
de uma família, dos dados de acontecimentos específicos significativos
(nascimento, casamento, separações, mortes, etc.) e, de outros eventos de
relevância particular, focalizando principalmente a “história afetiva dos indivíduos
privilegiando a ativação do sistema de memória emotiva e imaginativa” (Andolfi,
2003, p. 134). Considera-se que essa compreensão do Genograma, como
possibilidade de resgate da história afetiva dos vínculos, constitui-se numa ponte
importante para acessar a família. Isto pode ocorrer na medida em que é
possível, tanto junto à família ou algum de seus representantes, quanto com as
informações acumuladas pela equipe, realizar uma reconstrução histórica de
determinados eventos que se sustentaram ou continuam a se sustentar, em
torno dos vínculos afetivos, das emoções e dos registros que permanecem na
memória dos participantes de um sistema familiar, permitindo, assim, ter acesso
efetivo à dinâmica deste sistema (CREPALDI; MORÉ; WENDT, 2014). Segundo
essas autoras, o Genograma permite:

a. Enquanto modelo gráfico, conhecer as informações da família e seus padrões


relacionais complexos que permeiam esse sistema. Isto auxilia a pensar em
hipóteses sobre os problemas familiares, nesse caso a violência, e relacioná-lo
com o contexto e outros problemas que fazem/fizeram parte da história da família
ao longo do tempo, a partir de uma análise intergeracional.

b. Possibilita entrar em contato com as crenças presentes na família, as quais


são transmitidas ao longo das gerações e podem ser responsáveis pela
formação ou ruptura de vínculos entre os membros, desvelando, em certo
sentido, o funcionamento e a dinâmica da família em tempo presente.

Com base nas contribuições de autores de referência no assunto


(BOWEN, 1979/1991; CARTER; MCGOLDRICK, 1995; MINUCHIN, 1982;
WATZLAWICK; WENDT; CREPALDI, 2008), consideramos importante
apresentar a seguir, definições de diferentes tipos de relacionamentos familiares,

195
que podem ser visualizados no Genograma e se constituírem numa linguagem
comum para a equipe:

a. Relacionamento harmônico: experiência emocional entre membros da família


em que há presença de sentimentos positivos e reciprocidade relacionada aos
interesses, atitudes e valores que possuem.

b. Relacionamento muito estreito ou superenvolvimento: caracteriza-se pelo


relacionamento em que há dependência emocional entre os membros da família
e em que não há diferenciação.

c. Relacionamento fundido ou conflitual: relacionamentos em que existe


dependência emocional entre os membros e conflitos constantes.

d. Aliança: ligação de lealdade invisível que interfere no processo de


diferenciação.

e. Relacionamento conflituoso: este tipo de relacionamento está presente nos


episódios de violência familiar. É caracterizado por conflitos constantes que
geram ansiedade. Existe a desqualificação e desconfirmação do outro (violência
psicológica) podendo progredir para a violência física.

f. Relacionamento vulnerável: neste tipo de relacionamento não há um conflito


explícito, mas podem existir conflitos em condições adversas ou nas fases de
transição (casamento, gravidez, divórcio).

g. Relacionamento distante: ocorre em famílias com fronteiras rígidas, em que


não há proximidade física e, sobretudo, emocional entre os membros.

h. Rompimento: existe ligação emocional entre os membros, embora não haja


contato entre eles.

i. Triangulação: relação existente entre três pessoas, em que uma delas regula
a tensão e os conflitos existentes entre as outras duas.

j. Coalizão: aliança que duas pessoas estabelecem contra uma terceira.

196
197
Genograma

No trabalho com famílias em situação de violência, é possível que o


profissional se depare diariamente com os diferentes tipos de relacionamentos
apresentados. A identificação do tipo de relação que é estabelecida entre os
integrantes do sistema familiar contribui para a melhor compreensão da dinâmica
de violência e para desenvolver uma intervenção baseada nas peculiaridades e
possibilidades de mudança nos relacionamentos familiares, visando à saúde de
seus integrantes.

15.2.2 Mapa de redes

O segundo instrumento proposto neste tópico refere-se ao Mapa de


Redes, instrumento este, proposto por Carlos Eduardo Sluzki, psiquiatra e
terapeuta familiar. Antes de iniciarmos com a descrição e especificação do
instrumento, diante da diversidade de conceitos em torno das “Redes”,
entendemos ser necessário esclarecer o conceito que nos propomos a utilizar
neste Módulo. Assim, utilizaremos aqui o conceito de redes sociais significativas
e de suporte social.

azem parte dessa rede a família, os amigos, os colegas de trabalho ou


estudo e a comunidade, incluindo os serviços de saúde e assistenciais, vizinhos
e pessoas do credo religioso, que proporcionam ajuda e apoio capazes de
diminuir os efeitos de uma situação de crise. A ajuda recebida pelas pessoas da
rede faz com que o indivíduo tenha o sentimento de pertencer a um grupo,
fortalece a autoestima, dá sentido à vida, melhora a capacidade de adaptação e
a qualidade dos relacionamentos (MORÉ; CREPALDI, 2012; SLUZKI, 1997). Por
sua vez, o suporte social pode ser definido pelo apoio fornecido aos indivíduos,

198
por meio do conjunto de suas relações sociais institucionais ou comunitárias que
oferecem apoio e proteção, reduzindo os efeitos físicos e psicológicos de
eventos estressantes (como nos casos de violência na família).

Para que ocorra o suporte social entre profissionais e usuários de uma


instituição, a exemplo das unidades básicas de saúde, hospitais, delegacias,
instituto médico legal, centros de referência, é preciso levar em consideração a
qualidade e a forma de relacionamento, pois estes são fatores determinantes
para o sentimento de proteção e acolhimento (CAMPOS, 2005; ORNELAS,
2008).

As pessoas que compõem as redes podem ser visualizadas a partir da


construção de um mapa mínimo, chamado Mapa de Redes. Ele é um registro
estático de um determinado momento da vida de uma pessoa; trata-se, conforme
mencionamos anteriormente, de uma “espécie de radiografia” das Redes, que
mostra a trama relacional configurada em torno de uma situação de violência
familiar.

Com relação à sua composição, o Mapa de Redes possui três círculos e


quatro quadrantes. O círculo interno representa as relações íntimas ou
cotidianas, O círculo intermediário refere-se às relações com menor grau de
intimidade, com contato pessoal/ social. E o círculo externo corresponde às
relações ocasionais ou com conhecidos. Os quatro quadrantes do Mapa de
Redes são representados pela família, amizades, relações comunitárias e
relações de trabalho ou estudo. A seguir, apresenta-se o modelo de Mapa de
Redes proposto por Sluzki (1997):

199
A utilização do Mapa de Redes como um recurso gráfico permite
identificar e avaliar a rede social significativa a partir de suas características
estruturais, que se referem às propriedades da rede em seu conjunto; das
funções dos vínculos, caracterizadas pelo tipo de interação entre a pessoa e os
indivíduos que compõem a sua rede, podendo ser um vínculo específico ou uma
combinação de vínculos; e por fim, a partir dos atributos do vínculo, sendo estes
marcados pelas propriedades específicas de cada relação (SLUZKI, 1997). Em
termos de intervenção, gostaríamos de destacar as funções dos vínculos das
pessoas que integram um Mapa de Redes. As funções podem ser de:

a. companhia social, que diz respeito à realização de atividades conjuntas


ou simplesmente estar juntos;

b. apoio emocional, caracterizado pelos intercâmbios com uma atitude


emocional positiva, clima de compreensão e empatia;

c. guia cognitivo e de conselho, que consiste na oferta de informações


pessoais, sociais e modelos de referência;

d. regulação social, que, por sua vez, reafirma as responsabilidades e os


papéis, além de favorecem a resolução de conflitos;

e. ajuda material ou de serviços, caracterizada pela contribuição


financeira ou por meio de indicações a serviços com especialistas;

200
f. acesso a novos contatos, que diz respeito à abertura de portas para
novas conexões com pessoas e redes que até então não faziam parte da rede
do indivíduo/família (SLUZKI, 1997).

Consideramos que a proposta dessas seis funções tem o sentido de


auxiliar na organização da escuta e de sermos mais estratégicos, nas possíveis
alianças que podemos construir para delinear uma estratégia de intervenção
junto às famílias que demandam nossa atenção. Também, cada vínculo
estabelecido com as pessoas das redes possui atributos, sendo esses:

a. a(s) função(s) predominante(s) do vínculo, ou seja, qual ou quais


funções são predominantes neste vínculo;

b. multidimensionalidade, isto é, quantas funções a pessoa desempenha;

c. reciprocidade, quer dizer, se a pessoa desempenha as mesmas


funções que recebe de sua rede;

d. intensidade, que caracteriza o grau de compromisso da relação;

e. frequência dos contatos, que se caracteriza o número de vezes que as


pessoas entram em contato umas com as outras;

f. história da relação, destacando desde quando as pessoas se


conhecem e o que estimula a manutenção da relação (SLUZKI, 1997).

Assim, as pessoas que configuram o Mapa de Rede, de famílias ou de


seus integrantes, desempenham diferentes tipos de funções que se assentam
na história dos vínculos construídos, ao longo do ciclo vital da família. Essas
pessoas podem se tornar aliadas importantes nos processos de intervenção
profissional, visando o cuidado com a família que vivencia uma situação de
violência (MORÉ; CREPALDI, 2012; SLUZKI, 1997).

Nesse momento gostaríamos de chamar a atenção para que os dados


obtidos a partir da utilização destes instrumentos sejam utilizados como dados
complementares, que precisam ser integrados àqueles que sempre emergem
dos diferentes integrantes de uma equipe quando analisamos alguma situação.
Seria uma armadilha profissional, em termos de intervenção, utilizar dados do
Genograma ou do Mapa de Redes, por exemplo, de forma linear. Ou seja, se foi

201
identificada uma situação de violência na família de origem, isto não significa,
necessariamente, que haverá violência na família atual; assim como se o Mapa
de Redes evidencia uma ruptura das redes sociais significativas, não
necessariamente significa que a família ou integrantes apontados na rede tenha
dificuldades de construir vínculos. Esses instrumentos, que exigem um tempo
para sua apropriação por parte da equipe, fornecem dados que, de forma efetiva
podem auxiliar a sermos mais estratégicos e cuidadosos, no planejamento, na
organização de ações e na intervenção propriamente dita, junto às famílias em
situação de violência.

16.0 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER

A violência está presente cada vez mais na vida da sociedade, dentre


elas a mais preocupante é a violência doméstica contra a mulher. Este tipo de
violência ocorre no âmbito familiar, principalmente, dentro de suas próprias
residências, pois é quando o agressor possui uma relação de afetividade com
a vítima.

A violência doméstica é um ato inaceitável perante nossa sociedade,


porem ela ainda cultiva certos valores ao qual incentivam este tipo de delito.

A cultura da violência doméstica decorre das desigualdades


no exercício do poder, levando assim uma relação de “dominante e

202
dominado”, que apesar de se obter avanços na equiparação entre
homens e mulheres, a ideologia patriarcal ainda vigora, e a
desigualdade sociocultural é uma das principais razões da
discriminação feminina (DIAS,2007,P.15-16).

A mulher era subjugada através dos padrões patriarcais,


sendo seu comportamento moldado rigidamente. Todavia, fora das
amarras severas do patriarquismo, vê-se que a mulher não conseguiu
libertar-se dos padrões que lhe foram impostos (FARIAS JÚNIOR,
2001, P.207).

Dentro deste contexto histórico a mulher sempre foi submissa ao homem,


nas antigas sociedades ela somente servia ao homem, ao qual tinha a
obrigação de servir a ele, como cozinhando, cuidando da casa e filhos, sem ter
participação alguma em assuntos que naquela época somente os homens
tinham o poder de decidir ou até mesmo na própria sociedade que a tratava
como um ser inferior ao homem, pois somente eles os homens tinham o poder
de decidir o que era bom ou ruim para a sociedade, e em algumas vezes até
mesmo abusar da violência para punir suas esposas da forma que os mesmos
quisessem e achavam correto.

Mas como todos sabemos a história evoluiu e deu um grande salto em


relação ao direitos das mulheres, e conforme o tempo sugiram leis para
proteger as mulheres contra práticas abusivas em relação a violência e
tornando-as crimes, dentre elas a Lei 11.340/2006,ao qual visa a proteção das
mulheres no âmbito doméstico e familiar com mais vigor. Todavia, esta lei que

203
a princípio protegia apenas as mulheres, hoje pode ser também aplicada
através das analogias para a proteção de homens que sofrem agressão no
contexto familiar.

As consequências deixadas por essa violência as vezes é passageira


ou incessantes, podendo permanecer com a vítima ao longo de sua vida e com
várias sequelas, logo cometida a violência os danos podem permanecerem
visíveis ou sumirem ao longo do tempo.

Diversos autores citados nestes artigos foram pesquisados, para


permitir uma visão de que atualmente os grandes números de agressores no
contexto familiar é grave. Pois o agressor acredita fielmente ter razões para se
sentir superior a suas vítimas, sentindo-o grande necessidade de humilhá-las
com agressões verbais ou físicas para que ela possa sentir-se amedrontadas
e ele possa ter o total controle sobre elas.

16.1 Caracterização da violência

A violência é um ato que pode ser expresso sob diversas formas, podendo
ser elas, física, moral, psicológica, sexual e patrimonial, bem como, existem
vários enfoques sob as quais podem ser definidas. Trata-se de agressão
injusta, ou seja, aquela que não é autorizada pelo ordenamento jurídico. É um
ato ilícito, doloso ou culposo, que ameaça o direito próprio ou de terceiros,
podendo ser atual ou iminente (ROSA FILHO, 2006, P.55).

A violência doméstica contra a mulher é definida como aquela que ocorre


no âmbito doméstico ou em relações familiares ou de afetividade,
caracterizando pela discriminação, agressão ou coerção, com o objetivo de

204
levar a submissão ou subjugação do indivíduo pelo simples fato deste ser
mulher (BENFICA; VAZ, 2008, P.201).

Em sentindo amplo, a violência pode ser considerada como qualquer


comportamento ou conjunto de comportamentos que venham a causar dano a
outras pessoas, ser vivo ou objeto. É o uso excessivo de força, muito além do
necessário.

A palavra violência origina-se do latim, violência, que significa o ato de


violentar abusivamente contra o direito natural, exercendo constrangimento
sobre determinada pessoa, por obrigá-la a praticar algo contra sua vontade
(CLIMENE & BURALLI, 1998).

A violência pode ser considerada como um fenômeno multicausal,


além de se apresentar sob várias formas e ocorrer em distintos espaços
sociais ou institucionais.

O problema da violência doméstica não é um fenômeno novo, tal violência


começou a ganhar visibilidade a partir dos a nos 70 por força e iniciativa das
organizações a favor dos direitos das mulheres, principalmente feministas, que
desenvolviam trabalho em casas abrigo para mulheres vítimas da violência,
tornando-se assim um problema digno de atenção (GIDDENS, 2004,P.196;
VICENTE, 2002, P. 188).

A preocupação com os altos índices no crescimento da violência é tida


hoje como uma questão crucial para nossa sociedade, sendo vários os fatores

205
que propiciam ao seu aumento, tais como, desigualdades econômicas, sociais
e culturais.

Portanto, a Violência doméstica é todo tipo de violência praticada entre


os membros que habitam um ambiente familiar em comum. Pode acontecer
entre pessoas com laços de sangue (como pais e filhos), ou unidas de forma
civil (como marido e esposa ou genro e sogra).

16.2 Gênero e Violência.

A violência de gênero está caracterizada pela incidência dos atos


violentos em função do gênero ao qual pertencem as pessoas envolvidas, ou
seja, há a violência porque alguém é homem ou mulher. A expressão violência
de gênero é quase um sinônimo de violência contra a mulher, pois são as
mulheres as maiores vítimas da violência (KHOURI, 2012).

Este conceito geralmente se refere à violência contra a mulher, onde


o sujeito passivo é uma pessoa do gênero feminino. Os casos de violência
familiar ou de violência no lar, em alguns casos, não são denunciados por uma
questão de vergonha ou por receio.

A violência de gênero pode ser observada como uma problemática que,


necessariamente, abrange questões ligadas à igualdade entre sexos. É, pois,
um tema com elevado grau de complexidade, tendo em vista que é fortemente
marcada por uma elevada carga ideológica (OLIVEIRA, 2010).

A violência decorrente da diversidade de gênero encontra-se inserida em


um contexto social marcado por um pensamento que enaltece as
desigualdades entre os sexos. Nesse sentido, pode-se dizer que tal
pensamento, fundado na desigualdade de gêneros e na inferioridade feminina,

206
ensejou a inovação legislativa para proteger essa parte da população vítima
da violência de gênero (OLIVEIRA, 2010).

A violência contra a mulher é fruto de uma evolução histórica, muitas


vezes praticada por alguém do seu âmbito familiar, sendo um trágico quadro
atual que vincula na sociedade devido à falta de informação e a conceitos
socioculturais ainda enraizados. Todavia configura-se como um dos mais
graves problemas a serem enfrentados, sendo um dos maiores desafios
sociais dos últimos tempos.

A luta contra esse tipo de violência se deu de diversas maneiras


possíveis, entre elas, sendo a de maior força, que foi a criação de um projeto
de lei que visava à proteção das mulheres no âmbito doméstico, aprovada na
Câmara dos Deputados no ano de 2005 e aprovado em julho do ano seguinte
no Senado, surgia assim no ordenamento jurídico brasileiro, no dia 7 de agosto
de 2006, a Lei nº 11.340, sancionada pelo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva,
que foi, então, batizada de Lei Maria da Penha.

Tal Lei criou mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica


e familiar contra a mulher, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas
as Formas de Violência contra a Mulher, dispondo inclusive sobre a criação
dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; além de
estabelecer medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de
violência doméstica e familiar. As Delegacias de Defesa da Mulher foram

207
criadas para dar maior sustentação às reclamações da população feminina
contra as agressões sofridas, na maioria das vezes, no âmbito doméstico.

A Lei Maria da Penha veio para suprir, com vantagem, essa negligência,
pois cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar,
visando assegurar a integridade física, psíquica, sexual, moral e patrimonial
da mulher (DIAS,2013, P.112).

Dessa forma, configura violência doméstica e familiar contra a mulher


qualquer ação ou omissão, baseada no gênero, que lhe cause morte, lesão,
sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.

16.3 Os tipos de violência

A violência contra a mulher pode se manifestar de várias formas e com


diferentes graus de severidade. Estas formas de violência não se produzem
isoladamente, mas fazem parte de uma sequência crescente de episódios, do
qual o homicídio é a manifestação mais extrema.

A Lei 11.340/06, em seu art. 7º demonstra algumas considerações e


estabelece critérios objetivos para categorizar o que seja a violência doméstica
e familiar contra a mulher. Assim dispõe o artigo 7º da mencionada lei:

“Art. 7 º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre


outras:

208
I- A violência física, entendida como qualquer conduta que
ofenda sua integridade ou saúde corporal;

II- a violência psicológica, entendida como qualquer conduta


que lhe cause danos emocional e diminuição da autoestima ou
que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que
vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos,
crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento,
humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante,
perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização,
exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro
meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à
autodeterminação;

III- a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a


constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação
sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação
ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de
qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar
qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à
gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação,
chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o
exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;

IV- A violência patrimonial, entendida como qualquer conduta


que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total
de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos
pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos,
incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;

209
V- A violência moral, entendida como qualquer conduta que
configure calúnia, difamação ou injuria.”

O artigo mencionado demonstrou as diferentes formas de Violência


Doméstica e Familiar praticada contra a Mulher que pode lhe causar a morte,
lesão, sofrimento físico, sexual, psicológico, dano moral ou patrimonial.

16.3.1 Física

Ocorre quando uma pessoa, que está em relação de poder em relação a


outra, causa ou tenta causar dano não acidental, por meio do uso da força física
ou de algum tipo de arma que pode provocar ou não lesões externas, internas
ou ambas. Segundo concepções mais recentes, o castigo repetido, não severo,
também se considera violência física (BRASIL, 2002, P. 15).

16.3.2 Psicológica

210
É toda ação ou omissão que causa ou visa causar dano à autoestima, à
identidade ou ao desenvolvimento da pessoa. Inclui: Inclui: ameaças,
humilhações, chantagem, cobranças de comportamento, discriminação,
exploração, crítica pelo desempenho sexual, não deixar a pessoa sair de casa,
provocando o isolamento de amigos e familiares, ou impedir que ela utilize o
seu próprio dinheiro. Dentre as modalidades de violência, é a mais difícil de ser
identificada. Apesar de ser bastante frequente, ela pode levar a pessoa a se
sentir desvalorizada, sofrer de ansiedade e adoecer com facilidade, situações
que se arrastam durante muito tempo e, se agravadas, podem levar a pessoa
a provocar suicídio (BRASIL, 2002).

16.3.3 Sexual

A violência sexual compreende uma variedade de atos ou tentativas de


relação sexual sob coação ou fisicamente forçada, no casamento ou em outros
relacionamentos.

A violência sexual é cometida na maioria das vezes por autores conhecidos


das mulheres envolvendo o vínculo conjugal (esposo e companheiro) no espaço
doméstico, o que contribui para sua invisibilidade. Esse tipo de violência
acontece nas várias classes sociais e nas diferentes culturas. Diversos atos
sexualmente violentos podem ocorrer em diferentes circunstâncias e cenários
(OMS, 2002).

211
16.3.4 Patrimonial

A violência patrimonial se define como qualquer conduta que configure


retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos
de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos
econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades
(MULHER, SITE TJSE). Em outras palavras, a violência patrimonial está
nucleada em três condutas: subtrair, destruir e reter. Passemos agora ao
necessário enquadramento de cada uma dessas condutas no tipo penal
respectivo.

16.3.5 Moral

Por fim, a violência moral configura-se diante de qualquer conduta que


acarrete calúnia, difamação ou injúria, conforme aponta (FEIX2014):

"A violência moral está fortemente associada à violência psicológica,


tendo, porém, efeitos mais amplos, uma vez que sua configuração impõe, pelo

212
menos nos casos de calúnia e difamação, ofensas à imagem e reputação da
mulher em seu meio social."

Apresentada na forma de desqualificação, inferiorização ou


ridicularização, a violência moral contra a mulher no âmbito das relações de
gênero sempre é uma afronta à autoestima e ao reconhecimento social.

Diante das novas tecnologias de informação e redes na internet, a


violência moral contra a mulher tem tomado novas dimensões, sendo
necessário que o Direito e seus operadores atentem para novos padrões de
violação dos direitos de personalidade em geral e das mulheres (FEIX, 2014,
P. 210).

16.4 Fatores Determinantes que Levam as Mulheres a se Sujeitarem a


Violência.

Estudos Brasileiros salientam, que fatores determinantes ao qual muitas


mulheres se sujeitam a está violência seria a baixa renda das mulheres /
vítimas. Relatam que a renda familiar predominante é entre um a três salários
– mínimos (42,6%), seguida pela faixa dos quatro a seis salários (36,1%) e
uma categoria de 39,3% que não exercia atividades remuneradas (JACINTO,
2010).

As pesquisas também demonstraram que a mulher que trabalha fora de


casa é mais consciente da situação. Isto porque o exercício de atividade

213
profissional assegura-lhe independência econômica, encorajando-a a reagir e
buscar soluções para o seu problema. As estatísticas da violência doméstica
nas grandes cidades coincidem com as do interior do país. Está provado que
a violência doméstica é um fenômeno global, presente tanto nos países
desenvolvidos, como nos subdesenvolvidos e nos que estão em
desenvolvimento. O caso brasileiro está correlacionado à pobreza, baixa
escolaridade e dependência econômica das mulheres. Os homens aparecem
como maiores agressores. Além disso, o preconceito e a discriminação estão
na origem da violência contra a mulher. Muitas mulheres sentem-se
envergonhadas de admitir, mesmo para amigos, que um membro de sua
família (na maioria dos casos o companheiro) prática violência, e em assim
sendo, não o denunciam (JACINTO, 2010).

Encontram-se indícios de que as mulheres adiam a denúncia e


mantêm-se em um relacionamento violento (BALLONE, 2001):

“Um deles é a dependência financeira (bastante comentada nas bibliografias),


que, em alguns casos, não foi confirmada, pois há mulheres que se submetem
a um relacionamento violento, e sustentam os filhos e até mesmo o
companheiro agressor; A dependência emocional do companheiro e a
necessidade de ter alguém como "referência" levam a mulher à submissão e
a sujeição às agressões, que vão da emocional à física e, muitas vezes,
intercalam-se; A criação dos filhos é outro fator importante, pois, muitas vezes,
as mulheres acreditam ser necessária a presença da "figura paterna" na
educação; E a falta de apoio de amigos e parentes também contribui para que
as mulheres não denunciem seus companheiros.”

16.5 Consequências Trazidas Para as Vítimas.

A violência traz consequências gravíssimas para as vítimas, que vão


muito além de traumas óbvios das agressões físicas. A violência conjugal tem
sido associada com o aumento de diversos problemas de saúde como baixo
peso dos filhos ao nascer, queixas ginecológicas, depressão, suicídio, entre
outras.

214
No Brasil, como em vários outros países, a delimitação dos prejuízos
psicológicos decorrentes de situações traumáticas é a matéria recente, e,
portanto, não está claramente especificada na legislação. O que gera o dano
psíquico é a ameaça à própria vida ou à integridade psicológica, uma lesão
física grave, a percepção do dano com internacional, a perda violenta de um
ente querido e a exposição ao sofrimento de outros, ainda que não seja
próxima afetivamente (MAROJA, 2017).

Dentre as mais diversas pesquisas sobre as vítimas da violência


doméstica e familiar quanto à caracterização da vítima percebe-se que
(MAROJA, 2017):

 a) a maioria das mulheres tem uma união consensual (57%);

 b) 65% delas tem filhos com este parceiro;

 c) cerca de 40% são do lar e 60% trabalham fora;

 d) sua idade varia de 15 a 60 anos, mas a maioria é jovem (21 e 35 anos


– 65%);

 e) são brancas.

215
Como visto anteriormente, as mulheres vítimas de violência que sofrem
a agressão pertencem a uma camada social mais baixa, negam submissão, mas
referem medo do agressor, que em sua maioria, é o companheiro, com baixo
nível socioeconômico, usuário de bebida alcoólica, que pratica a violência no
domicílio, sendo o ciúme apontado como a principal causa da violência.

16.6 Perfil do agressor

Na maioria dos casos, o agressor é homem. Eles se tornam os sujeitos


ativos do crime e tem como principal característica o fato de manter ou ter
mantido relação afetiva e intima com a vítima.

Os agressores são aqueles que não se espera, aquele que a vítima ao


conhecer o vê como perfeito, que possui qualidades e uma imagem pública
impecável em seu âmbito de trabalho e amizades, logo não se pode imaginar
que ele trará sofrimento a sua parceira ou qualquer outra mulher.

A especialista alerta que atitudes que demostram um perfil agressivo


podem ser percebidas na época do namoro, como gestos extremamente
egoístas ou a dificuldade em aceitar contrariedades.

216
O agressor pode ser motivado a agredir por simples necessidade de
controlar a mulher ou dominá-la. Tem uma personalidade machista e um
sentimento de poder frente a mulher.

O consumo excessivo de bebidas alcoólicas e de drogas ilícitas faz parte


do perfil da maioria dos agressores. Mas os sinais de violência também são
demonstrados na infância (VIEIRA, 2014).

Geralmente, essas pessoas são transgressoras de normas, têm


desvio de conduta e atitudes agressivas com pessoas ou atos de crueldade
com animais.

Algumas características destes agressores (SOUZA 2014):

- “A violência se manifesta de maneira reiterada, sendo um padrão


de conduta continuado;

- Os agressores são geralmente homens, maridos, ex-maridos,


companheiros ou ex-companheiros das vítimas; os indivíduos que foram
vítimas de maus-tratos na infância reproduzem estas condutas, e, por
isso, têm mais possibilidades de serem agressores, agredindo sua
própria companheira;

- As agressões sofridas não são conhecidas até transcorrer um


longo período;

- O crime doméstico se manifesta como violência física, psicológica,


sexual, patrimonial ou moral; às vítimas possuem baixa autoestima e
vários problemas de saúde, na maioria dos casos, as mulheres são
chantageadas por seus maridos e frequentemente cedem às pressões,
sentindo-se incapaz de agir;

- Às vítimas vivem em estado de pânico e temor.”

Como podemos ver os agressores não são fáceis de diagnosticar ou de


identificar, não há um perfil típico de para eles. Em público podem parecer
amigáveis com o/a parceiro/a e família, perpetuando os abusos exclusivamente
na esfera privada. No entanto, podem existir nestes abusadores algumas

217
características comuns, nomeadamente casados, com baixa autoestima, usam
armas e consomem álcool ou outras substâncias ilícitas. Contudo, na sua maioria
são cuidadosos e tentam esconder o abuso, causando lesões em zonas menos
visíveis e que não requeiram cuidados médicos.

16.7 Violência conjugal contra o homem

A violência contra o homem, embora não apareça muito prevalente nas


estatísticas da violência e, por diversos motivos, não seja ainda muito
comentada, tem sido um tema que começa a despertar o interesse de diversos
seguimentos acadêmicos e científicos e, por isso, é a temática escolhida também
para o presente trabalho; ela se desenvolve no âmbito da violência intrafamiliar,
mais especificamente na forma de violência entre parceiros íntimos (CEZARIO
et al., 2013).

A violência por parceiro íntimo, segundo o Centers for Disease Control


and Prevention (2006) apud Cezario (2013), é todo e qualquer abuso sexual,
psicológico ou físico entre duas pessoas que estão em um relacionamento
íntimo. Na maioria das vezes, a mulher é a principal vítima, mas isso não quer
dizer que o homem não sofra esse tipo de violência por parte de suas parceiras,
seja ela financeira, patrimonial, física, sexual ou emocional (CEZARIO et al.,
2013).

De acordo com as bases eleitas para as buscas eletrônicas, foi possível


verificar no Google Acadêmico que com os termos homem vítima de violência
conjugal, marcada a opção classificar por relevância, foram enumerados 16.400
218
resultados. Ao delimitar o período específico de 2010 a 2013, foram encontrados
7280. Desse total catalogado depois de fixados os critérios de exclusão, foram
analisados, por meio de leitura flutuante, 100 publicações, das quais 11 artigos
foram eleitos para análise conforme a temática do presente estudo.

Não há estatísticas oficiais de violência doméstica contra os homens no


país, e os poucos estudos realizados a respeito não têm a devida visibilidade.
Diversos países buscam soluções para a violência conjugal, vez que violência
não tem gênero, enquanto o Brasil segrega a população até mesmo na
possibilidade de denúncias de violência doméstica, não sendo permitido ao
homem ter voz, obrigando-o a conviver diariamente com essa

Estudos defendem que a violência pode ser bi-direcional e multifacetada


(Hines & Douglas, 2010a) sendo importante compreender o fenómeno de VD
como um todo, independentemente do sexo da vítima ou perpetrador (Machado
& Matos, 2012). Para tal, é crucial admitir que a VD não se circunscreve só a
vítimas no feminino (Sousela, 2006) e que a investigação não se deve focar
apenas em quem perpetra mais, nem em quem é mais vítima deste fenómeno
(Hines & Douglas, 2009).

Segundo os dados mais recentes do National Crime Victimization Survey,


18% dos homens inquiridos foram vítimas de VD (U.S. Department of Justice,
2014).

A nível europeu, dados da organização Parity revelaram que


aproximadamente 40% das vítimas de VD eram homens (Parity, 2010).

Em Portugal o panorama é igualmente preocupante. Num estudo


realizado no Instituto de Medicina Legal (n=535), 11,5 % dos casos avaliados
correspondiam a vítimas do sexo masculino, cuja perpetradora era mulher e,
havendo um historial de violência física e psicológica na maioria dos casos
(81,6%; Carmo, Grams & Magalhães, 2011). Nas estatísticas oficiais, no ano de
2014, segundo dados do SGMAI, 16% das vítimas eram do sexo masculino
(SGMAI, 2015). No ano de 2015, de acordo com os dados da APAV, foram
recebidos 388 pedidos de ajuda de homens vítimas de VD, em relações
heterossexuais, maioritariamente casados (50,2%), com ensino superior
(48,7%), empregados (54,2%) mantendo, atualmente, uma relação conjugal com
a perpetradora (50,8%:APAV, 2016)

219
No plano conceptual, a VD historicamente era vista como um problema
individual (Shuler, 2010). Mais recentemente tem sido amplamente reconhecida
como um crime grave e um problema social com implicações complexas (e.g.,
Dobash & Dobash, 2004; Matos, 2006; Shuler, 2010). Apesar do crescente
interesse atual por esta temática, a atenção científica dada a esta questão
remonta dos anos 70, quando Steinmetz (1977, como citado em Casimiro, 2008)
divulgou o conceito de “síndrome do homem espancado”. Também nesta
década, Gelles (1974, como citado em Hines & Douglas, 2010) mostrou interesse
pelo estudo científico desta temática. Depois disso, o estudo deste fenómeno
assumiu gradualmente um lugar de destaque na literatura científica internacional
(e.g., Archer, 2000; Costa et al, 2015; Hines, Brown, & Dunning 2007; Hines &
Douglas, 2011;Randle & Graham, 2011; Tsui, Cheung, & Leung, 2010).

A nível científico, as dissemelhanças sobre a prevalência da VD contra


homens devessem à utilização de diferentes metodologias, de distintos
pressupostos teóricos e da angariação de amostras diferentes (e.g., Archer,
2000; Casimiro, 2008). Numa meta análise realizada por Archer (2000) é
sustentado que as medidas baseadas em atos (e.g., tipos de violência distintos)
ou em consequências (e.g., severidade dos ferimentos) levam a resultados
diferentes. Vários estudos internacionais sistematizaram os tipos de VD
vivenciados pelos homens vítimas. Numa investigação onde foram analisados
vários pedidos de ajuda de uma linha telefónica especializada (n=190), concluiu-
se que o medo, a perseguição e o controlo por parte das parceiras, a violência
física, as ameaças, o abuso emocional, o isolamento social e o abuso
socioeconómico eram os tipos de violência mais relatados (Hines, Brown, &
Dunnings, 2007). Machado e Matos (2014), numa revisão de estudos
internacionais, concluíram que, não descurando a discrepância de prevalências
entre estudos, o tipo de violência mais reportada pelos homens era a psicológica
(7.7% - 100%), sucedendo-se a violência física com alguma disparidade (1.4% -
98.7%) e, numa percentagem inferior, a violência sexual (0.1% - 41.1%).
Recentemente, Machado, Graham-Kevan, & Matos (2016) constataram que,
quanto à violência psicológica, 66.8% dos homens eram vítimas e 67,5% eram
perpetradores desse tipo de violência, à coerção sexual 35.2% eram vítimas e
43.8% perpetradores e quanto à violência física, 20.4% eram vítimas e 16.8%
autores deste tipo de violência.

220
A procura de ajuda parece ser influenciada pela percepção da sociedade
sobre as diferenças de género. Tsui, Chen, & Leung, 2010, num estudo sobre
serviços de saúde revelou que os homens procuram menos ajuda que as
mulheres. Percepções que enaltecem a capacidade física do homem de se
defender e de permanecer longe de relações íntimas violentas, bem como as
expetativas sociais sobre a capacidade física e económica para resolver os seus
próprios problemas, conduzem à ideia do homem como vítima seja inconcebível
(Hines e Douglas, 2010a, b). Assim, os homens debatem-se interna e
externamente com a manutenção de um ideal masculino (e.g., sexo dominante;
Shuler, 2010). Desta forma, quando são vítimas de VD, os homens enfrentam
lutas de “conciliação” entre a vitimação e a perceção de sua masculinidade (Tsui
et al., 2010). Talvez, por via disso, muitos dos homens vítimas não admitam sua
condição e não procurem ajuda profissional (Barber, 2008; Hines, 2007). Um
estudo qualitativo realizado por Tsui e colegas (2010) revelou que os homens
não procuram ajuda devido a obstáculos sociais e à falta de apoio. Vergonha,
medo, negação, estigma e, sobretudo, o facto do sistema de apoio não tratar os
homens da mesma forma, são obstáculos à procura de apoio. Também o medo
de serem conotados como autores, especialmente estes retaliarem, impede-os
de denunciarem o abuso (Hines, 2007).

Estas vítimas, enfrentam portanto obstáculos internos (negação, medo


que não acreditem na sua história, vergonha e confusão emocional) e externos
(falta de serviços apropriados, preconceito, proteção social do agressor que é
considerado automaticamente vítima por causa do sexo) à procura de ajuda,

221
contribuindo para a manutenção da invisibilidade da VD contra homens (e.g.,
Barber, 2008; Hines et al., 2007; Tilkbook et al., 2010; Tsui et al., 2010).Quando
procuram ajuda em serviços responsáveis pela abordagem de VD (e.g., centros
de apoio à vitima), estas vítimas tendem a relatar obstáculos como serem
mandados embora, rirem-se deles, acusá-los de serem os agressores e/ou
encaminha-los para um programa de agressores (e.g., Hines & Douglas, 2011;
Hines et. al., 2007; Hines & Douglas, 2011a). Muitas instituições tratam o homem
como único autor (Tsui,2014), levando o a desistir de procurar apoio (Hines et
al., 2007).

Num estudo de Hines e Douglas (2011a) com homens vítimas (n=302),


metade procurou ajuda formal e mais de metade classificou-a como não sendo
útil, uma vez que algumas instituições apenas ajudavam mulheres (78.3%),
outras eram tendencialmente contra homens (95.3%) e outras acusaram-nos de
serem agressores (63.9%). Recentemente, um estudo nacional realizado com
homens vítimas (n=89) revelou que preferiam procurar ajuda informal (e.g.,
família), não considerando útil o apoio prestado pelas instituições formais (e.g.,
sistema judicial), à exceção daquele prestado pelos profissionais de saúde
(Machado, Denise & Matos, 2016). As vítimas que não procuraram (76.4%)
apontaram como razões o facto não se identificarem como vítimas (64.7%),
vergonha (30.9%), desconfiança em relação ao sistema de apoio (19.1%), receio
de não acreditarem na sua história (10,3%) e medo de retaliação da companheira
(8.8%; Machado et al.,2016).

Num estudo que analisou telefonemas de homens vítimas para uma linha
de apoio (n= 190), metade revelou que as suas companheiras deram afirmações
falsas ao sistema judicial a fim de ganhar a custódia dos filhos ou obter ordem
de restrição (Hines et al., 2007).

16.8 O papel do psicólogo com as vítimas de violência doméstica

222
A mulher que convive ou já conviveu, durante algum tempo, com a
violência perpetrada pelo parceiro, geralmente, tem um comprometimento
psicológico, como a dificuldade de mudar sua realidade, uma vez que “a pessoa
sob jugo não é mais senhora de seus pensamentos, está literalmente invadida
pelo psiquismo do parceiro e não tem mais um espaço mental próprio”
(HIRIGOYEN, 2006, p. 182). Por esta razão ela necessita de uma ajuda externa
que a auxilie a criar mecanismos para mudar sua realidade e superar as
sequelas deixadas pelo processo de submissão às situações de violência.
(HIRIGOYEN, 2006).

O psicólogo, independente, da abordagem ou método escolhido para


realizar esse tipo de atendimento, deverá primeiramente criar um “rapport” e um
vínculo terapêutico com a vítima, fazendo com que ela se sinta num ambiente
seguro e confiável, pois, somente desta forma, ela conseguirá compartilhar as
experiências vividas que lhe causaram sofrimento. (SOARES, 2005; PIMENTEL,
2011).

223
Outro objetivo do atendimento psicológico às vítimas é fazer com que elas
resgatem sua condição de sujeito, bem como sua autoestima, seus desejos e
vontades, que ficaram encobertos e anulados durante todo o período em que
conviveram em uma relação marcada pela violência. Desta forma, elas poderão
ter coragem para sair da relação que, durante muito tempo, tirou delas a
condição de ser humano, tornando-as alienadas de si mesmas. Este é um
processo que continua ativo durante um longo período no psiquismo da mulher,
mesmo que ela já tenha colocado um ponto final na relação. Pois, no período em
que sofreu as violências, o parceiro a desqualificava de todas as formas, através
da violência psicológica e moral. (HIRIGOYEN, 2006; SOARES, 2005).

A introjeção das mensagens impostas pelo seu agressor fez com que sua
autoestima se tornasse cada vez menor, fazendo-a se sentir cada vez mais como
um objeto, deixando de ser um sujeito dotado de vontades e saberes
(HIRIGOYEN, 2006; SOARES, 2005).

De acordo com Bastos (2009) a escuta do terapeuta quando feita de forma


adequada e ativa, é um fator de facilitação do auto expressão da pessoa em
atendimento psicológico, mas escutar não é o mesmo que ouvir. Quando a
pessoa diz estar ouvindo algo, isto se remete, ao próprio fato de estar
conseguindo a partir do seu aparelho auditivo assimilar sons. Quando se fala em
escuta, fala-se mais do que simplesmente ouvir. A escuta é quando, além de
ouvir, nós prestamos atenção naquilo que está sendo dito, esta é uma atenção
flutuante, ou seja, que não se prende a um determinado ponto da fala do outro,

224
mas sim, no todo do que está sendo dito. A escuta ativa prende a atenção do
profissional que o faz prestar mais atenção e curiosidade sobre o que está por
vir na fala do sujeito. Quando se utiliza a escuta ativa o psicólogo pode fazer
intervenções inesperadas, que faça com que o sujeito pense de forma diferente
da que havia pensado até então.

No trabalho feito com as mulheres vítimas de violência é fundamental que


o psicólogo faça uma escuta ativa. “É preciso ajudá-las a verbalizar, a
compreender sua experiência e, então, levá-las a criticar essa experiência” (p.
183). Pois, a partir da compreensão e da ampliação da consciência de suas
experiências, a mulher conseguirá se proteger da violência, bem como resgatar
sua identidade. (HIRIGOYEN, 2006).

É necessário que o profissional tenha paciência e saiba ou aprenda a lidar


com a frustração. Se ele possui um papel muito ativo na psicoterapia, querendo
que a mulher elabore e realize mudanças, a seu modo e seu tempo, poderá
encontrar dificuldades para conduzir o tratamento e, inclusive, fazer que com que
a mulher se sinta pressionada a ponto de desistir do processo terapêutico. O
ritmo do trabalho feito com mulheres vítimas de violência, muitas vezes, é mais
lento, e marcado por altos e baixos. As mulheres, mesmo durante o tratamento,
podem vir a reatar o relacionamento com o agressor. Neste momento, o
psicólogo deverá tomar cuidado para não julgar esta decisão a seu próprio modo.
É um trabalho que exige do profissional muita paciência, pois a mulher precisa
mudar sua visão a respeito de fenômenos que foram naturalizados por ela.
(HIRIGOYEN, 2006).

225
Segundo Hirigoyen (2006), existem algumas etapas que devem ser
seguidas no processo terapêutico com mulheres que já foram ou são vítimas de
violência doméstica. O primeiro passo da psicoterapia é fazer com que a mulher
enxergue a violência sofrida tal qual ela é. Muitas mulheres possuem dificuldades
para perceber que se encontram numa relação perpetuada pela violência. Até
pelo fato de já terem tomado a violência sofrida como algo natural,
principalmente, quando se trata da violência psicológica, que ocorre de forma
mais sutil o que dificulta sua identificação. A partir do momento em que a mulher
reconhece a violência sofrida, que este tipo de comportamento é abusivo e traz
sofrimentos para sua pessoa ela terá capacidade de mobilizar recursos para sair
dessa situação.

A mulher que foi vítima de violência, em muitos casos, é transformada em


abjeto pelo seu companheiro e depois por ela mesma que aceita e introjeta de
forma passiva aquilo que o homem diz a seu respeito. O psicólogo fará o papel
de auxiliar a mulher a perceber que ela experienciou uma situação de violência
praticada pelo seu companheiro ou ex-companheiro, mas que a culpa não foi
dela. Muitas mulheres justificam a ação praticada pelo homem culpando-se ou
atribuindo a causa da violência a fatores externos a ele. Contudo, isto é um dos
objetivos dos homens violentos. Eles negam a responsabilidade pelo ato
agressivo e tentam de todas as formas fazer com que a mulher acredite que a
culpa foi dela. (HIRIGOYEN, 2006).

226
Muitas vítimas possuem dificuldade para reconhecer a violência como
algo fora do padrão normal de relacionamento. Muitas se perguntam se a atitude
do parceiro foi uma violência ou não. Uma das intervenções que o psicólogo
poderia fazer seria questionar a pergunta da vítima, a fim de fazer com que ela
mesma pense e chegue a sua conclusão. Uma boa pergunta seria: “Se você
fizesse a mesma coisa, como é que seu cônjuge reagiria?”. (HIRIGOYEN, 2006).

A psicoterapia se diferencia do atendimento psicossocial em grupo ou


individual, pois, na psicoterapia, o principal objetivo é ampliar a consciência da
significação dada pela vítima às agressões do parceiro, do processo de negação
e repressão de experiências, que podem acirrar o sofrimento e o conflito com o
outro. Já na intervenção psicossocial o objetivo é empoderar a vítima para
transformar ou sair da situação de violência, descobrindo formas de lutar pelos
seus direitos, realizar seus desejos e objetivos de vida. (TENÓRIO, comunicação
pessoal, 28/10/2012).

Na psicoterapia, o psicólogo precisa adotar uma postura ativa e mostrar


para a mulher de maneira clara, que as atitudes aparentemente normais do
parceiro, que lhe causaram algum tipo de vergonha, ou insegurança, ne verdade
são de caráter violento. (TENÓRIO, comunicação pessoal, 28/10/2012).

Nesse contexto, o psicólogo não deve adotar uma postura neutra, pois as
mulheres vítimas de violência buscam apoio e assistência. O terapeuta pode
intervir solicitando ao paciente que nomeie aquilo que é agressivo para ele e fale
como se sente diante de um comportamento agressivo, sem negar suas
emoções, pois, assim, o paciente consegue sair do bloqueio emocional. Esta
intervenção auxilia o paciente a dar nome à violência sofrida, bem como, a
reconhecer suas emoções que durante muitos anos foram negadas e reprimidas.
Auxilia no processo de construção do sujeito, como ser no mundo. (HIRIGOYEN,
2006).
227
Outra etapa do processo terapêutico é fazer com que a mulher não se
sinta responsável ou culpada pela violência sofrida. Pois o parceiro, utilizando-
se de vários tipos de manipulação, a fez acreditar que a culpa é dela. Na
psicoterapia o caminho é fazer com que a pessoa se sinta responsável pelo
próprio destino. No atendimento à vítima, o trabalho também será feito desta
forma, evidenciando as possibilidades de mudança que a pessoa vitimada pode
fazer em relação ao agressor e isso só depende dela. (HIRIGOYEN, 2006).

Na psicoterapia, o objetivo é trabalhar para que as vítimas se sintam livres


de uma culpa que não é delas. Para que isso seja feito, a vítima deve saber que
quando se encontra numa relação de violência a dificuldade de reagir é maior,
porque ela se encontra sob influência e manipulação do outro, o que impede a
percepção da realidade tal como ela é. Quando a mulher consegue enxergar que
ela não é culpada, que na verdade é vítima e quem deve se responsabilizar pela
relação violenta é o parceiro, as soluções começam a aparecer. (HIRIGOYEN,
2006).

228
No entanto, a atuação do psicólogo deve ter esse formato quando a
relação conjugal violenta é assimétrica. Isto é, o homem assume, visivelmente,
o papel de dominador e a mulher de dominada. Nesse papel, a mulher se sente
frágil e impotente diante de seu agressor, submetendo-se a este e introjetando
a culpa que é dele. Nesse contexto, a mulher vivencia uma situação de impasse,
pois embora esteja sofrendo na relação, a possibilidade de separação também
é insuportável, devido ao sentimento de incapacidade para reconstruir sua vida
sem o parceiro. Na violência conjugal assimétrica, a vítima, geralmente, mantém
uma relação de codependência em relação ao agressor, tornando-se
indispensável o resgate da autoestima, autoconfiança e autonomia através de
um processo de conscientização de si mesma, de suas necessidades, desejos,
potencialidades e capacidade para transformar sua vida e promover sua
autorrealização independente do outro. (TENÓRIO, comunicação pessoal,
28/10/2012).

No contexto da violência a mulher possui uma autoestima baixa, não


acredita em si mesma, pois aprendeu durante anos a ser submissa, sem
autonomia para tomar decisões e fazer escolhas por conta própria. É esse o
fenômeno do assujeitamento que deverá ser trabalhado na psicoterapia. Uma
das possibilidades de realizar esse trabalho é pedir para que ela faça listas
contendo seus pontos positivos e suas conquistas diante da vida. Desta forma,
ela perceberá que é capaz de alcançar novos objetivos, terá possibilidades de
pensar em novos sonhos e metas para sua vida. É um processo de libertação,
de reconquista e reconhecimento. A pessoa consegue superar o sofrimento

229
psíquico quando possui uma boa autoimagem, quando tiveram na infância boas
experiências afetivas, produzindo o sentimento de segurança e confiança em si
mesma. Para conseguir mudar sua história a mulher precisa, primeiramente,
aceitar a história que construiu até o momento. É a partir da aceitação de si
mesma e da sua história que ocorrem as possibilidades de mudança subjetiva.
(HIRIGOYEN, 2006).

Outro aspecto importante a ser trabalhado durante o processo terapêutico


é aprender a estabelecer limites. Em um relacionamento marcado pela violência,
onde o homem exerce seu poder e dominação sobre a mulher, esta fica
impossibilitada de reagir e colocar seus limites. Portanto, uma etapa importante
do processo é ensinar a mulher a impor suas vontades. Quando a mulher
demarca seus limites de forma clara, o parceiro os compreende e percebe que
não pode ultrapassá-los. Na terapia, isso não acontece do dia para a noite, é um
processo longo, no qual as mudanças podem ser percebidas aos poucos. “Dizer
eu não quero permite retomar o poder. É importante ser senhora das suas
escolhas.” (p.187). A mulher precisa reconhecer seu próprio limite para
estabelecê-los. Algumas se perguntam se amam o agressor o suficiente.
Contudo, a questão não é o amor. A questão é se apesar do amor, o
relacionamento nos faz bem. Se amamos algo que para nossa saúde física,
psíquica e mental nos é destrutivo, qual caminho devemos escolher?
(HIRIGOYEN, 2006).

Quando a mulher se encontra num processo de psicoterapia ela começa


a recuperar sua capacidade crítica sobre as coisas que são boas ou ruins para
ela. Percebem quando começa a ocorrer uma violência e quando o homem é
violento e percebe também que estes comportamentos do homem servem para
esconder seus próprios medos e fragilidades. “A submissão cessa quando a
vítima se conscientiza de que, se não ceder, o outro não terá nenhum poder”.
(HIRIGOYEN, 2006, p.188).

Trabalhado esses aspectos acima, poderá ser feito com o paciente, uma
análise da sua história individual, a fim de compreender em quais momentos da
sua vida ela se tornou vulnerável a este tipo de relacionamento e criar
possibilidades de mudanças subjetivas.

230
É importante analisar e compreender se existem na mulher traços de
dependência emocional. Assim como uma pessoa pode torna-se dependente de
substâncias entorpecentes como álcool ou drogas. A mulher pode se tornar
dependente do parceiro agressor. A codependência pode ser compreendida
como “uma condição emocional, psicológica e comportamental que se
desenvolve como resultado da exposição prolongada de um indivíduo a – e a
prática de – um conjunto de regras opressivas que evitam a manifestação aberta
de sentimentos e a discussão direta de problemas pessoais e interpessoais”. É
importante compreender se a mulher possui características codependentes
porque quando se descobre o problema é possível encontrar uma solução, bem
como direcionar o tratamento da psicoterapia. (BEATTIE, 1992).

Muitos desses procedimentos também são aplicados no atendimento


psicossocial individual e de grupo, a diferença é que nesse tipo de atendimento
as questões emocionais ligadas a situações mal resolvidas no passado e os
mecanismos de defesa que dificultam a consciência dos motivos que a fazem
permanecer na relação violenta não são trabalhados, como acontece no
atendimento psicoterápico individual.

No acompanhamento psicológico com a mulher, vítima de violência


doméstica, o psicólogo deve ajudá-la a transformar sua autoimagem e a resgatar
sua autoestima, que durante a relação violenta pode ter sido minada com
sentimentos de menos valia, impotência, incapacidade, culpa e insegurança.
Outra questão importante que o psicólogo deve trabalhar com a vítima é a
ampliação da consciência, para que ela perceba os motivos que a fazem

231
continuar na relação, que a fazem permanecer fixada no algoz. O profissional
deve ajudá-la a identificar quais são as perdas e os ganhos que ela tem ao
continuar fixada na relação. Outro aspecto importante a ser trabalhado é auxiliar
a vítima a mobilizar energia, para sair da situação de submissão e do papel de
dominada no qual se encontra. Para isso a vítima precisa mudar sua postura
diante do agressor ou reconstruir sua vida longe dele. (TENÓRIO, 2012)

232
REFERÊNCIA:
- e-publicacoes.uerj.br/index.php/revispsi/article/view/42223/29270
- http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-71822008000300018
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%20Capa%20de%20Brito%20Lopes.pdf

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