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Para além da pedra e cal: por uma concep¢ao ampla de patriménio cultural Marta Cecitta Lonores Fonseca A imagem que a expresso “patriménio histérico ¢ artistico” evoca entre as pessoas é a de um conjunto de monumentos antigos que devemos preservar, ou porque constituem obras de arte excepcionais, ou por terem sido palco de eventos marcantes, referidos em documentos e em narrativas dos historiadores. Entretanto, é forgoso reconhecer que essa imagem, construfda pela politica de patriménio conduzida pelo Estado por mais de sessenta anos, est longe de refletir a diversidade, assim como as tensdes ¢ os conflitos que caracterizam a produgao cultural do Brasil, sobretudo a atual, mas também a do passado. Quando se olha, por exemplo, a Praga XV, no centro do Rio de Janeiro, um dos icones do patriménio histérico nacional, a evocagao mais ébvia é a do poder real, suscitada pelo Pago Imperial, sede da Corte. Ao fundo, a antiga catedral, hoje igreja de Nossa Senhora do Carmo, atesta a importancia, no Brasil colonial c imperial, do poder da Igreja. Esses sdo testemunhos materiais imponentes, tanto do ponto de vista da ocupacdo ¢ permanéncia no espago da cidade, quanto dos padrées estéticos hegeménicos, valorizados como expressdes de cultura 4 época do tombamento desses bens pelo SPHAN. Essa Ieitura da Praga XV, no entanto, esté longe de evocar plenamente o passado, a sociedade da época e a vida que se desenvolvia naquele espago. Poucos foram os registros que, como os deixados por Debret, Hildebrandt (FuNpa¢Ao..., 2000) € outros, captaram ainda a presenga, nesses espagos, de mercadores, escravos domésticos, negros de servico ¢ alforriados, enfim, da sociedade DP&A editora Para além da pedra e cal... 57 complexa e multifacetada que por ali circulava. Era, sobretudo, 0 olhar distante dos viajantes estrangeiros, movido menos pela necessidade de construir uma imagem ideal, em moldes europeus, do pats, que pelo interesse em documentar 0 que lhes parecia peculiar, ¢ préprio daquclas terras, que costumaya “incluir” na paisagem os “excluidos”, nao apenas daqueles espagos, que também ocupavam, mas da meméria coletiva. O exemplo da Praga XV € significativo. Nesse local nao ¢ possivel encontrar nenhuma marca ou mengao, atualmente, & presenga constante dos escravos pegando 4gua no Chafariz do Mestre Valentim, que lé ainda permanece apenas como mera extensio do Paco Imperial. Se, como pesquisas histéricas vem comprovando, © Rio de Janeiro foi uma cidade quase africana durante a primeira metade do século XIX! essa informagao nao ficou registrada nos bens que ali séo identificados como patriménio cultural brasileiro, nem na leitura que deles fazem os érgaos de preservacao. Isso foi agravado pela falta de documentagao sobre essa vertente da histéria do Brasil. Mesmo em felacao a centros histéricos, como o da cidade de Goids, tombado pelo Iphan em 1978, portanto jd em fase mais recente da politica federal de preservacao, a perspectiva nao é muito diferente. Ha muito tempo realiza-se, na Semana Santa, nessa cidade, a Procissio do Fogaréu, de que as igrejas, ruas ¢ pragas sto elementos fundamentais, assim como os rituais, a indumentéria e, sobretudo, as formas espectficas de participagao da comunidade, Entretanto, a condi¢ao de patriménio cultural da nacao é atribufda, pelo érgao federal encartegado, apenas a0 conjunto urbano edificado, além de alguns iméveis isolados. Embora fagaz, pois sé se realiza uma ver no ano, a Procissio do Fogaréu confere aesse cendrio ¢ a cidade um significado particular, indissocidvel de sua identidade como patriménio cultural. ‘ Conforme noticia publicada no Jornal do Brasil, em 9 de agosto de 2001, & pégina 19, com o tftulo “Livres, mas sem dircito & meméria”, em que é mencionado 0 livro da historiadora norte-americana Mary Karasch, intitulado A vida dos eseravos no Rio de Janeiro: 1808-1850. 58 Memoria e patriménio: ensaios contemporaneos | Na cidade de Belém, cujo centro histérico & beira do rio Amazonas tem uma feigio tio portuguesa, € imposstvel deixar de perceber, no mercado Ver-o-Peso, a forte presenca indigena nos produtos trazidos da selva e, especialmente, nos modos de usé-los, também transmitidos pelos vendedores. No espaco do mercado, coexistem edificagdes de valor arquiteténico ¢ artistico, como os mercados do Peixe e da Carne, com tendas e esteiras em que ficam expostas ervas, cheiros e outras tantas mercadorias; € um lugar onde “se concentram e se reproduzem prdticas culturais coletivas”? referentes aos grupos que, nesse espago, efetuam trocas materiais e simbélicas. Trata-se de um raro exemplo de local em que coexistem claramente marcas de culturas téo distintas como a portuguesa ¢ a indigena, sendo que apenas as primeiras foram identificadas ¢ reconhecidas, via tombamento, como patriménio cultural brasileiro.? Também a Feira de Caruaru, em Pernambuco, é um lugar com as mesmas caracterfsticas do mercado paraense, com a diferenga de que, no seu perimetro, néo ha qualquer edificacao que possa ser tombada pelos critérios reguladores desse instrumento de protecio. Em barracas iguais a diversas outras, € nos espacos entre elas, convivem as manifestag6es mais variadas da cultura nordestina rural ¢ urbana: 0 artesanato da regiao, suvenires para turistas, comidas tipicas, bandas de pifanos, folhetos de cordel. A Feira de hoje é, sem divida, muito menos homogénea, ou “auténtica”, como muitos diriam, que a de cingiienta anos aurds, de cardcer essencialmente rural. Todavia, impossivel negar que continue a ser uma referéncia da cultura nordestina, cultura que incorpora cada vex mais intensamente outras influéncias que ndo apenas as da tradicao sertaneja. Um lugar como esse, porém, sem nenhuma 2 Citagio de trecho relative ao Livro das lugares, no inciso IV do § 1° do artigo 12 ~ Decreto 3.551, de 4 de agosto de 2000. > Também na cidade de Belém ¢ em municipios vizinhos ocorre anualmente, no segundo domingo de outubro, 0 Cirio de Nazaré, considerado a maior festa da cristandade pelo niimero de pessoas que retine, ¢ que também nao figura no tepertério oficialmente constituido do patriménio cultural brasileiro. iin pedro @ cal... 59 Hlificwio ou paisagem de “excepcional valor”, nao apresentava, 416 4 ealigto do Decreto 3.551/2000,* os requisitos para integrar « iniverso de bens considerados pelo Estado patriménio histérico © artistico in ional. Nu verdade, do conjunto de bens e manifestagées culturais titudos acima, apenas uma pequena parte foi, até agora, integrada 40 patrimdnio cultural brasileiro, constitufdo por legislagéo federal: o Pago Imperial, 0 Chafariz e a antiga Catedral, na Praga XY; 0 conjunto arquiteténico e paisagistico Ver-o-Peso, em Belém; © a» edificag6es jf mencionadas em Goids. Sao esses os bens passiveis dle tombamento, ¢ a leitura deles feita, como incorporados ao patriménio, esta centrada em seus aspectos arquiteténicos, integrando marginalmente dados histéricos e andlises de sua relagao com a cidade ¢ a paisagem. A Constituicéo Federal de 1988 (2003), em seu artigo 216, entende como patriménio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ouem conjunto, portadores de referéncia & identidade, 4 agao, & meméria * © Decreto 3.551, de 4 de agosto de 2000, “institui o Registro de Bens Culeurais de Natureza Imaterial que constituem patriménio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patriménio Imaterial ¢ dé outras providéncias”, Sobre os trabalhos que culminaram na publicagao do decreto, ver publicacio O registro do patriménio imaterial— dossit final das atividades da Comissio e do Grupa de Trabalho do Patrimonio Imaterial, produzida ¢ disuibuida pelo Instituto do Patriménio Histérico ¢ Artistico Nacional e pela Secretaria do patriménio, Museus ¢ Artes Plisticas do Ministério da Cultura (Fonseca, 2000) Uma proposta de leitura mais rica dos ambientes natural e construfdo, inserindo nessa leitura sua dimens&o histérica, foi feita pelo arquiteto do Iphan, Luis Fernando Franco, na Informagao 135/86. Cabe notar que o Guia dos bens rombados (Carrazzoni, 1987), apesar do que o titulo sugere, abrange apenas os bens iméveis inscritos nos Livros do Tombo do Iphan (que, na verdade, constituem a esmagadora maioria dos bens tombados), apresenta basicamente informagées de cardter formal, estilistico © arquitetnico. Esse guia de grande utilidade foi elaborado com base na consulta aos processos de tombamento, © que sé ver a confirmar o tipo de leitura feita pelos técnicos do Iphan, predominantemente arquitetos. 60 Meméria e patriménio: ensaios contemporaneos dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: 1.as formas de expressio; IL. 0s modos de criar, fazer ¢ viver; IIL, as criagées cientificas, artisticas e tecnolégicas; IV, as obras, objetos, documentos, edificagées e demais espagos destinados a manifestagdes artistico-culturais: V. 08 conjuntos urbanos e sitios de valor histérico, paisagfstico, artistico, arqueolégico, paleontoldgico, ecolégico ¢ cientifico. Portanto, de acordo com o entendimento do legislador, 0 conjunto de bens passiveis de ser tombados (artigo 216, incisos IV e V) constitui apenas parte® do que, no texto constitucional, é considerado patriménio cultural brasileiro. Para esses, aplica-se um tipo de protecao legal que visa a assegurar sua integridade fisica, podendo inclusive limitar-se, com essa finalidade, o direito individual & propriedade. Entretanto, 0 que deveria ser uma das modalidades de formagio desse patriménio terminou por ser, durante mais de sessenta anos, a tinica disponivel.” No caso da maior parte das “criagdes cientificas, artisticas ¢ tecnolégicas” (inciso III), sobretudo as de autoria individual, existem mecanismos préprios de registro, transmissio, protegao ¢ difusao. As leis de /propriedade intelectual e de direito autoral foram desenvolvidas com essa finalidade, assim como o depésito legal de publicag6es na Biblioteca Nacional. Embora nao tenham como objetivo a atribuicao de valor cultural aos bens a que se apliquem, esses instrumentos e praticas terminam por contribuir para a construgao do patriménio cultural brasileiro, na medida em que identificam essas criagbes e asseguram 0 acesso a elas, trazendo garantias e beneficios a seus produtores. 6 Em depoimento ao Conselho Federal de Cultura, em janeiro de 1968, Rodrigo Melo Franco de Andrade (1987, p. 71) diz que, entre “os bens a proteger de valor arqueolégico, histérico, arcistico ¢ natural [...] avultam, porém, os monumentos arquiteténicos, como nticleo primacial de nosso patriménio”. A protegao dos monumentos arqueoldgicos e pré-histéricos € objeto de legisla especifica, a Lei 3.924, de 26 de julho de 1961. 0 Para além da pedra @ cal... 61 No caso especifico das criagées artisticas de cardter erudito, so muitas as instincias de atribuicéo de valor cultural, como premiagées; referéncias em textos de histéria da arte ou de critica; integracdo em colegées particulars, principalmente de museus; divulgagao em exposigdes etc. Esses critérios de atribuicao de valor foram mencionados por Mario de Andrade (1981, p. 39-54), em seu anteprojeto para a criagio do Servico do Patriménio Artistico Nacional, claborado em 1936. No entanto, hé toda uma gama de bens ¢ manifestagées culturais significarivos como referéncias de grupos sociais “formadores da sociedade brasileira” (Brast, 2003, p. 146-147) a que nao se podia aplicar, até recentemente, nenhum instrumento legal que os constitufsse como patriménio. Isso significa que muitos deles poderiam desaparecer sem deixar nenhum vestigio, seja material, seja na meméria da nagao, pelo fato de nao terem sido considerados “de valor excepcional”, conforme determina 0 artigo 1° do Dec.-Lei 25, de 30 de novembro de 1937, que cria o tombamento, ou por tratar de manifestacées de cardter processual, a que nao se aplica qualquer forma de protecéo que tenha por objetivo a fixacao de determinada feicao fisica do bem.* A limitagao, durante mais de sessenta anos, dos inserumentos disponiveis de acautelamento, teve como conseqiiéncia produzit uma compreensao restritiva do termo “preservagao”, que costuma ser entendido exclusivamente como tombamento. Tal situagao veio reforcar a idéia de que as politicas de patriménio sio intrinsecamente conservadoras ¢ elitistas, uma vez que os critérios adotados para 0 ® Cabe lembrar o processo de tombamento do Santuirio de Bom Jesus da Lapa, na Bahia, que foi arquivade porque 0 relator, 0 antropélogo Luts de Castro 0 da edificacio e seu uso, a pritica de “um culto de cunho popular” que tinha uma dindmica prépria envolvendo “ampliagio, renovacso © mesmo inovacao” do espago. Argumento semelhante foi invocade como objego ao tombamento do Terzeizo da Casa Branca, em 1984, mas, nesse caso, o bem foi inscrito no Livro histérico e no Livro arqueolégico, esnogrdfico e paisagistico. Farias, em 1968, via um conflito entre a conserva 62 Meméria e patriménio: ensaios contemporaneos tombamento terminam por privilegiar bens que referem os grupos sociais de tradigao européia, que, no Brasil, sdo aqueles identificados com as classes dominantes. A consciéncia desses problemas, que também ocorrem, com as devidas diferengas, na grande maioria dos estados que desenvolvem politicas de patriménio, tem levado, nos foros nacionais e internacionais como a Unesco, a solucées diferenciadas, visando a ampliar a abrangéncia de tais politicas.? Esse movimento é relativamente recente e, na Unesco, € fruto tanto da critica ao eurocentrismo da nogdo tradicional de patriménio hist6rico e artistico quanto da reivindicagao de patses e grupos de tradigdo nado-européia, no sentido de verem reconhecidos os testemunhos de sua cultura como patriménio cultural da humanidade. No Brasil, a publicagdo do Decreto 3.551/2000, insere-se numa trajetéria a que se vinculam as figuras cmbleudticas de Mario de Andrade e de Aloisio Magalhaes, mas em que se incluem também as sociedades de folcloristas, os movimentos negros ¢ de defesa dos direitos dos indigenas, as reivindicacées dos grupos descendentes de imigrantes das mais variadas procedéncias, enfim, os “excluidos”, até entéo, da “cena” do patriménio cultural brasileiro, montada a partir de 1937." Contribuem, ainda, para essa reorientagéo nao sé o interesse de universidades e institutos de pesquisa em mapear, documentar ¢ analisar as diferentes manifestacdes da cultura brasileira, como também a multiplicagdo de érgdos estaduais ¢ federais de cultura, que se empenham em construir, via ” Ver Lévi-Strauss (inédito). O antropélogo acompanhou ativamente os trabalhos de preparacao da proposta do decreto, desde o Seminario de Fortaleza, em 1997. Ver também 0 texto publicado no dossié, citado na nota 4. *° Essa observagao nao deve ser entendida como uma critica 2 agdo passada do SPHAN, o que significaria um anacronismo (FONSECA, 1997, p. 20). lei) tla pedra e cal... eS Jiiindnio, a “identidade cultural” das regides em que estao sittindos,"! Hate ‘1 ampliagao do conceito de patriménio cultural ¢ a uma maior Abninyéncia das politicas ptiblicas de preservacdo, ficam no ar algumas penguntas: 0 que se entende por “patriménio imaterial”, se € que fm expressdo ndo constitui uma contradigao em termos? Qual o objetivo do Estado ao criar um instrumento especifico para preservar manifestagdes que nao podem e nao devem ser congeladas, sob 0 isco de, assim, interferir-se em seu processo espontineo? E como evitar que esse registro venha constituir um inscrumento “de segunda classe”, destinado as culturas materialmente “pobres”, porque a seus (estemunhos nao se reconhece o estatuto de monumento?!” nto, ante a existéncia, hoje, de um contexto favoravel a Nao se pretende aqui responder a essas perguntas, mas apenas algumas considerac6es que auxiliem no mampeamento dessa nova representag4o, mais ampla, do patriménio cultural brasileiro, © a tracar politicas inclusivas, que contribuam para aproximar 0 pattiménio da cultura produzida no pais. faze A fungdo de patriménio e as politicas publicas A questao do patriménio imaterial, ou, conforme preferem outros, patriménio intangfvel, tem presenga relativamente recente nas politicas de patriménio cultural. Em verdade, é motivada pelo interesse em ampliar a nogao de “pacriménio histérico e artistic”, entendida como repertério de bens, ou “coisas”, ao qual se atribui "1 Um exemplo é 0 projeto “Conhecer para preservar”, apresentado ao prémio Rodrigo Melo Franco de Andrade, em 1997, pela Secretaria de Estado da Educacao ¢ Cultura do Tocantins, que se prop6e a fazer um inventério em nove cidades histéticas do estado recém-criado, aliando assim & emancipacio politica uma “emancipacao” simbélica. A propésito, um imporvante material para o estudo do patriménio cultural de nacureza imaterial no Brasil é constitufdo pelos trabalhos apresentados aos prémios Stlvio Romero, do Centro Nacional de Folclore ¢ Cultura Popular da Funarte, ¢ Rodrigo Melo Franco de Andrade, do Iphan. 12 A “Carta de Veneza”, de 1964, estende a nogao de monumento histérico “também 3s obras modestas que tenham adquirido com 0 tempo uma significacao cultural” (Cartas ParriMoniats, 1995, p. 109).

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