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John Locke

Durante os tumultos políticos do século XVII, quando o primeiro programa libertário se


desenvolveu, o argumento mais influente pelos direitos naturais nasceu da pena do intelectual John
Locke. Ele expressou a opinião radical de que o governo tem a obrigação moral de servir as pessoas
protegendo sua vida, liberdade e propriedade; explicou o princípio dos freios e contrapesos para
limitar o poder do governo; e defendeu o governo representativo e o estado de direito. Denunciou a
tirania e insistiu que, quando o governo viola os direitos individuais, as pessoas têm o direito
legítimo de rebelar-se. Estas opiniões foram expressas de forma mais completa em seu
famoso Segundo tratado sobre o governo civil, e eram tão radicais que ele jamais ousou assiná-lo
(ele assumiu a autoria apenas em seu testamento). Os escritos de Locke tiveram muita importância
na inspiração dos ideais libertários da revolução americana, um exemplo que inspirou povos por
toda a Europa, a América Latina e a Ásia.
Thomas Jefferson considerava Locke, junto com seu compatriota Algernon Sidney, o mais
importante pensador da liberdade. Locke ajudou a inspirar as ideias radicais de Thomas Paine sobre
a revolução. Ele entusiasmou George Mason. De Locke, James Madison extraiu seus princípios
mais fundamentais a respeito da liberdade e do governo. As obras de Locke fizeram parte da
educação autodidata de Benjamin Franklin, e John Adams acreditava que tanto meninos quanto
meninas deveriam aprender sobre Locke. O filósofo francês Voltaire chamou Locke de “o homem
da maior sabedoria. O que ele não viu com clareza, não tenho esperanças de jamais ver”.
No entanto, ao começar a desenvolver suas ideias, Locke era um acadêmico de Oxford sem
nenhuma distinção. Ele tinha uma breve experiência em uma missão diplomática fracassada e era
um médico sem as credenciais tradicionais e com apenas um paciente. Sua primeira grande obra não
foi publicada até seus cinquenta e sete anos. Asma e outras doenças crônicas o perturbavam.
Não havia muito na aparência de Locke que pudesse sugerir grandeza. Era alto e magro. Segundo o
biógrafo Maurice Cranston, tinha um “rosto longo, nariz grande e olhos suaves e melancólicos”.
Embora tenha tido um caso amoroso que “roubou-me o uso da razão”, Locke morreu solteiro.
Mesmo assim, alguns de seus contemporâneos notáveis tinham grande respeito por Locke. O
matemático e físico Isaac Newton apreciava sua companhia. Locke ajudou o quaker William Penn a
recuperar sua boa reputação quando ele se tornou um fugitivo político, assim como Penn conseguira
fazer Locke ser perdoado quando ele havia sido um fugitivo político. O famoso médico inglês Dr.
Thomas Sydenham descreveu-o como “um homem que, pela agudeza de seu intelecto, pela firmeza
de seu discernimento, pela simplicidade, ou seja, pela excelência de seus modos, posso seguramente
declarar ter, entre os homens de nossa época, poucos iguais e nenhum superior”.
John Locke nasceu em Somerset, Inglaterra, em 29 de agosto de 1632. Era o filho mais velho de
Agnes Keen, filha de um curtidor de couro de uma cidade pequena, e John Locke, um advogado
puritano de poucas posses que trabalhava como assistente de juízes de paz.
Locke tinha dezessete anos quando forças a serviço do parlamento enforcaram o rei Carlos I,
abrindo caminho para a ditadura militar de Oliver Cromwell. Em 1652, após se formar na
prestigiada Westminster School, Locke ganhou uma bolsa para estudar em Christ Church, na
Universidade de Oxford, que formava principalmente clérigos. Em novembro de 1665, através de
seus contatos em Oxford, Locke foi enviado para uma missão diplomática em Brandenburgo. A
experiência foi reveladora, porque Brandenburgo tinha uma política de tolerância de católicos,
calvinistas e luteranos, e havia paz.
Durante o verão de 1666, o rico e influente Anthony Ashley Cooper, Conde de Shaftsbury, visitou
Oxford. Lá ele conheceu Locke, que então estudava medicina. Cooper, um defensor da tolerância
religiosa (exceto para católicos), sofria de um cisto no fígado que corria o risco de infecção e
inchaço, e convidou Locke para ser seu médico pessoal. Locke mudou-se para um quarto da Exeter
House, mansão de Cooper em Westminster, em Londres. Quando a infecção de Shaftsbury piorou,
Locke administrou um tratamento bem-sucedido.
Shaftsbury continuou a empregar Locke para analisar a tolerância religiosa, a educação, o comércio,
e outros assuntos relacionados, e, entre outras questões, Locke se opôs aos esforços do governo para
restringir as taxas de juros. Locke participava de praticamente todas as atividades de Shaftsbury.
Shaftsbury formou o partido Whig, e Locke escreveu cartas para ajudar a influenciar as decisões do
parlamento. Shaftsbury ficou preso por um ano na Torre de Londres; e então ele ajudou a passar a
lei de Habeas Corpus (1679), que tornava ilegal a detenção pelo governo de qualquer pessoa contra
a qual não houvesse acusação formal, e especificava que ninguém poderia ser levado a julgamento
duas vezes pela mesma acusação. Shaftsbury apoiou leis de exclusão, cujo objetivo era retirar o
irmão católico do rei da linha de sucessão.
Em março de 1681, Carlos II dissolveu o parlamento, e logo ficou claro que ele não pretendia
convocá-lo novamente. Consequentemente, a rebelião era a única forma de prevenir o absolutismo
da dinastia Stuart. Shaftsbury era o oponente mais perigoso do rei, e Locke estava a seu lado. Ele
preparou um ataque contra Patriarcha, or The Natural Power of Kings Asserted “Patriarcha, ou a
afirmação do poder natural dos reis”, de Robert Filmer, que alegava que Deus sancionava o poder
absoluto dos monarcas. O ataque era arriscado, pois poderia facilmente ser alvo de processos
judiciais se fosse considerado um ataque contra o rei Carlos II. O autor de panfletos James Tyrrell,
que Locke havia conhecido em Oxford, deixou anônimo seu próprio ataque contra Filmer,
Patriarcha Non Monarcha or The Patriarch Unmonarch’d [“Patriarcha Non Monarcha ou O
patriarca não é monarca”], que apenas deixava implícito o direito de se rebelar contra tiranos.
Locke trabalhou em seu quarto na Exeter House de Shaftsbury, cujas paredes eram cobertas de
estantes de livros, baseando-se em sua experiência política. Ele escreveu um tratado que atacava a
doutrina de Filmer, negando a alegação de que a Bíblia sancionava tiranos e de que os pais tinham
autoridade absoluta sobre seus filhos. Ele então escreveu um segundo tratado, que apresentava um
grandioso argumento em prol da liberdade e do direito do povo de se rebelar contra tiranos. Os
princípios eram substancialmente derivados de Tyrrell, mas Locke os levou a suas consequencias
mais radicais: um ataque explícito contra a escravidão e uma defesa da revolução.
Conforme Carlos II aprofundava sua campanha contra os rebeldes, Shaftsbury fugiu para a Holanda
em novembro de 1682, e lá faleceu, dois meses mais tarde. Em 21 de julho de 1683, é provável que
Locke tenha visto a Universidade de Oxford queimar livros considerados perigosos em Bodleian
Quadrangle. Foi a última queima de livros na Inglaterra. Locke possuía alguns dos títulos
condenados e, temendo que seu quarto fosse revistado, escondeu os rascunhos de seus dois tratados
com Tyrrell. Ele deixou Oxford, visitou propriedades rurais que havia herdado de seu pai, e fugiu
para Rotterdam em 7 de setembro. O governo inglês tentou obter sua extradição, para que fosse
julgado, e, presumivelmente, enforcado. Ele adotou o nome de Dr. Van den Linden, e assinava suas
cartas como “Lamy” ou “Dr. Lynne”. Prevendo que o governo pudesse interceptar sua
correspondência, ele protegeu seus amigos referindo-se a eles por números ou nomes falsos.
Carlos II morreu em fevereiro de 1685, e seu irmão assumiu o trono, tornando-se Jaime II. O novo
rei passou a promover o catolicismo na Inglaterra. Substituiu os anglicanos em cargos da igreja e da
polícia por católicos, e nomeou oficiais católicos para o exército. Tudo isso foi uma ameaça para os
ingleses, que prezavam sua independência tanto do Papa quanto dos reis católicos.
Enquanto isso, Locke, ainda na Holanda, trabalhava em sua obra-prima, Ensaio sobre o
entendimento humano, que exortava as pessoas a basear suas convicções em observações e na
razão. Ele também escreveu uma carta em defesa da tolerância religiosa (exceto para ateus, que não
poderiam fazer juramentos legalmente válidos, e católicos, leais a uma potência estrangeira).
Em junho de 1688, Jaime II anunciou o nascimento de um filho – e surgiu a ameaça de uma
sucessão católica. Os Tories, ingleses defensores do absolutismo monárquico, adotaram ideias
revolucionárias dos Whigs. O holandês Guilherme de Orange, concordando em reconhecer a
supremacia do parlamento, atravessou o Canal da Mancha em 5 de novembro de 1688, e, em um
mês, Jaime II fugiu para a França. Esta Revolução Gloriosa garantiu uma sucessão protestante e a
supremacia do parlamento sem violência.
Locke retornou à Inglaterra, e ao longo dos doze meses seguintes suas principais obras foram
publicadas. De repente, ele se tornou conhecido. Sua Carta acerca da tolerância, publicada em
outubro de 1689, opunha-se à perseguição e pedia tolerância para anabatistas, independentes,
presbiterianos e quakers. “A Magistratura”, declarou Locke, “não deve proibir a pregação ou
profissão das opiniões especulativas de nenhuma igreja, porque elas não têm relação alguma com os
direitos civis dos súditos. Se um católico romano acredita que aquilo que os demais homens
chamam de pão é realmente o corpo de Cristo, ele não lesa o próximo de forma alguma. Se um
judeu não acredita que o Novo Testamento é a palavra de Deus, ele não altera em nada os direitos
civis dos homens. Se um pagão duvida de ambos os Testamentos, ele não deve por conta disso ser
punido como um cidadão pernicioso”. A Carta de Locke inspirou respostas, e ele escreveu duas
outras cartas em 1690 e 1692.
Os dois tratados de Locke sobre o governo também foram publicados em outubro de 1689 (com a
data de 1680 na folha de rosto). Embora filósofos posteriores os tenham ridicularizado porque
Locke baseava seu pensamento em noções arcaicas a respeito de um estado de natureza, seus
princípios fundamentais permanecem. Locke se preocupava com o poder arbitrário, que “se torna
tirania, não importando se tal poder é exercido por um ou por muitos”. Ele defendia a tradição do
direito natural, cuja história remonta aos judeus antigos: a tradição segundo a qual os governantes
não podem, legitimamente, fazer o que bem entenderem, porque as leis morais se aplicam a todos.
“A razão, que é esta lei”, declarou, “ensina a toda a humanidade, que precisa apenas consultá-la,
que, sendo todos iguais e independentes, nenhum homem deve prejudicar outro em sua vida, saúde,
liberdade e posses”. Locke descreveu o império da lei: “viver segundo uma lei estável, comum a
todos daquela sociedade, e criada pelo Poder Legislativo da sociedade; Liberdade de seguir minha
própria vontade em todas as coisas sobre as quais a lei não disponha, e não estar sujeito à vontade
inconstante, incerta, desconhecida e arbitrária de outro homem”.
Locke explicou que a propriedade privada é absolutamente essencial para a liberdade: “Todo
homem tem direito de propriedade sobre sua própria pessoa. A ela ninguém tem direito algum além
dele próprio. O trabalho de seu próprio corpo, podemos dizer, pertence a ele... O grande e principal
fim, portanto, pelo qual os homens unem-se em sociedades e submetem-se a governos é a
preservação de sua propriedade”. Para Locke, as pessoas legitimamente transformam propriedade
comum em propriedade privada ao misturar seu trabalho com ela, melhorando-a. Marxistas
gostavam de afirmar que isso significa que Locke acreditava na teoria do valor-trabalho, mas ele se
referia à origem da propriedade, e não do valor.
Ele insistia que o povo é soberano, e não seus governantes. O governo, escreveu, “não pode nunca
ter o poder de tomar para si mesmo o todo ou parte da propriedade dos súditos sem seu
consentimento. Pois isso seria efetivamente deixá-los sem propriedade alguma”. Ele explicita ainda
mais este raciocínio: os governantes “não podem recolher impostos sobre a propriedade do povo
sem o consentimento do povo, expresso por eles mesmos ou seus representantes”. Ele então afirma
o direito explícito à revolução: “Quando os legisladores tentam tomar e destruir a propriedade do
povo, ou reduzi-lo à escravidão sob poder arbitrário, eles se colocam em estado de guerra com o
povo, que está então desobrigado de qualquer obediência e deixado ao refúgio comum contra a
força e a violência dado por Deus a todos os homens. Portanto, sempre que o legislativo transgredir
esta regra fundamental da sociedade, e, por ambição, medo, loucura ou corrupção, tentar tomar para
si ou pôr nas mãos de qualquer outro um poder arbitrário sobre as vidas, liberdades e posses do
povo; por essa quebra de confiança ele abre mão do poder que o povo lhe havia concedido para fins
bastante contrários, e ele retorna ao povo, que tem o direito de retomar sua liberdade original”.
Para garantir seu anonimato, Locke negociou com o impressor através de um amigo, Edward
Clarke, que pode ter sido a única pessoa a conhecer a verdadeira identidade do autor. Locke negou
rumores de que ele seria o autor, e implorou a seus amigos para que mantivessem suas especulações
em segredo. Ele cortou relações com aqueles que, como James Tyrrell, insistiam em se referir a ele
como o autor. Locke destruiu os manuscritos originais e todas as referências às obras em seus
escritos. Ele só reconheceu a autoria por escrito em um anexo a seu testamento, assinado poucas
semanas antes de sua morte. Ironicamente, os dois tratados quase não receberam atenção durante
sua vida. Ninguém nem se deu ao trabalho de atacá-los, como aconteceu com as obras assinadas de
Locke sobre religião.
A assinatura de Locke apareceu no Ensaio sobre o entendimento humano, que foi publicado em
dezembro de 1689 e fez dele o principal filósofo da Inglaterra. O ensaio desafiou a doutrina
tradicional de que o aprendizado consiste apenas da leitura de textos antigos e da absorção de
dogmas religiosos. A compreensão do mundo, argumentava ele, exige observação. Ele exortava as
pessoas a pensarem por si mesmas, usando a razão como guia. Este ensaio se tornou uma das obras
filosóficas mais reeditadas e influentes.
Em 1693, Locke publicou Alguns pensamentos referentes à educação, oferecendo muitas ideias que
soam tão revolucionárias hoje como soaram na época. Ele declarou que o objetivo da educação é a
liberdade. Ele acreditava que dar um exemplo pessoal é a forma mais eficiente de ensinar valores
morais e habilidades fundamentais, e por isso recomendava que as crianças recebessem sua
educação em casa. Ele tinha objeções às escolas estatais e apelava aos pais para que estimulassem o
gênio único de cada criança.
Francis e Damaris Marsham, amigos de Locke, convidaram-no a passar seus últimos anos em
Oates, sua casa de campo em North Essex, a cerca de vinte e cinco milhas de Londres. Ele tinha um
quarto no térreo, e um estúdio que continha a maior parte de sua biblioteca de 5.000 volumes. Ele
insistia em pagar: uma libra por semana para si mesmo e seu empregado, mais um xelim por
semana para seu cavalo. A saúde de Locke piorou gradualmente, e em outubro de 1704 ele mal
conseguia levantar-se e vestir-se. Por volta das três horas da tarde de sábado, 28 de outubro, ele
faleceu, sentado em seu estúdio em companhia de Lady Marsham. Tinha setenta e dois anos. Foi
enterrado no cemitério de High Laver.
Durante a década de 1720, dois autores ingleses radicais, John Trenchard e Thomas Gordon,
publicaram as Cato’s Letters [“Cartas de Catão”], uma série de ensaios publicados em jornais
londrinos que tiveram influência direta sobre os pensadores americanos. A influência de Locke
estava mais aparente na declaração de independência, na separação constitucional de poderes, e na
Bill of Rights [declaração dos direitos dos cidadãos].
Na mesma época, Voltaire, o espirituoso crítico da intolerância religiosa, promovia as ideias de
Locke na França. O Barão de Montesquieu desenvolveu as ideias de Locke sobre a separação de
poderes. A doutrina de direitos naturais de Locke foi incorporada à Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, mas sua crença na separação de poderes e na santidade da propriedade
privada nunca fincou raízes na França.
Depois Locke praticamente desapareceu do debate intelectual. Uma reação conservadora tomou a
Europa conforme o discurso dos direitos naturais passava a ser associado à rebelião e às guerras
napoleônicas. Na Inglaterra, o filósofo utilitarista Jeremy Bentham ridicularizou os direitos naturais,
propondo que as políticas públicas fossem determinadas pelo princípio da maior felicidade para o
maior número. Mas tanto conservadores quanto utilitaristas ficaram intelectualmente indefesos
quando governos exigiram mais poder para roubar, prender, e até assassinar pessoas, pretensamente
para fazer o bem.
No século XX, a ficcionista e filósofa Ayn Rand e o economista Murray Rothbard, entre outros,
voltaram a fazer vigorosas defesas morais da liberdade baseadas nos direitos naturais, e
estabeleceram um padrão moral significativo para determinar se as leis são justas. Eles inspiraram
milhões com a máxima de que todas as pessoas, em todos os lugares, nascem com direitos iguais à
vida, à liberdade, e à propriedade. Apoiavam-se nos ombros de John Locke.

Herbert Spencer
O lendário empreendedor Andrew Carnegie ansiava por conhecer o segredo do progresso humano.
Durante o início da década de 1880, ele o encontrou ao juntar-se a um grupo de discussão de
Manhattan. Ali ouviu falar do filósofo Herbert Spencer, que tinha escrito largamente sobre o
assunto. A liberdade, explicava Spencer, é a chave, pois o mercado livre, sem a intervenção do
governo, gera fortes incentivos para que as pessoas continuamente melhorem suas vidas.
Parece que Carnegie ficou maravilhado ao perceber que seu trabalho diário servia a um propósito
muito mais elevado, promovendo uma ordem social benéfica. Adotou para si o lema “Tudo está
bem, já que tudo cresce melhor”.
Quanto mais Carnegie lia o trabalho de Spencer, mas queria conhecer o filósofo. “Poucos homens
desejaram conhecer alguém com a intensidade com que eu queria conhecer Herbert Spencer”,
lembraria Carnegie. Por meio de um amigo comum, o liberal clássico inglês John Morley, recebeu
uma carta de apresentação e programou-se para fazer uma viagem com Spencer em um barco a
vapor de Liverpool para Nova Iorque.
Carnegie descobriu que Spencer, que ele imaginara um “grande e calmo filósofo meditando, como
um Buda, sobre todas as coisas”, era um ser humano. Spencer, então com seus sessenta anos,
tinham uma altura moderada e era razoavelmente magro. Embora estivesse começando a ficar
calvo, seu cabelo permanecia castanho, e era volumoso nas laterais. Ele reclamou da dificuldade
para dormir. Sofria de mazelas nervosas. Facilmente criticava o trabalho alheio, e era sensível a
críticas a si próprio, mas honesto o suficiente para reconhecer seus erros. Parecia infeliz por viver
sozinho, lamentando que “alguém que, como eu, que se devota a livros sérios, precisa contentar-se
com o celibato; a não ser, de fato, que consiga uma esposa com meios suficientes para os dois... E
mesmo então os cuidados e problemas familiares provavelmente se mostrarão fatais para seus
projetos”.
Em junho de 1891, Carnegie supreendeu Spencer ao lhe enviar um presente como sinal de seu
apreço. Spencer escreveu para Carnegie: “Estava tão surpreso quanto perplexo ao entrar na minha
sala, na tarde de ontem, e ver um piano magnífico encostado na parede... Por todo esse tempo eu
simpatizara com sua opinião sobre o uso da riqueza, mas nunca me ocorrera que eu seria um dos
beneficiados pela prática das suas convicções”.
Carnegie era um dos milhões que foram inspirados por Spencer, tanto na época como nos dias de
hoje. Ele revitalizara o grito de guerra revolucionário pelos direitos naturais, que tinha sido
desprezado pelo filósofo inglês Jeremy Bentham e seus seguidores, os utilitaristas. Spencer mostrou
porque a teoria da evolução, documentada pelo naturalista Charles Darwin, significava que o
progresso humano acontecia espontaneamente desde que as pessoas fossem livres, e que o governo
ficasse fora do caminho. Ele permaneceu um dos mais apaixonados defensores da liberdade,
enquanto o socialismo e o militarismo ganhavam força por toda a Europa.
Spencer foi um autor prolífico, que escreveu livros e artigos sobre biologia, educação, ética,
psicologia, sociologia, políticas públicas, entre outros temas. Tinha o talento de cunhar expressões
marcantes, como por exemplo a expressão “sobrevivência do mais apto”. Da década de 1860 até sua
morte no dia 8 de dezembro de 1903, as edições autorizadas dos livros de Spencer, segundo relatos,
venderam 368.755 cópias apenas nos Estados Unidos – um número notável para um autor sério.
Oliver Wendell Holmes, juiz da Suprema Corte, duvidava de que “com a exceção de Darwin, algum
autor da língua inglesa tenha afetado mais todo nosso modo de pensar sobre o universo”.
Uma mente ferozmente independente
Spencer nasceu em Derby, na Inglaterra, no dia 27 de abril de 1820. Seu pai, George Spencer,
esforçou-se por anos para ter uma carreira. Tentou repetidamente trabalhar com manufatura de
tecidos, e depois com a venda de roupas , mas foi à falência. Ganhava pouco dinheiro dando aula
em escolas. Amigos sugeriram-lhe trabalhar em um curtume ou tornar-se clérigo. A mãe de Spencer,
Harriet Holmes, não teve uma vida mais fácil: apesar de ter tido cinco filhos e quatro filhas, apenas
Herbert viveu além dos dois anos idade.
Ele desenvolveu uma mente ferozmente independente por meio dos seus pais que eram quakers. “A
individualidade era pronunciada em todos os membros da família”, lembraria, “e um individualismo
pronunciado é necessariamente mais ou menos divergente em relação à autoridade. Uma natureza
independente e autônoma resiste a todo governo que não seja declarada e eqüitativamente limitado”.
Sua educação formal era limitada: três anos em uma escola primária e, depois, por um tempo
desconhecido (provavelmente breve), ele freqüentou a escola de seu tio William, e teve como tutor,
por períodos intermitentes, seu tio Thomas, que era clérigo. Relata-se que aos onze anos de idade
parecia estar caminhando por conta própria, freqüentando palestras sobre ciências. Quando seu pai
ensinava física e química, o rapaz o ajudava a preparar os experimentos. Educou a si próprio sobre
plantas e animais. Ficou bom em desenhar esquemas de coisas. Aprendeu muito ao ouvir os amigos
dos seus pais que visitavam, e conversavam sobre política, religião, ciência, e sobre o certo e o
errado. Seu pai participava da Derby Philosophical Society, que tinha uma biblioteca modesta de
livros e periódicos de ciência, e Spencer vasculhava esse material.
Tinha quinze anos quando seu primeiro artigo – sobre barcos – foi publicado em uma pequena
revista. “Meu artigo me parecia muito bom”, ele observou na época. “Gritei e dei cambalhotas pelo
quarto... E, agora que comecei, pretendo continuar a escrever coisas”.
Enquanto isso, Spencer precisava de um salário fixo. O setor de construção de trilhos ferroviários
estava em expansão e, em novembro de 1837, ele conseguiu um emprego para desenhar as plantas
de engenharia para a London and Birmingham Railway. Sempre habilidoso, também inventou
vários mecanismos de medição relacionada aos trilhos de ferro, e escreveu sete artigos para a Civil
Enginner’s and Architect’s Journal. Depois de quatro anos, tinha poupado algum dinheiro e decidiu
parar por um tempo para tentar uma carreira como escritor. Participou de reuniões de grupos
favoráveis ao livre-comércio e contrários à escravidão e a uma religião estatal. Escreveu uma dúzia
de artigos sobre filosofia política para o The Nonconformist, um periódico radical, que depois
seriam reimpressos em um panfleto chamado de On the Proper Sphere of Government [“A esfera
própria do governo”].
Spencer ainda estava muito longe de conseguir sustentar-se escrevendo, então voltou para trabalhar
com as empresas ferroviárias por mais três anos. Continuou lendo todo tipo de livros e manteve- se
informado sobre as questões públicas. Em novembro de 1848, lhe ofereceriam um cargo de editor
na Economist, um periódico defensor do livre comércio, onde trabalhou por cinco anos. Um dos
editores era Thomas Hodgskin, um anarquista filosófico que pode ter-lhe influenciado.
Social Statics
Spencer usou seu tempo livre para escrever seu primeiro livro, Social Statics [“Estática Social”],
que foi publicado em 1851. Apresentava uma entusiástica defesa moral e prática dos direitos
individuais que chamava “liberdade comum”. Todos deveriam ser livres para fazer o que quiserem,
insistia Spencer, desde que não interferissem na liberdade das outras pessoas. Conseqüentemente,
ele defendia a abolição de todas as restrições comerciais, subsídios dos pagadores de impostos para
igrejas, colônias no além mar, licenças médicas, estabelecimento de moedas oficiais, bancos
centrais, escolas estatais, assistência social governamental, monopólio estatal dos correios e 46
obrigações governamentais.
Spencer mostrou como o interesse próprio leva as pessoas não apenas a prosperar – como Adam
Smith explicara – mas a melhorar a vida de inúmeras formas. Por exemplo, Spencer disse isso sobre
sistema sanitário: “Embora todos saibam que a taxa de mortalidade tem baixado gradualmente e que
o valor da vida é maior na Ingalterra do que em qualquer outro lugar, e embora todos saibam que a
higiene das nossas cidades é maior agora do que em qualquer outra época, e que nossos arranjos
sanitários desenvolvidos espontaneamente sejam muito melhor do que os que existem no
Continente, onde o mau cheiro de Colônia, os esgotos abertos de Paris, os encanamentos de Berlim
e as calçadas miseráveis das cidades germânicas mostram os resultados da administração estatal, e,
embora todos saibam dessas coisas, ainda se presume perversamente que apenas a administração
estatal pode remover os últimos obstáculos à saúde pública.
O capítulo mais famoso era o XIX: “O direito de ignorar o Estado”. Mesmo durante o auge de
liberalismo clássico, era preciso coragem para declarar que: “Se cada homem tiver a liberdade de
fazer o que quiser, desde que ele não infrinja a liberdade comum de nenhum outro homem, então ele
está livre para cortar seus laços com o Estado, abrindo mão de sua proteção e se recusando a pagar
para sustentá-lo. É auto-evidente que, agindo desse modo, ele não faz nada que viole a liberdade
dos outros, pois sua posição é passiva e, como tal, ele não pode ser um agressor”.
Social Statics estabeleceu Spencer como um sucesso emergente e, em julho de 1853, ele renunciou
ao seu cargo na Economist, determinado a tornar-se um escritor independente. Vendia artigos
para Westminster Review, Edinburgh Review, Fortnightly Review, British Quarterly, e outras
publicações influentes. Aplicava suas idéias tanto à ciência como à ética e às políticas públicas.
Financeiramente, Spencer passou por apertos e, por algum tempo, buscou um trabalho confortável
no governo que lhe desse tempo para escrever, mas felizmente nunca se tornou um burocrata.
Orgulhoso, rejeitou a oferta generosa de John Stuart Mill para cobrir suas despesas. Estava
determinado a ganhar a vida no mercado de trabalho. Em 1860, Spencer teve a idéia de integrar a
ética, biologia e sociologia em uma extensa obra filosófica – e financiando o empreendimento
pedindo a assinantes que pagassem um halfcrown por cada fascículo, enviado várias vezes ao ano.
Pediu aos amigos famosos que escrevessem textos de recomendações, e conseguiu que 450 pessoas
se tornassem assinantes. Entre os primeiros estavam intelectuais americanos respeitados como o
editor Horace Greeley, o historiador George Bancroft, o clérigo Henry Ward Beecher, o botânico
Asa Gray, o cientista político Francis Lieber, e o abolicionista Charles Sumner. Spencer começou a
trabalhar em First Principles [“Primeiros princípios”], um livro sobre o desenvolvimento da vida.
Infelizmente, como em todo negócio editorial, Spencer passou a perder alguns assinantes. Quando
não tinha mais renda para manter o projeto, anunciou que iria interrompê-lo. Mas, em 1865, o Dr.
Edward Youmans, palestrante e fundador da revista Popular Science, que se tornara um grande fã
de Spencer, ajudou-o a arrecadar 7.000 dólares de amigos americanos, o que foi suficiente para que
ele continuasse com o empreendimento.
Repetidamente, Spencer enfatizava quão extraordinário era o progresso humano alcançado
naturalmente quando as pessoas tinham liberdade. Vejam essa passagem do Principles of
Sociology [“Princípios de sociologia”]:
“A transformação dessa terra em uma superfície capaz de produzir comida, tratada, cercada,
drenada e coberta por aparelhos de agricultura, foi realizada por homens que trabalhavam por lucros
privados, não pelo planejamento legislativo... Vilarejos, vilas e cidades cresceram
significativamente por causa do desejo dos homens em satisfazer suas vontades... Pela cooperação
espontânea, os homens criaram canais, estradas de ferro, telégrafos, e outros meios de comunicação
e distribuição... O conhecimento se desenvolveu e transformou-se em ciência, que se tornou tão
vasta em sua totalidade que ninguém mais é capaz de apreender nem uma décima parte dela, que
agora é quem guia inúmeras atividades produtivas, e que foi fruto do trabalho de indivíduos
movidos por suas próprias inclinações, e não por uma agência governamental... E suplementando
essas realizações vêm as inúmeras empresas, associações, sindicatos, clubes, empresas subsidiárias,
institutos filantrópicos, cultura, arte, diversão, assim como as inúmeras instituições que anualmente
recebem milhões em doações e mensalidades, todas essas nascendo da cooperação livre dos
cidadãos. E, ainda assim, quase todos os olhares estão tão hipnotizados que se fixam na
contemplação dos afazeres dos ministros e parlamentares, de modo que não enxergam essa
maravilhosa organização que se tem desenvolvido ao longo de milhares de anos sem a ajuda do
governo – aliás, na verdade, apesar dos empecilhos governamentais”.
Spencer se antecipou ao trabalho de F. A. Hayek, ganhador do prêmio Nobel, que lembrou ao
mundo porque a ação espontânea do mercado, e não o planejamento central, é responsável pelas
mais impressionantes realizações da humanidade.
Spencer teve mais influência nos Estados Unidos, onde as pessoas estavam animadamente
construindo uma nova civilização. Em 1864, a Atlantic Monthly dizia que: “Mr. Herbert Spencer já
é uma força no mundo... [Ele] representa o espírito científico da época”. Seus princípios, concluía a
reportagem, “tornaram-se os fundamentos visíveis de uma sociedade aprimorada”. William Graham
Sumner, sociólogo de Yale, tornou-se o maior defensor americano das idéias de Spencer.
Apesar dos esforços heróicos de Spencer, a opinião pública passou cada vez mais a favorecer a
intervenção do governo no final do século XIX. Talvez porque o governo tinha se tornado tão mais
limitado que já não parecia mais ser uma ameaça pública. Mais pessoas passaram a imaginar que o
governo poderia fazer o bem. Spencer respondeu escrevendo quatro fortes artigos que afirmavam os
princípios fundamentais do laissez faire e atacavam a intervenção do governo publicados
na Contemporary Review em 1884. Eles despertaram o que ele chamou de “um ninho de vespas na
forma de críticas vindas dos periódicos esquerdistas”. Em julho de 1884, os artigos foram reunidos
e publicados em um livro The Man Versus The State[“O homem contra o Estado”].
Foi uma performance magnífica, com Spencer martelando seus adversários – os socialistas em
particular – com fatos dramáticos que mostravam porque novas leis sempre saem pela culatra. Ele
contou como os tetos das taxas de juros impostos pelo governo, supostamente criados para ajudar as
pessoas, sempre dificultam a obtenção de empréstimos. Documentou como as bem intencionadas
autoridades de Londres demoliram casas para 21 mil pessoas, construíram novas casas para 12 mil e
deixaram 9 mil desabrigadas – antecipando ataques idênticos aos que seriam usados contra o
programa do governo americano de “renovação urbana” durante o século XX. O jornalista
americano Henry Hazlitt considerou que esses foram “uma das mais fortes e influentes defesas de
um governo limitado, laissez faire e individualismo jamais escritas”.
Spencer aparentemente ficou deprimido com as acusações de que ele era superficial e insensível e,
em 1892, aprovou uma edição revisada de Social Statics sem o capítulo XIX original, “O direito de
ignorar o Estado”. Essa concessão não acalmaria seus críticos. O juiz Oliver Wendell Holmes,
defendendo as regulamentações trabalhistas de Nova York em 1905, dois anos depois da morte do
filósofo, julgou necessário denunciá-lo explicitamente: “A décima-quarta emenda não implica na
implementação de Social Statics do senhor Herbert Spencer”.
Ainda assim, o século XX, o mais sangrento da história, mostrou que Spencer foi um profeta
fenomenal. Com mais força e clareza do qualquer pessoa durante sua vida, ele alertou que o
socialismo levaria à escravidão. Condenou o militarismo muito antes que a corrida armamentista
européia explodisse na Primeira Guerra Mundial. Ele antecipou os males das políticas de assistência
social que destroem os incentivos para que as pessoas pobres se tornem independentes. Previu o
fracasso colossal da educação estatal. Afirmou que os indivíduos privados eram responsáveis pelo
progresso humano. Ele teria ficado entusiasmado com o ressurgimento mundial da economia de
mercado em nossos dias, provando sua convicção de que, onde o governo menos interferir, você
verá a decência e o aprimoramento nas vidas das pessoas comuns.

Thomas Paine

Thomas Paine estimulou pessoas comuns a defender suas liberdades como ninguém fizera antes.
Escreveu as três obras literárias mais vendidas do século XVIII, que inspiraram a Revolução
Americana, produziram uma batalha histórica pelos direitos individuais e desafiaram o poder
corrupto das igrejas governamentais. Sua perspectiva radical e seu estilo dramático e direto tocavam
igualmente artesãos, servos, soldados, comerciantes, agricultores e trabalhadores em geral. Até hoje,
a obra de Paine cospe fogo.
Seus ataques devastadores à tirania podem ser comparados aos ataques épicos de Voltaire e
Jonathan Swift; mas, ao contrário desses autores, não havia sequer uma gota de cinismo em Paine.
Ele sempre foi sério em sua busca pela liberdade. Estava seguro de que as pessoas livres
cumpririam o seu destino.
Provocou controvérsias explosivas. A monarquia inglesa o empurrou para o exílio e o condenou à
morte se retornasse algum dia. O s líderes igualitaristas da Revolução Francesa o colocaram em
uma prisão em Paris –escapou por pouco de ser morto na guilhotina. Em razão de suas críticas à
religião, ele foi evitado e ridicularizado em seus últimos anos nos Estados Unidos.
Porém, seus colegas fundadores dos Estados Unidos reconheceram o raro talento de Paine.
Benjamin Franklin o ajudou no início de sua carreira na Filadélfia e o considerou um “filho adotivo
da política”. Paine foi assistente de George Washington e colega de Samuel Adams. James Madison
foi seu fã. James Monroe ajudou a livrá-lo da prisão da França. Thomas Jefferson foi seu melhor
amigo.
Paine era espinhoso como um cacto – vaidoso, indelicado, desorganizado – mas continuava a
encantar as pessoas. Mary Wollstonecraft, pioneira no individualismo feminista, escreveu: “ele nos
deixava a todos admirados com sua memória, suas observações inteligentes a respeito dos homens e
de seus costumes, suas incontáveis anedotas sobre os índios americanos, sobre a guerra americana,
sobre Franklin, sobre Washington e até sobre sua Majestade, de quem contava vários fatos curiosos
com humor e generosidade.”
Apesar de sua grande inteligência, Paine tinha algumas idéias insensatas. Para remediar as injustiças
da monarquia inglesa, ele propôs um governo representativo que decretaria uma taxação
“progressiva”, educação “universal”, assistência “temporária” aos pobres e pensões para os idosos.
Ele supunha ingenuamente que essas políticas atingiriam exatamente o objetivo proposto, e não
passava pela sua cabeça que o poder político corrompe o governo representativo da mesma forma
que corrompe a qualquer outro governo.
Ainda assim, na mesma obra que contém essas propostas – Rights of Man [Os Direitos do Homem],
Parte II – Paine reafirmou repetidamente seus princípios libertários. Por exemplo: “Grande parte da
ordem reinante na humanidade não é efeito de nenhum governo. Ela tem origem nos princípios da
sociedade e na constituição natural dos homens. Ela existia antes do governo e existiria se a
formalidade do governo fosse abolida.”
A “musa de fogo”
Paine tinha um metro e setenta e oito centímetros e uma estrutura corporal atlética. Vestia-se de
forma simples. Tinha um nariz longo e intensos olhos azuis. Seu amigo Thomas Clio Rickman
observou que “seu olhar, cuja intensidade não poderia ser transmitida por um pintor, era pleno,
brilhante e singularmente penetrante. A ‘musa de fogo’ estava presente ali.”
Thomas Paine nasceu em 29 de janeiro de 1737, em Thetford, na Inglaterra. Sua mãe, Francis
Cocke, veio de uma família anglicana local de certa reputação. Seu pai, Joseph Pain, era agricultor e
sapateiro quaker. Embora Thomas Paine não fosse um quaker praticante, sofreu com a intolerância
direcionada aos quakers.
Paine demorou algum tempo para encontrar seu caminho. Deixou a escola aos 12 anos e tornou-se
aprendiz de um fabricante de espartilhos em Thetford, mas não gostou do trabalho. Dugiu de casa
duas vezes. Na segunda vez, em abril de 1757, juntou-se à tripulação do King of Prussia, navio
corsário que não encontrou muito que pilhar. Tentou costurar espartilhos novamente, depois foi
professor de inglês e pastor metodista independente. Essa experiência de falar em público
certamente lhe deu alguma idéia do que é necessário para comover uma grande quantidade de
pessoas.
A decisão mais enigmática de Paine foi se tornar um cobrador de impostos sobre consumo. Ele foi
demitido, conseguiu outro emprego igual, e foi demitido mais uma vez, depois de escrever um
panfleto defendendo um aumento de salários. Paine testemunhou a habilidade dos contrabandistas,
o ressentimento contra os cobradores de impostos e a difusão da corrupção governamental.
Exceto por alguns breves intervalos, Paine foi um “lobo solitário”. Acreditando que o casamento
deveria ser baseado em amor e não no status social ou na fortuna, ele se casou com Mary Lambert,
uma empregada doméstica, em setembro de 1759, porém, depois de um ano, ela morreu enquanto
dava a luz a uma criança. Em março de 1771, ele se casou novamente, com Elizabeth Ollive, uma
professora de 20 anos. Enquanto tentava obter seu sustento como dono de mercearia e negociante de
fumo, ele foi a falência no início de 1774. A maioria de seus bens foram leiloados em 14 de abril.
Dois meses depois, Paine e sua esposa se separaram.
Enquanto isso, ele obtinha sucesso nas discussões sobre filosofia e política prática. Em Lewes,
Paine fazia parte do grupo de discussão Headstrong Club. O grupo se reunia semanalmente na
White Horse Tavern, onde Paine saboreava cerveja e ostras. Um dos membros era um republicano
fervoroso e defensor do rebelde libertário John Wilkes. As visões radicais libertárias de Paine
começavam a tomar forma.
Curioso intelectualmente, Paine gostava de passear por livrarias, comparecer a palestrar sobre
assuntos científicos e conhecer pessoas inteligentes. Ele auxiliou um astrônomo de Londres, que o
apresentou a Benjamin Franklin, que então trabalhava para expandir o comércio com a Inglaterra.
Franklin parece ter convencido Paine que ele poderia ter uma vida melhor nos Estados Unidos e
providenciou uma carta de apresentação para seu enteado na Filadélfia.
Chegada à América
Paine desembarcou no dia 30 de novembro de 1774. Ele alugou um quarto nas ruas Market e Front,
na esquina sudeste – de onde podia ver o mercado de escravos da Filadélfia. Ele passava seu tempo
livre em uma livraria operada por Robert Aiken. Paine deve ter impressionado o livreiro como
sendo um homem dinâmico e letrado, pois lhe foi oferecido o emprego de editor da nova publicação
de Aiken, The Pennsylvania Magazine.
Para Paine, essa experiência foi um campo de provas. Ele escreveu 17 artigos, podendo ter escrito
até 26, sempre assinando com pseudônimos como “Vox Populi”, “Justiça” e “Humanidade.” Ele
avançou sobre a controvérsia da futura relação dos Estados Unidos com a Inglaterra. Ele atacou
veementemente a escravidão e exigiu a emancipação imediata.
Então, veio a Batalha de Lexington, no amanhecer de 19 de abril de 1775. O major britânico John
Pitcairn ordenou que suas tropas atirassem nos milicianos americanos reunidos em frente de um
ponto de encontro, matando oito pessoas e ferindo dez. Paine, indignado, resolveu defender a
liberdade americana.
Bom senso
No início de setembro, ele começou a fazer anotações para um panfleto. Provavelmente, ele
começou a escrever por volta do dia primeiro de novembro. Ele trabalhava em uma mesa bamba,
rabiscando as palavras com uma pena de ganso num papel áspero. O manuscrito evoluía devagar
porque, para Paine, sempre foi difícil escrever. Ele discutia o rascunho que desenvolvia com o Dr.
Benjamin Rush, que conhecera na livraria de Aiken. O rascunho foi finalizado no início de
dezembro. Paine recebeu comentários do astrônomo David Rittenhouse, do fermentador Samuel
Adams e de Benjamin Franklin. Paine pensou em chamar seu panfleto de Plain Truth [A pura
verdade], mas o Dr. Rush recomendou um título mais simples, Common Sense [Bom senso].
Dr. Rush conseguiu que o panfleto fosse publicado por Robert Bell, um escocês que, na Filadélfia,
tinha se tornado um editor famoso, um leiloeiro ocasional e um partidário secreto da independência
americana. Custando 2 xelins, Bom senso, de 47 páginas – escrito anonimamente “por um inglês” –
foi publicado em 10 de janeiro de 1776. Paine cedeu seus direitos ao Congresso Continental.
Com uma prosa simples, corajosa e inspiradora, Paine lançou um ataque furioso sobre a tirania. Ele
denunciou os reis como um poder político inevitavelmente corrupto. Ele rompeu com pensadores
políticos anteriores quando faziam distinções entre as imposições do governo e a sociedade civil,
onde indivíduos levam vidas privadas produtivas. Paine imaginava uma “união continental”,
baseada nos direitos individuais. Ele respondeu objeções daqueles que temiam a ruptura com a
Inglaterra. Ele buscava uma declaração que incitasse as pessoas à ação.
Bom senso marcou com frases inesquecíveis. Por exemplo: “A sociedade é produzida a partir de
nossa vontade e o governo a partir de nossa maldade... O sol nunca brilhou sobre uma causa de
valor maior... Agora é hora de plantarmos a semente da união continental... Nós temos toda
oportunidade, toda inspiração à nossa frente, para criarmos a constituição mais nobre, mais pura, da
face da terra. Oh! Vocês que amam a humanidade! Vocês que se atrevem a se opor que não apenas à
tirania, mas ao tirano, se apresentem!... Nós temos em nosso poder a chance de fazer com que o
mundo comece de novo... O nascimento do novo mundo está em nossas mãos.”
A primeira edição se esgotou rapidamente. Logo, edições diferentes começaram a aparecer. Editoras
em Boston, Salem, Nowburyport, Nowport, Providence, Hartford, :Norwich, Lancaster, Albany e
Nova York lançaram novas edições. Após três meses, Paine estimava que mais de 120000 cópias
tinham sido impressas. Dr. Rush recordava que “os seus efeitos sobre as mentes americanas foram
súbitos e amplos. O livro era lido por homens públicos, repetido em clubes, declamado em escolas
e, em uma ocasião, lido no púlpito ao invés do sermão de um sacerdote em Connecticut.” George
Washington declarou que Senso Comum oferecia uma “doutrina profunda e um raciocínio
irrefutável.”
As idéias incendiárias de Paine saltaram fronteiras. Uma edição foi publicada em francês, em
Quebec. John Adams informou que “Senso Comum foi recebido na França e em toda Europa com
entusiasmo.” Havia edições em Londres, Newcastle e Edimburgo. Senso Comum foi traduzido para
o alemão e o dinamarquês e algumas cópias chegaram até a Rússia. Ao todo, mais ou menos 500
mil cópias foram vendidas.
Senso Comum mudou o clima político nos Estados Unidos. Antes de sua publicação, a maioria dos
colonialistas ainda acreditava que as coisas poderiam ser resolvidas com a Inglaterra. Então,
subitamente, esse panfleto precipitou debates onde um número cada vez maior de pessoas se
declaravam abertamente em favor da independência. O Segundo Congresso Continental pediu a
Thomas Jefferson que fizesse parte de um comitê de cinco pessoas que escreveriam a declaração
que Paine sugeria em Senso Comum.
“Senso Comum, de Thomas Paine,” refletiu Bernard Bailyn, historiador da Universidade de
Harvard, “é o mais brilhante panfleto escrito durante a revolução americana, e um dos panfletos
mais brilhantes já escritos em inglês. Como ele pode ter sido escrito por um quaker, um fabricador
de coletes falido, que ocasionalmente era professor, pastor e dono de mercearia, além de ter sido um
cobrador de impostos demitido duas vezes que, por acaso, atraiu a atenção de Benjamin Franklin na
Inglaterra, e que só chegou aos Estados Unidos quatorze meses antes da publicação de Senso
Comum, não se pode explicar, sem explicarmos o gênio em si.”
Quando a independência trouxe a guerra, Paine se alistou como secretário militar do General Daniel
Roberdau, mais tarde, do General Nathaniel Greene, e, mais ou menos no ano de 1776, ele esteve
com o General George Washington. Os americanos, mal treinados, mal pagos, geralmente servindo
apenas por um ano, foram derrotados pelos bem treinados soldados britânicos e pelos implacáveis
mercenários hessianos.
“Quanto mais difícil o conflito, mais glorioso é o triunfo”
Paine imaginava formas de aumentar o moral dos soldados. À noite, na fogueira do acampamento,
ele começou a escrever um novo panfleto. Quando retornou à Filadélfia, levou seu manuscrito
ao Philadelphia Journal, que o publicou em 19 de dezembro, como um ensaio de oito páginas,
chamado A crise americana. No natal de 1776, George Washington o leu para seus soldados as
linhas imortais de Paine: “São tempos como esses que testam as almas dos homens. O soldado
pouco comprometido e o patriota ocasional irão, nessa crise, evitar servirem seu país; mas aquele
que se levanta agora, merece o amor de homens e mulheres. A tirania, como o inferno, não é
facilmente derrubada; ainda assim, temos o consolo de que quanto mais duro for o conflito, mais
glorioso será o triunfo.” Dentro de algumas horas, os soldados, estimulados por Washington,
realizaram um ataque surpresa sobre os hessianos que dormiam em Trenton, dando aos americanos
uma preciosa vitória nessa batalha.
Quando a guerra revolucionária acabou, Paine já tinha escrito mais uma dúzia ensaios da Crise
americana. Eles abordavam questões militares e diplomáticas, sempre com Paine fornecendo
incentivos morais. No segundo ensaio, publicado em 13 de janeiro de 1777, Paine criou o nome
“Estados Unidos da América.”
Depois da rendição dos britânicos em Yorktown, Paine estava sem dinheiro e não sabia como iria se
sustentar. Ele queria uma pensão do governo pelo que tinha feito para ajudar na independência
americana. O estado de Nova York lhe doou uma fazenda de 300 acres em New Rochelle, a 45
quilômetros da cidade de Nova York, que pertencia a um britânico contrário à independência. O
congresso aprovou uma indenização de US$ 3000 a Paine, por despesas relacionadas à
independência que ele teria pago de seu bolso.
Então, ele teve a idéia de ganhar dinheiro com o crescente número de construções de pontes nos
Estados Unidos. Ele não encontrou patrocinadores americanos, então, sob recomendações de
Franklin, ele buscou apoio na França e na Inglaterra. Embora o projeto tenha fracassado, ele lhe
proporcionou entrar em contato com os liberais de mais destaque da época. Na França, ele se
reaproximou de Marquês de Lafayette, que tinha servido na Revolução Americana. Lafayette
apresentou Paine ao Marquês de Condorcet, um matemático francês e liberal influente. Na
Inglaterra, Paine conheceu o parlamentar radical Charles James Fox, além de Edmund Burke, um
parlamentar defensor da Revolução Americana e amigo do radical John Wilkes.
A explosão da Revolução Francesa, em julho de 1789, horrorizou Burke, que começou a escrever o
seu manifesto contra-revolucionário Reflexões sobre a revolução na França. Ele defendia a
monarquia e o privilégio aristocrático. O livro de Burke foi lançado em 1 de novembro de 1790, e
supostamente vendeu 20000 cópias em um ano. Logo apareceram versões francesas, alemãs e
italianas do livro.
Os direitos do homem
Enquanto isso, Paine, que vinha trabalhando em um novo livro sobre os princípios gerais da
liberdade, tomou conhecimento dos principais pontos do manifesto de Burke e decidiu revisar o seu
livro para transformá-lo em uma refutação. Ele se mudou para um quarto no Angel Inn, em
Islington, onde poderia se concentrar no projeto. Ele começou a trabalhar em 4 de novembro. Ele
trabalhou arduamente, às vezes, à luz de velas, por quase 3 meses. Ele terminou a primeira parte
de Rights of Man [Os direitos do homem] em 29 de janeiro de 1791 – seu aniversário. Ele
completava 54 anos. Carinhosamente, ele dedicou o trabalho a George Washington e o publicou no
dia do aniversário de Washington, 22 de fevereiro.
Enquanto Burke impressionou o público com sua prosa florida, Paine respondeu com um discurso
simples. Ele atacou ferozmente a tirania. Ele denunciou os impostos. Ele negou especificamente a
legitimidade moral da monarquia inglesa e da aristocracia. Ele declarou que indivíduos têm direitos,
independentemente do que as leis digam. Por séculos, as pessoas se resignaram à tirania e à guerra,
porém, Paine trouxe esperança de que esses demônios possam ser contidos.
Paine defendeu a Declaração dos Direitos do Homem e dos Cidadãos, promulgada na França, que
incluía um comprometimento com a propriedade privada. “O direito à propriedade é inviolável e
sagrado, e dele ninguém deverá ser privado, exceto em casos e necessidade pública evidente,
confirmada legalmente e sob a condição de uma indenização justa.”
A primeira edição se esgotou em três dias. A segunda, em horas. Houve uma terceira edição em
março de 1791 e uma quarta em abril. Aproximadamente, 200000 cópias foram vendidas na
Inglaterra, no País de Gales e na Escócia. Outras 100000 cópias foram vendidas nos Estados
Unidos.
Os direitos do homem convenceu muitas pessoas a apoiar a Revolução Francesa e a dramática
reforma na Inglaterra, e o governo reagiu com repressão. Os jornais pró-governo chamavam Paine
de “Tom, o louco”. Sacerdotes faziam sermões atacando Paine. As pessoas penduraram retratos de
Paine por toda Inglaterra. Em 17 de maio de 1792, o governo o acusou de calúnia subversiva, que
poderia o levar ao enforcamento. Cobradores de impostos saquearam o quarto de Paine. Ele correu
para Dover e embarcou em um barco para Calais em setembro de 1792. Um mandado de prisão
chegou à Dover 20 minutos depois.
Uma multidão entusiasmada o recebeu. Foi concedida a Paine a cidadania honorária da França e ele
foi eleito como representante de Calais na Convenção Nacional, que desenvolveria as reformas. Ele
não falava francês e ele várias vezes não conseguiu perceber como a situação política estava
mudando. Porém, ele sabia que era um aliado ideológico dos chamados Girondinos que eram a
favor de um governo republicano com poderes limitados.
Os seus adversários eram os cruéis e xenófobos Jacobinos. Inacreditavelmente, Paine foi
considerado suspeito porque tinha nascido na Inglaterra – mesmo que corresse o risco de ser
enforcado, caso voltasse para lá. No meio da noite anterior ao natal de 1793, a polícia Jacobina o
levou a uma prisão em Luxemburgo. Paine foi mantido em uma pequena cela solitária, sem
julgamento. Em 24 de julho de 1794, o promotor público adicionou o nome de Paine à lista de
prisioneiros que seriam guilhotinados, mas ele teve sorte. Por um engano, os guardas da prisão
ignoraram sua cela quando reuniam as vítimas da noite. Três dias depois, em 27 de julho de 1794,
as pessoas se cansaram do terror e guilhotinaram Robespierre, o mais fanático promotor da
violência jacobina, e o pior passou.
A idade da razão
Antes de Paine ser preso, ele iniciou seu trabalho mais controverso, Age of Reason [A idade da
razão], e continuou escrevendo, mesmo atrás das grades. Embora elogiasse a ética cristã, acreditasse
que Jesus fora um homem virtuoso, e se opusesse à campanha jacobina para suprimir a religião, ele
atacava a violência e as contradições de várias histórias bíblicas. Ele denunciava as ligações
incestuosas entre a Igreja e o Estado. Ele insistia que a revelação religiosa autêntica chega aos
indivíduos ao invés das igrejas estabelecidas. Ele defendia uma visão deísta de um Deus e uma
religião baseada na razão. Ele buscava uma política de tolerância religiosa.
A Idade da Razão teve um grande impacto, em parte, porque Paine o escreveu com seu estilo
simples e dramático, que despertava emoções fortes. O livro se tornou um Best Seller na Inglaterra
e os esforços do governo de censurá-lo só estimulou ainda mais a demanda. O livro foi muito
procurado na Alemanha, na Hungria e em Portugal. Houve quatro edições americanas em 1794, sete
em 1795 e mais duas em 1796. As pessoas formavam sociedades buscando promover os princípios
religiosos de Paine.
James Monroe, representante dos Estados Unidos na França exigiu que o governo francês julgasse
Paine ou o libertasse. Monroe foi eloqüente: “os cidadãos dos Estados Unidos não podem olhar para
a época de sua revolução sem se recordarem do nome de Thomas Paine, junto ao de outros distintos
patriotas. Os serviços que ele os prestou em sua luta pela liberdade deixaram um sentimento de
gratidão que nunca será apagado, já que continuam a merecer a reputação de um povo justo e
generoso.”
Em 6 de novembro, frágil e de barbas grisalhas, Paine foi enfim libertado. Em 1801, o Primeiro-
Cônsul Napoleão Bonaparte convidou Paine para jantar, esperando obter idéias para conquistar a
Grã-Bretanha. Paine o recomendou uma política de paz – a última coisa que Napoleão desejava
ouvir – e eles nunca mais se encontraram.
Paine retornou aos Estados Unidos em 1 de setembro de 1802. Ele tinha 65 anos. Um
correspondente de um jornal de Massachusetts observou: “Os anos foram mais duros sobre seu
corpo do que sobre sua mente. Seu corpo de curva ligeiramente à frente e mantém as mãos para trás
enquanto anda. Ele se veste de forma simples, como um agricultor, e aparenta estar bem em sua
pessoa... a sua conversa é extraordinariamente interessante; ele é alegre, tem bom humor e é cheio
de histórias engraçadas – a sua memória preserva toda a sua capacidade e sua mente é cativante.”
Paine foi objeto de ataque pessoas da imprensa federalista, mas se pronunciou a respeito de temas
controversos. Por exemplo, depois que Napoleão assumiu o controle da Louisiana em 1800, e o Rio
Mississipi foi fechado à navegação de navios americanos, os Federalistas desejavam uma guerra
contra a França. Paine encorajou o Presidente Jefferson a propor a compra do território da
Louisiana. Enquanto o federalista Alexander Hamilton acreditava que Napoleão nunca aceitaria a
idéia, Paine se baseava no que conheceu pessoalmente: “O tesouro francês não está apenas vazio,
mas o governo já consumiu antecipadamente grande parte das receitas do próximo ano. Acredito
que uma oferta robusta seria aceita...” Em maio de 1803, Napoleão vendeu o território da Louisiana
por 15 milhões de dólares.
Embora os federalistas tenham condenado o presidente Thomas Jefferson por defender Paine, ele
corajosamente convidou seu amigo à Casa Branca. Quando as filhas de Jefferson, Mary e Martha,
deixaram claro que não gostariam de ter qualquer ligação com Paine, Jefferson respondeu que Paine
“é muito merecedor da hospitalidade de todo americano, para eu não lhe ofereça alegremente a
minha.”
Durante os últimos anos de Paine, ele buscava desesperadamente por dinheiro, sua saúde se
deteriorou e ele vivia em uma pobreza deplorável. Ele pediu para se mudar para a casa de sua amiga
Marguerite de Bonneville, na Grove Street, número 59, em Nova York, onde morreu na manhã de 8
de junho de 1809. Madame de Bonneville levou o seu enterro para a sua fazenda em New Rochelle
porque nenhum cemitério quis o aceitar.
Paine não descansou em paz. Uma década mais tarde, o jornalista inglês William Cobbett, um
inimigo de Paine que se tornou um discípulo, desenterrou secretamente o caixão e o enviou para a
Inglaterra. De acordo com algumas opiniões, ele pensou os colocando em um lugar especial,
poderia inspirar um grande número de pessoas a fazer pressão por uma reforma do governo e da
Igreja da Inglaterra. Mas as pessoas não estavam muito interessadas nos ossos de Paine. Quando
Cobbett morreu em 1835, eles estavam dispersos e perdidos, junto com seus objetos pessoais.
Paine permaneceu um fundador dos Estados Unidos esquecido por décadas. Theodore Roosevelt
resumiu a visão vigente sobre Paine, quando se referiu a ele como “um ateu pequeno e vulgar”. A
sua primeira biografia completa apareceu apenas em 1892. Ainda não existe uma coletânea oficial
de suas obras completas.
O bicentenário americano ajudou a recuperar o interesse em Paine. Novas coletâneas de seus
maiores trabalhos foram disponibilizados pela primeira vez e, pelo menos, três biografias foram
lançadas desde então – duas só no último ano.
Talvez uma nova geração esteja redescobrindo esse homem maravilhoso. Ele não tinha muito
dinheiro. Ele nunca teve poder político. Ainda assim, ele mostrou como um indivíduo sincero pode,
ao defender uma questão moral em favor dos direitos naturais, estimular milhões a derrubarem seus
opressores – e como isso poderia acontecer novamente.

William Gladstone
William Ewart Gladstone dominou a política britânica durante o auge do liberalismo clássico. Ele
entrou no Parlamento aos vinte e três anos, tornou-se ministro pela primeira vez aos trinta e quatro,
e fez seu último discurso como membro do governo aos oitenta e quatro. Foi primeiro-ministro
quatro vezes. O vencedor do prêmio Nobel F. A. Hayek considerava Gladstone um dos maiores
amigos da liberdade, e Lord Acton acreditava que a “supremacia [de Gladstone] era indiscutível”. O
historiador Paul Johnson declarou que “suas realizações não têm paralelo na história da Inglaterra”.
Tendo sido ministro das finanças em quatro governos, Gladstone combateu os grupos de interesse
mais poderosos. Ajudou a abolir mais de mil tarifas britânicas — cerca de 95% das que existiam, e
diminuía ou abolia outras taxas ano após ano. Imagine o imposto sobre a renda americano com uma
única alíquota de 1,25%. Foi isso que sobrou do imposto de renda britânico quando Gladstone
terminou de golpeá-lo. No entanto, ele não ficou satisfeito, porque queria eliminá-lo. Gladstone
acreditava que o custo da guerra deveria ser um fator de dissuasão do militarismo e insistia em uma
política de financiamento da guerra por impostos. Ele se opunha a tomar empréstimos para a guerra,
porque isso tornaria os conflitos mais fáceis e deixaria um fardo injusto para as gerações futuras.
As campanhas políticas mais gloriosas de Gladstone, contra o imperialismo britânico e a favor da
autonomia dos oprimidos irlandeses, ocorreram no fim de sua vida. Gladstone demonstrou que
mesmo em tais causas perdidas, os amigos da liberdade tinham a força e a coragem para sustentar
uma luta tremenda que jamais seria esquecida.
Gladstone pairava acima de seus rivais. O mais famoso deles foi Benjamin Disraeli, o Tory que
promoveu impostos mais altos, governo mais poderoso, e conquistas imperiais. Os rivais liberais de
Gladstone eram em sua maioria fãs do Visconde Palmerston, notório pela dureza no trato com
países mais fracos. No fim do século XIX, o principal rival liberal de Gladstone foi Joseph
Chamberlain, um socialista que se tornou um grande imperialista. Se não fosse por Gladstone, a
liberdade provavelmente teria tido menos ganhos, e suas perdas teriam ocorrido mais rapidamente.
A contribuição mais duradoura de Gladstone foi enfatizar o imperativo moral da liberdade. Jeremy
Bentham e John Stuart Mill, influentes filósofos britânicos, haviam quase banido a moralidade das
discussões políticas ao defender o princípio do bem maior para o maior número, mas Gladstone
destacava as dimensões morais dos impostos, do comércio, e de tudo o mais. “Tudo que ele fazia”,
comentou o historiador A. J. P. Taylor, “era uma causa sagrada”. O fervor moral de Gladstone era
uma das chaves de sua popularidade. Conforme observou o historiador J. L. Hammond, “podemos
dizer com segurança que para cada retrato de qualquer outra pessoa nas casas da classe
trabalhadora, havia dez de Gladstone”.
Suas muitas realizações se deveram em parte a sua energia prodigiosa. Ele trabalhava catorze horas
por dia para se tornar o principal conhecedor de finanças governamentais da Inglaterra. Conforme
escreveu o biógrafo Richard Shannon, “Gladstone falava copiosamente. Estima-se que ele tenha
preenchido quinze mil colunas do Hansard [transcrições dos debates parlamentares] e aparecido em
366 volumes daquela publicação em mais de sessenta anos como membro do Parlamento... E ele
não era muito menos prolixo ‘ao ar livre’... Deixou trinta e oito volumes de Speeches and
Pamphlets [“Discursos e panfletos”] e onze volumes de Speeches and Writings [“Discursos e
escritos”], principalmente extraídos da imprensa“. Em seu tempo livre, Gladstone escrevia livros,
principalmente sobre literatura grega e romana (ele amava Homero); gostava de andar a cavalo; e
cortar árvores era um de seus passatempos preferidos. Ele fazia longas caminhadas — de até
quarenta quilômetros — até bem depois dos setenta anos, e foi por isso que Roy Jenkins declarou
que, para ele, tentar escrever uma biografia de Gladstone “é como decidir repentinamente,
tardiamente na vida e após uma meia-idade tranquila, escalar a face mais perigosa do Matterhorn”.
Gladstone tirava forças de sua fé anglicana e de sua felicidade doméstica. Casou-se com a
apaixonada Catherine Glynne em 25 de julho de 1839. Tiveram quatro filhos e quatro filhas e
ficaram juntos por mais de meio século, até a morte dele. Viviam em Carlton House Terrace, em
Londres, e em Hawarden, o castelo onde ela nasceu, no topo de uma colina, com vista para a cidade
de Liverpool. Lá Gladstone tinha uma biblioteca que atingiu os vinte e sete mil volumes. Hawarden
havia sido hipotecado para ajudar a financiar as empreitadas do irmão de Gladstone, e ele passou
anos pagando as dívidas para preservar a propriedade da família.
Gladstone levava a caridade a sério, mesmo quando isso o expunha ao ridículo. Durante cerca de
quarenta anos, passou cerca de três noites por semana trabalhando para ajudar mulheres londrinas a
saírem da prostituição, e participou da fundação da Church Penitentiary Association for the
Reclamation of Fallen Women [“Associação penitenciária (apostólica) para a recuperação de
mulheres perdidas”], que levantava dinheiro para lares onde essas mulheres podiam mudar de vida.
Ele também fundou o Newport Home of Refuge [“Casa de refúgio Newport”] (Soho Square) e o St.
Mary Magdalen Home of Refuge [“Casa de refúgio Santa Maria Madalena”] (Paddington), e
integrou o comitê administrativo da penitenciária de Millibank, para onde eram enviadas as
prostitutas presas. Ele frequentemente trabalhava com sua esposa, e, juntos, eles fundaram a Clewer
Home of Mercy [“Casa de misericórdia Clewer”]. Ele gastou ?83.500 nessas iniciativas.
O aspecto imperioso de Gladstone fazia com que ele parecesse um gigante, mas sua altura era
apenas mediana (cerca de um metro e oitenta), com ombros largos, rosto pálido e grandes olhos que
eram quase negros. Por volta de seus cinquenta anos, seus espessos cabelos pretos escassearam e
começaram a ficar brancos. Ele deixou-os crescer em volta de seu rosto, formando uma barba ao
estilo em moda na época. Sua voz forte e musical era uma de suas grandes vantagens como orador
público.
Embora por vezes fosse prolixo (um de seus discursos estendeu-se por cinco horas), era muito
eloquente. Combinava domínio dos fatos com a capacidade de inspirar indignação moral. Durante
uma campanha eleitoral, frente a uma multidão hostil de vinte mil pessoas, seu comovente discurso
de duas horas culminou em um voto de confiança unânime.
O biógrafo H. C. G. Matthew resumiu sua importância: “Ao oferecer liberdade, governo
representativo, progresso econômico pelo livre comércio, cooperação internacional através de
discussão e arbitragem, probidade no governo e na sociedade em geral, como os objetivos principais
da vida pública e em uma ideologia que os combinava e harmonizava, Gladstone ofereceu muito à
idéia de uma sociedade civilizada de nações”.
William Ewart Gladstone nasceu em 29 de dezembro de 1809 no número 62 de Rodney Street, em
Liverpool. Seu pai, John Gladstone, era um político e investidor escocês proprietário de plantações
nas Índias Ocidentais. Sua mãe, Anne Robertson, era uma escocesa frágil.
Gladstone teve uma boa educação, inicialmente estudando com um clérigo local, e depois, aos onze
anos, indo para a prestigiada Eton, onde adquiriu o gosto por literatura grega e latina que o
acompanharia por toda a vida. Em outubro de 1829, ele se matriculou em Christ Church, em
Oxford.
Seu pai estava determinado a fazer com que ele se tornasse um estadista. Então, um amigo da
família, o duque de Newcastle, indicou-o para ser candidato à representação de Newark no
Parlamento. Ele venceu a eleição em dezembro de 1832, e no ano seguinte começou a estudar
direito em Lincoln’s Inn.
Fiel devoto da Igreja Anglicana, em 1838 Gladstone escreveu The State in Its Relation with the
Church [“O Estado em sua relação com a Igreja”], que expressava a opinião de que apenas uma
religião poderia existir em uma sociedade, e que o governo deveria torná-la obrigatória. O livro é
lembrado principalmente porque Thomas Babington Macaulay criticou-o na Edinburgh
Review (abril de 1839), e o ensaio foi reimpresso nas popularíssimas coleções de Macaulay.
Apesar de suas crenças Tories, Gladstone instintivamente defendia os povos oprimidos. Em 1840,
ele falou contra a guerra do ópio, na qual o governo britânico se envolveu com o objetivo de ajudar
comerciantes com contatos na política a vender ópio na China. Após visitar Nápoles em 1850 e
descobrir que Ferdinando II, rei das Duas Sicílias, tinha cerca de vinte mil prisioneiros políticos, ele
escreveu uma carta indignada que circulou por toda a Europa.
Foi o importante e reservado Tory Robert Peel, fundador do Partido Conservador, que reconheceu
as capacidades de Gladstone e nomeou-o para um cargo no ministério das finanças. Ao longo de
uma série de governos, Gladstone ganhou um domínio de finanças governamentais superior ao de
qualquer outro, e ocupou muitos postos importantes, incluindo o de subsecretário de guerra e das
colônias, vice-presidente do conselho de comércio, presidente do conselho de comércio, e mestre da
Casa da Moeda.
Enquanto isso, Benjamin Disraeli, o inteligente político conservador, entrou em evidência. Era um
parlamentar magro e escuro, com longos cachos de cabelos negros. Durante anos, foi conhecido
como um dândi que vestia camisas bordadas com pedras preciosas e anéis por cima das luvas. Seu
gosto pela vida elegante excedia seus modestos recursos, e ele passou grande parte de sua vida
esforçando-se para evitar situações constrangedoras causadas por atrasos no pagamento de dívidas.
Nasceu em dezembro de 1804, filho de um intelectual judeu, mas mais tarde foi batizado na Igreja
Anglicana. Ele criticava as ideias pró-mercado de Adam Smith e sentia-se mais à vontade entre
aristocratas protecionistas, apesar do anti-semitismo de muitos deles. Disraeli rejeitava o princípio
da tolerância religiosa.
Disraeli tornou-se conhecido durante os debates de 1846 sobre as Corn Laws [“Leis do milho”]
(tarifas sobre grãos), em discursos notáveis pelo estilo controlado e discreto, pelas frases bem-
construídas e pelos violentos ataques pessoais. Disraeli liderou esforços bem-sucedidos para
derrubar o governo Tory de Robert Peel, que havia apoiado a abolição das Corn Laws. Quando se
tornou o ministro das finanças de um governo Tory, em fevereiro de 1825, propôs um orçamento
que supostamente seria equilibrado se os impostos sobre as casas fossem dobrados. Gladstone fez
um comovente discurso contra o orçamento, intensificando sua rivalidade, a mais memorável da
política britânica desde William Pitt, o Jovem, e Charles James Fox. O governo Tory renunciou em
17 e dezembro de 1852.
Gladstone lançou uma grande campanha para cortar impostos quando foi nomeado ministro das
finanças no governo de coalizão de Lord Aberdeen. Seu primeiro discurso sobre o orçamento, em
abril de 1853, defendia redução do imposto de renda, abolição do imposto sobre o sabão, e reduções
de impostos sobre o chá e sobre anúncios. Ele fez mais cortes no imposto de renda em 1863, 1864 e
1865 (ano em que ele também cortou pela metade o imposto sobre seguros contra incêndio),
acabando por diminuir o imposto sobre a renda de 10% durante as guerras napoleônicas e 6,6%
durante a guerra da Criméia (1854-1856) para 1,25%.
Em 1860, como ministro das finanças do governo de Lord Palmerston, Gladstone aprovou o plano
de Richard Cobden para negociar um tratado de liberalização do comércio com a França, que
inspirou uma tendência de maior liberdade de comércio em toda a Europa. Disraeli liderou a
oposição Tory aos cortes de tarifas alfandegárias, mas os Liberais prevaleceram e o número de
tarifas foi reduzido de 1.163 em 1845 para 460 em 1853 e 48 em 1859 — apenas quinze das quais
tinham verdadeiros efeitos. Entre 1861 e 1864, Gladstone convenceu o Parlamento a abolir a tarifa
sobre o papel, a taxa sobre o lúpulo, e tarifas sobre madeira e pimenta, além de baixar as tarifas
sobre o açúcar, o chá, o vinho engarrafado e os táxis. Ele anunciou tratados de liberalização
comercial com a Áustria, a Bélgica, e os estados alemães.
Suas políticas foram um sucesso estupendo. Cada esforço para reduzir o imposto sobre a renda,
tarifas alfandegárias e outros impostos envolvia uma briga com os grupos de interesse afetados, mas
Gladstone persistiu, e quanto mais ele cortava o custo do governo, mais a população prosperava. “A
melhora no padrão de vida dos trabalhadores manuais”, escreveu o historiador econômico Charles
More, “foi paralela às melhoras no padrão de vida tanto da classe média quanto dos ricos”.
Em 1864, Gladstone havia assustado muitas pessoas ao declarar que “Todo homem que não seja
presumivelmente incapaz, por alguma consideração de incapacidade pessoal ou perigo político, tem
o direito moral de ser incluído na Constituição”. Disraeli zombeteiramente disse que Gladstone
“reviveu a doutrina de Tom Paine”. Gladstone não conseguiu expandir o direito ao voto, mas dois
anos depois Disraeli mudou de posição e manobrou para que uma versão mais ambiciosa da
proposta de Gladstone fosse aprovada pela Câmara dos Comuns, acrescentando cerca de um milhão
de pessoas às listas de eleitores.
Gladstone então se concentrou nas injustiças na Irlanda. Lá, a situação havia deteriorado durante
séculos, e tornou-se mais grave quando o Parlamento assumiu o controle direto da Irlanda em 1800.
Na época, o parlamentar libertário Charles James Fox havia avisado “que não devemos arrogar-nos
o poder de legislar por uma nação com cujos sentimentos e afeições, desejos e interesses, opiniões e
preconceitos não temos nenhuma empatia”. Em 1868, Gladstone propôs uma resolução segundo a
qual camponeses católicos pobres não teriam de pagar impostos à Igreja (protestante) da Irlanda. O
primeiro-ministro Disraeli objetou, argumentando que um ataque à Igreja da Irlanda seria um
convite a ataques à Igreja Anglicana. Mas a Câmara dos Comuns aprovou a resolução, e Disraeli
renunciou. Os Liberais venceram as eleições subsequentes, e Gladstone tornou-se primeiro-ministro
em dezembro de 1868. No ano seguinte, o Parlamento aprovou a lei de Gladstone que
desoficializava a Igreja da Irlanda. A seguir, veio sua Lei Irlandesa de Terras (1870): um
arrendatário que fosse despejado da terra em que trabalhava teria direito a indenização por
construções e outras melhorias que tivesse feito.
Após seis anos como primeiro-ministro, Gladstone havia ofendido um grande número de poderosos
grupos de interesse; Disraeli acusou Gladstone de atacar “todas as instituições e todos os interesses,
todas as classes e vocações do país”. Quando os Liberais sofreram uma derrota retumbante nas
eleições de fevereiro de 1874, Disraeli, aos setenta anos de idade, tornou-se primeiro-ministro. Ele
conseguiu a aprovação das Leis das Fábricas de 1874 e 1878, aumentando a regulamentação
governamental das empresas. Sua Lei dos Sindicatos essencialmente pôs os líderes sindicais acima
da lei. Com a Lei da Venda de Alimentos e Medicamentos, o governo de Disraeli tomou para si a
responsabilidade pela saúde das pessoas. A Lei de Habitação dos Artesãos autorizou governos locais
a tomarem propriedade privada para projetos habitacionais.
Mais alarmante para Gladstone, Disraeli promoveu o imperialismo. Ele gastou mais dinheiro em
armas, envolveu-se em uma guerra entre a Rússia e a Turquia, ocupou o Chipre e enviou tropas
britânicas para invadir o Transvaal, na África do Sul, e Cabul, no Afeganistão. Ele garantiu proteção
a três estados na Península Malaia e reivindicou cerca de duzentas ilhas do Pacífico. Ele então
adquiriu participação no controle do Canal de Suez, uma ação que garantiu acesso mais seguro à
Índia britânica mas culminou em uma ocupação do Egito que duraria oitenta anos, incluindo
guerras, grandes gastos militares, e constrangimentos políticos. Disraeli lisonjeou a rainha Vitória
ao nomeá-la Imperadora da Índia, e ela se orgulhava de ideia de que o sol nunca se punha no
Império Britânico.
Mas um império traz problemas. Entre abril e agosto de 1876, forças turcas massacraram cerca de
doze mil cristãos búlgaros rebeldes. Disraeli minimizou o fato, porque apoiava o regime turco para
contrabalançar a influência russa. Gladstone insistiu que padrões morais se aplicam a todos, e seu
panfleto The Bulgarian Horror and the Question of the East [“Os horrores búlgaros e a questão do
oriente”] logo vendeu 200.000 mil cópias. Disraeli rosnou: “podem existir homens mais infames
[do que Gladstone], mas não creio que haja ninguém mais maligno”.
Gladstone fez alertas sobre boas intenções que levam a derramamento de sangue e dinheiro em
guerras no estrangeiro. Em 7 de maio de 1877 ele declarou: “Considerem como nós conquistamos,
nos instalamos, anexamos e nos apropriamos de todos os pontos da bússola, de modo que poucos
pontos da superfície da Terra não estão próximos de alguma região ou algum lugar sob domínio
britânico... E então, vos pergunto, que disputa pode surgir entre dois países, ou que guerra, no qual
não seja possível, se houver tal intenção, estabelecer interesses britânicos como motivos para
interferência”.
Seus alertas se concretizaram. Disraeli desentendeu-se com o emir do Afeganistão, que se recusou a
permitir a entrada de diplomatas britânicos no país. Na África do Sul, cerca de oitocentos soldados
britânicos foram mortos pelos zulus, e pressões europeias levaram Disraeli a pedir a expansão da
presença naval britânica no Mediterrâneo. Como primeiro-ministro, Disraeli aumentou impostos em
cinco milhões de libras, e incorreu em um déficit de seis milhões de libras, contra os cinco anos
anteriores, em que a gestão de Gladstone caracterizou-se por doze milhões de libras em reduções de
impostos e dezessete milhões em superávit orçamentário.
Mas o imperialismo era popular, e Gladstone reconhecia que não conseguiria seu fim apenas
debatendo questões políticas dentro do Parlamento. Em 24 de novembro de 1879, ele começou a
fazer campanha por um assento no Parlamento em Midlothian, na Escócia, há muito ocupado por
Tories. Foi a primeira campanha política britânica que começou antes da data das eleições ser
definida. Gladstone defendia uma política externa baseada em seis princípios. Primeiro, manter o
governo pequeno para que as pessoas possam prosperar. Segundo, promover relações pacíficas entre
as nações. Terceiro, manter a cooperação na Europa. Quarto, evitar “envolvimentos complexos”.
Quinto, tentar tratar todas as nações igualmente. Sexto, “a política externa inglesa deve sempre ser
inspirada pelo amor à liberdade... na liberdade fundam-se as bases mais firmes da lealdade e da
ordem”. Disraeli chamou Gladstone de “arqui-vilão”, mas em março de 1880 os Liberais
derrotaram os Tories, e Gladstone tornou-se primeiro-ministro novamente. Embora tenha retirado-se
do Afeganistão, de modo geral ele não conseguiu reverter as políticas imperialistas de Disraeli.
Mesmo assim, ele não envolveu a Grã-Bretanha em mais conflitos no estrangeiro. A amarga
rivalidade terminou com a morte de Disraeli, em 19 de abril de 1881.
A Lei de Reforma de 1884, concatenada por Gladstone, ampliou o número de eleitores de cerca de 3
milhões para 5 milhões, mas a Irlanda tornou-se a principal questão dos longos anos finais de sua
carreira. Ele acreditava que só haveria paz na Irlanda quando o feudalismo desaparecesse, e os
camponeses se beneficiassem significativamente de seu próprio trabalho. Ele dedicou suas energias
à Lei Irlandesa de Terras de 1881, que aumentava a proteção aos arrendatários que pagassem seu
aluguel e obedecessem às leis.
Charles Stewart Parnell, proprietário de terras irlandês protestante e influente membro do
Parlamento, chamou a nova Lei Irlandesa de Terras de fraude, e exortou à contínua resistência
irlandesa. Seu bloco votou contra Gladstone, forçando o primeiro-ministro a renunciar em 9 de
junho de 1885. Mas os Tories não conseguiram apoio suficiente na eleição subsequente, e
recusaram-se a formar um novo governo. Gladstone formou seu terceiro ministério em janeiro de
1886. Os seguidores de Parnell haviam conquistado oitenta e cinco assentos nas eleições
parlamentares, e isso parece ter convencido Gladstone de que era o momento para uma ação ousada.
Em 8 de abril ele anunciou ser a favor da autonomia, que significava a instalação de um Parlamento
Irlandês para decidir a política interna. A Irlanda continuaria pertencendo ao Império Britânico, e o
Parlamento Britânico controlaria suas relações internacionais. A Irlanda contribuiria parte de sua
receita para ajudar a cobrir as despesas imperiais. Não haveria mais representantes irlandeses no
Parlamento Britânico, o que possibilitaria o fim das táticas obstrucionistas da Irlanda.
A questão da autonomia causou uma cisão no partido Liberal. Muitos se opunham ao que
consideravam concessões a camponeses violentos. Em junho de 1886, noventa e quatro
parlamentares Liberais votaram contra a lei de autonomia proposta por Gladstone, derrotando-a, e
levando a eleições gerais que os Liberais perderam. Gladstone, no entanto, preservou sua posição de
liderança porque era “o velho homem”, a personalidade política mais famosa de todo o país. Ele
ainda considerava a autonomia irlandesa sua principal prioridade e um precedente para
administração local na Inglaterra, na Escócia e no País de Gales. Os Liberais venceram as eleições
gerais de julho de 1892, e Gladstone formou seu quarto ministério.
Ele começou sua última batalha política em 13 de fevereiro de 1893. “Gladstone jamais falou tão
bem quanto na apresentação da segunda lei de autonomia”, relatou o biógrafo Walter Phelps Hall.
“Os velhos e familiares golpes sobre a mesa retornaram; a voz mágica, tão grave, tão eloquente,
elevava-se e baixava em cadência musical, exortando os ingleses”. Em 1º de setembro de 1893, a
Câmara dos Comuns aprovou a lei. Uma semana depois, a Câmara dos Lordes, dominada pelos
Tories, rejeitou-a, forçando Gladstone a renunciar ao cargo de primeiro-ministro. Ele disse a John
Morley, seu biógrafo e fiel colega: “Fui criado para odiar e temer a liberdade. Aprendi a amá-la.
Este é o segredo de toda a minha carreira”.
Gladstone morreu de câncer em Hawarden, em 19 de maio de 1898, cercado por sua esposa e filhos.
Tinha oitenta e oito anos. O caixão foi colocado em Westminster Hall, e estima-se que 250.000
pessoas tenham comparecido para homenageá-lo. Ele foi enterrado na abadia de Westminster, perto
de seu mentor, Robert Peel, que havia se convertido ao livre comércio. “Os únicos funerais
comparáveis fora da família real nos últimos 150 anos”, relatou o biógrafo Roy Jenkins, “foram os
do duque de Wellington e o de Churchill”.
Como Gladstone havia previsto, os irlandeses tomaram o controle de seu destino. O Estado Livre
Irlandês foi estabelecido em 6 de dezembro de 1921. Em 1937, veio a constituição da República da
Irlanda. A Irlanda do Norte, ainda sob governo britânico, permanece uma fonte de violência crônica.
Biógrafos recentes ficaram fascinados com a publicação de The Gladstone Diaries [“Os diários de
Gladstone”] (1825-1896, 14 volumes), com abundância de detalhes sobre sua intensa religiosidade e
sua determinação a ajudar as prostitutas a encontrarem outro tipo de trabalho. Foram publicadas
biografias pelo historiador Richard Shannon (1984, 1999), o historiador H. C. G. Matthew (1986,
1995), e o trabalhista Jenkins (1997).
Gladstone fez muito pela liberdade. Foi um dos grandes redutores de impostos, que cortou
radicalmente os gastos do governo e deu aos contribuintes mais influência sobre seu governo. Ele
garantiu o triunfo do livre-comércio. Ele promoveu a causa da libertação da Irlanda. Ele
corajosamente se opôs ao imperialismo, exortando as pessoas a adotar a liberdade e a paz ao invés
do poder e do prestígio, e demonstrou o tipo de fervor moral que poderia ajudar a liberdade a
levantar-se mais uma vez.

Lysander Spooner
O maior pensador dos direitos naturais de século XIX foi o advogado e individualista radical
americano Lysander Spooner. Ele respondeu aos acontecimentos tumultuados de sua época, como o
pânico de 1837 e a guerra civil americana, com panfletos sobre direitos naturais, escravidão, moeda,
julgamento por júri e outros assuntos polêmicos de então. “Lysander Spooner merece destaque”,
afirmou o professor de direito Randy E. Barnett, “tanto pelos princípios que defendeu contra a
maioria quanto pelo brilhantismo que mostrou na defesa desses princípios.” O historiador
intelectual George H. Smith considera Spooner “um dos maiores teóricos libertários.”
Spooner falava com total clareza: “Criar e fazer cumprir leis injustas são os maiores crimes
cometidos pelo homem contra o homem. Os crimes de indivíduos isolados violam os direitos de
indivíduos isolados. Leis injustas violam os direitos de grandes grupos de homens, muitas vezes da
maior parte da comunidade; em geral da porção da comunidade que, por ignorância ou pobreza, é
menos capaz de suportar a violação.” Com o passar dos anos, ele se tornou mais radical. Em 1885,
dois anos antes de sua morte, escreveu: “Todos os impostos cobrados sobre a propriedade de um
homem para o sustento do governo, sem seu consentimento, são um mero roubo, uma violação do
direito natural à propriedade... O monopólio da moeda é uma das mais óbvias violações do direito
natural dos homens de fazer seus próprios contratos, e uma das formas mais eficientes – talvez a
mais eficiente – de possibilitar que uns poucos roubem todos os demais... O governo tem tanto
direito de se declarar proprietário das terras não-exploradas quanto de se declarar proprietário da luz
do Sol, da água, ou da atmosfera... Com o recrutamento militar obrigatório, o governo nega o direito
do homem a qualquer arbítrio, escolha, julgamento ou consciência próprios em relação a ser ele
mesmo morto, ou a ser usado como uma arma nas mãos do governo para matar outras pessoas.”
Segundo o biógrafo Charles Shively, Spooner era “grosseiro, direto, e impaciente com qualquer
hipocrisia. Sua correspondência mostra discussões irritadas e pouco meritórias com amigos que não
o entendiam.” Ele achava relacionamentos românticos incômodos e jamais se casou. Mas seu amigo
Benjamin Tucker, editor da revista Liberty, elogiou seu “elevado intelecto, sua sinceridade e
dedicação a sua causa, e seu coração franco e amoroso que o tornaria querido por gerações... Todos
os dias, exceto aos domingos, durante todos os anos dos quais o presente autor se lembra, um
visitante da biblioteca Athenaeum, em Boston, entre as nove e as três horas, poderia notar, e quase
todos notavam, em um dos nichos... a figura curvada de um homem idoso, debruçado sobre uma
mesa onde se acumulavam volumes empoeirados sobre história, jurisprudência, ciência política e
direito constitucional, inteiramente concentrado em ler e escrever. Se por acaso este homem idoso
levantasse a cabeça por um momento, o visitante poderia ver, por entre o cabelo e barba longos e
brancos, um dos rostos mais belos, gentis, doces, fortes e impressionantes que já alegraram os olhos
dos homens.”
Lysander Spooner nasceu em 19 de janeiro de 1808 na fazenda de seu pai, perto da cidade de Athol,
no estado americano de Massachusetts. Era o segundo dos nove filhos de Asa Spooner e Dolly
Brown. Ele demorou algum tempo para encontrar sua vocação, trabalhando na fazenda da família,
fazendo trabalho burocrático, trabalhando como advogado e especulando (sem sucesso) com terras
no estado de Ohio.
Então veio o pânico de 1837, que fez Spooner começar a pensar sobre as causas dos ciclos
econômicos. Ele escreveu Constitutional Law Relative to Credit, Currency and Banking “Direito
constitucional relativo ao crédito, à moeda e ao setor bancário”, explicando como a intervenção do
governo distorce a atividade bancária e defendendo a abolição das leis que estabelecem o curso
legal da moeda (que tornam obrigatória a aceitação da moeda governamental para o pagamento de
dívidas) e da exigência de autorização do governo para o funcionamento de bancos.
Seu próximo empreendimento foi em serviços postais. Ele decidiu desafiar as leis federais que
garantiam o monopólio do serviço nacional de correios, e em janeiro de 1844 fundou a American
Letter Mail Company, que transportava cartas entre Boston e Baltimore. Em 1845, o Congresso
americano forçou Spooner e outros serviços postais privados a fecharem seus negócios. Em
resposta, ele escreveu um panfleto, The Unconstitutionality of the Laws of Congress Prohibiting
Private Mails [“A inconstitucionalidade das leis do congresso proibindo correios privados”].
Spooner logo se envolveu no grande debate a respeito da escravidão nos Estados Unidos. Embora
advogados sulistas alegassem que a escravidão era permitida pela Constituição, e o abolicionista
William Lloyd Garrisson concordasse (razão pela qual ele denunciou a constituição americana
como “um acordo com o inferno”), Spooner pensava que argumentos constitucionais podiam ser
invocados contra a escravidão. Com alguma ajuda financeira do filantropo novaiorquino Gerrit
Smith, um dos maiores patrocinadores do movimento abolicionista, Spooner escreveu The
Unconstitutionality of Slavery “A inconstitucionalidade da escravidão”, em que defendeu a tese de
que a escravidão não encontrava apoio legal nas cartas coloniais americanas, nem na Declaração de
Independência, nem nos Artigos da Confederação, nem na Constituição. Ele não convenceu
Garrisson ou seu associado Wendell Phillips, mas seus argumentos conquistaram o ex-escravo e
orador abolicionista Frederick Douglass, contribuindo para a divisão do movimento abolicionista
entre os favoráveis e os contrários à ação política.
O aspecto mais interessante The Unconstitutionality of Slavery é a afirmação do direito natural: “O
homem tem o direito inalienável a tanta liberdade pessoal quanto ele possa usar sem invadir os
direitos dos demais. Tal liberdade é um direito inerente à sua natureza e às suas faculdades. É um
direito inerente à sua natureza e às suas faculdades que elas possam se desenvolver livremente, sem
restrições de outras naturezas e outras faculdades, que não têm prerrogativas superiores às suas. E
esse direito tem apenas um limite, a saber, que ele não leve o exercício deste direito tão longe que
passe a restringir ou infringir o desenvolvimento igualmente livre da natureza e das faculdades dos
demais. As fronteiras entre as liberdades iguais de cada um não devem jamais ser cruzadas por
ninguém. Esse princípio é a base e a essência da lei e do direito civil.”
De volta à fazenda da família em Athol, ele escreveu Poverty: Its Illegal Causes, and Legal Cure “A
pobreza: suas causas ilegais e sua cura legal”. Novamente, as passagens mais interessantes são
sobre direitos naturais: “Quase toda a legislação positiva já aprovada neste país, seja por parte do
governo geral ou dos governos dos estados, no tocante aos direitos dos homens ao trabalho ou seus
direitos aos frutos de seu trabalho... foi meramente uma tentativa de substituir leis naturais por leis
arbitrárias; de abolir os direitos naturais dos homens ao trabalho, à propriedade, e a estabelecer
contratos, e, em seu lugar, estabelecer monopólios e privilégios... de roubar de parte da humanidade
seu trabalho, ou os frutos de seu trabalho, e dar o butim à outra parte.”
Em 1852, Spooner escreveu Trial by Jury [Julgamento por júri], ao mesmo tempo um trabalho de
pesquisa e um tratado político. Reconstituindo a história do julgamento por júri desde a Inglaterra
medieval, Spooner mostrou como ele garante proteções cruciais contra governos opressivos. Ele
citou documentos e autoridades legais desde a Magna Carta até sua própria época, afirmando que
um júri deve ser livre para ouvir todos os fatos de um caso, sem as restrições das regras para
aceitação de provas. Além disso, o júri deve ser livre para tomar decisões não apenas sobre os fatos
mas também sobre a legitimidade da lei que o réu é acusado de violar, e ter a capacidade de anular
leis injustas.
O argumento de Spooner pela anulação de leis pelo júri surgiu em um momento em que os júris
tinham um papel importante no movimento pela libertação dos escravos americanos. A Lei dos
Escravos Fugitivos (1793) havia tornado obrigatória a devolução de escravos fugitivos a seus
“proprietários”, mas quando júris começaram a cada vez mais se recusar a fazer cumprir a lei,
pressões políticas resultaram no Ato dos Escravos Fugitivos (1850), cujo objetivo era evitar
julgamentos por júri. A nova lei permitia processos sumários ante juízes federais; caçadores de
escravos que tivessem “provas satisfatórias” de propriedade podiam tomar posse dos fugitivos, que
não podiam testemunhar para defender-se.
O caso Estados Unidos vs. Morris (1851) foi um dos julgamentos por júri envolvendo indivíduos
acusados de ajudar escravos fugitivos. Um escravo conhecido como Shadrach havia fugido de
Norfolk, na Virgínia, e chegado a Boston, onde, com o nome de Frederick Jenkins, passou a
trabalhar como garçom. Em fevereiro de 1851, ele foi descoberto por um caçador de escravos, que o
levou a um juiz federal para procedimentos sumários sob a Lei dos Escravos Fugitivos, mas uma
multidão invadiu o tribunal e acompanhou Shadrach para fora e até a cidade de Cambridge, de onde
ele desapareceu, e acabou conseguindo chegar ao Canadá. Oito indivíduos – quatro brancos e quatro
negros – foram acusados de resgatá-lo, violando a Lei dos Escravos Fugitivos. O julgamento por
júri começou em maio de 1851.
A defesa foi além de discutir os fatos do caso, declarando que “os jurados eram por direito juízes da
lei, assim como dos fatos; e se a consciência de algum deles ditasse que o ato de 1850... comumente
chamado ‘Ato dos Escravos Fugitivos’, era inconstitucional, seu juramento os obrigava a
desobedecer qualquer ordem em contrário que pudesse vir do tribunal.” O juiz Benjamin Curtis
ficou tão chocado com esta linha de argumentação que interrompeu o advogado de defesa e disse
aos jurados que eles “não têm o direito de decidir nenhuma questão a respeito das leis... [Eles
devem] aplicar aos fatos, conforme os entenderem, a lei passada a eles pelo tribunal.” Em seguida,
deu sua opinião, avisando que haveria caos se os jurados pudessem rejeitar as leis que bem
entendessem. Apesar disso, o júri não seguiu a opinião do juiz e absolveu os réus.
Sem anulação de leis pelo júri, avisou Spooner, “O governo terá todo o poder... o júri será apenas
uma marionete nas mãos do governo; e o julgamento será, na realidade, julgamento pelo governo...
Se o governo pode impôr ao júri as leis que ele deve fazer cumprir... Os jurados julgam o réu não de
acordo com seus próprios padrões – não por seu próprio entendimento de seus direitos e liberdades
– mas por um padrão que lhes é imposto pelo governo. E o padrão assim imposto pelo governo se
torna a medida das liberdades do povo... O governo determina quais são seus próprios poderes sobre
o povo, ao invés de o povo determinar quais são suas próprias liberdades frente ao governo. Em
suma, se o júri não tem o direito de julgar se uma lei do governo é justa, ele claramente nada pode
fazer para proteger as pessoas das opressões do governo; pois não existe opressão que o governo
não possa autorizar por lei.”
Ele rejeitava o argumento de que as pessoas são adequadamente protegidas pelo direito ao voto. O
direito ao voto, observou ele, “pode ser exercido apenas periodicamente, e a tirania deve ser
suportada ao menos até chegar o momento do sufrágio. Ademais, o exercício do sufrágio não traz
garantias da abolição das leis opressivas já existentes nem segurança contra a promulgação de novas
leis igualmente opressivas. O segundo corpo legislativo pode ser tão tirânico quanto o primeiro. Se
for dito que o segundo corpo pode ser escolhido por sua integridade, a resposta é que o primeiro foi
escolhido pela mesma razão, e ainda assim se revelou tirânico.”
À questão de se a possibilidade de anulação de leis pelos júris traria mais incerteza, enfraquecendo
o estado de direito, Spooner reagia observando que as principais fontes de incerteza no sistema
jurídico vêm de “inúmeros atos legislativos mudando incessantemente, e incontáveis decisões
judiciais contraditórias, sem princípio algum de razão e justiça que as unifique... Tal incerteza é tão
grande que quase todos os homens, tanto os instruídos quanto os não instruídos, evitam a lei como
um inimigo, ao invés de recorrer a ela para proteção. Geralmente vão aos chamados tribunais de
justiça como os homens vão a uma batalha – quando não lhes resta alternativa. E, mesmo então,
entram nos tribunais como se entrassem em um labirinto escuro, ou uma caverna – sem
conhecimento próprio, confiando inteiramente em seus guias.”
Spooner ficou alarmado com a expansão dos poderem do governo federal durante a guerra civil:
recrutamento militar obrigatório; inflação da moeda (os “greenbacks”); tarifas chegando a 100%;
impostos sobre bens, vendas, herança, e renda; censura de correspondência, telégrafos e jornais; e
prisão de pessoas sem acusação formal – muitas dessas medidas tomadas sem aprovação do
Congresso. Após a guerra, o governo federal passou a manter um exército permanente 50% maior
do que antes do início da guerra; após a guerra, os gastos do governo federal, como porcentagem da
economia nacional, ficaram duas vezes maiores do que haviam sido antes dela; a dívida nacional,
que era por volta de US$ 65 milhões no início da guerra civil (em grande parte uma consequência
da guerra contra o México), disparou, chegando a US$ 2.8 bilhões, e seus juros correspondiam a
40% do orçamento federal durante parte da década de 1870.
Cada vez mais radical, Spooner se aproximou de algumas ideias do inventor e filósofo social
americano Josiah Warren (1798-1874). Naquela que talvez seja sua obra mais importante, No
Treason No 6, Constitution of No Authority “Sem traição no. 6, Constituição sem autoridade”,
Spooner atacou a desonestidade do governo, que, “como um bandido, diz a um homem: seu
dinheiro ou sua vida. E muitos, se não todos, os impostos são pagos sob a compulsão dessa ameaça.
De fato, o governo não embosca um homem em um local ermo, surge repentinamente de um canto
da estrada, e, com um revólver apontado para sua cabeça, esvazia seus bolsos. Mas seus roubos não
deixam de ser roubos por causa disso; e muito mais covardes e vergonhosos. O bandido toma
apenas para si mesmo a responsabilidade, o perigo e o crime de seu ato. Ele não finge ter direito
algum ao seu dinheiro, nem que pretende usá-lo para seu próprio benefício. Ele não finge ser nada
além de um ladrão. Ele não tem a insolência de afirmar ser apenas um ‘protetor’, que toma o
dinheiro dos homens contra a sua vontade meramente para poder ‘proteger’ esses tolos viajantes
que se sentem perfeitamente capazes de proteger a si mesmos, ou não apreciam sua forma peculiar
de proteção. O bandido é sensato demais para fazer tais afirmações. Ademais, após tomar o seu
dinheiro, ele o deixa fazer o que quiser. Ele não insiste em segui-lo pela estrada, contra sua vontade;
presumindo ser seu ‘soberano’ de direito, por conta da ‘proteção’ que lhe dá.”
Spooner conheceu o eloquente jornalista e editor Benjamin Tucker, que acreditava que o governo é
tão incompetente, desonesto e violento que as pessoas viveriam melhor sem ele. Tucker nasceu em
South Dartmouth, em Massachusetts, em 17 de abril de 1854. Ele descreveu seus pais como
“Unitaristas radicais”. Após três anos no Massachusetts Institute of Technology, ele decidiu que se
interessava mais pela política do que pela ciência, e mergulhou inteiramente nos movimentos pela
proibição do álcool e pelo voto feminino. Ele defendia o livre mercado de bancos, por crer que a
competição do mercado é mais eficiente do que a regulamentação do governo na manutenção de
boas práticas bancárias. Seu caminho cruzou-se com o do escritor e empresário radicalmente
libertário Joseph Warren (1798-1874), cujas ideias influenciaram o pensamento de Spooner.
Tucker manifestava sua independência em sua nova publicação, Liberty, em que incluía uma
variedade de opiniões radicais. Ele ajudou a divulgar as ideias do individualista Josiah Warren, a
ética egoísta do autor alemão Max Stirner e a visão libertadora do dramaturgo norueguês Henrik
Ibsen. Isso tudo deve ter ajudado Tucker a esclarecer seu próprio modo de pensar, porque após
alguns anos ele passou a insistir que a segurança da propriedade privada é essencial para a
liberdade, e atacou o comunismo. Tucker editou Liberty por vinte e sete anos. Segundo o
pesquisador independente James J. Martin, “Liberty manteve suficiente vitalidade para se tornar o
mais duradouro entre todos os periódicos radicais de natureza política ou econômica na história do
país, e certamente um dos mais interessantes do mundo nos últimos dois séculos.”
A principal contribuição de Spooner para Liberty foi A Letter to Grover Cleveland [“Uma carta para
Grover Cleveland”, então presidente dos Estados Unidos], à qual ele acrescentou um furioso
subtítulo: His False Inaugural Address, the Usurpations and Crimes of Lawmakers and Judges, and
the Consequent Poverty, Ignorance and Servitude of the People [“Seu falso discurso de posse, as
usurpações e crimes de legisladores e juízes, e a consequente pobreza, ignorância e servidão do
povo”]. O texto foi publicado em dezenove partes, começando em 20 de junho de 1885, e depois
reunidas em um livro publicado em julho. Spooner fez ataques eloquentes contra o recrutamento
militar obrigatório. “O governo não reconhece nem mesmo o direito de um homem à sua própria
vida,” protestou. “Se precisar dele para a manutenção de seu poder, o governo o toma, contra sua
vontade (pela convocação obrigatória), e o põe em frente à boca do canhão, para ser feito em
pedaços, como se ele fosse um mero objeto sem sentido, sem mais direitos do que se ele fosse uma
carapaça.”
Spooner terminou sua vida tranquilamente como estudioso vivendo em uma pensão no número 109
da rua Myrtle, em Beacon Hill, em Boston. Tucker descreveu-o “rodeado por baús lotados com os
livros, manuscritos e panfletos que ele havia acumulado em sua ativa guerra panfletária mais de
meio século antes.”
No início de 1887, ele ficou gravemente doente, mas, sendo cético quanto a médicos, demorou para
procurar tratamento. Provavelmente com Tucker a seu lado, morreu no sábado, 14 de maio de 1887,
por volta da uma da tarde. Tucker e o abolicionista Theodore Weld estiveram entre os oradores em
uma homenagem no Wells Memorial Hall, em Boston. Spooner, declarou Tucker, tinha uma mente
“alerta, clara, penetrante, incisiva, lógica, ordenada, cuidadosa, convincente e exigente, que se
expressava em um estilo de singular força, pureza e individualidade.” Spooner foi enterrado no
cemitério de Forest Hills, em Boston.
Spooner parecia ter sido esquecido, mas, conforme diversos pensadores exploravam a base moral da
liberdade, suas obras foram redescobertas. Seis volumes de seus escritos foram publicados em 1971,
e The Lysander Spooner Reader, uma seleção de seus textos, foi lançado em 1992. Atualmente, há
um site sobre Spooner, que disponibiliza informações sobre ele e suas obras. Suas ideias sobre a
liberdade estão sendo levadas ao novo milênio pelo ciberespaço.

George J. Stigler
Até o início dos anos 1960, quase todo mundo parecia acreditar que as regulamentações
governamentais faziam o que se esperava que fizessem: impedir que os consumidores fossem
explorados pelas empresas. Até que que um economista de um metro e noventa da Universidade de
Chicago, George J. Stigler, percebeu que ninguém havia tentado medir o verdadeiro efeito das leis e
regulamentações. Ele começou a medir e descobrir que as regulamentações ou não tinham efeito
nenhum, ou tinham o efeito oposto ao pretendido. Stigler então construiu o argumento
revolucionário de que as regulamentações governamentais eram o resultado de lobby de grupos de
interesses que queriam restringir a concorrência, elevar os preços, e obter uma posição privilegiada
que não conseguiriam num mercado aberto. Stigler estimulou economistas de todas as partes dos
Estados Unidos a medir os resultados de uma regulamentação atrás da outra, e sua análise foi
confirmada. No início dos anos 1970 já era praticamente consenso entre os economistas que muitas
regulamentações eram contraproducentes, e o movimento pela desregulamentação da economia
tomou impulso. Seus principais alvos eram regulamentações econômicas.
A Interstate Commerce Commission [“Comissão de Comércio Interestatal”] e o Civil Aeronautics
Board [agência regulatória da aviação civil] foram abolidos. A desregulamentação ganhou força em
todo o mundo. Stigler escreveu ou editou vinte e três livros, todos eles muito característicos, mas
seus trabalhos mais influentes foram artigos publicados em periódicos acadêmicos. Seus principais
artigos saíram quando Stigler já havia passado dos cinquenta anos, e o mais importante deles saiu
quando ele já tinha mais de sessenta. Ele continuou a produzir artigos dignos de nota até o dia de
sua morte. “O que Stigler realmente ensinava”, relembrou o autor e colunista Thomas Sowell, que
escreveu sua tese de doutorado sob orientação de Stigler, “era integridade intelectual, rigor
analítico, respeito pelos dados – e ceticismo quanto às modas e entusiasmos passageiros”.
Embora fosse um acadêmico sério, Stigler também era bem-humorado. Ele se identificava como
intelectual “porque sou professor, e compro mais livros do que tacos de golfe”. Milton Friedman
contou: “Um dia George entrou no escritório com o cotovelo machucado, porque tinha escorregado
no gelo. Eu o examinei cuidadosamente, e solenemente diagnostiquei uma pequena torção. Mais
tarde, George tirou uma radiografia e descobriu que havia fraturado o osso. Ele nunca perdoou esse
episódio. Depois disso, toda vez que um assunto médico vinha à tona, eu era o ‘Dr. Friedman’”. Em
Londres, Stigler reclamava da comida mas exultava por estar sendo pago para fazer palestras. Em
suas palavras, “Aqui estou eu, perdendo peso e ganhando libras”. Um repórter comentou que Stigler
havia publicado cem artigos, muito menos do que um colega que havia publicado cerca de
quinhentos. Stigler respondeu, “Os meus são todos diferentes!” Quando um aluno disse que não
merecia uma nota zero, Stigler concordou, lamentando que o zero fosse a nota mais baixa que a
Universidade de Chicago permitia. O economista ortodoxo Paul Samuelson falou antes de Stigler
em um debate, e declarou: “Já sei o que George Stigler vai dizer, e ele está completamente errado”.
Stigler levantou-se e disse, “dois mais dois é igual a quatro”, e voltou a seu assento.
O filho de Stigler, Stephen, observou que “o número de horas que ele dedicava aos amigos, aos
alunos e à família teria esgotado duas vidas normais. Ele construía móveis, fazia tarefas cotidianas,
lavava a louça, pintava casas, construía píeres, consertava barcos, derrubava florestas, chegava
perto de mover montanhas. A seus amigos acadêmicos ele oferecia críticas, debates, sugestões,
referências, orientação. E além de tudo isso, sua dedicação aos amigos não tinha limites. Fosse um
jogo de golfe na Flórida, um casamento no Canadá ou uma festa de nonagésimo aniversário na
Califórnia, ele entrava no avião com entusiasmo, sem hesitar”. O vencedor do prêmio Nobel Gary
S. Becker escreveu, “Com seus círculos de amigos mais próximos, Stigler era afetuoso e querido,
generoso com seu tempo e dinheiro. Ele sempre trazia artigos, revistas, e outros materiais relevantes
para nosso trabalho. Lia os rascunhos de ensaios e monografias rapidamente mas com grande
perspicácia. Todos sempre sabiam sua opinião sincera, pois ele a expressava em termos claros. Mas
dava muitas sugestões valiosas de como melhorar tanto a análise quanto a apresentação. Seus
comentários me ajudaram muito em tudo que escrevi durante os 20 anos em que fomos colegas em
Chicago”.
“George fingia que nunca trabalhava”, disse Friedman. “Ele jamais falava sobre trabalho. Ele
sempre tinha tempo de sobra para jogar golfe ou tênis ou bridge, mas, sabe-se lá como, continuava a
publicar uma série de artigos totalmente inovadores. Nós brincávamos dizendo que ele deveria
passar as noites em claro, escrevendo no escuro quando ninguém poderia vê-lo trabalhando. Mas, é
claro, parte da razão pela qual ele escrevia tão bem e com tanta facilidade e fluência, era que ele
pensava tão bem e com tanta facilidade e fluência... Como estilista, apenas John Maynard Keynes
se igualou a George entre os economistas modernos. Digo modernos porque George insistiria que
Adam Smith ganhava de todos... Não havia ninguém com quem você pudesse aprender mais numa
troca de idéias, ninguém que criticasse seus artigos de forma tão incisiva e compreensiva”.
George Joseph Stigler nasceu em Renton, Washington, em 17 de janeiro de 1911. Seu pai, Joseph,
havia imigrado da Bavária e casado-se com Elizabeth Hungler, vinda da Hungria. Embora a família
de Joseph fosse de fazendeiros, ele se tornou cervejeiro até que a Lei Seca acabou com seu negócio,
e ele foi trabalhar como estivador. A família ganhava dinheiro comprando casas em mau estado e
consertando-as. “Aos dezesseis anos”, Stigler escreveu em suas Memoirs of an Unregulated
Economist [“Memórias de um economista de Chicago”], “eu havia morado em dezesseis casas
diferentes em Seattle. Mas minha família tinha uma vida confortável, apesar de nômade, e meu pai
obteve um conhecimento assombroso do mercado imobiliário de Seattle”. Após se formar na
Universidade de Washington, em 1931, Stigler não conseguiu um emprego, mas ganhou uma bolsa
de estudos na Universidade Northwestern, onde foi fazer um mestrado. A seguir, relembrou, “Fui
parar na Universidade de Chicago, e, sem saber, estava entrando para o primeiro time. Escolhi
Chicago porque meus professores em Washington me disseram (corretamente, afinal) que Frank
Knight e Jacob Viner eram bons economistas”.
Ele entrou na Universidade de Chicago em 1933. Tão importantes quanto os professores eram os
alunos. Os melhores amigos de Stigler eram seus colegas Milton Friedman e W. Allen Wallis, que,
por sua proximidade, eram chamados de “os três mosqueteiros” da escola de Chicago. Stigler,
Friedman, Wallis e Homer Jones editaram uma coletânea de ensaios de Knight, publicada com o
título The Ethics of Competition [“A ética da concorrência”] (1935). Foi em Chicago que Stigler
conheceu a estudante de pós-graduação em antropologia Margaret Mack, que todos conheciam
como “Chick”, um apelido dado por sua irmã mais velha. Ela vinha de Indiana, na Pensilvânia,
onde seu pai era advogado. Era amiga do futuro astro de Hollywood Jimmy Stewart, que cresceu a
um quarteirão de distância, e estudou na Mount Holyoke College. Tinha uma personalidade alegre e
senso de humor. Stigler e Mack casaram-se na cidade natal dela, em 26 de dezembro de 1936.
Tiveram três filhos: Stephen (1941), que hoje é professor de estatística na Universidade de Chicago;
David (1943), advogado; e Joseph (1946), que trabalha com informática.
O tema da tese de doutorado de Stigler foi a história do pensamento econômico, um assunto ao qual
ele retornaria frequentemente ao longo da vida. Seu pensador econômico preferido era sem dúvida
Adam Smith, que, conforme escreveu Stigler, formulou “o argumento crucial em favor da escolha
individual irrestrita em políticas públicas... a eficiência da concorrência: o industrial ou fazendeiro
ou trabalhador ou transportador que quisesse maximizar sua própria ren da distribuiria, por esse
próprio processo, os recursos da forma mais produtiva para a nação”. Sua tese, com um capítulo
adicional, foi publicada com o título Production and Distribution Theories [“Teorias de produção e
distribuição”] (1941). Em 1936, a carreira de Stigler começou modestamente, com um posto na
Iowa State College e depois na Universidade de Minnesotta. Em 1942, ele tirou licença e foi para o
National Bureau of Economic Research, onde trabalhou com Friedman e outros analisando
estatísticas sobre produção, produtividade e emprego nos Estados Unidos. Posteriormente ele se
juntou a Friedman e Wallis no Statistical Research Group, que aplicava análise estatística a sistemas
de armas militares. Após o fim da guerra ele voltou à Universidade de Minnesotta, onde Friedman
se juntou a ele por um ano.
Stigler foi rejeitado para uma vaga de professor na Universidade de Chicago (o presidente
considerou seu trabalho empírico demais), e Friedman foi contratado. Stigler foi para a
Universidade Brown. Em 1946, Stigler e Friedman colaboraram em um pequeno livro, Roofs or
Ceilings? [“Telhados ou tetos?”], que argumentava que a imposição de preços máximos (“tetos”)
aos aluguéis causava falta de moradias.No ano seguinte, Stigler aceitou o convite de F. A. Hayek
para reunir-se com Friedman e dúzias de outros amigos da liberdade, que estavam lançando o grupo
que viria a ser conhecido como Mont Pelerin Society. Em 1957, Wallis, reitor da Escola de
Administração de Empresas de Universidade de Chicago, convidou Stigler para ocupar a cadeira
Charles R. Walgreen, ensinando Instituições Americanas. Stigler aceitou, e a família mudou-se para
o número 2621 da avenida Brassie, em Flossomor, um subúrbio de Chicago. Stigler instalou-se em
seu novo escritório, na sala 119 de Hasket Hall. Durante anos, Stigler havia feito pesquisa para
determinar a prevalência de monopólios. Gradualmente, Joseph Schumpeter, professor de economia
de Harvard, Aaron Director, genro de Milton Friedman, e suas próprias descobertas convenceram-
no de que não eram necessários muitos concorrentes para baixar significativamente os preços ao
consumidor. Ele comentou: “cada vez mais economistas chegam à conclusão de que a concorrência
é uma erva resistente, e não uma flor delicada”.
Inicialmente, Stigler havia sido favorável ao rompimento de monopólios – inclusive de sindicatos
monopolistas – mas mais tarde percebeu que esta política tende a refletir a influência de lobistas que
buscam prejudicar seus concorrentes. Ele observou “que as políticas antitruste frequentemente, e
cada vez mais, são usadas para esses fins perversos, protegendo ao invés de combater empresas
protegidas e ineficientes. De fato, as leis antitruste tornaram-se carta branca para advogados, com as
indenizações triplicadas servindo como recompensa para processos bem-sucedidos”. Em 1962, as
reflexões de Stigler se concentraram nas regulamentações governamentais. “A literatura sobre
regulamentação”, observou, “é tão vasta que precisa abordar todos os assuntos, mas não aborda com
frequencia ou profundidade a questão mais básica que se pode formular a respeito das
regulamentações: elas fazem alguma diferença no comportamento das indústrias?” Ele continuou:
“As inúmeras ações regulatórias são provas conclusivas não de regulamentação efetiva, mas sim do
desejo de regulamentar... A questão da influência da regulamentação não pode jamais ser respondida
apenas com uma enumeração de políticas regulatórias. Mil estatutos nos proíbem de fazer coisas
que não sonharíamos em fazer mesmo se os estatutos fossem revogados: não mataríamos nossos
vizinhos, não deixaríamos nossos filhos morrerem de fome, não queimaríamos nossas casas para
receber o seguro nem construiríamos abatedouros em nossos quintais. Só podemos determinar se os
estatutos realmente têm algum efeito sobre o comportamento examinando o comportamento de
pessoas que não estão sujeitas aos estatutos”.
Stigler e sua colega Claire Friedland concluíram que o setor de energia elétrica seria um bom caso
para fazer o teste. Uma vez que a energia elétrica tendia a ser produzida por monopólios locais
privados, e acreditava-se que monopólios privados explorariam o consumidor a menos que fossem
impedidos por regulamentações, as pessoas nas localidades não-regulamentadas deveriam pagar
preços mais altos pela eletricidade. Stigler e Friedland descobriram que embora os preços da
eletricidade frequentemente fossem mais baixos em estados com regulamentações do que nos
estados sem regulamentações, tais preços já prevaleciam antes da existência de qualquer
regulamentação! Stigler e Friedland não conseguiram encontrar muitas diferenças entre os níveis ou
as estruturas de preços dos setores elétricos regulamentados e não-regulamentados. Também não
havia indícios de que os investidores em áreas não-regulamentadas lucrassem mais do que os das
áreas regulamentadas. Eles não conseguiram “identificar efeitos significativos da regulamentação
do setor elétrico”. Como era possível? No Journal of Law and Economics de outubro de 1962,
Stigler e Friedland explicaram que “o sistema de provisão de um único serviço público não tem
grande poder de monopólio a longo prazo. Tal sistema enfrenta a concorrência de outras fontes de
energia em grande parte dos empregos de seu produto, e também de outros serviços públicos, para
os quais, no longo prazo, seus usuários industriais (e, portanto, muitos dos domésticos) podem
migrar”.
Estudos subsequentes de outros pesquisadores concluíram que serviços públicos regulamentados
cobravam taxas mais altas do que serviços públicos não-regulamentados. O economista Sam
Peltzman escreveu que “o efeito do artigo de Stigler e Friedland na profissão deveu-se tanto aos
resultados, então considerados surpreendentes, quanto à inovação metodológica de estimar os
efeitos da regulamentação através de um modelo explicitamente estatístico. Se o resultado tivesse
apenas confirmado as opiniões convencionais, talvez os economistas não tivessem o mesmo
entusiasmo para investigar os efeitos da regulamentação”. Dois anos após sua inovadora análise do
setor elétrico, Stigler e Friedland examinaram a agência regulatória Securities and Exchange
Commission [a Comissão de Valores Mobiliários americana]. O que atraiu sua atenção foi um
relatório oficial que, conforme escreveram na edição de abril de 1964 do Journal of Business of the
University of Chicago, justificava as regulamentações da SEC apontando abusos cometidos por
corretores de ações inexperientes em firmas novas. Stigler e Friedland sugeriram que os
investigadores deveriam ter analisado “a experiência dos clientes de um grupo de corretores
escolhidos aleatoriamente, com diver sos níveis de treinamento e experiência: as diferenças de
treinamento e experiência têm algum efeito nos lucros de seus clientes?” A SEC havia tido seu
maior impacto nas emissões de novas ações, uma vez que os investidores têm menos informações
sobre elas; há informações abundantes sobre ações mais antigas. Stigler propôs um teste simples:
“Quais os resultados obtidos pelos investidores antes e depois da SEC ganhar o controle do registro
de novas emissões? Tomemos todas as novas emissões de ações industriais cujo valor seja maior do
que US$ 2,5 milhões em 1923-27, e maior do que US$ 5 milhões em 1949-55, e meçamos o valor
dessas emissões (comparado a seu preço na oferta inicial) nos cinco anos subsequentes. Obviamente
é incorreto atribuir à SEC o mérito ou a culpa pela variação absoluta das fortunas dos investidores
ao longo do período, mas se medirmos os preços das ações em relação à média do mercado,
eliminaremos a maior parte dos efeitos das condições gerais do mercado”.
Ele concluiu que “os investidores em ações comuns dos anos 50 se saíram pouco melhor do que os
dos anos 20, e nada melhor se ficaram com as ações por apenas um ou dois anos. As diferenças
entre as médias dos dois períodos não são estatisticamente significativas em ano nenhum... Esses
estudos sugerem que os requisitos da SEC para registro não tiveram efeitos importantes na
qualidade dos novos ativos vendidos ao público... Há graves dúvidas sobre se, levando-se em conta
os custos da regulamentação, a SEC chegou a economizar um dólar aos compradores de novas
ações. Para Stigler, os investidores se beneficiariam muito mais de mercados de capitais eficientes
do que das regulamentações da SEC. Ele observou que o conluio entre empresas de Wall Street para
fixar as comissões de corretagem, aprovada pela SEC, impunha um grande ônus aos mercados de
capitais. Stigler atacou o costume da Bolsa de Valores de Nova York, aprovado pela SEC, de
suspender as operações durante momentos de volatilidade do mercado. “Impedir transações não é a
função da Bolsa”, ele escreveu, “e qualquer defesa desta prática deve apoiar-se em um desejo de
evitar flutuações de preços ‘desnecessárias’... Essa suspensão das transações significa que os
oficiais da Bolsa sabem qual é a mudança certa que deve ocorrer nos preços quando há uma
enxurrada de ordens de compra ou de venda. Não precisamos parar para questionar de onde vem
essa clarividência; basta notar que a forma correta de eliminar as rugas desnecessárias do gráfico de
preço das ações é especular: comprar ou vender contra o movimento desnecessário”.
Após a publicação destes artigos, um número cada vez maior de economistas testou os efeitos da
regulamentação, e suas descobertas foram mais radicais do que as de Stigler e Friedland: eles
descobriram que os efeitos da regulamentação eram o oposto ao pretendido por seus criadores. Em
resposta, Stigler escreveu “The Theory of Economic Regulation” [“A teoria da regulamentação
econômica”], um artigo extremamente influente publicado ne edição da primavera de 1971 do Bell
Journal of Economics and Management Science. Ele expressou um princípio que o catapultou para
o grupo dos maiores pensadores econômicos: “De forma geral, regulamentações são adquiridas
pelas indústrias, e operadas primariamente em seu benefício”. Ele explicou que o verdadeiro
propósito das regulamentações é conceder privilégios especiais para poderosos grupos de interesse
que querem restringir a concorrência e elevar os preços – portanto, regulamentações prejudicam o
público. Uma vez que os membros de um grupo de interesse se conhecem – eles invariavelmente
pertencem a uma associação setorial – , estão em uma posição favorável para juntar forças e
recursos e organizar lobbies. Suas fontes de renda estão em questão, por isso eles têm fortes
incentivos para gastar muito.
Além disso, quando reguladores precisam de informações especializadas a respeito de algum setor,
eles recorrem às pessoas envolvidas no setor, e recebem conselhos que refletem o ponto de vista do
setor. Em contraste, os consumidores que são prejudicados pela regulamentação estão dispersos,
não podem estabelecer contatos entre si com facilidade, e individualmente têm menos a ganhar ou a
perder com as regulamentações do que os industriais e sindicatos. Dado que muitos grupos de
interesse fazem lobby por subsídios governamentais, Stigler notou que o sucesso em obter subsídios
incentiva outros grupos de interesse, incluindo os rivais, a também buscar subsídios.
Consequentemente, o melhor beneficio não é um subsídio, mas uma barreira regulatória que
restrinja a concorrência. Por exemplo, conforme escreveu Stigler, “Desde sua criação, em 1938, a
agência regulatória da aviação não permitiu o lançamento de nenhuma nova rota. O poder de
segurar novos bancos foi usado pela Federal Deposit Insurance Corporation [“Corporação federal
seguradora de depósitos”] para reduzir a taxa de entrada no mercado bancário comercial em 60%...
Oferecemos uma hipótese geral: toda indústria ou ocupação que tenha poder político suficiente para
usar o Estado tentará controlar a entrada no mercado”. Por fim, os próprios processos regulatórios
contribuem para elevar os custos ao consumidor. Stigler citou o economista Robert Gerwig, que
“descobriu que o preço da gasolina vendida no comércio interestatal era de 5% a 6% mais alto do
que o da gasolina vendida no comércio intra-estatal, meramente por conta dos custos
administrativos (incluindo atrasos) da aprovação da Federal Power Commission [agência reguladora
dos aspectos interestatais do setor energético]”.
Stigler ficou arrasado quando sua esposa, Chick, sofreu um ataque cardíaco fatal em 22 de agosto
de 1970, em Rothesay, onde a família havia passado os verões por mais de duas décadas. Era uma
casa de campo branca e térrea no lago Rousseau, cerca de 130 milhas ao norte de Toronto. As cinzas
de Chick foram espalhadas pela propriedade. Em 1972, Stigler aceitou um posto na Hoover
Institution for War, Revolution and Peace, em Stanford, na Califórnia, e começou a passar os
invernos lá. Ele ganhou o prêmio Nobel em 1982. Perguntado sobre como se sentia por ter tido de
esperar vários anos a mais que Friedman, que havia sido laureado em 1976, Stigler respondeu que
durante esse período o prêmio em dinheiro havia aumentado, e portanto ele havia lucrado com a
demora. Em 1982 ele foi aposentado da Universidade de Chicago por causa de sua idade, mas,
pouco depois, presumivelmente por conta do prêmio Nobel, Stigler foi convidado a voltar a
conduzir workshops de organização industrial e a lecionar organização industrial e história do
pensamento econômico. Ele também continuava a ser o editor do Journal of Political Economy,
posição que ocupava desde 1974.
No início de novembro de 1991, Stigler foi internado no hospital da Universidade de Chicago com
problemas respiratórios, aparentemente devidos a uma pneumonia. Ele parecia estar se recuperando
quando sofreu um ataque cardíaco fatal em 1º de dezembro. Tinha oitenta anos. Houve uma missa
para a família na Universidade de Chicago, e uma cerimônia pública na capela Rockefeller, também
na Universidade, em 14 de março. Houve discursos de Stephen Stigler, Milton Friedman, W. Allen
Wallis, Gary Becker, do executivo J. Irwin Miller, da presidente da Universidade de Chicago Hanna
Gray, e do ex-presidente da Universidade de Chicago Edward H. Levi. As cinzas de Stigler foram
espalhadas pela propriedade de veraneio da família, no Canadá.
“Apesar da profunda tristeza que sinto pela morte de George”, escreveu Milton Friedman, “não
consigo lembrar-me dele sem sorrir. Seu bom-humor era tão rápido quanto sua inteligência. Ele
trazia alegria e entusiasmo para onde quer que estivesse. São raros os dias em que não nos
lembramos de algo que ele disse, tanto engraçado quanto pertinente”. Amigos lembraram-se de uma
brincadeira para crianças que Stigler havia inventado. Ele oferecia a elas um milhão de dólares se
conseguissem responder a três perguntas. Primeira: “Quem foi enterrado na tumba de Grant?”
Segunda: “De quem é a cara no centavo de Lincoln?” As crianças imaginavam grandes riquezas. E
suas esperanças eram destruídas quando Stigler fazia a terceira pergunta: “Quem era o melhor
amigo de Adam Smith?” Ele tinha em mente um contemporâneo de Smith, mas em certa ocasião
um menino respondeu: “Quem era o melhor amigo de Adam Smith? Ora, é você, tio George!” E era
mesmo.

Frederick Douglass
Frederick Douglass fez de si mesmo a vítima mais persuasiva dos males da escravidão e do
preconceito. Ele sofreu quando seu senhor separou sua família e teve de aguentar chicotadas e
surras. Embora fosse ilegal ensinar escravos a ler e a escrever, Douglass ainda assim aprendeu, e
ensinou secretamente outros escravos. Após fugir, passou a participar incansavelmente de encontros
abolicionistas por todo o Norte e pelas Ilhas Britânicas durante mais de duas décadas. Quando ficou
claro que a Guerra Civil era apenas um marco sangrento na luta, ele encabeçou os protestos contra o
preconceito no Norte e contra estados no Sul que subvertiam as liberdades civis recém conquistadas
dos negros.
Douglass abraçou o ideal de liberdades iguais para todos. Apoiou o voto das mulheres, dizendo:
“acreditamos ser justo que as mulheres tenham os mesmos direitos que reivindicamos para os
homens”, e pediu tolerância para com os imigrantes chineses perseguidos: “eu não conheço nenhum
direito de raça que esteja acima dos direitos da humanidade”. No exterior, uniu-se ao grande Daniel
O'Connel pedindo a liberdade dos irlandeses, e dividiu palanques com Richard Cobden e John
Bright, falando em favor do livre mercado.
Douglass acreditava que a propriedade privada, a competitividade empresarial e a auto-ajuda eram
essenciais ao progresso humano. “A propriedade”, escreveu, “produzirá a única condição na qual
qualquer pessoa possa viver com dignidade e genuína hombridade. (...) Conhecimento, sabedoria,
cultura, refinamento e boas maneiras são todos fundados no trabalho e na riqueza que o trabalho
traz. (...) Sem dinheiro não há ócio, sem ócio não há reflexão, sem reflexão não há progresso”.
Seus críticos o consideravam teimoso, arrogante e demasiado sensível ao desdém alheio, mas ele
conquistou o respeito dos amigos da liberdade. Por anos esteve em palanques com William Lloyd
Garrison e Wendell Phillips, liderando o movimento anti-escravidão. Harriet Beecher Stowe, autora
de A cabana do Pai Tomás, elogiou Douglass, e o ensaísta Ralph Waldo Emerson disse: “eis um
homem; e se se trata de um homem, negro ou branco é uma insignificância”. Mark Twain tinha
orgulho de ter Douglass como um amigo. John Bright contribuiu financeiramente para comprar sua
liberdade. “Ele viu de tudo, viveu de tudo e superou tudo”, exultou o pioneiro autodidata negro
Booker T. Washington.
Os custos pessoais de sua campanha anti-escravidão foram altos para Douglass. Ele quase não
ficava em casa. Não viu seus cinco filhos crescerem, e sua esposa, Anna, ressentia-se por ser
deixada em casa sozinha para cuidar dos filhos e ainda ajudar nas despesas da casa.
Ottilia Assing, uma amiga alemã, descreveu Douglass como um “mulato claro de constituição
incomumente grande, esbelta e forte. Suas feições eram marcadas por uma testa distintamente
saltada e a dentição singularmente profunda na base do nariz. Seu nariz era arqueado, seus lábios
pequenos e bem formados, revelando mais influência branca do que suas origens negras. Seu cabelo
grosso se mistura aqui e ali com cinza e é ondulado, mas não crespo”. Um observador americano
recordava a presença de Douglass como orador: “Ele tinha mais de 1,80m de altura, e sua forma
majestosa, quando se levantava para falar, ereto como uma flecha, musculoso, ainda que leve e
gracioso, seus olhos faiscantes, e mais do que tudo, sua voz, que rivalizava com a de Daniel
Webster em sua riqueza, e na profundidade e na sonoridade de suas cadências, faziam dele o ideal
de orador do qual o ouvinte nunca se esquece”.
A feminista individualista Elizabeth Cady Stanton viu como, em um encontro anti-escravidão em
Boston, “com sagacidade, sátira e indignação [Douglass] descreveu vividamente a amargura da
escravidão e a humilhação da submissão àqueles que, em todas as virtudes e poderes humanos,
eram inferiores a ele. (...) Ao seu redor sentavam-se os grandes oradores abolicionistas do dia,
sinceramente assistindo aos efeitos de sua eloquência sobre aquela imensa audiência, que ria e
chorava alternadamente, completamente levada pelos maravilhosos presentes da sua paixão e do seu
humor. (...) Todos os outros palestrantes pareceram monótonos depois de Frederick Douglass. (...)
[Ele] se manteve com um príncipe africano, majestoso em sua ira”.
Frederick Douglas nasceu Frederick Augustus Washington Bailey em algum dia de fevereiro de
1818 (datas de nascimento de escravos não eram registradas) em uma fazenda ao longo da margem
oriental de Maryland, perto de Easton. Ele não conheceu seu pai. Sua mãe, Harriet Bailey, era
escrava, e consequentemente todos os seus filhos foram condenados à escravidão. “Eu não vi minha
mãe, a ponto de reconhecê-la como tal, mais de quatro vezes em minha vida”, lembrou ele, “e cada
uma destas vezes era apenas por um curto período de tempo, e à noite”. Ela morreu quando ele tinha
sete anos.
Bailey foi levado para a mansão de Edward Lloyd, ex-governador de Maryland e senador, além de
um dos homens mais ricos do Sul. Lloyd era proprietário de um certo número de fazendas, e Bailey
lembrava de como um capataz, Austin Gore, chicoteava um escravo chamado Denby. Quando
Denby tentou escapar pelo rio, Gore matou-o com um tiro – e se livrou do crime sem problemas.
“Matar um escravo, ou qualquer pessoa de cor, em Talbot County, Maryland”, Bailey explicou, “não
é considerado crime”.
Em novembro de 1826, Bailey foi designado a Thomas Auld, que lhe enviou a seu irmão Hugh, em
Baltimore. A esposa de Hugh, Sophia, lia a Bíblia para ele, e ele começou a notar a conexão entre os
símbolos nas páginas e as palavras que ela falava. Ela começou a ensinar-lhe o alfabeto. Bailey
recordou que Hugh Auld reclamara, “se você ensinar-lhe a ler, ele vai querer aprender a escrever; e,
se isso ocorrer, ele fugirá daqui”.
Bailey aprendeu mais nas ruas de Baltimore: “Quando eu encontrava qualquer garoto que soubesse
escrever eu lhe dizia que eu podia escrever tão bem quanto ele. A respostava era sempre 'Não
acredito. Quero ver'. Então eu desenharia as letras que havia tido a sorte de aprender e desafiá-lo-ia
a fazer melhor. Desta maneira eu tive boas lições de escrita, que possivelmente não teria de
nenhuma outra maneira”.
Quando Bailey tinha doze anos, ouviu seus amigos lerem uma coleção de grandes discursos que
lhes havia sido recomendada na escola. Ele pegou cinquenta centavos que havia economizado, foi
até a livraria Knight, e comprou sua própria cópia de The Columbian Orator [“O orador
colombiano”]. Compilado por Caleb Bingham, apareceu pela primeira vez em 1797, e teve várias
edições. “Sozinho, atrás do muro do estaleiro”, relatou o biógrafo William McFeely, “Frederick
Bailey lia em voz alta. Com dificuldades e de maneira estudada a princípio, e depois fluente e
melodiosamente, ele recitava grandes discursos. Com The Columbian Orator nas mãos, com as
palavras dos grandes oradores vindo da sua boca, ele ensaiava. Ele lia os sons – e os significados –
das palavras que ele mesmo um dia iria escrever. Ele tinha o mundo inteiro à sua frente. Ele era
Catão diante do Senado Romano, [William] Pitt [o Velho] diante do Parlamento, defendendo a
liberdade americana, [Richard Brinsley] Sheridan defendendo a emancipação dos Católicos,
Washington desejando sucesso a seus oficiais”. O livro incluía A Dialogue between Master and
Slave [“Diálogo entre senhor e escravo”], no qual o escravo diz ao senhor que ele não deseja
gentileza, mas sim liberdade. Havia também uma peça curta, Slave in Barbary [“Escravo na
barbárie”], em que o governante Hamet declara: “Lembremo-nos de que não há nenhum luxo tão
belo quanto o exercício da humanidade e nenhuma posição tão honrosa quanto a daquele que
defende OS DIREITOS DO HOMEM”.
Bailey lembrou: “o trunfo de prata da liberdade havia inflamado minha alma para o eterno
despertar. A liberdade havia aparecido, para nunca mais desaparecer. (...) Foi escutada em todos os
sons e vista em tudo. Esteve sempre presente para me atormentar com a noção da minha infeliz
condição. Ela estava em tudo o que eu via, ouvia e sentia. Olhava-me de cada estrela, sorria em
cada calmaria, respirava em cada brisa e movia-se em cada tempestade”.
Em março de 1832, Thomas Auld decidiu que precisava de Bailey, e ele voltou à propriedade de
Auld em St. Michaels, Maryland. Auld percebeu que o gosto pela liberdade havia tido um efeito
pernicioso sobre Bailey e que uma dura disciplina se fazia necessária. Assim, em janeiro de 1833
ele foi enviado a Edward Covey, um pequeno fazendeiro conhecido como “quebrador de negros”.
Bailey foi brutalmente chicoteado uma vez; quando Covey tentou fazê-lo novamente, Bailey
defendeu-se com sucesso usando seus braços fortes e seu espírito indomável. “Eu não era nada
antes”, escreveria Bailey depois; “AGORA EU ERA UM HOMEM”.
Ele resolveu ser livre e fez o que pôde para alimentar o espírito da liberdade em outros. Na casa de
um negro liberto, ele educou cerca de quarenta escravos com The Columbian Orator e uma cópia
do livro de alfabetização de Webster, que ele aparentemente havia adquirido através de um amigo.
“Estas boas almas não vinham à escola de sábado porque era popular fazê-lo, nem eu ensinava-os
por isso me trazer a reputação de uma pessoa engajada”, escreveu. “A cada momento que eles
passavam na escola, poderiam ser levados e sofrerem trinta e nove chicotadas. Eles vinham porque
desejavam aprender. Suas mentes haviam passado fome pelas mãos de seus cruéis senhores. (...) O
trabalho de instruir meus companheiros escravos foi o mais gratificante com que já fui abençoado”.
Em abril de 1836, Bailey e outros quatro escravos armaram um plano de fuga, mas foram traídos.
Eles foram arrastados por cavalos por quinze milhas até a cadeia de Easton. Bailey foi considerado
uma perigosa influência na fazenda, e Thomas Auld decidiu que ele deveria ser devolvido a seu
irmão Hugh, em Baltimore. Bailey conseguiu um emprego no estaleiro de Gardiner como aprendiz
de calafetador. Na primavera de 1838, ele propôs um negócio a Hugh Auld: deixá-lo livre para que
terceirizasse seu trabalho. Ele compraria suas próprias ferramentas, pagaria por sua moradia e
alimentação, e enviaria três dólares por semana. Auld sabia que, se dissesse não, Bailey
provavelmente fugiria, e então concordou. Bailey juntou-se à East Baltimore Mental Improvement
Society, uma associação de calafetadores negros libertos que se reuniam para debater idéias e
aprender mais sobre viver por seus próprios meios.
Nesta época, ele conheceu Anna Murray, uma negra liberta cujos pais supostamente haviam sido
libertados antes do seu nascimento. Ela era cerca de cinco anos mais velha que ele e trabalhava
como doméstica em Baltimore. Embora fosse analfabeta, foi provavelmente ela quem o incentivou
a tocar violino. Este tornou-se um passatempo predileto, e ele amava especialmente Händel, Haydn
e Mozart.
Anna supostamente teria arrecadado dinheiro para que Bailey fugisse vendendo seu colchão de
penas. Como ele havia trabalhado nas docas de Baltimore, sabia falar como um marinheiro, e
decidiu escapar vestido assim, trajando uma camisa vermelha, um chapéu de marinheiro e um lenço
no pescoço. Em 3 de setembro de 1838, embarcou em um trem lotado em direção ao norte e,
quando o condutor pediu por seus “papéis de alforria”, certificando que ele não era escravo, ele
apresentou documentação de marinheiro (usada por marinheiros americanos quando em viagens ao
exterior), que havia pegado emprestado com um marinheiro negro liberto aposentado. O condutor
não notou que os papéis descreviam outra pessoa. Ele escapou de várias pessoas que suspeitaram e
conseguiu chegar a Nova York, onde encontrou Anna, e se casou com ela. Então eles se mudaram
para New Bedford, Massachussets, uma cidade próspera baseada na construção naval, onde ele
estaria a salvo de caçadores de escravos e provavelmente encontraria um emprego como
calafetador. New Bedford contava com cerca de vinte mil habitantes, uma comunidade negra, e um
contingente significante de Quakers abolicionistas.
Bailey ficou maravilhado com a prosperidade em New Bedford: “Eu havia estranhamente suposto,
enquanto escravo, que os poucos confortos, e quiçá alguns dos luxos, desfrutados no Norte, se
comparavam aos desfrutados pelos senhores de escravos do Sul. Eu provavelmente cheguei a essa
conclusão partindo da premissa de que as pessoas no Norte não tinham escravos. Eu supunha que
eles estivessem no mesmo patamar dos não-proprietários de escravos do Sul. Eu sabia que eles eram
extremamente pobres, e eu havia me acostumado a ver a pobreza deles como uma consequência
necessária do fato de não possuírem escravos. Eu tinha assimilado de alguma maneira a idéia de
que, na ausência de escravos, não poderia haver riqueza, e muito pouco refinamento...”
“Aqui eu me vi cercado pelas maiores provas de riqueza. Deitado no cais, ou mesmo navegando, vi
muitos navios dos melhores modelos, da melhor qualidade, e do maior tamanho. À minha direita e à
minha esquerda havia armazéns de granito das maiores dimensões, abarrotados até o limite com as
necessidades e confortos da vida. Além disso, quase todos pareciam trabalhar, mas, em comparação
com aquilo a que eu me acostumara em Baltimore, quase silenciosamente... Eu não ouvia terríveis
xingamentos dirigidos ao trabalhador. Não vi homens chicoteados; mas tudo parecia funcionar
perfeitamente. Todos os homens pareciam entender seu trabalho, e o realizavam com uma aplicação
sóbria e ao mesmo tempo alegre, que denunciava o profundo interesse que ele sentia por aquilo que
fazia, além de uma percepção de sua própria dignidade enquanto homem. Para mim, isso parecia
incrivelmente estranho. Eu saía do cais para passear pela cidade, observando com espanto e
admiração as igrejas esplêndidas, as casas belas e os jardins delicadamente cultivados, revelando
uma riqueza, um conforto e um bom gosto como eu jamais vira em qualquer parte da Maryland
escravagista.”
Até que o casal encontrasse um lugar para si, hospedou-se com Mary e Nathan Johnson, cozinheiros
negros. Bailey contou que Nathan lia “mais jornais, entendia melhor o caráter moral, religioso e
político da nação do que nove décimos dos donos de escravos em Talbot County, Maryland. No
entanto, Mr. Johnson era um trabalhador. Suas mãos tinham sido enrijecidas pelo trabalho duro, e
não só as suas, mas suponho que também as de Mrs. Johson. Achei as pessoas de cor muito mais
animadas do que esperava. Entre elas, encontrei a determinação de proteger uma a outra do
sequestrador sanguinário a qualquer custo”. Nathan sugeriu que Bailey adotasse um nome livre
distintivo, como Douglas, o nome do lorde escocês no poema “The Lady of the Lake” [“A dama do
lago”], de Walter Scott. Ele aceitou a sugestão, acrescentando um “s” para dar individualidade.
Ele conseguiu um emprego numa refinaria de óleo de baleia de propriedade de quakers, e ele e
Anna frequentavam Igreja Sião Episcopal Metodista Africana. O pastor, Thomas James, trabalhava
no movimento abolicionista e editava uma publicação quinzenal chamada The Rights of Man [“Os
direitos do homem”]. Em 12 de março de 1839, Douglass levantou-se na igreja e denunciou as
propostas de que os negros fossem enviados de volta à África. Ele queria ficar na América. Suas
palavras foram comoventes o bastante para ser mencionadas no Liberator, jornal abolicionista
radical que William Lloyd Garrison publicava semanalmente desde janeiro de 1831. Ele foi
convidado a falar em 10 de agosto numa reunião da Sociedade Abolicionista de Massachusetts em
Nantucket. Garrison e Wendell Phillips, seu compatriota, estariam lá.
Em Nantucket, de acordo com as recordações de Garrison, Douglass “veio até o palanque com
hesitação e constrangimento. Depois de se desculpar por sua ignorância, e de lembrar à audiência
que a escravidão era uma escola ruim para o intelecto e o coração humano, começou a narrar alguns
fatos da sua própria história de escravo, e em seu discurso proferiu pensamentos nobres e reflexões
comoventes. Tão logo voltou a se sentar, cheio de esperança e admiração, me levantei e declarei que
Patrick Henry, de fama revolucionária, jamais fizera um discurso tão eloquente na causa da
liberdade”.
Pediram a Douglass que se tornasse palestrante pago para a Massachusetts Anti-Slavery Society
[Sociedade Anti-Escravagista de Massachusetts]. Ele se uniu a Garrison, Phillips, Stephen S. Foster
e Charles Lenox Remond, falando em qualquer lugar onde conseguissem reunir uma dúzia de
pessoas. Douglass deu mais de 100 palestras por ano em Massachusetts, New Hampshire e Rhode
Island, e se tornou um valioso articulista do Liberator, apesar de ter sido importunado e agredido
diversas vezes.
Sua primeira autobiografia, Narrative of the Life of Frederick Douglass (junho de 1845), o ajudou a
garantir a fama. Foi escrita como um tratado anti-escravidão, com os detalhes de sua fuga omitidos
para a proteção de outros. Publicado pelo Anti-Slavery Office, em Boston, o livro incluía uma carta
de Phillips e um prefácio por Garrison. Houve três edições européias, e o total de vendas chegou a
trinta mil em apenas cinco anos.
Parecia natural que Douglass ajudasse os europeus contra o Sul e o isolasse da comunidade
internacional. No outono de 1845, Garrison e ele falaram para plateias na Escócia, Inglaterra e País
de Gales. Dramatizavam os males da escravidão americana, atacavam os clérigos que apoiavam a
escravidão, pediam às pessoas que cortassem relações com o Sul escravocrata, e solicitavam
contribuições. Na Irlanda, Douglass se horrorizou ao ver uma pobreza pior do que ele jamais havia
conhecido. Numa reunião com cerca de vinte mil pessoas, ele dividiu o palanque com Daniel
O’Connel, um ruivo de mais de 1,80m . Douglass se comoveu quando o irlandês o intitulou o
“O’Donell negro dos Estados Unidos”. Depois da crise na colheita de batatas e da resultante fome
irlandesa, Douglass se uniu a Richard Cobden, o ativista magro, moreno e tranquilo, e a seu
parceiro John Bright, orador apaixonado. Os três viajavam de cidade em cidade exigindo a abolição
imediata das Corn Laws (tarifas sobre os grãos), para que a população faminta pudesse comprar
comida mais barata. Douglass foi recebido no London’s Free-Trade Club, e celebrou o tempo que
passou ali como “um hóspede bem-vindo na casa do Sr. Bright em Rochdale... Tratado como amigo
e irmão em meio a seus irmãos e irmãs”.
Enquanto isso, Douglass descobriu que Hugh Auld estava determinado a capturá-lo quando
retornasse aos Estados Unidos. Como ele havia se tornado uma figura importante no movimento
abolicionista, os amigos de Douglass acharam melhor comprar sua liberdade. Douglass se tornou
legalmente livre em 12 de dezembro de 1845, e partiu para os Estados Unidos em 4 de abril de
1847.
Douglass teve seu papel na Ferrovia Subterrânea. Aparentemente, era possível a um escravo viajar
de um estado na fronteira até o Canadá em 48 horas. Muitos escravos fugitivos apareciam na casa
de três andares de Douglass em Rochester, Nova York, e sua família cuidava deles até que
pudessem percorrer as sete milhas até Charlotte e de lá pegar um barco a vapor até o Canadá. A
maior parte das fugas acontecia durante o inverno, quando havia menos supervisão nas plantações, e
Douglass incansavelmente levantava dinheiro para oferecer aos pobres escravos fugitivos roupas
quentes e comida.
Douglass apreciava sua independência. Ele acreditava em usar todos os métodos pacíficos contra a
escravidão, incluindo a ação política, mas Garrison se opunha a ela. Douglass criou seu próprio
jornal abolicionista, idéia contrária aos defensores de Garrison, que observavam que
o Liberator estava perdendo dinheiro. Em 3 de dezembro de 1847, com US$4000 obtidos numa
turnê de palestras, Douglass publicou a primeira edição de North Star, que manteve por 17 anos.
Nos dias 19 e 20 de julho de 1848, ele falou na Convenção de Seneca Falls, organizada pela dona
de casa Elizabeth Cady Stanton para promover os direitos das mulheres. Douglass era o único
homem a defender a proposta de Stanton em favor do sufrágio feminino. Ele concordava que as
donas de casa pudessem ganhar seu próprio dinheiro; que as viúvas, assim como os viúvos,
pudessem ser responsáveis legais por seus filhos; e que as mulheres, assim como os homens,
tivessem direito a possuir propriedades, herdar propriedades, e administrar patrimônios.
Em 6 de março de 1857, o juiz Roger B. Taney, da Suprema Corte, sentenciou, no notório
caso Dred Scott, que nem um escravo, nem um ex-escravo, nem um descendente de escravos
poderia se tornar cidadão americano. Revoltado, Douglass queria ouvir qualquer idéia que pudesse
ajudar na luta contra a escravidão. Em 1858, John Brown, abolicionista, estava na casa de Douglass
em Rochester, trabalhando em sua idéia de fomentar uma insurreição negra e criar um estado negro
nos Apalaches. A polícia ficou no encalço de Douglass depois de Brown ter roubado o arsenal
federal de Harpers Ferry, Virgínia, em 16 de outubro de 1859. Douglass fugiu para a Inglaterra, e
ficou lá por vários meses.
Depois do tiroteio de abril de 1861 em Fort Sumter, que marcou o início da guerra civil, Lincoln
deixou claro que a luta era para preservar a União, não para abolir a escravidão. A política de
Lincoln era que os escravos fugitivos fossem devolvidos a seus senhores. Douglass, mesmo assim,
exigia “a emancipação total e irrestrita de todo escravo nos Estados Unidos, seja sua posse
reclamada por um senhor leal ou desleal”. Em 1 de janeiro de 1863, Lincoln promulgou a
Proclamação de Emancipação, dizendo que os escravos estavam libertados nos estados rebeldes, os
quais ele obviamente não controlava. A proclamação não libertava os escravos do Norte, mas fazia
da abolição um objetivo da guerra. Ainda que Douglass admirasse Lincoln, ele percebia o quanto
Lincoln estava disposto a ceder à escravidão.
Quando a escravidão foi abolida, Douglass decidiu concentrar-se em obter para os negros o direito
de votar, para que pudessem estabelecer uma presença política (os negros não podiam votar em
Connecticut, Nova Jersey, Pensilvânia e diversos estados do oeste), mas era politicamente
impossível obter o direito de voto para as mulheres e os negros ao mesmo tempo. Logo depois de
30 de março de 1870, data da adoção da décima-quinta emenda, que dava aos negros o direito de
voto, Douglass apoiou a campanha pelo voto feminino.
Douglass entrou para o Partido Republicano durante o longo ocaso de sua carreira, mas suas
conexões políticas de pouco adiantaram. Grupos terroristas como os Caras Pálidas, Cavaleiros da
Camélia Branca e a Ku Klux Klan assassinavam negros e queimavam casas, escolas e igrejas de
negros, e nem o governo federal nem o estadual faziam alguma coisa.
Douglass incentivava a auto-ajuda. Incentivava os pais negros: “Eduquem seus filhos, mandem-nos
para a escola. (...) Onde quer que um homem seja jogado pela má fortuna, se ele conhecer uma
profissão útil, será útil aos demais homens, e assim será considerado”.
Em 1881, publicou The Life and Times of Frederick Douglass [“A vida e a época de Frederick
Douglass”], que dava maiores detalhes de sua vida de escravo, revelando (pela primeira vez) como
fugira, e discutindo as dificuldades subsequentes. Uma edição ampliada apareceu onze anos depois.
Anna, esposa de Douglass, faleceu em 4 de agosto de 1882. Quando ele se casou com Helen Pitts,
uma abolicionista branca, tanto negros quanto brancos ficaram horrorizados. Incendiários
queimaram sua amada casa de Rochester, e o casal se mudou para uma casa branca de 20 cômodos
num terreno de 23 acres próximo ao rio Anacostia em Washington, DC. O terreno já tinha sido
propriedade de Robert E. Lee. Com o nome de Cedar Hill, tinha uma biblioteca e um salão de
música, onde Douglass podia tocar seu violino.
Em 20 de fevereiro de 1895, ele participou de uma manifestação em Washington, DC, pelos direitos
das mulheres. Quando terminou de jantar, naquela noite, levantou-se da cadeira, caiu e morreu.
Houve um funeral privado em sua casa, e o caixão foi levado para a Igreja Epsiscopal Metodista
Africana Metropolitana, onde imensas multidões foram vê-lo. Após outro culto na Igreja Central de
Rochester, ele foi enterrado no Cemitério Mount Home, ao lado de sua esposa e filha.
Mais do que qualquer pessoa, Douglass deu um rosto humano aos horrores da escravidão
americana. Ele ajudou a convencer milhões de pessoas de que ela deveria ser abolida, falou
bravamente contra a subversão dos direitos civis, e expressou grande simpatia por todos os
oprimidos. Instou as pessoas a ajudar a si mesmas e a cumprir seu destino, sonhando com o dia em
que homens e mulheres, negros e brancos, e todos pudessem viver em paz.

Rose Wilder Lane


No início dos anos 40, tiranos oprimiam ou ameaçavam povos em todos os continentes. Intelectuais
ocidentais ocultavam assassinos em massa, como Joseph Stalin, e governos ocidentais expandiam
seus poderes ao estilo soviético de planejamento central. Cinquenta milhões de pessoas foram
mortas na guerra travada na Europa, na África e na Ásia. Os Estados Unidos, aparentemente a
última esperança para a liberdade, também foram arrastados para dentro dela.
Autores americanos consagrados que defendiam a liberdade eram uma raça em extinção. O crítico
literário H. L. Mencken havia se afastado da política para escrever suas memórias, enquanto outros,
como o escritor Albert Jay Nock e o jornalista Garet Garrett, estavam cheios de pessimismo. Em
meio ao pior dos tempos, Rose Wilder Lane ousou declarar que o coletivismo era um mal. Ela se
levantou em defesa dos direitos naturais, a única filosofia que oferecia uma base moral para se opor
à tirania em todos os lugares, e celebrou o antigo e vigoroso individualismo. Ela previu um futuro
em que as pessoas poderiam ser livres de novo, e expressou-o com exuberante otimismo.
Lane era uma estrangeira que veio de um território que não era ainda parte dos Estados Unidos e
iniciou uma carreira antes de muitas mulheres terem direitos iguais. Tornou-se uma das
escritoras freelance de maior sucesso em sua época. Viajou a trabalho pela Europa Oriental e aos 78
anos se tornou correspondente de guerra no Vietnã. Publicou textos em American
Mercury, Cosmopolitan, Country Gentleman, Good Housekeeping, Harper’s, Ladies' Home
Journal, McCall’s, Redbook, Saturday Evening Post, Sunset, Woman’s Day, e outras revistas.
Produziu roteiros para o apresentador de rádio Lowell Thomas, cuja especialidade eram aventuras
de viagens exóticas, e escreveu biografias de Charles Chaplin, Henry Ford e Jack London. Seu
romance Let the Hurricane Roar [“Deixe o furacão rugir”] (1933) foi um best-seller que
permaneceu em catálogo por quatro décadas e foi adaptado para a televisão como Young
Pioneers [“Jovens pioneiros”]. Seu livro The Discovery of Freedom [“A descoberta da liberdade”]
(1943), ainda disponível, ajudou a inspirar o moderno movimento libertário. Ela atingiu seu maior
impacto quando transformou as histórias contadas por sua mãe na adorada série de livros Little
House [“Casinha”], tratando temas como responsabilidade individual, auto-confiança, cortesia,
coragem e amor. Muitas pessoas consideram-na a melhor série de livros infantis já escrita.
Referindo-se a Lande e suas compatriotas, a jornalista Isabel Paterson e a romancista Ayn Rand,
John Chamberlain, editor da Fortune, escreveu admiradamente que “com um olhar desdenhoso para
a comunidade empresarial masculina, elas decidiram reacender a fé em uma filosofia americana
mais antiga. Não havia nenhuma economista dentre elas. E nenhuma delas era uma Ph.D”. Albert
Jay Nock declarou que “elas fazem com que nós escritores homens nos pareçamos com dinheiro
Confederado [N.T.: sem valor]. Elas não se descuidam nem perdem tempo – cada tiro vai direto ao
ponto”.
O biógrafo William Holtz notou que a filosofia política foi “o principal interesse de Lane durante
metade de sua vida adulta. Ela era uma figura importante na transmissão do persistente fio de
pensamento libertário em nosso país, e muitos daqueles que respeitam e amavam-na formavam na
verdade um tipo de camaradagem entre guerreiros contra o Estado. (...) Altamente autodidata,
sempre uma leitora voraz e variada e, por temperamento, uma pensadora independente, ela
acreditava em poucas coisas simplesmente por fé, testado idéias instintivamente contra sua própria
experiência”.
Lane uma vez descreveu a si mesma como uma “rechonchuda mulher de meia-idade, do Meio-
Oeste, de classe média, com cabelos brancos e gostos simples. Eu gosto de pipoca amanteigada,
amendoim salgado, pão e leite”. Ela tinha dentes feios, seu casamento fracassara, ela trabalhava
para ajudar seus pais idosos, e em certa época durante os anos 30 ela se encontrava tão mal
financeiramente que sua eletricidade foi cortada. Ainda assim, ela se elevou com eloquência ao
ajudar a reviver os princípios libertários da Revolução Americana, e inspirou milhões.
Ela nasceu Rose Wilder, em 5 de dezembro de 1886, perto de De Smet, Território de Dakota. Seu
pai, Almanzo Wilder, e sua mãe, Laura Ingalls, eram fazendeiros pobres, devastados pela seca, pelas
tempestades de granizo e outras calamidades. Por muitos anos, a família viveu em uma cabana sem
janelas e perdeu muitas refeições. Nomearam sua filha em razão das rosas selvagens que floresciam
na pradaria.
“Nós não gostávamos de disciplina,” recordou-se Rose, “então sofremos até que nos
disciplinássemos. Vimos muitas coisas e muitas oportunidades que desejávamos ardentemente mas
pelas quais não podíamos pagar, então nós não as comprávamos, ou o fazíamos às custas de um
estupendo e desgostoso esforço e auto-negação, já que as dívidas eram mais difíceis de aguentar do
que as privações. Nós éramos honestos, não porque a pecaminosa natureza humana assim o
quisesse, mas porque as consequências da desonestidade eram excessivamente dolorosas. Estava
claro que se sua palavra não fosse tão boa quanto uma promissória assinada por você, sua
promissória não era tão boa e você não valia nada. ... Nós aprendemos que é impossível conseguir
algo em troca de nada”.
Quando Rose tinha quatro anos, sua família desistiu de Dakota e se mudou para Mansfield,
Missouri, onde poderiam plantar maçãs. Ela passou a frequentar uma escola de quatro salas e
paredes de tijolos vermelhos que tinha duas prateleiras de livros, e descobriu as maravilhas de
Charles Dickens, Jane Austen e Edward Gibbon. Seu principal suporte foi a
famosa Readers [“Leitores”], compilada por William Holmes McGuffey, presidente do Cincinnati
College, que transmitia lições morais conforme ensinava os fundamentos da leitura e expunha
mentes jovens a muitos grandes autores da civilização Ocidental. Mas ela deixou a escola no nono
ano e decidiu que deveria ver o mundo além do interior de Missouri. Ela tomou um trem até Kansas
City e conseguiu um emprego como telefonista na Western Union durante o turno da noite. Passava
a maior parte de seu tempo livre lendo. Em 1908, foi a San Francisco para um trabalho pela Western
Union. Lá ela teve um romance com o vendedor de mídia Gillette Lane, com quem se casou em
março de 1909. Ficou grávida, mas teve um parto prematuro ou um aborto espontâneo. Ela não
pôde mais engravidar depois disso.
Em 1915 seu casamento já havia acabado, mas através das conexões de Gillette em jornais, Rose
teve seu início como jornalista. Para o San Francisco Bulletin, um jornal operário radical, ela
começou a escrever uma coluna para mulheres, passando para um perfil diário de 1.500 palavras
sobre personalidades, e escrevendo um romance autobiográfico em série na revista Sunset.
Por algum motivo ela se tornou uma socialista cristã, e uma fã do socialista Eugene Debs. Então a
Revolução Bolchevique cativou sua imaginação e ela abraçou o comunismo. Enquanto estava em
Nova York, onde ela esperava lançar-se em uma carreira como escritora freelancer, conheceu o
divulgador comunista John Reed e o escritor comunista Max Eastman.
Em março de 1920, a Cruz Vermelha convidou-a para viajar pela Europa e noticiar os seus esforços
humanitários, para que potenciais doadores – de cujo apoio eles dependiam – soubessem do bem
queestavam fazendo. Vivendo em Paris, viajou para Viena, Berlim, Praga, Varsóvia, Budapeste,
Roma, Sarajevo, Dubrovnik, Tirana, Trieste, Atenas, Cairo, Damasco, Bagdá e Constantinopla.
Lane imaginava que a Europa fosse a grande esperança para a civilização, mas em vez disso ela
teve que fugir de bandido s, encontrou corrupção burocrática, resistiu à inflação acelerada e
testemunhou os horrores da guerra civil e as sombras obscuras de tiranias cruéis.
Quando Lane visitou a União Soviética, os Bolcheviques estavam no poder havia quatro anos. Ela
esperava que os camponeses estivessem radiantes com o comunismo, mas conforme ela relatou
depois, “Meu anfitrião me surpreendeu pela força com que dizia não gostar do novo governo. (...)
Sua reclamação era de que o governo interferia nos assuntos da vila. Ele protestou contra a
crescente burocracia que estava afastando mais e mais homens do trabalho produtivo. Ele previu
caos e sofrimento como resultados da centralização do poder econômico em Moscou”. “Eu deixei a
União Soviética não sendo mais uma comunista”, ela continuou, “pois eu acreditava na liberdade
pessoal. Como todos os americanos, eu subestimei o valor da liberdade individual em meio à qual
eu havia nascido. Ela era tão necessária e inevitável quanto o ar que eu respirava; era o elemento
natural no qual seres humanos vivem. A idéia de que eu poderia perdê-la nunca havia me ocorrido.
E eu não poderia conceber que multidões de seres humanos estivessem dispostos a viver sem ela”.
Após seu retorno aos Estados Unidos em novembro de 1923, sua carreira floresceu conforme ela
passou a escrever para revistas famosas e a publicar romances sobre a vida de pioneiro. A famosa
atriz Helen Hayes protagonizou o romance de Lane Let the Hurricane Roar no rádio. Não obstante,
Lane ficou economicamente devastada durante a Grande Depressão. Em 1931 ela lamentou, “Tenho
quarenta e quatro anos. Devo US$ 8.000,00. Tenho US$ 502,70 no banco. (...) Nada do que eu
pretendia jamais foi realizado”.
Em 1936, Lane escreveu “Credo”, um artigo para o Saturday Evening Post. Três anos depois,
Leonard Read, gerente geral da Câmara de Comércio de Los Angeles, ajudou a criar a editora por
ele nomeada Pamphleteers [“Panfleteiros”], que relançou o artigo de Lane como Give Me
Liberty [“Dê-me liberdade”]. “Eu comecei a entender aos poucos”, escreveu ela, “que sou dotada de
liberdade inalienável pelo Criador assim como sou dotada da minha própria vida; que a minha
liberdade é inseparável da minha vida”.
Em 1942, um editor da John Day Company pediu que Lane escrevesse um livro sobre a liberdade.
Ela começou o trabalho em um estacionamento para trailers no Texas durante uma viagem pelo
Sudoeste e chegou a pelo menos dois rascunhos em sua casa em Danbury, Connecticut. The
Discovery of Freedom: Man’s Struggle Against Authority [“A descoberta da liberdade: a luta do
homem contra a autoridade”], publicado em janeiro de 1943, narrava a luta épica de pessoas
comuns que desafiam governantes para criar suas famílias, produzir comida, construir indústrias,
comerciar, e melhorar a vida humana de incontáveis maneiras. Ela foi lírica a respeito da Revolução
Americana, que ajudou a garantir liberdade e libertou uma energia fenomenal para o progresso
humano. “Por que os homens morreram de fome por seis mil anos?” perguntou. “Por que eles
caminharam e carregaram bens e outros homens sobre suas costas, por seis mil anos, e subitamente,
em um século, apenas em um sexto da superfície da Terra, eles fizeram navios a vapor, ferrovias,
motores, aviões, e agora estão pela Terra nas mais estupendas alturas? Por que famílias viveram em
por milênios em choupanas sem telhados, janelas ou chaminés, então, em oito anos e apenas nestes
Estados Unidos, passaram a ter assoalhos, chaminés, janelas de vidro como algo certo, e consideram
luz elétrica, vasos sanitários de porcelana e cortinas como necessidades mínimas?”
Ela atribuiu estes desenvolvimentos dramáticos à liberdade. Ela saudou as proteções constitucionais
“proibindo o governo americano de expropriar ou realizar buscas na pessoa de um americano sem
um devido processo legal; de aprisioná-lo sem julgamento; de julgá-lo em segredo ou sem deixá-lo
convocar testemunhas em sua defesa; de julgá-lo duas vezes pelo mesmo crime; de puni-lo por
crime cometido por outra pessoa; de recusar-lhe julgamento por júri ou negar-lhe o direito a
apelação; de torturá-lo; ou negar-lhe seu direito de associação, ou seu direito a peticionar o governo,
ou seu direito de ter armas, ou seu direito de possuir propriedade”.
Lane ficou insatisfeita com o livro e recusou permissão para republicá-lo. Ela nunca chegou a
completar outra edição. Apenas mil cópias do livro foram imprimidas durante sua vida. Apesar
disso, The Discovery of Freedom teve grande impacto, circulando como um clássico underground.
Ele ajudou a inspirar o início de várias organizações voltadas à promoção da liberdade durante os
anos 40 e 50, dentre elas, a Foundation for Economic Education, de Leonard Read, o Institute for
Humane Studies, de F. A. Harper, e a Freedom School, de Robert M. Lefevre.
Embora The Discovery of Freedom tenha sido um documento fundador do moderno movimento
libertário, Lane talvez tivesse um chamado mais forte por detrás das cenas. Em 1930, Laura Ingalls
Wilder, sua mãe, lhe deu um manuscrito sobre sua juventude de Wisconsin para Kansas e Dakota.
Lane excluiu o material sobre Wisconsin, dedicando-se a dois rascunhos do resto, esboçando a
história e seus personagens. Isto veio a se tornar um manuscrito de cem páginas provisoriamente
intitulado Pioneer Girl [“Garota pioneira”], que ela enviou ao seu agente literário, Carl Brandt. O
material de Wisconsin tornou-se uma história de vinte páginas, “When Grandma Was a Little Girl”
[“Quando vovó era uma garotinha”], um texto possível para um livro de figuras para criança. Um
editor sugeriu que a história fosse expandida para um livro destinado a jovens leitores.
Lane contou as novidades a sua mãe, e já que o manuscrito original havia sido amplamente reescrito
além, ela explicou, “são as histórias do seu pai, retiradas do longo manuscrito Pioneer Girl, e
conectadas, como você verá”. Lane especificou o tipo de material de que necessitava,
acrescentando, “Se você achar mais fácil escrever em primeira pessoa, faça-o assim. Eu vou mudar
para a terceira pessoa depois”. Lane garantiu a sua mãe que a colaboração permaneceria um segredo
de família: “Eu nunca disse que tinha escrito o manuscrito na minha própria máquina de escrever”.
Em 27 de maio de 1931 o livro estava terminado, e Lane enviou-o aos editores. A Harper Brothers
lançou-o em 1932 como Little House in the Big Woods [“A casinha na grande floresta”], e se tornou
um marco na literatura infantil.
Em janeiro de 1933, Wilder terminou o manuscrito de Farmer Boy [“Garoto fazendeiro”], sobre
lembranças da infância de Almanzo. Os editores rejeitaram-no, presumivelmente por ser apenas
uma crônica sobre o trabalho na fazenda. Mas Lane passou um mês transformando-o em uma
história com personagens mais realistas, e a Harper Brothers comprou-o. No ano seguinte, Wilder
entregou a Lane um manuscrito sobre sua vida em Kansas, e ela passou cinco semanas
reescrevendo-o como Little House on the Prairie [“Casinha na pradaria”].
A série “Little House” começou a gerar renda suficiente para os Wilder, um alívio para Lane, cujo
objetivo era oferecer-lhes segurança financeira. Wilder expandiu parte de Pioneer Girl em outro
manuscrito e entregou-lhe a Lane em 1936. “Eu escrevi os porquês da história como eu a escrevi”,
explicou Wilder. “Mas você sabe que o seu julgamento é melhor que o meu, então o que você
decidir é o que valerá”. Lane passou dois meses reescrevendo-o e enviou um rascunho a seu agente
literário, requisitando melhores termos para o contrato. Este se tornou On the Banks of Plum
Creek [“À beira do riacho Plum”]. Lane passou a maior parte de 1939 reescrevendo o manuscrito
de By the Shores of Silver Lake [“Às margens do lago Silver”]. The Long Winter [“O longo in
verno”] apareceu em 1940, Little Town on the Prairie [“Cidadezinha na pradaria”] em 1941 e These
Happy Golden Years [“Os felizes anos dourados”] em 1942.
Os livros retratavam uma família muito próxima na fronteira americana durante os anos 1870 e
1880: o discretamente corajoso Pai (Charles Ingalls), que realizava uma quantidade estupenda de
trabalhos, construindo casas, plantando, criando animais de fazenda e ajudando aos vizinhos; Mãe
(Caroline Ingalls), que tomava conta das crianças e mantinha uma vida civilizada mesmo nas
condições mais primitivas; e as crianças, Mary, Laura, Carrie e Grace. A família passou por
dificuldade após dificuldade: lobos famintos, invernos brutais, índios hostis, colheitas destruídas por
gafanhotos, ferozes fogos nas pradarias, escarlatina e a doença que cegou Mary. A família nunca
teve muito dinheiro, mas teve uma vida maravilhosa juntos.
Pai era o grande herói das histórias. On the Banks of Plum Creek contou como, após gafanhotos
terem devorado o trigo e o feno que ele havia plantado em Minnesota, ele caminhou por mais de
trezentos quilômetros em direção ao leste em suas botas remendadas para conseguir dinheiro
cuidando da colheita de outras pessoas. Em outra ocasião, caminhando para casa de volta da cidade,
ele foi pego em meio a uma súbita nevasca e se perdeu, mas sobreviveu por três dias dentro de um
buraco até que a nevasca terminasse. A qualquer hora, Pai renovava os ânimos de todos quando
pegava sua rabeca e enchia a casa de música.
Os leitores podiam ver as maravilhas da imaginação criativa: “Primeiro, alguém pensou em uma
ferrovia. Então alguns observadores vieram até aquele campo vazio, e marcaram e mediram uma
ferrovia que não estava lá; era apenas uma estrada de ferro que alguém havia imaginado. Então os
arados vieram para romper o gramado da pradaria, e as escavadeiras vieram para escavar a terra, e
os caminhoneiros com seus caminhões para levá-la. E todos eles diziam que estavam trabalhando na
ferrovia, mas ainda assim não havia nenhuma ferrovia lá. Não havia nada lá além de cortes nas
elevações da pradaria, trechos do caminho da ferrovia que eram apenas sulcos de terra curtos e
estreitos, apontando para o oeste através da terra gramada”(By the Shores of Silver Lake).
O seu individualismo se manifestava em alto e bom som: “Todos sabiam que ninguém era igual a
ninguém. Você poderia medir um tecido com uma fita métrica, ou a distância em milhas, mas não
poderia juntar pessoas e medi-las com nenhuma régua. Idéias e caráter não dependiam de nada a
não ser da própria pessoa. Algumas pessoas não tinham aos sessenta o juízo que outras tinham aos
dezesseis”(The Long Winter).
Os livros demonstraram o espírito da liberdade: “Os políticos vêm em bandos, e, dona, se existe
uma peste pior que os gafanhotos são os políticos” (The Long Winter). Em Little Town on the
Prairie, Rose descreveu o pensamento de sua mãe da seguinte maneira: “Americanos são livres.
Isto significa que eles devem obedecer a suas próprias consciências. Nenhum rei manda no Pai; ele
tem que mandar em si mesmo. Por que (ela pensava), quando eu for um pouco mais velha, Pai e
Mãe não vão mais me dizer o que fazer, e não há mais ninguém com o direito de me dar ordens. Eu
vou ter que ser boa”.
Extremamente leal a sua mãe, Lane não quis nenhum crédito pela série “Little House”, e sua
importância não foi documentada até que o professor de inglês William Holtz produziu a
biografia The Ghost in the Little House [“O fantasma na casinha”] (1993). “Em 1972”, lembra ele,
“minha esposa e eu começamos a ler Little House in the Big Woods para nossas filhas. O apelo do
livro foi imediato, e nós fomos atrás de outros livros de Laura Ingalls Wilder. Eles eram aquele raro
feito em literatura infantil, livros para crianças que ao mesmo tempo atraíam o interesse de adultos;
e nós achamos vivas e persuasivas as suas imagens sobre devoção familiar, trabalho duro e
disciplinado, e luta otimista contra as adversidades. (…) Como professor de literatura, fiquei mais e
mais interessado pela configuração de todo um conjunto de circunstâncias. (…) [Laura estava] em
seus sessenta antes que seus livros aparecessem, e sem nenhuma distinção literária anterior a este
súbito surgimento, ela passou ao imaginário como uma Grandma Moses literária, um talento natural
se abrindo para a vida depois de obscuridade nas montanhas de Missouri. (…) A história contada de
Laura Ingalls, da infância ao casamento, era (…) apresentada com tão alto grau de finish literário –
no ritmo, no equilíbrio, na estrutura, na caracterização, nos diálogos, no impacto dramático, tudo
isso confinado em um estilo e ponto de vista enganadoramente simples – como a alcançar o retrato
de um personagem fictício e um mundo imaginário de poder singular. A impressão da autora Laura
Ingalls Wilder como um gênio ingênuo era muito forte...”.
“Para valorizar a contribuição de Rose Wilder Lane aos livros de sua mãe, deve-se simplesmente ler
os manuscritos de sua mãe e comparará-los com as versões finais. O que Rose conseguiu foi nada
menos do que reescrever linha por linha narrativas trabalhadas e subdesenvolvidas”. Holtz observou
que um espírito animado permeia todos os livros da série “Little House”, exceto First Four
Years [“Quatro primeiros anos”] (1971), publicado postumamente, “o único livro de Laura Ingalls
Wilder que não passou pela mão de Rose Wilder Lane”.
Em 1974, a NBC começou a adaptar os livros para Little House on the Prairie [“Casinha na
pradaria”], uma série de televisão altamente popular que foi ao ar por nove anos. O presidente
Ronald Regan afirmou que Little House era seu programa de televisão favorito. Os programas
foram vistos em centenas de países e os acordos de reprodução garantiram que os programas
continuarão sendo reproduzidos pelos próximos 25 anos. A Time-Life Video vende hoje os quarenta
e oito programas mais populares. Michael Landon escreveu e dirigiu muitos dos programas, e
estrelou como Charles Ingalls, o pai de Laura.
O último sopro de Lane foi Woman’s Day Book of American Needlework [“Livro diário feminino do
bordado americano”], que transformou em um hino à liberdade. “O bordado americano fala”,
escreveu ela, “que os americanos vivem em uma sociedade sem classes. Essa república é o único
país que não tem um bordado camponês. (...) As mulheres americanas (...) descartaram panos de
fundo, bordas e molduras. Elas fizeram com que os detalhes criassem o todo, e firmaram cada
detalhe em um espaço sem limites, sozinho, independente, completo. (...) Havia rendas em todas as
casas, ninguém das classes mais baixas fazia rendas para pessoas das classes mais altas. Aqueles(as)
americanos eram um povo livre, imaginativo, criativo e ousado; eles gostavam de suavidade e
mudança. A renda americana demonstra que eles eram o povo que iria desenvolver rápidos veleiros,
navios a vapor e aviões”.
Sobre patchwork, escreveu: “lembremos, também, que ‘quando a Liberdade de sua altura
montanhosa desfraldou seu estandarte ao ar’, aquele estandarte era um modelo de patchwork com
treze listras, vermelhas e bancas, e um remendo azul que contava com treze estrelas e agora conta
com cinquenta. Aquele estandarte foi erguido pelos pobres e famintos que haviam vindo, ou sido
trazidos como gado, de todos os cantos do Velho Mundo para viver nos limites de um ambiente
selvagem. Recordemos que aqui eles encontraram liberdade e lutaram para defendê-la e preservá-la,
e que em liberdade eles construíram nosso país com suas mãos e seu ânimo inabalável”.
Embora Lane tenha permanecido ativa por toda sua vida – Woman’s Day mandou-a ao Vietnã como
correspondente em 1965 – ela estimava muito a vida no campo em sua casa em Danbury,
Connecticut. Em 29 de novembro de 1966 ela cozinhou pão para vários dias e subiu para o segundo
andar de sua casa para dormir e nunca acordou. Tinha setenta e nove anos. Roger MacBride, seu
amigo próximo e herdeiro literário, co-criador da séria de televisão Little House, levou suas cinzas
para Mansfield, Missouri, e enterrou-as junto de sua mãe e seu pai. Na sua discreta lápide foram
gravadas palavras de Thomas Paine: “Um exército de princípios penetrará onde um exército de
soldados não pode penetrar. Nem o Canal da Mancha nem o Reno impedirão seu avanço. Ele
marchará no horizonte do mundo e o conquistará”.
MacBride fez muito para preservar o legado de Lane. Ele autorizou uma nova edição de The
Discovery of Freedom em 1972. No ano seguinte editou The Lady and the Tycoon: The Best of
Letters Between Rose Wilder Lane and Jasper Crane [“A senhora e o magnata: o melhor das cartas
entre Rose Wilder Lane e Jasper Crane”] (1977). Para jovens adultos, lançou Rose Wilder Lane,
Her Story [“Rose Wilder Lane, sua história”], a primeira de suas história sobre como ela cresceu, e
muito no estilo e no espírito da séria “Little House”. Estes foram seguidos por Little Farm in the
Ozarks [“Casinha nas montanhas”] (1994) e In the Land of the Big Red Apple [“Na terra da grande
maçã vermelha”] (1995). Vivendo em Miami, MacBride sofreu um ataque cardíaco fatal em 5 de
março de 1995, aos sessenta e cinco anos, mas sua filha Abigail MacBride Allen supervisionou a
publicação dos manuscritos não-publicados de seu pai, começando com The Other Side of the
Hll [“O outro lado da colina”] (1995), Little Town in the Ozarks [“Cidadezinha nas montanhas”]
(1996), New Dawn on Rocky Ridge [“Novo amanhecer em Rocky Ridge”] (1997), On the Banks of
the Bayou [“Às margens do Bayou”] (1998), e Bachelor Girl [“Garota solteira”] (1999). Os livros
remetem à época em que Rose tinha dezessete anos, quando ela foi em busca de seus sonhos.

Thomas Jefferson
Quando os habitantes da Virgínia falam da Revolução Americana, frequentemente dizem que
George Washington foi sua espada, Patrick Henry, sua voz, e Thomas Jefferson, sua pena. Jefferson
formulou, com graça e eloqüência, uma visão radical e sofisticada da liberdade. Ele defendia que
todas as pessoas têm o direito à liberdade, independentemente do que digam as leis. Se as leis não
protegem a liberdade, afirmava, então as leis não têm legitimidade e o povo deve se rebelar. Embora
Jeferson não tivesse inventado essa idéia, ela a expressou de um modo que incendiou a imaginação
das pessoas no mundo inteiro. Além disso, articulou uma doutrina em defesa de uma rígida
limitação do poder do governo – a maior ameaça à liberdade em qualquer lugar.
Jefferson estava entre os homens mais cultos do seu tempo. Tinha consciência das lutas históricas
pela liberdade e as utilizou na sua experiência prática como parlamentar na Assembléia Legislativa
da Virgínia, na Convenção da Virgínia, no Congresso Continental e no Congresso da Confederação,
assim como governador da Virgínia, embaixador na França, secretário de Estado, vice-presidente, e
presidente dos Estados Unidos.
Com sua talentosa pena e meticulosa escrita, Jefferson elaborou mais relatórios, declarações,
legislações e demais documentos oficiais do que qualquer outro fundador da pátria. Mais do que
tudo, escreveu cartas, provavelmente em maior quantidade do que seus contemporâneos ilustres, e
um grande número dessas cartas sobreviveu – cerca de mil e oitocentas. Correspondeu-se com
muitos outros luminares da liberdade, incluindo Thomas Paine, John Adams, Bejamin Franklin,
Patrick Henry, o Marquês de La Fayette, James Madison, George Mason, Jean-Baptiste Say,
Madame de Staël, e George Washington. A maioria das frases famosas de Jefferson veio dessas
cartas.
Reconhecia-se imediatamente que Jefferson estava entre os fundadores da pátria. Tinha quase um
metro e noventa de altura , era magro, tinha cabelos ruivos, olhos cor-de-mel, e tinha o rosto cheio
de sardas. Quando jovem, estava sempre bem vestido, mas em seus últimos anos passou a
negligenciar sua aparência; segundo dizem, quando era presidente, recebia os visitantes da manhã
trajando chinelos e casaco surrados.
Era reservado, mesmo com seus filhos, mas era um amigo fiel. Sua amizade com James Madison
durou meio século. O tato de Jefferson deu-lhe a chance de manter boas relações com patriotas de
personalidade difícil como Thomas Paine e John Adams. Em uma carta carinhosa, Adams o elogiou
pelo “calor fraternal que é natural e constante em você”.
Jefferson criou um novo padrão individualista para a virtude. O antigo padrão, derivado da
antigüidade grega e romana, estabelecia que a virtude de uma pessoa dependia do seu papel como
cidadão – votando, candidatando-se, fazendo trabalhos públicos. Embora Jefferson tivesse uma
carreira pública bem sucedida, tinha uma concepção inteiramente diferente dessa questão: o que
contava mais era a maneira como os indivíduos conduziam suas vidas privadas – as contribuições
que davam para a sociedade civil, portanto, ao invés do que faziam pela política. Ele era dedicado,
honesto, gentil e discreto; com poucas exceções, guardava suas opiniões críticas das outras pessoas
para si mesmo. Deixava de lado as diferenças políticas em favor das suas relações com as pessoas
que amava. Jefferson buscava a beleza, projetando sua casa e seus jardins em Monticello, e buscava
o conhecimento, colecionando livros e explorando descobertas científicas. Ajudou outros a
melhorarem suas vidas, estabelecendo a Universidade da Virgínia. Depois que saiu da Casa Branca,
suas idéias dominaram a política americana por quatro décadas, sendo reverenciado como o “sábio
de Monticello”. Depois, durante a Guerra Civil, a opinião pública se voltou contra Jefferson, porque
ele tinha defendido o direito à secessão e indepedência. Ele caiu ainda mais na opinião pública
durante a era “progressista”, quando os reformadores imaginavam que todo problema poderia ser
resolvido dando mais poder ao governo federal. O presidente Theodore Roosevelt escarneceu de
Jefferson, chamando-o de um “erudito tímido, um doutrinário inconstante”. Hamilton, o apóstolo do
poder estatal, tomou seu lugar de fundador mais reverenciado.
O bicentenário do nascimento de Jefferson, em 1943, fez com que muitos americanos meditassem
sobre sua vida, e sua reputação voltou a crescer, marcada pela construção do Jefferson Memorial,
em Washington, DC, adornado com um juramento inspirador: “Jurei diante do altar de Deus
hostilidade eterna a todas as formas de tirania sobre a mente do homem”. O historiador Merrill D.
Peterson explicou: “O homem glorificado naquele monumento tinha transcendido a política para se
tornar um herói da civilização. Ele se erguera em defesa dos ideais da beleza, ciência, cultura e
conduta, por uma vida enriquecida com a herança dos séculos passados, mas ainda assim
distintamente americana em sua essência. O número – e talvez mesmo a intensidade – de seus
admiradores cresceu quando sua inteligência universal e versátil se tornou conhecida”.
Mas, desde 1960, Jefferson mais uma vez voltou a ser atacado. O historiador constitucionalista
Leonardo Levy, por exemplo, citou episódios em que Jefferson suprimiu liberdades civis,
especialmente durante seus mandados como governador na Virgínia e presidente dos Estados
Unidos. O historiador J. G. A. Pocock o descreveu como um aristocrata retrógado do campo, que
temia as cidades e o comércio, e que estava desconectado do mundo moderno. O historiador
Bernard Bailyn chamou Jefferson de um “estereótipo insensível”. Testes de DNA parecem ter
confirmado as acusações de que Jefferson teve filhos com uma de suas escravas, a bela e jovem
Sally Hemings. Muitos historiadores também expressaram desgosto porque Jefferson possuía
escravos, criava escravos, dava escravos de presente, e nunca libertou nenhum deles. Há relatos de
que ele teria 180 escravos quando escreveu a Declaração da Independência, e 260 quando morreu.
O historiador Page Smith declarou que, como Jefferson nem sempre viveu de acordo com os ideais
que professava, ele era uma fraude e seus ideais não serviam de nada.
Mas embora Jefferson tivesse seus defeitos – no caso da escravidão, um defeito monstruoso – eles
não invalidam a filosofia da liberdade que ele defendeu (no mesmo sentido de que os defeitos de
Einstein não são indícios contra sua teoria da relatividade). As realizações de Jefferson e a filosofia
da liberdade precisam ser reconhecidas por sua importância monumental.
Thomas Jefferson nasceu no dia 13 de abril de 1743 em uma fazenda às margens do rio Rivanna, na
Virgínia. Foi o terceiro filho de Peter Jefferson, que parece ter sido um homem empreendedor, que
educou a si mesmo – geográfo, administrador de plantações, juiz, parlamentar da assembléia
legislativa da Virgína. Sua mãe, Jane Randolph, tinha sangue aristocrata de uma próspera família da
região. Peter Jefferson morreu com quarenta e nove anos de idade, quando Jefferson tinha quatorze
anos. As posses da família consistiam em propriedades de um total de sete mil e quinhentos acres,
cinqüenta e três escravos, vinte e um cavalos e outros animais de fazenda, mas seu filho não se
envolveu com a administração das propriedades até que tivesse vinte e um anos. Seu negócio era
estudar.
Jefferson foi educado por sacerdotes anglicanos, que lhes ensinaram latim, grego, ciência e história
natural. Por dois anos, freqüentou William and Mary, a segunda faculdade mais antiga dos Estados
Unidos (depois de Havard), localizada em Williamsburg, na Virgínia. Então começou a estudar o
“common law” inglês. Escreveu resumos de clássicos do direito inglês, como o Institutes of the
Laws of England [“Instituições das leis da Inglaterra”], do erudito Edward Coke, do século XVII, e
começou a atuar como advogado em 1767. A cada ano ele se encarregava de mais casos. Jefferson
baseava suas defesas no direito natural, assim como na legislação existente; em um caso de 1770,
por exemplo, escreveu que “segundo a lei da natureza, todos os homens nascem livres, todos vêm
ao mundo com um direito sobre sua própria pessoa, o que inclui a liberdade de ir e vir e dela
usufruir de acordo com a própria vontade”. Ele estava sob a influência tanto de Dois tratados sobre
o governo de John Locke, como de An Essay on the History of Civil Society [“Um ensaio sobre a
história da sociedade civil”] de Adam Ferguson, e das obras completas do Barão de Montesquieu.
Williamsburg era a capital da Virgínia, a maior e mais rica colônia, e Jefferson foi atraído para a
política. Sua carreira política começou quando tinha vinte e cinco anos, em dezembro de 1768.
Eleito para a assembléia legislativa, Jefferson ajudou a formar um comitê de comunicação com as
outras colônias para coordenar a resistência aos impostos britânicos. Desde cedo demonstrou
facilidade em expressar-se. Seu primeiro esforço foi produzir uma réplica a um discurso de John
Dunmore, o arrogante governador britânico da Virgínia. Irritado com seus procedimentos
confrontatórios, Dunmore declarou, em 26 de maio de 1774, que a assembléia estava dissolvida. No
dia seguinte, os legisladores se reuniram na Raleigh Tavern, no que passou a ser conhecido como a
“Convenção de Williamsburg”, para continuar suas deliberações.
Em 1774, Jefferson publicou sua primeira obra. A Summary View of the Rights of British America
[“Visão resumida dos direitos da América britânica”], panfleto de trinta e três páginas, era uma
breve obra jurídica que ousadamente afirmava que o parlamento não tinha o direito de dirigir as
colônias. Indagava: “Devem esses governos [coloniais] ser dissolvidos, suas propriedades
aniquiladas, e seu povo reduzido ao estado natural, por causa de um capricho de um grupo de
homens que eles nunca viram, em quem nunca confiaram, e sobre quem eles não possuem poder
algum de punição ou substituição, permitindo que seus crimes contra o público americano sejam
cada vez maiores?”
A Convenção de Williamsburg considerou que Jefferson era jovem demais para participar da
delegação enviada ao Primeiro Congresso Continental, que se reuniu de 5 de setembro a 26 de
outubro de 1774, mas os parlamentares leram e certamente foram influenciados por A Summary
View. Eles defenderam o direito individual à “vida, liberdade, e propriedade”, insistiram que apenas
as assembléias americanas poderiam legitimamente arrecadar impostos, e exigiram um fim aos
impostos britânicos e às barreiras comerciais impostas desde que a guerra com a França acabara em
1763.
Em março de 1775, Jefferson foi nomeado delegado para o Segundo Congresso Continental na
Filadélfia, e imediatamente começou a trabalhar na elaboração de documentos. Com John
Dickinson, escreveu a primeira versão da Declaration of the Causes and Necessity of Taking Up
Arms [“Declaração das causas e da necessidade de pegar em armas”], que George Washington iria
publicar, e trabalhou com Benjamin Franklin, Richard Henry Lee e John Adams em um relatório em
resposta a uma das últimas propostas do parlamento inglês. Os dois documentos foram publicados
em jornais coloniais sem a assinatura de Jefferson, mas depois de um mês e meio como delegado os
membros do Congresso Continental já o reconheciam como uma das principais lideranças.
Quando Richard Henry Lee incitou o Congresso Continental a adotar a sua resolução pela
independência no em 7 de junho de 1776, Jefferson, Franklin, John Adams, Roger Sherman, e
Robert K. Livingston foram selecionados para preparar uma declaração anunciando e justificando a
independência. Então com trinta e três anos, Jefferson passou os dezessete dias seguintes
escrevendo no segundo andar de uma casa entre a Market e a Seventh Street na Filadélfia,
pertencente ao alvanel Jacob Graff, de quem ele alugara vários quartos. Jefferson escrevia em uma
poltrana empurrada para junto de uma mesa. Provavelmente escrevia com uma caneta de pena de
ganso, um instrumento de escrita bastante difícil de utilizar. Como era seu hábito, fazia a maior
parte do seu trabalho entre as 18 horas e meia-noite. Em dezessetes dias terminou sua tarefa.
Assim como o A Summary View, a Declaração da Independência era principalmente uma obra
jurídica que listava uma sucessão de queixas contra a Inglaterra. Jefferson dirigia suas acusações
contra George III, e não ao Parlamento, e expunha uma justificativa filosófica para a revolução. Em
apenas 111 palavras [em inglês; 101 na presente tradução] formulou idéias que inspirariam pessoas
no mundo todo: “Consideramos estas verdades como sendo auto-evidentes: que todos os homens
são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida,
a liberdade e a busca da felicidade. Que, com o fim de assegurar esses direitos, governos são
instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados; que,
sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva de tais fins, é direito do povo alterá-la ou
aboli-la e instituir novo governo, baseando-o em tais princípios e organizando-lhe os poderes da
forma que lhe pareça mais conveniente para garantir-lhe a segurança e a felicidade”. Isso era muito
radical: radical para a época de Jefferson, como as subseqüentes disputas com os Federalistas
tornaram claro; radical demais para Abraham Lincoln, que reagiria violentamente à secessão dos
estados do sul; e é radical ainda hoje, já que poucos americanos falam sobre o direito a uma rebelião
armada contra o governo.
Posteriormente, Jefferson explicou seus objetivos: “Apresentar à humanidade a questão com bom
senso, em termos suficientemente claros e firmes para exigissem seu assentimento, e que
justificasse a posição independente que fomos levados a tomar. Nem buscando originalidade de
princípio ou sentimento, nem copiando nenhum escrito anterior em particular, tinha como objetivo
ser uma expressão da mentalidade americana, e dar a essa expressão o tom e o espírito apropriado à
ocasião”.
Todos os parlamentares coloniais, exceto aqueles de Nova Iorque, que inicialmente se abstiveram,
votaram pela resolução de Lee pela independência no dia 2 de julho. No subsequente debate de três
dias sobre o texto da Declaração, o Congresso Continental votou para cortar cerca de um quarto do
texto e insistiu em várias alterações menores. Por concessão aos delegados da Georgia e da Carolina
do Sul, e talvez a alguns dos delegados do norte envolvidos no comércio de escravos, o Congresso
Continental cortou os extensos ataques de Jefferson a George III por não ter proibido o tráfico de
escravos. No 4 de julho, os delegados aprovaram a Declaração da Independência e, no dia 2 de
agosto, cinqüenta homens assinaram oficialmente o que se tornaria o documento mais importante da
história americana. (Mais cinco adicionariam suas assinaturas depois). A Declaração proclamava o
nascimento de uma nação e expressava a paixão pela liberdade com um eloqüência inesquecível.
Jefferson atuou como governador da guerra revolucionária na Virgínia, arrecadando dinheiro e
organizando as defesas contra os ingleses. Ainda mais, graças aos seus esforços, a Virgínia se tornou
o primeiro estado a alcançar completa separação entre Igreja e Estado.
Em meio a essas crises públicas, Jefferson sofreu reveses em casa. Ele e sua esposa, Martha,
tiveram três filhos que morreram na infância. No dia 6 de setembro de 1782, Martha morreu aos
trinta e três anos de idade, de complicações após o parto; eles estavam casados há dez anos. Em
profunda depressão, Jefferson ficou em seu quarto por três semanas. Então, por várias outras
semanas, passou quase todos os dias sozinho, cavalgando nos bosques de Monticello. Foi seu
conterrâneo James Madison que o persuadiu a voltar à vida pública.
Jefferson ainda faria muito mais pela liberdade durante sua fenomenal carreira. Representava os
interesses americanos em Paris enquanto o Congresso Constitucional conduzia seus épicos debates,
mas, através de cartas, ajudou a convencer James Madison, o arquiteto da Constituição, a apoiar a
adoção de uma Declaração de direitos individuais (a Bill of rights). Como Secretário de Estado do
gabinete de George Washington, Jefferson ficou horrorizado com o projeto de Alexander Hamilton
para subverter a Constituição e expandir o poder federal.
Jefferson se convenceu de que precisava se candidatar à presidência. Depois de uma campanha
amarga contra o presidente John Adams, ele venceu em 1800. Cortou impostos e gastos e pagou um
terço da dívida nacional. Quando a Espanha bloqueou o acesso ao Mississippi e o cedeu a
Napoleão, que então estava conquistando a Europa, Jefferson apressou-se em comprar o território
da Lousiana, embora não pudesse defender essa decisão em bases constitucionais. Sua presidência
se encerrou com uma nota amarga: frustrado pela apreensão de marinheiros e bens americanos pelos
ingleses, impôs um embargo comercial que saiu pela culatra.
Depois de seu segundo mandato, Jefferson se aposentou e se retirou para Monticello, sua amada
mansão nas montanhas próximas a Charlottesville, na Virgínia. Lá, planejou a Universidade da
Virgínia, brincou com seus treze netos, desgastou-se administrando as propriedades que estavam
dando prejuízo, e escreveu muitas cartas brilhantes. Explicou sua visão revigorante da liberdade,
talvez seu mais precioso legado para o mundo. Insistiu que a liberdade é impossível sem a garantia
da propriedade privada: “O direito à propriedade se fundamenta nos nossos desejos naturais, nos
meios de que somos dotados para a satisfação desses desejos, e no direito àquilo que alcançamos
com seus meios sem violarmos os direitos semelhantes dos outros seres conscientes”. Ele rejeitou
com graça os apelos invejosos pelo confisco de riquezas: “Tomar de alguém que se julga ter
acumulado demais, através da sua própria dedicação ou da dos seus pais, para dar para àqueles que
não tiveram, eles próprios ou seus pais, a mesma dedicação e habilidade, é um violação arbitrária do
princípio de associação que garante a cada um o livre exercício dos seus talentos, e os frutos por
eles obtidos”. Ele também incitou os americanos a buscar a paz por meio do livre mercado.
“Deveria ser o nosso dever”, escreveu, “cultivar a paz e a amizade de cada nação.... É nosso
interesse abrir as portas do comércio e nos livrarmos de todas as barreiras”.
Pessoalmente, a experiência mais animadora dos últimos anos de Jefferson foi sua reconciliação
com John Adams. A iniciativa foi de Benjamin Rush, médico da Filadélfia e um dos signatários da
Declaração da Independência. Em janeiro de 1811, Rush escreveu para Jefferson, relembrando a
época da Revolução e as contribuições de Adams. Embora Jefferson e Adams tivessem se tornado
acirrados rivais na disputa pela presidência, Adams posteriormente defendeu Jefferson contra os
ataques dos fanáticos federalistas. Jefferson, então com quase sessenta e nove anos, disse a Rush
que embora estivesse cauteloso em relação ao invejoso e desconfiado Adams, então com setenta e
seis anos, reconhecia o que ele tinha feito pela liberdade americana. Pouco tempo depois, dois
amigos de Jefferson da Virgínia visitaram Adams e o ouviram dizer: “Eu sempre amei Jefferson, e
ainda o amo”. O comentário foi transmitido a Jefferson, que ficou muito satisfetio.
Adams terminou por escrever a primeira carta, no primeiro dia de janeiro de 1812, ao que Jefferson
respondeu: “Hoje eu lhe saúdo com afeto e respeito inalterados”. Logo, a correspondência passou a
correr entre a casa de Adams em Quincy, Massachusetts, e Monticello. Os dois conversavam sobre
suas saúdes, livros, história, e os acontecimentos atuais. Tocavam em antigos desacordos políticos,
no persistente pessimismo de Adams, e no resistente otimismo de Jefferson. Acima de tudo,
conversavam sobre a Revolução Americana, de que os dois se orgulhavam imensamente. “Os dedos
e pulsos envelhecidos estão tornando a escrita lenta e trabalhosa”, Jefferson confessou em outubro
de 1823. “Mas , enquanto escrevo para você, eu esqueço dessas coisas, lembrando-me dos antigos
dias, quando a juventude e saúde faziam de todas as coisas ocasião de felicidade”.
Antes de que Jefferson entrasse em coma, no dia 3 de julho de 1826, ele perguntou: “Já é dia 4?”.
Ele morreu no 4 de julho, a cerca de meia noite e vinte, meio século depois da gloriosa Declaração.
Em Quincy, cerca de quinhentas milhas dali, John Adams também encerrava seus dias. Perto de
meio-dia, cerca de seis horas antes de morrer, ele conseguiu ainda pronunciar algumas palavras:
“Thomas Jefferson ainda vive”. Sim, de fato: nos corações e mentes das milhões de pessoas que
valorizam a liberdade em todo o mundo.

Ronald Reagan
O comunismo foi a pior maldição do século XX. O nazismo durou doze anos, o fascismo italiano
vinte anos, e o comunismo soviético setenta e quatro anos. Estima-se que o líder soviético Joseph
Stálin tenha matado três vezes mais pessoas do que Hitler, e a quantidade total de mortes do
comunismo está estimada em mais de 150 milhões de pessoas. Os soviéticos escravizaram milhões
de pessoas no leste europeu após a Segunda Guerra Mundial, roubaram segredos americanos para
construir armas nucleares e instalaram milhares de mísseis nucleares apontados para os Estados
Unidos, alguns até mesmo em Cuba – e os EUA não teriam como interceptar um único míssil, fora
lançado intencional ou acidentalmente. Durante os anos 70, os soviéticos trabalharam na expansão
de sua influência na Ásia, na África e nas Américas.
Enquanto isso, os Estados Unidos e outros países ocidentais pareciam estar em declínio. A inflação
e as taxas de juros atingiam dois dígitos, e o desemprego permanecia alto. Os intelectuais rendiam-
se à inevitabilidade da ascensão soviética e do declínio do Ocidente. John Kenneth Galbraith,
professor de Economia, escreveu em The New Yorker (1984): “O sistema russo tem sucesso porque,
em contraste com as economias industriais ocidentais, ele faz pleno uso do seu poderio humano”.
Paul A. Samuelson afirmou em Economics, seu influente livro didático, que “não se pode duvidar
do fato de que os sistemas de planejamento soviético têm sido um motor poderoso para o
crescimento econômico”. O professor de Economia Lester Thurow saudou em 1989 “a notável
performance da União Soviética”. E o historiador Arthur M. Schlesinger Jr. dizia o seguinte:
“Aqueles nos EUA que pensam que a União Soviética esteja à beira de um colapso econômico e
social... [estão] apenas enganando-se a si próprios”.
O Presidente Ronald Reagan provou que todos eles estavam errados. Ele fez muito para reviver os
ânimos americanos e mudar os termos do debate sobre políticas públicas. Ele insistiu que o livre
mercado funciona melhor que os burocratas, e que o individualismo americano e a liberdade são
coisas de que se orgulhar. Em vez de incentivar o Federal Reserve [o Banco Central americano] a
imprimir dinheiro, como seu predecessor Jimmy Carter, Reagan apoiou os esforços do FED para
frear a oferta monetária; em dois anos, a inflação havia deixado de ser uma questão nacional.
Reagan reduziu e fixou um teto para a alíquota do imposto de renda, incentivando um crescimento
econômico que, com exceção dos nove meses de recessão nos dois anos após deixar o cargo,
continuaram no milênio seguinte, e o desemprego crônico deixou de ser uma questão de interesse
nacional. Reagan acabou com as agressões soviéticas em curso e intensificou as pressões sobre a
União Soviética, contribuindo para seu atordoante colapso. Como disse a Primeira-Ministra da Grã-
Bretanha Margaret Thatcher, “Ronald Reagan venceu a Guerra Fria sem disparar um tiro”.
Reagan despontou como grande defensor da paz. Apoiou o desenvolvimento de um sistema de
defesa focado na interceptação de mísseis nucleares disparados contra os Estados Unidos, e se
dispôs a compartilhar a tecnologia de sua Iniciativa de Defesa Estratégica, uma vez que se provasse
eficaz, para que os riscos de uma guerra nuclear fossem reduzidos. Presidentes anteriores haviam
buscado a estratégia SALT (Strategic Arms Limitation Talks) [“Diálogos para a limitação de
armamentos estratégicos”] para reduzir o número de armas nucleares instaladas. Seu governo
negociou o Tratado de Forças Nucleares Intermediárias, o primeiro a mencionar a eliminação de
toda uma categoria de armas nucleares.
Muitos dos críticos de Reagan afirmaram que já que a economia soviética demonstrou estar em
piores condições do que se imaginava, suas políticas tiveram pouca ou nenhuma influência no
colapso. No passado, entretanto, regimes como o da China Imperial e o Império Otomano (“Homem
doente da Europa”) se seguraram por décadas. Além do mais, os comunistas ainda dão as cartas em
países miseravelmente pobres, como China, Cuba e Coréia do Norte.
O ex-Secretário de Estado Henry Kissinger observou, “A performance de Reagan foi surpreendente
– e quase incompreensível para os observadores acadêmicos... Um presidente com uma base
acadêmica altamente superficial iria desenvolver uma política externa de extraordinária relevância e
coerência. Reagan pode muito bem ter tido apenas algumas idéias básicas, mas essas acabaram por
tornar-se as questões centrais de política externa do seu tempo, o que demonstra que senso de
direção e convicções fortes são ingredientes-chave para a liderança”.
O analista de políticas públicas Martin Anderson escreveu nos anos 80 que “quando você encontra
Ronald Reagan, a primeira coisa que você nota é como ele é grande. Tem 15 centímetros a mais que
a maioria das pessoas, pesa quase 90 quilos, é esguio e forte. Ainda guarda os movimentos e a
aparência d o salva-vidas que foi por sete anos durante os anos 20, quando salvou 77 pessoas de
afogar-se no Illinois Rock River.
Reagan tornou-se especialmente querido pelo público americano após sua recuperação da tentativa
de assassinato sofrida do lado de fora do Washington Hilton Hotel em 30 de março de 1981. Uma
bala disparada por John Hinckley Jr. Parou a menos de uma polegada do coração de Reagan, mas do
hospital da George Washington University vieram gracejos cômicos que fizeram com que todos
soubessem que ele ficaria bem.
“Nós estávamos especialmente conscientes da coragem de Ronald Reagan”, afirmou Thatcher. “Era
fácil para seus contemporâneos ignorarem isso; ele sempre parecia tão calmo e relaxado, com um
charme natural, uma confiança espontânea e um incansável bom humor ... Ronald Reagan apareceu
para desafiar tudo o que a elite política de esquerda americana aceitava e pretendia difundir. Eles
acreditavam que a América estava fadada ao declínio; ele acreditava que estava destinada a uma
grandeza ainda maior. Eles imaginavam que cedo ou tarde haveria uma convergência entre o
sistema ocidental e o sistema socialista oriental, e que algum tipo de resultado social democrático
seria inevitável. Ele, em contraste, considerava o socialismo um grande fracasso que deveria ser
relegado à lata de lixo da História. Eles pensavam que o problema da América eram os americanos,
ainda que não gostassem de dizê-lo abertamente. Ele pensava que o problema da América era o
governo americano, e deixou isso bem claro”.
Ronald Wilson Reagan nasceu em 6 de fevereiro de 1911, em um apartamento na sobreloja de um
banco em Tampico, Illinois. Seu pai, John Edward Reagan, um vendedor de sapatos cujos
antepassados haviam vindo da Irlanda, se tornou o bêbado da cidade. Nelle Wilson, a mãe de
Ronald, cujos antepassados eram anglo-escoceses, irradiava otimismo.
Muito cedo, Reagan aproveitou oportunidades para aprender a falar em público, no rádio e a atuar.
Durante a transmissão de um evento esportivo na Califórnia, conseguiu um contrato como ator com
a Warner Brothers. Ele ascendeu de filmes B para participar de filmes como Knute Rockne – All-
American , no qual interpretou o falecido herói do futebol americano George Gipp. Reagan foi
eleito presidente da Screen Actors Guild [Sindicato de Atores de Cinema] por cinco vezes e
aprendeu a ser um negociador duro com os grandes estúdios.
Após o seu divórcio de Jane Wyman, Reagan conheceu a atriz Nancy Davis, que compartilhava de
muitas das suas idéias. Casaram-se em 4 de março de 1952, e tiveram dois filhos, Patricia Ann
(1952) e Ronald Jr. (1958).
Durante os anos 1950, Reagan trabalhou como apresentador no General Eletric Theater, programa
que foi ao ar durante oito anos na televisão. Ele deu palestras sobre os problemas do governo e os
benefícios da livre-empresa nas instalações da GE em trinta e nove estados. Como viria a fazer por
anos, escrevia seus discursos à mão em blocos de papel amarelo e depois os transcrevia para cartões
de 10cm X 15cm, usando letras de fôrma e o seu próprio sistema de taquigrafia. Esta técnica lhe
permitia captar o conteúdo de cada cartão em uma olhada e manter contato visual com a audiência.
Para ajudar Barry Goldwater, candidato Republicano à presidência, Reagan gravou um discurso de
trinta minutos para a televisão que foi ao ar em 27 de outubro de 1964, e subsequentemente
mostrado em eventos de arrecadação de fundos, gerando US$8 milhões para a campanha de
Goldwater. Após a derrota de Goldwater para Lyndon Johnson, Reagan entrou na corrida pelo
governo da Califórnia contra o então governador Democrata Pat Brown. Os comerciais de TV da
campanha de Brown comparavam Reagan com o ator John Wilkes Booth, o assassino de Abraham
Lincoln, mas Reagan venceu com 58% dos votos. Durante seu mandato, ele elevou impostos para
cobrir os déficits deixados por Brown e, quando o orçamento do estado chegava a um superávit,
devolvia dinheiro aos pagadores de impostos – o que aconteceu em quatro ocasiões.
Reagan ganhou a presidência em sua segunda tentativa, em 1980. O então presidente Jimmy Carter
havia herdado uma inflação crescente e decidiu pressionar o FED para que expandisse a oferta
monetária, o que tornou a inflação ainda pior. Quando ele impôs controles de preços para manter o
preço da gasolina abaixo dos níveis do mercado, os resultados foram escassez crônica e filas
irritantes nos postos de gasolinas. Carter foi duro com governos pró-Ocidente sobre violações de
direitos humanos, mas ignorou a opressão muito pior dos regimes comunistas. Seu dúbio conselho
ao Xá do Irã, um autocrata pró-Ocidente, contribuiu para a queda deste. Milícias islâmicas anti-
ocidentais invadiram a embaixada americana em Teerã e mantiveram cinquenta e dois americanos
reféns por um ano.
Reagan, em contraste, concentrou-se em algumas poucas prioridades. Acabou com as filas nos
postos de combustível ao abolir os controles sobre os preços de petróleo e gasolina, já que o
aumento de curto prazo nos preços atraiu novos fornecedores ao mercado, ao mesmo tempo em que
encorajou os consumidores a economizarem. A maior questão era a inflação, que havia levado a
taxa de juros para 21,5%, supostamente o nível mais alto desde a Guerra Civil. Reagan apoiou as
políticas do presidente do FED Paul Volcker para frear a oferta monetária, e a inflação caiu
dramaticamente. Ao mesmo tempo, Reagan estava determinado a reviver a economia. Sua reforma
tributária de 1981 foi um projeto de três anos que reduzia o imposto de renda de pessoa física em
10% no primeiro ano, outros 10% no segundo, e 5% mais no terceiro ano. Na época, as alíquotas de
impostos eram indexadas para que evitar que a inflação empurrasse as pessoas para categorias mais
altas de impostos. A legislação tributária de 1986 de Reagan eliminou todas as alíquotas de imposto
de renda federal exceto duas, 15% e 28%.
Reagan, entretanto, não cortou os gastos do governo federal. Os Democratas controlavam o
Congresso, e Tip O’Neill, presidente da Câmara, rejeitou os cortes porque gastos federais são o
modo primordial de retribuição a eleitores importantes e doadores de campanha. Em 1983, Reagan
concordou em acabar com isenções fiscais no valor de US$98 bilhões se os Democratas aprovassem
um corte de US$280 bilhões nos gastos, mas eles recusaram. A maioria dos Republicanos se opunha
aos cortes de gastos, também, já que eles tinham de responder a seus próprios eleitores. Seria ideal
se Reagan houvesse concentrado seus amplos poderes de persuasão nos cortes de gastos, mas não
havia apoio político.
O crescimento e as agressões soviéticas permaneceram uma questão importante. “Como assunto
fundamental da minha política externa”, Reagan explicou, “eu decidi que tínhamos que mandar aos
russos uma mensagem o mais forte possível demonstrando que não iríamos mais ficar parados
enquanto eles armavam e financiavam terroristas e subvertiam governos democráticos ... Se não
houvéssemos começado a nos modernizar, os negociadores soviéticos saberiam que estávamos
blefando sem um cartas boas, porque eles sabem as cartas que temos tanto quanto nós sabemos o
que eles têm em mão”. Reagan fez um apelo moral ao povo americano: em um discurso em 8 de
março de 1983, ele chamou a União Soviética de “um império do mal”, epíteto que ecoou por todo
o mundo.
Reagan ignorou a doutrina predominante de destruição mútua assegurada (MAD) – de que a paz
estaria melhor protegida com ambos os lados armados com mísseis nucleares mortais. A teoria
dissuadiria um lançamento internacional de mísseis contanto que os dois lados acreditassem que
não poderiam vencer uma guerra nuclear. Mas há indícios de que alguns generais soviéticos
acreditavam que poderiam vencer uma guerra nuclear, e de qualquer maneira a MAD não protegia
contra um lançamento acidental de mísseis nucleares. Apesar dos bilhões pagos em forma de
tributos pelos americanos para a defesa nacional, eles estavam desamparados. Os soviéticos tinham
6 mil ogivas, e os EUA tinham outros 2 mil; quanto maior a quantidade de mísseis, maior era o
risco de que oficiais mal-treinados ou despreparados pudessem lançar um míssil, sem chances de
voltar atrás. Um míssil soviético poderia atingir Washington, DC, em cerca de trinta minutos. Neste
sentido, Reagan buscou desenvolver um sistema de defesa que interceptaria mísseis lançados
intencional ou acidentalmente.
Em 23 de março de 1983, fez um discurso em busca de apoio para o sua Iniciativa de Defesa
Estratégica (SDI). “Deixem-me compartilhar com vocês uma visão do futuro que ofereça
esperança”, disse ele. “Voltemo-nos à força tecnológica que gerou a nossa grandiosa base industrial
e tem nos dado a qualidade de vida de que desfrutamos hoje. (...) A tecnologia atual alcançou um
nível tal de sofisticação que é razoável que iniciemos este esforço. Vai levar anos, provavelmente
décadas de esforços em diversas frentes. Haverá fracassos e contratempos, assim como haverá
sucessos e avanços. (...) Mas não é válido todo investimento necessário para livrar o mundo da
ameaça de uma guerra nuclear?”.
A União Soviética condenou a proposta. O dirigente soviético Yuri Andropov, que havia chefiado a
polícia secreta, chamou a SDI de “insana”. Muitos americanos não acreditaram na viabilidade do
projeto e ridicularizaram-no como “Guerra nas Estrelas”. Quando alguns críticos avisaram que a
SDI iria provocar os soviéticos a expandir seu próprio sistema de defesa antimísseis ou mesmo a
lançar um primeiro ataque preventivo contra os Estados Unidos, Reagan se dispôs a compartilhar
tecnologias de defesa antimísseis com os soviéticos.
Conforme o biógrafo Dinesh D’Souza explicou, “a SDI teve duas consequências políticas não
antecipadas pelos críticos de Reagan. Ela destruiu a base do movimento de não-proliferação, pois
Reagan se mostrou mais comprometido do que sua liderança em reduzir o perigo representado pelo
arsenal nuclear soviético para os americanos. Reagan parecia ter encontrado uma maneira mais
criativa para que os EUA se aproximassem unilateralmente da eliminação da ameaça nuclear. A SDI
era o desarmamento por meio da tecnologia em vez da diplomacia. Além disso, para o completo
espanto do establishment em defesa do controle de armas, o mero conceito de SDI realizou
exatamente o que Reagan disse que faria: trouxe a União Soviética de volta à mesa de
negociações”. Os soviéticos temiam que não pudessem acompanhar o desenvolvimento americano
de um sistema de defesa antimísseis.
Os eventos mudaram de rumo em 31 de agosto de 1983, quando os soviéticos abateram um avião
comercial sul-coreano que havia adentrado o espaço aéreo soviético. O número de mortos foi de
269, incluindo 61 americanos. Reagan condenou o incidente como “um ato de barbarismo”. Mikhail
Gorbachev, atuando em lugar do Secretário Geral Andropov, afirmou que o avião sul-coreano era
um avião espião, e a imprensa soviética comparou Reagan a Hitler. Reagan refletiu: “Se, como
algumas pessoas especularam, os pilotos soviéticos simplesmente se enganaram, pensando que um
avião de passageiros fosse um avião militar, não seria difícil imaginar um militar soviético com seu
dedo próximo de um botão de ativação de uma bomba nuclear cometendo um erro ainda mais
trágico. (...) Ainda, se alguém cometesse tal erro – ou se um louco estivesse em posse de um míssil
nuclear – nós estaríamos indefesos. Uma vez que um míssil nuclear fosse lançado, não se poderia
voltar atrás, e até que tivéssemos a Iniciativa de Defesa Estratégica operando, o mundo estaria
indefeso contra mísseis nucleares”. Enquanto isso, Reagan pressionou pela instalação de mísseis
Perishing II de médio-alcance e Tomahawk na Europa, e eles foram aceitos pela Grã-Bretanha, pela
Itália e pela Alemanha Ocidental para contrabalancear os mísseis soviéticos SS-20 apontados para
cidades da Europa Ocidental.
Reagan jurou ajudar pessoas dispostas a resistir à União Soviética – democratas na Polônia e
Tchecoslováquia, fundamentalistas islâmicos no Afeganistão, autocratas tribais em Angola,
direitistas na Nicarágua. Alguns destes não eram verdadeiramente amigos da liberdade, mas a
estratégia de Reagan inegavelmente pressionou os soviéticos, fazendo com que eles abandonassem
posições conquistadas nos anos 1970. O sucesso mais dramático veio após Reagan ter fornecido
mísseis antiaéreos Stinger às guerrilhas afegãs. Conforme o ex-Secretário de Estado George P.
Schultz explicou, “Os Stingers, mesmo quando divididos com cuidado, fizeram uma diferença
enorme, quiçá decisiva. Os soviéticos não mais dominavam áreas usando helicópteros ou por meio
dos bombardeios precisos de aviões de vôo baixo. Bombardeiros de alto nível não funcionavam
contra as forças dos guerreiros da liberdade afegães, móveis e dispersas”. Os soviéticos saíram do
Afeganistão em 1989. O Vietnã saiu do Camboja em 1990. Naquele ano, os sandinistas, apoiados
pelos soviéticos, concordaram em realizar eleições na Nicarágua, e perderam. As forças cubanas
deixaram Angola em 1991.
O único equívoco sério da administração Reagan em política externa foi o escândalo Irã-contra – a
venda de US$30 milhões em armamentos ao Irã para garantir a libertação dos reféns americanos
mantidos por terroristas pró-Irã no Líbano, violando uma política de longa data contrária ao
pagamento de resgate por reféns. Os ganhos deste negócio foram canalizados aos contras que
lutavam contra o regime comunista na Nicarágua, e que haviam recebido vários bilhões de dólares
em armamentos soviéticos. A ajuda aos contras violou a Emenda Boland de 1984, um esforço do
Congresso dominado pelos Democratas para restringir a política externa de Reagan. O promotor
independente Lawrence E. Walsh não encontrou evidências de que Reagan houvesse violado a lei, e
as condenações de pessoas envolvidas foram reformadas, mas o governo havia posto em risco
prudentes impedimentos constitucionais.
O sucessor de Andropov, Konstantin Chernenko, morreu em março de 1985, e os figurões
soviéticos aparentemente perceberam que necessitavam de alguém que fosse melhor em lidar com
Reagan. Escolheram Mikhail Gorbachev, de cinquenta e quatro anos. O biógrafo Lou Cannon
creditou melhores habilidades analíticas a Gorbachev que a Reagan, ainda que ele pensasse que o
principal problema no comunismo fosse a corrupção e não a coerção. Ele pensava que o problema
central fosse o alcoolismo generalizado. Ele aumentou os gastos governamentais em maquinário e
indústria pesada, como Stalin havia feito, mas isso agravou a escassez de bens de consumo. Então
ele lançou sua reforma chamada perestroika, mas, como o historiador Martin Malia explicou em
The Soviet Tragedy “A tragédia soviética”, “não havia mercado nacional, preços reais ou agricultura
livre; ademais, 90% da economia permaneceu nacionalizada e diretamente gerenciada por órgãos
estatais sob a supervisão do Partido”. Gorbachev cobriu déficits orçamentários imprimindo
dinheiro, o que levou à inflação incontrolável. Ele lamentou que “a ciência econômica ainda não
tenha oferecido um plano detalhado de como realizar a transição para uma economia dinâmica e
altamente eficiente”. Gorbachev parecia ignorar a existência de A riqueza das nações, de Adam
Smith, que havia oferecido justamente este plano dois séculos antes. Ele era igualmente ignorante
da vasta literatura que documentava que pessoas livres são muito mais produtivas do que
burocratas.
Reagan encontrou Gorbachev em sua cúpula em Genebra, em novembro de 1985. Gorbachev
defendeu a agressão soviética ao Afeganistão, mas Reagan, que havia visto fotos de crianças afegãs
mutiladas pelos bombardeios soviéticos, condenou a agressão. Gorbachev afirmou que a SDI
tornaria a guerra mais provável. Reagan atacou a doutrina MAD, que dizia que a esperança de paz
era ter as superpotências apontando mísseis uma para a outra. Gorbachev concordou em visitar a
América, e Reagan concordou em visitar a União Soviética. O jornalista Robert G. Kaiser noticiou
que Gorbachev e seu ministro de relações exteriores, Eduard Shevardnadze, de certa maneira
“decidiram que Reagan não era terrivelmente inteligente ou versado sobre assuntos específicos –
eles poderiam lidar com ele”.
Então, conforme o jornalista Peter Sweizer noticiou, os assessores de Reagan encorajaram a Arábia
Saudita a aumentar sua produção diária de petróleo, e eles o fizeram – de 2 milhões de barris para 9
milhões. Os preços do petróleo cru mergulharam de trinta dólares por barril para doze dólares em
meados de 1986. Isto foi catastrófico para a União Soviética, já que 80% de seus ganhos em moeda
forte vinham do petróleo. O dinheiro era desesperadoramente necessário para comprar comida e
tecnologia. Os sauditas estavam produzindo tanto petróleo que lucravam mais do que antes, mas
outros produtores de petróleo, como Irã, Iraque e Líbia foram severamente pressionados, tendo de
cortar suas compras de armamentos soviéticos, uma grande fonte de renda para a União Soviética.
A explosão na usina Nuclear de Chernobyl, Ucrânia, em abril de 1986, deu razões para que pessoas
por todo o mundo desconfiassem de Gorbachev. Embora tenha propagandeado a glasnost – um grau
limitado de abertura – , ele escondeu a verdade. Quando os europeus ocidentais detectaram uma
nuvem radioativa vinda da União Soviética, Gorbachev bloqueou informações. Sessenta e sete
horas após a explosão, os soviéticos emitiram uma nota. Uma nuvem radioativa chegou ao Japão
em 3 de maio. Então, em 14 de maio, em meio a imensas críticas, Gorbachev vociferou contra uma
“campanha de irrestrita propaganda anti-soviética”.
Em outubro de 1986, Reagan e Gorbachev realizaram um encontro em Reykjavik, Islândia. Após os
dois homens oferecerem dramáticas reduções armamentistas, Gorbachev exigiu que Reagan
abandonasse a SDI, e Reagan deixou o diálogo. A imprensa americana condenou-o por recusar-se a
negociar, mas Reagan insistiu. “Não havia como eu pudesse dizer ao nosso povo que o seu governo
não o protegeria de uma destruição nuclear”. Os soviéticos ficaram chocados.
Gorbachev desistiu de tentar impedir a SDI. Em dezembro de 1987, foi a Washington e assinou o
Tratado de Forças Nucleares Intermediárias, que estabelecia que os dois países deveriam destruir os
mísseis nucleares de alcance intermediário. Os soviéticos concordaram em destruir quatro vezes
mais armas nucleares do que os Estados Unidos. Reagan citou um provérbio russo: Dovorey no
provorey – “confie, mas verifique”.
Reagan manteve a pressão. Seu momento mais dramático ocorreu em Berlim. O governo comunista
da Alemanha Oriental havia começado a construir o Muro de Berlim em um domingo, 13 de agosto
de 1961, para impedir que as pessoas fugissem do comunismo. Muitos alemães orientais foram
baleados tentando quebrar o muro, cavando túneis por baixo dele ou voando por cima. Em junho de
1987, Reagan fez um discurso no Muro de Berlim perto do Portão de Brandemburgo. Disse:
“Secretário Geral Gorbachev, se você quer a paz, se você quer prosperidade para a União Soviética
e para a Europa Oriental, se você quer liberalização: venha a este portão! Senhor Gorbachev, abra
este portão! Senhor Gorbachev, derrube este muro!”. Posteriormente, viajou a Moscou para mais
conversas com Gorbachev. Em 31 de maio de 1988, disse aos estudantes da Universidade Estatal de
Moscou: “A chave é a liberdade – liberdade de pensamento, liberdade de informação, liberdade de
comunicação. ... Povos não fazem guerras; governos fazem. E nenhuma mãe jamais vai estar
disposta a sacrificar seus filhos por ganhos territoriais, por vantagem econômica, por ideologia. Um
povo livre para escolher sempre escolherá a paz”. Dusko Doder e Louise Branson, biógrafos de
Gorbachev, noticiaram que os discursos de Reagan aos estudantes russos “foram talvez suas
performances mais espetaculares e tocaram profundamente a psique russa. (...) Os russos amaram-
no”.
Gorbachev anunciou em 7 de dezembro de 1988 que a União Soviética, em sérios apertos
financeiros, iria reduzir suas forças armadas em 10 mil tanques e 500 mil soldados, e indicou que
não tentaria semear regimes comunistas em nenhum outro lugar. Em 9 de novembro de 1989, a
Alemanha Oriental começou a derrubar o Muro de Berlim, um evento eletrizante que inspirou
revoluções de sucesso contra os odiados opressores comunistas por toda a Europa Oriental.
Gorbachev, entretanto, continuou defendendo o monopólio político do Partido Comunista. Insistiu
em manter o Plano Quinquenal, e não gostou da idéia de uma eleição presidencial, já que ele
perderia, e então rejeitou as demandas russas por soberania. Mas em 25 de dezembro de 1991 a
bandeira soviética foi abaixada no Kremlin, e a URSS deixou de existir. Incrivelmente, a revista
Time escolheu Gorbachev como o Homem do Ano, e ele recebeu o Prêmio Nobel da Paz, embora
Reagan tenha prevalecido.
“O que ocorreu”, escreveu Martin Malia, “foi uma revolução de consciência, e não apenas no ex-
bloco soviético, mas por todo o mundo. De repente havia um consenso geral de que o mercado, a
propriedade privada e a democracia formavam um todo orgânico; que não se podia ter Estado de
direito, direitos humanos, governo constitucional e pluralismo político sem uma ‘base’ material para
a sociedade civil na propriedade pessoal e na liberdade de escolha econômica” – tudo o que Reagan
havia defendido.
Ronald e Nancy foram celebrados por milhares quando fizeram um tour triunfal pela Europa
Oriental: visitaram o que havia sobrado do Muro de Berlim e trabalharam nele com um formão. Ele
discursou no parlamento polonês em Varsóvia e para estivadores poloneses em Gdansk, e foi
saudado entusiasticamente em Moscou.
Ironicamente, a SDI caiu nas preferências assim que grupos de interesse relacionados à defesa
batalharam por verbas do Congresso. O presidente Bill Clinton presumiu que o colapso do império
soviético significava que a SDI não era mais necessária, embora alguma pesquisa continuasse em
menor escala, conhecida como National Missile Defense [“Defesa Nacional contra Mísseis”]. Mas o
General Lee Butler, do Comando Aéreo Estratégico, avisou: “O comando russo e o sistema de aviso
de aproximação de mísseis estão em estado de declínio. ... Eles estão têm alarmes falsos de maneira
rotineira, e eu estremeço ao pensar sobre a moral e a disciplina de suas forças encarregadas de
foguetes”. Em janeiro de 1995, por exemplo, oficiais militares russos estiveram perto de lançar um
ataque nuclear contra os Estados Unidos por pensarem que um míssil americano estaria vindo em
sua direção; descobriu-se que era um foguete norueguês lançando um satélite meteorológico. Além
disso, muitas bombas russas foram supostamente vendidas para países que não acatam as leis
internacionais. Acredita-se que cerca de vinte países possuam mísseis de alcance intercontinental.
Há uma crescente preocupação em relação à Coréia do Norte e à China, especialmente após
comunistas chineses terem roubado segredos militares dos EUA; em 1999 o Congresso votou pelo
avanço no desenvolvimento de um sistema de defesa anti-míssil.
Assim, a experiência ressaltou a sabedoria de Reagan. Ele demonstrou a visão e a coragem para
ajudar a fazer deste um mundo mais livre e pacífico.

Alexis de Tocqueville
Alexis de Tocqueville foi um cavalheiro, um acadêmico, e um dos grandes profetas do mundo. Mais
de um século e meio atrás, quando a maioria das pessoas era governada por reis, ele afirmou que o
futuro pertencia à democracia. Explicou o que seria necessário para que a democracia funcionasse e
como ela poderia ajudar a proteger a liberdade humana. Ao mesmo tempo, ele compreendeu que um
estado de bem-estar social poderia atrair as pessoas à servidão. Ele entendeu por que o socialismo
necessariamente leva à escravidão.
Toqueville dedicou sua vida à liberdade. “Tenho um amor intenso pela liberdade, pela lei, e pelo
respeito aos direitos”, escreveu, “não pertenço ao partido revolucionário nem ao conservador... A
liberdade é minha principal paixão”.
Refletindo sobre a famosa obra de Tocqueville, A democracia na América, o historiador Daniel J.
Boorstin observou: “A questão mais interessante para quem começa a ler Tocqueville é por que este
livro, dentre os diversos relatos de viagens pelos Estados Unidos, se tornou um clássico – a fonte
padrão das generalizações sobre a América. Dois best-sellers da época de Tocqueville sobre os
Estados Unidos – Domestic Manners of the Americans [“Modos domésticos dos Americanos”], da
sra. Trollope (1832) e American Notes [“Notas americanas”], de Charles Dickens (1842) – , cujos
autores tinham melhor estilo e eram observadores mais argutos do que Tocqueville, sobrevivem
apenas como notas de rodapé acadêmicas. Eles nos falam sobre aqueles pitorescos americanos
antigos, mas Tocqueville nos fala sobre nós mesmos. Ele nos fala todos os dias”.
Tocqueville era um bom ouvinte e tinha ótima memória. Sua mente extraordinária era capaz de
detectar tendências que quase nenhum de seus contemporâneos percebia, e de deduzir importantes
lições da experiência. Ele anteviu as insidiosas consequencias que, a longo prazo, advêm da
intervenção estatal.
Não há duvida de que, como membro da aristocracia proprietária de terras cuja renda vinha
principalmente de fazendeiros arrendatários, Tocqueville partilhava dos preconceitos, comuns entre
os aristocratas, contra as atividades empreendedoras. Ele mal disse uma palavra a respeito da
revolução industrial, que permitiu que milhões escapassem da fome.
Ele trabalhou por longas horas em importantes livros, apesar de problemas de saúde que o
atormentavam: enxaqueca, nevralgia, e cólicas estomacais que duravam semanas. Sem dúvida estas
moléstias eram uma das causas de sua irritabilidade. Em seus livros, Tocqueville parece um realista.
Suas cartas, no entanto, sugerem que ele era um romântico que sonhava com grandes aventuras e
atravessava fases de depressão. Aos dezenove anos ele escreveu para um amigo que gostaria de
“vagar pelo mundo até o fim dos tempos”. Quando já tinha quase trinta anos, após o sucesso de
Democracia na América, lamentou: “Oh! Quisera eu que a Providência me desse a oportunidade de
usar, para realizar coisas boas e grandes, esta chama interior que sinto em mim que não sabe onde
encontrar o que a alimenta”. E aos quarenta e um: “Talvez chegue um momento em que nossas
ações possam ser gloriosas”.
Segundo o historiador George Wilson Pierson, Tocqueville era “de estatura quase diminuta, um
cavalheiro digno e reservado, de feições delicadas e gestos contidos. Olhos escuros, orgulhosos e
agitados, atraíam o olhar e iluminavam seu rosto pálido e sério. Uma boca sensível e um queixo
levemente dividido, sob um nariz forte e aquilino, denunciavam sua linhagem e transmitiam uma
determinação acima do comum. A forma delicada da cabeça era emoldurada por seus longos
cabelos negros, que ele usava em cachos que lhe caíam até os ombros, como ditava a altiva moda da
época. Ao receber ou conversar, movia suas mãos estreitas com graça e distinção... Ao falar, uma
voz ressonante e comovente, surpreendente em um corpo tão pequeno e frágil, fazia os ouvintes
esquecerem tudo além da intensa convicção e da inata sinceridade daquele homem”.
Alexis-Charles-Henri Clerel de Tocqueville nasceu em 29 de julho de 1805 em Paris, o mais jovem
de três meninos. Seu pai, Hervé-Louis-François-Jean-Bonaventure Clerel, era um aristocrata
proprietário de terras descendente de nobres normandos. Sua mãe se chamava Louise-Madeleine Le
Peletier Rosanbo. Ambos foram presos durante a Revolução Francesa e mantiveram suas ligações
monarquistas ao longo de toda a era napoleônica. Após a restauração da dinastia Bourbon em 1815,
Henri serviu como administrador de um governo regional. O tutor de Alexis foi o Abade Lesueur,
um padre que ensinou-lhe devoção à Igreja Católica e à monarquia francesa.
Aos dezesseis anos, Alexis começou a explorar a biblioteca do pai, que continha autores
provocadores do iluminismo francês, como Montesquieu e Voltaire. “Quando me tornei vítima de
uma insaciável curiosidade cuja única satisfação possível era uma grande biblioteca”, relembrou
ele, “acumulei em minha mente uma desordem de noções e ideias mais apropriadas a uma idade
mais madura. Até aquela época, minha vida havia sido envolvida por uma fé que nem mesmo
permitia que a dúvida penetrasse minha alma. Então a dúvida entrou, a toda velocidade e com
incrível violência, não apenas sobre uma coisa ou outra em particular, mas uma dúvida que
permeava tudo. De repente, experimentei a sensação de que falam as pessoas que passaram por um
terremoto”.
Em vez de se tornar um oficial do exército francês como seus dois irmãos, Alexis escolheu a
carreira intelectual dos aristocratas: o direito. Estudou direito entre 1823 e 1826, e então viajou para
a Itália com seu irmão Edouard. Ao ver a devastação causada pela guerra e o despotismo, ele
pensou sobre como civilizações outrora poderosas pereciam.
Em 1827, por obra de seu pai, Tocqueville foi nomeado juiz em Versalhes, servindo à monarquia
Bourbon. Mas ele não se sentiu à vontade: “Eu havia vivido os melhores anos de minha juventude”,
ele escreveu mais tarde, “numa sociedade que parecia reconquistar a prosperidade e a grandeza
conforme reconquistava a liberdade; e havia concebido uma ideia de liberdade regulada e ordenada,
controlada pela crença religiosa, pelos costumes e pelas leis. Fui tocado pelas alegrias de uma tal
liberdade, e ela havia se tornado a paixão de toda a minha vida”.
Em 25 de julho de 1830, o povo se revoltou, e o rei Bourbon, Charles X, foi forçado a se exilar.
Louis-Philippe, da casa de Orléans, assumiu o trono. Tocqueville considerou tal solução melhor do
que o caos, e, junto com muitos outros juízes, fez um novo juramento de lealdade, o que indignou
seus parentes e amigos. Mas o rei não confiava nos funcionários que haviam servido a seu
antecessor, e rebaixou Tocqueville a um posto sem pagamento. Seu afável e tranquilo amigo
Gustave de Beaumont, também juiz em Versalhes, estava em uma situação parecida. A Câmara dos
Deputados estava discutindo uma reforma das leis criminais, e Tocqueville e Beaumont
conseguiram permissão oficial para estudar o sistema prisional americano. As despesas seriam
pagas por suas famílias. Os dois homens sondaram amigos e parentes sobre possíveis contatos nos
Estados Unidos, e leram literatura americana e alguns dos livros de viagem que europeus haviam
escrito sobre o país. Tocqueville gastou quarenta francos em um baú de couro para carregar dois
pares de botas, um chapéu de seda, meias, e outros itens de vestuário em moda na época, além de
papel para notas e uma cópia do Curso de economia política do economista francês adepto do
laissez-faire Jean-Baptiste Say.
Em 2 de abril de 1831, Tocqueville e Beaumont embarcaram no navio americano Le Havre, que
carregava 163 passageiros e um carregamento de seda de Lyon. Após quatro dias de enjôo,
Tocqueville e Beaumont adotaram uma rotina que seguiram até o fim da viagem: acordar por volta
das 5:30 da manhã, trabalhar até a hora do desjejum, às 9 horas, depois trabalhar das 11 às 15 horas,
quando faziam outra refeição, e então trabalhar até a hora de dormir. Eles não se juntavam aos
demais passageiros para a ceia. Em trinta e oito dias, chegaram a Nova York.
Durante os nove meses seguintes, eles conheceram muitas prisões e visitaram cidades: Nova York,
Albany, Boston, Filadélfia, Washington, Montréal e Québec. Passaram por Buffalo, Cincinnati,
Detroit, Knoxville, Louisville, Mobile, Montgomery, Nashville, Memphis, Nova Orleans e
Pittsburgh. Se aventuraram pelo interior até o lago Michigan e viajaram de barco pelo rio
Mississipi. Visitaram as cataratas do Niágara, viajaram ao longo do vale do rio Hudson, e viram o
vale do rio Mohawk, cenário do conhecido romance de James Fenimore Cooper, O último dos
Moicanos. Conheceram muitos americanos notáveis, incluindo o unitarista William Ellery
Channing, o historiador Jared Sparks, o senador Daniel Webster, o ex-presidente John Quincy
Adams, o aventureiro do Texas Sam Houston, o advogado Salmon Chase, que se tornaria presidente
da Suprema Corte, e Charles Carroll, o último signatário da Declaração de Independência ainda
vivo.
Pouco depois de deixarem os Estados Unidos, em 20 de fevereiro de 1832, os dois começaram a
escrever o livro prometido sobre o sistema penal americano, com Beaumont escrevendo a maior
parte. O livro, publicado em janeiro de 1833 como Du système pénitentiaire aux Etats-Unis et de
son application en France [“Do sistema penitenciário nos Estados Unidos e de sua aplicação na
França”], expressava a crença dos autores de que muitos prisioneiros poderiam ser reabilitados
através do isolamento e do trabalho, mas insistindo que o propósito primário do aprisionamento
deve ser a punição dos malfeitores. A obra teve grande êxito junto à crítica, e a Academia Francesa
conferiu o prestigiado Prêmio Montyon a Tocqueville e Beaumont.
Embora tivessem falado em colaborar em um livro sobre a América, seus interesses divergiram.
Beaumont, mais interessado pela escravidão, escreveu um romance, Marie, ou l'esclavage aux
Etats-Unis [“Marie, ou a escravidão nos Estados Unidos”]. Tocqueville, por sua vez, ficou
fascinado pela vida social e política americana por causa das dificuldades que seu próprio país
encontrava para desenvolver instituições favoráveis à liberdade. Ele atribuía os problemas políticos
franceses ao governo centralizado – “A maioria daqueles que falam contra a centralização na França
não desejam realmente vê-la abolida; alguns porque têm poder, outros porque esperam vir a tê-lo” –
e observou que a liberdade resulta em uma ordem social pacífica. “Imagine”, escreveu ele a um
amigo, “uma sociedade composta por todas as nações do mundo – ingleses, franceses, alemães:
pessoas diferentes umas das outras no idioma, nas crenças, nas opiniões. Em resumo, uma
sociedade que não possui raízes, nem memórias, nem preconceitos, nem rotina, nem ideias comuns,
nem caráter nacional, mas com uma felicidade cem vezes maior do que a nossa... O que os une em
um único povo? A comunhão de interesses. Esse é o segredo!”
Tocqueville decidiu que não poderia escrever sobre liberdade e democracia sem antes visitar a
Inglaterra. Após sua viagem em 1833, ele escreveu que a Inglaterra é “a terra da descentralização.
Temos um governo central, mas não uma administração central. Cada condado, cada região, cada
distrito cuida de seus próprios interesses. A indústria cuida de si mesma... Não é natural que um
governo central seja capaz de supervisionar todas as necessidades de uma grande nação. A
descentralização é a principal causa do progresso material da Inglaterra”.
Em um quarto do sótão da casa de seus pais, no número 49 da rue de Verneil, em Paris, ele passou
quase um ano escrevendo os primeiros dois volumes de A democracia na América. Em meados de
setembro de 1833, escreveu a Beaumont: “Chegando aqui, mergulhei na América de forma
frenética. O frenesi ainda está acontecendo, mas de vez em quando parece morrer. Acho que meu
trabalho se beneficiará mais do que minha saúde, que sofre um pouco com meu extremo esforço
mental; pois eu praticamente não penso em mais nada enquanto escrevo... Da manhã até a hora do
jantar minha vida é inteiramente mental, e à noite vou visitar Mary”. Ele se referia a Mary Mottley,
uma plebéia inglesa que havia conhecido quando era juiz em Versalhes. Casaram-se em 26 de
outubro de 1835. A influência de Mary o acalmava, mas ela não conseguia acompanhar seus
interesses. “Em nossos corações, nós nos entendemos”, ele contou a um amigo, “mas, em nossas
mentes, não conseguimos. Seu modo lento e gradual de absorver experiências me é completamente
estranho”.
Segundo relatos, o editor Gosselin não havia lido o manuscrito, e concordou em imprimir apenas
quinhentas cópias. Mas Tocqueville fez propaganda do livro, que saiu em 23 de janeiro de 1835,
quando ele tinha vinte e nove anos, em jornais, e um adversário ideológico inadvertidamente atraiu
atenção para a obra ao atacá-la em um artigo de jornal. Sucesso imediato, o livro ganhou outro
Prêmio Montyon, que trouxe uma recompensa de 12.000 francos, e teve mais oito reimpressões
antes da aparição do terceiro e do quarto volumes, em abril de 1840. Os novos volumes não foram
tão bem-sucedidos comercialmente quanto os primeiros, mas os críticos os consideraram mais
importantes, o que ajudou a consolidar a reputação de Tocqueville.
Henry Reeve, um editor de vinte e dois anos da influente Edinburgh Review, começou a traduzir o
livro para o inglês, e uma edição revisada é ainda hoje a tradução mais popular. Na London and
Westminster Review de outubro de 1835, o pensador inglês John Stuart Mill descreveu A
democracia na América como “uma das produções mais notáveis do nosso tempo”. Mill fez elogios
ainda maiores ao terceiro e quarto volumes na Edinburgh Review de outubro de 1840: “A primeira
obra filosófica escrita a respeito da democracia tal como ela se manifesta na sociedade moderna; um
livro cujas doutrinas essenciais provavelmente não serão subvertidas por especulações futuras, por
mais que elas possam modificá-las”. Mill pediu a Tocqueville que escrevesse um artigo para a
London and Westminster Review, tornando-o mais conhecido no mundo anglófono. O livro também
foi traduzido para o dinamarquês, o alemão, o italiano, o russo, o sérvio e o espanhol.
A democracia na América teve um impacto duradouro porque Tocqueville ofereceu uma visão
ampla, e não apenas uma crônica jornalística, que ficaria datada. Ele se interessava pelo
funcionamento da democracia, e ilustrava princípios gerais com suas observações sobre a América,
o maior país a experimentar a democracia. Ele se preocupava com o significado da experiência
americana para a liberdade na França e em outros locais.
Tocqueville foi o homem que descobriu o individualismo americano. Embora ele o tenha descrito
de forma algo negativa em uma ocasião, ele falou em tom de aprovação sobre a auto-ajuda, uma
característica típica do individualismo americano. Por exemplo: “O cidadão dos Estados Unidos
aprende desde a infância a depender de seus próprios esforços para resistir aos males e às
vicissitudes da vida; ele vê a autoridade social com desconfiança e ansiedade, e recorre à sua ajuda
apenas quando é incapaz de prescindir dela”.
Tocqueville explicou o sonho americano: “Não há um único homem que não possa razoavelmente
esperar obter uma situação confortável na vida, pois cada um sabe que, havendo amor ao trabalho,
seu futuro é certo... Ninguém está inteiramente satisfeito com sua situação atual, todos estão em
perpétua luta, por diversos meios, para melhorá-la. Considere qualquer um deles, em qualquer
período de sua vida, e ele se encontrará ocupado com algum novo projeto cujo propósito é aumentar
o que ele tem”.
A influência pacífica da liberdade para empreender também recebeu sua aprovação: “Não sei de
nada mais oposto às atitudes revolucionárias do que as atitudes comerciais. O comércio é
naturalmente adverso a todas as paixões violentas; ama a tolerância, se delicia com o meio-termo, e
escrupulosamente evita a irritação. É paciente, moderado, flexível, e nunca recorre a medidas
extremas até ser obrigado pela necessidade mais absoluta. O comércio torna os homens
independentes uns dos outros, dá a eles um amplo entendimento de sua própria importância, leva-os
a tentar conduzir seus próprios negócios, e ensina como conduzi-los bem; o comércio portanto
prepara os homens para a liberdade, mas os preserva das revoluções”.
Tocqueville observou que a liberdade e a necessidade de cooperação social incentivam as pessoas a
serem virtuosas. “Com frequência vi americanos fazerem sacrifícios grandes e reais pelo bem-estar
público; e notei uma centena de ocasiões em que eles quase nunca deixaram de apoiar fielmente uns
aos outros. As instituições livres que os habitantes dos Estados Unidos possuem, e os direitos
políticos dos quais fazem tanto uso, lembram cada cidadão, de mil formas, de que ele vive em
sociedade. A cada instante elas imprimem em sua mente a noção de que ser útil para seus
semelhantes é o dever assim como o interesse dos homens; e, uma vez que ele não vê razões para
hostilidade contra eles, já que não é jamais seu mestre nem seu escravo, seu coração prontamente
tende à generosidade”.
Tocqueville denunciou a escravidão americana, dizendo que “as leis da humanidade foram
totalmente pervertidas”. Ele previu a guerra civil e as dificuldades que negros e brancos teriam em
viver juntos por muito tempo após a abolição da escravidão, mas expressou confiança de que os
negros prosperariam se fossem realmente livres: “Enquanto o Negro permanecer um escravo, ele
poderá ser mantido em uma condição não muito distante da de um selvagem; mas com sua
liberdade ele inevitavelmente conquistará um grau de instrução que permitirá que ele compreenda
seus infortúnios e encontre a solução para eles”.
Tocqueville fez alertas contra a guerra e a revolução violenta: “É principalmente na guerra que as
nações desejam, e frequentemente precisam, aumentar os poderes do governo central. Todos os
homens de gênio militar prezam a centralização, que aumenta sua força; e todos os homens de gênio
centralizador prezam a guerra... Um povo nunca está tão disposto a alargar as funções do governo
central quanto ao final de uma longa e sangrenta revolução... O amor à tranquilidade pública se
torna às vezes uma paixão indiscriminada, e os membros da comunidade podem conceber uma
devoção descomunal à ordem”.
Com antevisão fenomenal, Tocqueville previu que o estado de bem-estar social se tornaria uma
maldição: “Acima desta raça de homens paira um imenso poder tutelar, que toma para si a
responsabilidade de assegurar suas satisfações e olhar por seus destinos. Tal poder é absoluto,
minucioso, regular, providente e brando. Seria como a autoridade de um pai, se, como essa
autoridade, tivesse o objetivo de prepará-los para a vida adulta; mas, pelo contrário, busca mantê-
los em perpétua infância; consente que o povo tenha alegrias, contanto que não pense em nada além
delas. Tal governo trabalha de bom grado pela sua felicidade, mas escolhe ser o único agente e
árbitro desta felicidade; ele provê sua segurança, prevê e providencia a satisfação de suas
necessidades, facilita seus prazeres, administra seus principais problemas, dirige sua indústria,
regula a transmissão de propriedade, e subdivide suas heranças. O que resta, além de poupá-los
todos da necessidade de pensar e da dificuldade de viver?”
“Nossos contemporâneos”, continuou, “combinam o princípio da centralização de poder com o da
soberania popular; e isso lhes traz alívio: eles se conformam em ser tutelados com a ideia de que
escolheram seus próprios guardiães”.
Como outros cavalheiros-acadêmicos do século dezenove, como Thomas Macaulay, Tocqueville
desejava influenciar as políticas públicas e passou uma dúzia de anos frustrantes como
representante eleito na Câmara dos Deputados e na Assembléia Constituinte, onde se concentrou em
pontos polêmicos como a abolição da escravidão nas colônias francesas. Por cinco meses, foi
ministro das finanças. Mas ele tinha pouca influência sobre François Guizot (pró-empresas) e Louis
Adolph Thiers (oposição moderada), que dominavam inteiramente a política francesa durante esta
época.
Durante a revolução de 1848, que derrubou o rei Louis-Philippe, quando o socialismo ameaçou
emergir, Tocqueville estava muito à frente de seu tempo ao ver porque socialismo necessariamente
significa escravidão. Ele disse aos demais representantes: “A democracia aumenta a esfera de
liberdade individual, o socialismo a restringe. A democracia atribui todo o valor possível a cada
homem, o socialismo faz de cada homem um mero agente, um mero número. A democracia e o
socialismo não têm nada em comum; com exceção de uma palavra: igualdade. Mas notem a
diferença: enquanto a democracia busca igualdade em liberdade, o socialismo busca igualdade em
restrição e servidão”.
Por acreditar que indivíduos devem ser julgados por seus próprios méritos, Tocqueville rejeitou as
teorias racistas de Arthur de Gobineau, que escreveu Ensaio sobre a desigualdade das raças
humanas (1855). Tocqueville contou a Beaumont que Gobineau “acaba de me enviar um livro
grosso, cheio de pesquisa e talento, em que tenta provar que tudo que acontece no mundo pode ser
explicado por diferenças raciais. Não acredito em uma palavra”. Para Gobineau, ele escreveu, “De
que adianta persuadir povos inferiores que vivem em condições abjetas de barbarismo ou
escravidão de que, sendo tal sua natureza racial, eles nada podem fazer para se aprimorarem, para
mudar seus hábitos, ou para melhorar sua situação?”
A última grande obra de Tocqueville, O Antigo Regime e a Revolução (1856), trouxe sua
interpretação da Revolução Francesa, que espalhou a guerra por toda a Europa. Mais uma vez, ele
enfrentou o demônio do governo centralizado: “O objetivo da Revolução Francesa não foi apenas
mudar uma forma antiga de governo, mas também abolir uma forma antiga de sociedade...
afastando-se as ruínas, vê-se um imenso poder central, que atraiu e absorveu em uma unidade todas
as frações de autoridade e influência que antes estavam dispersas entre diversos poderes
secundários, ordens, classes, profissões, famílias e indivíduos, disseminados por todo o tecido
social”.
A saúde de Tocqueville, que sempre havia sido delicada, piorou em março de 1850, quando ele
contraiu tuberculose. A doença entrou em remissão por diversos anos, e depois se agravou. Ele só
conseguia falar em voz baixa. Aconselhados a passar algum tempo em um clima ensolarado, ele e
Mary foram a Cannes em janeiro de 1859. Lord Broughham, um amigo inglês que vivia lá,
disponibilizou sua luxuosa biblioteca para aliviar Tocqueville do tédio da doença. Mas ele sofria
dores intensas no estômago e bexiga, e em 4 de março de 1859 escreveu a Beaumont: “Sei que nada
jamais me entristeceu tanto quanto o que te direi agora... VENHA. VENHA o mais rápido
possível... Te abraço do fundo de minha alma”. Beaumont apressou-se para estar com Tocqueville,
que perdeu a consciência e morreu em 16 de abril. Foi enterrado em Tocqueville, na Normandia, a
terra natal de sua família. No ano seguinte, Beaumont, leal por mais de trinta anos, publicou a obra
e a correspondência do amigo.
Tocqueville saiu de moda no fim do século dezenove, talvez porque a Alemanha, e não os Estados
Unidos, parecia mostrar o caminho do futuro. O chanceler alemão Otto von Bismarck aproximou-se
do socialismo e estabeleceu o primeiro estado moderno de bem-estar social, e povos do mundo todo
se inspiraram na Alemanha. Mas a centralização socialista levou ao comunismo, ao fascismo, ao
nacional-socialismo, e outras tiranias brutais. O estado de bem-estar social acorrentou outras
centenas milhões de pessoas com impostos e regulamentos. Após a segunda guerra mundial, a
América emergiu como a principal esperança do mundo. Tocqueville havia previsto tudo. Hoje é
considerado um profeta. As últimas décadas trouxeram sua biografia mais abrangente (1988) e
novas edições de suas obras completas, a mais recente começando em 1991. Hoje todos podem ver
por si mesmos a maravilha deste homem atormentado, que viu através da neblina do tempo, nos
preveniu dos horrores do coletivismo, e corajosamente proclamou a redenção através da liberdade.

Frédéric Bastiat
Frédéric Bastiat foi um dos mais vigorosos defensores da liberdade econômica e da paz entre as
nações. F. A. Hayek, ganhador do prêmio Nobel, chamou-o de “um divulgador genial”. O grande
economista austríaco Ludwig von Mises homenageou suas “contribuições imortais”. O jornalista e
autor de best-sellers Henry Hazlitt maravilhava-se com a “perspicácia extraordinária” de Bastiat. E
o historiador intelectual Murray N. Rothbard escreveu que “Bastiat era um escritor lúcido e
soberbo, cujos ensaios e fábulas espirituosos e brilhantes são até hoje demolições totais e
excepcionais do protecionismo e de todas as formas de subsídio e controle governamental.”
Bastiat explicou o aparente milagre da prosperidade dos livres-mercados: “Eis aqui um milhão de
seres humanos que morreriam em poucos dias se suprimentos de todos os tipos não chegassem [a
Paris]... A imaginação se assombra ao tentar compreender a vasta multiplicidade de objetos que
precisam cruzar os portões da cidade amanhã para que seus habitantes sejam poupados dos horrores
da fome, das insurreições e dos saques. No entanto, neste momento todos dormem tranquilamente,
sem que a ideia de uma perspectiva tão pavorosa os perturbe por um único instante... Qual é, então,
o poder secreto e engenhoso que governa a incrível regularidade de movimentos tão complicados,
regularidade na qual cada um tem fé tácita, embora sua prosperidade e sua própria vida dependam
dela? Esse poder é um princípio absoluto, o princípio do livre-comércio. Nós temos fé naquela luz
interior que a Providência pôs no coração de todos os homens, e da qual depende a preservação e o
progresso ilimitado de nossa espécie, uma luz que chamamos de interesse próprio, muitíssimo
brilhante, constante e penetrante quando livre de qualquer obstáculo.”
A obra de Bastiat é rica nessas explicações perspicazes. “O estado é a grande entidade fictícia por
meio da qual todos tentam viver às custas de todos os demais”, escreveu. “Nada entra no tesouro
público em benefício de um cidadão ou uma classe que outros cidadãos e outras classes não tenham
sido forçados a colocar lá... Grandes gastos governamentais são incompatíveis com a liberdade...
Ser livre, sob sua própria responsabilidade, para pensar e agir, falar e escrever, trabalhar e fazer
trocas, ensinar e aprender – apenas isso é ser livre.” Ele ajudou a manter viva uma visão de direitos
naturais, inspirou seus compatriotas, e fez novos convertidos. Ele teve contato com o defensor do
livre-comércio Richard Cobden na Inglaterra, e inspirou John Prince Smith, que iniciou o
movimento pela liberdade de comércio na Alemanha. Sua influência também chegou à Bélgica, à
Itália, à Espanha e à Suécia.
“Com seus cabelos longos, seu chapéu pequeno, seu longo casaco e seu guarda-chuva”, relembrou
seu amigo Gustave de Molinari em 1845, “ele poderia facilmente ser confundido com um camponês
honesto que estivesse visitando Paris pela primeira vez”. Outro amigo, Louis Reybaud, acrescentou
que “havia uma dignidade natural em seu comportamento, e demonstrações de uma viva
inteligência, e logo se descobria um coração honesto e uma alma generosa. Seus olhos,
especialmente, eram iluminados com um brilho e um fogo singulares”.
O biógrafo George Roche escreveu que “o Bastiat de 1848 era mais cosmopolita, vestindo a moda
da época. Mais importante, embora seu rosto emaciado e voz oca traíssem os estragos feitos pela
doença, havia algo no brilho de seus olhos escuros que deixava imediatamente claro a todos que
Bastiat possuía agora tanto a experiência mundana da sociedade parisiente quanto um forte
sentimento de ter uma missão”.
Claude Frédéric Bastiat nasceu em 30 de junho de 1801, em Bayonne, uma cidade portuária no
departamento de Landes, no sudoeste da França. Seu pai, Pierre, trabalhava na empresa bancária e
exportadora da família, que fazia negócios na Espanha e em Portugal. Sua mãe, Marie-Julie
Frechou, faleceu quando ele tinha sete anos. Quando seu pai morreu, dois anos mais tarde, ele foi
viver com sua tia Justine Bastiat e seu avô paterno, Pierre Bastiat. Eles o enviaram para escolas em
Bayonne, e depois para o colégio beneditino de Sorèze, que atraía alunos de toda a Europa e da
América, o que contribuiu para sua visão de mundo cosmopolita. Lá ele aprendeu inglês, italiano e
espanhol. Aos dezessete anos, ele deixou o colégio e se juntou a seu tio Henry de Monclar na
empresa da família, onde observou a influência civilizadora do comércio e as muitas formas pelas
quais a lei prejudica as pessoas. Ele notou, por exemplo, que a tarifa francesa de 1816 estrangulou o
comércio, resultando em depósitos vazios e portos ociosos.
Bastiat explorou livros sobre economia política, que era como a economia era chamada na época.
“Li o Tratado de economia política de Jean Baptiste Say, um estudo metódico e excelente”,
escreveu a um amigo. Say havia lido A riqueza das nações, de Adam Smith, enquanto trabalhava
para uma companhia de seguros parisiense. O livro o entusiasmou profundamente, e ele decidiu
aprender mais sobre o funcionamento da economia. Sua primeira obra literária foi um panfleto de
1789 defendendo a liberdade de imprensa. Ele então co-fundou um periódico republicano, La
Décade Philosophique, onde publicou muitos de seus artigos sobre liberdade econômica.
O Tratado de economia política, obra principal de Say, foi publicado em 1803 e reapresentou as
ideias do livre-mercado à França e à Europa em geral. Antes da revolução francesa, Jacques Turgot
e os demais intelectuais conhecidos como fisiocratas haviam feito muito para promover a liberdade
econômica – e tornado a expressão laissez faire um bordão – mas esses intelectuais aceitavam o
absolutismo monárquico. Além disso, eles acreditavam que a terra era a fonte primária de valor, o
que parecia significar apoio à aristocracia latifundiária. Essas foram importantes razões pelas quais
as ideias do livre-mercado saíram de moda após a revolução francesa. Como republicano, Say
estava em melhor posição para ajudar a convencer as gerações seguintes da importância da
liberdade econômica. “Ele acreditava que a economia mais produtiva necessariamente se basearia
em propriedade privada, empresa privada e iniciativa privada“, escreveu o historiador Robert R.
Palmer em sua recente biografia intelectual de Say.
Say descartou a teoria do valor-trabalho de Smith, insistindo que o valor é determinado pelos
consumidores, e em reconhecimento do papel criativo dos empreendedores. Ele também rejeitou o
pessimismo do economista inglês [Thomas] Robert Malthus, que temia que o crescimento
populacional ultrapassasse a capacidade dos produtores privados de alimentos. Say acreditava que
mercados livres poderiam atingir progresso ilimitado. Ele via a cobrança de impostos como roubo e
condenava gastos governamentais excessivos, serviço militar obrigatório, e a escravidão (“o mais
vergonhoso tráfico já cometido por seres humanos”). Após ter seu livro censurado, Say fundou uma
fábrica de tecidos de algodão que chegou a empregar mais de quatrocentas pessoas. Mais tarde,
tornou-se professor do Collège de France, e há relatos de que Thomas Jefferson tinha esperanças de
que ele viesse a lecionar na Universidade da Virgínia. O filósofo e economista inglês John Stuart
Mill, que conheceu Say em Paris, chamou-o de “o tipo ideal de republicano francês”. Com Say,
Bastiat aprendeu que liberdade econômica funciona melhor do que intervenção estatal na economia.
A experiência de Say também sugeriu a Bastiat que ele poderia fazer o bem popularizando
princípios fundamentais.
Em 1824, Bastiat sonhava em ir a Paris e de alguma forma fazer algo importante, mas seu avô
doente o convenceu a viver na propriedade de 617 acres da família, próxima à cidadezinha de
Mugron. Quando seu avô faleceu, no ano seguinte, ele herdou a propriedade. Bastiat passava a
maior parte de seu tempo entre livros. Ele encontrou uma cópia do Poor Richard's Almanack
[almanaque publicado por Benjamin Franklin] em 1827 e escreveu a um amigo: “Descobri um
verdadeiro tesouro – um pequeno volume sobre a filosofia moral e politica de Franklin. Estou tão
entusiasmado com seu estilo que pretendo adotá-lo para mim mesmo”.
Por volta de 1830, Bastiat decidiu que “gostaria de ter uma esposa”. Casou-se com uma certa Marie
Hiard, mas, segundo o biógrafo Louis Baudin, “após o casamento, deixou a noiva na igreja e
continuou a viver como um homem solteiro”. Mesmo assim, nasceu um filho, embora sua esposa
continuasse a viver com os pais.
Folheando alguns jornais londrinos, Bastiat entusiasmou-se ao ler que os empres‡rios do ramo
têxtil Richard Cobden e John Bright haviam liderado a Anti-Corn-Law League [“Liga contra a lei
dos grãos”], uma campanha pelo livre comércio. Bastiat começou a reunir material para um livro
sobre a Liga, e passou a corresponder-se com Cobden. Em julho, atravessou o Canal da Mancha
para visitar Cobden e Bright. Segundo o biógrafo John Morley, sua “admiração por Cobden como
líder publico tornou-se uma profunda afeição por ele como amigo pessoal, e esta amizade foi uma
das principais alegrias dos poucos e ocupados anos de vida que lhe restavam.”
O livro de Bastiat, Cobden et la Ligue “Cobden e a Liga”, deixou para trás todos os outros
jornalistas franceses. Ele foi o primeiro francês a falar em Cobden e Bright, que persuadiram o
parlamento inglês a abolir as tarifas alfandegárias sobre os grãos unilateralmente, sem exigir
“concessões” de nenhuma outra nação, inclusive a França, que havia combatido a Inglaterra em
muitas amargas guerras. Cobden e Bright haviam apresentado o forte argumento de que o livre
comércio beneficiaria a Inglaterra, especialmente a população pobre que precisava de acesso a
alimentos baratos, mesmo se as demais nações mantivessem suas restrições ao comércio. Além
disso, argumentaram eles, o comércio livre unilateral contribuiria com a paz internacional,
separando a política do comércio e reduzindo o risco de que disputas econômicas se transformassem
em conflitos militares.
Bastiat escreveu uma série de artigos para o Journal des économistes, atacando as falácias do
protecionismo (tarifas alfandegárias) e explicando como o livre-comércio eleva os padrões de vida e
promove a paz e a segurança nacional. Ele reuniu vinte e dois de seus lúcidos, dramáticos,
perspicazes e muitas vezes bem-humorados ensaios em um livro, Sophismes économiques
[“Sofismas econômicos”], publicado no final de 1845. Um segundo volume contendo dezessete
ensaios saiu três anos mais tarde. Ambos foram traduzidos para o inglês e o italiano.
O texto mais famoso de Bastiat é “Uma petição” (1845), uma sátira em que os fabricantes de velas
apelam à Câmara dos Deputados por proteção: “Atualmente vivemos sob a intolerável concorrência
de um rival estrangeiro. Ele possui, ao que parece, condições altamente superiores às nossas para
produzir luz. Este rival inunda nosso mercado nacional com preços fabulosamente reduzidos. E
basta que ele apareça para que todas as nossas vendas cessem. Todos os consumidores se dirigem a
ele.” O concorrente é o Sol, e a petição solicita “uma lei determinando que sejam fechadas todas as
janelas, lucarnas, frestas, e também contraventos, postigos, cortinas, persianas, clarabóias, estores...
por onde a luz do Sol possa penetrar nas casas.”
Sabendo que o movimento inglês pelo livre-comércio havia começado em uma cidade de influência
regional, Manchester, Bastiat ajudou a formar a Association bordelaise pour la liberté des échanges
[Associação pela liberdade de comércio de Bordeaux] em 23 de fevereiro de 1846. Cobden havia
tornado o movimento nacional após o lançamento de uma associação regional pelo livre-comércio,
e Bastiat adotou a mesma estratégia. Foi a Paris e fundou a Association pour la liberté des échanges
[Associação pela liberdade de comércio] em 10 de maio de 1846, com Michel Chevalier, Charles
Dunoyer, Gustave de Molinari, e o filho de Jean Baptiste Say, Horace. Em 18 de agosto eles
começaram sua campanha com um jantar com a presença de Cobden e tiveram uma série de
reuniões públicas no salão Montesquieu, em Paris.
Em 29 de novembro, Bastiat começou a publicar Le Libre-Échange, um jornal semanal de quatro a
oito páginas sobre livre-comércio. Escreveu: “exigimos, para todos os nossos concidadãos, não
apenas liberdade para trabalhar como também liberdade para trocar os frutos de seu trabalho”. Em
1847, os protecionistas franceses derrotaram uma proposta de lei que aboliria aproximadamente a
metade das tarifas alfandegárias francesas, e o movimento pelo livre-comércio nunca se recuperou.
Le Libre-Échange deixou de ser publicado após a edição de 16 de abril de 1848.
Apesar disso, Bastiat era uma inspiração para aqueles que organizavam associações pelo livre-
comércio na Bélgica, na Itália e na Espanha, e teve influência sobre intelectuais na Alemanha
também. O inglês John Prince Smith, que havia adotado cidadania prussiana, foi influenciado por
Bastiat e iniciou o movimento alemão pela liberdade de comércio. Conforme escreveu o historiador
Ralph Raico, Prince Smith “disseminou boas traduções das obras de Frédéric Bastiat, e reuniu à sua
volta um círculo de entusiastas de mentalidade parecida.”
Nesse momento, a reforma do corrupto governo francês havia se tornado a questão política mais
controversa, e a tensão chegou ao máximo em 21 de fevereiro de 1848, quando a Guarda Nacional
atirou contra cerca de 20 manifestantes republicanos em Paris. A cidade explodiu em revolução, o
rei abdicou três dias depois, e a Câmara dos Deputados proclamou a república. Dez líderes
republicanos, incluindo o socialista Louis Blanc, chefiaram um governo provisório, que exigiu a
nacionalização das indústrias, entre outras medidas. Em meio ao tumulto, Bastiat publicou uma
dúzia de edições de La République française, um periódico de duas páginas que defendia princípios
libertários, e escreveu artigos para uma dúzia de jornais e revistas sobre as falácias do socialismo.
Ele ridicularizou as afirmações de que o governo poderia aumentar o número de empregos
produtivos: “O estado abre uma estrada, constrói um palácio, conserta uma rua, faz um canal; e com
esses projetos dá emprego a certos trabalhadores. Isso é o que se vê. Mas também priva certos
outros trabalhadores de empregos. Isso é o que não se vê... Será que milhões de francos
milagrosamente caem do céu dentro dos cofres de [políticos]? Para o processo se completar, o
estado não tem que coletar os fundos, além de gastá-los? Não tem que fazer seus coletores de
impostos percorrerem o país, e seus contribuintes pagarem seus impostos?”
Quando, em nome da compaixão, os socialistas exigiram um governo mais poderoso, Bastiat
disparou perguntas contundentes: “Será que no coração dos homens só há o que o legislador lá
colocou? Será que a fraternidade teve de aparecer no mundo por meio das urnas? Devemos
acreditar que as mulheres deixarão de ser altruístas e que a piedade não mais encontrará lugar em
seus corações porque o altruísmo e a piedade não serão obrigatórios por lei?” Ele alertou que o
socialismo leva necessariamente à escravidão porque o Estado “será o árbitro, o mestre, de todos os
destinos. Tomará muito; portanto, guardará muito para si mesmo. Multiplicará o número de seus
agentes; aumentará a abrangência de suas prerrogativas: acabará por adquirir proporções
opressoras.”
Mesmo antes de terminar de escrever uma nova constituição, a Assembleia Constituinte decidiu que
a França deveria ter um presidente forte. Em dezembro de 1848, sua escolha recaiu sobre Louis
Napoleon Bonaparte, cujo principal atributo era seu nome, de sobrinho do conquistador Napoleão
Bonaparte. A Assembleia Constituinte concluiu seus trabalhos em maio de 1849, e foi sucedida pela
Assembleia Legislativa. Bastiat foi eleito deputado. Ele insistia em menos gastos governamentais,
menos impostos, e liberdade de comércio, e repetidamente votava em defesa das liberdades civis.
Em junho de 1850, Bastiat voltou a Mugron e escreveu sua obra mais amada, A lei, em que afirmou
a filosofia dos direitos naturais, a mais poderosa defesa intelectual da liberdade. “Não é porque os
homens aprovaram leis que a personalidade, a liberdade e a propriedade existem“, declarou ele.
“Pelo contrário, é porque a personalidade, a liberdade e a propriedade existem que os homens fazem
leis... Cada um de nós certamente recebe da Natureza, de Deus, o direito de defender sua pessoa,
sua liberdade, e sua propriedade.” A seguir Bastiat atacou o que ele chamou de “roubo legal” – leis
que exploram alguns em benefício de poderosos grupos de interesse. Novamente Bastiat
demonstrou vívida compreensão da essência do socialismo: “Socialistas consideram a humanidade
matéria-prima para ser encaixada em diversos moldes sociais... matéria inerte, que recebe vida,
organização, moralidade e riqueza do poder do governo.” Em A lei, Bastiat celebrou “a liberdade,
cujo nome tem o poder de mover todos os corações e fazer o mundo tremer... Liberdade de
consciência, de educação, de associação, de imprensa, de movimento, de trabalho, de troca; em
outras palavras, liberdade para que todos usem todas as suas faculdades de forma pacífica”.
Bastiat mergulhou em seu próximo livro, Les harmonies économiques [“As harmonias
econômicas”], em que desenvolveu um de seus temas preferidos: a ideia de que pessoas livres
cooperam pacificamente e desfrutam dos benefícios das trocas voluntárias. “Os interesses dos
homens”, escreveu, “tendem espontaneamente a formar combinações harmoniosas e a trabalhar em
conjunto pelo progresso e pelo bem geral.” No entanto, ele era pessimista: “O que se vê é o roubo
usurpando a liberdade dos cidadãos para mais prontamente explorar sua riqueza, e esvaziando sua
substância para melhor tomar sua liberdade... Uma burocracia estúpida e vexatória se espalha pelo
país.” O primeiro volume de Harmonies économiques foi publicado no final de 1850. Ele jamais
completou a obra.
Em agosto de 1850, a tuberculose de Bastiat se agravou. Ele escreveu a Cobden lamentando “estes
infelizes pulmões, que são para mim servos muito inconstantes”. Os médicos logo enviaram Bastiat
a Roma, onde haviam ouvido falar que alguém tinha uma cura. Em 24 de dezembro de 1850, Bastiat
estava se esvaindo. Murmurou duas palavras, la verité (“a verdade”), e deu seu último suspiro
poucos minutos após as cinco da tarde. Seu primo, o padre Eugène de Monclar, estava a seu lado.
Ele tinha apenas quarenta e nove anos. Dois dias depois, houve uma missa fúnebre na igreja Saint-
Louis des Français, em Roma, e ele foi enterrado em seu cemitério.
Michel Chevalier tornou-se influente no governo francês e dedicou-se a promover a liberdade de
comércio. Em 1859, ele e Cobden começaram a negociar um tratado de liberalização significativo
entre seus respectivos países, abolindo todas as proibições de importação francesas e cortando
muitas tarifas. A França liberalizaria ainda o comércio com a Áustria-Hungria, os estados alemães, a
Itália, a Noruega, Portugal, a Espanha, a Suécia e a Suíça.
Os sete volumes das obras completas de Bastiat foram publicados entre 1861 e 1864. O interesse da
França pelo liberalismo clássico continuou, como prova uma sucessão de livros sobre Bastiat:
Bastiat et le libre-échange “Bastiat e o livre-comércio”, de A. B. Belle, Frédéric Bastiat (1879), de
Edouard Bondurand, o Journal des Economistes (1888) de Alphonse Courtois, Frédéric Bastiat
(1888), de A. D. Fouville, Bastiat et la réaction contre le pessimisme économique “Bastiat e a
reação contra o pessimismo econômico”, de C. H. Brunel e Frédéric Bastiat, sa vie, ses oeuvres, ses
doctrines “Frédéric Bastiat, sua vida, suas obras, suas doutrinas”, de G. De Nouvion. A gloriosa
tradição francesa do laissez-faire passou para a história com a morte de Gustave de Molinari, amigo
de Bastiat, em 28 de janeiro de 1912, embora ele tenha influenciado individualistas americanos
como Benjamin Tucker, cujas ideias radicais vivem até nossos dias.
A maioria dos acadêmicos do século XX baniu o nome de Bastiat de qualquer discussão séria. O
historiador intelectual Joseph Schumpeter, por exemplo, escreveu: “Minha opinião não é que
Bastiat é um mau teórico, minha opinião é que ele não é um teórico.” Em sua História das
doutrinas econômicas, Charles Gide e Charles Rist comentam que “é fácil rir... e demonstrar que
esta suposta harmonia de interesses entre os homens não existe”.
Alguns acadêmicos mesmo assim reconheceram as contribuições de Bastiat. O economista John A.
Hobson chamou-o de “o mais brilhante expoente da pura lógica da liberdade de comércio neste ou
em qualquer outro país”, e o respeitado historiador econômico John H. Clapham aclamou Bastiat
pela “melhor série de argumentos populares pela liberdade de comércio já escrita”. A décima-
primeira edição acadêmica da Encyclopedia Britannica (1913) trazia as seguintes palavras:
“Sozinho, ele combateu o socialismo mano a mano, corpo a corpo... tomando-o como ele era
apresentado por seus representantes mais populares, considerando pacientemente suas propostas e
argumentos e provando conclusivamente que eles se baseavam em princípios falsos... A razão
jamais encontrará um arsenal mais rico contra o socialismo do que nos panfletos publicados por
Bastiat”.
Leonard E. Read, que em 1946 estabeleceu a Foundation for Economic Education, decidiu tornar o
trabalho de Bastiat mais conhecido e convenceu o pesquisador Dean Russel a preparar uma nova
tradução de A lei. Ao longo dos anos, várias centenas de milhares de cópias foram vendidas. Russel
concluiria seu Ph.D sob a orientação do economista Wilhelm Röpke, defensor do livre-mercado, na
Universidade de Genebra, e escrevendo sua dissertação sobre Bastiat. Russel adaptou sua
dissertação para publicação como livro, com o título Frédéric Bastiat: Ideas and Influence
“Frédéric Bastiat: ideias e influência”.
Neste intervalo, o editorialista do New York Times Henry Hazlitt escreveu Economics in One
Lesson “Economia numa única lição”, que vendeu um milhão de exemplares. “Minha maior
dívida”, reconheceu Hazlitt, “é com o ensaio de Frédéric Bastiat, ‘O que se vê e o que não se vê’,
que agora já tem quase um século. O presente livro pode, na realidade, ser considerado uma
modernização, extensão e generalização da abordagem encontrada no panfleto de Bastiat.”
O frágil francês, cuja carreira pública durou apenas seis anos, subestimado como mero
popularizador e menosprezado como ideólogo, conseguiu antever nosso futuro. Mesmo antes de
Karl Marx começar a escrever o Manifesto Comunista em dezembro de 1847, Bastiat sabia que o
socialismo fracassaria. Marx defendia uma vasta expansão do poder do governo de desapropriar
terras, bancos, ferrovias e escolas privadas, mas Bastiat corretamente avisou que o poder do
governo é um inimigo mortal. Em todos os lugares, declarou, a prosperidade resulta do trabalho de
pessoas livres. Estava certo. Ele argumentava que a única forma significativa de garantir a paz é
garantir a liberdade humana. Bastiat foi um líder. Lutou sozinho quando foi necessário, demonstrou
ter espírito generoso, compartilhou sua compreensão profunda da realidade, deu asas a ideias, e
dedicou sua vida à liberdade.

Milton Friedman
A ocorrência da Grande Depressão dos anos 30 foi creditada ao livre mercado e trouxe consigo uma
vasta expansão da interferência governamental na economia. Qualquer um que porventura se
mostrasse favorável à retração dos poderes governamentais teria, necessariamente, de enfrentar a
questão: “E a Grande Depressão?”. Sem as leis daquela época, temia-se, teríamos novamente altos
índices de desemprego, monopólios crônicos e imensa desigualdade.
O Prêmio Nobel Milton Friedman contribuiu mais do que qualquer outra pessoa para a mudança do
pensamento a respeito destas questões. Ele agrupou sólida evidência documental demonstrando que
a Grande Depressão ocorreu devido à contração da oferta monetária em um terço entre 1929 e 1933,
embora um banco central (o Federal Reserve) tivesse o poder de impedir tal catástrofe. A Grande
Depressão foi causada por uma falha de governo. Ademais, Friedman demonstrou que “a inflação é
sempre e em todo lugar um fenômeno monetário”. Ele afirmou com veemência o fato de que a
sintonia fina do governo está mais sujeita a sair pela culatra: quando os responsáveis pelo banco
central se dão conta de que a economia está se encaminhando para uma recessão ou depressão e
inflam a oferta monetária, é provável que os efeitos venham a ser sentidos depois de a economia já
ter se recuperado, piorando a inflação subsequente. Por outro lado, quando os responsáveis pelo
banco central perceberem que a inflação é um problema e contraírem a oferta monetária, é provável
que os efeitos sejam sentidos justamente quando a economia estiver desacelerando-se, piorando
assim a próxima recessão ou depressão. Friedman deixou claro que o governo é a maior fonte de
instabilidade na economia.
Enquanto outros defensores da liberdade fizeram a sua parte ao influenciar uma área específica de
políticas públicas, Friedman teve impacto em diversas áreas. Ele ajudou a conduzir à era do livre-
comércio internacional; apoiou iniciativas eleitorais visando a limitar impostos e o gasto
governamental; inspirou o movimento pela liberdade de escolha na educação, utilizando cupons-
educação que permitiriam aos mais pobres escapar das escolas públicas; pronunciou-se
corajosamente contra a proibição das drogas; e ajudou a lutar contra os esforços do Presidente
Clinton em tomar um oitavo da economia americana através de seu plano de serviço de saúde
gerido pelo governo. Friedman orgulhava-se ainda de ter ajudado a acabar com o alistamento
militar obrigatório nos EUA.
Friedman ganhou influência por conta de seus feitos acadêmicos, por ter lecionado na Universidade
de Chicago por trinta anos, por colunas que escreveu na Newsweek por dezoito anos, por livros
populares que venderam mais de um milhão de cópias, por dúzias de artigos em The Wall Street
Journal, Reader's Digest, Harper's, The New York Times Magazine, e outras publicações, bem como
incontáveis discursos, debates e entrevistas para a TV. Milton e sua esposa Rose mostraram como
contar a história da liberdade na televisão, alcançando milhões por todo o mundo com seu
documentário de dez partes intitulado Free to Choose.
Embora Friedman tenha em diversas oportunidades incentivado políticos a buscarem soluções de
livre mercado, ele nunca teve interesse em eleger-se a um cargo público. Controvérsias passaram a
persegui-lo, entretanto, quando foi noticiado que economistas chilenos egressos da Universidade de
Chicago estariam aconselhando o ditador chileno Augusto Pinochet. O seu regime militar veio
como resposta à inflação galopante causada pelo marxista Salvador Allende, da mesma maneira
como outros regimes militares vieram como resposta a inflações galopantes em outros lugares; os
economistas chilenos defensores do livre mercado incentivaram uma política de liberdade
econômica, incluindo cortes de gastos, diminuições nos impostos, livre-comércio e privatização.
Estas políticas trouxeram prosperidade e geraram pressão por liberdade política, que pôs fim ao
regime militar. Ironicamente, quando Friedman ofereceu conselhos de livre mercado à China
comunista durante suas visitas em 1980 e 1988 ninguém reclamou.
Friedman demonstrou uma energia contagiante por toda sua vida. Recuperou-se de uma operação
cardíaca em 1972 para fazer campanha por limites nos gastos do estado da Califórnia, escreveu dois
livros e voltou a jogar tênis depois de um ataque cardíaco em 1984, além de andar de skate com
mais de oitenta anos com seu neto Patri. Conforme escreveu a Playboy quando publicou uma
entrevista com ele, “o fato de que idéias econômicas outrora consideradas impossíveis e
ultrapassadas começam a ser levadas a sério novamente é prova de que os incansáveis esforços de
Milton Friedman e o vigor de suas idéias tiveram resultados”. O New York Times afirmou
efusivamente que “em economia, ele é certamente o pensador mais irrepreensível, audacioso,
franco, provocativo e inventivo nos Estados Unidos – e, mesmo medindo 1m60cm, ele pode ser
maior que todos os seus colegas de profissão”.
George Stigler, amigo e colega de Friedman, afirmou, “Ele tem uma mente extraordinariamente
lúcida. Sua habilidade para pensar rápido e conduzir-se com total propriedade no calor de um
debate fazem dele um debatedor formidável, tanto pessoalmente como escrevendo. Ele é um
magnífico trabalhador empírico, pronto para isolar o que ele crê serem os elementos essenciais de
um problema, e para efetuar análises engenhosamente apoiadas em dados empíricos. Finalmente,
ele tem um talento especial para encolerizar seus oponentes intelectuais, que dedicaram muita
energia e conhecimento fazendo propaganda de seu trabalho”.
Milton Friedman nasceu no dia 31 de julho de 1912, na Barbey Street, número 502, no bairro do
Brooklyn, Nova York. Ele foi o quarto filho de Jeno Saul Friedman e Sarah Ethel Landan, ambos de
Beregszasz, Carpato-Rutênia, região que fazia parte do Império Áustro-Húngaro e atualmente
pertence à Ucrânia. Sarah trabalhou como costureira em duras condições. Quando Milton tinha
pouco mais de um ano, a família se mudou para Rahway, New Jersey, cerca de 30 quilômetros de
Nova York, onde seu pai havia iniciado uma fábrica de tecidos. “Só o que eu sei”, relembra
Friedman, “é que ele nunca ganhou muito dinheiro”. Seu pai morreu aos quarenta e nove anos
devido a problemas cardíacos.
Milton entrou para a Rutgers University em 1928. “Minha intenção originalmente era estudar
matemática”, explicou ele em sua autobiografia Two Lucky People “Duas pessoas de sorte ”. “O
único trabalho remunerado que eu sabia que usava matemática era o de atuário, então me informei a
respeito e planejava tornar-me atuário”. Ele mudou seu campo de estudos da matemática para a
economia por causa de dois profesores: Arthur F. Burns, que estava completando sua dissertação de
doutorado na Columbia University, e Homer Jones, que completava sua dissertação de doutorado na
Universidade de Chicago. Burns, recorda Friedman, “injetou uma paixão pela integridade científica,
precisão e cuidado que muito influenciou meu trabalho científico”.
Jones conduziu Friedman à Universidade de Chicago após sua graduação na Rutgers por ter lhe
conseguido uma bolsa de 300 dólares. Na aula de teoria do preço, ministrada por Jacob Viner, os
estudantes sentavam-se em ordem alfabética, e Friedman sentava perto da pequena e animada Rose
Director. Ela havia nascido na última semana de dezembro de 1911, a mais jovem de cinco crianças,
em Charterisk, um vilarejo russo hoje parte da Ucrânia. Ela cresceu em uma casa sem eletricidade
nem água corrente. Seu pai, que era agricultor, tinha irmãs e primos que haviam imigrado para os
EUA, e isso o motivou a fazer o mesmo. Ele começou como caixeiro-viajante, logo em seguida
abrindo um armazém, ganhando assim dinheiro suficiente para trazer sua família para junto dele e
do resto de seus parentes em Portland, Oregon. Felizmente eles chegaram logo antes do início da
Primeira Guerra Mundial; imigrar viria a tornar-se quase impossível depois. Aaron, irmão mais
velho de Rose, estudou na Universidade de Yale e foi para a Universidade de Chicago completar seu
mestrado. Rose permaneceu perto de casa, estudando no Reed College, mas transferiu-se para a
Chicago dois anos depois.
Ela decidiu fazer doutorado em economia, e trabalhou como assistente de Frank Knight, enquanto
Milton trabalhava como assistente de outro professor de economia, Henry Schultz. O primeiro
artigo publicado por Milton foi co-produzido por Schultz, uma crítica ao “método de medição das
elasticidades da demanda de dados orçamentários do professor Pigou”. Uma vez que A.C. Pigou,
um dos mais respeitados economistas de sua época, lecionava na Universidade de Cambridge,
Milton enviou o artigo para ser publicado no Economic Journal daquela universidade, sendo
rejeitado pelo seu editor, John Maynard Keynes. O artigo foi publicado posteriormente
no Quarterly Journal of Economics da Universidade Harvard, em novembro de 1934. Friedman
tinha vinte e dois anos.
Henry Simons, outro economista de Chicago, teve grande influência sobre Friedman. Em 1934,
Simons escreveu A Positive Program for Laissez Faire [“Um programa positivo para o livre
mercado”], um panfleto distribuído pela Universidade de Chicago no qual enfatizava que as pessoas
geralmente compartilham de objetivos comuns, como a promoção da prosperidade, e que as grandes
diferenças de opinião estão na maneira mais eficaz de alcançar tais objetivos. Friedman convenceu
milhões partindo desta mesma abordagem ao fazer uma defesa prática da capacidade de indivíduos
privados em mercados competitivos de resolverem seus problemas melhor do que burocratas.
Simons advertia que a “liberdade política só pode sobreviver em um sistemas econômicos
efetivamente competitivos”, e este se tornou uma questão fundamental para Friedman. Simons
acreditava que uma contração monetária fora primordialmente a responsável por trazer a Grande
Depressão, e Friedman documentou esta tese. Por outro lado, Simons apoiava a nacionalização de
estradas de ferro, imposto de renda progressivo, e outras políticas às quais Friedman se opunha.
Quando a Universidade de Columbia ofereceu-lhe uma bolsa maior (estudos e moradia) que a
recebida por ele em Chicago, Friedman foi para lá fazer seu doutorado.
Em setembro de 1937, o futuro Prêmio Nobel Simon Kuznets convidou Friedman para trabalhar no
Departamento Nacional de Pesquisa Econômica, aonde ele passou a estudar profissionais
autônomos: advogados, contadores, engenheiros, dentistas e médicos. Este trabalho foi a base da
sua dissertação de doutorado e primeiro livro, Income from Independent Professional
Practice [“Renda da prática profissional autônoma”], com co-autoria de Kuznets. Embora o
manuscrito tenha sido finalizado em 1941, sua publicação foi adiada por 4 anos devido à
controvérsia em torno da alegação contida no livro de que as barreiras de entrada à profissão médica
mantidas pelo governo mantinham a renda dos médicos artificialmente alta.
Nesta mesma época, Milton e Rose casaram-se em Nova York, onde planejavam viver, em 25 de
junho de 1938. Sua filha Janet nasceu em 1943, e seu filho David dois anos depois.
De 1941 a 1943, Friedman trabalhou no Divisão de Pesquisas sobre Impostos do Departamento do
Tesouro, quando os gastos governamentais subiram rapidamente, devido à Segunda Guerra
Mundial. Até então, as pessoas calculavam seus impostos devidos e pagavam-nos em prestações
trimestrais no ano seguinte. Friedman analisou propostas de que os empregadores descontassem os
impostos na fonte, e este sistema entrou em vigor em 1943. Ele veio a arrepender-se disso, pois o
desconto na fonte foi uma daquelas medidas “temporárias” dos tempos da guerra que se tornaram
permanentes.
Em setembro de 1946, Friedman começou a lecionar na Universidade de Chicago, onde
permaneceu por três décadas. Seu ensaio mais citado, The Methodology of Positive Economics [“A
metodologia da economia positiva”], publicado em 1953, sustentou que ao se fazer afirmações a
respeito de determinado fenômeno, elas devem ser verificadas através de algum tipo de observação.
O teste primordial da análise econômica é a correção das suas previsões.
Em A Theory of the Consumption Function “Uma teoria da função de consumo”, Friedman explicou
que as pessoas decidem gastar e poupar de acordo com suas expectativas de ganhos futuros, e não
de acordo com os gastos governamentais. Seu trabalho, junto com os dados desenvolvidos por
Simon Kuznets e outros, desbancou a alegação keynesiana chave de que o gasto governamental era
essencial à prosperidade. Seu trabalho econômico mais importante foi A Monetary History of the
United States, 1867-1860 “Uma história monetária dos Estados Unidos”, com co-autoria de Anna
Jacobson Schwartz. Neste trabalho foram agrupadas evidências esmagadoras demonstrando que
mudanças na oferta monetária explicam melhor os ciclos de crescimento e retração. Em especial, a
idéia predominante era de que a quebra da bolsa de Nova York em 1929 havia causado a Grande
Depressão, mas Friedman e Schwartz demonstraram que sua ocorrência resultou de o FED não ter
evitado a contração da oferta monetária em um terço entre 1929 e 1933.
O Prêmio Nobel Robert Lucas, escrevendo no The Journal of Monetary Economics, refletiu sobre o
livro depois de trinta anos: “Ele contou uma história coerente de eventos importantes, e contou-a
muito bem... Trata-se de uma maravilhosa pesquisa histórica sobre a oferta monetária e seus
componentes, desde 1867, detalhadamente documentada e agradavelmente apresentada... Tamanho
presente à profissão merece vida longa, talvez até a imortalidade”. Em relação à alegação de que
flutuações monetárias explicariam os principais eventos econômicos, Lucas acrescenta: “Devo dizer
que considero o argumento de A Monetary History completamente convincente... Seu diagnóstico
do declínio econômico de 1929-33 é persuasivo e, de fato, incontestado pelos diagnósticos
alternativos mais sérios, continuando a impressionar-me profundamente o seu sucesso em explicar
os notáveis eventos ocorridos nestes 4 anos”.
F. A. Hayek, cujo livro “O caminho da servidão” foi lançado em 1944, fez muito para estimular o
desejo de Friedman em influenciar a opinião pública para a liberdade. O primeiro trabalho popular
em políticas públicas escrito por Friedman, Roofs or Ceilings? [“Telhados ou tetos? “], com co-
autoria de George Stigler, foi um livreto atacando o controle dos preços de aluguéis, publicado pela
Foundation for Economic Education (FEE) em 1946. Friedman foi um dos membros originais da
Sociedade Mont Pelerin, iniciada por Hayek em abril de 1947. “Lá estava eu”, Friedman recorda-se,
“um jovem e ingênuo americano do interior, conhecendo pessoas de todo o mundo, todas dedicadas
aos mesmos princípios liberais a que nos dedicávamos; todos cercados de inimigos em seus países,
ainda, dentre os acadêmicos, alguns já famosos internacionalmente, outros destinados a tornar-se;
fazendo amizades que enriqueceram nossas vidas, e participando da fundação de uma sociedade que
teve papel importante na preservação e no fortalecimento das idéias liberais”.
Em 1956, o William Volker Charities Fund organizou uma série de palestras com Milton Friedman
sobre princípios gerais e questões importantes de políticas públicas, como desemprego, monopólios,
discriminação racial, seguridade social e comércio internacional. Rose Friedman editou as palestras
em um livro, Capitalismo e Liberdade, publicado pela Universidade de Chicago em 1962. Friedman
recomendou a abolição de subsídios agrícolas, tarifas, cotas de importação, controle de aluguéis,
salário mínimo, moradia subsidiada, licenciamento profissional, seguridade social, monopólio
estatal dos correios, alistamento militar obrigatório e muitas agências regulatórias. O livro acabou
vendendo cerca de 500 mil cópias. “Ficamos sabendo que o livro foi contrabandeado para a União
Soviética e serviu de base para uma edição pirata”, relataram os Friedman. “Sabemos que uma
versão pirata polonesa foi publicada no começo dos anos 80. Desde a queda do Muro de Berlim, o
livro foi traduzido para o sérvio-croata, o chinês, o polonês e o estoniano, e existem outras ainda
pendentes”.
Em 1962 e 1963, os Friedman viajaram pelo mundo, visitando um total de 21 países. Milton relatou
na Harper’s: “Onde quer que encontrássemos qualquer considerável elemento de liberdade
individual, alguma beleza na vida comum do homem comum, alguma medida de verdadeiro
progresso material e de conforto ao seu dispor e uma esperança viva em um progresso ainda maior
no futuro – lá também encontramos o mercado privado funcionando como o principal meio de
organização da atividade econômica. Onde quer que os mercados fossem amplamente suprimidos e
o Estado tomasse o controle das atividades econômicas dos seus cidadãos... Nestes lugares, o
homem comum se encontrava politicamente algemado, tinha um baixo padrão de vida, e se
encontrava desprovido de qualquer sentimento de controle sobre seu próprio destino”.
Os Friedman então decidiram que queriam passar os verões em Vermont e em 1965 compraram
cerca de 50 hectares de terra com vista para o Lago Fairlee. Contruíram uma casa em formato
hexagonal com uma lareira no centro, design inspirado pela Freedom School, estabelecida por
Rober Lefevre em Colorado Springs, Colorado, onde Friedman havia dado aulas dois anos antes. A
casa foi nomeada Capitaf, em referência ao título em inglês de seu livro Capitalismo e Liberdade
(eles esperavam que os royalties pagassem pela casa). Foi lá que Friedman desenvolveu grande
parte de seu trabalho até 1980, quando eles se mudaram de vez para a Califórnia.
Em 1966, os editores da Newsweek decidiram parar de publicar a coluna Business Tides [“Marés
dos negócios”], que vinha sendo escrita pelo jornalista liberal Henry Hazlitt havia duas décadas, e
decidiram tentar revezar sua titularidade entre três economistas: Friedman, o esquerdista Paul
Samuelson e o centrista Henry Wallich. O espaço limitado da revista forçou Friedman a expressar
sua visão de maneira simples e concisa como nunca antes. “Meu estilo de escrita melhorou não
apenas nas colunas, mas em tudo o mais que eu escrevia, melhorando também a minha coerência
em defender uma posição”, refletiu. Houve três coletâneas das suas colunas na Newsweek: An
Economist’s Protest “O protesto de um economista”, There’s No Such a Thing as a Free
Lunch “Não existe almoço grátis”, e Bright Promises, Dismal Performances “Promessas brilhantes,
péssimas performances”. Sua produção de artigos populares continuou depois da Newsweek:
oitenta e dois editoriais e cartas ao editor em jornais como The Wall Street Journal, The New York
Times, The Washington Post, San Francisco Chronicle, dentre outras publicações.
Ter recebido o Prêmio Nobel em 1976 foi um grande destaque na carreira de Milton Friedman, mas
o que Rose chamou de “o empreendimento mais empolgante de nossas vidas” partiu de uma
sugestão de Robert J. Chitestester, presidente da WQLN, rede de TV pública de Erie, Pensilvânia.
Mesmo sendo um Democrata “de esquerda”, Chitester ganhou uma cópia de Capitalismo e
liberdade e achou o livro bastante persuasivo. Ele propôs que Friedman realizasse uma série de
palestras sobre tópicos que pudessem ser transformados em um documentário para a TV,
acompanhado de um livro. Em 26 de julho de 1977, Friedman concordou em embarcar no projeto.
Chitester levantou cerca de 2,8 milhões de dólares para a produção e promoção de um documentário
de dez partes, um sucesso notável uma vez que executivos de empresas em geral não tinham
interesse em patrocinar programas sobre questões políticas, nem mesmo liberdade econômica. Além
do mais, ele tinha que garantir a potenciais apoiadores que, se o show viesse a ser produzido, seria
de fato televisionado. Embora executivos e produtores da PBS fossem abertamente hostis às idéias
de Friedman, eles haviam sido criticados por televisionar o documentário Age of Uncertainty [“Era
da incerteza”], do socialista John Keneth Galbraith, e decidiram equilibrar as coisas televisionando
o documentário de Friedman.
Documentários da mais alta qualidade técnica eram feitos na Grã-Bretanha, e Ralph Harris, diretor
do Institute for Economic Affairs, de Londres, recomendou Anthony Jay, que havia deixado a
burocracia da BBC para tornar-se parceiro de uma empresa de produção televisiva chamada Video
Arts. Jay sugeriu que cada programa deveria consistir em trinta minutos de documentário e trinta
minutos de discussão, já que este formato seria muito mais barato que filmar um documentário de
uma hora com cenas pelo mundo afora. “Quem protege o consumidor?” seria o programa-piloto
para resolver problemas de produção e fornecer um exemplo para conseguir fundos. Foi filmado em
San Francisco, Sacramento e Washington, D.C. Friedman usou suas próprias palavras sem um
roteiro. O título sugerido para o programa-piloto foi Free to Choose [“Livre para escolher”], e os
Friedman consideraram-no um título adequado para a série.
Em uma das cenas mais memoráveis, Friedman fala enquanto caminha por entre as pilhas do
Registro Federal (lista de novas regulamentações) organizadas em ordem cronológica. Há apenas
um ou dois volumes por ano dos anos 30, de maneira que os telespectadores podem ver toda a sua
figura. Então nos anos 40 o número de regulamentações foi aumentando cada vez mais, e a pilha de
cada ano já lhe cobre as pernas. Os anos 60 trouxeram consigo uma explosão de regulamentações,
fazendo com que as pilhas sejam tão altas que Friedman não pode mais ser visto.
A primeira parte de Free to Choose foi exibida em janeiro de 1980 em mais de 196 estações da PBS
(72% de todas elas). Free to Choose teria atraído uma audiência maior do que a de Masterpiece
Theater, um dos programas mais populares da PBS. A série foi televisionada em seguida para mais
de uma dúzia de países com e sem legendas; teria sido também contrabandeada para a China
comunista e para a União Soviética, dentre outros lugares. A Encyclopedia Britannica lançou
edições em 16mm da série e vendeu-as por 3 mil dólares o conjunto. Em 1987, os Friedman
compraram os direitos de reprodução por 25 mil dólares e conseguiram a sua distribuição do vídeo
por 110 dólares.
“O livro Liberdade de escolher, que escrevemos para acompanhar o vídeo, é... o [nosso] único livro
baseado quase que completamente no inglês falado, em lugar do escrito. Em parte por esta razão,
ele vendeu mais cópias do que qualquer outro livro que tenhamos escrito”, relembra Friedman.
Quando Liberdade de escolher chegou às livrarias, foi logo alçado ao posto de livro de não-ficção
mais-vendido do ano de 1980. Mais de 400 mil cópias de capa-dura foram vendidas, e a edição em
brochura alcançou mais de um milhão de vendas. O livro foi traduzido para dezessete línguas.
Ao longo dos anos, Friedman colaborou com diversas campanhas pela liberdade. Em1969, o
Presidente Nixon, defensor de longa data do alistamento militar obrigatório, indicou Friedman
como um dos quinze membros da Comissão Consultiva sobre a proposta de alistamento voluntário.
Friedman ajudou a alcançar uma recomendação unânime para a voluntariedade do serviço militar, e
a sua obrigatoriedade acabou em 27 de janeiro de 1973.
Em 1971, depois de o governo dos EUA ter abandonado seus esforços para controlar as taxas de
câmbio, Friedman alertou a Leo Malamed, presidente da Bolsa de Valores de Chicago, sobre a
chegada da era do câmbio flutuante. Em junho de 1972, a Bolsa de Valores de Chicago abriu o
Mercado Monetário Internacional, que expandiu dramaticamente o fluxo de trocas de moedas.
Friedman foi o precursor do movimento pela escolha educacional. Em 1955 ele havia escrito The
Role of Government in Education [“O papel do governo na educação”], artigo que se tornou a base
do capítulo VI de Capitalismo e Liberdade. Apenas os pais que pagam mensalidades duas vezes –
impostos que sustentam as escolas públicas mais as mensalidades de escolas privadas –
costumavam ter alguma escolha real, disse ele, e propôs que “pais que optem por mandar seus filhos
a escolas privadas receberiam uma soma igual aos custos estimados da educação em uma escola
pública”. Eles estabeleceram a Milton and Rose D. Friedman Foundation para promover a
privatização das escolas públicas.
Em seu discurso presidencial na Associação Econômica Americana (1967) e em outros lugares,
Friedman desafiou a doutrina Keynesiana de que a inflação curaria desemprego. Seu ponto de vista
foi confirmado durante os anos 70, quando muitos países sofreram estagflação – alta inflação e alto
desemprego simultaneamente. Friedman colocou pressão em governos para que parassem de inflar
a oferta monetária, e aqueles que seguiram seus conselhos abriram caminho para uma extraordinária
prosperidade sem inflação.
Friedman promoveu iniciativas eleitorais para limitar gastos governamentais e impostos,
começando em 1973 quando ele participou de uma tour de discursos com Ronald Reagan, então
governador da Califórnia. Ele auxiliou Lewis K. Uhler, assistente de Reagan, a estabelecer o
Comitê Nacional de Limitação de Impostos, que fez campanha por uma emenda constitucional
limitando os gastos governamentais. Mais recentemente, iniciativas eleitorais demonstraram ser a
estratégia mais eficaz para a limitação do poder governamental.
Friedman é considerado o maior defensor da liberdade no século XX. Ele levou à mídia mais do que
ninguém o debate sobre várias questões, por mais de 50 anos. Sua influência se estendeu pelo
mundo. Ele nunca pôde se esquecer que judeus e outras minorias perseguidas encontraram refúgio
nos mercados livres. Era muito agradecido porque seus pais e os pais de sua esposa vieram para os
Estados Unidos. Valorizava este fato por que houve propriedade privada razoavelmente segura, uma
universidade independente que pôde contratar indivíduos como ele, com idéias heterodoxas – e ele
pôde falar e escrever livremente. Ele inspirou milhões a ajudar a carregar a tocha da liberdade em
sua próxima volta.

Montesquieu
Dispersar o poder político mostrou-se um modo crucial de proteger as pessoas da tirania. O pioneiro
do pensamento sobre este assunto foi um francês do século XVIII, Charles-Louis Secondat, barão
de Montesquieu. Como filósofo político, foi muito superior a seus contemporâneos, incluindo
Voltaire e outros celebrados philosophes que favoreciam a centralização do poder político e a
realização de reformas através do “despotismo esclarecido”.
Montesquieu inspirou alguns dos maiores pensadores franceses sobre a liberdade. Benajmin
Constant citava-o frequentemente em seus escritos sobre os perigos da centralização do poder
político. Alexis de Tocqueville, autor de Democracia na América, reconheceu: “eu passava algum
tempo todos os dias” lendo Montesquieu. James Madison refletiu que Montesquieu “ergueu o véu
dos erros veneráveis que escravizavam a opinião, e apontou o caminho para aquelas luminosas
verdades que ele mesmo apenas vislumbrou”. Madison referiu-se a Montesquieu como “o oráculo
que é sempre consultado e citado” sobre a separação de poderes.
Os historiadores há muito reconhecem a importância de Montesquieu na América. O historiador
jurídico Henry Maine escreveu em 1897 que “pode-se dizer com confiança que nem a instituição da
Suprema Corte, nem toda a estrutura da constituição dos Estados Unidos, poderiam ter ocorrido a
qualquer mente antes da publicação de Do espírito das leis [a principal obra de Montesquieu]”.
O observador inglês James Bryce escreveu em 1898: “Montesquieu, comparando as liberdades
tanto privadas como públicas dos ingleses com o despotismo da Europa continental, havia tomado a
constituição inglesa como seu sistema-modelo, e atribuído seus méritos à divisão que nela descobriu
das funções legislativa, executiva e judiciária, e ao sistema de freios e contrapesos que parecia
preservar seu equilíbrio. Nenhum princípio geral de política teve tanta influência sobre os autores
da constituição e os estadistas da América quanto o dogma de que a separação dessas três funções é
essencial à liberdade. Ele já havia sido a base de várias constituições estaduais. Ele sempre recorria
em seus escritos; ele nunca se ausentava de seus pensamentos”.
O historiador da Universidade de Harvard Bernard Bailyn relatou que Montesquieu estava entre os
pensadores “citados por toda a parte nas colônias, por todos que se declarassem esclarecidos... A
onipresença de tais citações é por vezes assombrosa”. Montesquieu era citado “sobre o catráter da
liberdade britânica e sobre os requisitos institucionais para sua obtenção”.
Os historiadores Will e Ariel Durant consideram a principal obra de Montesquieu, Do espírito das
leis, “a principal produção intelectual da época”. O historiador Peter Gay chamou-o de “o escritor
mais influente do século XVIII”. E acrescentou: “Faço essa afirmação após considerar devidamente
os méritos de potenciais rivais”.
Montesquieu fez muitas observações perspicazes a respeito da liberdade – por exemplo: “O
comércio cura preconceitos destrutivos, e é uma regra quase geral que em todos os lugares onde há
costumes esclarecidos, há comércio, e que em todos os lugares onde há comércio, há costumes
esclarecidos... [A escravidão] não é boa por sua própria natureza. Não é útil nem para o mestre nem
para o escravo; para o escravo, porque ele não poder fazer nada por virtude; para o mestre, porque
ele adquire toda sorte de maus hábitos de seus escravos, porque ele imperceptivelmente se acostuma
a não praticar todas as virtudes morais, porque ele se torna orgulhoso, rude, áspero, raivoso,
voluptuoso e cruel”.
A biógrafa Judith N. Shklar escreveu que “sabemos muito pouco a respeito da vida pessoal de
Montesquieu. O que foi preservado de sua correspondência não é nada revelador... Ele era o menos
confessional dos autores. Nas duas ocasiões em que tentou escrever autobiografias, ele começou
declarando que era uma coisa boba de se fazer”. No entanto, existem pistas a respeito de como
Montesquieu era. O biógrafo Robert Shackleton escreveu que “simpatia, afabilidade, generosidade e
simplicidade, assim como sua distração, são os assuntos de inúmeras anedotas”.
Shackleton continua: “Ele era baixo, magro e claro”. Por volta de 1749, “sua aparência,
surpreendentemente envelhecida para um homem que mal havia chegado aos cinquenta anos, é de
uma dignidade plácida. Sua face é longa, com um queixo pontudo. Sua mandíbula é firme. Seus
olhos são azuis. Seu nariz, embora ele não seja retratado de perfil, é proeminente, e há um inchaço à
direita do olho esquerdo. É um retrato formal, com todas as deficiências que isso implica. Ele nos
diz mais sobre o uniforme completo de um magistrado parlamentar do que sobre o caráter de
Monstesquieu”. O suíço Jacques-Antoine Dassier produziu sua imagem mais conhecida, uma
medalha que, segundo Shackleton, “mostra o perfil esquerdo de Montesquieu. Ele tem pescoço fino,
queixo firme, nariz alongado mas sensível, e destemido, e cabelos espessos e desordenados: é uma
magnífica cabeça romana... Seus olhos trouxeram problemas até o fim. Embora ele tenha enfrentado
a ameaça da cegueira com coragem e adaptabilidade... tal aflição foi um grande obstáculo tanto em
sua vida social quanto em suas pesquisas... Montesquieu havia sido distraído desde seus primeiros
anos. Na velhice, essa característica se intensificou, em parte por causa da deterioração de sua
visão, e foi assunto de anedotas durante e após sua vida”.
Montesquieu era um estudioso dedicado. “Os estudos foram para mim”, refletiu, “o supremo
remédio contra todos os desapontamentos da vida. Jamais conheci uma perturbação que uma hora
de leitura não dissipasse”.
Charles-Louis de Secondat nasceu em 18 de janeiro de 1689, no castelo de La Brede, a sudoeste de
Bordeaux, que havia sido herdado por sua mãe, Marie-Françoise de Pestel. Após sua morte durante
um parto, quando ele tinha sete anos, ele se tornou o barão de La Brede. Seu pai, Jacques de
Secondat, era soldado.
Charles-Louis passou seus primeiros três anos sob os cuidados de uma ama, uma moleira local. Foi
educado em casa até os onze anos, e então enviado para a escola em Juilly. “A instrução em si era
completa”, segundo o biógrafo Shacketon. “Latim e francês eram as principais línguas estudadas,
com o grego sempre em segundo plano; e embora a proficiência no latim falado fosse considerada
necessária, a língua de ensino era o francês. Geografia, história e matemática também faziam parte
da grade horária, e havia instrução em disciplinas como desenho, música, equitação, esgrima e
dança”.
Charles-Louis entrou na Universidade de Bordeaux, onde estudou direito, e, após formar-se em
1708, mudou-se para Paris para continuar seus estudos de Direito. Ele parece ter conhecido
matemáticos e cientistas. Como filho mais velho, herdou as propriedades da família quando seu pai
faleceu, em 1713, aos cinquenta e oito anos. Após a morte de seu tio, Charles-Louis herdou seu
posto de président à mortier do parlement de Bordeaux (havia nove oficiais com esse título), uma
instituição hereditária que funcionava como um tribunal.
Aproximando-se de seu vigésimo-quinto aniversário, Montesquieu decidiu casar-se, e em 11 de
março de 1715, assinou um contrato com Jeanne de Lartique, filha de um rico comerciante
huguenote. Não parecia haver muito amor no casamento, mas o casal teve um filho e duas filhas,
nascidos entre 1717 e 1727.
Enquanto isso, ele começou a escrever um romance, Cartas persas, sobre dois homens persas,
Usbeck e Rica, que visitam a França entre 1711 e 1720, escrevendo cartas a amigos, amantes, e um
para o outro sobre suas observações. O livro foi publicado anonimamente em Amsterdã em 1721 e
subsequentemente contrabandeado para a França. A obra fez dele um grande nome da literatura
francesa, e ele foi eleito para a prestigiada Academia Francesa. Uma das cartas (no 85) defende a
tolerância religiosa: “Nota-se que membros de religiões toleradas em geral prestam mais serviços a
seu país do que aqueles da religião dominante, porque, barrados das honras costumeiras, eles podem
distinguir-se apenas pela opulência e riqueza adquiridas através de seu próprio trabalho,
frequentemente nas profissões mais difíceis”. Na carta no 122, Montesquieu observa a ligação entre
liberdade e prosperidade: “Nada atrai estrangeiros mais do que a liberdade e a riqueza que sempre
se segue a ela. A primeira é buscada por si só, e nossas necessidades nos dirigem a nações onde
podemos encontrar a segunda”. E a carta no 83 parece evocar uma visão de “lei mais alta”: “a
justiça é eterna e independente das convenções humanas... Justiça é a relacão correta realmente
existente entre duas coisas. Esta relação é sempre a mesma para quem quer que a contemple, seja
Deus, anjo, ou, finalmente, homem”.
Durante os anos de 1721, Montesquieu viajou para a Áustria, a Alemanha, a Holanda, a Hungria e a
Itália, e passou dezoito meses reveladores na Inglaterra. Ele compareceu a debates no Parlamento e
estudou os diários de líderes parlamentares para entender melhor o sistema constitucional inglês,
que garantia mais liberdade do que qualquer outro na Europa. Montesquieu estava na Inglaterra
durante os dias áureos de Robert Walpole, um dos pioneiros do sistema de gabinete. Esse era,
conforme o historiador George Macaulay Trevelyan explicou, “um grupo de ministros dependentes
da Câmara dos Comuns e todos com assentos no Parlamento, que têm de concordar em uma política
comum e são responsáveis pelas ações uns dos outros e pelo governo do país como um todo. Nem o
primeiro-ministro nem o sistema de gabinete estavam contemplados pelos acordos firmados em
1689, após a Revolução Gloriosa... Sir Robert Walpole, ministro Whig entre 1721 e 1742, foi quem
mais fez para desenvolver o princípio da responsabilidade comum do gabinete, e da supremacia do
primeiro-ministro como líder tanto do gabinete quanto dos Comuns”.
Montesquieu concebeu o princípio da separação de poderes ao observar o sistema constitucional
inglês, mas, na prática, os ingleses não estendiam muito o princípio. Conforme escreveu o
historiador Peter Gay, “o executivo encontrava e se misturava com a legislatura na Câmara dos
Comuns; os pares exerciam funções judiciais assim como legislativas; e havia outras invasões
mútuas de territórios presumivelmente reservados que comprometiam a pureza do modelo de
Montesquieu”.
A experiência de Voltaire demonstrava que um autor tinha de proceder com cautela. Era contra a lei
francesa elogiar Isaac Newton, William Shakespeare, e outras coisas inglesas, e havia cerca de
setenta censores para fazer cumprir tais restrições. “Nem todos os censores eram negligentes ou
corruptos”, comentou Peter Gay; “alguns eram dedicados a suas tarefas repressivas. Além disso, era
menos arriscado errar para o lado da severidade do que para o lado da indulgência: não era possível
saber que alusão poderia parecer ofensiva a um bispo, um ministro, ou uma amante real. Portanto,
os censores frequentemente retinham os manuscritos por meses, e envolviam os editores em
tediosas e exaustivas negociações”. Em 1733, o governo ordenou a queima das irreverentes Cartas
filosóficas de Voltaire, que expressavam seu entusiasmo pela Inglaterra e zombavam do absolutismo
monárquico francês. Voltaire não havia dito muito a respeito do sistema político da Inglaterra. Ele
observou que os aristocratas pagavam impostos – um contraste dramático com a França – e que os
impostos eram estabelecidos pelo Parlamento. Ele admirava o nível mais baixo dos impostos na
Inglaterra, e falava sobre a divisão do poder entre a Câmara dos Comuns e a Câmara dos Lordes.
Havia muito mais para ser discutido, e Montesquieu decidiu fazê-lo. Ele começou a trabalhar em
Do espírito das leis por volta de 1729, quando tinha cerca de quarenta anos. Por aproximadamente
quinze anos, ele persistiu no projeto, e quase ficou cego fazendo pesquisas. Chegando ao fim do
projeto, tornara-se dependente de secretários e copistas. Porque temia a censura do governo francês,
tomou providências para que o livro fosse publicado anonimamente pelo editor Barrilot, de
Genebra. Quando saiu, em outubro de 1748, a obra causou sensação. Em um ano, houve vinte e
duas edições. Em 29 de novembro de 1751, autoridades religiosas acrescentaram-na ao Index de
livros que os católicos eram proibidos de ler.
Um cansado Montesquieu falou sobre sua obra a um amigo: “Posso dizer que trabalhei nela por
toda a minha vida; recebi alguns livros de direito quando deixei meu collège; busquei seu espírito,
trabalhei, mas não fiz nada de valor. Descobri meus princípios vinte anos atrás; eles são bastantes
simples; qualquer um que trabalhasse tão duro quanto eu teria feito melhor. Mas juro que este livro
quase me matou; vou descansar agora; não trabalharei mais”.
O livro é heterogêneo, com alguns capítulos tendo apenas algumas linhas. As ideias importantes são
abundantes. Por exemplo, Montesquieu reconheceu que o poder tende a corromper. “Uma
monarquia se arruína”, ele escreveu, “quando o príncipe, referindo tudo exclusivamente a ele
mesmo, reduz o estado à sua capital, e a capital à corte, e a corte à sua pessoa apenas”.
Montesquieu argumentou que, para garantir a liberdade, os poderes executivo, legislativo e
judiciário teriam de ser separados. Escreveu: “Para que não seja possível abusar do poder, um poder
deve controlar o outro pelo arranjo das coisas. Uma constituição pode ser tal que ninguém seja
obrigado a fazer as coisas que a lei não o obriga a fazer nem impedido de fazer as coisas que a lei
lhe permite fazer... É preciso combinar os poderes, regulá-los, temperá-los, fazê-los agir; é preciso
dar a um poder um lastro, por assim dizer, para que ele possa resistir a outro; essa é uma obra-prima
legislatória que o acaso raramente produz e que à prudência raramente é permitido produzir”.
Ele afirmou a importância crucial do império da lei, e acreditava que a punição deve ser
proporcional ao crime. “É um triunfo da liberdade”, escreveu ele, “quando as leis criminais derivam
cada pena da natureza particular do crime. Toda a arbitrariedade acaba; a pena não se segue de um
capricho do legislador mas da natureza da coisa, e o homem não comete violência contra o
homem”. Montesquieu descreveu o princípio da justa compensação, que se tornou parte da Quinta
Emenda da constituição americana: “Se o magistrado político quer construir algum edifício público,
alguma nova estrada, ele deve pagar compensação; nesse aspecto o público é como um indivíduo
que trata com outro indivíduo”. Ele falou contra a intolerância religiosa. “Leis penais devem ser
evitadas na questão religiosa”, escreveu ele. “A história ensina suficientemente bem que leis penais
nunca tiveram qualquer efeito além da destruição”.
Montesquieu reconheceu a influência civilizadora do comércio. Conforme ele escreveu, “o
comércio levou o conhecimento dos costumes de todas as nações a todos os lugares; eles foram
comparados entre si, e boas coisas resultaram disso. O espírito do comércio produz nos homens
uma certa inclinação pela justiça exata, em oposição por um lado ao banditismo e por outro àquelas
virtudes morais que fazem com que um homem nem sempre discuta apenas os próprios interesses e
possa negligenciá-los pelos alheios.
Voltaire, que desferiu muitos golpes contra Do espírito das leis, ofereceu esta homenagem:
“Montesquieu... estava quase sempre certo contra os fanáticos e os promotores da escravidão. A
Europa deve a ele gratidão eterna... A humanidade havia perdido seu direito [à liberdade], e
Montesquieu o recuperou”.
Em 1755, uma epidemia de febre se abateu sobre Paris, e Montesquieu adoeceu. Seus médicos o
sangraram, piorando seu estado de saúde. Querendo fazer as pazes com o mundo, ele pediu que um
padre fosse chamado, e um jesuíta chamado Bernard Routh interrogou-o sobre suas opiniões a
respeito dos dogmas da Igreja, e exigiu acesso a seus papéis. Ele foi interrompido por uma amiga de
Montesquieu, a duquesa d’Aiguillon. Routh autorizou que um padre administrasse a extrema-unção.
Montesquieu morreu em 10 de fevereiro de 1755. No dia seguinte, foi enterrado na capela de
Sainte-Geneviève, na igreja de Saint-Sulpice.
Montesquieu teve enorme influência, especialmente fora da França. O astuto observador inglês
Horace Walpole chamou Do espírito das leis de “o melhor livro já escrito – eu, ao menos, nunca
aprendi nem a metade disso de tudo que já li”. O historiador Edward Gibbon, que relatou o declínio
de Roma, escreveu, “nos quarenta anos desde a publicação de Do espírito das leis, obra nenhuma
foi mais lida e criticada, e o espírito investigativo que ela gerou não é a menor de nossas dívidas
com o autor”.
Segundo o historiador Peter Gay, “os homens do Iluminismo escocês estudaram Do espírito das leis
de modo cuidadoso e proveitoso. O livro foi lido, clandestinamente, em Viena, e, mais abertamente,
nos estados italianos, onde Genovesi, Beccaria, Filangieri, e outros illuminati confessavam-se
discípulos do ‘imortal Montesquieu’. Nos estados alemães, Lessing e a escola histórica de
Göttingen admiravam e imitavam o relativismo cultural de Montesquieu, enquanto pensadores
políticos absorviam suas opiniões sobre a constituição britânica... E é instrutivo ver Catarina da
Rússia, que, afinal, não foi tocada por seu abrangente liberalismo, achando útil tomar emprestado o
prestígio de Montesquieu, proclamando-se sua seguidora devota... Do espírito das leis era a moeda
comum do debate erudito”.
Na América, os livros de Montesquieu foram amplamente divulgados e disponibilizados em
bibliotecas privadas e circulantes. Estavam nas bibliotecas de Harvard, Princeton, Brown, e outras
universidades. Poucos catálogos de biblioteca da América colonial ainda sobrevivem, mas sabe-se
que obras de Montesquieu faziam parte das coleções pessoais de John Adams, Benjamin Franklin,
Thomas Jefferson, James Madison, James Wilson e John Marshall, entre outros.
Embora Jefferson não gostasse de Montesquieu por conta de seu apreço pela monarquia, e
especialmente pela monarquia britânica, ele reconhecia que as obras de Montesquieu eram
“geralmente recomendadas”. Samuel Adams estudou Montesquieu. John Adams era um admirador,
assim como James Otis, a quem é atribuída a frase “nenhuma taxação sem representação”. Richard
Henry Lee considerava Montesquieu um dos “maiores gênios”. George Mason citava Montesquieu
com frequência em seus escritos. E em O Federalista número 47, James Madison, que sabia de cor
diversas passagens de Do espírito das leis, escreveu, “o oráculo que é sempre consultado e citado
sobre esse assunto [a separação de poderes] é o célebre Montesquieu. Se não for ele o autor deste
precioso princípio da ciência da política, ele tem ao menos o mérito de tê-lo exibido e recomendado
mais efetivamente à atenção da humanidade”.
Montesquieu foi popularizado nos jornais americanos. “Embora não haja registros exatos”, relatou o
historiador Paul Merrill Spurlin, “uma leitura cuidadosa de centenas de jornais deu a este autor
algumas impressões bastante definidas. Retrocedendo até 1760 e restringindo as estimativas apenas
à imprensa, ele não reluta muito em afirmar que Montesquieu, linha por linha, foi mais citado do
que qualquer outro escritor francês. Esta afirmação diz respeito a ocorrências em que o autor do
material citado foi reconhecido. Ao mesmo tempo, é necessário admitir que Montesquieu
frequentemente era citado sem reconhecimento. Em comparação com escritores ingleses, não se
espera encontrar seu nome mencionado na imprensa tão frequentemente, por exemplo, quanto o de
Locke ou o de Blackstone. É a impressão deste investigador, no entanto, que em polegadas citadas,
quando a fonte era citada, Montesquieu ultrapassa Locke e se compara favoravelmente a
Blackstone”.
As ideias de Montesquieu saíram de moda à medida em que a revolução francesa saiu de controle e
tornou-se o reino do terror, porque não havia separação de poderes. Maximilien Robespierre
controlava o Comitê de Segurança Pública, que ordenava execuções arbitrariamente.
Refletindo sobre o poder totalitário durante a revolução francesa e a era napoleônica, o pensador
político Benjamin Constant escreveu: “Todas as constituições que foram dadas à França garantiam a
liberdade individual, e, no entanto, sob cada uma delas, a liberdade individual era constantemente
violada. A razão é que uma mera declaração não é suficiente; salvaguardas positivas são
necessárias”. E então ele recorreu a Montesquieu, que havia escrito sobre instituições que ajudam a
proteger a liberdade. Ele citou Montesquieu em sua principal obra, De L’Esprit de conquête “Do
espírito conquistador”.
Duas décadas mais tarde, Alexis de Tocqueville contemplou o futuro da liberdade na França e
inspirou-se em Montesquieu. Seu monumental Democracia na América (1835, 1840) descreveu
instituições que ajudam a proteger a liberdade. Um amigo de Tocqueville chamou-o de “herdeiro
direto de Montesquieu”.
Ao final do século XIX, Montesquieu era um homem esquecido. As décadas subsequentes
provaram-se as mais sangrentas da história humana, em que regimes por todo o mundo
concentraram poder político esmagador e assassinaram dezenas de milhões. Montesquieu estava
certo: é quase impossível proteger a liberdade se não houver separação de poderes.

Frank H. Knight
Frank H. Knight foi um dos fundadores da chamada Escola de Chicago, cujos principais membros
dos anos 1950 aos anos 1980 foram Milton Friedman e George Stigler. Knight fez sua reputação
com seu livro Risk, Uncertainty and Profit, baseado em sua tese de doutorado. No livro, Knight
põe-se a explicar por que a "competição perfeita" não necessariamente eliminaria o lucro. Sua
explicação era "incerteza", que Knight distinguia de risco. Segundo o autor, "risco" se refere a uma
situação em que a probabilidade de um certo resultado pode ser determinada, e portanto pode-se
obter seguro contra o mesmo. "Incerteza", por outro lado, se refere a um evento cuja probabilidade
não pode ser determinada. Knight argumenta que mesmo no equilíbrio de longo prazo os
empreendedores ganhariam lucros como retorno por agüentar a incerteza. A distinção de Knight
entre risco e incerteza ainda é ensinada hoje em dia em aulas de economia.
Knight fez mais três contribuições importantes para a economia. Uma é The Economic
Organization [A organização econômica], um conjunto de notas de aula publicado originalmente
em 1933. Nele, Knight delineou um modelo do fluxo circular da economia e enfatizou que
investimentos serão feitos até que os retornos para os investimentos em cada uso sejam iguais na
margem. Esses elementos persistem nos livros-texto de hoje.
O famoso artigo “Some Fallacies in the Interpretation of Social Cost” ["Algumas falácias na
interpretação do custo social"], no qual Knight analisou a visão de Arthur Pigou de que a congestão
em estradas justifica a tributação sobre as mesmas, é outra de suas contribuições para a economia.
Knight mostrou que, se as estradas fossem privadas, os seus donos estabeleceriam pedágios que
reduziriam a congestão. Portanto, não é necessária intervenção do governo.
A contribuição final de Knight é sua obra sobre teoria do capital nos anos 1930. Knight criticou a
visão de Eugen von Böhm-Bawerk de que o capital poderia ser medido como um período de
produção, e é largamente considerado o vencedor do debate sobre o conceito de capital da Escola
Austríaca.
Mas Knight era muito mais do que um economista. Ele era também um filósofo social, e a maior
parte de seus escritos são em filosofia social, e não em economia técnica. Firmemente crente na
liberdade e forte crítico da engenharia social, Knight se preocupava que a liberdade fosse
enfraquecida por aumentos nos monopólios e na desigualdade de renda. George Stigler relata que
Milton Friedman desafiava a visãod e Knight de que a desigualdade aumentaria, e Knight cedia, até
que no próximo almoço tomava a mesma posição.
Knight frequentemente sentia desespero diante da incapacidade do público geral de compreender
mesmo as verdades econômicas simples. Em seu discurso de 1950 ao assumir a presidência da
American Economic Association, Knight disse: "Recentemente tenho um novo e deprimente
exemplo do pensamento econômico popular na política de fixação arbitrária de preços. Haverá
utilidade em explicar, se é que é necessário, que fixar um preço abaixo do nível de mercado criará
escassez e, acima, excedente? Mas o público geme e reclama da escassez de habitação residencial e
do excesso de ovos e batata como se essas coisas fossem mais problemáticas do que ficar com as
solas dos sapatos sujas depois de deliberadamente caminhar na lama."
Curiosamente, porém, Knight foi um dos signatários de uma carta de 1946 para o New York Times
pedindo que os controles de preços impostos durante a Segunda Guerra Mundial fossem
continuados. [1]
Knight foi professor de economia na Universidade de Chicago de 1927 a 1955, e depois foi
professor emérito até sua morte.
 
Notas
[1] ROCKOFF, Hugh. Drastic Measures: A History of Wage and Price Controls in the United States.
Cambridge: Cambridge University Press, 1984, pp. 101–102.

William Stanley Jevons


William Jevons foi um dos três homens que simultaneamente propuseram a chamada revolução
marginal. Trabalhando completamente separados uns dos outros – Jevons em Manchester, na
Inglaterra; Leon Walras em Lausanne, na Suíça; e Carl Menger em Viena – cada um desenvolveu a
teoria da utilidade marginal para compreender e explicar o comportamento do consumidor. A teoria
sustenta que a utilidade (valor) de cada unidade adicional de uma commodity – a utilidade marginal
– é cada vez menor para o consumidor. Quando você está com sede, por exemplo, você obtém um
grande benefício com um copo de água. Uma vez que você mata sua sede, o segundo e o terceiro
copo se tornam cada vez menos atraente. Se sentindo satisfeito, você, consequentemente, se
recusará a beber mais água. O “valor”, disse Jevons, “depende inteiramente da utilidade”.
Essa afirmação marcou um significativo afastamento da teoria clássica do valor, que afirmava que
esse derivava do trabalho usado para produzir um bem ou, mais geralmente, do custo de produção.
Assim começou a escola neoclássica, que é, ainda hoje, dominante na economia.
Jevons continuou a definir a “equação da troca”, que mostra que para um consumidor que esteja
maximizando a sua utilidade, a razão entre a utilidade marginal de cada item consumido e seu preço
deve ser igual. Se não for, então o consumidor pode, com uma renda dada, redistribuir o consumo e,
assim, aumentar a utilidade.
Tome, por exemplo, um consumidor cuja utilidade marginal a partir de laranjas é 10 “utils” e a
partir de biscoitos é 4 “utils”, quando ambos têm o preço de $0,50 cada. A razão da utilidade
marginal pelo preço do consumidor para as laranjas é de 10/$0,50, ou 20, e para os biscoitos é de
4/$0,50, ou 8. Jevons teria dito (e economistas modernos concordariam) que isso não satisfaz a
equação da troca e, portanto, o consumidor trocará as compras. Especificamente, o consumidor
poderia aumentar a utilidade gastando $0,50 menos em biscoitos e usando o dinheiro para comprar
laranjas. Ele perderia 4 utils nos biscoitos, mas ganharia 10 nas laranjas, tendo um ganho líquido de
6 utils. Ele terá esse incentivo para redistribuir as compras até a equação da troca se sustentar (por
exemplo, até a utilidade marginal das laranjas e a utilidade marginal dos biscoitos subir a um ponto
em que, como razão dos seus preços, eles forem iguais). 
É claro, como é verdade com a maioria dos novos desenvolvimentos da teoria econômica, que
alguém pode sempre achar escritores antigos que diziam coisas parecidas. O papel de Jevons na
revolução marginal não é exceção. Muito do que ele disse já tinha sido dito antes por Hermann
Gossen, na Alemanha; Jules Dupuit e Antoine Cournot, na França; e Samuel Longfield, na Grã-
Bretanha. Não obstante, historiadores do pensamento econômico têm certeza de que Jevons nunca
os leu.
Jevons propôs muito menos considerações no lado da produção da economia. É irônico, portanto,
que ele tenha se tornado famoso na Grã-Bretanha pelo seu livro The Coal Question [“A questão do
carvão”], onde ele escreve que a vitalidade industrial da Grã-Bretanha dependia do carvão e,
portanto, declinaria conforme esse recurso se exauria. Como as reservas de carvão se esgotavam,
escreveu, seu preço subiria. Isso tornaria viável para os produtores extrair carvão de jazidas mais
pobres ou mais profundas. Ele também argumentou que os Estados Unidos cresceria para se tornar
uma superpotência industrial. Embora sua previsão estivesse certa tanto para a Grã-Bretanha quanto
para os Estados Unidos, e ele estivesse certo quanto ao incentivo para abrir minas em jazidas mais
ricas, ele estava, com certeza, quase errado com o fato de que o principal fator era o custo do
carvão. Jevons falhou em analisar o fato de que conforme o preço de uma fonte de energia sobe, os
empreendedores têm um forte incentivo para inventar, desenvolver e produzir fontes alternativas.
Em particular, ele não antecipou o óleo ou o gás natural. Igualmente, ele não considerou o
incentivo, conforme o preço do carvão subia, para usá-lo de forma mais eficiente ou para
desenvolver tecnologia que derrubasse o custo de descobrir e abrir minas (veja recursos naturais)
Nascido em Liverpool, na Inglaterra, Jevons estudou química e botânica no University College, em
Londres. Por causa da falência do negócio de seu pai, em 1847, Jevons deixou a escola para assumir
a posição de ensaiador de minérios, no Mint, em Sidney, na Austrália. Ele permaneceu lá por três
anos, retornando aos estudos no University College quando de sua volta à Inglaterra. Mais tarde, foi
nomeado para ocupar a cadeira de política econômica naquela universidade e lá se aposentou em
1880. Dois anos mais tarde, com vários livros inacabados em curso, Jevons se afogou enquanto
nadava. Ele tinha quarenta e seis anos.

David Hume
Embora mais conhecido por suas posições sobre filosofia, história e política, o filósofo escocês
David Hume também fez várias contribuições essenciais para o pensamento econômico. Seu
argumento empírico contra o mercantilismo britânico é uma das bases da economia clássica. Seus
ensaios sobre a moeda e o comércio internacional, publicados nos Ensaios políticos, influenciaram
fortemente seu amigo e compatriota Adam Smith.
Os mercantilistas britânicos acreditavam que a prosperidade econômica poderia ser alcançada pela
limitação das importações e pelo incentivo às exportações, visando aumentar a quantidade de ouro
acumulada no país. As colônias americanas facilitavam essa política ao fornecer matéria-prima, que
a Grã-Bretanha então manufaturava em produtos finais e reexportava para os mercados
consumidores na América. Como se sabe, essa relação entre a metrópole e a colônia durou pouco.
Mas, mesmo antes de a Revolução Americana intervir nos interesses mercantilistas, David Hume
mostrou por que a exportação líquida por ouro, que a Grã-Bretanha aferrolhava, não poderia
aumentar a riqueza. O argumento de Hume era, essencialmente, a teoria quantitativa da moeda dos
monetaristas: em um país, os preços variam de acordo com as mudanças na oferta de moeda. Hume
explicou seu ponto de vista dizendo que, conforme as exportações líquidas aumentassem e mais
ouro entrasse no país para pagar por elas, os preços dos bens aumentariam. Portanto, um aumento
na entrada de ouro na Inglaterra não necessariamente aumentaria substancialmente sua riqueza.
Hume mostrou que o aumento nos preços domésticos devido à saída do ouro desencorajaria as
exportações e encorajaria as importações, limitando automaticamente, portanto, o montante em que
aquelas excedem estas. Esse mecanismo de ajustes é chamado de mecanismo de fluxo preço-
espécie. Surpreendentemente, ainda que a ideia de Hume pudesse ter amparado o ataque de Adam
Smith ao mercantilismo e seu argumento a favor do livre comércio, Smith a ignorou. Embora
poucos economistas aceitem literalmente a visão de Hume, ela é, ainda, a base de muitas reflexões
sobre questões relacionadas à balança de pagamentos.
Considerando a sólida compreensão de Hume da dinâmica monetária, seus equívocos sobre o
comportamento da moeda são ainda mais notáveis. Hume, erroneamente, defendeu a noção de
“inflação rastejante” (creepy inflation no original): a ideia de que um aumento gradual na oferta de
dinheiro levaria ao crescimento econômico.
Hume fez mais duas contribuições duradouras para a ciência econômica. Uma é sua ideia, mais
tarde desenvolvida por Friedrich Hayek no livro O caminho para a servidão, de que a liberdade
econômica é condição necessária para a liberdade política. A segunda é a afirmação de que “não se
pode deduzir o que deve ser do que é” – isto é, julgamentos de valor não podem ser baseados
puramente nos fatos. Os economistas hoje apontam essa mesma diferença com a distinção entre o
normativo (o que deve ser) e o positivo (o que é).
Hume morreu no ano em que A riqueza das nações foi publicado, e na presença de seu autor, Adam
Smith.
 

Ludwig von Mises


A matança sem precedentes ocorrida no século XX foi primordialmente levada a cabo em nome do
socialismo, doutrina que defende o controle governamental sobre todas as coisas. Um dos
adversários mais francos do socialismo foi o economista austríaco Ludwig von Mises, autor de
vinte e nove livros em alemão e inglês, traduzidos para chinês, tcheco, holandês, francês, grego,
italiano, japonês, coreano, lituano, polonês, português, russo, espanhol e sueco.
Mises antecipou o futuro de maneira extraordinária. Em 1920, apenas três anos após o golpe
socialista na Rússia, previu ousadamente que as economias socialistas seriam uma bagunça. Alertou
para o fato de que a existência de liberdades civis era impossível sob o socialismo. Em 1927 ele
soou um alarme: “Aquele que não feche seus olhos deliberadamente para os fatos deve reconhecer
por todos os lados os sinais de uma catástrofe próxima na economia mundial... O colapso geral de
uma civilização”. “Ao controlar com exclusividade todos os fatores de produção”, explicou, “o
regime socialista controla também toda a vida de cada indivíduo. O governo designa a todo mundo
um emprego definitivo. Ele determina quais livros e jornais devem ser impressos e lidos, quem deve
dedicar-se à escrita, quem pode usar salas de reuniões, transmitir informações e usar os meios de
comunicações. Isso significa que aqueles encarregados da suprema conduta dos assuntos
governamentais vão decidir no final das contas quais idéias, ensinamentos e doutrinas podem ser
propagados e quais não podem. Independentemente do que uma constituição escrita e promulgada
venha a dizer sobre liberdade de consciência, pensamento, expressão e sobre neutralidade em
assuntos religiosos, ela vai permanecer como letra morta em um país socialista se o governo não
prover os meios materiais para o exercício destes direitos”.
Mises descreveu uma visão abrangente da liberdade econômica: “Há propriedade privada dos meios
de produção. O funcionamento do mercado não é dificultado pela interferência governamental. Não
há barreiras ao comércio; as pessoas podem viver e trabalhar onde queiram. Os mapas mostram
fronteiras, mas elas não impedem a imigração de pessoas e o fluxo de mercadorias. Nacionais não
desfrutam de direitos que sejam negados a estrangeiros. Governos e seus funcionários têm suas
atividades restritas à proteção da vida, saúde e propriedade contra agressão violenta ou fraudulenta.
Eles não discriminam estrangeiros. Os tribunais são independentes e protegem a todos contra a
intrusão das autoridades... A educação não está sujeita à intervenção governamental... Todos podem
dizer, escrever e imprimir aquilo que prefiram.”
Mises insistiu em expressar sua visão radical mesmo que isso significasse ser tratado como um
enjeitado. Era um economista altamente respeitado na Áustria, mas a Universidade de Viena
recusou-se a fazer dele um professor pago em quatro ocasiões, e por catorze anos ele deu um
prestigioso curso em Viena sem um salário. Durante a maior parte dos vinte e cinco anos durante os
quais ele deu aulas em Nova York, seu salário foi pago por indivíduos privados. O então futuro
Prêmio Nobel F. A. Hayek disse a Mises: “Você demonstrou inexorável coerência e persistência em
seu pensamento mesmo quando isso levou à impopularidade e ao isolamento. Você demonstrou
destemida coragem mesmo quando você esteve sozinho”. O economista Murray N.Rothbard disse:
“Mises não cedia nunca em seus princípios. Como acadêmico, como economista e como pessoa,
Ludvig von Mises era uma alegria e uma inspiração, um exemplo para todos nós”.
Mises tinha 1,70m de altura e brilhantes olhos azuis. “Sempre se mantinha reto e com uma postura
ereta, e caminhava com passos firmes”, recorda-se Bettina Bien Greaves, a principal acadêmica
especialista em Mises no mundo. “Usava um terno, geralmente cinza, e mesmo nos dias mais
quentes ele insistia em manter o paletó. Seus cabelos e bigode cinza estavam sempre
cuidadosamente penteados. Era sério, sem frivolidades. Quando lhe perguntaram se jogava Tênis,
respondeu que ‘não, porque não me interesso pelo destino de uma bola’. Mas adorava caminhar, e
durante seus verões na Áustria, na Suíça e nos Estados Unidos, ele costumava fazer trilhas pelas
montanhas. Permanecendo solteiro até os 57 anos, gostava de reunir os amigos para tomar chá.
Posteriormente, ele e sua esposa Margit iam com frequência ao teatro, mesmo quando suas finanças
se encontravam apertadas. Era um homem de graça, charme e cultura notáveis”.
Ludwig Edler von Mises nasceu no dia 29 de setembro de 1881, em Lemberg, então parte do
Império Áustro-Húngaro, cerca de 500 quilômetros ao leste de Vienna (hoje conhecida como Lviv,
na Ucrânia). Ele era o mais velho dos três filhos de Adele Landau, que fazia trabalho de caridade
em um orfanato judaico. Se pai era Arthur Edler von Mises, engenheiro ferroviário.
Foi na Universidade de Viena, perto do Natal de 1903, que Mises leu um livro que o inspirou a ser
um economista e conduziu-o na direção do livre mercado: Grundsatze der
Volkswirtschafslehre [“Princípios de economia”], escrito por Carl Menger. Professor da
Universidade de Viena por três décadas, explicava que os preços refletem o quanto os consumidores
estão dispostos a pagar por algo em um mercado livre. A teoria do valor subjetivo de Menger
rompeu com a hegemonia da teoria do valor do trabalho – os custos com o trabalho determinariam
os preços. O grande defensor de suas idéias foi Eugen von Bohm-Bawerk, cujo principal
trabalho, Kapital und Kapitalzins [“Capital e juros”], foi publicado em 1884. Mises participou do
seminário de Bohm-Bawerk na Universidade de Viena até tornar-se professor, em 1913. Enquanto
isso, em 20 de fevereiro de 1906 completava seu doutorado em leis e ciências sociais. Então, ele
começou a trabalhar na Câmara de Comércio de Viena, que aconselhava funcionários do governo
sobre leis que afetavam os negócios.
Mises começou seu primeiro livro, Theories des Geldes und der Unlaufsmittel [“Teoria do dinheiro
e do crédito”]. Publicado em 1912, atacou a popular idéia de que funcionários do governo poderiam
ditar o valor do dinheiro. Mises demonstrou que, pelo contrário, o valor do dinheiro era
determinado pelos seus usuários e fornecedores em um mercado livre. Mises insistiu que inflar a
oferta monetária é inútil, por que as pessoas subirão os preços. Os beneficiários serão aqueles que,
começando pelo próprio governo, gastarem a nova moeda antes que os preços subam. Os
perdedores serão os últimos a receber a nova moeda, após a subida nos preços e a depreciação do
valor da moeda no mercado.
Depois da Primeira Guerra Mundial, Inglaterra e França demandaram indenizações de guerra, o que
colocou pressão sobre Alemanha e Áustria para que estes países inflacionassem suas moedas. O
gasto do Estado de bem-estar socialista apenas piorou as coisas. A inflação na Alemanha teve seu
clímax em 1923, quando a elevação média dos preços foi de 300% ao mês e varreu milhões. A
inflação na Áustria não chegou a este ponto, mas foi danosa o suficiente – os preços aumentavam
quase 50% ao mês. Mises havia aparentemente persuadido o chanceler Ignaz Seipel e o presidente
do Banco Nacional Austríaco, Richard Reisch, de que a impressão de dinheiro deveria ser
interrompida.
O socialismo também havia se tornado um problema sério. O socialismo havia sido posto em
prática pela primeira vez em larga escala quando, durante a Primeira Guerra Mundial, governos
expandiram suas burocracias, decretaram impostos confiscatórios, expropriaram negócios privados,
fixaram preços, suprimiram mercados, ditaram a produção, instituíram o trabalho forçado e
suprimiram a dissidência. Muitos intelectuais defenderam a idéia de que o socialismo em tempos de
paz poderia alcançar o paraíso na Terra. Mises levantou-se desafiadoramente. Longe de alcançar
uma ordem racional, como explicou em Nation, Staat und Wirtschaft (1919) [“Nação, estado e
economia”], que o socialismo causava o caos. Citou “as estupidezes da economia política das
Potências Centrais durante a guerra. Em determinado momento, por exemplo, foi dada a ordem para
que a criação de animais fosse reduzida aumentando-se o número de abates devido a uma escassez
de feno; então os abates foram proibidos e foram ordenadas medidas que promoviam o aumento da
criação de animais... Medidas e contramedidas se cruzaram até que toda a estrutura da atividade
econômica estivesse em ruínas”.
Em 1920, Mises determinou por que o caos era inevitável sob o socialismo e explicou seu
grandioso insight em um artigo para a Sociedade Econômica, “Wirtschaftsrechnung im
sozialistichen Gemeneinwesen” [“Cálculo econômico na comunidade socialista”]. Sob o socialismo
não havia mercados onde as pessoas revelassem suas preferências demandando bens, fazendo com
que os planejadores centrais, mesmo que eles se importassem, não soubessem especificamente o
que queriam os consumidores. E sem preços de mercado para a miríade de fatores de produção,
seria impossível calcular o custo de alternativas e organizar a produção eficientemente. “Só é
possível apalpar no escuro”, escreveu Mises.
Mises decidiu escrever um livro expondo todos os erros do socialismo. Declarou: “Se a história
pôde provar-nos e ensinar-nos algo, é que a propriedade privada dos meios de produção é um
requisito necessário à civilização e ao bem-estar material. Todas as civilizações até hoje foram
baseadas na propriedade privada. Apenas nações comprometidas com o princípio da propriedade
privada deixaram para trás a penúria e produziram ciência, arte e literatura”.
F. A. Hayek recorda-se, “Quando Socialismo primeiro apareceu em 1922, seu impacto foi profundo.
Alterou gradualmente, mas fundamentalmente, a percepção de muitos jovens idealistas que
terminavam seus estudos universitários após a Primeira Guerra Mundial. Eu sei, pois eu era um
deles... Nos estávamos determinados a construir um mundo melhor, e foi este desejo de reconstruir
a sociedade que levou muitos de nós a estudar economia. O socialismo prometia realizar nossas
esperanças de um mundo mais racional e mais justo. E então veio este livro. Nossas esperanças se
acabaram. Socialismo nos revelou que buscávamos por respostas na direção errada”.
Mises iniciou um debate que se estendeu por anos. O socialista polonês Oskar Lange e outros
afirmaram que o “socialismo de mercado” poderia ter de alguma maneira preços de mercado sem
ter um mercado. Intelectuais socialistas disseram que Lange havia vencido o debate, embora seu
modelo teórico nunca tenha sido tentado em nenhum lugar.
Mises teve negada uma posição de professor para a qual ele era obviamente qualificado, em parte
porque as universidades européias eram de propriedade dos governos, e apenas aqueles que
pertencessem a um dos partidos políticos favoritos conseguiam tornar-se professores. Hayek
acrescenta: “Para um judeu conseguir uma vaga de professor ele tinha que o apoio de seus colegas
judeus... Mas como os professores judeus eram todos socialistas, e Mises era um anti-socialista, ele
não conseguiu o apoio de seus próprios colegas... A Viena dos anos 20 e 30 não pode ser
compreendida sem a questão judaica”.
Mises tornou-se um privatdozent, tendo a permissão de dar aulas e ser chamado de professor, mas
sem ser pago. Começando em 1920, de outubro até junho, explica, “Um número de jovens se reunia
ao meu redor a cada duas semanas. Meu escritório na Câmara de Comércio era espaçoso o
suficiente para acomodar de vinte a vinte e cinco pessoas. Nós geralmente nos reuníamos às sete da
noite, indo até as dez e meia. Nestes encontros se discutia informalmente todos os problemas
importantes de economia, filosofia social, sociologia, lógica e epistemologia das ciências da ação
humana... Todos que faziam parte deste círculo vinham voluntariamente, guiados apenas pela sua
sede de conhecimento”. Hayek descreveu o seminário como “o mais importante centro de discussão
econômica de Viena”.
Um dos trabalhos mais acessíveis e atraentes de Mises, Liberalismus (“Liberalismo”, 1927),
apresentou sua defesa da liberdade e da paz. Ele explicou que mercados livres elevam
dramaticamente os padrões de vida e promovem harmonia social, e deixou claro por que a
intervenção governamental tende a empobrecer as pessoas e a provocar conflitos. Rejeitando o
nacionalismo, ele escreveu, “O liberal abomina a guerra, não como o humanitário, apesar do fato de
que esta traz consequências benéficas, mas porque só traz consequências maléficas”.
Em todos os lugares o livre mercado era culpado pela Grande Depressão, mas Mises contrariou essa
idéia com Die Ursachen der Wirtshaftskrise: Ein Vortrag (“As causas da crise econômica”, 1931).
Ele asseverou que a recessão e a depressão eram resultados da inflação anterior causada pela
expansão governamental da quantidade de crédito e dinheiro. Quando a inflação freasse, ou o
volume de dinheiro e crédito se contraísse, muitos negócios estimulados pela inflação entrariam em
colapso. Mises acreditava que o desemprego não diminuiria até que os vendedores aceitassem
preços mais baixos e os trabalhadores aceitassem salários mais baixos, refletindo a realidade do que
compradores e empregadores estavam dispostos a pagar. Ele alertou para o fato de que o
desemprego crônico seria a consequência de políticas que mantivessem salários artificialmente altos
durante uma depressão, e ele estava certo: mais de 11 milhões de americanos estavam
desempregados em 1940, quase o mesmo número do início do New Deal, em 1933. O economista
inglês John Maynard Keynes, entretanto, foi aclamado por dizer aos políticos que estes deveriam
intervir na economia e gastar o dinheiro das outras pessoas – o que eles já desejavam, de qualquer
forma.
Convidado por William E. Rappard a juntar-se ao Graduate Institute of International Studies at the
University of Geneva, Mises partiu para Genebra em 3 de outubro de 1934. Deixou para trás
diversas posses pessoais no apartamento em Viena onde havia vivido com a mãe desde 1911,
incluindo milhares de livros de que ele não necessitaria para seu trabalho. Permaneceu em Genebra
por seis anos, conduzindo um seminário em francês durante as manhãs de sábado.
Cerca de um ano após a morte de sua mãe, Mises surpreendeu seus amigos ao casar-se em 6 de
julho de 1938, em uma cerimônia civil suíça que necessitou de cinco advogados para executar
dezenove documentos. Margit Herzfeld, a esposa de Mises, era uma atriz que havia encenado peças
de Johann Wolfgang von Goethe, Henrik Ibsen, Friedrich Schiller, William Shakespeare e Leon
Tolstoy, dentre outros. Eles se conheciam há treze anos, e ela teve dois filhos com seu falecido
marido, Guido e Gitta. Nascida em 6 de julho de 1890, era “uma mulher glamourosa, de cerca de
1,70m. Ela era um pouco vaidosa e tinha algo de esnobe, mas era sempre uma excelente anfitriã.
Mises havia lhe avisado: ‘eu escrevo sobre dinheiro, mas eu nunca vou ter muito’”.
Mises concentrou-se em seguida em escrever um grande livro, que se tornou Nationaloekonomie,
Theorie des Handelns und Wirtschaftens [“Economia: teoria da ação e da troca”], com 756 páginas,
publicado em 1940. Partindo de axiomas fundamentais sobre a ação humana, desenvolveu uma
defesa abrangente do livre mercado e atacou todo tipo de interferência governamental na economia.
Foi um ato de coragem vir a público com este livro em um momento em que regimes totalitários
estavam ganhando poder. O livro foi publicado em Genebra pela Editions Union.
Após a queda da França, os Mises decidiram deixar a Europa. Em 4 de julho de 1940, embarcaram
em um ônibus para Cerberes, França, perto da fronteira espanhola, frequentemente mudando de rota
para escapar dos nazistas. Tentaram por três vezes, sem sucesso, entrar na Espanha. Finalmente,
chegaram a Lisboa e depois de duas semanas de esforços constantes Margit von Mises conseguiu
passagens em um navio para Nova York. Chegaram em 2 de agosto de 1940, e estabeleceram-se em
um pequeno apartamento no número 777 na West End Avenue, que viriam a ocupar pelo resto de
suas vidas.
Mises estava profundamente deprimido pelo fato de seus esforços na luta contra o socialismo e por
alguma segurança financeira naufragaram. Ele não tinha qualquer expectativa de um emprego
estável, e, embora tivesse algum dinheiro na Inglaterra, não podia transferi-lo para os EUA devido
aos controles de câmbio. Hayek ajudou usando o dinheiro de Mises para comprar livros raros (como
uma primeira edição de A riqueza das nações) e enviando-os, o que era legal.
Um mês após sua chegada na América, Mises telefonou ao então editor financeiro do New York
Times, Henry Hazlitt. Hazlitt tinha se deparado pela primeira vez com o nome de Mises ao ler O
valor do dinheiro(1917), de Benjamin Anderson, e havia resenhado a edição em inglês
de Socialismo no New York Times, chamando-o de “a análise mais devastadora do socialismo jamais
escrita”. Hazlitt ajudou a tirar Gitta, a filha de treze anos de Margit von Mises, de Paris, ocupada
pelos nazistas, usando seus relacionamentos no New York Times com um funcionário do
Departamento de Estado. Também incentivou Mises a escrever nove artigos sobre a situação
européia, que foram publicados no New York Times. Os artigos levaram a uma ligação com a
Associação Nacional dos Manufatureiros (NAM), uma das líderes na oposição à intervenção do
governo na economia. Ele contribuiu com um estudo de dois volumes patrocinado pela NAM, The
Nature and Evolution of the Free Enterprise System [“A natureza e a evolução do sistema de livre
empresa”], e conheceu diversos industriais americanos. Na mesma época, em 24 de dezembro de
1940 Mises foi notificado de que a Rockefeller Foundation havia doado dinheiro ao Departamento
Nacional de Pesquisa Econômica, possibilitando que ele escrevesse Governo
Onipotente e Burocracia, seus primeiros livros em inglês. Hazlitt chamou a atenção de Eugene
Davidson, editor da Yale University Press, para estes livros, e ele concordou em publicá-los.
Burocracia explicava que empresas privadas são muito mais eficientes e dinâmicas do que
burocracias governamentais porque seus gestores podem usar sua imaginação e tentar coisas novas,
sendo sua performance facilmente monitorada por lucros e perdas. A performance dos burocratas
não pode ser facilmente monitorada. Dar-lhes demasiada discricionariedade resulta em
arbitrariedade e corrupção.
Em Governo Onipotente, Mises relacionou o Nazismo (Nacional Socialismo) ao Comunismo, os
quais, segundo os intelectuais da moda, seriam fenômenos completamente distintos. Mises
contraargumentou afirmando que “os nazistas não apenas imitaram as táticas Bolcheviques de
tomada de poder. Eles copiaram muito mais. Eles importaram da Rússia o sistema de partido único
e o papel privilegiado deste partido e de seus membros na vida pública; a posição suprema da
polícia secreta... execuções e prisões de adversários políticos; campos de concentração”.
Hazlitt encorajou Eugene Davidson a considerar a publicação de Nationaloekonomie, traduzido e
adaptado para o público americano. Mises escreveu a Davidson explicando que seu objetivo “era
fornecer uma teoria abrangente do comportamento humano que incluísse não apenas a estudo de
uma economia de mercado (o sistema de livre empresa), mas também o estudo de qualquer outro
sistema de cooperação social, como por exemplo socialismo, intervencionismo, corporativismo, e
assim por diante. Ademais, considero necessário que se lide com as objeções que têm sido
levantadas contra a solidez do raciocínio econômico e a validade dos métodos até aqui aplicados
por economistas de todas as escolas e linhas de pensamento sob diversos pontos de vista – como,
por exemplo: ética, psicologia, história, atropologia, etnografia, biologia”.
Quando Ação Humana foi publicado, em setembro de 1949, foi respeitosamente resenhado em
diversas publicações, incluindo New York Herald Tribune, New York Journal American, New York
World-Telegram, The Wall Street Journal, Commentary, Saturday Review of Literature e American
Economic Review. No New York Times, o socialista John Kenneth Galbraith creditou Mises como
“um homem culto e um professor famoso”. Partidários da liberdade estavam extasiados. Henry
Hazlitt, que havia deixado o New York Times e começado a escrever sua coluna semanal, “Business
Tides” [“Marés dos Negócios”], disse na edição de 19 de setembro de 1949 que “Ação Humana é ...
ao mesmo tempo a mais intransigente e rigorosamente argumentada declaração em favor do
capitalismo que já se viu”. Rose Wilder Lane, autora de Discovery of Freedom [“Descoberta da
liberdade”], chamou Ação Humana de o “o maior produto da mente humana em nossa era”. O
economista Austríaco Murray N. Rothbard aclamou o livro como “a Bíblia econômica do homem
civilizado”.
Ação Humana descreveu o mercado livre como “uma democracia em que cada centavo dá o direito
a um voto... Na democracia política, apenas os votos no candidato da maioria ou no plano da
maioria efetivamente influenciam os rumos da política. Os votos da minoria não influenciam
diretamente as políticas. Mas no mercado nenhum voto é dado em vão. Cada centavo gasto tem o
poder de influenciar os processos de produção. Lançando histórias de detetives, as editoras não
fornecem livros apenas à maioria, mas também à minoria que lê poesia lírica e tratados filosóficos.
Os padeiros não assam pães apenas para as pessoas saudáveis, mas também para pessoas enfermas
em dietas especiais... É verdade que no mercado os vários consumidores não tem os mesmos
direitos de voto. Os ricos tem mais votos que os cidadãos mais pobres. Mas esta desigualdade é, ela
mesma, resultado de um processo de votação anterior. Em uma pura economia de mercado, ser rico
é resultado do sucesso em atender às demandas dos consumidores”.
Entre as obras selecionadas pelo Book-of-the-Month Club “Clube do livro do mês”, Ação
Humana foi traduzido em francês, italiano, japonês e espanhol. Yale publicou uma nova edição
de Socialismo (1951), uma nova edição de Teoria da Moeda e do Crédito (1953) e Teoria da
História: uma interpretação da evolução econômica e social (1957). Van Nostrand publicou o A
mentalidade anticapitalista, de Mises, que relata como o livre mercado enriquece as culturas. A
segunda edição da Yale de Ação Humana foi, entretanto, um dos maiores fiascos editoriais já vistos;
havia páginas faltando, páginas com letras em negrito, com letras mais claras, dentre outros
problemas. A editora Henry Regnery Co., de Chicago, logo lançou uma terceira edição corrigida, e a
Fox & Wilkes, de San Francisco, lançou uma edição em brochura.
Enquanto isso, Mises continuava a falar em favor do livre mercado onde pudesse, e em uma destas
ocasiões encontrou Leonard E. Read, gerente-geral da Câmara de Comércio de Los Angeles. Dois
anos depois, Read criou a Foundation for Economic Education (FEE) e contratou Mises como autor
e palestrante por 6 mil dólares ao ano. Mises estava dentre os convidados por Hayek para formar a
Mont Pelerin Society, um grupo internacional de acadêmicos liberais formado em 1947.
Mises havia concordado em 1945 em dar um curso sobre socialismo todas as segundas-feiras à
noite na New York University Graduate School of Business, localizada em Trinity Place, número
100. Ele receberia mil dólares por semestre, e em 1948, Mises começou também um seminários às
quintas-feiras à noite sobre controles governamentais. Quando a New York University anunciou que
não mais lhe pagaria, Harold Luhnow do William Volker Charities Fund, de Kansas City, ofereceu-
lhe 8,5 mil dólares ao ano. Após a sua dissolução em 1962, Leonard E. Read, Henry Hazlitt e o
publicitário Lauwrence Fertig levantaram o dinheiro para o salário de Mises, inicialmente 11,7 mil
dólares. O seminário das segundas continuou até 1964. O das quintas, até 1969. Entre 1960 e 1964,
o seminário das quintas-feiras ocorreu na sala 32, Gallatin House, 6 Washington Square North.
De acordo com Barbara Branden, biógrafa da famosa romancista e filósofa Ayn Rand, “Iniciando no
final da década de 50 e continuando por mais de dez anos, Ayn começou a articular uma campanha
para que o trabalho de Mises fosse apreciado e lido: publicou resenhas, citou-o em artigos e
discursos públicos, participou de alguns de seus seminários na New York University, recomendou-o
aos admiradores da sua filosofia”.
Após seu nonagésimo aniversário, Mises sofreu uma dolorosa obstrução intestinal. Em 7 de
setembro de 1973 ele foi levado ao St. Vincent’s Hostpital, na 11th Street com a 7th Avenue. Ele
morreu lá em 10 de outubro, cerca de 8h30min da manhã. Tinha noventa e dois anos. O funeral, três
dias depois, foi assistido por 29 amigos no Ferncliff Cemetery, em Hartsdale, NY. Houve uma missa
em sua homenagem na Universal Chapel, 1976 Madison Avenue, Nova York, no dia 16 de outubro.
Mises foi vingado pelo colapso do império soviético em 1991. Em The New Yorker, o influente
autor socialista Robert L. Heilbroner relembrou que Mises havia tempos sustentava “que nenhum
Conselho de Planejamento Central poderia jamais juntar a enorme quantidade de informações
necessárias para se criar um sistema econômico viável”. “Mises estava certo”, admitiu Heilbroner.
O editor e jornalista Llewellyn H. Rockwell Jr. Fundou o Ludwig von Mises Institute para
promover o estudo sobre a economia Austríaca. Margit von Mises foi presidente. Murray N.
Rothbard observou que “Margit... descobriu manuscritos não-publicados de Lu, traduziu-os e
editou-os, e supervisionou sua publicação. Ela também supervisionou reimpressões e traduções de
trabalhos já publicados de Mises”. Ela morreu em seu apartamento em Nova York em 25 de junho
de 1993, aos 102 anos. O Mises Institute publicou uma excelente edição acadêmica de Ação
humana.
No outono de 1996, o professor Richard M. Ebeling e sua esposa russa Anna localizaram cerca de
10 mil documentos que Mises havia deixado em seu apartamento em Viena. Eles haviam sido
confiscados pela Gestapo e após a guerra os soviéticos haviam se apropriado deles e levaram-nos a
Moscou, sendo liberados após o colapso da União Soviética. Ebeling relatou, “Percebe-se que
Ludwig von Mises foi mais importante e influente do que até mesmo seus admiradores mais
profundos poderiam ter imaginado”. Ebeling está escrevendo uma biografia, e o acadêmico alemão
Guido Hulsmann está completando outra.
Muito tempo depois que Karl Marx e John Maynard Keynes estiverem esquecidos, Ludwig von
Mises será conhecido como o homem que disse a verdade sobre o poder dos governos que flagelou
o século XX. Ele demonstrou com tremenda clareza que o livre mercado combate a pobreza, liberta
o espírito humano e possibilita que as pessoas respirem livremente em todos os lugares.

Três biografias para celebrar o Dia Internacional das Mulheres


Para celebrarmos o Dia Internacional das Mulheres, vamos relembrar as biografias de 3 mulheres
com histórias inspiradoras, escritas por Jim Powell e publicadas anteriormente em
OrdemLivre.org.

Mary Wollstonecraft
Wollstonecraft inspirava as pessoas porque falava com o coração. Embora fosse razoavelmente bem
educada, fazia uso primordialmente da sua própria experiência de vida tumultuada. Ela dizia que
“há um defeito original na minha mente, pois as mais cruéis das experiência não foram suficientes
para erradicar essa minha tendência boba em valorizar – e esperar encontrar – ternura romântica”.
Ela ousou fazer o que nenhuma mulher fizera: seguir uma carreira como escritora profissional em
tempo integral, tratando de assuntos sérios, sem o patrocínio de nenhum aristocrata. “Serei a
primeira de um novo tipo”, ela afirmou. Foi uma luta dura, pois as mulheres tradicionalmente eram
louvadas por suas habilidades domésticas, e não por sua inteligência. Wollstonecraft desenvoleveu
seus talentos enquanto vivia com uma renda minguada. Vestia-se com simplicidade, raramente
comia carne e, quando tomava vinho, era em uma um xícara de chá, pois não podia pagar por um
copo inteiro.
Seus contemporâneos observavam sua presença provocante – magra, de altura média, olhos
encantadores, cabelos castanhos, e voz suave. “Mary não chegava a ser de uma beleza estonteante,
mas era encantadoramente graciosa”, disse um admirador germânico. “Seu rosto, tão expressivo,
tinha um tipo de beleza que ia além das características mais comuns. Havia algo de encantador em
seu olhar, em sua voz, em seus gestos”.

Rose Wilder Lane


Lane era uma estrangeira que veio de um território que não era ainda parte dos Estados Unidos e
iniciou uma carreira antes de muitas mulheres terem direitos iguais. Tornou-se uma das
escritoras freelance de maior sucesso em sua época. Viajou a trabalho pela Europa Oriental e aos 78
anos se tornou correspondente de guerra no Vietnã. Publicou textos em American
Mercury, Cosmopolitan, Country Gentleman, Good Housekeeping, Harper’s, Ladies’
Home Journal, McCall’s,Redbook, Saturday Evening Post, Sunset, Woman’s Day, e outras revistas.
Produziu roteiros para o apresentador de rádio Lowell Thomas, cuja especialidade eram aventuras
de viagens exóticas, e escreveu biografias de Charles Chaplin, Henry Ford e Jack London. Seu
romance Let the Hurricane Roar [“Deixe o furacão rugir”] (1933) foi um best-seller que
permaneceu em catálogo por quatro décadas e foi adaptado para a televisão
como Young Pioneers [“Jovens pioneiros”]. Seu livro The Discovery of Freedom [“A descoberta da
liberdade”](1943), ainda disponível, ajudou a inspirar o moderno movimento libertário. Ela atingiu
seu maior impacto quando transformou as histórias contadas por sua mãe na adorada série de
livros Little House [“Casinha”], tratando temas como responsabilidade individual, auto-confiança,
cortesia, coragem e amor. Muitas pessoas consideram-na a melhor série de livros infantis já escrita.
Referindo-se a Lane e suas compatriotas, a jornalista Isabel Paterson e a romancista Ayn Rand, John
Chamberlain, editor da Fortune, escreveu admiradamente que “com um olhar desdenhoso para a
comunidade empresarial masculina, elas decidiram reacender a fé em uma filosofia americana mais
antiga. Não havia nenhuma economista dentre elas. E nenhuma delas era uma Ph.D”. Albert Jay
Nock declarou que “elas fazem com que nós escritores homens nos pareçamos com dinheiro
Confederado [N.T.: sem valor]. Elas não se descuidam nem perdem tempo – cada tiro vai direto ao
ponto”. O biógrafo William Holtz notou que a filosofia política foi “o principal interesse de Lane
durante metade de sua vida adulta. Ela era uma figura importante na transmissão do persistente fio
de pensamento libertário em nosso país, e muitos daqueles que respeitam e amavam-na formavam
na verdade um tipo de camaradagem entre guerreiros contra o Estado. (…) Altamente autodidata,
sempre uma leitora voraz e variada e, por temperamento, uma pensadora independente, ela
acreditava em poucas coisas simplesmente por fé, testado idéias instintivamente contra sua própria
experiência”.

Ayn Rand
Rand explicava as coisas com uma clareza fora do comum. Escreveu, por exemplo: “Qual é o
princípio básico, essencial, ela discordava dos defensores da liberdade que esperavam ganhar
influência apenas com a economia de mercado: “A maioria das pessoas sabe, de uma forma vaga e
incômoda, que há algo de errado com a teoria econômica marxista… A raiz da tragédia moderna é
filosófica e moral. As pessoas não estão aderindo ao coletivismo porque aceitaram a má teoria
econômica, elas estão aceitando a má teoria econômica porque aderiram ao coletivismo.” crucial,
que diferencia a liberdade da escravidão? É o princípio da ação voluntária versus a coerção física ou
por ameaças… A questão não é a escravidão por uma ‘boa’ causa versus a escravidão por uma causa
‘ruim’; a questão não é a ditadura de uma gangue ‘boa’ contra a ditadura de uma gangue ‘má’. A
questão é liberdade versus ditadura… Se defendemos a liberdade, devemos defender os direitos
individuais do homem; se defendemos os direitos individuais do homem, devemos defender seu
direito à sua própria vida, à sua própria liberdade, e à busca de sua própria felicidade… Sem
direitos de propriedade, nenhum outro direito é possível. Uma vez que o homem precisa sustentar
sua vida através de seu próprio trabalho, o homem que não tem direito ao produto de seu trabalho
não tem meios de sustentar sua vida.” É verdade que Rand perdia a paciência com aqueles que não
conseguiam compreendê-la, e com compatriotas que se desviavam de suas opiniões. Talvez isso se
devesse em parte ao fato de que ela havia passado muitos anos lutando para escapar da Rússia,
estabelecer-se em Hollywood, superar rejeições de editoras e suportar críticas duras. A biógrafa
Barbara Branden descreveu Rand na época de sua chegada aos EUA, aos vinte e um anos:
“Enquadrado por cabelo curto e liso, seu rosto quadrado tinha a forma enfatizada pela mandíbula
firme, uma boca grande e sensual sempre tensa, e olhos enormes, negros e intensos. Parecia o rosto
de uma mártir, uma inquisidora ou uma santa. Seus olhos tinham uma paixão simultaneamente
emocional e intelectual – como se pudessem queimar quem os olhasse”. Ao longo da vida de Rand,
o tabagismo e os hábitos sedentários tiveram suas consequências, mas ela ainda era inesquecível.

Bônus:
"Opression of Women", capítulo do excelente livro In Defense of Global Capitalism, de Johan
Norberg: Opression of Women

Elizabeth Stanton
Diz-se que Abigail Adam alertou a seu marido, John Adams, antes que ele assinasse a Declaração
da Independência: “Se não se der cuidado e atenção particular às damas, estamos determinadas a
fomentar uma rebelião, e não nos submeteremos a nenhuma lei na qual não tenhamos voz ou
representação”. Por décadas, pouco aconteceu.
Foi então que Elizabeth Cady Stanton lançou o movimento para os direitos da mulher e ajudou a
estabelecer quatro organizações para promovê-los. Ela estabeleceu a agenda: direitos de
propriedade iguais, incluindo o direito de firmar e rescindir contratos, o direito de possuir
propriedade, e o direito de herdar propriedade; o direito de compartilhar a custódia de filhos; e
sufrágio feminino, para ajudar a assegurar esses direitos.
Impressionada com a sua determinação, a abolicionista quacre Lucretia Mott disse a Stanton: “És
tão devota a esta causa que deves presumir ser a pioneira deste trabalho”. O editor abolicionista
William Lloyd Garrison declarou: “A Sra. Stanton é uma mulher destemida e luta pelos direitos da
mulher com toda a sua alma”.O orador abolicionista Frederick Douglas relembrou como Stanton,
“por meio daquela lógica que domina, foi bem-sucedida na empreitada de convencer-me da
sabedoria e verdade do novo evangelho dos direitos da mulher”.
Susan B. Anthony, convertida por Stanton à causa dos direitos da mulher, escreveu: “Sinto que
sempre tive a opinião da Sra. Stanton antes mesmo de saber em que posição me encontrava”.
Stanton trabalhou com Anthony por mais de meio século, em uma das maiores parcerias na história
da liberdade. Anthony tornou-se a principal organizadora pelos direitos da mulher, enquanto Stanton
expressava a ideologia, desenvolvia a estratégia e escrevia muitos dos discursos, proclamações e
encômios de Anthony. Repetidamente, Anthony pleiteou por material: “Sra. Stanton... Eu imploro...
coloca-te a trabalhar... Não digas não, nem atrases o trabalho por um momento que seja; pois
preciso ter tudo pronto e guardado na memória... Vais carregar minha arma, deixando-me puxar o
gatilho e disparar a bala e a pólvora?”
Até mesmo Wendell Phillips, o grande orador abolicionista, apreciava a ajuda da inflamada caneta
de Stanton. “Se me perdoares e esqueceres”, ele escreveu a ela, “e me convidares para o café da
manhã, jantar ou chá, estalarei meus dedos para a plateia e me alimentarei das suas coisas boas
como fiz antes, e roubarei para os meus discursos as coisas boas que não são de comer”.
Stanton aprendeu com muitos dos maiores pensadores liberais. Ela leu os escritos de Mary
Wollstonecraft, a primeira a aplicar os princípios de direitos naturais às mulheres; conheceu John
Bright, que lutou em favor do livre mercado, da paz e do sufrágio mais amplo; e John Greenleaf
Whittier, o mais célebre poeta do movimento abolicionista. Ela elogiou Herbert Spencer, o campeão
do laissez-faire, pela sua “grandiosa filosofia da vida! Ela leu livros do moralista Leo Tolstoy e
apreciava o individualista Mark Twain, “cuja graça somente pode ser igualada a sua moral”. Ela
escreveu ao filófoso John Stuart Mill, autor de The Subjection of Women [A sujeição das mulheres]:
“Largo o livro com uma paz e felicidade nunca sentidas antes”.
Desta maneira a sua biógrafa Elizabeth Griffith caracterizou-a nos anos 1870, quando ela era uma
famosa palestrante: “A Sra. Stanton tinha a habilidade de satisfazer multidões. Seu estilo era
cativante, sua voz suave e tranquila e suas maneiras graciosas e femininas. Um observador recorda
que ela era uma oradora 'poderosa, empolgante', cuja inteligência natural fazia rir a audiência.
Apesar da gravidade do assunto tratado por ela, o jornal San Francisco Chronicle descreveu-a
simplesmente como 'alegre'. Outro espectador descreveu-a como 'roliça como uma perdiz'”. Com a
sua cútis rosada, cabelos brancos e medidas generosas, 'ela poderia ser confundida com a mãe de
um governador ou presidente', escreveu um de seus admiradores. A aparência de Stanton começou a
ser comparada à da rainha Vitória e à da mãe de George Washington. Ela era vista como maternal,
digna e eminentemente respeitável”.
A acadêmica Ellen Carol DuBois maravilhou-se com o fato de Stanton ter vivido com “saúde
mental e física próxima da perfeição. Ela era brilhante e instruída, e era também sensível,
defendendo seu próprio peso (79 kg em 1860, passando de 108 kg com idade mais avançada), sua
propensão a cochilar frequentemente e a sexualidade de todas as mulheres quando nada disso era
considerado respeitável. Ela tinha uma poderosa perspicácia, que usava para demolir seus inimigos
e manter seus amigos a uma distância respeitável. Sobretudo, comprometia-se a descobrir e
compreender a longa história da opressão das mulheres e levá-las à revolta contra este mal. Sua
força de caráter, inteligência e vitalidade eram tão grandes, e sua ira contra a opressão da mulher tão
profunda, que vir a conhecê-la agora... ainda é uma experiência tão inspiradora como deve ter sido
conhecê-la quando estava no auge de sua carreira”.
Elizabeth Cady nasceu em 12 de novembro de 1815, em Johnston, estado de Nova York. Ela era a
sétima filha de Margaret Livingston, que teve um total de onze filhos. O pai de Elizabeth, Daniel
Cady, era um homem esforçado, aprendiz de sapateiro que se tornou advogado. Cady desejava um
filho e encontrava-se deprimido pela morte dos seus cinco meninos, assim como de uma de suas
meninas. Elizabeth angustiava-se quando seu pai lhe dizia: “Eu queria que você fosse um menino!”.
Ela frequentou o seminário feminino Troy, em Nova York, conduzido por Emma Willard, que
adotava a visão de direitos naturais e acreditava que a educação deveria auxiliar na formação de um
bom caráter, essencial para o avanço da mulher. Willard lecionava literatura clássica, ciências e
filosofia.
Em outubro de 1839, Elizabeth conheceu Henry Stanton, que recrutou membros e arrecadou
dinheiro para a Sociedade Antiescravidão Americana. A biógrafa Griffith observou que “ele era
bonito, inteligente, cativante, eloquente, dominador, masculino, exigente, charmoso e um bom
dançarino... E ele ou não sabia disso ou não se impressionava com as suas qualidades”. Eles se
casaram em Johnstown, em 1º de maio de 1840.
Os Stanton partiram para Londres para a Convenção Mundial Antiescravidão. Conheceram diversas
mulheres da Philadelphia, notavelmente a quacre Lucretia Mott, que, em 1833, criou a Sociedade
Antiescravidão das Mulheres da Philadelphia e, quatro anos depois, a Convenção Antiescravidão
das Mulheres Americanas. Stanton recordou que “A Sra. Mott foi uma completa revelação de
caráter feminino para mim. Frequentemente fazia-lhe perguntas... Ela contou-me... a respeito de
Mary Wollstonecraft, suas teorias sociais e suas exigências de igualdade para as mulheres”.
A convenção em Londres iniciou-se, com polêmicas, em 12 de junho de 1840, no Freemason's Hall,
na Great Queen Street. Alguns clérigos reclamaram que mulheres não deveriam estar presentes. Um
acordo havia sido feito: mulheres poderiam participar, mas elas deveriam ocupar as galerias. O
editor do Liberator, William Lloyd Garrison, uniu-se às mulheres, e Stanton e Mott decidiram que
fariam algo a respeito quando retornassem aos Estados Unidos. Assim nascia o movimento pelos
direitos da mulher.
Stanton inspirou-se em Daniel O'Connell. “Ele prestou um belo tributo às mulheres”, ela recordou.
“Quase se podia saber o que ele dizia através das suas características expressivas, seus belos gestos
e a postura de todo o seu corpo”. O libertador da Irlanda disse a Stanton que ela deveria ter
objetivos ambiciosos na sua luta pelos direitos da mulher, e foi o que ela fez.
Em junho de 1847, os Stanton mudaram-se para uma casa na Washington Street, em Seneca Falls,
estado de Nova York. No ano seguinte, Elizabeth Cady Stanton foi convidada para visitar Lucretia
Mott e três amigos quacres em Waterloo, cerca de dez quilômetros ao norte de Seneca Falls. Eles
decidiram convocar uma reunião para tratar dos direitos da mulher, em 19 e 20 de julho de 1848.
Era necessário algum tipo de documento para que eles pudessem focar os seus esforços. Stanton
redigiu A Declaration of Rights and Sentiments [Uma declaração de direitos e opiniões], adotando a
filosofia dos direitos naturais da Declaração da Independência. Ela escreveu: “Decidido: que todas
as leis impedindo mulheres de ocuparem certa posição na sociedade, ou que as coloque em posição
inferior à de um homem, são contrárias ao grande preceito da natureza, e portanto, não possuem
força ou autoridade”. Também foi incluída uma cláusula a respeito do sufrágio: “Decidido, que é o
dever das mulheres deste país assegurar para si o direito sagrado ao voto”. Ela declarou: “O direito
é nosso. Devemos possuí-lo. Vamos usá-lo”. Frederick Douglass afirmou que “foi através do poder
de escolher os governantes e fazer as leis que todos os demais direitos puderam ser assegurados”.
Em 19 de julho, a Declaration of Rights and Sentiments foi assinada por 58 mulheres e 32 homens.
Em março de 1851, Stanton conheceu Susan Brownell Anthony, que estava na companhia de
Amelia Bloomer (a designer das calças largas que substituíram as desconfortáveis saias de armação,
tornando o trabalho mais fácil para as mulheres). “Como me lembro daquele dia!”. Stanton escreveu
mais tarde. “Lá estava ela, com o seu rosto sincero e sorriso genial, vestida de musselina cinza e
chapéu da mesma cor, atenuada por fitas de um azul pálido. A perfeição da elegância e da
sobriedade. Admirei-a completamente”.
Anthony nasceu em 15 de fevereiro de 1820, filha de Daniel Anthony, um quacre empreendedor do
ramo de fiação de algodão e abolicionista, da cidade de Adams, estado de Massachusetts. Seu
casamento com a batista Lucy Read escandalizou a comunidade quacre. Quando o seu negócio foi
destruído durante o Pânico de 1837, ele passou à prática da agricultura próximo a Rochester, e
Susan tornou-se professora. A fazenda era um centro local da atividade abolicionista e Frederick
Douglass era um dos muitos visitantes. Anthony era membro ativa das Filhas da Temperança e
deixou a organização em 1852 para ajudar na criação da Sociedade da Temperança de Nova York. A
temperança era uma questão importante na época, pois enfrentava-se um sério problema de
alcoolismo. Como o marido mantinha os bens da sua esposa em seu nome, não havia nada que ela
pudesse fazer se ele resolvesse esbanjar tudo o que possuíam. Desencorajar o consumo de bebidas
alcoólicas parecia ser uma boa maneira de ajudar as mulheres. Anthony era uma mulher solteira,
com disponibilidade de tempo para ajudar a organizar o movimento feminista.
Uma parceria então floresceu. Na sua mesa de jantar, Stanton desenvolveu estratégias e escreveu
discursos, e deu a Anthony conselhos sobre como melhorar o seu discurso e lidar com os
interrogatórios. “Susan apresentava um argumento factual sólido, fascinante e estimulante à
mente” , observou a biógrafa Rheta Childe Dorr. “Mas algumas vezes difícil de compreender para
aqueles que ouviam apenas com as suas emoções”. Anthony fez discursos escritos por Stanton,
reuniu assinaturas para petições, organizou reuniões e arrecadou dinheiro.
Stanton frequentemente fazia mais do que escrever discursos. Em fevereiro de 1854, ela dirigiu-se
ao Senado do estado de Nova York, declarando que o contrato matrimonial deveria ser tratado como
qualquer outro contrato, com privilégios e obrigações mútuos. Ela insistia que as mulheres
deveriam poder possuir propriedade, pois muitos maridos perdiam os bens das suas esposas e os
seus próprios. Convidada por William Lloyd Garrison, Stanton discursou em um encontro da
Sociedade Antiescravista Americana e também escreveu para o New York Tribune.
A Guerra Civil deixou o movimento feminista em crise. Stanton acolheu a perspectiva de pôr fim à
escravidão e admitiu deixar as questões feministas em segundo plano durante o período da guerra.
Mas após a guerra, muitos líderes abolicionistas passaram a temer que as protestos pelo sufrágio
feminino enfraquecessem os esforços de garantir os direitos fundamentais de antigos escravos. A
acadêmica Ellen Carol DuBois observou que: “O sufrágio negro ajudou a destruir quaisquer
dúvidas entre feministas de que o sufrágio era a chave também para a posição legal das mulheres”.
Quando Stanton e seu marido se separaram, ela se tornou mais ativa no movimento pelos direitos da
mulher. Foi eleita primeira vice-presidente da Associação Americana por Direitos Iguais. Stanton e
Anthony fizeram campanha para duas iniciativas a respeito de eleições no Kansas. Ela relembrou
que: “Discursamos em cabanas, depósitos, escolas inacabadas, hotéis, celeiros e ao ar livre. Stanton
passou a editar o jornal semanal Revolution, mas perdeu dinheiro e Anthony pagou a sua dívida.
Stantou também formou a Associação pelo Sufrágio Feminino da América.
Em maio de 1869, Stanton foi eleita presidente da Associação Nacional pelo Sufrágio Feminino,
que tratava de um vasto campo de assuntos relativos à mulher. Lucy Stone criou a rival Associação
Americana pelo Sufrágio Feminino, com o foco em mulheres que eram abolicionistas em primeiro
lugar, e feministas em segundo. Stone era uma respeitável habitante da Nova Inglaterra e via o oeste
do país como não civilizado. Stanton gostava de fazer campanha no oeste, onde muitos aceitavam
as mulheres como indivíduos.
Não demorou muito até que Stanton decidisse abandonar as batalhas de organizações para tornar-se
palestrante profissional. Por cerca de uma década durante os anos 1870, ela foi muito solicitada
como palestrante e celebridade. Começando todos os anos em janeiro, ela embarcava em um tour de
palestras que durava cinco meses. Ela passava os verões com seus filhos e, uma vez que as aulas
reiniciavam, partia para um circuito de palestras por mais três meses.
Em 5 de novembro de 1872, 16 mulheres de Rochester, incluindo Anthony, decidiram votar, sob o
risco serem multadas e passarem três meses na cadeia. Anthony persuadiu os funcionários a
inscreverem-na lendo a décima quarta (ratificada em 1868) e a décima quinta (1870) emendas da
Constituição americana que, supostamente, protegiam o direito ao voto. Os funcionários
subsequentemente decidiram que seu voto era ilegal e, em 18 de novembro, Anthony foi detida
quando estava em sua casa. Ela recusou-se a pagar a multa, mas o juiz decidiu fechar o caso sem
mandá-la para a prisão, evitando maiores controvérsias.
Com a falta de resultados da luta pelos direitos da mulher no tribunal, a Associação Americana pelo
Sufrágio Feminino focou-se nas legislaturas estaduais, e a Associação Nacional pelo Sufrágio
Feminino
lançou a campanha para uma emenda constitucional pelo sufrágio feminino. Em 1878, o senador da
Califórnia A.A. Sargent apresentou o seguinte: “O direito dos cidadãos dos Estados Unidos ao voto
não deve ser negado ou diminuído pelos Estados Unidos ou por qualquer outro estado por conta do
sexo”. Proposta repetidamente durante as quatro décadas seguintes, ela ficou mais tarde conhecida
como a emenda Anthony.
Inspirada por Lucretia Mott, que faleceu em novembro de 1880, Elizabeth Cady Stanton começou a
escrever a história do sufrágio feminino. Ela trabalhou juntamente com Anthony e Matilda Joslyn
Gage, colaboradora com Revolution, reunindo documentos. Stanton foi responsável por escrever a
maior parte; Anthony responsabilizou-se pela pesquisa e publicou o trabalho. Os três volumes,
publicados entre 1881 e 1886, foram oferecidos gratuitamente a bibliotecas, mas muitas delas,
incluindo a de Harvard, não quiseram aceitá-los.
Em 1890, os principais sufragistas decidiram acabar com a divisão no movimento, e a Associação
Nacional pelo Sufrágio Feminino uniu-se à Associação Americana pelo Sufrágio Feminino, ficando
conhecida a partir de então com Nacional-Americana. Stanton foi eleita a primeira presidente. Sua
aposentadoria, em 1892, marcou o fim de sua carreira como uma líder de organização.
Stanton elevou o padrão de autossuficiência em seu discurso de despedida, “A solidão do Eu”,
proferido na convenção de 1892. “Nada fortalece o julgamento e acelera a consciência como a
responsabilidade individual”, ela disse. “Nada acrescenta dignidade ao caráter como o
reconhecimento de soberania própria... um lugar alcançado por mérito pessoal, não uma realização
artificial, recebida por herança, família abastada e posição. Admitindo, então, que as
responsabilidades da vida recaem sobre homens e mulheres, que os seu destino é o mesmo, eles
necessitam da mesma preparação para a eternidade...cada alma deve depender inteiramente de si
mesma”. Ela proferiu esse discurso novamente diante do Comitê da Câmara no Judiciário e no
Comitê de Sufrágio Feminino do Senado. Cerca de dez mil cópias do discurso foram distribuídas.
Em razão do deu elevado peso e sua fragilidade, cada vez mais Stanton confinava-se na sua
cobertura de oito quartos que dividia com os filhos Margaret e Robert, em Nova York. Anthony,
porém, continuamente pedia-lhe que escrevesse discursos, cartas, resoluções e encômios. O
octogésimo aniversário de Stanton foi celebrado na Metropolitan Opera. Seu nome foi escrito com
flores de cravo em um banner, e ela sentou em uma cadeira rodeada de rosas. Ela encontrava-se
muito fraca para dar mais do que uma saudação “à grande ideia que represento – a emancipação da
mulher”.
Stanton dirigiu um comitê de sete acadêmicos que trabalharam em The Woman's Bible [A Bíblia da
mulher]. “No início do século XIX”, ela explicou, “quando as mulheres começaram a protestar
contra a sua degradação civil e política, recorria-se à bíblia como uma explicação. Quando
protestaram sua posição desigual na igreja, recorria-se à bíblia”. A em>Woman's Bible apareceu em
1895; ela foi reimpressa sete vezes em seis meses, e várias traduções foram feitas. Ela provocou
tanto ódio que a Nacional-Americana debateu uma proposta de censurar sua primeira presidente,
mas Anthony apresentou uma forte defesa.
Stanton produziu sua autobiografia, Eighty Years and More Oitenta anos e mais, para confirmar a
sua reputação de uma inteligente, amável e autossuficiente campeã dos direitos da mulher. É um
trabalho notável, embora alguns detalhes de sua vida estejam em discordância com relatos
anteriores. Como observou Ann D. Gordon, a autobiografia “nos mostra um indivíduo muito forte,
cujo senso de poder e liderança raramente vacila. Embora internamente a história lembre os leitores
várias vezes que a autora ainda não é livre e aguarda a sua igualdade, o livro evita sugerir que, na
sua falta de liberdade, as mulheres são vítimas... ele relata uma enorme mudança forjada pelas
mulheres”.
Enquanto isso, o movimento feminista havia estagnado. Wyoming, o primeiro território dos Estados
Unidos com sufrágio feminino, tornou-se o primeiro estado americano com sufrágio feminino em
28 de março de 1890, mas os únicos estados além deste a adotarem o sufrágio foram o Colorado
(1893), Idaho (1896) e Utah (1896). Nenhum estado do leste do país mostrou interesse. Desde 1893,
nem o Senado, nem a Câmara dos Deputados havia posto em prática a emenda de sufrágio proposta.
Em junho de 1902, Anthony fez uma visita a Stanton, que já se encontrava com a saúde debilitada.
Anthony abraçou-a e chorou: “Verei-a novamente?”. Stanton respondeu: “Sim, se não aqui, na outra
vida, se é que existe uma, e, se não houver, nunca saberemos”. Anthony escreveu a sua última e
mais pungente carta a Stanton, relembrando que “Na velhice e em todo tempo tenho te seguido de
perto. Nos conhecemos há 51 anos e estivemos ocupadas durante cada um deles, despertando o
mundo para que reconhecesse os direitos da mulher... Quando iniciamos esta luta, otimistas com a
esperança e vivacidade da juventude, nem sonhávamos que meio século depois seríamos obrigadas
a deixar o final da batalha nas mãos de outra geração de mulheres. Mas nossos corações estão
cheios de alegria de saber que elas entram nesta missão equipadas com educação superior,
experiência profissional, com o direito pleno de falarem em público – direitos que não possuíamos
cinquenta anos atrás. Existe ainda praticamente um ponto a ser alcançado – o sufrágio. Estas fortes,
corajosas e capazes jovens tomarão os nossos lugares e completarão nosso trabalho. Há um exército
delas. O velho preconceito foi tão atenuado, a opinião pública tão liberalizada, e as mulheres
demonstraram com tanta habilidade sua capacidade que não há sombra de dúvida de que elas
alcançarão a vitória para a nossa causa”.
Elizabeth Cady Stanton faleceu em 26 de outubro de 1902, aos 86 anos de idade, diante de todos os
seus seis filhos ainda vivos. Foi realizada uma cerimônia fúnebre privada no seu apartamento em
Nova York. A mesa onde ela escreveu a Declaration of Rights and Sentiments de Seneca Falls
estava próxima ao seu caixão, exibindo algumas cópias de The History of Woman Sufragge. Phebe
Hanaford, que havia contribuído com The Woman's Bible, conduziu a cerimônia no Cemitério
Woodland.
Anthony viveu por mais três anos. Em janeiro de 1906, ela foi acometida por uma gripe, que
transformou-se em pneumonia. Anna H. Shaw, presidente da Nacional-Americana, fez companhia a
ela e relembrou que: “Na última tarde de sua vida, depois de permanecer calada por horas, ela
repentinamente começou a nomear todas as mulheres com quem já havia trabalhado, como se fosse
uma última chamada”. Anthony faleceu na sua casa em Rochester, na Rua Madison, número 17,
numa terça-feira, 13 de março de 1906, aos 86 anos. Ela usava um broche de uma bandeira dos
Estados Unidos com quatro estrelas de diamante, as únicas quatro estrelas, representando os estados
onde havia sufrágio feminino. Cerca de dez mil pessoas prestaram homenagem na Igreja
Presbiteriana Central de Rochester. Ela deixou todos os seus bens para a Nacional-Americana.
O movimento feminista readquiriu forças em 1910, quando sufragistas reuniram 404 mil assinaturas
para suas petições, e o estado de Washington legalizou o sufrágio feminino. No ano seguinte, o
estado da Califórnia garantiu o sufrágio às mulheres. A Câmara dos Deputados apoiou a emenda do
sufrágio em 10 de janeiro de 1918 e, em 4 de junho de 1919, o Senado aprovou-a. Em 26 de agosto
de 1920, o Tennessee tornou-se o trigésimo sexto estado a ratifica-lá; a emenda do sufrágio tornou-
se a décima nona emenda, e 26 milhões de mulheres passaram a ter o direito ao voto. O Supremo
Tribunal apoiou a décima nona emenda em fevereiro de 1922.
Fora uma jornada surpreendente. Em 52 anos, relembrou Chapman Catt, sufragistas conduziram
“56 campanhas de referendos a eleitores do sexo masculino; 480 campanhas para a criação de
emendas de sufrágio, 47 campanhas para fazer com que assembleias constitucionais estaduais
inserissem o sufrágio feminino em suas constituições; 277 campanhas para fazer com que
convenções estaduais de partidos incluíssem o sufrágio feminino em suas plataformas; 30
campanhas para que convenções presidenciais de partidos adotassem o sufrágio feminino em suas
plataformas de partido, e 19 campanhas com 19 Congressos sucessivos”.
Anthony era considerada a grande heroína do sufrágio feminino e surgiram várias biografias. A
Casa da Moeda americana prestou tributo a Anthony quando lançou uma nova moeda de um dólar
em 1979. Desde então, historiadores têm reconsiderado a vida de Stanton. A editora Little Brown
publicou Elizabeth Cady Stanton: A Radical for Woman's Rights [Elizabeth Cady Stanton: uma
radical pelos direitos femininos], de Lois Banner (1980). A Oxford University Press publicou o
livro In Her Own Right: The Life of Elizabeth Cady Stanton [Direito seu: A vida de Elizabeth Cady
Stanton], de Elizabeth Griffith, em 1984. Ellen Carol DuBois enfatizou a grande parceria em The
Elizabeth Cady Stanton – Susan B. Anthony Reader A antologia Elizabeth Cady Stanton – Susan B.
Anthony. Na Universidade de Rutgers, acadêmicos iniciaram a busca por materiais a respeito de
Stanton e Anthony em arquivos, jornais e coleções pessoais. “Documentos foram encontrados e
copiados em 2 mil bibliotecas e arquivos nos Estados Unidos, Canadá, Nova Zelândia, Inglaterra,
Países Baixos, França e Alemanha e em aproximadamente setecentos jornais e periódicos
diferentes”, relatou Ann D. Gorndon. O primeiro volume surgiu em 1997.
Elizabeth Cady Stanton estava certa em permanecer focada na questão principal, liberdade humana,
e não apenas no voto. Ela demonstrou visão audaz ao insistir que os princípios de direitos naturais,
expressos na Declaração da Independência, são a chave para libertar pessoas em todos os lugares.
Ela compreendeu a vitalidade da propriedade sobre si, da propriedade privada, da liberdade de
contrato e da liberdade de movimento. Ela deu seu coração e alma aos direitos da mulher. Ninguém
teve uma caneta mais eloquente. Ela foi uma grande campeã.

Algernon Sidney
Uma das mais importantes limitações ao poder do governo tem sido o princípio da soberania
popular: o povo deve ser capaz de escolher seus próprios governantes e descartá-los quando se
tornarem patifes.
O influente agitador e pensador inglês Algernon Sidney defendeu a volta da soberania popular
quando os reis estavam dominando a Terra. Durante anos, ele fez oposição ao rei inglês, Charles II,
pelo que ele foi caçado por assassinos. Ele se pronunciou contra a escravidão no Oeste Britânico.
Houve dois atentados contra sua vida, e ele sofreu a maior das tragédias: decapitação. Ele se tornou
o mais famoso mártir pela liberdade da Inglaterra.
Sua maior obra, Discourses Concerning Government [Discursos sobre o governo], foi lançada em
1968, quinze anos depois de sua execução, e isso contribuiu muito para desenvolver o caso pela
liberdade que serviu para inspirar os americanos e varrer o mundo. Por exemplo, ele escreveu: “a
nenhum homem deve ser confiado um poder absoluto (...) em todas as controvérsias relativas ao
poder dos magistrados, nós devemos nos preocupar com que caminho conduz ao seu lucro ou
glória, mas o que é bom para o povo (...) o direito dos magistrados se faz essencialmente depender
do consentimento daquele que governa. (...) Não é lei, portanto, aquilo que não foi tornado lei pelo
consentimento público. (...) As Liberdades das Nações são provenientes de Deus e da Natureza, não
dos reis (...) [seres humanos] têm pela lei da natureza o direito às suas liberdades, terras, bens...”
Sidney foi reverenciado por todos que estimavam a liberdade. Ele conheceu o filósofo inglês dos
direitos naturais John Locke, e trabalhou com Quaker William Penn para trazer idéias libertárias
para dentro do Parlamento. Thomas Jefferson considerava Sidney um dos mais importantes
pensadores da liberdade, e chamou seu Discurses de “um rico tesouro dos princípios republicanos
(...) provavelmente o melhor livro elementar dos princípios do governo, fundado no direito natural,
ojá publicado em qualquer idioma”. John Adams, John Dickinson, Benjamin Franklin, James Otis, e
outros escritores americanos da era revolucionária, aclamaram Sidney.
O historiador Thomas G. West chamou Sidney de “precoce, enérgico e honorável”. Ele era alto e
magro, e em sua juventude tinha cabelos ruivos. Um retrato seu foi pintado quando aos quarenta
anos estava exilado, e, como notou o historiador John Carswell, "mostra-o usando a couraça de um
soldado e um líder, e poderia ser impresso e circulado para efeitos de propaganda: a imagem de um
líder na causa pela restauração da república inglesa”. Lá pelos seus cinquenta anos de idade, Sidney
estava na França, e Carswell o descreveu como “aposentado, agora grisalho, ele está ativo como
nunca, penetrante, escrevendo e lendo. Nos volumes de correspondência de sua vida, com sua
ladainhas e reclamações sobre as circunstancias e outras pessoas, dificilmente se encontra uma
sílaba sobre não sentir-se bem”.
Ele foi um tipo inesquecível. “Existe o solitário Sidney que passa a maior parte do seu tempo
sozinho e exilado”, explicou o historiador Jonathan Scott. “Existe o Sidney caseiro, familiar, que
nunca constituiu uma família própria para suplantar aquela sob cuja perturbada sombra ele
permaneceu. Existe o Sidney ‘aposentado’, em Augsburg, Nerac e Roma. Existe o Sidney
pesquisador, e, não muito atrás dele, o homem de ação (...) [buscando] ‘aquela liberdade na qual
Deus nos criou’.”
Algernon Sidney nasceu em torno de 15 de janeiro de 1623. O dia exato não é sabido, mas naquela
data uma parteira foi paga para atender sua mãe, Dorothy, Lady Lislie, que descendia da poderosa
família Percy. O pai de Algernon foi Robert Lisle, herdeiro do condado de Leicester e de 4,000
acres da mansão Penshurst em Kent, onde Algernon nasceu. Ele foi o quarto filho sobrevivente, e o
segundo filho homem.
Seu pai o matriculou na republica de Gray, quando ele tinha dez anos. Ele pareceu ter absorvido a
visão filosófica de seu pai, declaradamente acreditando que a Law of War and Peace [Lei da guerra
e paz] de Grotius era a mais importante obra da filosofia política.
Sidney participou da rebelião contra o rei Charles I, que havia governado arbitrariamente, sem um
parlamento, desde 1629 até a falta de dinheiro pressioná-lo a chamá-lo de volta em 1640. Seis anos
mais tarde. Sidney foi eleito para o que ficou conhecido como o Longo Parlamento. Ele foi
nomeado comissário para o julgamento do rei e chamou a execução de 1649 de “a mais equânime e
corajosa ação que jamais fora feita na Inglaterra ou em qualquer outro lugar.
Em 20 de abril de 1653, Oliver Cromwell fechou o Parlamento e iniciou sua ditadura militar,
conhecida como o Protetorado. Sidney foi para The Hague, onde parece ter servido como um agente
para o constitucionalismo inglês em oposição a Cromwell.
Richard Cromwell assumiu o poder em seguida à morte de seu pai, em 3 setembro de 1658, e
Sidney foi, de certo modo, apontado embaixador da Dinamarca e da Suécia. Os dois países haviam
lutado entre si por uma década, e outra guerra assomava. Sidney ajudou a negociar a determinação
da paz, assinada em 27 de maio de 1660, que havia durado mais de trezentos anos. Isso assegurou o
acesso internacional ao Báltico.
Depois de Richard Cromwell ter sido derrubado pelo exército em abril de 1659, o Parlamento
convidou o filho de Charles I para tornar-se Rei Charles II. Ele ordenou o enforcamento daqueles
que haviam desempenhado papeis fundamentais na execução de seu pai, e Sidney achou prudente ir
para o estrangeiro. O historiador Trevelyan escreveu, “a forca e o matadouro foram construídos em
Charing Cross, à vista do lugar em frente a Whitehall onde o cadafalso tinha sido montado para
Charles; como o carrasco cortou os assassinos do rei em pedaços, suas cabeças e seus corações
foram mostrados, com odor fétido, para o povo, cujos gritos mostravam que naquela o ocasião eles
não sentiram nenhuma piedade ou respeito. Hugh Peters dificilmente teria força para enfrentar uma
cena tão terrível, e entrou cambaleando para o andaime. Mas Cook, o advogado, Harrison e outros
soldados e políticos provaram ser dignos daquela causa e daquele momento. E ninguém morreu
melhor que o Sr. Harry Vane (1662), proclamando os princípios da liberdade até o fim”.
Sidney ficou na Europa, tentando escapar os matadores que Charles II despachara para raptar ou
matar seus inimigos políticos. Ele visitou a Universidade de Copenhagen e assinou o livro de
convidados com estas palavras explosivas: “Manus haec inimica tyrannis, Ense petit placidam sub
liberate quietem” ("Esta mão, inimiga dos tiranos, Pela palavra procura calma e tranquilidade com
liberdade”). Os amigos de Sidney ficaram tão chocados que eles se ofereceram para remover a
página, mas ele insistiu em mantê-la. Suas palavras causaram sensação na Europa e Inglaterra. Seu
pai escreveu a ele, “Nenhum homem irá abrir a boca por você”.
Pouco é sabido de sua vida clandestina, inclusive sobre os fundos que possibilitavam a ele viver e
viajar sem meios visíveis de suporte. Indubitavelmente estes estavam na Inglaterra. “A natureza das
evidências sobre ele muda”, notou o biógrafo Carswell, “e nós não podemos mais procurar pelas
cartas. Apesar de ele provavelmente ter escrito muitas, seus destinatários prudentemente não as
guardavam, e somente cinco sobreviventes podem, com certeza, ser atribuídas aos quatorze anos
seguintes. Notícias dele podem ser encontradas em relatórios de inteligência, comunicações oficiais,
memórias diplomáticas, de autoria daqueles interessados em acompanhá-lo."
Sidney foi em direção ao sul, parando em Hamburg, Frankfurt, Ausburg, e Veneza, e viveu em
Roma até ela se ficar cheia de espiões e matadores. Ele dirigiu-se a Berna, Suíça, onde muitos
ingleses exilados haviam encontrado santuário, mas nem Berna era mais segura; um dos exilados,
John Lisle, foi assassinado indo para a igreja. Sidney partiu para Ausburg, e então Bruxelas.
Aparentemente, enquanto Sidney estava na Holanda, três exilados foram presos, levados para a
Inglaterra e executados.
Entre os mais firmes apoios holandeses estava o comerciante quacre Benjamin Furley, que assistiu
William Penn em sua luta pela tolerância religiosa e ofereceu alojamento a John Lock quando ele se
tornou um exilado na Holanda. Furley evidentemente ajudou a juntar dinheiro para Sidney, e copiou
os manuscritos de Sidney, guardando-os a salvo. Furley, de acordo com o biógrafo John Carswell,
era um homem gorducho, bastante desajeitado, com um rosto redondo e feio, mas muito inteligente
sob sua vasta cabeleira escura (...) genuinamente agradável e bondoso, com talento para fazer
amigos. (...) Por muitos anos ele emprestou-lhes dinheiro, ofereceu-lhes abrigo, tratou de seus
negócios, e com seus contatos internacionais, atuou como seu banqueiro. Ele foi o depositário de
seus segredos, seu confiável conselheiro, um sólido recurso em seu instável e incerto mundo”.
Até aquele momento, o principal manuscrito de Sidney, Court Maxims [Máximas da corte], atacava
Charles II e encorajava os holandeses a apoiar a luta republicana contra ele. Cout Maxims consiste
em quinze diálogos entre o republicano Euonomius e o cortesão real Philalethes, que discute
máximas do absolutismo político, tais como “a monarquia é a melhor forma de governo” e “a
monarquia deve ser absoluta e hereditária”. Sidney (Euonomius) ratifica a doutrina da “lei superior”
que havia sido defendida por Cícero, e insiste que, se os governantes subvertem os interesses do
povo, "não devem mais ser encarados como padres ou pastores, que são títulos de amor e doçura,
mas são ladrões, lobos, tirânicos, os piores inimigos". Ele continua: “A essência da lei consiste
somente na sua justiça: se ela não for justa, não é lei (...). A lei que deve estar para nossa defesa é
uma armadilha... qualquer lei que seja tornada prejudicial a nossa sociedade, pervertendo a justiça,
destroi o fim para o qual deve ser estabelecida, e está, portanto, no mais alto grau de injustiça e
totalmente inválida...Os mais importantes interesses temporais de todos os homens honestos são:
preservar a vida, a liberdade e a propriedade.
Em 1677 Charles II, sentindo mais confiança sobre seu poder, emitiu um passe que permitiu a
Sidney retornar, supostamente para visitar seu frágil irmão, agora com mais de oitenta anos de
idade. Mas sua família estava atolada de problemas financeiros, e ele foi imediatamente preso por
dívida. De alguma forma Sidney emergiu como uma das principais figuras entre os dissidentes
ingleses. Numa oferta de influenciar a política britânica a seu favor, o astuto Louis XVI canalizou
subsídios para dissidentes, incluindo Sidney, e proveu um grande subsídio para Charles II. Louis
vazou notícias sobre os subsídios para Charles II, e isso desencadeou revolta contra ele. Mais tarde,
quando saíram as notícias sobre o dinheiro francês que Sidney havia recebido, o povo voltou-se
contra ele também.
Charles II reivindicou mais e mais poder, provocando debate sobre as questões mais fundamentais
de governo. O advogado Robert Filmer publicou Patriarca: A defesa do poder natural dos reis contra
o poder artificial do povo, que ele havia escrito quarenta e dois anos antes, quando Charles I estava
perdendo o controle sobre o trono. Filmer negou que os seres humanos tenham direitos naturais e
insistiu que mesmo um mau governante deve ser obedecido, por ser, na prática, um chefe de
família. A doutrina do absolutismo político parecia estar ganhando apoio, e se tornou crença
universal que não se podia fazer oposição a um monarca com segurança.
Algumas das maiores mentes da época começaram a refutar Filmer. John Locke, secretário e
conselheiro médico do radical Anthony Ashley Cooper, o conde de Shaftesbury, começou a
defender os direitos naturais em dois tratados; sendo um homem cauteloso, ele os manteve fora de
circulação até 1689, depois de os Stuarts terem sido derrubados — e ainda assim os livros foram
publicados anonimamente. James Tyrrel, assistente e amigo de longa data de Locke, foi mais
ousado: ele escreveu Patriarcha non Monarchia, publicado em 1681.
Sidney, também, trabalhou em uma enorme refutação, ponto a ponto, de Filmer. Ele talvez tivesse
visto os manuscritos de Filmer anos antes, quando os dois homens foram vizinhos. Seja como for,
Sidney refinou seu pensamento, e juntou mais material para um ataque intelectual à monarquia.
"Ele escrevia rapidamente e em uma paixão de autoexpressão, quase sem parar para checar ou
aprimorar”, notou o biógrafo Carswell. O trabalho mostrava a vasta cultura de Sidney. Ele serviu-se
extensivamente da história da Inglaterra e da Europa, antiga Grécia, Roma e sobre o Velho
Testamento. Mas nunca terminou, e o manuscrito original está perdido. Felizmente uma cópia foi
localizada e o trabalho apareceu impresso quinze anos após a morte de Sidney. O livro foi chamado
Discourses Concerning Government.
Sidney escreveu: “Toda a trama da tirania será enfraquecida se provarmos que as nações têm o
direito de fazer suas próprias leis, constituir seus próprios magistrados; e que as que são assim
constituídas devem conta de suas ações para todos por quem e para quem foram nomeados.” Sidney
advertiu: “Todos os governos são sujeitos a corrupção e decadência (...). O poder absoluto ao qual
[Filmer] exaltaria o chefe magistrado seria oneroso e desesperadamente perigoso se ele o tivesse.”
Reis, ele continuou, devem estar “sob a lei, e a lei não deve estar abaixo deles. Suas cartas ou
comandos não devem ser considerados: na administração da justiça, a questão não é o que os
agrada, mas o que a lei declara ser correto, que deve se concretizar, esteja o rei ocupado ou em
lazer, queira ele ou não (...). Os reis não sendo os pais de seu povo, nem superiores a todos os outros
em virtude, não podem ter nenhum outro poder a não ser o que a Lei lhes confere, nenhum outro
título para privilégios de Ungidos do Senhor (...). Nada pode ser mais absurdo que dizer que um
homem tem um poder absoluto acima da lei para governar de acordo com o que quiser, pelo bem do
povo, e pela preservação de sua liberdade: pois nenhuma liberdade pode subsistir onde existe esse
tipo de poder.” Sidney acrescentou: “O Poder Legislativo (...) não [deve] ser confiado às mãos de
ninguém que não queira obedecer as Leis que fez."
Sidney ratificou o direito natural das pessoas de se rebelarem contra governantes injustos: "Todo
homem tem direito de resistir de alguma forma àquilo que se faz injustamente contra ele (...). Povo
algum pode ser obrigado a sofrer de seu Rei o que este não tem direito de fazer (...). Ordens injustas
não devem ser obedecidas; e nenhum homem é obrigado a sofrer por não obedecer aquilo que vai
contra a Lei (...). Seria loucura pensar que qualquer nação pode ser obrigada a aguentar o que quer
que seus magistrados achem apropriado fazer contra ela."
Sydney se juntou à oposição clandestina a Charles II e seu herdeiro católico, James, duque de York.
Ele esteve envolvido com a Conspiração da Rye House, de assassinar tanto Charles II quanto o
duque de York quando atravessavam a Rye House, em Herfordshire, entre Newmarket e Londres.
Mas alguém vazou detalhes da conspiração. O conde de Shaftesbury, que a concebera, fugiu para a
Holanda, e logo foi seguido por John Locke. Em 26 de junho de 1683, Sidney foi preso enquanto
almoçava em sua casa, em Londres. Seus papeis pessoais foram confiscados e ele foi acusado de
traição. Esse foi o primeiro grande caso do juiz George Jeffreys, e ele esperava que fosse seu
passaporte para o topo. A acusação usou como prova os “papeis do coronel Sidney” e o manuscrito
dos Discourses, que tinha sido encontrado em sua casa. Jeffreys condenou a obra por “fixar o poder
no povo”. Sidney foi considerado culpado e sentenciado à morte.
Em um breve fragmento final, Apology in the Day of His Death [Apologia no dia de sua morte],
Sidney escreveu: “Eu me esforcei, desde minha juventude, na defesa dos direitos comuns da
humanidade, as leis desta terra e a verdadeira religião protestante contra os princípios corruptos, o
poder arbitrário e o papado; e eu, agora, entrego prontamente minha vida pelo mesmo”. Sua
execução foi marcada para o dia 7 de dezembro de 1683. “Quando ele veio para o cadafalso”,
lembrou uma testemunha, “ao invés de um discurso, ele disse apenas que ele estava em paz com
Deus, que ele não viera até lá para falar, mas para morrer; colocou um papel na mão do xerife e um
outro na mão de um amigo, fez uma oração curta como graças, deitou seu pescoço e pediu que o
carrasco fizesse seu serviço." Sidney tinha 61 anos. Ele foi enterrado em Penshurst.
Charles II morreu, e seu irmão católico foi coroado James II. O povo se rebelou contra ele em 1688
e o príncipe protestante de Orange se tornou o Rei William III. Sidney logo foi aclamado como
mártir da liberdade. Discourses foi inicialmente publicado em 1698, e pelo menos oito edições
foram feitas durante o século XVIII.
A reputação de Sidney declinou na Inglaterra, contudo, quando emergiram detalhes sobre ele ter
recebido dinheiro francês. Os ingleses em geral passaram a querer ainda menos com Sidney após
ele ser abraçado pelos rebeldes americanos, mas ele foi defendido por Charles James Fox, o grande
orador que se opunha às políticas do Rei George III. Houve duas traduções alemãs de Discourses e
duas traduções francesas. Na França, entre os maiores fãs de Sidney estavam os filósofos políticos
Montesquieu e Condorcet.
Sidney era especialmente admirado nos Estados Unidos. Alan Craig Houston, historiador, observou,
“Aos colonos, o fato mais importante sobre a vida de Sidney era a forma como se deu sua morte.
Pela sua generosa devoção à liberdade, Sidney estabeleceu um padrão contra o qual os homens
repetidamente se comparavam; pelo seu martírio, ele claramente demonstrou os males de um poder
sem restrições. Os colonos americanos também leram os Discourses Concerning Governmentcom
cuidado e precisão. Eles citaram Sidney em uma vasta gama de questões, desde a corrupção dos
homens até o estado de direito, e desde a natureza representativa do governo até o direito de
revolução.” “O martírio de Sidney”, continuou, “foi a prova mais poderosa já dada para verificar a
verdade de seus escritos. Conforme estes professavam, ele demonstrou claramente as consequências
de se permitir que um homem goze de um poder arbitrário e ilimitado. Não tivesse Sidney sido um
mártir, é improvável que Discourses fosse lido tão amplamente nos Estados Unidos do século
XVIII; não tivesse ele escrito a obra, por outro lado, é improvável que sua morte tivesse recebido
tanta atenção.”
Referindo-se aos escritores americanos da era revolucionária, Bernard Bailyn, historiador, observou
que “acima de tudo, eles [os colonos americanos] se referiram às doutrinas de Algernon Sidney”.
Em 1775, o lema de Massachussetts vinha das palavras de Sidney no livro de visitas de Copenhagen
(“Esta mão, inimiga dos tiranos, pela palavra busca uma calma tranquilidade com a liberdade”).
Após a Revolução, os americanos pensaram que eles não precisavam mais tanto dos ensinamentos
de Sidney, mas houve uma renovação durante o movimento pela abolição da escravidão. William
Lloyd Garrison disse que Sidney era “o pai do abolicionismo moderno” e “um intransigente inimigo
da escravidão”. Garrison louvou Discourses como “um inesgotável tesouro de pensamentos livres”.
Wendell Phillips, o grande orador antiescravidão, considerou Discourses um “livro imortal”.
Quando o senador William H. Seward combateu o Acordo de 1850, que, entre outras coisas, tornava
mais fácil a captura dos escravos fugitivos, ele lembrou as palavras de Sidney: “A liberdade de um
homem não pode ser limitada ou diminuída por um ou mais homens, e ninguém pode ceder o direito
dos outros”. Em 1866, Charles Sumner, um senador republicano radical, citou Sidney e Locke
quando fez um discurso afirmando os direitos políticos dos escravos libertos.
Não obstante, conforme Thomas G. West, historiador, relatou, “Sidney saiu de moda durante o
século XIX. Os instruídos começaram a dar mais atenção a estadistas como Cromwell e Napoleão,
que apreciavam o exercício do livre poder para grandes projetos à serviço da humanidade”.
Ainda outro renascimento de Sidney vem se agitando. Em 1988, Jonathan Scott produziu a primeira
nova biografia em um século, Algernon Sidney and the English Republic, 1623-1677, [Algernon
Sidney e a república inglesa, 1623-2677], seguida por Algernon Sidney and Restoration Crisis,
1677-1683 (1991), [Algernon Sidney e a crise da restauração, 1677-1683]. John Carswell escreveu
The Porcupine: The Life of Algernon Sidney (1989) [O porco-espinho: a vida de Algernon Sidney].
Em 1990, o Liberty Fund apresentou a primeira nova edição em 185 anos do livro Discourses, de
Sidney. Então, a Princeton University Press publicou o livro Algernon Sidney and the Republican
Heritage in England and America [Algernon Sidney e a herança republicana na Inglaterra e nos
Estados Unidos], de Alan Craig Houston. Em 1996, a Cambridge University Press lançou o inédito
Court Maxims, cujo manuscrito perdido apareceu no Castelo de Warwick, nos anos 1970. Sidney
realmente morreu para deixar sua ideias ousadas viverem.

Louis L'Amour
Há muito tempo, o romance de faroeste tem sido a mais popular expressão do individualismo
americano. Em sua forma clássica, ele é um conto moral com um embate dramático entre o bem e
o mal. Embora o herói não seja sempre um cowboy, é um indivíduo que ascendeu pelo próprio
trabalho, superou obstáculos e lutou pelo que era certo.
Ninguém domina o faroeste como Louis L’Amour. Já foram vendidas mais de 260 milhões de
cópias de seus 105 livros, mais do que qualquer outro mestre do gênero. Seus trabalhos foram
traduzidos para o chinês, dinamarquês, holandês, finlandês, francês, alemão, grego, italiano,
japonês, polonês, português, servo-croata, espanhol e sueco. Mais de trinta de suas histórias e livros
foram transformados em filmes.
O espírito do individualismo se mostra através do trabalho de L’Amour em falas como estas: “Eu
não encontrara nenhuma sorte ou oportunidade, exceto as que criei.” (A Terra de Sackett); “Um
nome é apenas aquilo que a pessoa faz dele.” (Lonely on the Mountain [Sozinho na montanha]), “
Um homem que viaja sozinho deve tomar conta de si mesmo.” (A vingança de um bravo), “Creio
que a medida de um homem é a sua disposição a aceitar responsabilidade... Nós, nos Estados
Unidos, costumamos acreditar que basta aprovar uma lei e tudo será mudado.” (Bendigo Shafter),
“Você é o seu melhor professor... Quando se perde a liberdade, o caminho de volta é sempre longo.”
(Um tambor nas trevas).
L’Amour retratou o individualismo como uma influência civilizadora: “A falta de lei nas
comunidades do faroeste foi muito superestimada devido aos seus aspectos dramáticos.” As
histórias de foras-da-lei e vilões são emocionantes, e os próprios homens do faroeste ainda adoram
contá-las. Entretanto, a maioria das escolas e igrejas do Oeste surgiu com os primeiros colonos (...).
Os pistoleiros e jogadores profissionais estavam do lado errado das trilhas, a maioria deles fora do
caminho habitual da população."
L’Amour não conseguiu seu impressionante histórico por ser o mais produtivo escritor do ocidente;
Frederic Faust, quem escreveu romances de faroeste sob o pseudônimo Max Brand, detém o
recorde, com mais de três centenas de títulos, aproximadamente o triplo dos títulos de L’Amour.
Nem ele se tornou o mais vendido com seu brilhante trabalho. Irwyn Applebaum, que editou os
livros de L’Amour durante anos, comentou: “Você pode encontrar escritores que produzam um livro
melhor em termos de pureza e qualidade literária, mas eu acho que nunca encontrará um melhor
contador de histórias”.
Ele criou personagens memoráveis enredados em conflitos dramáticos, começando a ação logo na
primeira linha da primeira página. Ele se tornou famoso pela sua pesquisa, que lhe possibilitou
produzir uma narrativa vívida. Captava detalhes cruciais da leitura de diários, cartas e jornais.
Estudou sobre armas e índios; e se dedicou a conhecer o local onde os eventos se passaram. A
maioria dos seus livros foi criada no Oeste americano, durante os anos 1860, 1870 e 1880.
Robert Weinberg, autor de The Louis L’Amour Companion A antologia de Louis L'Amour, refletiu:
“Nos livros de L’Amour, eu encontrei uma característica mítica que pareceu definir o Velho Oeste.
Mais proeminente em Flint, minha escolha pelo melhor romance de L’Amour aparece a por todas as
sua histórias, elevando muitas delas (inclusive a maior parte dos romances de Sackett, Bendigo
Shafter, e The Lonesome Gods [Os deuses solitários]), fora da esfera do gênero da ficção”.
Tendo deixado a escola devido a necessidade de ganhar dinheiro, L’Amour se encarregou de sua
educação e foi um devorador de livros durante toda a sua vida. Obviamente, existem vantagens para
a leitura programada que não podem ser garantidas de nenhuma outra forma” recordou o ex-
bibliotecário do Congresso, Daniel J. Boorstin. “Louis, pela força das circunstâncias e movido por
uma paixão por livros, procurou e encontrou outras vantagens. Ele alegrou-se e foi mexido pelas
incontáveis justaposições não programadas — o destino dos incas e do Império Romano, os sonetos
de Shakespeare, os contos de Jack London e os diálogos de Platão. Ele poderia citar Robert W.
Service e Willian Butler Yeats, Rudyard Kipling e Percy Bysshe Shelley e, ainda, Oscar Wilde, de
uma só vez.
Depois de uma juventude vagando ao redor do mundo, L’Amour se ajustou a uma carga horária de
trabalho altamente disciplinada, a qual ele manteve durante suas últimas quatro décadas: iniciando
em torno das 5:30 A.M. e escrevendo durante seis horas em sua máquina de escrever (mais tarde,
duas máquinas de escrever elétricas). Então, ele ia praticar exercícios, almoçava e retomava seu
trabalho. “Eu trabalho o tempo todo”, ele contou ao entrevistador Harold Keith. “Eu amo essa rotina
e não posso ficar afastado dela. Eu sou um homem intoxicado de meu país e seu povo. Mesmo que
eu tivesse mil anos, eu não conseguiria contar todas as histórias, nem transformar em palavras
metade do que eu sinto”.
Impulsionado pelo seu sucesso, L’Amour mudou-se para uma casa suntuosa em Los Angeles, onde
sua viúva vive até hoje. A casa, de acordo com o biógrafo Robert L. Galé, é uma hacienda
incoerente no estilo espanhol, localizada em um quarteirão próximo à Sunset Boulevard, e cheia de
pátios sombreados e jardins coloridos, uma piscina coberta, uma enorme sala de estar com lareira,
um grande corredor, e uma ala de estudos. Essa área inclui uma oficina com um pé direito alto,
iluminada por uma janela tipo roseta. Os interiores são decorados com tapetes indianos, pinturas e
bonecas, longos chifres, pinturas originais, primeiramente usadas como capa para muitos best-
sellers de L’Amour, um retrato do autor, prateleiras articuladas para milhares de livros e, ainda, um
ginásio adjacente.”
Beau L’Amour relatou que “A sala onde papai trabalhava media aproximadamente 7,5m por 4,5m, e
suas paredes de 3,6 metros são forradas de caixas para livros, dotadas de enormes dobradiças que se
dobravam para fora, revelando ainda mais livros. Sua escrivaninha — uma mesa em madeira
talhada à mão, tão grande quanto uma cama de casal — uma mesa de centro, a soleira da lareira, e a
maior parte do chão eram cobertos de pilhas, precariamente equilibradas, de jornais, revistas (Papai
assinava mais de vinte), livros de referência e artefatos . . . . Era uma magnífica bagunça.”
L’Amour era um homem de aparência impressionante, 1,83m de altura. "Ainda com uma beleza
rude aos 70 anos” notou um repórter para Smithsonian, “costas largas, com sobrancelhas castanhas
que têm seu cume em setas marrom acinzentadas. Ele vestia camisas, gravatas e botas de cowboy
no estilo Velho Oeste, e falava em uma voz comedida e confiante de barítono. Seus modos eram
sóbrios, contidos, e genuinamente modestos”.
Louis Dearborn LaMoore nasceu em Jaamestown, Dakota do Norte, em 22 de março de 1908. Ele
foi o caçula dos seis filhos de Emily Dearborn. Seu pai, Louis Charles LaMoore, era veterinário,
chefe de polícia e professor de escola dominical.
O jovem Louis frequentou a escola por seis anos, mas foi ficando cada vez mais inquieto. Ele
deixou a escola aos seus quinze anos e embarcou em incríveis aventuras. Ele trabalhou como
cuidador de elefantes em um circo que visitou o Arizona e o Texas. Ele foi um peão no oeste do
Texas. Por precisar de dinheiro, ele executou os mais fedorentos ofícios: Por três dólares ao dia,
trabalhava retirando a pele de novecentos gados mortos, salvando o couro. Trabalhou, parte do
tempo, limpando corpos de pessoas mortas em conflitos. Ele cortava feno, armazenava-o, e colhia
frutas no Novo México. Ele foi, também, lenhador em Oregon. Ele movimentava carrinhos de
minério em uma mina de Nevada. Ele foi um boxeador profissional. Ele pulava por vagões de trens,
como um mendigo à procura de trabalho. Ele tornou-se um marinheiro a bordo de navios cargueiros
com destino ao Extremo Oriente e lutou com piratas na Indonésia. As escalas em portos incluíam
Singapura, Bornéu, Java, Yokohama, Kobe, e Nagasaki. Ele descreveu suas experiências vivendo
entre bandidos no oeste da china e do Tibete. Ele testemunhou a decapitação de criminosos
chineses. “Em suma”, relatou o jornalista Harold R. Hinds, Jr., “ele era pau para toda obra, e um
homem auto suficiente, que poderia sobreviver em qualquer raia.”
L’Amour refletiu, “Frequentemente, as pessoas que ouvem sobre minha carreira e, os muitos bicos
nos quais eu trabalhei, acreditam que eu fiz isso para depois escrever as experiências. Isso é
besteira. Eu trabalhei nesses vários tipos de atividade porque conseguir um emprego era muito
difícil, e eu pegava o que estava disponível no momento. Durante os anos da Depressão, e pouco
antes dela, empregos eram escassos, e era preciso se agitar para se manter trabalhando. Um
emprego podia durar uma hora ou duas, ou talvez vários dias, e frequentemente, passavam-se
semanas sem trabalho algum."
Aonde L’Amour ia, de lá ele trazia livros e lia os livros que ele encontrava, especialmente aqueles
dos grandes contadores de história, tais como Honoré de Balzac, Charles Dickens, Feodor
Dostoevsky, Alexandre Dumas, Zane Grey, O. Henry, Victor Hugo, Jack London, Edgar Allan Poe,
Walter Scott, Willian Shakespeare, Robert Louis Stevenson, Leo Tolstoy, e Anthony Trollope. “Eu
sempre ouço as pessoas dizerem que não têm tempo para ler”, ele comentou. "No único ano durante
o qual eu mantive um registro, eu li 25 livros enquanto esperava pelos outros. Em escritórios, em
busca de emprego, esperando no consultório de um dentista, esperando por amigos em um
restaurante, em muitos desses lugares (...) Se você quer realmente aprender, precisa decidir o que é
importante. Passar uma noite fora? Assistir esportes? Ou aprender algo que vai estar com você por
toda a sua vida?"
Ele escrevia histórias e as enviava para revistas, mas o que ele conseguiu de todas elas foi, somente,
rejeição. “Meu segredo”, ele lembrou, “era que mal eu colocava alguma coisa no correio, eu já
escrevia mais alguma coisa e a despachava. Cada rejeição era amortecida pela expectativa pelos
outros manuscritos enviados”.
Ele foi finalmente publicado em outubro de 1935 com “Anything for a Pal” ["Tudo por um
companheiro"], uma história publicada por True Gang Life, uma revista de celulose que oferecia
entretenimento barato. Recebeu US$6,54. Ao longo dos anos, ele vendeu para revistas desse tipo,
tais como, Thrilling Adventures, Story Magazine, Detective Short Stories, Rob Wagner’s Script,
New Western, Thrilling Sports, Sky Fighters, Popular Sports, Sime Western, Popular Western, Texas
Rangers, Thrilling Ranch Stories e Ace-Hight Western. As melhores revistas ofereciam cerca de um
centavo por palavra, e elas pagavam pela aceitação, e não pela publicação. Ao longo do caminho —
não ficou claro o porquê — ele trocou seu nome pelo som francês de “L’Amour”.
Convocado para o exército em 1942, ele foi alocado em uma escola de formação em Michigan, a
qual mostrava aos seus recrutas como sobreviver durante amargos e gelados invernos. Dois anos
mais tarde ele foi enviado à França, onde serviu como destruidor de tanques. Quando retornou da
guerra, foi viver na cidade de Nova York, e visitou Leo Margulies, editor chefe da Standart
Publications, que havia sido um grande mercado para ele antes da guerra. Margulies deu a seguinte
sugestão: “Você conhece o Velho Oeste. Então, por que você não escreve para mim sobre umas
histórias de faroeste”? Naquela época, essas histórias eram o tipo de ficção mais popular nos
Estados Unidos.
Em 1946, L’Amour mudou-se para Los Angeles, o centro da produção cinematográfica,
especialmente faroeste. Contos que ele escreveu durante o ano de 1950 foram reunidos em vários
volumes, incluindo War Party Festa de guerra, The Strong Shall Live Os fortes viverão, Buckskin
Run (1980), Bowdriee (1983) e Law of the Desert Lei do deserto.
O primeiro romance de faroeste de L’Amour foi Westward the Tide A maré para o Oeste, o qual foi
publicado logo na Grã- Bretanha, de em todos os lugares, mas, aparentemente, não foi muito bem.
Entre 1950 e 1952, ele escreveu quatro livros sobre Hopalong Cassidy, sob o pseudônimo de Tex
Burns, que pertencia à editora Doubleday. Hopalong Cassid foi um herói cowboy imensamente
popular em filmes e na televisão. Embora, mais tarde, L’Amour tenha repudiado esse trabalho, foi
assim que começou a escrever livros extensos para uma grande editora. Assim, ele escreveu Yellow
Butte(1953) e Utah Blaine (1954), sob o pseudônimo de Jim Mayo.
Durante o início dos anos 1950, muitas revistas desapareceram conforme milhões escolhiam o
entretenimento televisivo, mas L’Amour passou a vender para as revistas que pagavam melhor,
como a Saturday Evening Post e Collier’s. Seu grande sucesso começou com “Gift of Cochise”
["Presente de Cochise"], que a Collier’s publicou em sua produção de 5 de julho de 1952. A história
foi tão bem recebida que ele a transformou no romance Hondo, passado no Arizona em 1987. Scout
Hondo Lane salvava Angie Lowew, uma rancheira, cujo marido Ed a abandonara junto com seu
filho de seis anos de idade. Então Johnny Hondo suportava as torturas dos índios apaches e ganhava
a mão de Angie.
Para os leitores dos anos 1950, os sucessores das revistas foram os romances que eram lançados
como brochuras. Saul David, então na Fawcett Books, lembrou-se de receber um telefonema em
1953: "Aqui é Louis L’Amour. Você nunca ouviu falar sobre mim, mas eu quero vê-lo agora. Ele
chegou com um envelope, falou-me de seu trabalho e disse para eu ler seus rascunhos. Ele disse que
seria o próximo grande escritor de faroeste e que nós faríamos bem em tê-lo conosco. Eu li aquilo,
enquanto ele esperava. Tratava-se de Hondo, e eu fiquei sem fala. Eu assinei um contrato com ele
ali mesmo. David acrescentou que seus sócios céticos acharam a assinatura de L’Amour “um
faroeste escrito com batom”.
Hondo foi o sexto romance de L’Amour, o primeiro publicado nos Estados Unidos em seu próprio
nome. Logo, suas vendas ultrapassaram 300.000 cópias. “Em Hondo”, escreveu o crítico Scott A.
Carp, “L’Amour criou os personagens básicos do faroeste, que permaneceram em todos os seus
romances (...). O herói autossuficiente, honesto e bom de gatilho, e a mulher dedicada, leal,
trabalhadora e de personalidade forte que ficou junto ao seu marido e nunca lamentou a vida que
poderia ter tido”. John Wayne, estrela de Hollywood, considerou Hondo “o melhor romance
ocidental que eu já li”, e ele estrelou no filme Hondo junto a Geraldine Page, Ward Bond, e James
Arness. L’Amour recebeu apenas US$4,000 pelos direitos autorais do filme.
Até esse momento, os editores deixavam os livros se esgotarem, especialmente os de faroeste, que
eram considerados uma forma inferior de arte, mas Bantam se ofereceu para manter todos os livros
de L’Amour no mercado, então, em 1955, ele mudou para Bantam. O resultado foi que o sucesso de
um novo livro gerou interesse em seu repertório. Nesse entremeio, houve romance. L’Amour se
casou com a atriz Elizabeth Adams em 19 de fevereiro de 1956, em Beverly Hilton, em Los
Angeles. Ele tinha quarenta e oito anos, e ela estava com vinte e dois. Eles passaram sua lua-de-mel
nas Índias Ocidentais e no norte da América do Sul. O filho do casal, Beau Dearborn L’Amour,
nasceu em 1961, e a filha, Angelique Gabrielle L’Amour, em 1964.
Em 1957, ele escreveu Last Stand at Papago Wells [Fim da resistência em Papago Wells], sobre
Logan Cates, que encontrava uma dúzia de personagens indóceis em um charco no deserto do
Arizona. Os índios Apache-Yaquis atacaram, mas Cates mostrou aos brancos como superar o medo,
e ganhou o coração de uma mulher chamada Jennifer.
Outro romance mais ambicioso romance de L’Amour, Sitka, foi lançado no mesmo ano. Ele
relatava histórias do aventureiro Jean LaBarge, no acidentado território do Alaska. Ele lia Homero e
a Bíblia, capitaneava uma escuna, comerciava peles e se complicava com um barão russo, Paul
Zinnovy, que monopolizava o comércio de peles do Alaska. LaBarge foi enviado à Sibéria, mas
ganhou sua liberdade e juntou-se à bela russa Helena.
The Daybreakers Na aurora apresentou Tyrel Sackett, que com seu irmão Orrin deixou o Tennessee
em direção ao Oeste em 1870. Apesar de estarem preocupados com índios, ladrões e assassinos, eles
estavam determinados a construir uma comunidade onde pessoas decentes poderia criar seus filhos.
O sucesso desse livro se estendeu por dezesseis anos mais, que narraram as histórias da família
Sackett de 1600 a 1879.
Flint foi publicado em novembro de 1960, e os Escritores de Faroeste da América elegeram-no
entre os 25 melhores contos de faroeste jamais escritos. Gunman Flint ensinava a um órfão,
chamado James T. Kettleman, sobre como sobreviver no Novo México. Kettleman mudou-se para
Nova York onde se tornouum homem de negócios bem sucedido. Quando ele foi diagnosticado com
câncer, ele retornou ao Novo México, somente para encontrar um maldoso vigarista e notório
assassino que planejava roubar um rancho de uma mulher chamada Nancy Kerrigan. Kettleman
usou de sua astúcia, seu dinheiro e sua arma para salvar o rancho.
Em 1963, L’Amour criou um romance a partir do script de James R. Webb, How the West Was Won
[Como o Oeste foi conquistado]. Este foi um filme de sucesso, com um elenco de estrelas que
incluia James Stewart, Debbie Reynolds, Karl Malden, George Peppard e Agnes Moorehead. O
resultado foi um épico sobre os corajosos homens e mulheres que enfrentaram duras condições e
inimigos cruéis em sua aventura no Oeste.
Bendigo Shafter (1979) é sobre um franco-canadense que trabalha como proprietário rural, chefe de
pista, caçador, escritor e pacificador. Há um número desconcertante de personagens — mais de
oitenta — mas é uma história sobre a luta para construir uma comunidade no deserto de Wyoming,
apesar de nevascas, índios hostis e bandidos perigosos. Um dos melhores trabalhos de L’Amour.
Em 1980, quando suas vendas chegaram a 100 milhões, L’Amour embarcou no Louis L’Amour
Overland Express, um ônibus Luxury Custom Silver Eagle 1972, no qual ele passou três semanas
viajando pelo Oeste e o Sudoeste para dar entrevistas, autografar livros e promover seus escritos.
Esse era um tipo de fanfarra associado, geralmente, a cantores populares.
L’Amour estava no topo de sua popularidade. Seus livros começaram a aparecer em capa dura, e
alcançaram as listas de mais vendidos. As vendas de cada livro alcançavam um milhão dentro de 18
meses após a publicação. L’Amour foi agraciado com a Medalha de Honra do Congresso, que o
presidente Ronald Reagan lhe apresentou em 24 de setembro de 1983. No ano seguinte, ele recebeu
a Medalha Presidencial da Liberdade.
Em Comstock Lode (1981), Val Trevallian, um homem com um passado violento, e Grita Redaway,
uma bela atriz, se encontraram nos campos de mineração de prata em Nevada. Ele se torna um
operador de mina bem sucedido e enfrenta o homem que assassinou seus pais — e que pretendem
também assassiná-lo.
The Lonesome Gods (1983) [Os deuses solitários] contava como Johannes Verne, abandonado pelo
seu avô, Don Isidro, foi salvo por bandidos e criado por índios. Ele aprendeu a domar cavalos
selvagens, a lutar, a amar e a se tornar um homem.
L’Amour tentou algo diferente com Um tambor nas trevas. Passado no século XII, é uma epopéia
sobre Mathurin Kerbouchard, cuja mãe foi assassinada e cujo pai era desaparecido, que se tornou
um linguista, cavaleiro, esgrimista, arqueiro, acrobata e amante e se aventurou desde a Grã-
Bretanha até a Espanha, o Mar Negro, Constantinopla e a Pérsia. Ele vingou o assassinato de sua
mãe e resgatou seu pai, que era mantido em cativeiro.
Jubal Sackett (1985) foi o 17º romance sobre a família Sackett, cujas façanhas L’Amour narrou
durante o último quarto de século. Havia cerca de 30 milhões de cópias dos romances de Sackett
impressos, e muitos leitores consideravam esse o melhor. Jubal Sackett foi um incansável
explorador que suportou grandes dificuldades para atravessar o continente americano. Ele viveu e
lutou entre os índios, e se apaixonou por uma princesa Nanchez.
Last of the breed (1986) [O último da raça] é uma aventura do século XX. O major da força aérea
americana Joseph “Joe Mack” Makotozi, pilotando um avião em fase de testes sobre o Mar de
Bering, é forçado à terra pelos soviéticos. Ele é mandado para uma prisão remota, mas consegue
escapar de forma dramática pela imensidão da Sibéria e sobrevive ao frio sem comida, abrigo ou
arma. Ao longo de seu caminho, ele encontra uma corajosa mulher chamada Natalya.
Em The Haunted Mesa (1987) [A montanha assombrada], L’Amour combina elementos de faroeste
e ficção científica. O investigador Mike Ragland, que quer saber o motivo do desaparecimento de
Anasazi, entra no domínio do sobrenatural.
L’Amour aproximava-se do fim da trilha. Embora nunca tenha fumado, ele foi diagnosticado com
câncer de pulmão. Ele passou suas últimas horas revisando The Education of a Wandering Man [A
educação de um homem errante], uma autobiografia sobre seu amor pela leitura e de seus anos de
aventuras. Ele morreu em sua casa no dia 13 de junho de 1988. Tinha oitenta anos. Foi feita uma
cerimônia privada para seu funeral.
Havia uma efusão de obras não publicadas anteriormente, novas edições e coleções, que
provavelmente vão continuar por anos. Quase cem milhões de cópias dos seus livros foram
vendidas desde sua morte.
Com uma atividade prodigiosa, Louis L’Amour dramaticamente expandiu o público dos romances e
histórias de faroeste. Ele deu novo fôlego aos filmes e programas de televisão ocidentais. Ele
passou a ser respeitado pelos principais críticos. L'Amour foi um presente especial àqueles que
estimam a responsabilidade pessoal, o individualismo, a liberdade e a justiça.

Douglass North
Douglass North dividiu o Prêmio Nobel de Economia de 1993 com Robert Fogel, por ter renovado
a pequisa em história econômica ao aplicar teoria econômica e métodos quantitativos à explicação
de mudanças econômicas e institucionais."
North obteve seu Ph.D. em Economia na Universidade da Califórnia em Berkeley, mas, segundo ele
mesmo, aprendeu a pensar como economista com Donald Gordon, um de seus colegas em seu
primeiro emprego na Universidade de Washington. No início dos anos 1960, North ajudou a fundar
a cliometria, que aplica economia e métodos quantitativos ao estudo da história econômica (o nome
vem de Clio, musa da História). Um dos primeiros grandes resultados de sua obra foi seu livro The
Economic Growth of the United States from 1790 to 1860 [O crescimento econômico dos Estados
Unidos de 1790 a 1860]. Nele, North mostrou como um setor da economia, o das plantações de
algodão, estimulou o desenvolvimento econômico em outros setores e levou à especialização e ao
comércio interregional. Em 1968, o autor publicou um artigo mostrando que a mudança
organizacional é mais relevante do que a mudança tecnológica no aumento da produtividade nos
transportes marítimos.
Por toda a década de 1970, North publicou livros e artigos mostrando que as instituições,
especialmente direitos de propriedade bem desenvolvidos, são importantes na explicação do
crescimento econômico. Esse campo de estudos passou a ser chamado "a nova economia
institucional". North mostrou que a Inglaterra e os Países Baixos se industrializaram mais rápido
porque o sistema de guildas, que impunha restrições sobre entrada e práticas de trabalho em várias
ocupações, era mais fraco nesses dois países do que nas outras nações europeias. North foi além,
propondo a hipótese de que quando vários grupos na sociedade vêem uma chance de obter lucros
mais altos que seriam impossíveis de auferir no regime institucional existente, eles se unirão e
mudarão as instituições para tornar possíveis esses lucros mais altos. Ele mostrou que políticas
econômicas na agricultura, no comércio bancário, e nos transportes se encaixam nessa hipótese.
Em 1983, North se mudou para a Universidade de Washington em St. Louis, onde ele ainda é
professor nos dias de hoje. No fim dos anos 1980 e início dos anos 1990, ele começou a questionar
sua crença original de que mudanças institucionais pró-crescimento ocorrerão necessariamente. Ele
argumentou que sociedades às vezes podem ficar emperradas com instituições disfuncionais, como
a ausência do estado de direito ou um sistema judiciário que falha na execução de contratos e na
aplicação dos direitos de propriedade. Quando isso acontece, raciocina North, frequentemente é
muito difícil formar as coalizões necessárias para reformar tais instituições.

Raoul Wallenberg

Como pode um único indivíduo lutar contra a tirania? O que pode ser feito pela liberdade em face
de uma esmagadora desvantagem? Há poucas outras histórias tão comoventes quanto a de Raoul
Wallenbeg, que desafiou as forças do mal de Adolf Hitler e Joseph Stalin, dois dos piores assassinos
em massa da história, e confrontou racistas, torturadores, assassinos e até mesmo o executor chefe
de Hitler, Adolf Eichmann, salvando quase 100.000 vidas. Mais surpreendente, ele salvou vidas
dentro do território inimigo, uma vez que escapar era impossível. Ele andava armado apenas com
uma pistola, a qual nunca usou.
Trabalhando na Hungria controlada pelo nazismo, Wallenberg libertou milhares de judeus de vagões
com destino às câmaras de gás. Ele tirou judeus das marchas da morte e outros salvou de serem
baleados e jogados no rio Danúbio. Ele, sozinho, frustrou os planos de massacre nazista dos setenta
mil judeus restantes no gueto da Budapeste central. Depois que o Exército Vermelho capturou
Budapeste, Wallenberg foi levado pela NKVD, polícia secreta de Stalin. Aparentemente, eles o
torturaram e o transformaram em um espião soviético. Mas ele permaneceu desafiante.
Wallenberg, o maior herói libertário do século XX, desapareceu no gulag. Para pessoas no mundo
todo, ele é o anjo do resgate, e a simples menção de seu nome pode trazer lágrimas.
Wallenberg certamente não tinha características típicas de heróis. Ele tinha estatura média e olhos
castanhos, um nariz grande, um queixo pequeno, e o cabelo castanho encaracolado. Tibor Baranski,
um associado, descreveu Wallenberg como "um homem magro, bastante tímido e praticamente sem
medo. Vestia-se elegantemente e estava sempre de barba feita ". Ele aparece como uma pessoa
comum no selo comemorativo de 1998 produzido pelo serviço postal americano.
Björn Burckhardt, que conhecera Wallenberg na África do Sul, descreveu-o assim: "Raoul não fazia
as coisas de uma maneira normal. Sua maneira de pensar era tão sinuosa e involuta. Mas seu
intelecto impressionava a todos. E ele poderia falar mais do que qualquer um. Talvez seu maior
trunfo fosse o seu encanto, que influenciou as pessoas a respeitá-lo". Wallenberg, lembrou o
diplomata sueco Per Anger, "não era um tipo "super-homem". Nós nos conhecemos em Estocolmo,
alguns anos antes de ele chegar em sua missão a Budapeste, em 1944, e nos tornamos bons
amigos ... Ele falava com uma voz suave e, às vezes olhava como um sonhador. No fundo ele era
sem dúvida um grande idealista e um ser humano ameno. Não demorava muito, entretanto, até que
você descobrisse que ele tinha uma notável força interior, um íntimo de espírito de luta. Além disso,
ele era um hábil negociador e organizador, não convencional e extraordinariamente criativo. Fiquei
convencido de que não havia ninguém mais qualificado para a atribuição de Budapeste do que
Raoul".
Raoul Gustaf Wallenberg nasceu em 4 de agosto de 1912, na casa de veraneio de seu avô materno,
em Kapptsta, uma ilha perto de Estocolmo. Ele descendia de uma longa linhagem de
empreendedores luteranos que construíam bancos, fábricas, navios e ferrovias — umas cinqüenta
empresas ao todo. Seu pai, Sr. Raoul Wallenberg, um oficial da Marinha de vinte e três anos, morreu
de câncer abdominal três meses antes de ele nascer. Sua mãe, Maj Wising, foi a bisneta de um
joalheiro alemão e judeu. O avô paterno de Raoul, Gustaf Wallenberg, um embaixador sueco na
Turquia, tornou-se seu mentor. Gustavo foi um individualista, um empresário e um comerciante
livre que acreditava que as pessoas devem ser ligadas por relações comerciais pacíficas, em vez de
alianças militares.
Quando Raoul tinha onze anos, Gustaf fez arranjos de que ampliasse sua visão passando verões na
França e na Alemanha, e ele aprendeu os idiomas desses lugares, bem como o inglês. Para entender
a América, foi matriculado na Universidade de Michigan (evitando escolas elitistas), onde obteve
um diploma de arquitetura em 1935. Tornou-se estagiário de empresas holandesas em Haifa,
Palestina, onde ouviu refugiados europeus contarem histórias de horror da barbárie nazista.
Wallenberg ouviu falar sobre um trabalho com Kalman Lauer, um judeu húngaro baixo e robusto,
cuja empresa sediada em Estocolmo, Mellaneuropeiska Handelsaktiebolaget (uma empresa
comercial européia média), exportava principalmente grãos, frangos e patês de fígado de ganso da
Hungria para a Suécia. Desde que a Hungria aliara-se a Hitler, em 1941, Lauer não pôde mais viajar
com segurança pela da Europa; ele precisou de um não judeu, fluente nos principais idiomas
europeus e perito em negociações. Wallenberg foi trabalhar para ele. Ele se tornou hábil em lidar
com os nazistas e conheceu a comunidade judaica de Budapeste.
Em 20 de janeiro de 1942, numa vila em Wannsee, uma cidade fora de Berlim, Adolf Hitler se
reuniu com oficiais de alta patente da SS, sua polícia secreta de elite. Entre os presentes estavam o
general Reinhard Heydrich e o tenente-coronel Adolf Eichmann, da SS. Eles concordaram que não
era prático livrar a Europa dos judeus através da emigração, os judeus deveriam ser deportados para
o leste e exterminados. Em suas notas de conferência, Eichmann descreveu isso como "a solução
final". O agente nocivo seriam o Zyklon B, um composto de hidrogênio e cianeto desenvolvido para
matar roedores. Ordens foram enviadas para construir uma gigantesca câmara de gás.
Em 1944, a única comunidade judaica européia que não havia sido eliminada estava na Hungria,
uma potência do Eixo que manteve, no, entanto, uma certa independência da Alemanha. Na
seqüência das perdas alemãs na frente oriental, os diplomatas húngaros começaram a sondar os
aliados para um armistício. Isso teria desligado a Alemanha dos seus aliados do Eixo, Romênia e
Bulgária — e do fornecimento essencial de petróleo —, então, Hitler ordenou a seus soldados que
ocupassem a Hungria em 19 de março. Entre os recém-chegados estava Eichmann, que veio com
uma coluna de uma milha das suas forças especiais. Ele tinha um nariz afilado, lábios finos, e uma
boca contorcida; seu uniforme da SS, preto, tinha uma insígnia da cabeça da morte sobre as
dragonas. Eichmann liderou a Secção IV B4 da Gestapo (assuntos judaicos) e organizou o
extermínio dos judeus na Alemanha, Áustria e Tchecoslováquia. Foi apenas por causa de disputas
internas nazistas que ele não exterminou os judeus na Polônia também. Ele desenvolveu um
processo de quatro passos para a matança: marcar judeus, obrigando-os a usar uma estrela amarela
de David, alinhavada na parte externa de suas vestes; recolher os judeus de suas casas isoladas,
geralmente na calada da noite; isolar os judeus em guetos; e deportá-los para os campos de
extermínio.
Eichmann não queria que os judeus entrassem em pânico e atrapalhassem seus planos antes que ele
estivesse pronto, então ele mandou os membros líderes da comunidade judaica de Budapeste
formarem um "Conselho Judeu". Ele lhes disse: "Vou visitar o seu museu em breve, pois estou
interessado nos assuntos culturais judaicos. Podem confiar em mim e falar à vontade comigo —
como vêem, eu sou muito franco com os senhores. Se os judeus se comportam discretamente e
trabalham, poderão manter todas as instituições de sua comunidade".
Em 15 de maio, os trens da morte começaram a correr para Auschwitz. Havia até cinco trens por
dia, cada um com cerca de dez mil judeus. Em 13 de junho, 147 trens tinham pego 437.000 judeus.
"Foi como um sonho", vangloriou-se Eichmann.
Enfim, os Aliados se mexeram. A força aérea norte americana e a Força Aérea Real da Grã-Bretanha
bombardearam Budapeste, mas isso não funcionou. Foi decidido que os Estados Unidos apoiariam
um esforço para salvar alguns judeus, operando no interior da Hungria. O financiamento seria
assegurado pelo Comitê de Refugiados de Guerra, cujo representante na Suécia, Iver Olsen, recebeu
a tarefa de encontrar alguém de um país neutro. Esta pessoa tinha que ser um não judeu, fluente em
idiomas europeus, capaz de lidar com sucesso com os nazistas, além de incrivelmente corajosa.
Olsen ouviu o nome de Wallenberg, então com 31 anos, ser mencionado no elevador do prédio de
oito andares, construído na Strandvagen Street, onde ficavam os escritórios da diplomacia
americana. Ele o ouviu de Kalman Lauer, cuja empresa de importação e exportação estava situada
no mesmo edifício. Olsen encontrou Wallenberg para jantar no Saltsjobaden, uma estância de
veraneio construída pelo avô de Gustaf.
Wallenberg anunciou seus termos. Ele exigia estatuto diplomático, e assim foi nomeado segundo
secretário da delegação sueca. Ele podia enviar suas próprias mensagens pelo correio diplomático.
Se os fundos fornecidos pelo Comitê de Refugiados de Guerra dos Estados Unidos e pelo Comitê
Unido Amero-Judeu de Distribuição fossem insuficientes, ele poderia levantar fundos por outros
meios. Ele podia contactar qualquer pessoa, inclusive o governante do país e a resistência secreta
antinazista. Ele poderia usar qualquer meio que ele achasse necessário, incluindo subornos. Ele
poderia dar asilo a pessoas perseguidas com documentos suecos.
Em 6 de julho de 1944, Wallenberg viajou de Estocolmo para Berlim, e dois dias mais tarde estava
num trem rumo a Budapeste. Seu trem, provavelmente, passou pelos vinte e nove vagões
carregando a última leva de aldeões judeus húngaros para Auschwitz. Eichmann vangloriou-se desta
ser "uma deportação que superava a qualquer outra em magnitude”.
De acordo com as estatísticas nazistas, cerca de 230,000 Judeus foram deixados em Budapeste.
Eichmann regozijava-se com a perspectiva de transportá-los para fora em poucos dias, mas, o
regente da Hungria, com setenta e cinco anos, Miklos Horthy, ainda mantinha independência
nominal da Alemanha, e suspendeu as deportações. Embora ele fosse certamente antissemita (ele
havia aprovado leis perseguindo Judeus), ele temia sua própria execução, como criminoso de
guerra, pelos russos que estavam avançando para o leste, ou pelos americanos e ingleses, que
haviam se estabelecido na Normandia.
Wallenberg chegou a Budapeste em 9 de julho. A cidade tinha representantes de cinco nações
neutras — Portugal, Espanha, Suíça, Turquia, e Suécia — e representantes da Cruz Vermelha
Internacional e o Papa. Alguns já haviam feito esforços restritos para salvar os judeus. Wallenberg
passou algumas semanas encontrando recrutas e construindo uma organização. Os judeus de
Budapeste estavam tão desmoralizados, e Wallenberg parecia tão inadequado para o cargo, com sua
feição viçosa e seu terno azul escuro, bem-cortado, que encontrava grande dificuldade em
convencer as pessoas que poderiam ajudar a si mesmas.
Wallenberg reconheceu que havia várias formas com as quais ele poderia apelar para aqueles que
estão no poder. Primeiro, o regime fantoche de Horthy queria a legitimidade que vem com aceitação
internacional. Segundo, os representantes suecos manipulavam os negócios Húngaros e Alemães em
muitos países. Terceiro, muitos no regime fantoche temiam a possível execução pelos Aliados após
a guerra. Finalmente, havia muitos outros cuja cooperação poderia ser comprada com subornos em
alimentos ou dinheiro.
Wallenberg tomou medidas imediatas para fazer a sua missão parecer impressionante. Ele projetou
um certificado Schutz-Pass com o logotipo oficial da tríplice coroa real do governo sueco. Ele o
obteve impresso nas cores da Suécia, amarelo e azul, e embelezado com selos, carimbos e
assinaturas. Esses passes sugeriam que o titular tinha uma conexão com a Suécia e pretendia deixar
a Hungria por esta. Até que isso pudesse acontecer, o titular estava sob a proteção da Legação Real
Sueca. Embora esses certificados não tivessem legitimidade no direito internacional, Wallenberg
tinha milhares em produção, e eles funcionavam. Um dos motoristas de Wallenberg observou que
ele "entendia a mentalidade alemã. Ele sabia que os alemães reagiriam a documentos formais e
autoridade". É provável, também, que os nazistas tolerassem os passes, desde que afetassem uma
minoria de judeus. Os nazistas provavelmente achavam que poderiam desprezar os passes sempre
que quisessem, mas a estratégia de Wallenberg era retardar. Com os Aliados vencendo a guerra, ele
acreditava que, quanto mais pessoas pudessem ser mantidas sob a proteção sueca, mais
sobreviventes haveria.
Mas os judeus não podiam deixar Budapeste, e sua situação se tornava cada vez mais
desesperadora. Wallenberg estocou comida, roupas e medicamentos. Ele construiu uma equipe com
cerca de quatrocentas pessoas, com turnos de trabalho se revezando sem parar, e eles instalaram
enfermarias, centros de distribuição de comida e hospitais que atendiam aproximadamente duzentas
pessoas por vez. Ele tentou colocar o maior número possível de judeus sob proteção internacional.
Precisou de abrigos, o que significava lidar com Eichmann, que controlava as propriedades tomadas
dos judeus. Eichmann passou noites na casa noturna cheia de espelhos chamada Arizona, em
Budapeste, e, lá, Wallenberg o observou de perto – duas vezes subornando garçons para colocá-lo
próximo à mesa de Eichmann, que propôs uma conversa para que se conhecessem. Wallenberg
explicou-lhe que queria uns quarenta prédios de Budapeste para a sua operação, e ele ofereceu o
equivalente a $200,000 coroas suecas. Eichamann estava disposto a negociar, pois cogitava que
pudesse pegar os judeus onde quer que vivessem Wallenberg alugou trinta e dois prédios em
Budapeste, cada um deles ostentando a bandeira sueca. Eles se tornaram o núcleo do “gueto
internacional”, o qual chegou a abrigar cerca de cinquenta mil judeus. Geralmente, os judeus eram
removidos na calada da noite, quando eles estariam menos vulneráveis a ataques e o governo não
teria noção de quantos judeus foram abrigados.
Wallenberg, então, deu com uma descarada estratégia que salvou mais e mais judeus dos comboios
da morte. Como um de seus motoristas explicou: “Raoul, geralmente, tinha com ele um livro com
nomes de titulares de passaportes. Às vezes, o livro tinha todas as suas páginas em branco. Quando
ele chegava ao trem, ele compunha nomes judeus e começava a chamá-los. Três ou quatro
costumavam ter passaporte. Para aqueles que não tinham, eu estava atrás de Raoul com outros
cinquenta ou mais passaportes em branco. Levava apenas dez segundos para eu escrever seus
nomes. Nós os entregávamos a eles calmamente e dizíamos: "Estou terrivelmente sentido que você
não tenha podido chegar à legação para pegá-lo. Aqui está ele. Nós o trouxemos para você’. O
titular do passaporte o mostrava à SS e estava liberado”.
Em 15 de outubro, Horthy anunciou que seu governo estava negociando um armistício com os
russos, notícia que desencadeou um golpe nazista. Hortly estava fora, e o fanático líder do partido
fascista húngaro, Otto Skorzeny, estava no comando. Quando ele ordenou que as deportações dos
judeus fossem retomadas, todo o plano de Wallenberg foi posto em risco.
“Eu fui forçado a sair de uma das casas de proteção da Suécia e levado para o pátio de uma fábrica
de tijolos”, Ferenc Friedman lembrou-se. "Seriam apenas uns minutos até nós embarcarmos nos
comboios da morte. De repente, dois carros surgiram. Lá estava Wallenberg no primeiro, com
oficiais húngaros e oficiais alemães no segundo carro. Ele saltou para fora, gritando que todos
aqueles com documentos suecos estavam sob sua proteção. Eu fui um dos 150 salvos naquele dia.
Nenhum dos outros jamais voltou.
O motorista de Wallenberg, Sandor Aradai, contou ao biógrafo Harvey Rosenfeld: “Nós tínhamos
ido a uma estação onde um trem cheio de judeus estava a ponto de partir para a Alemanha, em
direção aos campos de extermínio. O oficial da guarda não queria nos deixar entrar. Raoul
Wallenberg, então, escalou o telhado do trem e entregou uma porção de passaportes protetores pelas
janelas. Os homens do partido dispararam suas armas e gritaram para ele ir embora, mas, ele
continuou, calmamente, a entregar passaportes nas mãos de quem os alcançasse. Mas eu acredito
que os homens armados estavam impressionados com sua coragem e, propositalmente, visando
acima dele. Depois, ele conseguiu retirar todos os judeus com passaporte para fora do trem.
No início de novembro, Nyilas, como eram chamados os assassinos do partido, mantivera muitas
centenas de judeus na sinagoga de Dohany. Joseph Kovacs recordou que, "em 4 de novembro,
Wallenberg invadiu o templo e se colocou em frente ao altar, fazendo um anúncio: 'Todos aqueles
que tiverem passes suecos de proteção devem se levantar’. Naquela mesma noite, algumas centenas
de judeus foram libertados e retornaram às suas casas, sob a proteção dos policiais húngaros.
“Pessoas, freqüentemente me perguntam”, Kovacs continuou, “Por que Roul Wallenberg obteve
êxito? Na minha opinião, Raoul Wallenberg era energético, determinado, e nunca hesitava em dizer
o que deveria ser dito, nem em fazer o que deveria ser feito”.
Jonny Moser, um dos assistentes de Wallenbeg, “lembrou quando nós dissemos. . . que 800 judeus
estavam para ser levados para fora. As deportações foram iniciadas a pé para Mauthausen.
Wallenberg se encontrou com eles na fronteira. ‘Quem de vocês tem passaporte sueco de proteção?
Ergam suas mãos, gritou ele. Sob suas ordens, eu corri entre as colunas e disse às pessoas que
erguessem suas mãos, tivessem ou não passaporte. Ele, então, tomou a frente de todos que haviam
levantado as mãos, e sua atitude era tal que nenhum dos guardas se opôs, tão extraordinária era a
força persuasiva de sua atitude”.
Tibor Vayda, outro assistente, lembrou-se: A cada manhã, aproximadamente, seis ou sete de nós nos
encontrávamos com Wallenberg, e então íamos ajudar aqueles que tinham problemas nas mãos da
SS ou Nyilas. Um dia, ao final de novembro, eu parti às cinco horas da manhã, acompanhado por
um companheiro de equipe. Nós fomos para um ponto de conflito na rua Jokai. Wallenberg nos
disse que estaria por lá antes das oito horas da manhã. Nós esperamos e esperamos, e ainda nada de
Wallenberg. Umas trezentas pessoas estavam sendo alinhadas para serem deportados a Jozefvaros.
Nós estávamos prontos para partir. Francamente, nós estávamos com medo de estrarmos em apuros,
também. Do nada apareceu um carro preto com Wallenberg, faltando, apenas, um minuto para oito
horas”.
Mas Eichmann enfrentou sérios obstáculos. Desde que o Exército Vermelho começou a avançar do
leste e do sul, as estradas da Polônia para os campos de morte estavam bloqueadas. Os militares
alemães precisaram de todas as ferrovias disponíveis para movimentar materiais de guerra. A única
saída da Hungria era pela Áustria, então Eichmann decidiu que os judeus iriam caminhando; assim
começou a marcha da morte para Hegyeshalom, a 125 milhas de distância, próximo à fronteira
austríaca. Entre meados de novembro e dezembro, cerca de 40,000 judeus foram obrigados a
marchar em clima gélido. Um quarto deles morreu.
Frequentemente, o próprio Eichamann estava em Hegyeshalom. De acordo com Per Anger, "para os
judeus perseguidos, Wallenberg era a única esperança. Como um anjo salvador, ele frequentemente
aparecia no último momento. No momento em que uma deportação estava para acontecer —
algumas pessoas estavam, na verdade, sendo enviadas por trem — ele costumava chegar à estação
com um documento — falso ou verdadeiro — de permissão para separar e libertar todos os judeus
com passaportes de proteção sueca. Se seus protegidos já tivessem sido levados para fora da cidade,
ele corria atrás eles e conduzia de volta tantos quantos conseguisse em caminhões arranjados às
pressas. Sua chancelaria móvel e sempre presente fabricava todos os tipos de identificação e
documentos de proteção, numa escala infinita. Incontáveis eram aqueles judeus que, durante a
marcha, rumo à Viena, já haviam desistido de toda a esperança, quando, de repente, recebiam de um
dos ‘esquadrões de vôo’ de Wallenberg um documento de proteção sueca, da mesma forma que seus
ancestrais, certa vez durante sua longa jornada, foram resgatados pelo maná dos céus.”
Susan Tabor se lembra: "Minha mãe, meu marido e eu passamos duas noites sem comida. Então nós
ouvimos sussurros, sussurros humanos, o primeiro que tínhamos ouvido em uma eternidade. Era
Raoul Wallenberg. Ele nos deu a tão necessária sensação de que ainda éramos humanos. Nós
estávamos entre os milhares levados para ficar em uma fábrica de tijolos, fora de Budapeste.
Estávamos sem comida, sem água, sem condições mínimas de higiene. Wallenberg nos disse que
tentaria voltar com os documentos de salvação. Ele também nos disse que tentaria arranjar cuidados
médicos e produtos de higiene. E, fiel à sua palavra, logo em seguida, alguns médicos e enfermeiras
vieram do hospital judaico. Mas,o que mais se destaca em Raoul Wallenberg é que ele próprio vinha
para ajudar. Ele conversava conosco e, o mais importante, ele nos mostrava que existia um ser
humano que se importava conosco.
Wallenberg até tentou influenciar Eichmann. Pouco antes do Natal, ele convidou o nazista para um
jantar. “A guerra acabou”, disse ele a Eichmann. “Por que você não vai embora enquanto pode e nos
deixa viver a vida?” Eichmann respondeu,:“Eu também tenho meu trabalho a ser feito”. O
diplomata sueco Lars Berg recordou que “Wallenberg, destemidamente rasgou as doutrinas nazistas
em tiras e previu que o nazismo e seus líderes iriam se deparar com uma rápida e completa
destruição. Eu devo dizer que estas foram palavras incomuns e cáusticas de um sueco que estava
longe de seu país e totalmente à mercê do poder antagonista germânico de Eichmann e seus
capangas."
Atordoado pelo corajoso ataque de Wallenberg, Eichmann respondeu: “Eu admito que você está
certo, Sr. Wallenberg. Eu, na verdade, nunca acreditei no Nazismo nesta forma, mas, ele tem me
dado poder e riquezas. Eu sei que essa vida agradável logo irá se acabar. Meus aviões não me trarão
mais mulheres e vinhos de Paris, nem outras delícias do Oriente. Meus cavalos, meus cães, meu
palácio aqui em Budapeste serão logo tomados pelos Russos, e eu mesmo, um oficial da SS, serei
morto aqui mesmo. Mas, para mim não há mais salvação. Se eu acatar as ordens vindas de Berlim, e
exercer meu poder de forma suficientemente rude aqui em Budapeste, eu serei capaz de prolongar
meus dias de graça”. Eichamann acrescentou, “Eu avisei você, secretário da legação. Eu farei de
tudo para derrotá-los. E seu passaporte diplomático sueco não ira lhe ajudar. Até mesmo um
diplomata neutro pode se ver envolvido em acidentes." Alguns dias mais tarde, um enorme
caminhão alemão esmagou o carro de Wallenberg. Wallenberg não estava dentro, e Eichmann jurou:
“Eu tentarei novamente”.
O Exército Vermelho começou o cerco de Budapeste em oito de dezembro. Naquele dia, Wallenberg
escreveu uma última carta para sua mãe: “Eu realmente pensei que eu estaria com você para o Natal
(...). Eu espero que a paz há tanto tempo almejada não esteja longe.”
O pessoal de Wallenberg estava cada vez mais em risco. Tibor Vayda recordou: “havia mais do que
trezentos homens e mulheres em nosso escritório, que era também uma casa de proteção sueca, no
número 4 da Üllöi Street. Os Nyilas invadiram e gritaram, ‘Wallenberg não está aqui. Saiam todos.
A proteção sueca não significava nada. Bilhetes de proteção não significavam nada. As pessoas
queriam pegar suas bagagens, mas os Nyilas zombavam. ‘Vocês não precisam de bagagens, pois
logo estarão mortos”. Lá pelo meio-dia, nós estávamos marchando rumo à sede da SS. Nós
esperávamos que atirassem em nós e nos jogassem no Danúbio. De alguma forma — e eu ainda não
sei como — uma mensagem foi entregue a Wallenberg. Às duas horas daquela tarde, seu carro
surgiu no pátio. Nenhum dos trezentos estava perdido. Ele se colocou claramente para o comando
da SS: ‘Vocês salvam estes homens, e eu prometo salvá-los depois que os russos vencerem a
guerra’”.
Eichmann fugiu de Budapeste em 23 de Dezembro, mas a crise para os judeus piorou. Wallenberg
se mudou para Pest, leste do Danúbio, onde setenta mil judeus haviam sido forçados a entrar para o
gueto central sem proteção diplomática. No dia de Natal, os assassinos do partido fascista
apreenderam alguns funcionários da equipe médica de Wallenberg. Dr, Sthephen I. Lazarovitz, a
quem Wallenberg já tinha resgatado num episódio similar, em 28 de outubro, descreveu o que
aconteceu: “Eles planejavam nos levar ao Danúbio, onde milhares de pessoas tinham sido
executadas. Um de nós conseguiu entrar em contato com Wallenberg, que chegou dentro de dez
minutos com seus assessores e livros da embaixada. Ele argumentou com o pessoal do partido, com
calma e determinação, mostrando-lhes os documentos oficiais. Finalmente, os nazistas partiram.
Wallenberg havia salvado a vida da minha família, e também a minha vida — pela segunda vez!"
Paula Auer, que havia procurado refúgio na casa sueca,disse que "quando os russos chegaram a
Budapeste, os nazistas invadiram esta e outras casas suecas, e, como bestas enlouquecidas, atiravam
em todos os judeus que viam. Então eles jogavam seus corpos no Danúbio. De alguma forma, eu
escapei da busca nazista e escrevi para a legação sueca. Wallenberg e seus assistentes chegaram a
tempo de evitar o massacre dos 160 judeus que restavam na casa.
O frênesi nazista contra os judeus se intensificava enquanto choviam balas russas em Budapeste.
Nyilas tiraram crianças de uma casa para crianças da Cruz Vermelha Internacional e de um orfanato
judeu, e muitas foram fuziladas. O Instituto de Medicina Legal de Budapeste observou: “Da
maneira mais brutal, os Nyilas tornaram o trabalho com suas vítimas mais curto. Uns poucos foram
simplesmente fuzilados, mas a maioria foi impiedosamente torturada (...). Cegar, escalpelar, quebrar
ossos deliberadamente e causar feridas no abdômen com faca eram as especialidades de Nyilas”.
Wallenberg organizou uma nova campanha para ajudar a salvar as crianças judias. Trabalhando com
a Cruz Vermelha Internacional e a Cruz Vermelha Sueca, ele forneceu comida, abrigo e ajuda
médica para aproximadamente sete mil crianças.
Finalmente, poucos dias antes de os russos entrarem em Budapeste, Wallenberg foi informado de
que em torno de quinhentos soldados da SS e do partido estavam preparando o assassinato de todas
as setenta mil pessoas do gueto central, “sendo esse o desejo particular de Hitler e de Himmler”,
conforme a polícia alemã. Wallenberg entrou em contato com o general alemão August
Schmidthuber, um comandante da SS, e exigiu que ele parasse o planejado massacre, alertando que
asseguraria de que o general fosse enforcado como criminoso de guerra se ocorresse o banho de
sangue. Aparentemente assustado com essa perspectiva, Schmidthuber ordenou aos conspiradores
para que desistissem. Essa foi a maior conquista de Wallenberg — uma simples negociação que
salvou a vida de setenta mil pessoas.
“É de máxima importância”, escreveu Jeno Levai, autor húngaro, “o fato de que os nazistas e os
homens da Cruz Flechada não podiam praticar seus atos de devastação de forma livre — eles foram
compelidos a ver que cada passo seu estava sendo observado e seguido pelo jovem diplomata sueco.
De Wallenberg eles não podiam esconder segredos. Os homens da Cruz Flechada não o podiam
iludir. Eles não podiam operar livremente (...). Wallenberg era o ‘observador do mundo’, o homem
que continuamente chamava os criminosos para prestar contas.”
Wallenberg esperava por tempos melhores em seguida à derrota dos nazistas. “Agora, o pesadelo
logo estará encerrado”, disse a seu motorista Sandor Ardai. “Logo nós poderemos dormir.” Mas os
russos vieram seguindo os passos de conquistadores, não de libertadores. Eles consideraram inimiga
a população local e pegaram milhares de civis de Budapeste para a realização de trabalhos forçados,
muitos dos quais nunca retornaram. Acostumado com a miséria do paraíso socialista de Stalin, os
soldados russos agiam de forma selvagem, roubando as pessoas por todas as partes. Eles invadiam
os apartamentos; os apartamentos dos “zeladores” burgueses eram especialmente vulneráveis, uma
vez que eles eram, invariavelmente, localizados no primeiro andar. A maioria das mulheres de
Budapeste tinha histórias horríveis para contar sobre os estupros brutais cometidos pelos soldados
russos.
Em 13 de janeiro de 1945, os soldados russos bateram na porta do apartamento da rua Benczur onde
Wallenberg dormia. Ele mostrou seus documentos e pediu para ver o comandante da divisão; ele
esperava discutir planos para auxiliar a população judaica. Perguntado por que estava em Pest, ao
invés de Buda, onde todos os outros diplomatas estavam, Wallenberg disse que ele queria estar
próximo aos quarteirões judaicos. Mistificados, os russos o levaram para os quarteirões russos na
rua Erzebet Kiralyno (Rainha Elizabeth). Eles indicaram que ele seria levado para ver o general
Rodion Malinovsky. Daltônico, Wallenberg provavelmente não notou as abas vermelhas nos
ombros daqueles que o escoltavam, identificando-os como oficiais da polícia secreta soviética,
NKVD. A missão deles era transformar a Hungria em um regime fantoche soviético, o que
significava suprimir quaisquer dissidentes potenciais ou líderes independentes. Wallenberg era
alguém a considerar, uma vez que milhares de documentos circulavam por Budapeste com sua
assinatura. Os soviéticos o consideravam um adversário capitalista por causa de sua família, famosa
no meio empresarial, e sua educação nos Estados Unidos, além de estarem convencidos de que ele
deveria ser um espião. Alega-se que foi o futuro chefe soviético, Leonid Brezhnev, quem emitiu a
ordem direta para que prendessem Wallenberg.
Em 17 de janeiro de 1945, Wallenberg foi levado para a estação de trem do leste de Budapeste e
embarcado em um trem com destino a Moscou. Então ele foi levado para a praça Lubyanka, onde
um hotel cinco estrelas havia sido convertido em um quartel general da NKVD e em um calabouço
para prisioneiros políticos. Ele foi levado para a cela 123. A NKVD o torturou e o interrogou. Por
volta de abril de 1945, ele foi transferido para a prisão de Leftortovo.
Oficiais soviéticos se recusaram a responder às perguntas sobre ele. Osten Unden, ministro das
relações exteriores marxista no governo socialista da Suécia, defendeu Stalin dizendo que se
Wallenberg não tinha feito nada errado, então os soviéticos não poderiam tê-lo prendido. Em agosto
de 1947, Andrei Vyshinsky, Ministro das Relações Exteriores soviético, que atuara como promotor
de justiça nos “julgamentos” do grande expurgo de Stalin, disse às Nações Unidas que “Não há
nenhum Raoul Wallenberg em qualquer prisão soviética”. Mas muitos ex-prisioneiros políticos da
União Soviética disseram ter tido contato com Wallenberg, e, em 6 de fevereiro de 1957, o vice-
Ministro das Relações Exteriores Andrei Gromyko admitiu que Wallenberg esteve na prisão de
Lubyanka, mas afirmou que ele morreu de ataque cardíaco em julho de 1947, quando contava 35
anos. Nunca houve uma testemunha, um corpo ou um atestado de óbito.
Estimuladas por relatos de que ele ainda poderia estar vivo nos anos 1970, Comissões Wallenberg
foram formadas ao redor do mundo. A Comissão Raoul Wallenberg dos Estados Unidos organizou
uma exibição que viajou pelo país. Escolas, hospitais, parques e ruas receberam seu nome. O
dissidente soviético Andrei Sakharov exigiu que o governo entregasse os arquivos de Wallenberg
para investigadores independentes. O presidente Ronald Reagan pressionou os soviéticos a darem
respostas e instou o congresso a aprovar um projeto de lei que reconhecia Wallenberg como cidadão
honorário dos Estados Unidos, que foi convertido em lei em 05 de outubro de 1981. Um busto de
Wallenberg, feito pelo escultor israelense Miri Margolin, foi colocado no capitólio. Em 1984,
Wallenberg foi a primeira pessoa a ser nomeada como cidadão honorário de Israel. No ano seguinte,
a NBC apresentou uma minissérie de quatro horas dividida em duas partes chamada “Wallenberg: A
Hero’s Story”, com a participação de Richard Chamberlain.
O meio irmão de Wallenberg, Guy von Dardel, e sua meia irmã, Nina Lagergren, não obtiveram
novas informações quando visitaram a União Soviética, em outubro de 1989, apesar de lhes terem
sido entregues o passaporte diplomático, o diário, a lista de endereços, a cigarreira e algumas
moedas estrangeiras dele. O presidente Reagan conversou sobre Wallenberg com Mikhail
Gorbachev, quando este visitou os Estados Unidos em dezembro de 1989, mas novamente nada de
novo foi apresentado. O mesmo se deu quando do colapso da União Soviética. Observadores como
Abe Rosenthal, ex-editor do New York Times, acreditam que os soviéticos o assassinaram e que
confessar seria muito embaraçoso, pois “todos eles estavam envolvidos”. Guy von Dardel diz que
ativistas dos direitos humanos continuam a pesquisar arquivos em busca de respostas.
Raoul Wallenberg há muito tempo entrou na lista dos imortais. As pessoas continuarão a ser
inspiradas pelo seu heroísmo, que salvou muitos seres humanos do mal hediondo. Onde quer que
esteja este amado homem agora, ele permanecerá como um grande anjo da guarda que resgatou as
esperanças por bondade e liberdade.

Max Weber
Max Weber foi um dos pais fundadores da sociologia. Em seu livro mais famoso, A ética
protestante e o espírito do capitalismo, ele alegou que as sementes do capitalismo se encontravam
na ética de trabalho protestante.
Mas Weber foi também um economista que enxergou na extensa divisão do trabalho e em uma
administração hierárquica semelhante a uma burocracia política os traços distintivos do capitalismo
avançado, tal como existia na Alemanha de sua época, antes da Primeira Guerra. Essas duas
características juntas haviam criado uma nova classe média, cuja posição não dependia nem de
capital nem de trabalho físico, mas sim de capital humano. Mesmo no capitalismo avançado,
entretanto, Weber considerou a assunção de riscos por negociantes e empreendedores (v.
empreendedorismo) a maior fonte de progresso.
Weber aceitou a crítica de Ludwig von Mises ao planejamento econômico socialista, e acrescentou-
lhe seu próprio argumento. Ele acreditava que, sob o socialismo, os trabalhadores ainda atuariam
dentro de uma hierarquia, mas que esta se fundiria com o governo. Em vez da ditadura do
trabalhador, ele previu a ditadura do funcionário público.
Assim como seu predecessor David Hume, Weber acreditava na possibilidade de uma ciência social
livre de julgamentos. Com isso ele queria dizer que não é possível tirar conclusões sobre como o
mundo deve ser simplesmente estudando como o mundo é. Weber não negava que análises
normativas fossem factíveis ou valessem a pena — ele acreditava na discussão racional de valores;
ele queria apenas que os economistas distinguissem fatos de julgamentos.
Nascido na Alemanha, Weber estudou Direito, e, continuando seus estudos em uma pós-graduação,
fez uma dissertação sobre as companhias comerciais medievais na Itália e na Espanha. Ele foi
indicado para uma cátedra de economia política em Freiburg em 1894, e para outra em economia
política em Heidelberg em 1896. Weber sofreu um colapso nervoso em 1898 e não retomou seu
trabalho acadêmico até 1904. A partir de 1904, foi um acadêmico privado, em Heidelberg pela
maior parte do tempo.

Não se deixe levar pelo obscurantismo", dizia Olavo Rocha.


Não sei bem como isso começou, mas quando eu era adolescente, andar pelas ruas era um exercício
de criatividade. Eu parava, olhava para um prédio e imaginava um roteiro de filme para aquele
prédio. Olhava para a rua, idem.
Creio que meu maior sonho — frustrado pela falta de dinheiro — era comprar uma câmera de vídeo
e fazer pequenos filmes. Na minha época você não achava isso por aí, assim fácil. Já prometi a mim
mesmo que vou comprar uma para mim um dia.
Meu irmão, por sua vez, tinha um colega mais rico que tinha uma dessas câmeras e passou parte de
sua adolescência fazendo filmes na garagem do prédio dele. Filmes bem divertidos, diga-se de
passagem.
Mas a idade avançou e, com o vestibular, veio a responsabilidade. Das escolhas que fiz, claro, não
me arrependo. Mas sempre guardei o desejo de ser um diretor de cinema junto com o de ser
astronauta, ou alguma outra fantasia infantil que todos nós carregamos ao longo da vida.
Anos se passaram e, num belo dia, resolvi procurar por vídeos que me ajudassem em sala de aula.
Deparei-me com dois ótimos: um sobre vantagens comparativas e outro sobre salário mínimo.
Gostei tanto do que assisti (além de rir um bocado) que resolvi escrever para o criador dos vídeos:
Olavo Rocha.
Tudo era interessante nesses vídeos. O Olavo tinha formação similar à minha — economista — e o
humor era tão parecido que eu fiquei realmente feliz: havia encontrado alguém que pensava como
eu penso mas tinha uma vantagem vital, que era a de se expressar de maneira muito mais clara,
artística e talentosa.
Em 17 de Julho de 2008 estabeleci contato com o Olavo. De forma um tanto quanto intrometida, eu
lhe sugeria um texto do Instituto Millenium como inspiração, creio. No dia seguinte, ele me enviava
uma mensagem naquele seu tom bem-humorado (você nunca sabia quando ele falava sério ou não)
pedindo sugestão para um roteiro que pretendia filmar. Algo sobre privatização, sistema de preços e
rent-seeking.
A partir daquele dia eu me senti triste por não ter nunca visto um único aluno de Economia fazer
algo similar. Aliás, nos dias seguintes, eu tentei captar alunos para o Olavo fazer algum vídeo.
Mesmo não residindo no Rio de Janeiro, tentei algum contato por lá e, claro, não obtive resposta.
Aos poucos, contudo, nosso diálogo evoluía para um novo roteiro que Olavo viria a filmar sobre o
Teorema de Alchian-Allen. Em 08 de Setembro daquele ano, Olavo já falava da equação de Slutsky
e tentávamos ver o que, exatamente, poderia ser feito.
Algum tempo se passou e Olavo guardou a idéia (ou a desenvolveu em silêncio) até 12 de janeiro de
2009. Foi então como ganhar um presente de Ano Novo quando Olavo me enviou uma tentativa de
roteiro para comentários. Em 23 de Janeiro, chegou o convite oficial anunciando o filme.
Em 07 de Maio, novamente Olavo me consultava sobre um roteiro que havia escrito. Era uma
divertida história sobre o dilema dos prisioneiros. Fez um enorme sucesso entre meus alunos (assim
como o Teorema de Alchian-Allen) e, nele, Olavo já usava mais de um consultor para comentar
seus filmes.
Dá para imaginar minha felicidade em, parcialmente, realizar um sonho de juventude? Puxa, eu me
sentia quase que um pai do filme, embora todo o esforço e mérito fossem do Olavo. Mas a idéia era
minha e o desenvolvimento conjunto me deu aquela sensação de fazer parte de um empreendimento
cinematográfico.
Olavo fez vários filmes que ficarão na história. Foi provavelmente o único a usar a câmera para
divulgar idéias liberais no Brasil. Sua irreverência e seu conhecimento de Economia davam aos
vídeos um estilo verdadeiramente único que somente a visão de um estudante da área poderia criar.
Sim, ele ajudou a educar vários estudantes — universitários ou não — nos princípios da boa
economia e também teve a coragem de expressar seu ponto de vista contrário a ideologias que
considerava perniciosas. Fez isso sem ganhar um tostão de sindicatos ou ministérios, sem usar a
violência para impor suas opiniões. Era apenas ele, uma equipe variável de atores, cenários — e
maquiagens — propositalmente simples (alguns diriam: "toscos") e, como se diz por aí, "uma
câmera na mão".
Em 22 de Agosto, Olavo estava a todo vapor, com três projetos, sendo que, pela primeira vez, fazia
um sob encomenda. Após um tempo, trocamos mensagens em começo de setembro sobre seu
projeto sobre o custo dos impostos (algo chamado de "personal fiscal", conforme se vê no catálogo
da produtora informal). O que se segue abaixo foi a última troca de mensagens que tivemos.
To: Olavo Rocha
http://www.deolhonoimposto.com.br/
 
Olavo Rocha Fri, Sep 4, 2009 at 12:18 PM
To: "Claudio Shikida"
boa!!
Olavo Rocha Fri, Sep 4, 2009 at 12:23 PM
To: "Claudio Shikida"
eu consegui
achei o percentual da cerveja
só não vi do perfume
 
A partir daí eu só aguardava o próximo vídeo dele — um sobre a famosa falácia da vidraça
quebrada de Frédéric Bastiat — cujo trailer já havia me deixado muito curioso. Foi então que,
ontem, 01 de Novembro, eu recebi a notícia de que Olavo teria decidido permanecer vivo apenas
em nossas memórias e corações.
Minha convivência com ele, como se vê, não foi tão longa assim. Por algumas vezes eu pensei em
viajar ao Rio de Janeiro para, dentre outras, conhecer alguns amigos pessoalmente. Talvez a tristeza
que eu sinta agora seja uma prova cabal de que os catastrofistas do início da Internet estavam
errados. A rede de computadores não isola as pessoas e/ou destrói as relações humanas: as pessoas,
sim, elas mesmas, é que criam e desfazem amizades. Nunca vi o Olavo, mas ele me ajudou a
realizar um sonho: o de ser parte da criação de um empreendimento cinematográfico — amador e
humilde, mas ainda assim um empreendimento.
O que acontecerá com a Fonft eu não sei, mas Olavo conseguiu provar o que penso ser o mais
importante argumento a guiá-lo por todos estes filmes: o de que um indivíduo pode fazer toda a
diferença. O título deste texto é, talvez, a frase que mais me lembro de um de seus educativos
vídeos sobre economia.
Para terminar, faltou apenas enviar um último e-mail para ele com uma única frase:
Até mais, Olavo.
 
Originalmente publicado em: http://tireamaodaminhalinguica.wordpress.com/2009/11/02/nao-se-
deixe-levar-pelo-obscurantismo-dizia-ele/

Charles James Fox

Tempos de guerra fornecem as mais árduas provas para os defensores da liberdade. É durante a
guerra que governos em toda parte tendem a censura, prisão e até mesmo executam opositores.
Charles James Fox se tornou uma lenda por defender a liberdade durante as duas grandes guerras.
Caso único entre grandes figuras políticas britânicas, ele passou quase toda a sua carreira
parlamentar — trinta e oito anos — na oposição. O rei George III via Fox como talvez o seu mais
perigoso adversário, chamando-o "tão desprezível, como odioso". Samuel Johnson, ícone literário,
questionou “se a nação deveria ser regida pelo cetro de George III ou pela língua de Fox”.
John Russel, um dos sucessores intelectuais de Fox, notou que aquela era sua missão “reivindicar
,com sucesso parcial, mas com brilhante capacidade, a causa da liberdade e os interesses da
humanidade. Ele resistiu à insana perseverança de Lord North no projeto de dominar a América. Ele
se opôs à guerra empreendida por Mr. Pitt contra a França tendo-a como desnecessária e injusta. Ele
mostrou-se sempre amigo da liberdade religiosa, e empenhou-se em libertar as dissidências
Protestante e Católica Românica de deficiências, em virtude de sua fé religiosa. Ele denunciou o
tráfico de escravos e apoiou em todos os momentos a reforma da Câmara dos Comuns."
Thomas Macaulay, o mais fervoroso cronista da liberdade Inglesa, referiu-se a Fox como "o grande
homem cujo poderoso esforço na causa pela paz, pela verdade e pela liberdade, tornou seu nome
imortal". Macaulay denominou Fox, simplesmente de "o maior defensor parlamentar da liberdade
civil e religiosa.
Fox ganhou influência em parte porque ele fazia amigos facilmente. Ele era alegre, carinhoso,
generoso, e amável. "Eu passei duas noites com ele", escreveu Tory wit George Selwyn", e nunca
ninguém foi tão agradável, ainda que isto não tenha sido sua pretensão." Edward Gibbon, famoso
historiador do declínio da Roma antiga , observou: "Talvez nenhum ser humano fora perfeito, isento
da mácula da maldade, vaidade, ou falsidade".
Mais do que a maioria dos outros homens de sua época, Fox foi generoso para com as mulheres. O
biógrafo George Otto Trevelyan explicou, "Sua noção de verdadeira galanteria era tratar as
mulheres como seres que se situavam no mesmo plano intelectual que o dele; dar a elas o melhor de
seus pensamentos e seu conhecimento, bem como de seu humor e sua eloqüência; solicitar, e
ponderar seus conselhos em épocas de dificuldade, e se elas o instassem a romar um caminho que
sua consciência os seu julgamento reprovassem, não iludi-las com brincadeiras desdenhosas, mas
convencê-las pela fala e advertência (...). Existiram poucos maridos melhores do que Fox, e
provavelmente nenhum tão encantador; pois nenhum homem jamais se dedicou tanta energia a
agradar e fazer feliz uma esposa".
Se não fosse por seu jeito selvagem, Fox poderia bem ter dirigido um ministério e ter tido a mais
direta influência sobre os acontecimentos em vez de dispender tantos anos na oposição. Durante a
sua juventude, Fox consumiu muito álcool e, dizem ainda, penhorou seu relógio de ouro por uma
cerveja. Apesar disso, ele não ficava bêbado com frequência, pois queria ficar sóbrio o suficiente
para o jogo. Ele se tornou um habilidoso apostador nas pistas de corrida. O problema foi que ele
perdeu ainda mais dinheiro com as cartas, e ainda, dinheiro emprestado de amigos e de agiotas.
Suas perdas excederam a 140,000 £, uma soma espantosa, e, a certo ponto, os credores apreenderam
sua mobília.
Fox esteve entre as mais famosas — e mais frequentemente caricaturadas — faces inglesas de sua
geração. "Era impossível contemplar os contornos de seu rosto", lembra um observador, “sem
perceber de imediato a marca do gênio. Sua feição escura, dura e triste ... derivada de uma espécie
de majestade pela da soma de duas sobrancelhas negras e lanudas, que por vezes ocultavam, mas,
mais freqüentemente desenvolviam os trabalhos de sua mente. Mesmo tais feições, no entanto, raro
assumiam as expressões de raiva ou inimizade. Elas frequentemente e naturalmente relaxavam em
um sorriso, efeito que se tornou irresistível, pois parecia ser sinal de um temperamento benevolente
e complacente. Sua figura, grande, pesada e inclinada à corpulência, parecia destituída de elegância
e graça, salvo a parcela que a conferia em virtude das emanações de seu intelecto, que às vezes
conferiam a sua pessoa como um todo, quando ele falava, a animação mais desapaixonada".
Muitos dos discursos de Fox perderam-se para a posteridade, mas eles inspiraram frenesi em grande
quantidade. Por exemplo, Herr Moritz, um pastor de origem alemã, ao visitar o Parlamento,
lembrou: "É impossível para mim descrever com que fulgor e persuasiva eloqüência ele falou, e
como o Orador, em sua cadeira, incessantemente, acenou com a cabeça por debaixo de sua
respeitosa peruca, e inúmeras vozes incessantemente gritavam "ouçam-no, ouçam-no!" E quando
havia o menor sinal de que ele pretendia parar, com não menos veemência, exclamavam:
"continue"; e assim ele continuou a falar por quase duas horas ".
É difícil acreditar em todos os superlativos de Fox, mas eles certamente sugerem que ele tinha uma
notável capacidade de tocar os corações das pessoas. Henry Brougham, que se juntou a luta de Fox
contra a escravidão, considerou-o "se não o maior orador, certamente o mais talentoso debatedor
que já apareceu sobre os palcos do teatro dos assuntos públicos, em qualquer época do mundo". E
Macaulay deixou claro que Fox era "o debatedor mais brilhante e poderoso que já existiu".
Charles Fox James nasceu na 9ª avenida, Westminster, Londres, em 24 de janeiro de 1749. Ele era o
terceiro filho do valente e corrupto Henry Fox, que se enriqueceu como tesoureiro-geral, muito
possivelmente o lugar mais lucrativo do governo Britânico. A mãe de Charles, Georgiana Caroline
Lennox, era uma aristocrata.
Fox entrou no Hertford College, em Oxford, em outubro de 1764. Durante seus dois anos lá, ele
adquiriu um amor pela leitura da literatura clássica que o acompanhou até o último dia de sua vida.
Depois de Oxford, Fox passou dois anos viajando pela Europa. No caminho de volta, ele parou em
Genebra, para visitar Voltaire, que lhe recomendou alguns livros.
Preocupado com seu filho à deriva, Henry Fox arranjou para que ele fosse eleito membro do
Parlamento de Midhurst, um dos muitos bairros endinheirados e controlados por uns poucos
aristocratas (O Parlamento era muito mais um clube exclusivo, com 558 membros que proteger seus
privilégios). Charles tomou posse em Novembro de 1768.
Em julho de 1774, seu pai e sua mãe morreram. Seu irmão mais velho, Stephen, morreu em
novembro do mesmo ano. Charles foi deixado com uma renda anual e herança, que ele logo perdeu
nas mesas de jogo.
Resistindo ao rei George III e ao clientelismo-dirigido dos Whigs no Parlamento, Fox adotou
princípios libertários. Isto o tornou num compatriota dos reformadores Charles Wentworth, Lord
Rockingham. Fox foi inspirado pelo secretário particular dublinense de Lord Rockingham, Edmund
Burke, um homem alto, que falava com um sotaque irlandês, e que foi por duas décadas seu
superior. O pai de Burke era um advogado protestante, sua mãe era católica, e seu melhor professor
era um religioso. Burke não era um grande orador, na verdade, seus discursos, que às vezes eram de
três horas, esvaziavam os lugares no Parlamento. Mas ele havia adquirido um profundo
conhecimento de história, que lhe deu uma perspectiva valiosa, e ele desenvolveu uma apaixonada
carreira. Ele pediu tolerância religiosa para os católicos irlandeses, apoiou o livre comércio,
favoreceu a quebra de sigilo dos procedimentos parlamentares, expressou sua indignação quando
uma multidão assassinou dois homens condenados por contato homossexual, e defendeu o direito
dos eleitores de Middlesex que tinham, por quatro vezes, escolhido o impressor rebelde John Wilkes
para representá-los no Parlamento.
Então, veio o ? ?pico debate sobre como pagar as dívidas da Guerra dos Sete Anos (1756-1763). O
objetivo desta guerra foi defender as colônias americanas dos franceses, mas, os colonos — cerca
de 2 milhões deles na época — viam os impostos propostos como tributos ao império britânico, cuja
principal característica era o exasperante sistema mercantilista em que os comerciantes britânicos
reservavam as colônias como seu exclusivo território. Se alguém em Rhode Island queria comprar,
digamos, chapéus de Virgínia, ele tinha que passar pelos comerciantes britânicos. O resultado de
tais restrições foi o contrabando generalizado. Além disso, cada colônia tinha sua própria
assembleia eleita e não aceitava a supremacia do Parlamento sobre os seus assuntos.
Burke se opôs aos regimes para taxar as colônias americanas, pois acreditava que os impostos
propostos eram injustos. Eles renderiam pouca arrecadação e despertariam rebeliões. Depois que os
regimes foram promulgadas, Burke pediu sua revogação. Os selos de impostos do Chanceler do
Tesouro, George Grenville (1765) — cerca de cinquenta impostos sobre jornais e documentos legais
— provocaram uma tempestade de protestos, sendo repelida em um ano. Então, em 1767, vieram os
impostos do chanceler do Tesouro, Charles Townshend, sobre o chá e outros artigos, provocando a
Boston Tea Party, o que levou ao bloqueio britânico de Boston, oposto por Burke.
Fox trabalhou para se tornar mais eficaz orador e debatedor da Câmara dos Comuns. Ele treinava
suas habilidades falando, pelo menos, uma vez por dia, rejeitando o estilo tradicional de utilização
de metáforas floreadas, extensas citações e alusões às antiga Grécia e Roma, um estilo praticado por
William Pitt, que tinha sido um influente membro do Parlamento por três décadas. Fox era
espontâneo, direto e apaixonado. Devagar e sempre ele martelava a ministério de Lord North. In
1775, ele denunciou a suspensão do habeas corpus, um baluarte das liberdades civis. Em 2 de
fevereiro de 1777, ele advertiu que a Grã -Bretanha poderia perder a guerra e que o envio de mais
tropas poderia deixar a Grã-Bretanha sem defesas contra a França. Após a rendição britânicos em
Yorktown, Fox insistiu que o reconhecimento da independência americana deveria ser dada de
forma incondicional, e não realizada como um acordo de paz.
Vestida com um uma casaca azul e um colete amarelo, cores mais tarde adotadas pelo partido Whig,
bem como pelo jornal Whig Edinburgh Review — Fox defendeu a reforma liberal durante os anos
1780. Por exemplo, ele defendia a tolerância religiosa completa. Isso significava ampliar a Lei de
Tolerância (1689), que exigia que, para servir legalmente como um clérigo, um dissidente religioso
deveria reconhecer a divindade de Cristo, uma medida destinada, especificamente, aos unitaristas.
Fox também favoreceu a abolição de testes religiosos para excluir os dissidentes de cargos políticos.
Apesar de parecer que Fox apoiava a Igreja da Inglaterra, ele se opôs a usar a coerção nesse sentido.
Como ele declarou em 1787: "Foi uma decisão irreverente e ímpia manter que a igreja deveria
depender do apoio de um mecanismo ou aliado do Estado, em vez da prova de suas doutrinas,
encontradas nos estudos das escrituras, e dos efeitos morais que elas produzem nas mentes daqueles
a quem se confere o dever de instruir".
Fox apoiou a campanha do colega William Wilberforcecom o fim de abolir o tráfico de escravos e
propôs que isto deveria ter prosseguimento sob a regulamentação do governo, consoante a uma
síntese do debate no Parlamento.
Em maio de 1789, "ele não queria saber de regulamento de roubos ou havia restrição de homicídios.
Não havia meio termo; o legislativo deveria ou abolir o comércio ou confessar a sua própria
incriminação ".
O principal adversário do Fox foi William Pitt, o jovem que serviu como primeiro-ministro de 1784
a 1802. Pitt era um homem alto, magro, de rosto frequentemente assolado por ansiedade e cabelo
quase branco nos seus últimos anos. Leal ao rei, ele mostrou mais integridade do que a maioria dos
outros políticos, declinando oportunidades de enriquecimento fácil no governo. Ele se disciplinou,
sendo totalmente dedicado ao seu trabalho, rigidamente formal e legal em meio a uma crise — e ele
raramente se esquecia de rancores, incluindo as desavenças com a Fox. Eles apresentaram um
dramático contraste, como o debatido na House of Commons. "Fox, com sua áspera, eletrizante voz
e fala ligeira", relatou o biógrafo Edward Lascelles "derramou seus argumentos em uma torrente
impetuosa de urgência, enquanto Pitt apresentou a sua defesa com precisão impecável segurança".
Como um observador lembrou, "o Sr. Pitt concebe suas sentenças antes de proferi-las. Fox lança-se
no meio dele, e deixa que o Deus Todo-Poderoso o retire de lá".
Nesse meio tempo, Fox se apaixonou por uma mulher alta, elegante, dois anos mais nova que ele.
Ela chamava a si mesma por “Sra. Armistead", embora não pareça ter havido um Sr. Armistead. Ela
estaria ligada a “um notório estabelecimento” em Londres, e mais tarde tornou-se amante de um
duque. Durante o início de 1770, ela e Fox estabeleceram um lar feliz e se casaram secretamente em
28 de setembro de 1795. Eles foram viver nos trinta hectares de terra a ela pertencentes, nas colinas
de Santana, perto de Londres.
Facções políticas começaram a se movimentar depois de 14 de julho de 1789, quando uma turba
enfurecida invadiu a Bastilha, iniciando a Revolução Francesa. Em janeiro de 1790, Burke apareceu
na Câmara dos Comuns para lançar suas primeiras ressalvas contra "os excessos de uma democracia
irracional, sem princípios, proscrita, confiscada, feroz, sangrenta e tirânica". Ele denunciou a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão como um "resumo da anarquia". Fox respondeu
discretamente, na esperança de evitar uma ruptura dolorosa com Burke. Ele afirmou que ele tinha
"aprendido mais com seu colega de direito do que com todos os homens com quem ele já havia
conversado". Ele então enfatizou que ele era "o inimigo de todas as formas de governo absoluto,
seja através de uma monarquia, uma aristocracia, ou uma democracia absoluta".
Depois veio panfleto explosivo de Burke, Reflexions on the Revolution in France [Reflexões sobre
a Revolução na França], publicado em Novembro de 1790. Ele declarou que, antes da Revolução, o
corrupto governo francês "tinha todos os elementos de uma constituição quase tão boa quanto se
poderia desejar". Burke passou a clamar pela guerra contra a França para impedir que a revolução
se difundisse. No início, poucos ingleses estavam interessados, embora o primeiro-ministro Pitt
estivesse pensando em guerra para por fim à expansão da Rússia pela Turquia.
Os dois homens haviam se distanciado. Fox favorecia a reforma do Parlamento; Burke era contra.
Fox reviveu uma proposta para pôr fim à exigência aos candidatos a cargos políticos de jurar
fidelidade à Igreja da Inglaterra; Burke era contra (vários protestantes dissidentes eram “homens de
princípios sectários e perigosos, alertou ele). Em 1791, Fox elogiou a nova constituição francesa,
cuja elaboração contou com a participação de defensores leais da liberdade como Lafayette e
Condorcet. Burke lamentou que Fox “tivesse rasgado todo o curso de vida pública e privada com
um considerável grau de aspereza”. Fox chorava, chocado com a ideia de que Burke, de forma
súbita e pública, acabaria com sua amizade que já durava um quarto de século. Fox se desculpou de
suas “palavras precipitadas e imprudentes” e ofereceu “se afastar do caminho de seu ilustre amigo”.
Fox tentou uma reconciliação quando Burke agonizava em julho de 1797, mas a esposa deste o
afastou.
Enquanto Burke promovia a histeria, Fox lutava pela liberdade. Há muito tempo ele se preocupava
com a liberdade de expressão, especialmente com as restrições impostas pela lei de difamação. O
ônus da prova cabia ao réu. Os juízes, e não júris, tinham o poder de decidi r se houve ou não a
configuração da difamação, e, uma vez que os juízes eram ligados ao governo e à igreja, eles
sempre consideravam como difamatórios os ataques a ambos. Fox acreditava que o ônus da prova
deveria ser do governo, querendo, com isso, tornar mais difícil a condenação por difamação.
Consequentemente, em maio de 1791, apresentou um projeto de lei tratando da difamação que daria
aos jurados o poder de decidir não apenas os fatos sobre se algo foi publicado mas, também, se
houve a difamação. Esse projeto de lei foi aprovado e assinado pelo rei em 01 de junho de 1792.
Determinado a silenciar os dissidentes, entretanto, o governo alegou mais casos de difamação nos
dois anos seguintes à aprovação do que durante todo o século XVIII. Os jurados salvaram muitos
réus da forca ou do banimento para a Austrália.
As esperanças generosas de Fox para a França ruíram conforme a revolução fugia de controle. Por
volta de setembro de 1792, o governo central francês era controlado pela convenção, uma
assembleia que operava se um equilíbrio ou uma harmonia efetiva. Seus líderes jacobinos iniciaram
uma guerra na Europa. Isso acelerou a tendência em direção à centralização ilimitada na França,
atingindo o apogeu com o Reino do Terror, quando aproximadamente quarenta mil pessoas foram
assassinadas.
Apesar das terríveis advertências de Burke, não havia muitas evidências de agitações
revolucionárias na Inglaterra, mas a histeria da guerra conduziu Pitt a realizar um grande ataque
contra as liberdades civis. Em 1794, o Parlamento aprovou a lei suspendendo o habeas corpus,
autorizando “sua majestade a prender pessoas suspeitas de conspirar contra sua pessoa e o
governo”. No ano seguinte, o Parlamento aprovou a Lei das Práticas Traiçoeiras e Sediciosas, que
entre outras coisas tornou ilegal “declarar quaisquer palavras ou sentenças para incitar ou aticem as
pessoas ao ódio ou ao desprezo à pessoa de sua majestade, seus herdeiros, seus sucessores ou ao
governo”. Finalmente, o Parlamento aprovou a Lei de Reuniões Sediciosas, que baniu, na prática, as
reuniões com mais de cinquenta pessoas que quisessem peticionar ao governo “sob o pretexto de se
queixar da igreja ou do Estado”. Fox conduziu a oposição a essas medidas ao longo de todo o
processo. Ele alertou que “ambos seus projetos deveriam permanecer descartados ou deveriam ser
postos em execução em circunstâncias de grandes opressões”.
Supostamente para proteger a Inglaterra contra a opressão vinda do exterior, o governo a perseguia
internamente. Ele fechou publicações e processou editores, assediou pregadores protestantes não-
conformistas e prendeu os que protestavam. A política adequada, declarou Fox, seria aquela que
diminuísse a interferência do governo na vida, nada mais. “Eu iria imediatamente revogar a Lei de
Teste e Corporação e tirar (dos dissidentes), por esse passo, todos os motivos de descontentamento.
Se houvesse quaisquer pessoas com um espírito republicano, porque eles pensavam que o governo
representativo era mais perfeito em uma república, eu me esforçaria para alterar a representação dos
Comuns e para mostrar que a Câmara dos Comuns, embora não escolhida por todos, deveria ter
como único interesse provar a si mesma que representa a todos. Se houvessem homens insatisfeitos
na Escócia ou na Irlanda, ou em qualquer outro lugar, por causa de deficiências e isenções, ou por
causa de prejuízos injustos e de restrições cruéis, eu revogaria os estatutos penais, que são uma
desgraça para nossos livros de direito”.
Por volta de maio de 1797, o apoio às políticas de guerra de Pitt se tornou esmagador. O número
dos que apoiavam Fox no Parlamento diminuiu para cerca de 25, comparado com os cerca de 55,
em 1794, e 90, durante os anos 1780. Fox parou de ir ao Parlamento e passava o tempo
principalmente na St. Anne’s Hill, lendo e praticando a jardinagem. Não obstante, ele olhava para
trás com orgulho: “É um grande conforto para mim, refletir o quão firmemente eu me opus a essa
guerra, pois os infortúnios que ela provavelmente vai produzir não têm fim”.
Fox retornou ao Parlamento por tempo suficiente para um arroubo de glória. Após a morte de
William Pitt, em 23 de janeiro de 1806, Fox foi a principal figura política da época, e ele não
poderia mais ser excluído de um ministério. Ele aceitou o posto de secretário de estado.
Trabalhando com Wilberforce e outros, Fox apresentou um projeto de lei que tornaria ilegal para o
cidadão britânico comerciar escravos sob uma bandeira estrangeira ou assentar um navio negreiro
estrangeiro em um porto britânico. Promulgada na primavera de 1806, essa medida tinha o potencial
de aniquilar três-quartos do comércio negreiro da Grã-Bretanha. Em seguida, Fox buscou um
compromisso parlamentar com a abolição total. Em 10 de junho de 1806, ele mostrou sua decisão:
“Esta casa, concebendo o comércio de escravos africanos como contrário aos princípios da justiça,
da humanidade e da política incólume, procederá, com todas as expedições possíveis, no sentido de
tomar medidas eficazes para abolir o dito negócio”. A Câmara dos Comuns se posicionou a favor,
com um resultado de 114 a 15, e a Câmara dos Lordes concordou em 25 de junho. “Se, durante os
quase quarenta anos durante os quais tenho tido a honra de ter uma cadeira na Parlamento”,
observou Fox, “eu tivesse sido feliz em realizar aquilo, e somente aquilo, eu pensaria que havia
feito o suficiente e poderia me aposentar da vida pública com conforto e com uma satisfação
consciente de que eu cumpri o meu dever”.
O próximo passo seria apresentar o projeto da abolição, mas a saúde de Fox deteriorou durante o
verão de 1806, fazendo com que outros tivessem de continuar a luta. Seus braços e pernas incharam
e ele sofria de exaustão crônica. Ele foi convencido a deixar os médicos fazer dolorosas
“drenagens”, provavelmente, esforços para extrair o excesso de fluido. Por dias, em sua casa em
Londres, ele repousava apático em uma espreguiçadeira enquanto sua esposa lia em voz alta Virgil,
John Dryden, Jonathan Swift e outros autores favoritos. Em 13 de setembro de 1806, disse umas
poucas palavras enigmáticas para sua esposa: “Isso não significa, minha querida, querida Liz”, e
morreu naquela tarde. Ele foi enterrado no dia 10 de outubro, próximo a William Pitt, na abadia de
Westminster.
Enquanto voz valente da oposição por quase toda a sua carreira, Fox viu poucos de seus sonhos se
tornarem realidade; não obstante, ele fez sérias investidas em prol da liberdade. Ele manteve o
espírito da liberdade vivo quando o governo estava determinado a aniquilá-lo e obteve importantes
vitórias. Inspirou os partidos Whig e Liberal, que muito fizeram para tornar o século XIX o período
mais livre e pacífico da história da humanidade. Afirmava que as pessoas que teimosamente
discursavam contra a opressão podem ser livres.

François Quesnay

François Quesnay foi a principal figura entre os Fisiocratas, geralmente considerados a primeira
escola de pensamento econômico. O nome "Fisiocrata" vem das palavras gregas phýsis, que
significa "natureza", e kràtos, que significa "poder". Os Fisiocratas acreditavam que o poder de uma
economia vinha de seu setor agrícola. Eles queriam que o governo de Luís XV, que governou a
França de 1715 a 1774, desregulamentasse e reduzisse impostos sobre a agricultura francesa, de
modo que a França, país pobre, pudesse imitar a Inglaterra, mais rica, que tinha uma política
relativamente laisse-faire. De fato, foi o próprio Quesnay quem cunhou a expressão "laissez-faire,
laissez-passer" ("deixe fazer, deixe passar").
Quesnay não publicou seus escritos antes dos sessenta anos. Seus primeiros trabalhos apareceram
somente como artigos de enciclopédia em 1756 e 1757.
Em seu Tableau économique, ele descreveu em detalhes seu famoso diagrama em zigue-zague, um
diagrama de fluxo circular da economia que mostrava quem produzia o quê e quem gastava o quê,
em uma tentativa de entender e explicar as causas do crescimento econômico. O Tableau definia
três classes: os proprietários rurais, os fazendeiros, e outras — consideradas classes "estéreis" —
que consumiam tudo que produziam e não deixavam excedente para o próximo período. Quesnay
acreditava que somente o setor agrícola poderia produzir um excedente que pudesse então ser usado
para produzir mais no ano seguinte — e com isso auxiliar o crescimento. A indústria e a
manufatura, segundo ele, eram estéreis. O interessante, no entanto, é que ele não chegou a essa
conclusão consultando sua tabela. Na verdade, Quesnay construiu-a de modo a confirmar sua
crença. E de fato, ele teve que torná-la incoerente para que se adequasse à premissa de que a
indústria não produzia excedente.
Embora Quesnay estivesse errado sobre a esterilidade do setor manufatureiro, ele estava certo em
atribuir a pobreza da França ao mercantilismo, que ele chamava de Colbertismo (por causa do
ministro das finanças de Luís XV, Jean-Baptiste Colbert). O governo francês havia protegido
manufatureiros franceses da competição estrangeira, aumentando assim o custo das máquinas para
os fazendeiros, além de haver vendido a cidadãos ricos o poder de cobrar tributos dos fazendeiros.
Esses cidadãos, então, abusavam esse poder.
Quesnay defendia a reforma de tais leis, consolidando e reduzindo impostos, livrando-se de
portagens e outras regulamentações que impediam o comércio com a França, e de maneira geral
livrando a economia do controle sufocante do governo. Essas reformas eram muito mais razoáveis
do que suas teorias sobre a esterilidade da indústria. Como escreveu Mark Blaug, "Foi apenas o
esforço de oferecer essas reformas com um argumento teórico claro que produziu alguns dos
raciocínios forçados e conclusões levemente absurdas que eram expostas ao ridículo até mesmo
pelos contemporâneos. [1]
Além disso, a obra de Quesnay abriu o caminho para a economia clássica — em particular Adam
Smith, que se agarrou às noções fisiocratas de livre comércio e da preeminência do setor agrícola.
Que Quesnay tenha tido influência tão fundamental sobre a economia é ainda mais surpreendente
quando se considera que ele serviu Luís XV em Versalhes não como economista, mas como médico.
 
Notas
[1] BLAUG, Mark. Great Economists before Keynes. Atlantic Highlands, N.J.: Humanities Press
International, 1986, p. 196.

David Ricardo

David Ricardo foi um dos raros casos em que uma pessoa atingiu enorme sucesso e também fama
perene. Após ser deserdado por sua família por se casar fora de sua fé judaica, Ricardo fez fortuna
como corretor de ações e empréstimos. Ao seu falecimento, o patrimônio de Ricardo valia mais de
US$100 milhões em dólares de hoje. Aos 27 anos, tendo lido A Riqueza das Nações de Adam
Smith, Ricardo se interessou por economia. Ele escreveu seu primeiro artigo sobre economia com
37 anos, e durante os 14 anos que se seguiram — seus últimos — foi economista profissional.
Ricardo despertou a atenção dos economistas com a controvérsia do bulionismo. Em 1809, ele
escreveu que a inflação na Inglaterra era resultado da propensão do Banco da Inglaterra a emitir
excesso de papel-moeda. Em resumo, Ricardo esteve entre os primeiros adeptos da teoria
quantitativa do dinheiro, ou do que é hoje conhecido como monetarismo.
Em seu Essay on the Influence of a Low Price of Corn on the Profits of Stock [Ensaio sobre a
influência de um preço baixo do milho sobre os lucros com ações] (1815), Ricardo articulou o que
veio a ser conhecido como a lei da produtividade marginal decrescente. Uma das leis mais famosas
da economia, afirma que conforme mais e mais recursos são combinados na produção com um
recurso fixo — por exemplo, conforme mais mão-de-obra e maquinário são usados em uma
quantidade fixa de terras — os acréscimos ao resultado vão diminuir.
Ricardo também se opõe ao protecionismo das Leis do Milho, que restringiam a importação de
trigo. Na sua defesa do livre comércio, Ricardo formulou a idéia do custo comparativo, hoje
conhecida como vantagem comparativa — uma idéia muito sutil que é o principal fundamento da
crença no livre mercado pela maior parte dos economistas hoje. A idéia é a seguinte: um país que
compra os produtos que pode obter a um custo mais baixo se beneficia mais do que se os produzisse
ele próprio.
Digamos, por exemplo, que a Pobrelândia produz uma garrafa de vinho com cinco horas de
trabalho, e uma fornada de pão com dez horas. Os trabalhadores de Ricolândia, por outro lado, são
mais produtivos. Conseguem produzir uma garrafa de vinho com três horas de trabalho, e uma
fornada de pão com uma hora. Pode-se imaginar que Ricolândia, por produzir ambos os bens em
menos tempo de trabalho, não se beneficia em nada com o comércio.
Não é o caso. O custo da produção de vinho da Pobrelândia, embora mais alto do que a de
Ricolândia em termos de horas de trabalho, é mais baixo em termos de pão. Para cada garrafa
produzida, Pobrelândia renuncia a meia fornada de pão, enquanto Ricolândia tem que abrir mão de
três fornadas para produzir uma garrafa de vinho. Portanto, Pobrelândia tem a vantagem
comparativa na produção de vinho. De modo semelhante, para cada fornada de pão que produz,
Pobrelândia abre mão de duas garrafas de vinho, mas Ricolândia, de apenas um terço de garrafa.
Portanto, Ricolândia tem a vantagem comparativa na produção de pão. Se os dois países trocarem
pão e vinho a unidade por unidade, Pobrelândia pode se especializar na produção de vinho e
comerciar parte dele para Ricolândia, que pode então se especializar na produção de pão. Tanto
Pobrelândia quanto Ricolândia estarão em situação melhor do que se não comerciassem. Ao
realocar, digamos, dez horas de trabalho antes gastas na produção de pão, Pobrelândia abre mão da
fornada que esse trabalho poderia ter produzido. Mas a mão-de-obra realocada produz duas garrafas
de vinho, que podem então ser trocadas por duas fornadas de pão. Resultado: o comércio rende para
Pobrelândia uma fornada adicional. E Pobrelândia não está lucrando às custas de Ricolândia.
Ricolândia também se beneficia, ou não comerciaria. Ao realocar três horas antes gastas na
produção de vinho, Ricolândia diminuiu a produção da bebida, mas aumenta a produção de mão em
três fornadas. Duas dessas fornadas então são trocadas por duas garrafas de vinho de Ricolândia.
Ricolândia tem uma garrafa a mais do que antes, além de mais uma fornada de pão.
Esses ganhos surgem, como observou Ricardo, porque cada país se especializa na produção do bem
cujo custo comparativo é menor.
Tendo produzido um século antes que Paul Samuelson e outros economistas modernos
popularizassem o uso de equações, Ricardo é ainda hoje admirado por sua impressionante
capacidade de chegar a conclusões complexas sem nenhuma das ferramentas matemáticas hoje
consideradas essenciais. Como escreveu o economista David Friedman em seu livro-texto de 1990,
Price Theory [Teoria do Preço], "O economista moderno, ao ler o Principles de Ricardo, se sente
como um membro de uma expedição no Monte Everest se sentiria se, ao chegar ao topo da
montanha, encontrasse um andarilho usando camiseta e tênis."[1]
Uma das principais contribuições de Ricardo, atingida sem ferramental matemático, é sua teoria de
aluguéis. Inspirando-se em Thomas Malthus, com quem Ricardo tinha uma relação próxima e,
freqüentemente, discordâncias radicais, Ricardo explicou que, conforme se cultivavam mais terras,
os fazendeiros eventualmente chegariam às terras menos produtivas. Mas como um alqueire de
milho da terra mais produtiva é vendido pelo mesmo preço que um alqueire da terra mais produtiva,
rendeiros se disporiam a pagar mais para alugar a terra mais produtiva. Resultado: os donos das
terras, e não os rendeiros, são os que se beneficiam das terras mais produtivas. Essa descoberta
resistiu ao teste do tempo. Economistas ainda hoje usam o raciocínio de Ricardo para explicar por
que os auxílios de preços agrícolas ajudam não aos fazendeiros, mas aos donos das terras. Usa-se
também um raciocínio similar para explicar por que os beneficiários das leis que restringem o
número de táxis não são os motoristas de táxi, mas os donos do conjunto finito dos alvarás que
existiam quando se impôs a restrição.
 
Notas
[1] FRIEDMAN, David D.. Price Theory: An Intermediate Text. 2ª ed.. Cincinnati: South-Western
Publishing, 1990. p. 618.

Jeremy Bentham

O economista britânico Jeremy Bentham é em geral associado à sua teoria do utilitarismo, a idéia de
que todas as ações sociais devem ser avaliadas pelo axioma "A medida de certo e errado é a maior
felicidade para o maior número". Contrariamente à visão de Adam Smith sobre "direitos naturais",
Bentham acreditava que nem sequer havia direitos naturais com os quais interferir.
Formado em direito, Bentham jamais exerceu a profissão, escolhendo, em vez disso, enfocar
reformas judiciais e legais. Seus planos de reforma iam além da reescrita de atos legislativos,
incluindo planos administrativos detalhados para a implementação de suas propostas. Em seu plano
para prisões, reformatórios e outras instituições, Bentham inventou esquemas de compensação,
elaborando plantas, horários de trabalho, e até mesmo novos sistemas contábeis. Um princípio
norteador dos planos de Bentham era que os incentivos deveriam ser arquitetados para "fazer com
que seja interesse de cada homem observar em cada ocasião a conduta que é seu dever observar".
Curiosamente, o raciocínio de Bentham o levou à conclusão, em que concordava com Smith, de que
os professores não devem ser assalariados.
No início de sua carreira, Bentham defendia uma posição liberal. Afirmava, por exemplo, que as
taxas de juros não deveriam ser controladas pelo governo (ver Defence of Usury ["Defesa da
usura"]). Ao fim de sua vida, adotou uma postura mais intervencionista. Antecedeu Keynes em sua
defesa de políticas monetárias expansionistas para atingir o pleno emprego, e defendeu diversas
intervenções, como o salário mínimo e a garantia de emprego.
Em vida, Bentham publicou poucas obras, mas influenciou muitos, e viveu para ver algumas de
suas reformas políticas realizadas pouco antes de sua morte, em Londres, aos oitenta e quatro anos.

Carl Menger

Carl Menger tem a dupla distinção de ser o fundador da economia austríaca e um co-fundador da
revolução da utilidade marginal. Menger trabalhou separado de William Jevons e Leons Walras, e
chegou a conclusões semelhantes, mas por um método diferente. Ao contrário de Jevons, Menger
não acreditava que bens proporcionavam “utilidades” ou unidades de utilidade. Em vez disso,
escreveu que as mercadorias são importantes, pois servem a usos diversos, cujas importâncias se
diferem. Por exemplo, os primeiros baldes de água são utilizados para satisfazer as mais
importantes práticas, e os baldes seguintes são usados em fins cada vez menos importantes.
Menger usou essa idéia para solucionar o paradoxo entre a água e o diamante que confundiu Adam
Smith (ver marginalismo). Ele também a usou para refutar a teoria de valor do trabalho. Bens
adquirem seus valores, demonstrou, não pela quantidade do trabalho empregado na produção, mas
devido a sua capacidade de satisfazer as carências das pessoas. Menger virou do avesso a teoria do
valor do trabalho. Se o valor dos bens é determinado pela importância das carências satisfeitas,
então o valor do trabalho e de outros insumos de produção (que ele chamou de “bens de ordem
superior”) deriva de sua capacidade de produzir esses bens. A principal corrente de economistas
ainda aceita essa teoria, chamando-a de teoria de “teoria da demanda derivada”.
Menger usou sua “teoria subjetiva do valor” para chegar a um dos principais insights na economia:
ambos os lados ganham com a troca. As pessoas trocarão algo a que dão menos valor por algo a que
dão mais valor. Como as duas partes do contrato fazem isso, ambas saem ganhando. Essa percepção
o levou a ver que os intermediários são altamente produtivos: eles facilitam operações que
beneficiam tanto as pessoas que compram quanto aquelas que vendem. Sem intermediários, essas
transações não teriam ocorrido, ou teriam sido mais dispendiosas.
Menger também chegou a uma explicação para o desenvolvimento do dinheiro que é aceita ainda
hoje. Se pessoas trocam, assinalou, então elas raramente podem conseguir o que querem em apenas
uma ou duas operações. Se têm lâmpadas e desejam cadeiras, por exemplo, não terão
necessariamente a possibilidade de trocar lâmpadas por cadeiras, mas poderão, em vez disso, ter de
realizar algumas trocas intermediárias. Isso é trabalhoso. Mas as pessoas percebem que o incômodo
é bem menor quando barganham o que têm por algum bem amplamente aceito no mercado, e então
o utilizam para comprar o que querem. O bem que é amplamente aceito acaba se tornando o
dinheiro. Os economistas modernos afirmam que a função do dinheiro é “evitar a necessidade da
dupla coincidência de desejos”. De fato, a palavra "pecúnia" deriva do latim pecus, que significa
“gado”, que em algumas sociedades serviu como dinheiro. Outras sociedades usaram cigarros,
conhaque, sal, peles, ou pedras como dinheiro. Quando as economias se tornaram mais complexas e
ricas, elas começaram a usar metais preciosos (ouro, prata, e assim por diante) como dinheiro.
Menger estendeu sua análise a outras instituições. Argumentou que a linguagem, por exemplo,
desenvolveu-se pela mesma razão por que o dinheiro se desenvolveu — para facilitar a interação
entre as pessoas. Ele chamou essas evoluções de “orgânicas”. Nem a língua nem o dinheiro foram
desenvolvidos pelo governo.
A escola austríaca de pensamento econômico primeiro reuniu os escritos de Menger e de dois de
seys jovens discípulos, Eugen von Böhm-Bawerk e Friedrich von Wieser. Mais tarde, Ludwig von
Mises e Friedrich Hayek, economistas austríacos, usaram as idéias de Menger como ponto de
partida: Mises com sua obra sobre o dinheiro, e Hayek com a sua idéia de "ordem espontânea".
Carl Menger nasceu na Galícia, parte do Império Austro-Húngaro (atual sul da Polônia), em uma
família próspera. Tinha dois irmãos também talentosos; Anton foi filósofo e historiador jurídico
socialista, e Karl foi um matemático importante. Carl concluiu seu doutorado em Direito na
Universidade de Cracóvia, em 1867. Como resultado da publicação de seu livro Princípios de
Economia, em 1871, foi-lhe concedido um leitorado e depois uma cátedra na Universidade de
Viena, que ocupou até 1903. Em 1876, assumiu o cargo de tutor do príncipe herdeiro Rodolfo da
Áustria. Nessa qualidade, viajou por toda a Alemanha, a França, a Suíça e a Inglaterra.

Gary S. Becker

Em 1992, Gary S. Becker recebeu o Prêmio Nobel de Economia por "estender o domínio da teoria
econômica para aspectos do comportamento humano que, anteriormente, tinham sido tratados — se
é que tinham sido mesmo — por outras disciplinas das ciências sociais, como a sociologia, a
demografia e a criminologia".
As amplas e extraordinárias aplicações econômicas de Becker começaram cedo. Em 1955, ele
escreveu sua tese de doutorado na University of Chicago sobre a economia da discriminação. Entre
outras coisas, ele questionou com sucesso a visão marxista de que a discriminação ajuda a pessoa
que discrimina. Becker salientou que, se um empregador se recusa a contratar um trabalhador
produtivo, simplesmente por causa da cor da sua pele, ele perde uma oportunidade valiosa.
Resumindo, a discriminação custa caro para quem discrimina.
Becker mostrou que a discriminação será menos presente nas indústrias mais competitivas porque
as empresas que discriminam perderão sua fatia do mercado para aquelas que não discriminam. Ele
também apresentou provas de que a discriminação é mais difundida nas indústrias reguladas e,
portanto, menos competitivas. A ideia de que a discriminação custa caro para o discriminador é hoje
ponto pacífico entre os economistas, e isso se deve a Becker.
No início dos anos 1960, Becker passou a atuar na incipiente área de capital humano. Sendo um dos
fundadores do conceito (o outro é Theodore Schultz), ele salientou o que hoje, novamente, parece
ser ponto pacífico, mas que era novo na época: a educação é um investimento. A educação
acrescenta ao capital humano da mesma forma que outros investimentos acrescentam ao capital
físico. Para saber mais sobre esse assunto, veja o artigo Human Capital ["O capital humano"], de
Becker, nesta enciclopédia.
Uma das ideias de Becker é que o tempo é o maior custo de se investir em educação. Possivelmente,
essa ideia o conduziu para a sua próxima grande área, o estudo da alocação do tempo dentro de uma
família. Aplicando o conceito dos economistas do custo de oportunidade, Becker mostrou que,
como os salários de mercado subiram, o custo de ficar em casa subiria para as mulheres casadas.
Elas iriam querer trabalhar fora de casa e economizar nas tarefas domésticas comprando mais
utensílios e comidas prontas.
Nem mesmo o crime escapou da afiada mente analítica de Becker. No final dos anos 1960, ele
escreveu um artigo pioneiro que tratava da hipótese de que a decisão de cometer um crime é o
resultado da análise dos custos e benefícios de praticá-lo. Desta suposição, ele concluiu que a
melhor maneira para reduzir o crime é aumentar a probabilidade de ser punido ou tornar a punição
mais severa. Suas ideias sobre o crime, assim como suas ideias sobre a discriminação e o capital
humano, ajudaram a gerar um novo ramo da economia.
Nos anos 1970, Becker estendeu suas ideias sobre a alocação do tempo dentro de uma família
usando a maneira que a economia utiliza para explicar as decisões de se ter um filho e de educá-los,
e as de se casar e se divorciar.
Becker foi professor na Columbia University de 1957 até 1969. Exceto por esse período, ele passou
sua carreira inteira na University de Chicago, onde ele tinha compromissos tanto no departamento
de economia quanto no de sociologia. Becker ganhou o Prêmio John Bates Clark da American
Economic Association, em 1967, e foi seu presidente em 1987.

Leonard Read

Leonard começou a trabalhar em uma fazenda na pequena cidade de Hubbardston, em Michigan.


Nela, sempre havia trabalho para fazer, e Leonard logo aprendeu que não se deve perder tempo. Seu
pai morreu quando ele tinha dez anos. A partir de então, passou a ter responsabilidades de adulto.
Além dos serviços na fazenda, passou a trabalhar como balconista em uma loja local. Ao relembrar
essa época, Leonard disse que sua carga de trabalho era de 102 horas semanais.
Havia uma escola com uma sala em Hubbardston e, é claro, a igreja, aos domingos, e uma escola
cristã. Estes eram parcos recursos, mas alimentaram a cobiça de Leonard por conhecimento e lhe
proporcionaram as ferramentas básicas do aprendizado: leitura, escrita e aritmética. Passou seus
anos de ensino médio próximo ao Ferris Institute, onde se sustentou mantendo o prédio em ordem,
cuidando da fornalha e limpando o chão. Tinha um quarto e preparava sua própria refeição.
Graduou-se no Ferris e alistou-se na aeronáutica.
Durante a Primeira Guerra Mundial, o navio que levava a bordo sua tropa, o Tuscania, foi afundado
próximo à costa da Escócia. Leonard estava entre os sobreviventes e foi para uma base aérea na
Inglaterra. Após a guerra, Leonard foi enviado para a Alemanha para servir por mais um ano no
exército da ocupação. Ele tinha em torno de 20 anos de idade quando retornou para seu estado natal
e abriu um negócio de vendas no atacado em Ann Arbor. Antes de amanhecer, dirigia até o mercado
de atacado de Detroit e voltava para Ann Arbor para vender seus bens a doçarias, barracas de frutas
e similares. Era um trabalho exaustivo e doloroso, mas ele insistiu nisso até perceber que os
mercados estavam tentando lhe dizer que vender gêneros alimentícios era um mau uso de seus
talentos únicos.
Dessa forma, ele colocou sua esposa e seus dois filhos dentro de seu carro e foi para a Califórnia.
Finalmente, conseguiu um emprego na pequena Câmara de Comércio de Burlingame, localizada
fora de São Francisco, onde trabalhou tão bem que acabou sendo convidado para dirigir a Câmara
de Palo Alto, que era muito mais ativa. Agora, ele se encontrava no primeiro degrau de sua notável
carreira. Parecia que o destino cutucava em seu ombro direito.
Leonard, nesse momento, estava com, aproximadamente, 25 anos; era bonito, forte, articulado,
suave, bem vestido, enérgico e com uma boa dicção. O pacote completo era atraente tanto para
homens quanto para mulheres, especialmente devido ao fato de que se sentia que este homem tinha
ordenado seu espírito corretamente e tinha harmonizado suas prioridades. Sua dedicação era
evidente, o que o tornava ainda mais persuasivo.
O Sr. Herbert Hoover morava perto de Palo Alto e já era reconhecido como o provável candidato
republicano para disputar as eleições presidenciais dos Estados Unidos em 1928. Ele venceu, fato
que deu a Leonard um sonho impossível: por que não contratar um trem para levar uma multidão de
pessoas da Califórnia para Washington para participar da posse? Claro que essa ideia poderia ser um
fracasso; mas quando Leonard acreditava fortemente em alguma coisa, uma misteriosa alquimia
transformava, de qualquer maneira, sua visão em realidade. Pode-se presumir que Leonard entrou
em contato com seus amigos e conhecidos, recebeu algumas respostas positivas e decidiu arriscar
tudo; o pacote completo incluía um luxuoso Pullman com 16 carros, serviços e refeições de
qualidade, acompanhamento médico e um boletim mimeografado diariamente, editado por ele
próprio. Uma vez na capital da nação, haveria preços especiais em hotéis de primeira classe,
bilhetes para a parada, reservas para o baile inaugural (...) e sabe-se lá o que mais. Isso chamou a
atenção da imprensa nacional e o jovem homem de Palo Alto foi enaltecido pela sua mente
inovadora e pela sagacidade que demonstrou na execução de seus planos.
O Sr. Hoover agradeceu Leonard pelo gesto e os dois se viram ocasionalmente até a morte do ex-
presidente, em 1964. Há uma história de que o Sr. Hoover submeteu (ordenou?) um artigo para a
publicação no The Freeman — que foi recusado por Leonard. Ele, então, aceitou graciosamente a
rejeição!
A mudança seguinte de Leonard foi para Seattle, como sub-gerente da Divisão Oeste da Câmara de
Comércio dos Estados Unidos, que estendia sua jurisdição sobre a enorme cunha de nosso território
no noroeste. De lá, Leonard voltou para San Francisco como gerente da Divisão Oeste, o que talvez
fosse um presságio de que coisas maiores ainda estavam por vir.
A Califórnia é um estado de espírito ou um estado maluco — faça sua escolha. Havia —
especialmente no sul da Califórnia — um misto de entusiastas do “vamos compartilhar a riqueza”:
marxistas, socialistas, credores sociais, Townsendistas, tecnocratas, seguidores de Upton Sinclair e
similares. O New Deal, com sua miríade de agências, estava lançando seus tentáculos por todas as
direções. A Câmara de Comércio não faria nada com comunistas ou socialistas, mas sua política
tendia a favorecer programas de recuperação nacional, que pareciam estar dando uma mão a alguns
setores dos negócios, assim como oferecendo ajuda aos fazendeiros. E elas eram, para o jovem
Read, uma verdade religiosa. Se a Câmara favorecesse algumas políticas do New Deal, assim o faria
Read!
Encontrando Bill Mullendore
Mas havia na região de Los Angeles um pequeno grupo de empresários que criticavam todas as
políticas do New Deal. Seu homem mais articulado era W. C. Mullendore, executivo da Southern
California Edison. Leonard viajou para Los Angeles para encontrá-lo e dar um jeito nele. Conforme
Leonard conta essa história, ele passou dez minutos explicando as políticas da Câmara e os outros
poucos minutos tentando justificá-las. E começou a cambalear! Seus instintos começaram a enviar
sinais de alerta. Em um certo ponto, o Sr. Mullendore assumiu o controle, criticou a posição da
Câmara e continuou a demonstrar que o New Deal estava repleto de falácias e fantasias. O dinheiro
é injustamente retirado daqueles que o ganharam e injustamente entregue àqueles que fazem lobby
por ele. E, efetuando estas transferências, o próprio governo se torna rico e poderoso, enquanto a
maior parte do país sofre uma queda na produtividade, e há uma diminuição na liberdade das
pessoas.
Quaisquer que sejam as palavras proferidas pelo Sr. Mullendore, elas exerceram um efeito
devastador em Read; elas mudaram sua vida, alterando seu pensamento. Ele começou a estudar e,
então, escreveu um livro para esclarecer sua filosofia. O resultado foi o The Romance of Reality
[“Romance da realidade”], publicado em 1937 pela Dodd, Mead Company.
Sob as críticas do Sr. Mullendore e de outros de pensamentos semelhantes, a política da Câmara
começou a se afastar das campanhas em favor do clima, das laranjas, do cinema etc., para promover
sérios esforços para mudar o clima de opinião por meio de palavras escritas e faladas. O homem que
conduziria a Câmara de Los Angeles em sua nova orientação só poderia ser, é claro, Leonard Read,
que se tornou gerente geral da maior Câmara da nação em 1939, quando tinha quarenta e um anos.
Ele era o homem certo, na hora certa, em um cargo estratégico. Era importante que o Los Angeles
Times fosse o que nós poderíamos chamar de jornal conservador, que dava a Read críticas bem
amigáveis. O Register de Orange County, era abertamente libertário; seu editor, R. C. Hoiles, era
um dínamo. Ele e Read devem ter-se tornado aliados rapidamente.
E o pastor de Leonard, Reverendo James W. Fifield, ministro da Primeira Igreja Congregacional de
Los Angeles (que tinha 4000 membros) e apresentador de um programa de rádio aos sábados à
noite, escutado de San Francisco a San Diego, era inimigo do New Deal e crítico do “Evangelho
Social”, que era uma tendência nas igrejas. Para criticar este, Fifield enviou um ministro negro, o
Reverendo Irving Merchant, que era de sua equipe, para percorrer o país para se encontrar com
associações ministeriais e explicar seus erros. O pastor Merchant conseguiu em torno de 17000
cartas de apoio assinadas por ministros que afirmavam sua fidelidade ao movimento de resistência
(eu vi as cartas!), que vieram a ser chamadas “Mobilização por ideais espirituais”. Resumindo, o
vinhedo no sul da Califórnia alcançou um estágio no qual um homem como Leonard poderia fazer
um uso melhor de seus talentos com o apoio oferecido pelas comunidades empresariais e
eclesiásticas. Leonard serviu no conselho da Primeira Igreja.
Entra Bastiat
E agora Bastiat entra em cena. Thomas Nixon Carver, notável professor de economia em Harvard,
que defendeu a economia de livre mercado durante os anos 1920 e 1930, tinha se mudado para o sul
da Califórnia. Carver compareceu a um almoço em que Leonard era o orador. Após a conversa, ele
se aproximou de Leonard e disse: “Sr. Read, você soa como Frederic Bastiat”. “Quem é Bastiat?”,
perguntou Leonard. Carver respondeu e prometeu enviar por correio um pequeno livro de Bastiat
chamado “Communism versus Free Trade” [“Comunismo versus livre comércio”]. Leonard o amou
e logo o publicou sob o selo Pamphleteers, Inc., um pequeno grupo de amigos da liberdade dentro
da órbita da Câmara que, nos seus “nove andares abaixo da superfície”, ocasionalmente dividiam as
despesas para publicar pequenas obras que, de outra maneira, poderiam ser negligenciadas, como
Give Me Liberty [“Dê-me liberdade”], de Rose Wilder Lane, e Anthem [“Hino”], de Ayn Rand. Não
muito após isso, o Sr. Hoiles republicou três livros de Bastiat em uma tradução para o inglês de 130
anos atrás. Vários anos após fundar a FEE, Leonard publicou a vigorosa tradução de Dean Russel
para o livro The Law [“A lei”], de Bastiat. Foram feitas bem mais de 500.000 cópias.
As escolas públicas (ou do governo) da infância de Leonard ofereciam um currículo muito sólido;
os alunos tinham contato com os documentos públicos básicos desta nação. A Declaração de
Independência era o preferido de Leonard. Permitam-me citar a interpretação de Read de uma parte
de uma frase: “(...) no fragmento de uma frase escrita na Declaração de Independência”, disse, “foi
declarada a verdadeira revolução americana, a nova ideia, e foi a seguinte: ‘que todos os homens
foram criados iguais; que eles eram dotados pelo seu Criador com certos direitos inalienáveis; entre
estes estavam a vida, a liberdade e busca da felicidade’. Era isso. Essa é a essência do
americanismo. Esse era o marco sobre o qual todo o ‘milagre americano’ foi fundado”.
“Este conceito revolucionário era de uma só vez espiritual, político e econômico. Era espiritual
porque os autores da Declaração reconheciam e publicamente proclamavam que o Criador era quem
concedia os direitos aos homens, sendo, portanto, o soberano. Era político ao implicitamente negar
que o Estado era quem concedia os direitos dos homens, declarando, portanto, que ele não era o
soberano. Era econômico no sentido de que se um indivíduo tem direito à sua vida, segue-se que ele
tem direito a preservá-la — seu sustento era nada mais, nada menos, que os frutos do trabalho
pessoal”.
Estas palavras foram retiradas de “A essência do americanismo”, palestra de abertura de Leonard
em praticamente cada um de nossas centenas de seminários.
A liberdade não está à venda
Durante os cinco anos que Leonard passou como gerente geral da Câmara de Los Angeles, sua
mente foi aguçada e aprofundada; ele cresceu e se superou. Novos conhecimentos se desenvolveram
enquanto ele ponderava a questão sobre como a filosofia da liberdade poderia avançar de melhor.
Em suas primeiras posições profissionais, ele tinha se tornado bem familiarizado com a publicidade
e com técnicas promocionais. Mas havia a ideia de que a liberdade individual não poderia ser
vendida como se fosse um sabonete; ela tinha que ser explicada — e explicada de forma que o leitor
ou o ouvinte chegasse a uma compreensão íntima da evidente verdade da matéria. A ideia de
“liberdade” é mais apanhada do que ensinada; é análoga a um contágio benigno que se espalha de
pessoa para pessoa, até que uns poucos comecem a dizer: “Por George, acho que captei a
mensagem!”
Alguns anos mais tarde, Leonard se deparou com a confirmação de seus próprios pensamentos em
umas poucas palavras de Civilization and Ethics [“Civilização e ética”], o grande livro de Albert
Schweitzer, publicado em 1923: “A civilização só pode reviver quando puder ter um número de
indivíduos com ideias novas independentes daquela que prevalece entre o povo e em oposição a ela.
Uma nova opinião pública deve ser criada de forma particular e discreta. Essa que prevalece é
mantida pela imprensa, por propagandas, por organizações, pelo setor financeiro e por outras
influências à sua disposição (...) Esta maneira não natural de se difundir ideias deve sofrer oposição
daquela que é natural, que passa de pessoa em pessoa e depende apenas da verdade dos
pensamentos e da vontade dos ouvintes de escutar a nova verdade”.
O famoso ensaio de Albert Jay Nock, “Isaiah’s Job” [“O trabalho de Isaías”], transmitia
praticamente a mesma mensagem contida nas palavras de Schweitzer. Leonard disse que a posição
única da FEE foi inspirada pela leitura desse ensaio de Nock. O primeiro contato entre os dois se
deu entre 1935 e 1936. Leonard me disse que ele tinha lido um livro de Nock chamado Our Enemy,
the State [“Nosso inimigo, o Estado”] pouco após seu lançamento, e que tinha escrito uma carta
para o autor: “Acabei de ler seu Our Enemy, the State. É um livro esplêndido. Mas como um
homem brilhante como você pode promover o imposto único?”. Nock respondeu: “Caro Sr. Read:
eu não sou promovo o imposto único: apenas acredito nele. Sinceramente, Albert Jay Nock.”
Leonard ficou, desde então, liberto do destempero do mero ativismo.
Uma vez quebrado o gelo, a relação entre os dois se fortaleceu. Sempre que Leonard vinha a Nova
York, tentava marcar um jantar com AJN. Nock publicou seu magnífico Memoirs of a Superfluous
Man [“Memórias de um homem supérfluo”], em 1943. Ele enviou uma cópia para Leonard
contendo a seguinte inscrição: “Se esse livro é bom o suficiente para Leonard E. Read, é bom o
suficiente para mim”. A FEE é agora a principal fonte para os livros de Nock; e há uma sociedade
chamada Nockian Society em 42 Leathers Road, Fort Mitchell, Kentucky, 41017.
Leonard finalmente chegou à conclusão de que a instituição que ele concebeu como um veículo
próprio para promover a filosofia da liberdade não poderia operar como um braço de outro tipo de
instituição... Ela tinha de ser autônoma.
A discussão com Bill Mullendore começou tudo. Leonard continuou sua própria busca pela
sabedoria, procurando novas ideias e maneiras melhores de apresentá-las. Ele agarrou firmemente a
profunda verdade de que a defesa das liberdades humanas é um processo de aprendizagem e não um
problema de vendas.
O que a liberdade da filosofia precisava era de “nome e lugar certo”. Cinquenta e dois anos atrás,
em 1946, achou ambos em Irvington, New York. A FEE tem sido um manancial de ideias sobre a
liberdade desde o início — e a tradição continua.
P.S.: Uma excelente biografia de Leonard Read, escrita por Mary Sennholz, sua secretária nos
primeiros dias de FEE, pode ser encontrada na Fundação. Recomenda-se sua leitura.

Robert Heinlein

Robert Heinlein, um mestre pioneiro da ficção especulativa, capturou a imaginação de milhões de


pessoas pela liberdade. Cinco de seus romances narram histórias de rebeliões contra as tiranias,
outros tratam de diferentes lutas pela liberdade, e as declarações em defesa desta são abundantes em
seus escritos.
Heinlein é o autor de ficção científica mais celebrado do mundo. Em junho de 1969, enquanto o
astronauta Neil A. Armstrong, tripulante da nave Apollo 11, pisava na lua, Heinlein falava para
milhões de pessoas, em todo o mundo, como comentarista convidado, ao lado de Walter Cronkite,
âncora da CBS-TV. “Quando a Science Fiction Writers of America começou a entregar seus Grand
Master Awards, em 1975, Heinlein recebeu o primeiro numa aclamação geral”, disse Isaac Asimov,
respeitado autor de mais de trezentos livros, sendo vários de ficção científica. Heinlein é o único
autor que ganhou quatro prêmios Hugo de melhor romance de ficção científica — por Estrela
oculta (1956), Tropas estelares (1959), Um estranho numa terra estranha (1961) e Revolta na Lua
(1966). Ele foi o primeiro autor de ficção científica a figurar na lista de best-sellers do New York
Times (com Um estranho numa terra estranha). Isso se repetiu com seus últimos cinco livros.
A obra de Heinlein — cinquenta e seis contos e trinta romances — foi traduzida para o búlgaro, o
croata, o tcheco, o holandês, o pársi, o finlandês, o francês, o alemão, o grego, o hebraico, o
húngaro, o italiano, o japonês, o lituano, o português, o romeno, o russo, o espanhol e o sueco. Seus
livros venderam mais de 30 milhões de cópias nos Estados Unidos e mais de 100 milhões através do
mundo.
Isaac Asimov, cuja surpreendente carreira começou ao mesmo tempo em que a de Heinlein
começou a tomar um rumo, discordava de muitas opiniões deste, mas declarou: “A partir do
momento em que sua primeira história foi lançada, o mundo da ficção científica, admirado,
reconheceu que ele era o melhor escritor do gênero, posição que ele manteve pelo resto de sua
vida”. Stephen King, famoso autor de suspenses, escreveu que “após a Segunda Guerra Mundial,
Robert A. Heinlein firmou-se não apenas como o principal escritor de ficção especulativa dos
Estados Unidos, mas como o maior escritor desse gênero no mundo. Hoje, ele permanece como
uma espécie de marca registrada em tudo o que há de mais belo na ficção imaginativa americana”.
O New York Times Book Review saudou Heinlein como “um dos escritores mais influentes da
literatura americana”. Gene Rodenberry, criador, roteirista e produtor da popular série de TV Star
Trek, reconhecia que Heinlein estava entre os poucos autores “de que tive o prazer de sentar ao
lado”. Robert Silverberg, autor de mais de cem livros de ficção científica, explicou que a “crença de
Heinlein de que a história tinha que fazer sentido, e o irresistível vigor de sua narrativa, deleitava os
leitores de Astounding [“Impressionante”], fazendo com que estes passassem a exigir que ele
escrevesse mais. John Campbell, editor, tinha encontrado o escritor que melhor incorporava seus
próprios ideais de ficção científica. Em dois anos, em uma surpreendente torrente de escritos para
uma revista, Heinlein tinha reconstruído completamente a natureza da ficção científica, da mesma
forma que Ernest Hemingway, nos anos 1920, no domínio da ficção moderna geral, tinha redefinido
o romance moderno. Desde 1927, ninguém que tenha escrito ficção científica pode deixar de levar
em conta a teoria e a prática de Hemingway sem parecer arcaico ou muito ingênuo; ninguém, desde
1941, escreveu ficção científica de primeira qualidade sem uma compreensão do conjunto de
exemplos teóricos e práticos de Heinlein”. Tom Clancy, famoso escritor de suspenses, acrescentou:
“O que torna o sr. Heinlein parte da tradição literária americana é a predominância de seu caráter.
Sua obra reflete o otimismo americano fundamental que ainda surpreende nossos amigos ao redor
do mundo. Conforme o senhor Heinlein nos ensinava, o indivíduo pode e será bem sucedido. O
primeiro passo para o sucesso individual é a percepção de que este é possível. A tarefa do escritor é,
frequentemente, permitir às pessoas saber o que é possível e o que não é, pois assim como a escrita
é um produto da imaginação, da mesma forma o é todo o progresso humano”.
Heinlein ocupa um lugar especial no coração de milhares de pessoas que o descobriram na
juventude. Antes de ele aparecer como autor de best-sellers para adultos, já tinha estabelecido sua
reputação com mais de uma dúzia de livros clássicos para os jovens: Nave Galileu (1947), Space
Cadet [“Cadete do espaço”] (1948), O planeta vermelho (1949), Farmer in the Sky [“Um fazendeiro
no céu”](1950), Entre planetas (1951), Um negócio de família (1952), Starman Jones [“Jones, o
homem do espaço”](1953), A besta do espaço (1954), Um túnel no céu (1955), O tempo das
estrelas (1956), Cidadão da galáxia (1957), Viajantes do espaço (1958) e Tropas estelares (1959).
O escritor J. Neil Schulman falou por muitos quando confidenciou que “se Robert Heinlein não
tivesse escrito os livros que escreveu, e eu não os tivesse lido, duvido muito que eu tivesse tido a
base intelectual necessária para sair do buraco em que me encontrava entre os quinze e os dezoito
anos de idade. Ele escreveu sobre futuros que eram dignos de ser vividos. Escreveu sobre pessoas
talentosas que sentiram que a vida valia a pena e a tornaram digna de ser vivida, não importando os
problemas que pudessem surgir em seu caminho. Seus personagens sempre encontravam
dificuldades, mas perseveravam”.
A obra de Heinlein inspirou leitores por todo o mundo. Por exemplo, disse o estudioso Tetsu Yano:
“Eu tinha perdido todos os meus livros durante a guerra e tinha pouco dinheiro para comprar novos.
Eu queria e tinha que ler algo. Apesar de não ser fluente em inglês, encontrei revistas de ficção
científica fáceis de ler. Fiquei, particularmente, inspirado pelas histórias escritas por Robert
Heinlein e Anson Mcdonald (um dos pseudônimos de Heinlein). Seus alegres contos me deram a
vontade, a esperança e a coragem de continuar vivendo entre as ruínas do Japão pós-guerra. Robert
Heinlein era meu professor e benfeitor. Aprendi inglês lendo suas histórias e me tornei tradutor. Tem
sido uma honra traduzir os livros de Heinlein para o japonês”.
Alexei Panshin, crítico de ficção científica, descreveu Heinlein com “em torno de 1,55m de altura,
com cabelos e olhos castanhos. Ele é forte, de postura ereta e um comportamento quase militar.
Usou, durante anos, um bigode aparado e, pelo que se dizia, estava sempre arrumado, mesmo que
estivesse em uma selva (...) Sua voz era a de um barítono anasalado e soava forte, com um pouco do
agradável sotaque do Missouri”. Conforme Isaac Asimov lembrou: “De certa forma, minha amizade
mais importante era com Robert Anson Heinlein (...) um homem muito bonito (...) com um sorriso
gentil e um comportamento tão nobre que sempre me fazia me sentir um mal-educado quando
estava ao seu lado. Eu era o camponês, enquanto ele era o aristocrata”.
Robert Silverberg relembrou Heinlein como “um ser humano encantador, polido, honrado, com um
inesperado e dissimulado senso de humor. Eu o encontrei pela primeira vez (...) na World Science
Fiction Convention de 1961, em Seattle, onde ele era convidado de honra. Ele impressionou a todos
ao organizar uma festa na suíte em que estava hospedado e convidar toda a convenção para
comparecer. Isso seria impensável hoje em dia, uma vez que cinco ou seis mil pessoas participam
dessas convenções. O comparecimento, em 1961, era de, aproximadamente, duzentas pessoas, mas,
mesmo assim, esse continuou sendo um gesto notável: Heinlei n, vestindo seu roupão de banho,
recebendo graciosamente todos os fãs, que estavam de olhos arregalados (e uns poucos escritores
que também estavam de olhos arregalados) e que entravam no quarto (...) Eu me lembro de ter dito
a ele que eu já tinha publicado sete milhões de palavras de ficção (...) e ele respondeu, ‘Não há essa
quantidade de palavras no idioma. Você deve ter vendido várias delas mais de uma vez’”.
Robert Anson Heinlein nasceu em 07 de julho de 1907, em uma casa de dois andares na 805 North
Fulton Street, em Butler, no Missouri, cerca de 100 quilômetros ao sul de Kansas City. Seu pai, Rex
Ivar, filho de um vendedor de arados, era escriturário. Sua mãe, Bam Lyle, era filha de um médico.
Em 1910, seu irmão Lawrence, de dez anos, o levou para ver o cometa de Halley, que passava pelo
céu, e essa foi uma visão que ele nunca mais esqueceria. Ele ficou fascinado pela astronomia e
construiu sozinho um pequeno telescópio. Tornou-se ávido leitor de histórias de aventura, em
particular, de ficções científicas, e apreciava as obras de Mark Twain, Rudyard Kipling, Júlio Verne,
H. G. Wells, Edgar Rice Burroughs e H. Rider Haggard.
Passou um ano na Universidade do Missouri e, depois, transferiu-se para a Academia Naval dos
Estados Unidos, onde se tornou excelente esgrimista. Graduou-se, em junho de 1929, em
engenharia mecânica. Logo após, casou-se com Leslyn Mcdonald. Pouco se sabe sobre ela. Ela
trabalhava na área de transporte de destroieres e aeronaves até contrair tuberculose e ser licenciada
pela Marinha, em 1934, como tenente. Heinlein matriculou-se na Universidade da Califórnia, em
Los Angeles, para estudar física e matemática, mas sua saúde frágil o fez desistir do curso.
“No começo de 1939, eu me encontrava totalmente sem dinheiro”, lembrou Heinlein. “Nessa época,
a revista Thrilling Wonder Stories publicou um anúncio onde se lia (mais ou menos): GRANDE
COMPETIÇÃO — Escritores amadores!!!!! O vencedor ganha $50 (cinquenta dólares). Em 1939,
com cinquenta dólares era possível encher três caminhonetes com comida (...) Assim sendo, escrevi
Life-Line. Levei quatro dias — sou um digitador lento. Mas eu não mandei essa história para a
Thrilling Wonder. Mandei-a para a revista Astounding, imaginando que eles não receberiam tantos
contos amadores”. Sua história era sobre o inventor de uma máquina que dizia às pessoas quanto
tempo elas viveriam. John W. Campbell Jr., editor, a comprou por setenta dólares e a publicou na
edição de agosto de 1939. “Nunca mais houve uma oportunidade em que eu preferiria não procurar
um emprego honesto”, satirizou Heinlein.
No final dos anos 1930, a ficção científica irrompia na era moderna. No mês anterior à estreia de
Heinlein, a Astounding Science Fiction tinha publicado sua primeira história de E. A. Vogt, um
talento que começava a despontar, e, no mês seguinte, publicou a primeira história de Theodore
Sturgeon, outro talento que surgia. No início daquele ano, a Thrilling Wonder Stories publicou a
primeira história de Alfred Bester, e a Amazing Stories lançou ao mundo Isaac Asimov.
A segunda história publicada de Heinlein foi “Misfit” [“Desajeitado”], na edição de novembro de
1939 da Astounding Science Fiction. Seu primeiro trabalho, que visava o público jovem, era sobre
um rapaz encrenqueiro que, transferido pelo governo para um asteroide, salva uma nave espacial.
Cada nova história afirmava a crença de Heinlein na liberdade. Em janeiro de 1940, a Astounding
Science Fiction publicou “Requiem”. O protagonista, um empresário chamado Delos D. Harriman,
desenvolveu comunidades na lua. Ele combatia as “malditas regulamentações detalhistas” e
realizava seu sonho. If This Goes On [“Se isto continuar”] — (edição de março de 1940 da
Astounding Science Fiction) conta a história da Segunda Revolução Americana, que se opunha à
tirania do século XXI. Coventry (edição de julho de 1940 da Astounding Science Fiction) mostra
como uma sociedade razoavelmente livre poderia ser baseada em um contrato social voluntário
chamado “Declaração”. Em Sixth Column [“A sexta coluna”] (edição de janeiro a março de 1941 da
Astounding Science Fiction), cientistas engenhosos desenvolvem uma arma secreta que ajuda a
expulsar os conquistadores. Jefferson Thomas é o protagonista. Logic of Empire [“A lógica do
império”] (edição de março de 1941 da Astounding Science Fiction) conta como Sam Houston
Jones combateu a escravidão em Vênus. Os filhos de Matusalém (edição de julho a setembro de
1941 da Astounding Science Fiction) narra as aventuras de americanos que cruzavam diferentes
raças para alcançar uma longevidade três vezes maior que a normal, e que, perseguidos por pessoas
invejosas, encontraram um lugar onde eles poderiam ser livres. “Beyond This Horizon” [“Além
deste horizonte”] (edição de abril e maio de 1942 da Astounding Science Fiction) oferece uma visão
de uma sociedade libertária onde particulares realizam quase tudo que é preciso ser feito.
Licenciado pela marinha por causa de sua miopia e por ter começado a sofrer de tuberculose,
Heinlein passou os anos da guerra atuando como engenheiro no Naval Air Experimental Station’s
Materials Laboratory, na Filadélfia. Entretanto, ele pensava em como poderia expandir seus
horizontes como escritor. Ele começou a trabalhar com Lurton Blassingame, agente literário, que o
ajudou a vender “Green Hills of Earth” [“As colinas verdes da Terra”] para o semanário Saturday
Evening Post, que pagava altos preços por ficções. Famoso por ter em suas capas os desenhos de
Norman Rockwell, era o mercado mais importante para pequenas histórias e romances publicados
em partes.
Em 1946, Heinlein decidiu escrever um livro para o público jovem. O resultado foi Nave Galileu,
que era sobre três garotos que consertaram um foguete, voaram para a Lua e encontraram um ninho
de nazistas determinados a tomar o poder na Terra. Este foi publicado para Scribner’s, que tinha
publicado obras dos romancistas da moda, na época, como Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald e
Thomas Wolfe.
Heinlein se separou em 1947, e, no ano seguinte, em 21 de outubro, se casou com Virginia Doris
Gerstenfeld, que ele tinha conhecido na Filadélfia. “Minha esposa, Ticky, é uma individualista-
anarquista”, exultava. Ela era, explicou Poul Anderson, autor de ficção científica, “sua companheira
de todas as horas, sob muitos aspectos tão forte e inteligente quanto ele próprio. Ele observou uma
vez, com um riso forçado, que, durante a Segunda Guerra Mundial, quando ambos serviam à
marinha, ela era sua oficial superior”. Os Heinlein passaram sua lua de mel nas montanhas do
Colorado e decidiram viver lá. Compraram uma propriedade entre os números 1700 e 1800 da Mesa
Drive, em Colorado Springs, e escolheram o endereço que eles queriam: 1776. Na frente, tinham
uma placa de bronze que evocava a famosa pintura de Archibald Willard, Spirit of ’76: com três
pessoas marchando — um homem tocando pífaro e outro homem, junto com um garoto, tocando
tambor. Os Heinlein viveriam em Colorado Springs pelos próximos setenta anos. Entre seus amigos
estava Robert M. LeFevre, fundador da Freedom School.
Heinlein passou a trabalhar voltado para o cinema. Em 1948, adaptou a história de Nave Galileu
para o cinema, no filme Destination Moon [“Destino Lua”]. Este mostrava como empresários
particulares poderiam organizar a primeira viagem para a lua e lidar com todas as situações que
poderiam dar errado. Destination Moon foi o primeiro filme de ficção científica, e obteve um
sucesso razoável.
Heinlein continuou a publicar livros para o público jovem. Por exemplo, Space Cadet (1948) conta
a história de garotos que treinavam para a mais import ante missão no sistema solar, “manter a paz
(...) e proteger a liberdade das pessoas”. O planeta Vermelho (1949) trata de um povo, em Marte,
que se ressentia da exploração que sofria de distantes governadores do planeta Terra. Há uma
revolução, iniciada com uma Proclamação de Autonomia, redigida nos moldes da Declaração de
Independência. Em Entre planetas (1951), o jovem Donald Harvey se envolve na luta pela
independência. Ele aterrissa em Vênus, uma colônia controlada pela ditadura da federação, baseada
no planeta Terra, e reúne guerreiros para lutar pela defesa da liberdade em uma rebelião contra esta.
Cidadão da galáxia (1957), talvez seu melhor livro voltado para os jovens, é sobre um áspero
garoto chamado Thorby, que é trazido acorrentado para Sargon e vendido como escravo. Ele é
libertado e passa a lutar pelo fim do comércio de escravos. Em Tropas estelares (1959), Juan Rico
entra como voluntário para a infantaria móvel da federação, que defende a liberdade contra os
coletivistas. Rico se lembra dos ensinamentos do tenente-coronel Jean Dubois, seu respeitado
professor de segundo grau, que denunciava o “túrgido, atormentado, confuso, neurótico, não-
científico, ilógico e impostor, Karl Marx”.
Seu amigo, Jack Williamson, autor de ficção científica, afirmou, maravilhado, que “a ficção
científica para os jovens, enquanto categoria identificável, começa com Heinlein (...) As séries de
Heinlein foram um esforço pioneiro, logo imitado por outros (...) Heinlein nunca fazia anotações.
Seus principais personagens eram jovens, o enredo se desenvolvia rapidamente e seu estilo era
muito claro”. Heinlein refletiu: “Tenho ficado orgulhoso com esses jovens. Escrever histórias de
qualidade, que são capazes de competir com a fantástica excitação provocada pelos gibis, parece-
me ser uma realização que vale a pena”.
Além dos livros para os jovens, Heinlein escreveu Os manipuladores (1951), que contava como a
Terra foi invadida por discos voadores carregados com lesmas coletivistas. Elas sobem nas costas
das pessoas e assumem o controle de seus corpos e mentes, exterminando suas individualidades. Em
nome da luta contra essas lesmas, o governo assume um enorme poder para monitorar a população.
Felizmente, o povo encontra uma forma de recuperar sua liberdade. Em Estrela oculta (1956),
Lorenzo Smythe descobre os princípios dos direitos naturais e ajuda as populações de Vênus e
Marte a gozar das mesmas liberdades que os terráqueos. “Se houvesse noções básicas de ética que
transcendessem o espaço e o tempo”, refletiu, “elas seriam verdadeiras em qualquer planeta”.
Um estranho numa terra estranha afirmava a capacidade de Heinlein em expandir as fronteiras da
ficção científica. Trata da história de Valentine Michael Smith, um terráqueo que foi criado por
marcianos e retorna à Terra. Ele estabeleceu uma religião que envolve “grokking” (demonstrar
empatia com os outros) e amor livre. Um estranho numa terra estranha (1961) figurou nas listas de
best-sellers nacionais e vendeu dois milhões de cópias. Com esse livro, Heinlein ganhou seu
terceiro prêmio Hugo.
Estrada da Glória (1963) é uma aventura de “espadas e feitiçarias”. O protagonista, “Oscar”
Gordon, nega que o governo tenha uma justificativa moral para cobrar impostos das pessoas. “O
que Uncle Sugar fez por mim? Ele destruiu a vida de meu pai com duas guerras (...). O privilégio de
estar vivo é o motivo para a cobrança do imposto — e os inadimplentes são mortos pelas mãos do
Departamento das Receitas Eternas”.
Em 1965, Virginia Heinlein tinha começado a sofrer com a altitude de Colorado Springs, o que fez
com que eles se mudassem para Bonny Doon, uma adorável área rural, situada, aproximadamente,
25 quilômetros ao norte de Santa Cruz, na Califórnia. Eles descreveram sua casa para o
entrevistador J. Neil Schulman: “Ela é circular, porque assim o queria a Sra. Heinlein (...). Tinha um
grande átrio no meio — com três metros de diâmetro, à céu aberto — com uma árvore e flores. E
tem todos os tipos de coisas que servem para tornar mais fáceis a limpeza e a arrumação da casa”.
Nessa nova casa, ele escreveu Revolta na Lua (1966) que ofereceu sua visão libertária mais bem
desenvolvida. A Lua, referida como Luna, é uma colônia da Terra, usada para manter condenados e
dissidentes políticos que estimavam a iniciativa individual e o empreendimento. Eles toleravam as
escolhas dos outros povos e cuidavam da própria vida. Resolveram assumir o controle de seu
próprio destino e declarar independência no dia 4 de julho de 2076. Os conspiradores recrutaram
Mycroft Knott, ou, simplesmente, Mike, o computador que controla Luna, para ajudar na revolução.
Wyoming Knott, uma feminista individualista, diz: “Aqui em Luna, nós somos ricos. Temos três
milhões de trabalhadores espertos, pessoas talentosas, água suficiente, plenitude de tudo, poder
infinito. Mas (...) o que nós não temos é um livre mercado. Temos que nos livrar da Autoridade”. E
o professor Bernardo de la Paz (“Prof”), o filósofo revolucionário, responde: “Você tem razão
quando diz que a Autoridade deve acabar. É ridículo — pestilento, não dá para aguentar — que nós
devemos ser governados por um ditador irresponsável em toda nossa economia básica! Isso fere um
dos direitos humanos mais básicos, o direito de barganhar em um mercado livre”. Prof acrescenta:
“Em termos de moral, não existe essa coisa de ‘Estado’. Apenas homens. Indivíduos. Sendo cada
um responsável pelos seus próprios atos”.
Revolta na Lua ressoa um dos temas filosóficos favoritos de Heinlein: “‘tanstaafl’ [“There Ain’t No
Such Thing As A Free Lunch”], que significa: ‘Não existe almoço grátis’ (...) Qualquer coisa
gratuita custa o dobro, no longo prazo, e acaba se tornando inútil (...). De uma maneira ou de outra,
você paga por qualquer coisa que pegar”. Revolta na Lua descreve uma sociedade onde os
particulares, e não o governo, fornecem educação, garantias, segurança e resolvem os conflitos. O
livro vendeu quase um milhão de cópias.
Não temerei nenhum mal (1970) conta a história de Johann Sebastian Bach Smith, um doente
terminal, multibilionário, de 94 anos de idade, que está determinado a sobreviver a uma ditadura
violenta. Ele organizou uma operação para transplantar seu cérebro para o primeiro corpo saudável
disponível, que acaba por ser o de sua secretária negra. Ele mantém seu livre arbítrio e explora o
significado da sexualidade.
Naquele ano, Heinlein quase morreu de peritonite. Sua vida foi salva por uma transfusão de sangue.
Ele tinha consciência de que seu tipo sanguíneo era raro (A2 negativo) e, por isso, fez um apelo
para que as pessoas doassem sangue. Ele promovia a doação nas convenções de ficção científica.
Em Amor sem limites (1974), Lazarus Long se torna seu próprio ancestral. O livro inclui vários de
seus sábios ditados — por exemplo: “A raça humana se divide politicamente entre aqueles que
querem que as pessoas sejam controladas e aqueles que não têm esse desejo (...). A maior força
produtiva é o egoísmo humano (...). De todas as condutas que os seres humanos têm tipificado
como ‘crime’, a ‘blasfêmia’ é a mais absurda (...). Através da história, a pobreza é a condição
normal do homem. Avanços que permitem que esta norma seja superada — em todos os lugares e
em qualquer tempo — constituem o trabalho de uma pequena minoria, frequentemente desprezada e
condenada, e quase sempre contrária a todos os que pensam o direito”.
Heinlein, com quase setenta anos, continuava a viajar com sua esposa. “Demos a volta ao mundo
quatro vezes”, lembrou Virginia. No final de 1978, enquanto viajavam pelo Taiti, Heinlein começou
a sofrer de visão dupla e passou a ter problemas para caminhar — um alerta de que ele poderia
sofrer um derrame. De volta aos Estados Unidos, ele se submeteu a uma operação para liberar um
bloqueio da artéria carótida para o cérebro.
Em O número da besta (1980), Zeb e Deety, Jake e Hilda lutam contra o alienígena Black Hats, que
quer vaporizá-los. O livro retrata Grandpa Zach, um individualista que “odiava o governo, os
advogados, os funcionários públicos (...) as escolas públicas (...) apoiava o sufrágio feminino (...) e
dividia seu tempo entre a Europa e os Estados Unidos, imune à inflação e às leis confiscatórias”.
Friday (1982) conta a história de Friday, uma heroica emissária, que cumpre missões perigosas na
América do Norte, um amontoado de estados opressivos. Ela diz: “Cada pessoa livre tem uma
obrigação moral de lutar em todos os lugares possíveis — manter abertas as cortinas e as estações
de trem ocultas e passar informações incorretas para os computadores”.
Em Job: A Comedy of Justice [“Trabalho: uma comédia da justiça”](1984), Heinlein explora os
choques de se mover subitamente de uma era para outra. Entre outras coisas, ele fala sobre dinheiro.
“Eu tinha descoberto”, diz o narrador da história, “que, enquanto o papel moeda nunca foi bom após
uma mudança no mundo, o dinheiro em espécie, ouro e prata, seria, de alguma forma, negociável”.
Em O gato que atravessa paredes (1985), o Coronel Colin Campbell, um filósofo patife, embarca
em uma série de aventuras e, entre outras coisas, explora as zonas de livre empreendimento da lua.
Um melancólico personagem é descrito da seguinte forma: “Bill sofre do pior grau da doença
socialista; ele pensa que o mundo lhe deve uma vida”.
A obra de despedida de Heinlein foi To Sail Beyond the Sunset [“Navegar além do pôr do sol”]
(1987), que conta como o pai da narradora Maureen Johnson amava a obra de Mark Twain e se
correspondia com ele. Ela afirmava os princípios da responsabilidade pessoal e do individualismo.
Durante o outono de 1987, a saúde frágil de Heinlein o forçou, junto com Virginia, a se mudar de
Bonny Doon para um lugar mais próximo ao hospital; nesse ano, por duas vezes, ele sofreu
hemorragias e foi levado às pressas para San Francisco. Eles compraram uma casa na 3555
Edgefield Place, nas colinas acima de Carmel, com uma vista espetacular do oceano Pacífico.
Heinlein radiava otimismo mesmo quando sua saúde deteriorava. “Eu acredito na raça humana”.
Declarou. “Amarelo, branco, preto, vermelho, marrom. Na honestidade, coragem, inteligência,
durabilidade e bondade da maioria esmagadora de meus irmãos e irmãs ao redor do mundo (...).
Acredito que (...) sempre fazemos isso por uma estreita margem, mas que sempre faremos isso”.
Dominado pelas doenças do coração e pelo enfisema, Heinlein morreu, enquanto dormia, de
insuficiência cardíaca, em sua casa, no dia 08 de maio de 1988. Aproximadamente dez dias mais
tarde, Virginia Heinlein subiu a bordo de um navio da marinha americana, em Monterey, e, no
oceano pacífico, jogou suas cinzas para a eternidade.
Vieram homenagens de todas as partes. Isaac Asimov disse: “Ele manteve sua posição de maior
escritor de ficção científica inabalável até o fim”; Tom Clancy disse: “Nós prosseguimos, abatidos,
por um caminho marcado por suas ideias”; Arthur C. Clarke, autor de ficção científica, disse:
“Adeus, Bob, e obrigado pela influência que você teve na minha vida e na minha carreira. E
obrigado a você também, Ginny, por cuidar dele tão bem e por tanto tempo”; Catherine Crook de
Camp, sua amiga de longa data, disse: “A última vez que falei ao telefone com Heinlein foi,
aproximadamente, um mês antes de ele morrer, enquanto ele estava em casa, entre duas internações
no hospital. Naquela noite, sua voz parecia ressonante e quase jovial ao recordamos os vários
momentos felizes que passamos juntos. Ele descrevia as vistas esplêndidas que tinha da janela de
sua nova casa, enquanto olhava em direção ao seu querido mar. Finalmente, Bob e eu dissemos o
quanto amávamos um ao outro e que assim seria para sempre. Foi uma recapitulação íntima de uma
grande e afetuosa amizade de quarenta e seis anos. E, quando já não tínhamos mais nada para dizer,
eu sentei ao lado do telefone silencioso e chorei”.
Hoje, Robert Heinlein inspira os jovens mais do que inspirou seus pais e avós. Seus livros
continuam a vender mais de 100.000 cópias por ano. Um túnel no céu é um jogo de computador
popular. Em 1994, a Disney lançou o filme “Os manipuladores”. Depois veio o filme Tropas
estelares. Atualmente, os grandes estúdios tem, também, opções de fazer filmes baseados nos livros
Estrada da glória, Revolta na Lua, Órfãos do céu e Um estranho numa terra estranha. Robert
Heinlein, agora e para sempre — um grande espírito de liberdade.

Peter Bauer

A morte de Peter Bauer em 2 de maio de 2002, aos 86 anos de idade, marcou a partida de um
grande economista e um herói da revolução de mercado que varria o globo. Em reconhecimento por
seu trabalho pioneiro na economia aplicada e seu comprometimento de longa data com os princípios
da sociedade livre, Bauer foi o primeiro homenageado pelo Prêmio Milton Friedman para a
Promoção da Liberdade, um prêmio de US$500.000 entregue a cada dois anos pelo Cato Institute.
Bauer recebeu o prêmio postumamente em 9 de maio, durante a comemoração dos 35 anos do Cato
Institute.
Na cerimônia, Milton Friedman expressou sua admiração por Bauer com as seguintes palavras: “Há
poucas coisas mais importantes do que honrar as pessoas que têm promovido a liberdade ao redor
do mundo, e Peter Bauer merecia esse prêmio. Meu amigo por 50 anos, sempre foi coerente e
persistente ao apresentar idéias que eram impopulares, embora corretas”.
Por anos Bauer combateu os chamados especialistas do desenvolvimento que viam o planejamento
central abrangente, o protecionismo e a ajuda externa como pré-requisitos para o desenvolvimento
econômico. O colapso do comunismo nos países satélites da URSS em 1989 e nela própria em
1991, e o fim do planejamento central naqueles países, assim como na China e em outros, foram os
momentos definidores do século XX do ponto de vista do livre mercado. Esses eventos, em
particular, influenciaram intensamente a vida profissional de Bauer.
Pieter Tamas Bauer nasceu em Budapeste em 6 de novembro de 1915. Frequentou a famosa Scholae
Piae e, em seguida, estudou Direito na Universidade de Budapeste.
Em 1934, ele embarcou para a Inglaterra e foi aceito pelo Gonville and Caius College de
Cambridge, onde estudou economia e se formou em 1937. Bauer depois retornou à Hungria para
completar seus estudos de Direito e servir no Exército húngaro. Em 1939, partiu para aproveitar
uma oportunidade de trabalho em Londres com a Guthrie & Company, uma casa mercantil que
mantinha negócios no extremo Oriente. Bauer começou sua carreira acadêmica em 1943 na
Universidade de Londres, onde primeiro foi pesquisador e depois, em 1947, encarregado do curso
de economia agrícola. Mudou-se para dar aulas na Universidade de Cambridge em 1948 e lá
permaneceu até 1960. O restante dessa distinta carreira acadêmica foi passado como professor na
London School of Economics. Em 1982, tornou-se par do reino com o apropriado título de Lord
Bauer of Market Ward. Foi membro da British Academy e da Mont Pélerin Society. (1)
O fim e o critério do desenvolvimento: ampliando a escolha individual
Para Bauer, a essência do desenvolvimento é a expansão das escolhas individuais, e o papel do
Estado é proteger a vida, a liberdade, a prosperidade a ponto de que os indivíduos possam perseguir
seus próprios objetivos e desejos. Governo limitado, não planejamento central, esse era seu mantra.
Conforme essa premissa, em 1957, Bauer escreveu em Economic Analysis and Policy in
Underdeveloped Countries [“Análise econômica e políticas em países subdesenvolvidos”]:
Considero a extensão da variedade da escolha, isto é, um aumento na diversidade de alternativas
concretas disponíveis para as pessoas, o principal objetivo e critério do desenvolvimento
econômico, e julgo uma medida principalmente por seus prováveis efeitos no quadro de
alternativas abertas aos indivíduos. A aceitação desse propósito significa que agrego significado,
sentido e valor para os atos individuais de escolha e julgamento de valor, incluindo a preferência
do tempo individual entre o presente e o futuro. [Bauer 1957: 113].
Ele ainda disse: “Minha posição é fortemente influenciada pelo meu desapreço às políticas ou
medidas que tendam a aumentar o poder do homem sobre o homem, isto é, aumentar o controle de
grupos de indivíduos sobre seus iguais”.
A visão de Bauer do desenvolvimento econômico como um processo coerente em conjunto e
dependente da propriedade privada e da liberdade de contrato firmou seu lugar na tradição dos
grandes liberais clássicos. Sua adesão aos princípios da livre troca e de um povo livre refletiam seu
profundo respeito pela dignidade, racionalidade, e capacidades das pessoas pobres ao redor do
mundo.
Se o desenvolvimento econômico tem de ser maximizado, então a liberdade deve ser maximizada, o
que significa que a coerção deva ser minimizada. Para que cheguemos a isso os poderes do governo
devem ser limitados à proteção dos indivíduos, e da propriedade. As pessoas então serão livres para
escolher e expandir as opções das quais dispõem, respeitando sempre os direitos iguais que têm os
outros indivíduos. As regras do jogo eram importantes para Bauer, pois elas ajudaram a definir a
escolha oferecida aos indivíduos. Antes que isso se tornasse moda, Bauer aplicou a teoria dos
direitos da propriedade e escolha pública ao campo da economia aplicada.
A ordem espontânea do mercado é coerente com a liberdade. Qualquer aumento no escopo do
mercado de trocas naturalmente aumenta a gama efetiva de escolhas individuais. Do mesmo modo,
qualquer restrição da liberdade econômica reduz a multiplicidade efetiva das alternativas oferecidas
aos indivíduos e dificulta o desenvolvimento, como apontado por Bauer. Tanto pobres quanto ricos
se beneficiam da liberdade econômica. Quando a lei proteger e garantir os direitos da propriedade
privada, as pessoas irão se especializar no ato de ser proprietários e na convivência com riscos, os
mercados irão florescer e trocas voluntárias serão mutuamente benéficas.
Em seu ensaio “Market Order and State Planning”, [“Ordem de mercado e planejamento estatal”]
Bauer (1984: 25) escreveu:
“A ordem do mercado minimiza forçosamente o poder de indivíduos e grupos para restringir as
escolhas das outras pessoas. A restrição forçada da escolha dos outros é sinônimo de coerção. A
posse de riqueza não confere por si mesma um poder tão grande aos ricos. De fato, na moderna
economia de mercado, os ricos, especialmente os muito ricos, usualmente devem sua prosperidade
a atividades que ampliam as escolhas de seu próximo, incluindo aí os mais pobres.”
Para Bauer, os pobres se beneficiam da liberdade ao escolherem para quem e onde trabalhar,
contrariando uma economia centralista em que os trabalhadores não gozam de tal liberdade. O
poder nas mãos de autoridades do governo é mais perigoso do que o dinheiro nas mãos dos ricos.
Restringir o fluxo e circulação de capital também prejudica os mais pobres. É por isso que Bauer
(1984: 26–27) enfatiza que “no Terceiro Mundo, como no Ocidente, a extensão de oportunidades
apresentadas pelo mercado tem sido e é de suma importância para os pobres”; “pobreza não é o
mesmo que falta de liberdade no sentido de se tornar objeto de coerção pelos demais” e “a ordem de
mercado é uma condição necessária para a liberdade pessoal”.
O foco de Bauer está no processo de desenvolvimento, enquanto medido pelo tamanho da liberdade
de mercado, não pelo crescimento da renda nacional. Os dois, é claro, estão relacionados, mas há
diferenças importantes. Uma economia centralizada talvez tenha um alto índice de crescimento
(ignorando conflitos de medida), mas as pessoas não têm liberdade de escolha; a opressão do
governo limita rigorosamente seu quadro de alternativas concretas. Esse aspecto do
desenvolvimento não deve ser ignorado, de acordo com Bauer (1957: 125–26).
Em suma, o que realmente importa para o economista é a liberdade de escolha, incluindo a escolha
de quanto economizar e quanto investir: “O direito de algumas pessoas de forçar outras a se
desenvolver não é auto-evidente, ainda mais quando se considera que uma ampliação na variedade
de escolhas, de acesso a alternativas, é o principal benefício do desenvolvimento econômico”.
(Bauer 1957: 122).
Se as pessoas são livres para escolher, seus direitos de propriedade devem ser protegidos pela lei.
Bauer colocou especial ênfase na primazia da propriedade em uma ordem de livre mercado e no
processo de desenvolvimento. O movimento da subsistência para a troca requer um sistema jurídico
que forneça títulos seguros de propriedade, faça valer os contratos, e que julgue as disputas com
justiça e eficiência. Estava claro para Bauer que restrições nos direitos de propriedade corroem não
só a liberdade econômica, mas também a liberdade individual.
Em seu estudo sobre a indústria da borracha da Malásia em 1948, Bauer criticou as práticas
restritivas do governo colonial, que impediam pequenos proprietários (produtores de pequena
escala) de adquirir terras. Ele considerou a recusa em alienar terras para o plantio de seringueira
particularmente danosa para os pequenos produtores e socialmente perturbadora:
“A produção de borracha é uma indústria em que, à parte a restrição prevista pela lei, o pequeno
produtor esteve até pouco tempo na posição de começar por si mesmo e assegurar uma renda
decente e independente, com a possibilidade de ascender socialmente; até a proibição de novas
plantações e alienação de terras para plantadores de seringueira, empregados de fazendas
frequentemente chegavam à posição de médios ou pequenos produtores através do desenvolvimento
do arrendamento de seringais. Se não tivesse havido uma restrição legal ininterrupta no último
quarto de século, haveria hoje poucos trabalhadores sem-terra na Malásia e muito mais
proprietários de pequenas plantações. Isso conduziria à estabilidade social do país. A política
atual de apoio à produção baseada em forças de trabalho predominantemente alienadas e no
proibição dos direitos individuais de propriedade da terra só consegue fomentar diretamente o
crescimento de movimentos políticos extremistas. [Bauer1948a: 87]. [2]
Em um momento em que muitos dos especialistas do desenvolvimento pregavam políticas de
desenvolvimento antimercado conduzidas pelo governo, Bauer estava certamente a frente de seu
tempo ao enxergar a importância da liberdade econômica — especialmente os direitos de
propriedade — como a chave definitiva para o desenvolvimento econômico, bem como a liberdade
individual.
A quimera do desenvolvimento promovido pelo Estado
Uma política de desenvolvimento conduzido pelo Estado é uma fantasia impossível ou tola, uma
quimera. Uma vez que o poder do governo seja estendido para além de suas competências de
proteger as pessoas e a propriedade, a liberdade perderá terreno; as alternativas disponíveis aos
indivíduos serão consideravelmente restritas em comparação com uma ordem constitucional liberal
baseada em um governo limitado e em direitos de propriedade. O que importa para Bauer (1957:
113) é “o processo pelo qual o desenvolvimento é promovido”: um processo espontâneo de livre
mercado que engrandeça a escolha individual é o verdadeiro significado do desenvolvimento; uma
política de desenvolvimento coercitiva, centrada no Estado, que negue aos indivíduos a liberdade
para fazer suas próprias escolhas é pseudodesenvolvimento.
Dada sua visão do que deveriam ser o fim e o critério do desenvolvimento econômico, Bauer reagiu
vigorosamente àqueles que defendiam o planejamento central. Ele dissecou as conjeturas a favor do
planejamento e expôs as falácias dos especialistas em desenvolvimento, que afirmavam que os
pobres eram incapazes de superar a pobreza por culpa das falhas de mercado.
O apelo do planejamento central
No planejamento econômico central, as decisões do governo tomam o lugar das decisões privadas.
Por essa, razão Bauer diz que (1978: 185) “o planejamento... tem um apelo óbvio para os políticos,
administradores e intelectuais, uma vez que cria posições de poder que os membros destes grupos
esperam ocupar, o que resultará em vantagens políticas, emocionais e financeiras”. Além disso, o
planejamento tem apelo para o povo porque este vê o sistema de mercado como algo “irracional e
confuso”, ao passo que o planejamento parece “basear-se em método, racionalidade e ciência”. A
terceira razão que Bauer oferece para o apelo do planejamento é sua relação “com o credo
messiânico e totalizante do marxismo-leninismo”.
A idéia de que os planejadores socialistas conseguiriam resolver o problema da pobreza melhor do
que o livre mercado era geralmente aceita no Terceiro Mundo até recentemente. E foram sobretudo
os especialistas em desenvolvimento do Ocidente que espalharam esta idéia. Em 1957, Paul A.
Baran, um respeitado economista da Stanford University, escreveu que “o estabelecimento de uma
economia planejada socialista é uma condição essencial, aliás indispensável, para se obter o
progresso econômico e social em países subdesenvolvidos” (Baran 1957: 261). Um ano antes,
Gunmar Myrdal tinha escrito que “os assessores especiais dos países subdesenvolvidos que deram-
se ao trabalho de examinar o problema... recomendam, todos, o planejamento central como
condição primeira do progresso” (Myrdal 1956a: 201). A mentalidade socialista e a visão do
desenvolvimento liderado pelo Estado estavam tão entranhadas que ainda em 1985, após anos de
fracassos, Rajiv Gandhi, primeiro ministro indiano, era capaz de escrever algo assim:
“Se há um problema de coletar, coordenar, classificar e analisar a tremenda quantidade de
informações necessárias para o planejamento desenvolvimentista em nível nacional, a solução
talvez esteja em melhorar as ferramentas de coleta e análise dos dados, e não em abandonar o
esforço mesmo do planejamento”. [3]
Hoje, até mesmo o Banco Mundial (1997: 1-2) admite que a noção de “bons assessores e
especialistas técnicos que formulem boas políticas, as quais os bons governos implementariam para
o bem da sociedade” era ingênua. “Os governos embarcaram em planos grandiosos. Os investidores
privados, que não confiavam nas políticas públicas ou na constância dos governantes, preferiram
não embarcar junto. Governantes poderosos agiam arbitrariamente. A corrupção tornava-se
endêmica. O desenvolvimento cambaleava, e a pobreza seguia” - exatamente como Bauer previra.
O planejamento central e a liberdade
O planejamento central estende o poder do Estado ao tornar o governo o supervisor que determina
cada aspecto da vida econômica. Quando o povo só tem um empregador, nenhum direito de
propriedade, nenhum mercado privado em que comerciar, nenhuma opção de investimento, e o livre
comércio é um crime, há pouco espaço para o desenvolvimento humano. Todas as decisões
econômicas ficam politizadas e a corrupção se torna banal. Como Bauer observou (1976: 84), “ao
continuar e estender o controle estatal sobre as vidas da população, o poder central reforça a
submissão do indivíduo à autoridade. Esse desenvolvimento desincentiva a autodependência, os
cuidados pessoais com o futuro, a curiosidade continuada, e uma inclinação experimental da
mente”.
O objetivo dos planejadores desenvolvimentistas não era simplesmente controlar a economia, mas
controlar as pessoas e recriar a sociedade. De fato, Bauer diz (1976: 188) que a principal tese de
Myrdal era que “a conduta pessoal e as atitudes sociais devem ser reestruturadas no interesse, ou ao
menos no interesse declarado, de maiores renda per capita”. Não se deve confiar a liberdade as
pobres: presume-se que eles sejam indiferentes em relação ao futuro e não respondam a preços de
mercado. Assim, para seu próprio bem, deveriam ser tratados como peões nas mãos de planejadores
esclarecidos”. Ele não via os pobres como “tijolos sem vida, a ser dispostos ao bel prazer de um
construtor” (Bauer 1984: 5). Os pobres não são indiferentes a seu futuro, nem deixam de responder
a incentivos de mercado. Dispondo de liberdade e responsabilidade, os pobres são perfeitamente
capazes de tirar a si e a suas famílias da pobreza.
A mentalidade anti-mercado e os especialistas em desenvolvimento
O mantra dos especialistas em desenvolvimento era de que havia um “círculo vicioso de pobreza”,
do qual o pobre não poderia escapar exceto com a ajuda de planejadores centrais e ajuda externa.
Poupança compulsória, políticas de comércio protecionistas, cooperativas patronais, produção e
investimento direcionados pelo Estado, e transferências de governo para governo eram a regra.
Bauer (2000: 6) afirmou em contrário: “Ter dinheiro é resultado de sucesso econômico, não sua pré-
condição ... De fato, se a noção de um círculo vicioso fosse válida, a humanidade ainda viveria na
Idade da Pedra”.
As experiências de Bauer na Malásia, ao final da década de 1940, e no Oeste Africano, levaram-no
a reconhecer a importância do esforço individual de pequenos proprietários de terra e comerciantes
em sair da subsistência para um padrão de vida mais alto. Conforme ele escreveu em The
Development Frontier [“A fronteira do desenvolvimento”]:
“Uma infraestrutura desenvolvida não foi pré-condição para a emergência de grandes culturas
lucrativas no Sudeste Asiático e Oeste Africano. Como em geral ocorreu em outros lugares, as
instalações conhecidas como infraestrutura foram desenvolvidas conforme a economia se
expandia... O que aconteceu foi em grande parte o resultado das respostas individuais de milhões
de pessoas às crescentes oportunidades criadas por contatos externos, e que lhes chegaram de
diversas maneiras, primariamente pela operação do mercado. Este desenvolvimento foi
possibilitado por governos fortes, mas limitados, sem grandes gastos públicos e sem o recebimento
de grandes subvenções externas.” [Bauer 1991: 190-91].
Bauer esteve entre os primeiros a enxergar claramente que o verdadeiro problema de países
subdesenvolvidos não são as falhas de mercado, mas sim as falhas do governo – ou seja, o governo
não proteger direitos de propriedade, não fazer valer os contratos e não deixar o mercado operar em
paz:
“A literatura sobre falhas de mercado tem sido usada para vergastar o sistema de mercado. Os
críticos que propõem a substituição do sistema de mercado por decisões políticas raramente
respondem a questões cruciais como a concentração de poder econômico em mãos de políticos, as
implicações de restrições à escolha, os objetivos de políticos e administradores, e a qualidade e a
extensão do conhecimento na sociedade e dos seus métodos de transmissão.” [Bauer 1984: 30]
A politização da vida econômica, a perda de liberdade e os danos sofridos pela sociedade civil sob
amplo planejamento central são agora bem conhecidos. É por isso que a atenção está finalmente
movendo-se de um modelo de desenvolvimento conduzido pelo Estado para a natureza das
instituições e a função do governo em estimular o processo espontâneo do mercado.
Conforme o Banco Mundial (1997: 1) observou, “A intervenção guiada pelo Estado enfatizava as
falhas de mercado e concordava com o papel central do Estado em corrigi-las. Mas as hipóteses
implícitas nesta visão de mundo eram demasiado simplistas, como percebemos hoje”.
Bauer (1978:184) aponta que “a crença de que os controles econômicos são necessários para
proteger as pessoas diante dos riscos do mercado, especialmente as flutuações de preço de safras
exportadas” como “outra fonte de hostilidade ao mercado”. Para reduzir esse risco, muitos países
menos desenvolvidos (PMDs) na Ásia e na África estabeleceram monopólios estatais com o direito
exclusivo de comprar culturas para exportação. Pagava-se os produtores agrícolas a valores abaixo
do mercado por suas colheitas e a exportação monopolizada pelo Estado capturava os lucros.
O imposto sobre a renda dos produtores “retardou a expansão da economia de troca e restringiu o
volume do capital privado, inibindo assim o surgimento de uma classe capitalista local.” Ao invés
de reduzir os riscos para os produtores rurais, os controles acabaram aumentando o risco através da
politização da vida:
”Os controles do Estado não garantiram qualquer estabilidade aos agricultores ou outros agentes
econômicos submetidos ao governo. Ambas as formas de controle e a consequente politização da
vida envolvem riscos muito mais severos e muito menos previsíveis do que os apresentados pelo
mercado. Afinal, se os preços na agricultura flutuam, é possível para os produtores (e, aliás, até
para os governos) fazer reservas. Não existe nenhuma proteção desse tipo para a revogação da
licença para atuar no comércio, o confisco de renda ou propriedade, ou a deportação.” [Bauer
1978: 185]
Aqueles que criticam o mercado por suas imperfeições deixam de considerar “que os participantes
do mercado são as pessoas. Os seres humanos e seus arranjos não têm como ser infalíveis” (Bauer
1984: 29). O pressuposto implícito dos críticos do mercado é de que as pessoas no governo são de
alguma forma melhores que as pessoas na ordem de mercado. Contudo, como Bauer adverte, as
pessoas no governo têm poder de coerção, de que os participantes do mercado não dispõem: “Nos
últimos anos, detratores da ordem de mercado têm tentado ilustrar essa tese por meio da pressão
política ou fraudes protagonizadas por integrantes do mercado. Seria melhor para a sociedade que
tais pessoas estivessem no governo e o que é pior, gozando do poder coercitivo de que dispõem?”
Algumas pessoas criticam a ordem de mercado por não promover um progresso material
suficientemente rápido. No entanto, Bauer (1984: 29) enfatiza:
“Não é uma falha do mercado não garantir progresso material, quanto mais contentamento ou
felicidade. Decorre naturalmente dos acordos voluntários a possibilidade de as pessoas
continuarem sem ambição material ou, se preferirem, considerarem excessivo o custo do
crescimento econômico. A ordem de mercado, na verdade, permite que as pessoas “fiquem cada um
na sua”, para usar um jargão contemporâneo.”
Talvez a crítica mais inflamada ao mercado tenha sido a de que ele leva à desigualdade na
distribuição de renda e riqueza. Bauer combateu essa crítica diretamente. Primeiro, ele fez a devida
distinção entre “desigualdade” e “diferenças”, preferindo o último termo por considerá-lo mais
analítico e menos emotivo. As pessoas diferem umas das outras de acordo com suas habilidades,
suas inclinações e sua conduta; essas diferenças resultam em diferenças de renda e riqueza. Em
segundo lugar, em uma ordem de mercado, uma pessoa se torna rica servindo às necessidades de
outras — isto é, satisfazendo as preferências dos consumidores. Os indivíduos que aplicam recursos
em serviços mais valorizados se darão melhor que aqueles que não optam por isso.
Terceiro, há duas maneiras de adquirir renda maior: pela força ou pela troca voluntária. A ordem de
mercado reside na igualdade perante a lei e em um governo limitado; usar o governo para manipular
artificialmente transferências forçadas viola os direitos de propriedade privada e diminui a liberdade
econômica. A justiça, devidamente compreendida, exige um governo limitado, não um Estado
redistributivo. Assim, os críticos dos resultados do mercado viram a justiça de cabeça para baixo.
Não são os empresários bem sucedidos do mercado ocidental que exploram os pobres no Terceiro
Mundo, mas sim seus próprios governos corruptos. [4]
Como as tentativas dos governos de combater as diferenças de renda (“desigualdade”)
necessariamente envolvem o uso da força, Bauer (1981: 8) observou “uma contradição essencial no
igualitarismo em sociedades abertas”. De fato:
Em uma sociedade livre e aberta, ações políticas que deliberadamente se destinassem a minimizar ,
ou até remover, as diferenças econômicas (i.e. diferenças de renda e riqueza) implicariam em uma
coerção tal que a sociedade deixaria de ser aberta e livre. A busca vitoriosa do “cálice profano”
da igualdade econômica trocaria a prometida redução ou remoção das diferenças de renda por
desigualdades muito maiores de poder entre autoridades e súditos.
Decretar a igualdade de resultados não só destrói a liberdade, por meio da discriminação contra
indivíduos ou grupos bem sucedidos, mas também destrói as oportunidades de ascensão
características do processo competitivo do mercado — um processo que reside na inviolabilidade da
propriedade privada e da liberdade de contrato. Bauer, assim como os grandes liberais do século
XVIII, reconheceu a importante relação entre o arcabouço institucional, ou de propriedade privada,
e o processo de geração de riquezas. Críticos do mercado que ignoram essa relação desconsideram a
realidade.
Sobre os fatores determinantes para o desenvolvimento econômico
Após estudar diversos países menos desenvolvidos, Bauer concluiu que o desenvolvimento
econômico depende de instituições, cultura e conduta, não de planejamento, investimento estatal em
larga escala ou recursos naturais:
“A performance econômica depende de fatores pessoais, culturais e políticos, das aptidões e das
motivações da pessoas, bem como das instituições sociais e políticas. Onde estes são favoráveis, o
capital será gerado localmente ou atraído de fora, e se a terra é escassa, a comida será obtida
através de agricultura intensiva ou da exportação de outros bens.” [Bauer 2009:29]
Uma grande e crescente população ou uma alta densidade populacional não prejudicam o progresso
econômico, contanto que o ambiente institucional seja favorável à liberdade e à responsabilidade.
Assim, para Bauer, “O sucesso econômico e o progresso dependem da conduta das pessoas, não do
seu número”. Ele criticou o uso da renda per capita nacional como medida do bem-estar pessoal por
“ignorar a satisfação que as pessoas obtêm em ter filhos ou em viver mais tempo... Ironicamente, o
nascimento de uma criança é registrado como uma redução na renda per capita nacional, enquanto
o nascimento de um bezerro é visto como um aumento” (Bauer 2000:30-31).
O fetiche do investimento e da poupança compulsória
Bauer era especialmente crítico ao argumento amplamente aceito por especialistas em
desenvolvimento de que investimentos governamentais em larga escala seriam necessários para
combater a pobreza. Em primeiro lugar, o investimento por si só é apenas um fator influenciando o
crescimento econômico:
É equivocado pensar que o investimento é o único ou o principal determinante do desenvolvimento.
Outros fatores e influências, como forças institucionais e políticas, as qualidades e atitudes da
população, e a oferta de recursos complementares, são com freqüência igualmente importantes ou
até mais... É mais significativo dizer que capital é criado no processo de desenvolvimento do que
dizer que o desenvolvimento acontece por causa do capital. [Bauer 1957:119]
Segundo, quando o Estado se utiliza de impostos e outras medidas para reduzir o consumo privado,
ele pode piorar a situação das pessoas: o investimento privado é reduzido, restringindo o
crescimento do mercado; e a poupança compulsória reduz a liberdade individual. É um erro, afirma
Bauer, considerar “os fundos procedentes de poupança compulsória... uma adição geral à
quantidade de recursos”. Há um custo envolvido; no caso, a renda de que se abriu mão, que poderia
ter sido direcionada para a formação de capital privado. Ademais, “a tributação voltada para o
desenvolvimento [isto é, poupança compulsória] normalmente recai sobre o setor de trocas, e tem
grandes chances de tomar formas que venham a retardar a expansão da produção para trocas mais
amplas”. Finalmente, os investimentos direcionados pelo Estado e a poupança compulsória têm
impacto negativo na liberdade: geralmente levam à “maior desigualdade na distribuição de poder
dentro do país”, o que “sugere uma restrição no leque de opções daqueles sobre os quais o poder
exercido” (Bauer 1957:116-17, 124). Em resposta à noção de que “a austeridade obrigatória por lei
é... necessária para o prometido crescimento na produção”, Bauer (1981:254) responde: “Que
direito têm os governantes de coagir seus súditos a este propósito?”[5]
Terceiro, investimentos direcionados pelo Estado são notoriamente ineficientes, pois são guiados
por considerações políticas, e não econômicas. O chamado fetiche do investimento dos especialistas
em desenvolvimento resultou em diversos projetos em larga escala que foram monumentos à elite
governante às custas dos pobres (Bauer 1981: capítulo XIV). Além disso, a falta de direitos de
propriedade privada nestes investimentos levou ao mal gerenciamento e à falta de manutenção. É
necessário apenas olhar para a situação da União Soviética e de seus Estados-satélites.
Pensar que os pobres são incapazes de poupar e investir para o futuro significa ignorar as lições da
história, afirma Bauer. Os pequenos proprietários na Malásia e os pequenos comerciantes no oeste
africano tiveram a prudência e o incentivo para abrir mão do consumo imediato a fim de realizar
culturas (seringueiras na Malásia e cacaueiros na África Ocidental Britânica) que exigiam vários
anos até de ficar prontas para a extração e venda no mercado (Bauer 1948a, 1948b, 1954).
Nenhuma coerção foi necessária.
Em suma, “Para emergir da pobreza ... não é necessária a formação de capital em larga-escala. É
necessário que se mude as atitudes e costumes adversos ao progresso material, e que haja disposição
de produzir para o mercado em vez de para a subsistência, e a busca de políticas governamentais
apropriadas. A formação de um vasto capital não é uma precondição para melhorias materiais, mas
um processo concomitante” (Bauer 1981:248). Estas mudanças vêm mais facilmente pela promoção
de de uma sociedade aberta e de políticas de livre comércio, não de coerção governamental,
protecionismo e ajuda internacional.
Os ganhos dinâmicos do comércio
Bauer criticou os economistas desenvolvimentistas convencionais por negligenciar o papel dos
comerciantes na transição da economia de subsistência para a de trocas. As trocas internas, em
particular, são uma fonte importante de crescimento para os países menos desenvolvidos, como
Bauer concluiu em seu estudo sobre o comércio no oeste africano. A emergência de uma classe
mercantil – uma classe de comerciantes e lojistas – ajuda “a criar instituições e práticas comerciais e
a elevar o nível de capital humano” (Bauer 200: 4). Pequenos comerciantes oferecem tanto serviço
de vendas quanto crédito aos seus clientes. Esta oferta de crédito é o último elo em uma longa
cadeia que começa com as grandes instituições financeiras internacionais no mercado mundial de
capitais. Neste sentido, “Há... um processo de fragmentação no mercado financeiro; e o agricultor
nos sertões tem acesso ao mercado de capitais mundial indiretamente” (Bauer 2000:10).
Especialistas casados com a idéia de que apenas investimentos de capital em larga escala poderiam
acabar com a pobreza nos países menos desenvolvidos negligenciaram estes elos informais e os
projetos de capital em pequena escala.
As principais teorias do desenvolvimento ignoraram os ganhos dinâmicos produzidos pela
liberalização do comércio: “Contatos feitos por comerciantes e por meio do comércio são agentes
primordiais na difusão de novas idéias, comportamentos e métodos de produção. Contatos externos
de comerciantes com frequência sugerem a possibilidade de mudanças, incluindo a melhoria
econômica” (Bauer 2000:8). A disponibilidade de bens ocidentais apresenta um incentivo às pessoas
em países menos desenvolvidos para que trabalhem duro, poupem e invistam para poderem pagar
por novos itens de luxo: “Não é por acidente que por todo o Terceiro Mundo as regiões mais
avançadas são aquelas com mais contatos comerciais com o Ocidente; analogamente, as mais
pobres e atrasadas são aquelas com poucos contatos” (Bauer 2000:7-8).
Ao abrir os mercados interno e externo à competição, os governos podem fornecer uma base sólida
ao progresso material. O problema é que, em muitos países de Terceiro Mundo, interesses
arraigados desejam manter o status quo. A quebra de monopólios governamentais e a liberalização
do comércio ajudariam os pobres, mas prejudicariam grupos politicamente poderosos, o que torna
as mudanças difíceis. Políticas protecionistas retardam o crescimento econômico, fazendo com que
os governos procurem ajudas externas como fonte alternativa de ajuda aos pobres. Bauer viu esta
abordagem como perigoso desvio, e um beco sem saída. Os pobres são duplamente prejudicados:
em primeiro lugar, pelos efeitos anticompetitivos dos monopólios estatais e dos impostos e, em
segundo, pela influência corruptora das transferências de governo para governo.
Ajuda internacional e politização da vida econômica
Enquanto o comércio aumenta o número de alternativas à disposição dos pobres, a ajuda
internacional torna-os mais dependentes do governo e politiza a vida econômica. A ajuda oficial é
melhor compreendida como subsídio à corrupção dos governos do que benefício aos pobres,
afirmou Bauer. Na sua visão, a ajuda internacional não é nem necessária nem suficiente para o
desenvolvimento econômico – podendo até ser-lhe prejudicial (Bauer 1976: 95-136). Aqueles
tecnocratas que argumentam que os países menos desenvolvidos não podem crescer sem ajuda
externa e que a pobreza se autoperpetua negligenciam o fato de que “ter dinheiro é resultado de
sucesso econômico, não sua pré-condição. Está claro pela própria existência de países
desenvolvidos que é assim que as coisas funcionam, já que todos estes devem ter sido originalmente
subdesenvolvidos, tendo progredido sem doações externas” (Bauer 2000: 6).
A história demonstra que subsídios externos politizam a vida econômica e adiam reformas
verdadeiras [6]. Bauer percebeu que, ao realizar a transição da economia planificada para a de
mercado em países ex-comunistas, era essencial criar uma infraestrutura institucional simpática ao
mercado. Em vez de fazer com que as pessoas no Oriente dependam de ajuda governamental,
governos do Ocidente deveriam demonstrar sua própria adesão à ordem liberal de mercado abrindo
seu mercado ao Oriente e liberalizando suas relações comerciais (Bauer 1998).
A ajuda internacional tem sido usada com frequência para enriquecer governantes no Terceiro
Mundo e para apoiar suas ambições políticas, em vez de promover a saúde econômica no longo
prazo e a independência dos indivíduos nos países menos desenvolvidos. Tal ajuda também
beneficia os produtores domésticos dos países doadores. Por estas e outras razões, Bauer (1984: 40)
afirmou que não haveria Terceiro Mundo sem ajuda internacional: “O conceito de Terceiro Mundo e
a política de ajuda oficial são inseparáveis. Um não existiria sem o outro... Assim, o Terceiro
Mundo é um conceito político, não econômico”.
Bauer considerava as transferências de governo para governo – isto é, ajuda internacional oficial –
“como uma fonte indireta de hostilidade ao mercado”. Os líderes do Terceiro Mundo têm um
incentivo para usar a ajuda externa para ganhar maior controle sobre a vida econômica: “Já que a
ajuda é dada aos governos, ela fortalece suas posições e aumenta o poder do setor público em
relação ao setor privado”. Além disso, Bauer argumentou que a ajuda internacional “provoca e
exacerba tensões políticas, que também aumentam o clima de hostilidade ao mercado,
especialmente em sociedades multirraciais”. Para Bauer, portanto, “a ajuda oficial é, na prática, uma
importante força antimercado” (Bauer 1978: 182-83).
Hoje a ênfase está na relação entre a ajuda internacional e liberalização do mercado. Mas se a ajuda
não é nem necessária nem suficiente para o desenvolvimento econômico, a defesa atual das
transferências de governo para governo é suspeita. Os mercados de capitais privados são
plenamente capazes de oferecer fundos suficientes para o desenvolvimento econômico, desde que
estes fundos sejam usados de maneira produtiva e lucrativa no Terceiro Mundo.
O futuro do liberalismo de mercado
O completo fracasso do planejamento central significa que esta opção não é mais uma ameaça
significativa à ordem de mercado. O verdadeiro perigo para o liberalismo de mercado é a idéia de
que desigualdades de renda e riqueza demandam a ação corretiva do governo e de que o Ocidente é
responsável ou culpado pela pobreza no Terceiro Mundo (Bauer 1981: capítulo IV). Na verdade, é
amplamente aceito que para que se alcance justiça social é necessária uma maior igualdade na
distribuição de renda e riqueza, o que sugere que diferenças significativas em renda e riqueza
(conforme determinado por alguma norma social arbitrária) são resultado de “exploração, opressão,
discriminação ou privilégios impróprios; e a redistribuição politicamente organizada é desejável”
(Bauer 1984: 73). Essa “legitimação da inveja” é, na visão de Bauer, uma grande ameaça a uma
sociedade aberta.
A igualdade, devidamente compreendida como igualdade perante a lei, de maneira que regras justas
ofereçam igual proteção às pessoas e propriedades, é um dos princípios básicos de uma ordem
liberal de mercado e é integralmente compatível com a liberdade individual. Bauer opõe-se não ao
uso da força para proteger os direitos de propriedade, mas sim ao uso do poder do governo para
tomar propriedades privadas sem o consentimento dos proprietários com o propósito de alcançar
alguma igualdade politicamente determinada na distribuição de renda e riqueza. Quanto mais o país
se move pelo caminho da redistribuição ou do Estado de Bem-Estar Social, maior será a
desigualdade de poder resultante, conforme as decisões políticas tomem o lugar das decisões de
mercado [7].
Se os indivíduos acreditam que a riqueza do Ocidente é resultado da exploração dos recursos do
Terceiro Mundo e que o comércio faz com que os ricos enriqueçam às custas dos pobres, então será
colocada uma maior pressão internacional em governos Ocidentais para que explorem os ricos, em
nome da justiça social. Quando essa mentalidade prevalece, a democracia constitucional, o governo
limitado e a ordem espontânea de mercado dão lugar ao majoritarianismo cru e ao socialismo de
mercado. Este processo é se vê claro hoje no crescimento do Estado paternalista e do movimento
antiglobalização.
Bauer (1984: 35) compreendeu claramente que a “substituição dos processos do mercado por
decisões políticas fornecem poder, influência, empregos e dinheiro a políticos e funcionários
públicos”. O desafio é limitar o poder do governo através uma “constituição da liberdade”, segundo
o uso que Hayek (1960) fez do termo, para que as pessoas tenham a liberdade de escolher. Para
tanto, porém, deve haver um ethos de liberdade na sociedade. A persistência e a coragem de Bauer
em defender os princípios de uma sociedade livre precisam continuar hoje, para que o liberalismo
de mercado sobreviva e floresça no século XXI. O primeiro passo é o reconhecimento da
necessidade de se pensar claramente. Conforme Bauer (1984: 37) assinalou, “a despeito da sua
produtividade, a ordem de mercado pode muito bem desaparecer, a menos que seus participantes e
defensores tenham a clareza de pensamento, a vontade e a coragem de trabalhar pela sua
sobrevivência”. Bauer (1984: 89) gostava de dizer que “Há uma profunda verdade na máxima de
Pascal que diz que trabalhar duro para pensar claramente é o início de uma conduta moral”. Quando
recebeu seu título de nobreza em 1982, Lord Bauer escolheu o lema “Livremo-nos do palavrório”
para seu brasão.
O legado de Bauer é que, por sua persistência e clareza de pensamento, ele ajudou a melhor
entender as forças que moldam o desenvolvimento econômico, especialmente instituições como
propriedade privada, moeda estável, livre comércio e governo limitado – todos estes compõem a
base de uma ordem liberal de mercado. Sua “discordância quanto ao desenvolvimento”, com que,
praticamente sozinho, reverteu o modelo de desenvolvimento guiado pelo Estado, garante que ele
será lembrado como um dos grandes defensores da liberdade do século XX.
Notas
[1] Para uma breve biografia de Bauer, ver Harris (2002). Basil Yamey (1987) faz um excelente
resumo da obra de Bauer.
[2] Em seu primeiro livro, The Rubber Industry, Bauer (1948b: 348) escreveu: “A fim de tornar
possível o novo plantio, tem de haver também alienação (e em termos fáceis) da terra. Deveria ser
dada atenção particular ao encorajamento de pequenas propriedades.”
[3] Tirado de uma carta do primeiro ministro enviada a Edward H. Crane, presidente do Cato
Institute, depois de Gandhi ter recebido uma cópia do livro National Economic Planning: What Is
Left? [“Planejamento econômico nacional: o que restou?”]
[4] Há um debate entre Bauer e Amartya sobre o igualitarismo publicado em The New York Review
of Books (1982).
[5] O Prêmio Nobel Gunnar Myrdal (1956b:64) argumentou em suas palestras no Cairo: “Não há
outro caminho para o desenvolvimento econômico que não passe por um aumento forçado da renda
nacional que é desviada do consumo para investimentos, e isso sugere uma política de austeridade
extrema”.
[6] A ajuda internacional tem sido um terrível fracasso porque a liberdade econômica, e não o
auxílio econômico, é o ingrediente chave para estimular a melhoria material. Bauer defendeu esta
idéia diversas vezes e estudos recentes apoiam sua visão. Bryan Johnson e Thomas Sheehy (1996:
2) descobriram que “dos 34 países que receberam ajuda americana no longo prazo classificados
como carentes de liberdade econômica pelo Index [of Economic Freedom], 26 não melhoraram sua
situação nos últimos trinta anos. Ian Vásquez examinou 73 países durante o período de 1971-95 e
não encontrou correlação positiva entre ajuda e crescimento econômico. De fato, foi encontrada
uma leve correlação negativa. Ele também concluiu que em um grupo de 20 países cuja posição no
ranking de liberdade econômica permaneceu constante ou baixou no período entre 1985-90, em 19
deles a ajuda recebida cresceu como porcentagem do PIB (Vásquez 1998: 276, 279).
[7] Bauer aponta para a confusão em pensar que diferenças de riqueza sugiram diferenças de poder,
no sentido de “possibilidade de alguns indivíduos controlarem outros”. Na realidade, “a liberdade
do controle e do planejamento surge do acesso a alternativas independentes, e não da igualdade de
renda ou riqueza convencionalmente medidas” (Bauer 1957: 125, n. 21).
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Silvestre Pinheiro Ferreira

Português de nascimento, tendo vindo para o Brasil em decorrência da mudança da Corte, Silvestre
Pinheiro Ferreira desempenharia papel chave no ordenamento institucional propiciado pelo
Regresso, isto é, do movimento ocorrido no início dos anos quarenta, a partir do qual tem início de
fato a construção das instituições do governo representativo no Brasil. Essa circunstância advém do
fato de que estabeleceu sólidos vínculos com muitas das personalidades que viriam a assumir os
destinos do país. Tendo permanecido no Rio de Janeiro cerca de onze anos, manteve um curso de
cultura geral. Sua hipótese era a de que a experiência de governo representativo, que vinha sendo
implementada no continente europeu, em meio a graves dificuldades, somente se tornaria
compreensível a partir da consideração do conjunto das novidades suscitadas pela época moderna.
Entendia também que, dado o papel destacado da ciência nesse conjunto, era imprescindível partir
da reviravolta que o seu surgimento provocara na teoria tradicional do conhecimento, ligada a
Aristóteles. Em Portugal, chegou-se a dizer que “era de fé” a tese aristotélica da existência de
formas substanciais e acidentais. Essa tese vinculava-se à Contra Reforma e à necessidade de
reivindicar o papel da Igreja, negada pelos protestantes. Em contrapartida, com a emergência de
Pombal, passou-se para o extremo oposto, negando qualquer validade à obra de Aristóteles.
O curso que ministrou no Rio de Janeiro, ao ser editado, mereceria o nome de Preleções Filosóficas.
Mais tarde, notabilizar-se-ia por ter se tornado chefe do governo de D. João VI, regressando a
Portugal com a Corte e assumindo a responsabilidade de representar a moderação no processo de
transição para a monarquia representativa. Inexistindo clima para a moderação, exilou-se em Paris,
onde se dedicaria exclusivamente à complementação de sua obra teórica. Desta vez se ocuparia de
estruturar a doutrina liberal, então denominada de “direito constitucional”.
Ao longo de toda essa fase final, manteve os vínculos que estabelecera com os brasileiros, agora
tendo assumido os destinos do país. Atuou portanto como conselheiro, dispondo de enorme
audiência. O seu grande feito iria consistir em ter familiarizado a corrente moderada, em formação,
com a doutrina da representação como sendo de interesses. Insistiu na necessidade de identificá-los
e tratar de organizar a sua representação no Parlamento. Este teria de ser entendido como o local da
negociação, com a incumbência de por termo à luta armada que grassava tanto no Brasil como em
Portugal.
Tratando-se de personalidade tão multifacetada, nos tópicos a seguir procuraremos resumir as
informações substanciais dos aspectos, a nosso ver, mais relevantes.
Dados biográficos
Silvestre Pinheiro Ferreira nasceu a 31 de dezembro de 1769, em Lisboa. A família destinou-o à
vida eclesiástica, fazendo-o ingressar na Ordem do Oratório, em 1783, aos 14 anos de idade.
Permaneceu no Oratório durante cerca de dez anos e ali recebeu sua formação intelectual. Na
Ordem, a influência de Verney (Luiz Antonio Verney, 1713-1792) — o crítico do ensino escolástico
— haveria de ser muito presente, desde que até a sua morte faria divulgar sucessivos textos, dando
seqüência ao programa formulado no Verdadeiro método de estudar (1746-1747). Assim, os
horizontes filosóficos deveriam ser fixados pela doutrina filosófica batizada de empirismo mitigado,
obra do próprio Verney e do filósofo italiano Antonio Genovesi (1713-1769). Silvestre Pinheiro
Ferreira iria chocar-se com essa doutrina dominante, o que o levaria, primeiro, a abandonar o
projeto eclesiástico, e, pouco mais tarde, segundo se mencionará, a emigrar de Portugal.
Afastando-se do seminário, ministrou aulas particulares em Lisboa, mas logo (1794) obteve por
concurso, na Universidade de Coimbra, o lugar de lente substituto da cadeira de filosofia racional e
moral do Colégio das Artes.
Na nova situação, buscou aprofundar a crítica ao sistema filosófico vigente. Semelhante iniciativa
não foi bem aceita pela comunidade, que o denunciou às autoridades. Ameaçado de prisão, foge de
Portugal, embarcando clandestinamente em Setúbal, a 31 de julho de 1797. Tinha, portanto, menos
de 30 anos.
No exílio, Silvestre Pinheiro Ferreira estabeleceu relações com Antônio de Araújo, futuro conde de
Barca, ministro de Portugal em Haia, pessoa de influência ascendente e que iria introduzi-lo na
carreira diplomática. Assim, foi secretário interino da Embaixada em Paris, a seguir, secretário da
Legação na Holanda (1798) e, depois (1802), encarregado de negócios na Corte de Berlim.
A permanência na Alemanha prolongou-se até 1810. Acompanhou de perto o movimento idealista
pós-kantiano, tendo assistido a conferências ou debates com a presença, entre outros, de Fichte e
Schelling. Suas simpatias, contudo, eram todas para o sistema Wolf-Leibniz que, naquela
oportunidade, ainda contaria com a adesão da maioria das universidades.
Regressou diretamente para o Brasil, em 1810, quando a Corte já se achava sedimentada. Cercava-
o, então, a fama de erudito e liberal, que a posteridade comprovaria não ser imerecida, mas que lhe
acarretaria inúmeros dissabores.
No Rio de Janeiro, Silvestre Pinheiro Ferreira volta à condição de professor de filosofia. Seu
magistério contribuiu decisivamente para eliminar a influência da teoria do conhecimento posta em
circulação — denominada empirismo mitigado. A experiência brasileira comprovaria que esse
sistema acabou se combinando com o democratismo. Assim, sem minar seus fundamentos últimos e
sem a formulação de novos elementos teóricos, não teria sido possível o ulterior predomínio dos
moderados.
A Corte o prestigiava ou hostilizava segundo a maré montante do liberalismo. Com a Revolução
Constitucionalista do Porto (1820) e sua repercussão no Brasil, decide o Monarca entregar a chefia
do governo a Silvestre Pinheiro Ferreira. Nessa condção, regressa a Portugal com o regresso da
Corte. O clima vigente em Portugal não era entretanto de molde a facilitar a transição da monarquia
absoluta para a constitucional. Nas Cortes, predominavam os partidários do democratismo que se
resistiam a praticar a monarquia constitucional, o que, por sua vez, açulava o elemento restaurador.
Diante da crescente ascendência desse último grupo — liderados por D. Miguel — Silvestre
Pinheiro Ferreira não se sente em condições de manter-se no posto. Abandona o governo e exila-se
na capital francesa. Ali permaneceria até o início da década de quarenta. Tendo sido, pela terceira
vez, eleito deputado, em 1842, decide-se afinal por regressar a Portugal. Tinha então 73 anos, saúde
debilitada, supondo-se que haja na verdade optado por morrer em solo pátrio. E, com efeito, menos
de três anos depois, viria a falecer, a 2 de julho de 1846.
Obra teórica
Durante a longa estada parisiense, cerca de vinte anos, Silvestre Pinheiro Ferreira elaborou extensa
obra de filósofo e publicista político. Comentou e criticou à exaustão as Constituições brasileira e
portuguesa, discutiu em detalhes os problemas da doutrina liberal e, em 1834, publicou a síntese de
suas idéias no Manual do cidadão em um governo representativo, em três tomos, que ora se reedita
pelo Senado. No entender de Silvestre Pinheiro Ferreira, o direito constitucional, como então se
denominava o liberalismo político, se encaixava num amplo sistema filosófico cuja concepção seria
obra do período brasileiro. Como naquela oportunidade não pôde dedicar-se a apresentá-lo por
escrito, o que só em parte se efetiva em Preleções filosóficas — publicação que reúne o material do
curso ministrado no Rio de Janeiro — , em Paris cuidou de fazê-lo em Essai sur la psychologie
(1826) que mais tarde (1836 e 1839) resumiria, em forma de compêndio, na obra Noções el
ementares de filosofia geral e aplicadas às ciências morais e políticas: ontologia; psicologia e
ideologia (1839). Em período recente, além da reedição das Preleções filosóficas, foram publicados
Idéias políticas (Rio de Janeiro, Documentário, 1976), uma antologia de seus principais textos sobre
a matéria preparada por Vicente Barreto, e Ensaios filosóficos (Rio de Janeiro, Documentário,
1979), compreendendo a obra filosófica concluída no exílio, em Paris. O Centro de Documentação
do Pensamento Brasileiro, sediado em Salvador, dedicou-lhe urna de suas Bibliografias e estudos
críticos, aparecida em 1983. Essa publicação insere os principais ensaios sobre sua obra, de autores
portugueses e brasileiros. Também em Portugal sua obra tem sido reeditada e estudada,
especialmente por José Esteves Pereira, autor de Silvestre Pinheiro Ferreira: seu pensamento
político (Coimbra, 1974), texto que se tornou referência obrigatória.
Doutrina política
O exame detido a que se dedicou dos percalços da organização do sistema representativo, tanto no
Brasil como em Portugal, interessou vivamente à elite brasileira que se deparava com esse
problema. O Viconde de Cairu habitualmente dava conta a seus pares, no Senado, de cada nova obra
de sua autoria. Vê-se pelo Catálogo da Editora Garnier, daquele período, que a produção intelectual
de Silvestre Pinheiro Ferreira merecia sempre o maior destaque.
A contribuição fundamental de Silvestre Pinheiro Ferreira reside no entendimento da doutrina da
representação política. Em seu tempo, as principais doutrinas em voga eram da autoria de Edmund
Burke e de Stuart Mill, que, entretanto, não haviam conseguido uma solução capaz de contribuir
para o adequado entendimento da natureza do sistema representativo. O primeiro aventou a hipótese
de que, embora devendo prestar contas ao distrito que o elegera, o parlamentar tornava-se
representante de toda a Nação, o que lhe asseguraria certa independência. Perguntava-se: o que o
levava a nutrir a suposição de que poderia ocupar tal posição na sociedade? Stuart Mill iria difundir
a teoria de que a independência do representante seria justificada pelo fato de que é (ou deve ser)
mais instruído e mais sábio que seus eleitores.
A doutrina de Silvestre Pinheiro, inspirando-se em Benjamin Constant, popularizou a tese de que a
representação política seria de interesses. No Manual, antes citado, deteve-se amplamente nesse
aspecto, inclusive tentando identificar os segmentos, na sociedade luso-brasileira, que teriam
interesses perfeitamente configurados. Pronunciamentos de diversos integrantes da liderança
política brasileira da época explicitam a sua adesão à tal doutrina, justamente ao que se pode
atribuir o empenho com que se ocuparia, no Segundo Reinado, de aprimorar esse instituto.
O Manual do cidadão em um governo representativo, agora reeditado, assinala que, em prol da
concisão, tornou-se praxe, entre publicistas e jurisconsultos, dizer que “o procurador representa o
seu constituinte, quando, em prol da clareza e da exatidão, competia dizer que “o procurador
representa os interesses do seu constituinte”. Ao que acrescenta: “Se os jurisconsultos tivessem
avaliado a importância desta observação, teriam concluído sem hesitar que a jurisprudência da
representação não pode ser outra que a do mandato. Quando se tratasse de fixar os direitos e deveres
dos mandatários ou representantes, quaisquer que sejam, é na natureza dos interesses que se devem
procurar os motivos; mas perdendo de vista esta idéia tão simples ou omitindo a palavra interesses,
e conservando a de pessoa, caíram em graves erros, mormente quando trataram de direito
constitucional e de direitos e deveres dos agentes diplomáticos...”
Considerando a importância da personalidade de Silvestre Pinheiro Ferreira — e do próprio texto —
para o ordenamento institucional alcançado no Segundo Reinado, o Senado Federal promoveu a
reedição de Manual do cidadão em um governo representativo numa primorosa, edição fac-similar.
O Manual do cidadão em um governo representativo, aparecido em 1834, corresponde à versão
popular, em forma de diálogo, do Curso de direito público interno e externo (1830) que por sua vez
é parte de um conjunto de obras destinadas a consolidar, no plano legal, a transição da monarquia
absoluta para a Constitucional, em Portugal e no Brasil. Tudo leva a crer que o livro teve papel
importante no ordenamento institucional que começa com o chamado Regresso (1840).
A partir da Revolução do Porto (agosto-setembro de 1820), tanto o Brasil como Portugal
experimentam dois decênios de extrema turbulência. Guerras civis prolongadas, em nosso caso,
agravadas pelo separatismo, instabilidade política, acefalia do poder Monárquico (abdicação de
Pedro I no Brasil e usurpação do trono por D. Miguel em Portugal). O quadro viu-se muitíssimo
complicado graças à total inexperiência quanto ao funcionamento do sistema representativo.
Paulino José Soares, visconde de Uruguai (1807-1866), em sua obra Ensaio sobre o direito
administrativo (1862), relata como a Câmara dos Deputados, ainda nos anos 30, interferia no
preenchimento de cargos do Executivo, envolvia-se em questiúnculas da administração,
pretendendo impor diretrizes de ordem prática. Relaciona grande número de proposições que,
embora contrariando frontalmente a Constituição, chegaram a merecer o apoio de um terço dos
representantes.
Atento à circunstância, Silvestre Pinheiro Ferreira comentou de maneira exaustiva as Constituições
do Brasil e de Portugal, concebendo um conjunto de leis que facilitasse a conclusão do novo arranjo
institucional. O Curso de direito público destina-se também a expor a teoria do governo
representativo isto é, a doutrina liberal que, então, se denominava direito constitucional.
A obra do ilustre homem público forneceu a orientação básica a partir da qual notável grupo de
políticos brasileiros conseguiu assegurar cerca de meio século de estabilidade política, durante o
segundo Reinado, feito que não mais se repetiu em nossa história. O primeiro tomo do Manual
contém a parte doutrinária. O segundo está dedicado às alterações a ser efetivadas na administração,
cuja caracterização inicia-se, aliás, na última parcela do tomo primeiro. Na parte final do tomo
segundo, consta a apresentação dos princípios do direito internacional e um índice alfabético de
toda a matéria considerada nos dois tornos iniciais. Finalmente, o terceiro insere o projeto das leis
fundamentais e constitutivas de uma monarquia constitucional, a que chama de Código Geral. Na
parte doutrinária (tomo primeiro), Silvestre Pinheiro Ferreira inicia pelo preâmbulo das Cartas
constitucionais que se formularam desde a Revolução Americana, isto é, trata dos direitos e dos
deveres, seguindo-se a caracterização dos diversos poderes. Aqui, contudo, a questão central,
parece-me, consiste na teoria da representação. Tamanha a importância que ele atribui à questão,
que se decide por considerá-la como um poder autônomo (o poder eleitoral). Essa, aliás, é a
novidade básica da monarquia constitucional por oposição à absoluta. Silvestre Pinheiro Ferreira
tinha perfeita intuição de que, se fosse possível organizar adequadamente a representação, se criaria
um novo desaguadouro para os conflitos. Enquanto na discussão levada a cabo pelos americanos
nos Federalist Papers ou nos primórdios do chamado utilitarismo (Jeremy Bentham, 1748-1832),
cujas idéias tornam-se mais conhecidas a partir do aparecimento do periódico Westminster Review
(1824) e de sua vulgarização por James Mill (1773-1836), os interesses individuais são encarados
de forma negativa, admitindo-se contudo a possibilidade de emergirem e terem livre curso os
interesses gerais desde que assegurada a liberdade de iniciativa dos cidadãos (n o fundo, ‘a mão
invisível’ de Adam Smith), Silvestre Pinheiro Ferreira iria não só avaliar de modo diferenciado a
natureza dos interesses, como, por este meio, abrir o caminho à possibilidade de organizar a sua
expressão. O autor do Manual arrolou doze tipos de atividades (agricultura, mineração, comércio e
os principais segmentos do Poder Público) reunindo-as em três ‘estados’ (comércio, indústria e
serviço público), voltando sua atenção, de preferência, para a forma de escolha que assegurasse
autenticidade à representação. “Ainda mesmo no caso de possuir conhecimentos mui extensos em
outras partes da administração”, escreve, “os representantes devem possuir sobretudo familiaridade
com os interesses que lhes incumbem representar”. Diz expressamente que não é levando em conta
aqueles conhecimentos gerais (sobre os quais hão de ter “um interesse mui remoto”) que “os
eleitores estabelecem sua confiança”. Na visão de Silvestre Pinheiro Ferreira, a maneira sugerida
permitiria compor o Legislativo de forma mais adequada que a em geral praticada, “enquanto”,
escreve, “nos métodos vulgares cada eleitor escolhe sem saber que condições deve reunir o
candidato”. Ao que acrescenta: “Por isso vemos que os interesses dos diferentes estados são mui
imperfeitamente representados nos congressos de quantas nações se presumem viver debaixo do
regime constitucional; pela simples razão de que a lei não dirigiu a atenção do eleitor a fim de que
ele se concentrasse no círculo de seus conhecimentos e procurasse entre as pessoas de seu mesmo
estado os mais capazes de representar os respectivos interesses”. No fundo, o que advoga é o
afunilamento dos interesses, função de que os partidos políticos acabariam por desincumbir-se.
A ambição de Silvestre Pinheiro Ferreira é no sentido de que os próprios responsáveis pelo
Executivo sejam eleitos e não apenas os membros do Legislativo. A legitimidade da representação e
o novo arcabouço institucional onde os interesses (devidamente ordenados e organizados) devam
sentar para negociar ao invés de confrontar-se pelas armas, completam-se pela identificação daquela
esfera moral que precisa estar acima de qualquer barganha. Os legisladores brasileiros optaram pelo
Poder Moderador, exercido pelo monarca, assistido pelo Conselho de Estado. Silvestre Pinheiro
Ferreira preferiu diluir tal responsabilidade, a ser exercida pelo que chamou de Poder Conservador.
Trata-se de garantir os direitos individuais dos cidadãos e de assegurar harmonia e independência
entre os poderes. Na proposta de Silvestre Pinheiro Ferreira essa incumbência cabe aos eleitores, ao
Congresso Nacional, aos Tribunais de Justiça, ao Executivo e, por fim, ao Conselho Superior de
Inspeção e Censura Constitucional, composto mediante eleição. Essa diluição se recomenda porque
“ninguém ignora que os príncipes estão de tal modo cercados de lisonja e de intriga”, que a verdade
dificilmente chegará ao trono. Na matéria, o Congresso Nacional tampouco está “em condições
mais favoráveis do que quaisquer outros cidadãos”.

Manuel Ayau
Saindo do aeroporto na Cidade da Guatemala e dirigindo para meu hotel em minha primeira viagem
à Guatemala em janeiro de 2001, comentei com meu anfitrião que estava agradavelmente surpreso
por não ter visto nenhum agente alfandegário revirando as bagagens das pessoas. Na verdade, assim
que meus companheiros de viagem e eu tivemos nossos passaportes carimbados pela imigração, foi
revigorante ver o aeroporto desprovido daquelas turbas de burocratas ameaçadores.
Meu anfitrião sorriu e disse: “Lutei por isso. Por anos lutei por isso. Finalmente venci.” Ele disse
essas palavras não em tom de vanglória, mas apenas como quem constata um fato.
Normalmente eu ficaria cético em relação a uma afirmação dessas. Mas neste caso eu
imediatamente soube que era verdade. Meu anfitrião, veja bem, era Manuel F. Ayau, a quem eu
conhecia há muitos anos. Ele foi um precioso membro do conselho da FEE durante o tempo em que
presidi essa organização indispensável. Eu sabia que Muso — como o chamamos afetuosamente —
possui uma qualidade quase sobre-humana de resolver as coisas, de fazer coisas boas acontecerem,
de fazer as coisas progredirem.
Ele continuou, explicando suas razões para acabar com as revistas de rotina no aeroporto. “Na
primeira vez que eu trouxe Mises à Guatemala nos anos 1960, claro que fui recebê-lo quando saísse
do avião. Estava a seu lado enquanto um agente alfandegário revistava os conteúdos de sua
bagagem. Mises inclinou-se e me disse: ‘Eles estão garantindo que não estou trazendo nenhuma
riqueza para seu país.’ Ali eu decidi que me esforçaria para acabar com aquele nonsense.”
Levou mais de três décadas, mas Muso acabou conseguindo. Não há agentes patrulhando as
riquezas trazidas à Guatemala por passageiros que voem até sua capital.
Uma realização formidável.
Realizações formidáveis frequentemente vêm de indivíduos formidáveis. Muso é formidável.
Muso nasceu na Guatemala em 1925 e comemora esse mês seu octogésimo aniversário. Ainda que
seus pais fossem guatemaltecas, passaram muito tempo nos EUA. Ele frequentou a Cornell
University e chegou a lutar com as Forças Expedicionárias Americanas na Primeira Guerra
Mundial. Infelizmente, o pai de Muso morreu quando ele tinha apenas cinco anos.
Talvez as responsabilidades familiares adicionais que logo recaíram sobre o jovem Muso ajudem a
explicar seu apelido. Dizem que o pequeno Manuel estava sempre ansioso nas brincadeiras para
assumir o papel de líder de seus irmãos e sobrinhos, tanto que — usando uma roupa de Mussolini
(!) que um parente lhe trouxera — um familiar um dia observou que Manuel lembrava bastante o
ditador italiano.
Se é verdade que Muso é um líder, é mais do que irônico que seu apelido tenha sido tirado de um
ditador. Não há homem mais com mais aversão à autocracia, nem homem que tenha trabalhado com
mais diligência e zelo pelos mercados livres e o estado de direito do que Manuel Ayau. Apesar
disso, porém, o apelido colou.
Seguindo os desejos de seu falecido pai, Ayau estudou nos EUA. Fez o high school na Califórnia e
obteve seu diploma em engenharia mecânica na Lousiana State University. Nessa época, no meio da
Segunda Guerra Mundial, também foi voluntário por um período na Força Aérea Real Canadense.
Muso então retornou à sua Guatemala natal para administrar uma empresa familiar que produzia
gases industriais.
Logo que se deparou com regulamentações pesadas, burocratas corruptos e impostos absurdos,
juntou-se a outros empresários guatemaltecas para libertar os consumidores e produtores do regime
regulador de comando e controle que estava sufocando o comércio. Mas, como Muso certa vez me
falou, “Logo fiquei desiludido. Mesmo quando ganhávamos uma batalha aqui e ali, continuávamos
a perder a guerra contra o estatismo. Logo percebi que não faríamos progresso de verdade a menos
que mudássemos as idéias subjacentes da população. Precisávamos de uma perspectiva de longo
prazo. Aprendi que a liberdade deve triunfar nos corações e mentes do povo antes de ter qualquer
progresso na política.”
Assim, em 1958 ele e outros seis amigos de idéias semelhantes fundaram o Centro de Estudos
Econômicos e Sociais, mas conhecido pela sigla CEES. Como escreve Muso em suas memórias
ainda inéditas, “o objetivo do CEES era estudar e divulgar os princípios éticos, econômicos e
jurídicos da sociedade livre”.
O CEES embarcou num ambicioso programa de traduções para os espanhol de obras clássicas da
economia, da filosofia política e do direito — obras como Theory and History [“Teoria e História”],
de Mises, e A lei, de Bastiat. Não apenas as obras eram traduzidas e distribuídas, mas também lidas
e estudadas. Além de manter sua empresa e ajudar a administrar o CEES, este ativo empreendedor
também é um profundo pensador. Ele e seus colegas do CEES estudaram e discutiram as obras de
Mill, Mises, e Hayek, entre outros. Deste jeito, tornaram-se grande autodidatas nas ciências sociais.
O aumento da reputação do CEES começou a chamar a atenção de outros liberais latino-
americanos. Em 1959, o Institute of Economic and Social Research apresentou Muso e seus colegas
do CEES à Foundation for Economic Education. Por sua vez, a FEE e seu fundador e presidente,
Leonard Read, apresentaram Muso e seus colegas guatemaltecas a Mises, Henry Hazlitt, Ben
Rogge, Dean Russel, Israel Kirzner, Hans Sennholz e outros expoentes liberais ativos nos EUA.
Ao longo dos anos a CEES patrocinou palestras e seminários na Guatemala com estes e outros
liberais. Além disso, a CEES produzia um programa semanal de rádio, escreveu e distribuiu mihares
de artigos de opinião, e até criou alguns programas de TV explicando o liberalismo. Veja que estes
esforços não vinham de empresários querendo fazer lobby perante o governo para obter políticas
favoráveis imediatamente. Mesmo aqueles que discordam dos objetivos do CEES não têm como
não ficar impressionados com seu objetivo de longo prazo, baseado em princípios.
Ainda assim, para Muso e para alguns de seus amigos mais próximos, especialmente Ulysses Dent,
o CEES não era suficiente. Eles acreditavam que a maior esperança para a saúde do liberalismo a
longo prazo na Guatemala era uma universidade privada de alto padrão imune às modas ideológicas
do dia — uma universidade comprometida com o estudo, com o discurso aberto e racional, e com
os princípios básicos da dignidade e liberdade humanas.
A realização de toda uma vida
Abrir uma universidade não é tarefa fácil. O problema nem é tanto o custo. Apesar de prédios de
tijolo e concreto, administradores competentes, e um corpo docente capaz e comprometido serem
caros, Muso e seus amigos estavam acostumados a obter e investir grandes volumes de dinheiro.
Mas, no passado, seus investimentos eram empresas visando o lucro, concebidas para começar a dar
retorno financeiro dentro de, no máximo, quatro ou cinco anos.
Uma universidade é diferente. Seu objetivo não era receber lucro financeiro, mas mudar o clima de
ideias ao longo de gerações. Apesar da cobrança de mensalidade, o fluxo de caixa esperado da
universidade nunca cobriria todas as despesas. Era necessário o uso de recursos pessoais e de um
trabalho de arrecadação de fundos desde o começo, e enquanto a universidade operasse.
Tão importante quanto o dinheiro, no entanto, era a confiança no poder e no valor das ideias liberais
— e a paciência. Quando a universidade era apenas um sonho, um dos amigos de Muso
inicialmente recusou o pedido de contribuir para a campanha de arrecadação. Esse amigo lembrou
que uma universidade é um projeto de prazo muito longo, que os recursos investidos hoje não darão
frutos por duas ou três décadas. Concordando que seu projeto era verdadeiramente de longo prazo,
Muso pediu para seu amigo descrever uma maneira mais rápida de fundamentalmente mudar ideias.
Incapaz de pensar em outra maneira mais rápida, o tal amigo se tornou um patrocinador.
Mas o maior obstáculo para o início de qualquer universidade é desenvolver a reputação necessária
para atrair os tipos de estudantes capazes de se tornar os líderes de amanhã. Com outras quatro
universidades na Guatemala — a maioria sem cobrar mensalidade, ou cobrando muito pouco
porque são generosamente financiadas pelo governo ou pela Igreja Católica — qualquer nova
universidade estaria em verdadeira desvantagem.
Entretanto, a desvantagem de um é o desafio de outro. Muso estava consciente das dificuldades de
iniciar uma universidade do zero, mas também compreendia que o segredo para o sucesso coincidia
com o motivo para se iniciá-la — ou seja, todas as universidades existentes eram covis do estatismo
dogmático, incluindo a então famosa teologia da libertação, na qual o pensamento crítico fora
suplantado pelo sentimentalismo pouco exigente.
Assim, Muso passou a ver que sua falta de experiência na academia não lhe prejudicava. Sua
inexperiência na área era, na verdade, um privilégio. Como tantos acadêmicos vitalícios, de vez em
quando, se sentiam irresistivelmente atraídos por “soluções” verticais coercitivas para todos os
problemas, o background não acadêmico de Muso foi capaz de insular a ele e a sua universidade das
tendências estatistas tão dominantes na academia.
Ainda assim, em qualquer análise objetiva, as probabilidades eram contrárias ao sucesso de uma
nova universidade privada na Guatemala. Muso superou as probabilidades.
Em janeiro de 1972 os corredores da Universidad Francisco Marroquín (UFM) se abriram aos
estudantes. Muso era o reitor, um cargo atarefado que ele ocupou até 1989.
Nas três décadas e meia desde que educou seus primeiros estudantes, a UFM se estabeleceu como
uma prestigiosa universidade por toda a América Central — sem se desviar de seus objetivos e
postura liberal. Com programas em administração, ciências naturais, engenharia, artes liberais,
arquitetura, medicina, odontologia e direito, a UFM atrai os melhores estudantes de toda a América
Central. E independentemente de sua área, todos os alunos estudam as obras de Mises, Hayek e dos
outros grandes expositores do liberalismo e da teoria de mercado.
Eu já palestrei diversas vezes na UFM e posso atestar pessoalmente a impressionante qualidade de
tudo o que ela é, e tudo o que ela faz. É imensamente gratificante andar pelos caminhos de um belo
campus e ver os estudantes carregando cópias gastas de Fundamentos da liberdade, Ação humana,
ou A riqueza das nações em direção às sessões de estudo na Biblioteca Ludwig von Mises. Quando
estou na UFM — um oásis físico e intelectual no coração da Cidade da Guatemala — não consigo
deixar de ficar fascinado pela realização de Muso.
Planejadores versus investigadores
Em seu livro The White Man’s Burden [“O fardo do homem branco”], o economista William
Easterly contrapõe “investigadores” a “pesquisadores”. Cada planejador tem Grandes Planos — um
planejamento detalhado para a realização, numa só tacada, de uma fundamental e grandiosa
mudança em grande escala mediante uma imposição de cima para baixo. Em contraposição, cada
investigador sabiamente percebe que os Grandes Planos são irremediáveis (e repletos de perigos).
Um investigador tem que desejar uma mudança fundamental em grande escala tão sinceramente
quanto qualquer planejador desejaria, mas o investigador é prático; julga os rumos da ação não por
soarem belos a ouvidos românticos, mas pela sua factibilidade.
Muso é um investigador. Ele busca aquilo que está a seu alcance. O mais importante objetivo de
Muso, fazer com que os guatemaltecas sejam livres e prósperos, é uma grande aspiração, tão grande
que não pode ser realizada com um Grande Plano. Sendo um investigador, Muso entende que o
melhor que ele (ou qualquer outro) pode fazer é se aproximar desse objetivo passo a passo —
conversando com amigos e conhecidos, traduzindo livros, escrevendo artigos de opinião, fundando
uma universidade.
Muso também possui duas outras qualidades de investigador. Em primeiro lugar, o investigador
entende como formular objetivos possíveis e cada um deles, uma vez atingidos, serve como
trampolim para o objetivo final. Devemos chamar essa virtude de “a visão do investigador”.
Qualquer um pode facilmente vislumbrar sua própria versão de uma boa sociedade. Muitos, porém,
deixam sua própria visão do objetivo final transformá-los em planejadores ansiosos por uma
Autoridade Poderosa que o implemente e o faça ser cumprido.
Tais pessoas — Karl Marx é um excelente exemplo — são tipicamente homenageadas ao serem
chamadas de “visionárias”. Mas como os Grandes Planos são inevitavelmente disfuncionais, as
sociedades que estes “visionários” vislumbram como resultado de seus Grandes Planos são apenas
imagens, miragens, fantasias, delírios. Os terríveis resultados reais dos Grandes Planos nunca são
previsíveis. Além disso, planejadores nunca são realmente visionários. São o que podemos chamar
de “delirantes” — pessoas cujos delírios as cegam para a realidade.
Os verdadeiros visionários são sempre investigadores, que compreendem que o objetivo final e todo
o resto além do passo seguinte em direção à sua realização estão muito distantes para qualquer um
aqui e agora ver ou prever em detalhes. Assim, a “visão do investigador”, conquanto mantenha o
objetivo final dentro da sua observação, concentra seu olhar na conquista dos próximos passos
provavelmente para aproximá-los daquele objetivo. O investigador, seguindo essa visão, dá cada um
desses passos.
Em segundo lugar, o investigador é paciente. Ele resiste a ter pressa e dar um salto rumo ao objetivo
final, pois sabe que esse tipo de salto seria cego e vão. Ele tem confiança de que, uma vez que o
melhor passo foi dado hoje, sua “visão de investigador” irá mostrar-lhe amanhã o melhor passo
seguinte. Comparado aos grandiosos passos dados através dos Grandes Planos rumo ao objetivo
final, o método de trabalho do investigador é muitas vezes tedioso e raramente empolgante. Sua
grande vantagem é que oferece a única probabilidade de êxito.
Apesar de parecer mundanas, as qualidades dos investigadores são notáveis e muito raras. Só
através da paciência e dos esforços direcionados do conhecimento pelos investigadores é que a
humanidade atinge objetivos nobres e duradouros.
Em sua vida longa e produtiva, o Investigador Muso pode se orgulhar de uma verdadeira conquista,
que não se limitou à Guatemala. Além das muitas atribuições exercidas em seu país, também
trabalhou como presidente da Mont Pelerin Society (1978–80) e foi administrador do Liberty Fund.
Mas, obviamente, é a sua nação que tem o maior débito para com ele.
Por causa de Muso é que, atualmente, a comunidade liberal de estudiosos, jornalistas e empresários
da Guatemala está entre as mais impressionantes do mundo. Sua vitalidade é contagiosa. Será que,
em última instância, essa comunidade conseguirá transformar a Guatemala num país regido pelo
império da lei e ter garantidos os direitos de propriedade, livre mercado e prosperidade?
Só o tempo irá dizer, mas as chances de esse sonho se tornar um dia realidade são inquestionáveis,
sobretudo por causa de Manuel Ayau, um dos verdadeiramente grandes investigadores do
liberalismo.

Robert Nozick, filósofo da liberdade

Vinte e oito anos atrás, um professor de filosofia da Harvard chamado Robert Nozick fez algo
impensável no polido meio intelectual: publicou um livro defendendo o libertarianismo.
Em 1974, idéias libertárias não tinham quase nenhuma presença no establishment acadêmico. Os
economistas liberais F.A. Hayek e Milton Friedman ainda não haviam recebido seus prêmios Nobel
(Hayek receberia o seu ao fim daquele ano, enquanto Friedman teria sua vez dois anos depois), e o
filósofo político predominante era um colega de Nozick, John Rawls, cujo monumental tratado
Uma teoria da justiça havia sido amplamente aclamado por seu argumento de que os indivíduos
deveriam poder beneficiar-se de sua maior riqueza, talento ou esforço apenas sob a condição de que
compensassem os menos afortunados (1). E então veio Anarquia, Estado e Utopia (2).
No Brooklyn quando criança, segundo conta a história, o jovem Nozick tinha o hábito de questionar
pregadores de esquina e oradores de caixas de papelão sobre as opiniões que estes expunham com
tanta confiança: “Como você sabe disso?” Presume-se que seus questionamentos fossem recebidos
friamente. Dessa maneira, ele estaria mais bem preparado para a as reações a Anarquia, Estado e
Utopia (doravante AEU), frequentemente recebido com incredulidade e escândalo (3). Ainda assim,
seus críticos não puderam negar o brilhantismo filosófico e a inteligência de seus argumentos, e o
livro logo se tornou parte de listas de leituras em cursos de filosofia política por todo o mundo de
língua inglesa. Ganhador do prêmio National Book Award em 1975, AEU já foi traduzido para 11
idiomas.
É claro que o livro de Nozick não transformou a profissão; porém, assegurou um lugar ao
libertarianismo dentre os tópicos base para a discussão filosófica, e portanto contribuiu para uma
mudança crucial no clima intelectual. O libertarianismo deixou de ser o equivalente filosófico à tese
da Terra plana; tornou-se uma posição respeitável (ou, ao menos, semi-respeitável) que deveria ser
levada em consideração. Assim, Robert Nozick pavimentou o caminho para as gerações posteriores
de libertários na universidade.
Muito embora os intelectuais do establishment tenham concedido espaço para AEU no cânone
oficial, eles ainda relutam em aceitar as idéias contidas no livro. Interpretações equivocadas e
distorções das teorias de Nozick são abundantes; por exemplo, ele é comumente descrito como
alguém que defende a inexistência de qualquer obrigação em ajudar pessoas com necessidades
(quando sua posição de verdade, é claro, é de que obrigações em ajudar outras pessoas não podem
ser legitimamente aplicadas). Ainda, por não estarem familiarizados com nenhum outro teorista
libertário, a maioria dos acadêmicos não reconhecem, para além das notas de rodapés de Nozick, a
sua dependência e diálogo (tanto simpático quanto crítico) com pensadores libertários anteriores
(4).
Nozick buscou defender o Estado mínimo — isto é, um Estado “limitado às funções de proteção
dos cidadãos contra violência, roubo e fraude, e à manutenção dos contratos” (p. 26) — não apenas
contra aqueles que querem mais, mas também contra os que querem menos. AEU contém portanto
também uma crítica ao “anarco-capitalismo”, a posição ultra-libertária que defende que legislativo,
judiciário e funções de polícia até então tidas como monopólios estatais devem ser abertos à
competição entre “agências privadas de proteção”. Em um argumento complicado demais para ser
aqui resumido, Nozick responde tentando demonstrar como um Estado mínimo poderia surgir de
uma estrutura anarco-capitalista sem violar os direitos de ninguém. (Este argumento converteu a
poucos, porém.) Ironicamente, a maioria dos acadêmicos leitores de Nozick, não-familiarizados
com a teoria libertária, referem-se á idéia de competição entre agências de proteção como “idéia de
Nozick”.
Libertarianismo sem fundações?
A principal crítica a AEU,, e talvez a mais estranha, é de que a obra simplesmente afirmaria a
existência de direitos libertários mas não ofereceria argumentos para eles. Esta caracterização da
teoria de Nozick como “libertarianismo sem fundamentos” (5), ainda que seja conveniente aos seus
críticos, não sobrevive à leitura do texto. A estratégia utilizada por Nozick foi a de apoiar direitos
libertários apelando a valores amplamente aceitos tanto por libertários quanto por não-libertários.
Por exemplo, Nozick argumentou que como “tomar os ganhos de n horas de trabalho” é
essencialmente equivalente a “forçar a pessoa a trabalhar n horas para outro propósito”, a tributação
de ganhos “se assemelha a trabalho forçado”, e é, portanto, injusta (p. 169).
É verdade que Nozick não forneceu nenhuma prova de que o trabalho é, por si só, algo injusto; mas
era necessário? A injustiça do trabalho forçado é uma premissa que muitos de seus oponentes já
aceitam; dado este contexto, demonstrar que tributação “se assemelha a trabalho forçado” é um
argumento decisivo contra a justiça daquela. Nozick também condenou a democracia irrestrita como
uma forma de escravidão, já que ter “10 mil senhores em vez de um” é meramente “uma troca de
senhor” (p. 291). Aqui também, Nozick não trouxe nenhuma prova acerca da injustiça da
escravidão, mas como seus críticos já rejeitam a escravidão, se torna difícil considerar infundada
sua crítica à democracia.
Nozick argumentou que, como não existe “nenhuma entidade social”, mas apenas “diferentes
pessoas individuais, com suas próprias vidas individuais”, não faz sentido descrever o sacrifício de
um direito individual como feito em nome de “bem geral” da sociedade como um todo; um ser
humano “não pode ser usado ou sacrificado para o benefício de outros”, pois isto faria com “não
fosse suficientemente respeitado” o fato de que “ele é uma pessoa em separado” cuja vida é a
“única que ele tem” (pp. 32-39). Cada passo deste argumento é um eco deliberado de argumentos
que ganharam ampla aceitação entre defensores do Estado de bem-estar social quando oferecidos
três anos antes, com alvos um tanto diferentes, por John Rawls. Nozick também apelou a valores
compartilhados por seus oponentes (em sua maioria social-democratas) quando condenou
regulamentações econômicas por interferirem em “atos capitalistas consensuais entre adultos” (p.
163).
O argumento mais famoso de AEU, “o exemplo de Wilt Chamberlain”, é também o mais mal-
compreendido. Ao criticar teorias de justiça padronizadas — isto é, aqueles que consideram a
distribuição de recursos na sociedade como justa apenas se dentro de um padrão pré-concebido
(digamos, igualdade) — Nozick sugeriu que imaginássemos uma sociedade que de fato ponha em
prática tal padrão. Ele assinalou que se as pessoas são livres para transferir seus recursos como
preferirem, a sociedade vai rapidamente se desviar do padrão estabelecido, já que alguns indivíduos,
como a estrela de basquete Wilt Chamberlain, se tornarão mais ricas como um resultado de decisões
voluntárias de outros membros da sociedade que estarão dispostos a adquirir o exercício de seus
talentos.
Caso o padrão original seja mantido a todo o custo, então o governo deve “interferir continuamente
para impedir que as pessoas transfiram recursos como venham a desejar”; desta maneira, nenhuma
teoria de justiça padronizada pode ser implementada sem “contínua interferência na vida das
pessoas” (p. 163). Nozick rejeita, portanto, teorias padronizadas em favor de um teoria “histórica”,
de acordo com a qual determinada distribuição de recursos, a despeito do padrão ao qual se
enquadre, só é legítima quando resulta de um processo que não envolva violações de direitos de
ninguém.
Os críticos de Nozick frequentemente lidam com este argumento como se oferecesse apenas uma
objeção puramente externa às teorias padronizadas de justiça. Na sua interpretação, o ataque de
Nozick às políticas redistributivas diz simplesmente que elas violam direitos de propriedade
libertários. Sem dúvida isto é verdade, respondem os críticos, mas por que deveriam não libertários
preocupar-se com isso? Este é, entretanto, um grave problema de interpretação. A crítica de Nozick
é melhor compreendida como objeção interna, e portanto não pode ser tão facilmente descartada.
Norman Malcolm, pupilo do filósofo Ludwig Wittgenstein, relata a seguinte anedota: “Em uma
caminhada, ele me “deu” cada árvore pela qual passávamos, com a ressalva de que eu não poderia
cortá-las ou fazer qualquer coisa com elas, nem proibir seu antigo dono de fazer o que bem entender
com elas. Com tais ressalvas, as árvores eram minhas” (6). Wittgenstein pretendia, é claro, mostrar
que se tais direitos de controle fossem resguardados, nada havia sido “dado”. E Nozick diz
exatamente a mesma coisa: sob qualquer sistema de distribuição de recursos, considero ter recebido
certo recurso X apenas se gozo do “direito de determinar o que deve ser feito com X” (p. 171).
Teorias padronizadas de justiça dão a impressão de prometerem distribuir, mais equitativamente, os
mesmos recursos que o mercado capitalista distribui de maneira parcial; mas se o direito de
transferir tais recursos sofre ressalvas, as pessoas acabam por não receber por completo os recursos
aos quais teriam direito, de acordo com a teoria padronizada. Se o padrão inicial de distribuição de
recursos fosse realmente justo, então “não deveria haver qualquer questionamento sobre se cada
pessoa teria direito ao controle dos recursos em sua posse” – mas tal atribuição de direito é
precisamente o que deve ser questionado se o padrão deve ser mantido coercitivamente (p. 161).
Deste modo, a teoria padronizada é falha segundo seus próprios parâmetros.
Além de Anarquia, Estado e Utopia
Depois de 1974, Nozick desapontou muitos de seus leitores por não querer defender seu livro contra
as muitas críticas recebidas; ressaltando que não tinha a intenção de passar a vida escrevendo
variações em torno de Filho de Anarquia, Estado e Utopia (talvez uma cutucada no que John Rawls
passou fazendo nas últimas três décadas), Nozick em grande parte largou a filosofia política e
seguiu em frente com outros tópicos — muito embora tenha produzido ao longo dos anos um
número de ensaios sobre tópicos de interesse libertário, como metodologia econômica Austríaca,
explicações sobre a mão invísivel, a ética de Ayn Rand, a natureza da coerção e a inclinação
anticapitalista dos intelectuais (7).
Em 1987, entretanto, Nozick anunciou que atualmente considerava seus antigos escritos políticos
“seriamente inadequados”; em sua nova visão, direitos individuais eram meramente um valor dentre
outros, e poderiam ser “anulados ou diminuídos” em detrimento de outros valores como o
significado “simbólico” da “preocupação oficial com questões ou problemas como um meio de
ressaltar sua importância ou urgência” (8) — uma posição que se aproxima perturbadoramente de
um endosso à “violência expressiva”. Nozick foi amplamente acusado de ter repudiado o
libertarianismo, embora tenha negado (9). De qualquer forma, Nozick aparenta ter retornado,
próximo do fim de sua vida, a uma posição mais próxima àquela de AEU; em seu último livro,
Invariances [“Imutabilidades”], identificou a cooperação voluntária como “o princípio
fundamental” da ética, sustentando que o dever de não interferir no “domínio de escolha” de outrem
é “tudo que qualquer sociedade deveria (coercitivamente) exigir”; níveis mais altos de ética,
envolvendo benevolência positiva, representam um “ideal pessoal” que deveria ser deixado para a
“escolha e desenvolvimento individual de cada um” (10).
Robert Nozick morreu em 23 de janeiro de 2002, após uma longa batalha contra um câncer. Mas o
impacto de seu livro mais famoso continua a crescer. O filósofo Jonathan Wolff, um dos oponentes
intelectuais de Nozick, recorda: “Li Nozick pela primeira vez quando era estudante universitário,
em 1980. Naquela época os estudantes de filosofia reagiam a Anarquia, Estado e Utopia de duas
maneiras distintas. Ou eles consideravam as suas conclusões tão repugnantes que não deveriam ser
levadas a sério como filosofia política, ou as consideravam tão repugnantes que era vital (mas não
muito difícil) demonstrar suas falhas”.
Mas hoje em dia, lamenta Wolff, ele frequentemente encontra uma terceira perspectiva: “que, em
termos gerais, Nozick está certo” (11).
Obrigado, Robert Nozick.
Notas
1. John Rawls, A Theory of Justice (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1971).
2. Robert Nozick, Anarchy, State, and Utopia (New York: Basic Books, 1974).
3. Para ver um exemplo particularmente estapafúrdio, ver Brian Barry, “Review of Anarchy,
State, and Utopia”, Political Theory, agosto de 1975, pp. 331-32.
4. Sobre a influência de Murray Rothbard em particular, ver Ralph Raico, “Robert Nozick: A
Historical Note”, 5 de fevereiro de 2002; www.lewrockwell.com/raico/raico15.html.
5. Ver Thomas Nagel, “Libertarianism Without Foundations”, Yale Law Journal 85 (1975), pp.
136-49.
6. Norman Malcolm, Ludwig Wittgenstein: A Memoir (Oxford, England: Oxford University
Press, 1958), pp. 31-32.
7. Ensaios coligidos: Robert Nozick, Socratic Puzzles (Cambridge, Mass.: Harvard University
Press, 1997).
8. Robert Nozick, The Examined Life: Philosophical Meditations (New York: Simon &
Schuster, 1989), pp. 286-92.
9. Ver negação de Nozick em Laissez Faire Books, “Interview with Robert Nozick”;
www.laissezfairebooks.com/index.cfm?eid=358.
10. Robert Nozick, Invariances: The Structure of the Objective World (Cambridge,
Mass.: Harvard University Press, 2001), pp. 280-82.
11. Jonathan Wolff, Robert Nozick: Property, Justice and the Minimal State (Stanford,
Calif.: Stanford University Press)

Murray N. Rothbard

O economista Murray N. Rothbard construiu o desafio intelectual mais abrangente já lançado contra
a legitimidade do governo. Durante os mais de quarenta anos de sua carreira, ele explicou porque
indivíduos privados, empresas privadas, e outras associações voluntárias podem fazer o que quer
que precise ser feito. Ele insistiu que os indivíduos deveriam ser livres para cuidar de suas vidas
pacificamente sem interferência de ninguém, nem mesmo do governo. Ele fez objeções ao roubo,
fosse ele cometido por um criminoso privado ou por um coletor de impostos. E ele reconheceu que
muitos problemas afetam o setor privado, mas historicamente o governo piorou as coisas,
estrangulando o empreendedorismo e oprimindo as pessoas. Os governos, ele notou, são motivados
pela expansão do próprio poder, não pelo serviço ao povo. É por isso que, seja qual for o partido
político no poder, os governos tendem a tornarem-se maiores, fazerem mais leis, e taxar e gastar
partes cada vez maiores daquilo que os trabalhadores produzem.
Rothbard escreveu uma dúzia de livros de grande importância e diversas centenas de artigos sobre
ética, filosofia, economia, história americana e história da ideias. Seu trabalho foi publicado em
New York Times, Wall Street Journal, Washington Post, Los Angeles Times, Christian Science
Monitor, Fortune, e outras importantes publicações, e ele foi entrevistado pela revista Penthouse.
Ele contribuiu para periódicos acadêmicos, como American Economic Review, Quarterly Journal
of Economics, Journal of Economic History, Columbia Journal of World Business, Journal of the
History of Ideas, e Journal of Libertarian Studies. Ele contribuiu com praticamente todas as
publicações do mundo libertário, incluindo as revistas Reason e Liberty. Por alguns anos, ele
publicou suas próprias newsletters, Left and Right [“Esquerda e direita”], e Libertarian Forum. Sua
obra foi traduzida para o chinês, o tcheco, o francês, o alemão, o italiano, o japonês, o polonês, o
português, o romeno, o russo e o espanhol. Ele fez palestras e participou de conferências por todos
os Estados Unidos, na Harvard Law School, Universidade de Yale, Universidade de Princeton,
Universidade de Stanford, entre outras. Por muito tempo ele esteve envolvido com o partido
Libertário após sua fundação em 1972. Ele trabalhou com o Cato Institute (fundado em 1977)
durante seus primeiros anos e mais tarde tornou-se uma pessoa-chave no Ludwig von Mises
Institute, onde trabalhou pelo resto de sua vida. Em 1994, Rothbard recebeu o Richard M. Weaver
Award for Scholarly Letters da Ingersoll Foundation, em Illinois (vencedores anteriores incluem os
prestigiados historiadores americanos Shelby Foote e Forrest McDonald). O New York Times
considerou Rothbard um dos mais importantes pensadores contemporâneos sobre a liberdade.
Rothbard tinha cerca de um metro e sessenta e oito. Ele ganhou peso durante seus anos em Nova
York (a ideia de fazer cooper o teria horrorizado), mas emagreceu mais tarde quando começou a dar
aulas na Universidade de Nevada. Ele mantinha seus cabelos encaracolados curtos. Vestia sempre
um terno conservador e gravata borboleta. Apesar de um pouco enrugada, sua aparência era boa.
Até quase os cinquenta anos, Rothbard tinha fobia de viagens e não gostava de túneis, pontes, trens,
aviões, ou mesmo elevadores, mas ele superou a fobia e deu a volta ao mundo. Quando falou em
um jantar no topo do World Trade Center, de 110 andares, em Manhattan, ele começou dizendo,
“Saudações da terra!”
Era um notívago incurável. O empresário Robert D. Kephart recordou “a cantoria do Messias de
Handel que os Rothbard faziam em sua sala de estar na época do Natal, com amigos visitando por
toda a noite para acompanhar partes do coro. Aqui era possível encontrar Murray tendo conversar
simultâneas com meia-dúzia de pessoas, até que sua esposa Joey pedisse silêncio. O repreendido
Murray voltava ao coro, estridente e desafinado, até não poder mais se controlar e parar de cantar
para retomar as conversas.
“E houve a noite em que apresentei-o a Victor Niederhoffer, então campeão mundial de squash. Vic
era um grande admirador de Murray, e durante o jantar os dois se deram muito bem. Murray estava
impressionado por estar na companhia de um atleta famoso, e começou a fazer perguntas a Vic
sobre o jogo. No caminho de volta para casa, Vic perguntou se ele gostaria de parar no Harvard
Club, para ver as quadras onde Vic tanto havia treinado. Murray tirou os sapatos, e nós entramos na
quadra, Murray enchendo Vic de perguntas. Então Vic sugeriu que Murray pegasse uma raquete e
acertasse algumas bolas. Murray, talvez a pessoa menos atlética de Manhattan, logo estava cortando
bolas lançadas por um campeão mundial, as paredes tremendo com suas risadas”.
Murray Newton Rothbard nasceu no Bronx, em Nova York, em 2 de março de 1926. Ele era o único
filho de Ray Babushkin Rothbard, que havia emigrado da Rússia, da cidade de Minsk, segundo
relatos. O pai de Murray, David Rothbard, nascido em um vilarejo perto de Varsóvia, na Polônia,
tornou-se o químico-chefe da Tidewater Oil Company, em Bayonne, New Jersey. David Rothbard
acreditava na razão e na liberdade, e homenageou o grande matemático e físico Isaac Newton ao
escolher o nome do meio de seu filho, e encorajou Murray filosoficamente.
Rothbard matriculou-se na Universidade de Columbia em 1942, onde estudou economia e
matemática, formando-se Phi Beta Kappa três anos mais tarde. Lá ele concluiu um mestrado em
economia no ano seguinte, e começou seu doutorado sob orientação do historiador econômico
Joseph Dorfman, que Rothbard mais tarde chamou de “meu primeiro mentor na área de história
americana”. Rothbard recebeu seu PhD em 1956.
Segundo Leonard Liggio, amigo de Rothbard durante muitos anos, em 1946 Rothbard havia sido
aluno de George J. Stigler em Columbia, pouco depois de Stigler ter colaborado com Milton
Friedman em Roofs or Ceilings [“Telhados ou tetos”], um ataque ao controle de alugueis publicado
pela Foundation for Economic Education (FEE), em Irvington-on-Houston, cerca de trinta milhas
ao norte da cidade de Nova York. Stigler sugeriu que Rothbard poderia se interessar em visitar o
lugar. Na FEE, Rothbard passou a conhecer jornalistas libertários como H. L. Mencken, Albert Jay
Nock, Frank Chodorov, Garet Garrett, e John T. Flynn, que se opunham ao militarismo, ao
alistamento militar obrigatório e a governos grandes. “Tudo isso me converteu rapidamente de um
economista liberal em um libertário puro”, Rothbard recordou.
Ele ouviu falar do grande economista austríaco Ludwig von Mises na primavera de 1949,
provavelmente através do economista F. A. “Baldy” Harper, que trabalhava na FEE. Três décadas
antes, Mises havia feito a previsão correta de que o socialismo empobreceria milhões de pessoas.
Ele havia vindo para a América fugindo dos nazistas, e Harper parece ter dito a Rothbard que Mises
lideraria um seminário semanal na Universidade de Nova York, no número 100 de Trinity Place. Ele
compareceu ao primeiro seminário e continuou a comparecer durante anos.
Rothbard começou a publicar textos fazendo resenhas de livros para Analysis, uma newsletter
libertária fundada em novembro de 1944 por Frank Chodorov, o filho novaiorquino de um
comerciante judeu imigrante cujo ensaio “Taxation is Robbery” [“Taxação é roubo”] havia
influenciado seu pensamento. Rothbard começou resenhando A Mencken Chrestomathy [“Uma
crestomatia de Mencken”], uma coletânea de escritos de H. L. Mencken publicada em agosto de
1949. Entre março de 1950 e dezembro de 1956, Rothbard escreveu treze artigos para a publicação
libertária mensal Faith and Freedom [“Fé e liberdade”], sobre assuntos que incluíam a inflação,
controles de preços, e Thomas Jefferson.
Em Columbia, enquanto estudava para seu Ph.D, Rothbard conheceu e ficou encantado com JoAnn
Beatrice Schumacher, uma presbiteriana que havia feito seu bacharelado em Columbia e mestrado
na Universidade de Nova York. Nascida em Chicago, ela havia crescido na Virgínia. Casaram-se em
16 de janeiro de 1953. Ele tinha vinte e sete anos, e ela vinte e cinco. Mudaram-se para o
apartamento 2E do número 215 da West 88th Street, em Nova York, que continuou sendo a
residência principal do casal pelo resto de suas vidas. Em 1954, Joey fez Rothbard assinar uma
resolução de ano novo, comprometendo-se a deitar-se todas as noites às cinco horas da manhã no
máximo, e a não se levantar após uma e meia da tarde.
Talvez em 1954, Rothbard conheceu a russa Ayn Rand, que estava escrevendo seu romance
filosófico Atlas Shrugged [Quem é John Galt?]. Mais tarde, ele foi um dos convidados a seu
apartamento para uma leitura de trechos concluídos do livro. Rand ficou horrorizada ao saber que
Rothbard era casado com uma mulher religiosa, e em 1958 insistiu que o casal deveria divorciar-se.
Em resposta, Rothbard abandonou o círculo de Rand.
Ele se esforçava para fazer trabalho acadêmico e pagar as contas. Desde janeiro de 1952, sua
principal renda havia sido uma bolsa mensal paga pelo William Volker Fund, estabelecido por um
atacadista de móveis de Kansas City, para ajudá-lo a a escrever um manual da economia de
mercado. O projeto de Rothbard se expandiu até se tornar um manuscrito de mil e novecentas
páginas com o título provisório de Man, the Economy and the State [“O homem, a economia e o
estado”]. A bolsa do Volker Fund acabou em 30 de junho de 1956, e ele terminou o manuscrito em
1957. Diversos editores o rejeitaram. A seguir, Rothbard queria escrever um livro que explicasse por
que a grande depressão foi o resultado não dos excessos do livre-mercado mas do crédito, das
atividades econômicas e da política tributária do governo. Em abril de 1956, ele recebeu uma bolsa
de um ano da Earhart Foundation.
Até então, o Volker Fund havia apoiado cerca de uma dúzia de professores escrevendo sobre a
liberdade, mas nenhum dos manuscritos havia sido publicado. No fim dos anos 50, foi
provavelmente Herbert Cornuelle, do Volker Fund, que fez uma acordo com a D. Van Nostrand
Company para publicação dos manuscritos. Entre eles estava Man, Economy and State: A Treatise
on Economics [“Homem, economia e estado: um tratado de economia”], de Rothbard. Setecentas
páginas foram cortadas, e Rothbard escreveu uma nova conclusão. Mesmo assim, o livro foi
publicado em dois volumes, em 1962.
Rothbard explicou como os incentivos do mercado estimulam o desenvolvimento de uma ordem
social complexa e bem-sucedida. Ele enfatizou que os mercados e os preços de mercado são
determinados não pelas empresas mas pelos consumidores. Os monopólios tendem a persistir,
demonstrou ele, apenas quando são apoiados pelo governo. Rothbard reafirmou a opinião de Mises
de que governos causam inflação ao artificialmente expandir a moeda e o crédito, e que uma
depressão é uma consequência de uma inflação anterior. Ele concluiu, “Não pode haver ciclo
econômico em um puro livre mercado”.
Rothbard insistiu que políticos e burocratas não podem consertar qualquer problema que possa
ocorrer no livre-mercado, porque são seres humanos imperfeitos com conhecimentos limitados,
motivados por seus próprios interesses – e com poderes de perturbar toda a economia, algo que nem
os mais poderosos executivos são capazes de fazer. Manuel S. Klausner, pesquisador de direito
comparativo na Universidade de Nova York, escreveu na New York University Law Review que
jamais houve “um tratado mais agradável de se ler nem um argumento mais direto em prol da
liberdade e da livre empresa”.
A Van Nostrand publicou America’s Great Depression [“A grande depressão americana”], de
Rothbard, em 1963. Ele argumentou que a depressão foi uma consequência da anterior expansão do
crédito realizada pelo governo e que a maior intervenção estatal na economia a prolongou. Rothbard
discutiu os erros do governo americano, incluindo a tarifa Smoot-Hawley e os grandes aumentos de
impostos sobre a renda, sobre o consumo, sobre as tranferências, e corporativos. Rothbard
influenciou a opinião do historiador Paul Johnson sobre a grande depressão, explicada em seu
Modern Times “Tempos modernos”, que vendeu seis milhões de exemplares. Johnson chamou o
livro de “um tour-de-force intelectual... apresentado com lógica inexorável, ilustrações abundantes e
grande eloquência”.
Em setembro de 1966, Rothbard obteve um emprego fixo lecionando no Brooklyn Polytechnic
Institute, que treinava engenheiros (não era o que ele esperava, mas ele ficou grato por ter uma
renda fixa). Ele mergulhou em seu novo projeto: fazer um novo livro com o material cortado de
Man, Economy, and State. Ele estava determinado a apresentar um argumento completo de que as
pessoas estariam melhor se não houvesse interferência estatal em suas vidas. Rothbard escreveu que
poderes judiciários privados e competitivos haviam tido um papel importante na história ocidental,
e expressou a opinião de que na ausência de juízes estatais, as companhias seguradoras teriam fortes
incentivos para fornecer tribunais. Ele explicou como agências privadas de defesa poderiam
funcionar, e respondeu a objeções a esse conceito. F. A. Harper, que havia fundado o Institute for
Humane Studies em Burlingame, na Califórnia, publicou Power and Market [“Poder e Mercado”]
em 1970.
A guerra do Vietnã havia se intensificado enquanto Rothbard produzia trabalhos acadêmicos, e nem
Democratas nem Republicanos ofereciam muita esperança que a guerra terminasse. Rothbard tentou
formar uma aliança com a Nova Esquerda, que organizava protestos contra a guerra e contra as
convocações obrigatórias. Rothbard e seu amigo Leonard P. Liggio, historiador, fundaram Left and
Right: A Journal of Libertarian Thought [“Esquerda e direita: ume revista de pensamento
libertário”] na primavera de 1965. Cultivando ainda mais as relações com a Nova Esquerda,
Rothbard escreveu um artigo para a revista Ramparts em junho de 1968.
Após ler o artigo, o jornalista e autor de discursos políticos Karl Hess entrou em contato com
Rothbard, e os dois se encontraram em seu apartamento em Nova York. “Era um salão clássico”,
relembrou Hess, “uma sala onde se reuniam mais ou menos uma dúzia de homens e mulheres
extraordinariamente inteligentes e espirituosos, unidos pelo seu entusiasmo pela liberdade. Havia
apenas uma dificuldade. Eles nunca dormiam, ao menos não à noite... [Aqui] eu aprendi, com muito
entusiasmo, sobre uma grande tradição deste país... o capitalismo laissez-faire e a associação
humana baseada em acordos voluntários e absoluta responsabilidade individual”. Hess escreveu
para a newsletter de Rothbard, The Libertarian, e juntou-se a ele como co-editor da bimensal
Libertarian Forum. Hess expressou suas opiniões libertárias em “The Death of Politics” [“A morte
da política”], um artigo publicado na revista Playboy em março de 1969. Rothbard, Liggio, e Hess
merecem reconhecimento por tentar formar uma aliança, mas não tiveram sucesso. A Nova
Esquerda dividiu-se em facções, algumas das quais tornaram-se violentas.
Em 9 de fevereiro de 1971, o New York Times publicou um editorial de Rothbard intitulado “The
New Libertarian Creed” [“O novo credo libertário”], que relatava o crescimento do número de
jovens que se rebelavam contra a guerra do Vietnã, convocações obrigatórias para o exército,
aumentos de impostos e intromissão do governo em suas vidas pessoais. Ele chamou a atenção de
Tom Mandel, editor da Macmillan, e logo Rothbard obteve seu primeiro contrato comercial para
escrever um livro. O resultado foi For a New Liberty, the Libertarian Manifesto “Por uma nova
liberdade, o manifesto libertário”, uma sólida defesa da liberdade com base nos direitos naturais,
começando com o princípio do direito de propriedade sobre si próprio e da propriedade privada.
Rothbard derrubou a opinião convencional de que é possível contar com o governo, a principal
agência de coerção e violência, para fazer o bem. Ele criticou o estado de bem-estar social, escolas
estatais, sindicalismo obrigatório, renovação urbana, subsídios agícolas e outros programas
governamentais que beneficiam grupos de interesses às custas de todos os demais. Nicholas von
Hoffman elogiou o livro no Washington Post. O Los Angeles Herald Examiner escreveu, “De modo
geral, For a New Liberty apresenta um argumento articulado, bem raciocinado e em sua maior parte
bem documentado em favor das mudanças verdadeiramente radicais advogadas pelos membros do
Movimento Libertário”.
Kenneth Templeton, que havia trabalhado para o William Volker Fund e mais tarde passado ao
Institute for Humane Studies, encorajou Rothbard a escrever um livro afirmando que a revolução
americana foi feita pela causa da liberdade. Ele pôde se concentrar nesse projeto quando o Lily
Endowment concedeu-lhe uma bolsa de cinco anos. O empresário do petróleo Charles Koch, do
Kansas, e o editor de Washington, D.C., Robert D. Kephart, também deram apoio financeiro. O
acadêmico Leonard Liggio colaborou com Rothbard no projeto.
O primeiro volume de Conceived in Liberty [“Concebido em liberdade”], (The American Colonies
in the Seventeenth Century) [“(As colônias americanas no século dezessete)”] e o segundo volume,
(“Salutary Neglect: The American Colonies in the First Half of the Eighteenth Century”)
[“(Abandono salutar: as colônias americanas na primeira metade do século dezoito)”] foram
publicados em 1975, e o terceiro, (Advance to Revolution, 1760-1775) [“(Avanço para a revolução,
1760-1775)”], e o quarto (The Revolutionary War, 1775-1784) [“(A guerra revolucionária, 1775-
1784)”] volumes, em 1979. Rothbard discutiu o desenvolvimento das ideias libertárias e
homenageou grandes libertários como Roger Williams, Anne Hutchinson, Thomas Paine e Thomas
Jefferson. Ele regalou os leitores com histórias chocantes, e às vezes cômicas, sobre as formas como
burocratas interferem nas vidas das pessoas. Rothbard ditou grande parte de um quinto volume que
teria chegado até a constituição americana, mas a editora teve problemas financeiros, e as fitas
sofreram danos.
Enquanto Conceived in Liberty estava sendo publicado, o empresário do Kansas Charles Koch
forneceu apoio financeiro para que Rothbard pudesse passar um ano sem dar aulas para escrever um
livro apresentando sua filosofia política. O resultado foi The Ethics of Liberty [“A ética da
liberdade”], publicado pela Humanities Press em 1982. Ele explicou por que o governo, que se
baseia na coerção, é inerentemente imoral, e desenvolveu um argumento sofisticado em prol da
ética baseada nos direitos naturais. Essa acabou por ser uma de suas obras mais influentes.
O próximo projeto de Rothbard foi inspirado por um de seus admiradores, Mark Skousen, um
consultor de investimentos da Flórida. Em setembro de 1981, ele propôs que Rothbard escrevesse
um manual popular de economia apropriado para estudantes universitários. Ele ofereceu um
adiantamento – metade na assinatura do contrato e o resto quando o livro estivesse completo,
supostamente em um ano. O projeto se expandiu na mente de Rothbard, e anos se passaram.
Em 1982, Llewellyn H. Rockwell Jr., que havia trabalhado para a editora Arlington House, fundou o
Ludwig von Mises Institute (atualmente afiliado à Universidade de Auburn, no Alabama) e
convenceu Rothbard a tornar-se vice presidente para assuntos acadêmicos. Ele deu apoio às
pesquisas de Rothbard, e Rothbard fazia seminários no Instituto. Rothbard também editou a Review
of Austrian Economics, o primeiro periódico a se concentrar no pensamento econômico da escola
austríaca, e escreveu para a newsletter do instituto, Free Market. Em 1895 ele foi nomeado S. J.
Hall Distinguished Professor of Economics da Universidade de Nevada, Las Vegas (Las Vegas não
tinha grandes bibliotecas, mas a cidade funcionava a noite inteira). Ele continuou a trabalhar com o
Mises Institute. Em abril de 1991 surgiu o Rothbard-Rockwell Report, uma newsletter mensal de
doze páginas com comentários sobre o movimento libertário e as notícias mundiais. Quando a
guerra fria acabou, os conservadores deixaram de se concentrar no amti-comunismo, e a newsletter
argumentava em favor de uma aliança entre libertários e conservadores.
Durante o verão de 1994, Rothbard não conseguia dormir porque havia líquido em seus pulmões.
Em sete de janeiro de 1995, Murray e Joey foram a uma consulta com um oculista ao final da tarde.
Quando Joey estava em outra sala, Murray pediu a um técnico que apertasse seus óculos. Então ele
desabou, inconsciente. Paramédicos levaram-no ao Hospital Roosevelt, onde ele faleceu de falha
cardíaca congestiva. Tinha sessenta e oito anos. Suas cinzas foram enterradas no jazigo da família
de Joey no cemitério Oakwood, em Unionville, Virgínia.
Em uma missa fúnebre na Madison Avenue Presbyterian Church, que Joey havia frequentado
durante anos, o historiador Ralph Raico declarou, “Murray era totalmente auto-direcionado,
independente de todas as maneiras, sempre guiado por valores que eram uma parte inseparável dele
– acima de tudo, seu amor pela liberdade e pela excelência humana”. O historiador Ronald
Hamowy disse, “Não sou um homem religioso e não tenho direito de pedir um lugar no paraíso.
Mas espero que quando eu morrer Deus escolha me deixar entrar, porque seria ótimo rever
Murray”.
Pouco depois da morte de Rothbard, o projeto iniciado por Mark Skousen foi publicado em dois
volumes, com o título An Austrian Perspective on the History of Economic Thought [“Uma
perspectiva austríaca da história do pensamento econômico”]. O volume um recebeu o título
Economic Thought Before Adam Smith [“O pensamento econômico antes de Adam Smith”], e o
volume dois, Classical Economics [“Economia clássica”]. Rothbard narrou a história intelectual dos
direitos naturais e da liberdade econômica desde a China antiga até a Europa do século dezenove.
Seu pensadores favoritos incluíam Lao-Tzu, Crísipo, Marco Túlio Cícero, Francisco Suarez,
Jacques Turgot, Jean-Baptiste Say, e Frédéric Bastiat.
Os papéis de Rothbard foram enviados ao Mises Institute. Lá, o acadêmico Jeff Tucker relatou a
descoberta de diversos manuscritos inéditos. O Mises Institute lançou Making Economic Sense
[“Fazendo sentido econômico”], 112 de seus ensaios da Free Market, em 1995. Então veio The
Logic of Action “A lógica da ação”, com quarenta e três dos principais ensaios de Rothbard sobre
economia; Education: Free and Compulsory “Educação: livre e compulsória”; e uma nova edição
de America’s Great Depression, com uma nova introdução escrita por Paul Johnson.
Joey Rothbard sofreu um derrame em janeiro de 1999, e foi levada para a Virgínia, onde tinha
parentes. Ela faleceu em 29 de outubro.
Murray Rothbard fez mais do que qualquer outra pessoa para mostrar que a sociedade em geral
funciona muito bem sem interferência do governo. Ele ajudou a inspirar confiança no potencial
ilimitado de pessoas livres.

Thomas Szasz

Nos Estados Unidos, o governo conseguiu mais controle direto sobre pacientes com doenças
mentais do que jamais teve sobre os índios americanos ou sobre os escravos negros. Esses pacientes
tiveram qualquer independência que possuíssem eliminada pela administração de drogas,
eletrochoques, choques de insulina, lobotomias, e outros supostos tratamentos. Supostamente, essas
pessoas sofrem de “doenças mentais”, que foram a justificativa para que maridos internassem
esposas rejeitadas em instituições psiquiátricas, famílias largassem parentes embaraçosos, e
comunidades encerrassem desviantes sociais. Embora o número de pessoas em hospitais
psiquiátricos nos Estados Unidos tenha caído ao longo das últimas quatro décadas, o número de
pessoas em outros programas pagos pelo governo e por seguros aumentou. Esses programas
incluem hospitais da Veterans Administration, hospitais gerais, asilos, centros de reabilitação para
dependentes químicos e alcoólatras, instalações de psiquiatria forense, conjuntos habitacionais
estatais, pensões e abrigos, além das penitenciárias. O número de pessoas em todos esses lugares é
estimado em um milhão.
Mais do que qualquer outra pessoa em tempos recentes, o psiquiatra Thomas S. Szasz expressou
oposição à internação involuntária, e seus escritos inspiraram o movimento para restaurar as
liberdades civis dos pacientes. “Em uma sociedade livre”, ele declarou, “não acredito que ninguém
deva ser privado de sua liberdade por nenhuma razão que não seja acusação, julgamento e
condenação por um crime... Os pacientes psiquiátricos nos Estados Unidos... sofrem amplas e
graves violações de seus direitos constitucionais. Acredito que hoje são essas pessoas, mais do que
os membros de grupos raciais ou religiosos específicos, os principais bodes expiatórios de nossa
sociedade”. Ele acrescentou: “Os hospitais estatais tornaram-se notórios por negligenciar, e mesmo
abusar, dos pacientes psiquiátricos. Há evidências de que o encarceramento em um hospital
psiquiátrico pode ser mais prejudicial à personalidade do que o encarceramento em uma prisão”.
Szasz denunciou a teoria psiquiátrica de que “as decisões são, de alguma forma, secretadas pelo
cérebro, assim como o açúcar é secretado pelos rins quando você tem diabetes. Não é uma decisão.
Simplesmente sai. Bom, eu acredito em livre-arbítrio. Eu acredito que as pessoas não podem ser
objetos apropriados de algum tipo de investigação determinista. As pessoas são capazes de fazer
escolhas, e devem ser responsabilizadas de várias formas pelo que fazem na vida”.
Szasz recebeu muitas acusações quando os hospitais psiquiátricos estatais começaram a
desinstitucionalização – repentinamente libertando grandes números de pacientes. Rael Jean Isaac e
Virginia C. Arnat, em Madness in the Streets: How Psychiatry and the Law Abandoned the
Mentally Ill “Loucura nas ruas: como a psiquiatria e a lei abandonaram os doentes mentais”,
alegaram que “ é a ideologia de Szasz que é verdadeiramente desumana”. Alan Dershowitz,
professor de Direito na Universidade de Harvard, disse que “não se pode acreditar nos argumentos
de Szasz”. O jornalista Pete Hammill, escrevendo para a New York Times Magazine, chamou Szasz
de “maluco”. Mas a desinstitucionalização havia começado aproximadamente em 1955, oito anos
antes do primeiro grande ataque de Szasz contra a internação involuntária. A desinstitucionalização
foi principalmente uma consequência de pressões financeiras sobre os orçamentos dos estados.
Muitos pacientes desinstitucionalizados não se adaptaram bem, pois seu espírito de independência
fora destruído pela prolongada privação de liberdade, isolamento dos familiares e do trabalho, e os
efeitos de truculentos “tratamentos” psiquiátricos.
Szasz falou por todos os perseguidos por causa de comportamentos desviantes pacíficos. Isso
incluiu a leitura de livros proibidos, sexo não-ortodoxo, e ingestão de substâncias que as autoridades
desaprovavam. “Na medida em que as pessoas têm características que as distinguem umas das
outras”, insistiu ele, “a atitude realmente liberal e humana quanto a essas diferenças só pode ser a
aceitação”.
A obra de Szasz tornou-se conhecida por todo o mundo, traduzida para o tcheco, o holandês, o
francês, o alemão, o grego, o húngaro, o italiano, o japonês, o servo-croata e o sueco. Ele fez
palestras em Harvard, Yale, Princeton, Columbia, a Universidade de Michigan, a Universidade da
Califórnia (em Berkeley, Los Angeles e Sacramento), e outros campi nos Estados Unidos. Além
disso, ele fez palestras em mais de uma dúzia de países. Entre os prêmios que recebeu estão o
Prêmio Mencken e o Prêmio de Defesa dos Direitos dos Pacientes. O San Francisco Center for
Independent Thought estabeleceu anualmente o Prêmio Thomas S. Szasz por Contribuições à Causa
das Liberdades Civis.
Irving Louis Horowitz, professor da cátedra Hannah Arendt de sociologia e ciência política da
Universidade Rutgers observou que “Essencialmente, a conquista de Szasz é a habilidade única de
trazer para uma disciplina que, ao menos ostensivamente, orgulha-se de sua indiferença a ditames
morais, precisamente um senso de moralidade – uma ética de responsabilidade... Quando todos,
desde o traficante de rua até o presidente da universidade, podem alegar ser vítimas, é precisamente
esse senso de responsabilidade ética que desaparece atrás de uma nuvem de fumaça psiquiátrica”.
Szasz é um homem magro, de um metro e setenta, que gosta de se vestir bem. Levou uma vida
vigorosa, caminhando, jogando tênis e nadando quase todos os dias. Um repórter do jornal
Philadelphia Inquirer ficou impressionado com a “intensidade emocional e vitalidade intelectual”
de Szasz. A revista Cosmopolitan chamou-o de “um orador espirituoso e comovente, cujas opiniões
incomuns – e ginásticas verbais – atraem grandes plateias”.
Donald Oken, ex-chefe de psiquiatria no Upstate Medical Center, em Syracuse, Nova York, disse ao
New York Times: “Quando as pessoas ficam sabendo que eu era chefe do departamento onde
Thomas Szasz trabalha, elas mal podem esperar para ouvir que histórias loucas e fantásticas eu
tenho para contar. Você teria que conhecer Tom pessoalmente para entender o quanto essa ideia é
ridícula. Ele soa polêmico quando escreve, mas ele não é assim. Ele é carinhoso e agradável – não
tem absolutamente nada de extravagante. Ele veste um terno de flanela cinza-escuro todos os dias
para trabalhar. Ele é basicamente uma pessoa conservadora”.
O historiador Ralph Raico escreveu que “Contra a corrente de uma cultura que o negaria, Szasz
devolve propósito e escolha, certo e errado, ao mundo humano. Para os amigos da liberdade, ele é
um dos mais importantes intelectuais vivos hoje”.
Thomas Stephen Szasz nasceu em Budapeste, em 15 de abril de 1920. Sua mãe foi Lily Wellisch,
filha de um comerciante de cereais. Seu pai, Julius Szasz, havia estudado direito e era proprietário
de alguns prédios em Budapeste. Julius era ateu, mas seu passaporte indicava que ele era judeu (os
passaportes húngaros especificavam a religião ou ascendência do portador). Thomas tinha um irmão
mais velho, George.
Havia uma parceria entre judeus e não-judeus, conforme explicou o historiador da Universidade de
Columbia Istvan Deak: “Entre os anos 1840 e o início da primeira guerra mundial, a alta burguesia
húngara e a elite social judaica haviam silenciosamente cooperado para modernizar a Hungria. Os
judeus haviam se encarregado do desenvolvimento econômico, e a aristocracia e a burguesia
haviam governado o país”. Os judeus ainda tinham de ter cuidado. O governante da Hungria era
Miklos Horthy, que promovia o “nacionalismo cristão”, que significava anti-semitismo. A classe
média gentia começou a exigir tratamento preferencial em detrimento dos judeus, e a legislatura de
Horthy implantou cotas efetivamente limitando o número de judeus que poderiam ser admitidos nas
universidades.
Szasz frequentou ótimas escolas, onde estudou latim, francês, alemão, matemática, física, história, e
literatura húngara por oito anos. Em suas aulas de alemão, ele amava ler as obras de Friedrich
Schiller, o grande dramaturgo alemão que defendia a liberdade. Szasz leu obras de Leo Tolstoy, o
autor russo cujo trabalho expressava um espírito de individualismo. “Fui muito influenciado por
Mark Twain”, acrescentou ele. “Amei Tom Sawyer e Huckleberry Finn. Queria ser escritor”.
Seu tio Otto era um matemático teórico que emigrou para Frankfurt, na Alemanha, onde era
professor universitário. Quando Hitler chegou ao poder em 1933 e os professores judeus foram
demitidos, Otto Szasz emigrou para os Estados Unidos e tornou-se professor e pesquisador na
Universidade de Cincinatti. Quando ele visitava sua família em Budapeste, uma vez por ano, ele
sempre falava sobre a América, que claramente era o melhor lugar para viver. Finalmente, em 1938,
a família se preparou para deixar a Hungria. Por causa de restrições do governo que limitavam
severamente a mobilidade, tiveram de fazê-lo aos poucos. Julius Szasz obteve um visto para a
França, onde tinha parentes. Chegando a Paris, ele obteve um visto para a Holanda, e lá ele solicitou
um visto americano. Naquela época, os Estados Unidos tinham cotas de imigração baseadas no
local de nascimento do indivíduo. Julius era de uma cidade ao norte de Bratislava, no que se tornou
a Tchecoslováquia. A cota para a Tchecoslováquia era pequena, mas muito poucas pessoas se
candidatavam, e ele conseguiu o visto. Após chegar na América, ele pediu vistos preferenciais para
sua esposa e seus filhos. Thomas e George então seguiram o mesmo caminho. Sua mãe veio um
pouco mais tarde, depois de cuidar de negócios em Budapeste.
Thomas e George chegaram aos Estados Unidos em 25 de outubro de 1938, sem saber uma palavra
de inglês. A irmã de sua mãe foi a seu encontro, e ajudou-os a chegar a Cincinatti, onde pretendiam
encontrar Otto. Eles não podiam morar com ele, porque ele alugava apenas um quarto, mas ele
conseguiu permissão para Thomas ouvir aulas na Universidade de Cincinatti, para que ele pudesse
começar a aprender inglês. Thomas fazia trabalhos esporádicos, como motorista, por exemplo.
Otto conseguiu matricular Thomas na universidade. Ele estudou medicina, formando-se em
primeiro lugar de sua classe e tornando-se cidadão americano. Durante esses anos, praticamente o
único livro relacionado à liberdade que ele leu foi On Liberty [“Sobre a liberdade”], de John Stuart
Mill. Ele fez um estágio de um ano no Boston City Hospital, e então tornou-se médico residente nas
clínicas de Universidade de Chicago, e estudou psicanálise no prestigiado Chicago Institute for
Psychoanalysis.
Enquanto isso, ele conheceu e se apaixonou por Rosine Loshkajian, uma assistente social armênio-
albanesa de Chicago. Casados em 19 de dezembro de 1951, eles tiveram duas filhas. Margot,
nascida em 1953, tornou-se dermatologista na Mayo Clinic. Susan, nascida em 1955, tornou-se
bibliotecária na Universidade Cornell. Thomas e Rosine Szasz foram casados por dezenove anos,
até seu divórcio em 1970.
Seu primeiro artigo acadêmico foi publicado em setembro de 1947 (sobre falha cardíaca
congestiva), e durante anos ele escreveu artigos para conceituados periódicos médicos como
Archives of Internal Medicine e American Journal of Psychiatry. Em 1956, ele foi nomeado
professor de psiquiatria no State University of New York Health Science Center, em Syracuse, onde
permaneceu. No mesmo ano, ele começou a escrever artigos que antecipavam os temas aos quais se
dedicaria mais tarde. O primeiro livro de Szasz, Pain and Pleasure “Dor e prazer”, ofereceu leves
críticas da opinião psiquiátrica (médica) de que toda dor tem algum tipo de base física, que pode ser
medicada. Um ano depois de conseguir estabilidade, ele publicou seu primeiro grande livro, The
Myth of Mental Illness “O mito da doença mental”. Ele o via como uma sequência natural de Pain
and Pleasure, mas o livro chocou a comunidade psiquiátrica. Em The Myth of Mental Illness, ele
defendeu que apesar de os psiquiatras rotularem certas formas de comportamento como doenças
mentais, eles não são de modo algum comparáveis a uma doença causada por um vírus ou uma
bactéria. Esses, explicou Szasz, poderiam causar uma doença no cérebro, mas não uma “doença
mental”.
A doutrina da “doença mental” tinha sérias consequências. Em primeiro lugar, rotular
comportamentos como doenças mentais significava deixar de considerar as pessoas responsáveis
por seus atos. Assassinos, por exemplo, podiam evitar condenações alegando insanidade – após
serem declarados “insanos” por um psiquiatra. Em segundo lugar, psiquiatras ganhavam o poder de
internar pessoas involuntariamente em instituições psiquiátricas. Longe de serem o agente do
paciente para ajudar no tratamento de uma doença física, os psiquiatras eram frequentemente
agentes do Estado.
Após a publicação de The Myth of Mental Illness, Szasz testemunhou em defesa de John
Chomentowski, um homem de Onondaga County, em Nova York, que havia disparado tiros de
alerta contra “capangas” enviados por um construtor que queria tomar sua propriedade antes da data
contratada. A polícia o prendeu, os psiquiatras do governo o pronunciaram mentalmente
incompetente, e ele foi internado no Matteawan State Hospital for the Criminally Insane. “Szasz
testemunhou em uma audiência de habeas corpus, em que Chomentowski tentava ganhar sua
liberdade do confinamento”, relembrou o psiquiatra Ronald Leifer. “O julgamento, ao qual eu
compareci, recebeu muita atenção dos círculos psiquiátricos, já que pela primeira vez Szasz estava
em confronto direto com psiquiatras convencionais em um fórum público... Ele acreditava que
hospitais psiquiátricos são prisões, e que, efetivamente, o sr. Chomentowski havia sido preso sem
ter sido condenado por um crime. Ele traduziu o jargão dos psiquiatras do hospital do estado para
linguagem comum, com efeito devastador”.
O comissário local de saúde mental, Abraham Halpern, enviou um protesto formal ao comissário de
higiene mental do estado de Nova York, Paul Hoch, que ordenou que Szasz deixasse de ensinar no
Syracuse Psychiatric Hospital. O Psychiatric Quarterly publicou um ataque, “Szasz for the
Gander”. Dois compatriotas de Szasz foram demitidos, mas ele permaneceu em sua posição de
professor porque ele resistiu, e tinha estabilidade.
Szasz expandiu seu ataque à doença mental em Law, Liberty and Psychiatry “Direito, liberdade e
psiquiatria”: “A noção de doença mental se baseia principalmente em fenômenos como a sífilis
cerebral ou condições de delírios – embriaguez, por exemplo – nas quais as pessoas podem
manifestar certos distúrbios de pensamento e comportamento. Falando corretamente, no entanto,
são doenças do cérebro, e não da mente. Segundo uma escola de pensamento, todas as supostas
doenças mentais são desse tipo. Pressupõe-se que algum defeito neurológico, talvez muito sutil,
acabará por ser descoberto, e explicará todos os distúrbios do pensamento e do comportamento.
Muitos psiquiatras contemporâneos, médicos e outros cientistas são desta opinião, que implica que
os problemas das pessoas não podem ser causados por necessidades pessoais, opiniões, aspirações
sociais, valores, etc., em contradição. Tais dificuldades – que penso que podemos chamar
simplesmente de problemas do viver – são então atribuídas a processos fisioquímicos que em algum
momento serão descobertos (e sem dúvida corrigidos) pela pesquisa médica... [mas] a crença de
uma pessoa – seja no Cristanismo, no Comunismo, ou na ideia de que seus órgão internos estão
apodrecendo e seu corpo já está morto – não podem ser explicadas por um defeito ou doença do
sistema nervoso”.
A internação involuntária é pior do que ir para a prisão, destacou Szasz, porque os presos são
libertados após cumprirem sua pena, se não antes, enquanto indivíduos em um hospital psiquiátrico
estão condenados a lá permanecer indefinidamente, a critério dos psiquiatras. “Nem internistas nem
obstetras nem cirurgiões operam instituições especiais para pacientes involuntários, nem a lei os
autoriza a sujeitar pessoas a tratamentos que elas não querem”, Szasz escreveu. “O paciente
psiquiátrico entra no hospital de uma entre duas maneiras: voluntariamente ou involuntariamente. É
preciso enfatizar que em nenhum dos casos ele tem uma verdadeira relação contratual com o
hospital. Qualquer que seja o modo de entrada, o paciente se encontra em situação de internação...
Se um paciente entra em um hospital psiquiátrico voluntariamente, e com um acordo de que ele
pode sair quando quiser, mesmo assim os psiquiatras podem recusar-se a dar-lhe alta... Entrada
voluntária é na verdade internação voluntária. Em outras palavras, o papel do paciente psiquiátrico
voluntário é uma mistura entre o papel de paciente médico e o de prisioneiro”.
E a opinião de que os indivíduos devem ser internados se são perigosos para si mesmos ou para a
sociedade? “Em minha opinião”, escreveu Szasz, “a verdadeira questão não é se uma pessoa é
perigosa. A questão é quem ela é, e de que forma ela é perigosa. A algumas pessoas é permitido ser
perigoso para outros com impunidade. Além disso, à maioria de nós é permitido ser perigoso de
algumas formas, mas não de outras. Motoristas bêbados são perigosos tanto para si mesmos quanto
para os outros. Eles ferem e matam muito mais pessoas do que, por exemplo, pessoas com
alucinações paranóicas de perseguição. No entanto, as pessoas rotuladas como paranóicas são
prontamente internáveis, e os motoristas bêbados não são. Certos tipos de comportamento perigoso
são até recompensados. Motoristas de corrida, trapezistas e astronautas recebem admiração e
aplausos... Portanto, não é a periculosidade em geral que está em questão aqui, mas sim a maneira
ou o estilo como uma pessoa é perigosa”.
Szasz desdenhava a alegação de que hospitais psiquiátricos têm qualquer capacidade de fazer os
pacientes melhorarem: “Os efeitos danosos da hospitalização psiquiátrica sobre a personalidade do
detento são demonstrados mais convincentemente pelo fato de que os chamados pacientes crônicos
raramente tentam escapar. Pessoas confinadas em instituições psiquiátricas por períodos
consideráveis perdem todas as habilidades sociais que tinham para sobreviver do lado de fora”.
Psiquiatras estrangulavam a responsabilidade individual não apenas internando as pessoas em
instituições psiquiátricas contra a sua vontade, mas também declarando réus criminais insanos. O
raciocínio vago e facilmente expansível da doença mental possibilitou que todo tipo de pessoa
cometa crimes terríveis sem ser responsabilizada.
Law, Liberty and Psychiatry tornou Szasz uma figura polêmica, e ele começou a escsrever para
publicações populares, incluindo New York Times Magazine, New York Times Book Review, Boston
Sunday Herald, Atlantic Monthly, Harper’s, National Review, New Republic, e Science Digest.
Alguns psiquiatras ficaram indignados. Manfred Gutmacher, um psiquiatra que ganhava dinheiro
testemunhando em casos criminais, resmungou: “Um pássaro que suja o próprio ninho corteja as
críticas”.
A psiquiatria ganhou impulso quando Thorazine e outros tranquilizantes tornaram-se amplamente
disponíveis. Então vieram drogas antipsicóticas e antidepressivas. “Conforme novas gerações de
medicamentos eram desenvolvidas”, explicou Ronald Leifer, “o tratamento farmacológico de
doenças mentais parecia ter uma melhor relação custo-benefício e se tornava mais popular.
Tornados mais confiantes pelas drogas, os psiquiatras expurgaram Szasz. Seus artigos não eram
bem recebidos nos periódicos de psiquiatria. Seria praticamente impossível que alguém que
compartilhasse de suas opiniões sobre ‘doenças mentais’ obtivesse um posto acadêmico em tempo
integral ensinando residentes psiquiátricos”.
Mesmo assim, os psiquiatras não conseguiram provar que todo comportamento humano tem uma
causa física que pode ser eficientemente tratada com medicação. A repórter de ciências Natalie
Angier, do jornal New York Times, escreveu: “Cada vez que pensam ter descoberto um gene real e
analisável para explicar um distúrbio mental como a síndrome maníaco-depressiva ou o alcoolismo,
a descoberta se dissolve sob inspeção mais intensa, ou é posta em dúvida”. David Cohen, professor
associado da University of Montreal School of Social Work, observou que “após quatro décadas de
uso clínico de neurolépticos [drogas antipsicóticas], os seguintes fatos emergem de qualquer análise
da literatura psiquiátrica contemporânea: os clínicos não concordam quanto ao que constitui uso
racional de tais drogas; a dosagem ótima de qualquer neuroléptico é desconhecida; em metade dos
pacientes, os sintomas não são suprimidos pelas drogas, ou são agravados; os efeitos das drogas são
confundidos com sintomas psiquiátricos; apesar da falta de dados sobre efeitos terapêuticos ou
tóxicos a longo prazo... o tratamento da psicose com drogas neurolépticas está, em nível teórico e
prático, em estado de confusão”.
Em meio a toda essa controvérsia, Szasz escreveu quinze livros. Os mais notáveis incluem The
Manufacture of Madness, A Comparative Study of the Inquisition and the Mental Health Movement
“A fabricação da loucura, um estudo comparativo da inquisição e do movimento pela saúde
mental”; The Age of Madness, A History of Involuntary Hospitalization Presented in Selected Texts
“A idade da loucura, uma história da hospitalização involuntária apresentada em textos
selecionados”; e The Therapeutic State, Psychiatry in the Mirror of Current Events “O estado
terapêutico, psiquiatria no espelho dos acontecimentos atuais”.
Szasz tornou-se ainda mais polêmico quando desafiou a sabedoria convencional e atacou o combate
às drogas. Em seu livro de 1974, Ceremonial Chemistry [“Química cerimonial”], Szasz discutiu sete
mil anos de história para mostrar que drogas sempre existiram, e sempre houve alguns que
“abusaram” delas, mas quando os indivíduos são responsabilizados pelos danos que causam aos
outros, o uso de drogas (e outros comportamentos danosos) é mantido sob controle.
A proibição das drogas revelou as gritantes contradições da interferência do governo na vida
privada, destacou Szasz. Pessoas morrem por causa de impurezas em drogas ilegais, algo de que
praticamente não se ouve falar quando as drogas são legais e seus fabricantes podem ser
processados. Pessoas morrem em conflitos entre distribuidores de drogas que, por estarem
envolvidos em uma atividade ilegal, não podem resolver suas disputas litigiosamente. Pessoas
inocentes são assaltadas, têm suas casas roubadas e são assassinadas por usuários de drogas em
busca de dinheiro para sustentar seu vício, porque ele é muito mais caro do que seria em um
mercado aberto.
Szasz rejeitava a opinião de que os indivíduos são indefesos ante a dependência química e que a
solução para o vício é minar a responsabilidade dos indivíduos por seus atos. Ele notou que todos os
vícios podem ser difíceis de superar, mas as pessoas são dotadas de livre-arbítrio e têm a capacidade
de mudar. Ele avisou que toda uma população viciada em governo é muito mais perigosa do que
algumas pessoas viciadas em drogas. Ele expandiu o argumento em Our Right to Drugs “Nosso
direito às drogas”.
Durante toda a sua vida, Thomas Szasz demonstrou a coragem de defender seus princípios sozinho.
Ele desafiou uma profissão poderosa e foi banido de publicações influentes; altas autoridades do
governo fizeram todo o possível para arruinar sua carreira. Mas ele falou pelos mais vulneráveis
entre nós. Ele defendeu os direitos iguais de pessoas que não têm voz porque estão trancafiadas em
instituições psiquiátricas ou definhando em prisões pelo “crime” de ser diferente. Ele afirmou a
compaixão da liberdade.

Samuel Adams

Samuel Adams foi mais eficiente do que qualquer outro popularizador das ideias que inspiraram a
revolução americana. Ele compreendia claramente a perene ameaça à liberdade: “Ambição e sede
de poder acima da lei são... paixões predominantes nos corações da maioria dos homens... em todas
as nações, combinando as piores paixões do coração humano e os piores projetos da mente humana
em uma aliança contra as liberdades da humanidade.” O poder político, declarou, é “sabidamente de
natureza intoxicante... intoxicante demais, e sujeito a abusos.”
O historiador Thomas Fleming observou que “sem Samuel Adams, de Boston, talvez a revolução
americana nunca tivesse acontecido. Sua habilidade em combinar agitação e propaganda colocava
os britânicos constantemente na defensiva. Ele criou comitês de correspondência para ligar as
colônias, e foi o principal organizador da Boston Tea Party [festa do chá de Boston]”. O governador
britânico de Massachusetts, Francis Bernard, reclamou: “A ponta de sua pena picava como uma
cobra venenosa.” Thomas Hutchinson, chefe do judiciário nomeado pelos britânicos, disse que não
havia “maior incendiário nos domínios do rei, nem homem de coração mais malicioso, com menos
escrúpulos em tomar as medidas mais criminosas para atingir seus objetivos.”
Mas Adams era reverenciado pelos colonos americanos. Thomas Jefferson chamava-o de “meu
muito caro e antigo amigo”. John Adams descreveu Sam, seu primo mais velho de segundo grau,
como “calmo, abstêmio, polido e refinado... Quando seus sentimentos mais profundos eram
perturbados, ele se elevava, ou a natureza parecia elevá-lo, sem o menor sinal de afetação, em uma
figura da maior dignidade de gestos, com uma harmonia em sua voz que causava uma forte
impressão.... ainda mais duradoura por conta da pureza, correção e elegância tensa de seu estilo.”
O historiador Samuel Eliot Morison reconheceu que “ele não era um grande orador – tinha a voz e
as mãos trêmulas; então deixava que outros Filhos da Liberdade como Joseph Warren e o rebelde
[James] Otis fizessem os discursos, enquanto ele escrevia artigos provocadores nos jornais e fazia
arranjos políticos.” O biógrafo Cass Canfield acrescentou: “a principal habilidade de Sam também
não era a escrita, embora ele tenha deixado uma obra volumosa. Ele tinha um estilo claro baseado
nos clássicos, mas a intensidade de suas convicções por vezes restringia-o. Era como...
administrador de pessoas que ele brilhava; o mundo viu poucos homens tão hábeis nos métodos de
influenciar um grupo. Seu senso de oportunidade – quando advogar ações controversas – era
extraordinário, e Adams, embora emocional e passional por natureza, sabia exatamente quando era
necessário conciliar ao invés de pressionar.”
Quando ele liderou a bem-sucedida resistência ao Stamp Act [Lei do Selo] em 1765, escreveu
Canfield, ele “era um senhor de meia-idade, já sofrendo de tremores, vestindo roupas manchadas
pelos anos... [Ele] vivia frugalmente e tinha orgulho de sua pobreza.” O historiador Page Smith
descreveu-o como “inofensivo como leite, silencioso, prudente, de uma estranha delicadeza em suas
maneiras, um suave poder de persuasão e uma aguda compreensão do temperamento e do caráter
das pessoas.”
Sam Adams nasceu na casa de sua família em Purchase Street, em frente ao porto de Boston, em 16
de setembro de 1722. Segundo relatos, sua mãe, Mary Fifield, era uma mulher profundamente
religiosa. Seu pai, Samuel Adams sr., era diácono da Igreja Congregacional e um comerciante que
preparava cevada para a fabricação de cerveja.
Após frequentar a Boston Latin School, o jovem Sam estudou os filósofos do direito natural John
Locke e Samuel Pufendorf em Harvard. Em um debate, ele defendeu a resposta positiva à questão
de “se é legal resistir ao supremo Magistrado, se a comunidade não puder ser preservada de outra
maneira.” Seu pai perdeu suas economias em um mau investimento, e Sam teve de pagar suas
despesas trabalhando como garçom no restaurante de Harvard. Após a formatura (1740), ele passou
a trabalhar na cervejaria do pai.
Adams casou-se com Elizabeth Checkley, de 24 anos, filha de um clérigo, em 17 de outubro de
1749. Após sete anos e cinco gestações, ela faleceu, deixando um filho, Samuel, e uma filha,
Hannah. Sam Adams casou-se novamente: Elizabeth Wells, de vinte e quatro anos. Ela não tinha
muito dinheiro, mas fazia o máximo com a pequena renda de Adams e dava-lhe apoio moral.
Ele se envolveu na política e em 1756 foi eleito coletor de impostos. Conforme escreveu Cass
Canfield, “seu comportamento conciliador era muito popular com os contribuintes, aos quais ele
escutava com simpatia quando pediam adiamentos das cobranças, mas ele não coletava tudo que era
devido... Os habitantes da cidade gostavam tanto de Sam que o reelegeram com entusiasmo.”
Durante esse período, a Inglaterra havia concluído uma sucessão de guerras com a França, a últimas
delas sendo a Guerra dos Sete Anos (1756-1763), conhecida nas colônias americanas como guerra
franco-indiana. Embora vitoriosa, a Grã-Bretanha havia saído do conflito com uma dívida que
sobrecarregava sua capacidade de arrecadar impostos. Segundo estimativas modernas, os impostos
britânicos per capita eram os mais altos do mundo. Os políticos britânicos exigiram que os colonos
americanos ajudassem a pagar parte dos custos da guerra. Portanto, impostos foram criados ou
aumentados sobre tecidos importados, café, anil e diversos vinhos. O rum foi proibido, a não ser
que viesse das colônias britânicas nas Índias Ocidentais, e a lista de exportações coloniais que
poderiam ir apenas para a Inglaterra foi expandida, passando a incluir couros e derivados de
potássio. Adams, James Otis e outros protestaram contra as novas taxas. Então veio o Stamp Act
(1765), que tributou todos os jornais, panfletos, almanaques, diplomas universitários, licenças,
contratos, baralhos e dados.
Adams formou um grupo de resistência aos impostos chamado de Filhos da Liberdade. Segundo o
biógrafo John C. Miller, eles “se encontravam em um escritório no segundo andar da destilaria
Chase and Speakman. O prédio ficava em Hanover Square, próximo à Árvore da Liberdade – um
enorme carvalho que havia sido plantado, significativamente, em 1646, três anos antes da execução
d[o] [rei britânico] Carlos I.”
Adams tornou-se o mais eletrizante defensor da liberdade. O biógrafo Miller escreveu que seu
“jornalismo era tão vívido que a Gazette tornou-se praticamente o único jornal lido fora de Boston.
Embora cheio de sedição e calúnia, não podia ser suprimido pelos oficiais da Coroa; quando
Hitchinson tentou induzir um júri de Suffolk a indiciar o autor de um particularmente ‘blasfemo
ataque ao governo real’, Sam Adams fez tanta pressão sobre o júri que o indiciamento foi logo
anulado.” Adams foi eleito para a Câmara de Representantes de Massachusetts e ajudou a aprovar
as Resoluções de Massachusetts contra o Stamp Act.
Em 14 de agosto, Sam liderou os Filhos da Liberdade em um enforcamento da efígie do coletor de
impostos de Massachusetts Bay, Andrew Oliver, na Árvore da Liberdade. A efígie então foi baixada,
e uma multidão estimada em cinco mil pessoas, cerca de um terço da população de Boston,
marchou até a casa de Oliver em Fort Hill repetindo “liberdade, propriedade, não aos selos”, e
decapitou a efígie. Eles queimaram um novo edifício que serviria como sede da arrecadação dos
impostos do Stamp Act. Graças aos esforços de Adams, o Stamp Act foi ignorado, e bens puderam
entrar em Boston sem ser tributados. O Parlamento repeliu o Stamp Act.
Agressivamente buscando novos recrutas, Adams conversava com empregados de estaleiros e
artesãos ao norte de Boston e visitava lojas, tavernas, hospedarias e corporações voluntárias de
bombeiros. “Ele conseguia explicar ciência política a um marinheiro analfabeto sem ser
condescendente”, disse o historiador A. J. Langguth. Ele também procurava pessoas influentes,
como o contrabandista John Hancock, de trinta e um anos, que empregava mil pessoas na região de
Boston. Com dinheiro e contatos, Hancock tornou-se o padrinho da causa americana, fornecendo
rum gratuitamente nas manifestações e pagando as despesas com placas e publicações. Ele deu o
nome de Liberty a seu navio contrabandista.
Sam encorajou John Adams a entrar na luta política. O biógrafo Page Smith relatou que “com seu
primo Samuel, ele havia aprendido a julgar os homens em termos de confiabilidade futura, a medir
sua ortodoxia e avaliar sua firmeza. Como ele poderia ser útil? Quais eram suas lealdades, seus
talentos, suas ligações, sua vaidades e defeitos? Resistência à autoridade não era trabalho para
garotos nem turbas.”
O principal vilão era o rei George III, o mais poderoso monarca da Europa, que governava a
Inglaterra, o País de Gales, a Escócia, a Irlanda, a Índia, o Ducado de Hanover (Alemanha), e
colônias na África, nas Índias Ocidentais e na América do Norte. Embora o Parlamento dominasse o
governo quando George III ascendeu ao trono em 1760, ele conseguiu impor-se sobre o Parlamento
através de astuta manipulação política e distribuição de favores.
A determinação dos colonos foi testada em 1767, quando o Parlamento aprovou os Townshend Acts,
uma nova tentativa de extrair receita das colônias – desta vez, taxando importações de vidro,
chumbo, tinta, papel e chá. Adams ajudou a persuadir membros da Câmara de Representantes de
Massachusetts a adotar uma circular que condenava os Townshend Acts.
Em uma reunião no Faneuil Hall em outubro de 1868, Sam Adams declarou que os soldados
britânicos tinham de se retirar. John Adams relembrou a ocasião: “Com uma concentração, auto-
controle e consciência que todos os presentes admiraram, S. A. levantou-se, com um ar de
dignidade e majestade de que às vezes era capaz, estendeu seu braço, apesar dos tremores, e com
voz harmoniosa e tom decisivo disse: ‘Se o tenente-governador ou o governador Dalrymple, ou
ambos, têm autoridade para remover um regimento, então têm autoridade para remover dois, e nada
menos que a total evacuação da cidade por todas as tropas regulares satisfará a opinião pública ou
preservará a paz da província.’ Essas poucas palavras criaram emoção em todos os membros da
audiência, e produziram o grande resultado. Após um breve momento de hesitação constrangida,
todos concordaram que a cidade deveria ser evacuada... Esses soldados foram chamados, com
humor e sarcasmo, de ‘regimentos de Sam Adams’.”
Em 5 de março de 1770, soldados britânicos atiraram contra um grupo hostil de cerca de sessenta
pessoas reunidas em frente à sede do governo, matando cinco civis. Indignado, Adams decidiu:
“Onde houver uma faísca patriótica, vamos acender o fogo.” Entre agosto de 1770 e dezembro de
1772, ele escreveu mais de quarenta artigos para a Boston Gazette, muitos reimpressos em jornais
de Nova York e da Filadélfia, e alguns até na Inglaterra, onde forneceram argumentos para os
membros do Parlamento que se opunham ao endurecimento das políticas coloniais do governo.
Sam Adams formou o Comitê de Correspondência de Boston para estabelecer uma rede de
comunicações através das colônias. Vinte e uma pessoas compareceram à primeira reunião,
realizada em 3 de novembro de 1772. Prepararam uma declaração dos direitos dos colonos, uma
lista de reclamações contra a Inglaterra, e uma carta encorajando outras cidades a formarem comitês
similares, que permaneceriam em contato. Um oficial britânico referiu-se especificamente a Adams,
chamando-o de “a mais suja, sutil e mais venenosa serpente já nascida do ovo da sedição.”
Neste mesmo período, os colonos se irritaram com a decisão do governo britânico de resgatar a
British East India Company, que estava em dificuldades financeiras, ordenando o cumprimento de
seu monopólio sobre o mercado americano. Os colonos boicotaram o chá da companhia e fizeram o
seu próprio e muito menos saboroso “Chá da Liberdade”, com folhas de sálvia, groselha e banana.
No outono de 1773, navios da companhia chegaram a Boston, Nova York, Philadelphia e
Charleston, os maiores portos coloniais. Em Nova York e Charleston, a pressão do público levou os
agentes da companhia que receberiam o chá a demitir-se.
No entanto, em Boston, o agente insistiu em aceitar os carregamentos, que chegaram nos navios
Darthmouth, Eleanor e Beaver. Adams convocou uma reunião um uma igreja, e cerca de oito mil
pessoas compareceram. Ele discursou, “Compatriotas, não podemos ceder uma única polegada! Se
retrocedermos agora, tudo o que fizemos terá sido em vão!” Cerca de 150 colonos vestidos como
índios moicanos foram a Griffin’s Wharf, subiram a bordo dos navios, e atiraram 342 baús de chá
ao mar. O ultrage dos britânicos transformou a Tea Party em um evento de grande importância.
Lord North, o primeiro-ministro britânico, propôs uma série de medidas punitivas contra
Massachusetts.
Os Filhos da Liberdade de Nova York apoiaram a ideia sugerida por Adams na Boston Gazette:
“Que um Congresso de Estados Americanos se reúna assim que possível, para redigir uma
Declaração de Direitos e publicá-la para o mundo, escolher um embaixador a ser enviado à corte
britânica para agira pelas colônias unidas.” A Câmara de Representantes da Virgínia adotou a ideia.
Uma reunião em Boston elegeu Samuel Adams, John Adams, James Bowdoin, Thomas Cushing e
Robert Treat Paine como representantes para o Primeiro Congresso Continental, reunido para
expressar queixas contra os britânicos. O congresso incluiu representantes de todas as colônias com
exceção da Geórgia, que se reuniram em Carpenter’s Hall, na Filadélfia, de 5 de setembro a 26 de
outubro de 1774. Eles aprovaram a formação de uma associação continental para manter um boicote
de bens britânicos.
Em 19 de abril de 1775, o general Thomas Gage enviou centenas de soldados britânicos para
Concord, a vinte e uma milhas de distância, onde eles pretendiam capturar pólvora americana e
prender Adams e Hancock. Dr. Joseph Warren, que havia assumido o comando da resistência
colonial em Boston durante a ausência de Adams, pediu ao ourives Paul Revere que alertasse o
maior número possível de pessoas. Ele chegou a Lexington em tempo, e Adams e Hancock
escaparam.
A revolução americana começou quando o jovem William Desmond, de dezesseis anos, tocou seu
tambor e o capitão John Parker reuniu cerca de setenta Minutemen [milicianos voluntários] em
Concord para enfrentar os soldados britânicos que marchavam em direção à cidade. Oito
Minutemen morreram e dez ficaram feridos, enquanto apenas um soldado britânico se feriu.
Centenas de colonos sentiram-se inspirados a juntar-se à luta, e nas batalhas subsequentes ao redor
de Concord os Minutemen adotaram táticas de guerrilha e atiraram contra soldados britânicos
escondidos atrás de pedras e árvores. Os britânicos se retiraram de Boston tão rápido quanto
puderam.
O Segundo Congresso Continental começou a se reunir em 10 de maio de 1775, para decidir o que
deveria ser feito a seguir, e Adams estava lá. O biógrafo Canfield escreveu que Adams
“normalmente usava roupas velhas e manchadas. Para essa ocasião, no entanto, seus amigos haviam
juntado dinheiro para vesti-lo de forma apropriada. Ele estava resplandecente em seu novo terno,
peruca e chapéu, e uma bengala decorada em ouro.” Ele previu que a prioridade dos britânicos seria
isolar a Nova Inglaterra das demais colônias, e que isso provavelmente seria feito por um exército
marchando até o lago Champlain, e então ao longo do rio Hudson, entrando na cidade de Nova
York. Por conseguinte, dois barcos com oitenta e três milicianos atacaram e capturaram o forte
Ticonderoga, uma base de operações britânica.
O Segundo Congresso Continental autorizou a criação de um exército colonial. John Adams
persuadiu seus compatriotas a nomear o coronel George Washington, de quarenta e três anos,
comandante-em-chefe. Washington, que comandava a milícia de Virgínia, poderia ajudar a
conquistar o apoio do sul para a revolução. Sam Adams apoiou a nomeação, que foi aprovada.
Mais americanos perceberam que não bastava se rebelar contra a Inglaterra. Os problemas de poder
arbitrário deixavam claro que uma nova forma de governo era necessária – uma que controlasse
melhor o poder político. Sam Adams estava entre os signatários da Declaração de Independência,
em 2 de agosto de 1776.
A historiadora Pauline Mayer comentou que “ele tinha cinquenta e quatro anos em 1776... dez anos
mais velho do que George Washington, treze anos mais velho do que John Adams; tinha vinte anos
mais do que Thomas Jefferson, vinte e nove mais do que James Madison, trinta e três mais que
Alexander Hamilton. Mesmo assim, serviu incansavelmente em comitês do Congresso Continental
desde seu início até 1781, um período em que o fardo administrativo da nova nação, assim como o
legislativo, foi carregado por um pequeno número de dedicados delegados.”
Sam Adams tornou-se uma figura legendária. Quando, em 1778, John Adams chegou à França
como representante americano, as pessoas perguntavam se ele era “o famoso Adams” – referindo-se
a Sam. “Não havia o que eu pudesse dizer ou fazer,” escreveu ele em seu diário, “para convencer
qualquer pessoa de que eu não era le fameux Adams.” Os franceses acabaram por aceitar suas
negativas, mas então ele lamentou que havia se tornado “um homem de que ninguém havia ouvido
falar.”
Sam Adams ajudou a elaborar os Artigos da Confederação, um grande experimento de governo
limitado que entrou em colapso entre as crises causadas pelas dívidas da guerra revolucionária e
pela inflação. Quando a Constituição foi debatida, em 1788, Adams posicionou-se como um
antifederalista que exigia uma declaração de direitos. Ele participou da convenção ratificatória de
Massachusetts. Foi eleito vice-governador de Massachusetts em 1789, e, após a morte do
governador John Hancock, foi eleito governador, servindo por três mandatos.
Em seus últimos anos, ele foi alternadamente conservador e radical. Parecia conservador quando
denunciava a rebelião liderada por Shays contra impostos injustos. Mas também defendeu os ideais
da revolução francesa e criticou os federalistas que advogavam a repressão para conter os ânimos
revolucionários. Sua influência estava enfraquecendo, no entanto, e ele fracassou em seus esforços
para impedir John Adams, que havia se tornado um federalista convicto, de ser eleito presidente em
1796. Sam assistiu impotente quando o presidente Adams assinou os Alien and Sedition Acts leis
sobre estrangeiros e sedição, com a intenção de aniquilar o Partido Republicano de Jefferson, dando
ao governo federal o poder de suprimir dissidências, entre outras medidas.
Sam viveu para ver Jefferson vencer a eleição presidencial de 1800 e impedir os federalistas de
erodir mais as liberdades civis. Refletindo sobre a tumultuada campanha eleitoral e sobre sua
amizade, Jefferson escreveu a Adams em março de 1801: “Não há no coração de nenhum homem
estima mais fiel do que a que tenho por ti, por quem sentirei sempre a mais afetuosa veneração e
respeito.” Adams respondeu: “A tempestade passou, agora estamos no porto... queiram os Céus que
os princípios da liberdade e da virtude, da verdade e da justiça, espalhem-se por toda a Terra.”
Em 1803, Sam Adams sentia o peso dos anos; tinha dificuldade em dar mais do que alguns passos, e
sua mente parecia não se concentrar. Ele faleceu em paz em 2 de outubro de 1803, na humilde casa
onde vivia com sua esposa em Boston. Tinha oitenta e um anos. Os sinos das igrejas tocaram por
meia hora. Quatro dias depois, relatou o biógrafo William V. Wells, amigos e dignitários formaram
um cortejo fúnebre que “passou pela rua Winter, desceu a West atravessando Washington, passando
pela antiga câmara estadual, e pelas ruas Court e Tremont até o cemitério Granary, onde o corpo foi
colocado no mausoléu da família.”
John Adams se dedicou a preservar a reputação de Sam. “O senhor diz que o sr. S. Adams ‘pecava
pelo excesso de severidade e intolerância’”, disse ele a um crítico. “Um homem em sua situação e
circunstâncias precisa ser dotado de muita rigidez de espírito, ou será logo aniquilado.”
Sam Adams foi negligenciado por muito tempo, e depois cada vez mais criticado. Sua primeira
biografia de importância só surgiu em 1865, quando um descendente, William V. Wells, produziu
três volumes substanciais. Duas décadas mais tarde, Samuel Adams, de James K. Hosmer, ainda o
tratava como um herói, embora ressalvando com desaprovação que ele “ocasionalmente rebaixava-
se a práticas de má-fé”. Mas Abraham Lincoln havia lutado na guerra civil porque acreditava que a
rebelião era ilegítima, e este ponto de vista tornou-se predominante durante a era “progressista”.
Samuel Adams: Promoter of the American Revolution “Samuel Adams: agitador da revolução
americana”, de Ralph Volney Harlow, retratava a rebelião de Adams como irracional, injustificada
por quaisquer atos dos britânicos, e motivada pelos “cansativos problemas mentais” de Adams. De
forma semelhante, Sam Adams: Pioneer in Propaganda “Sam Adams: pioneiro em propaganda”, de
John C. Miller, menosprezava a ideia de que a revolução americana havia sido uma luta pela
liberdade, apresentando Adams como um manipulador maquiavélico. O ponto mais baixo ocorreu
quando Clifford Shipton preencheu quarenta e cinco páginas com insultos em Sibley’s Harvard
Graduates uma série de biografias de ex-alunos de Harvard. Entre outras coisas, Shipton afirmou
que Adams “pregava o ódio com uma força sem igual.”
Adams começou a receber tratamento mais favorável com a biografia de Stuart Beach, Samuel
Adams: The Fateful Years 1764-1776 “Samuel Adams: os anos cruciais 1764-1776”. Conceived in
Liberty, Advance to Revolution, 1760-1775 “Concebido em liberdade, o avanço para a revolução”,
de Murray N. Rothbard, celebrou Adams, “o grande líder popular dos rebeldes de Massachusetts...
[que se rebelaram] por princípios constitucionais e libertários.” O historiador Thomas Fleming, em
seu Liberty! “Liberdade!”, livro produzido para acompanhar um popular documentário televisivo e
que teve 150.000 cópias vendidas, afirmou que a revolução americana foi uma luta por liberdade e
que Sam Adams teve um papel-chave nela. Agora, espera-se, ele poderá descansar em paz.

Samuel Smiles

Samuel Smiles inspirou pessoas pelo mundo inteiro a melhorarem suas vidas. Produziu uma série
de livros populares, incluindo Self-Help [“Auto-ajuda”] (1859), Character [“Caráter”] (1871),
Thrift [“Poupança”] (1875), Duty [“Dever”] (1880), e Life and Labour [“Vida e trabalho”] (1887),
que venderam centenas de milhares de cópias em árabe, chinês, croata, tcheco, dinamarquês,
holandês, alemão, gujarati, hindustâni, italiano, japonês, marati, português, russo, sueco e tamil, e
também em inglês. Seus livros ainda são editados. Smiles enfatizou a dimensão moral da auto-
ajuda. “A recompensa e glória da vida é o caráter”, ele declarou. “O caráter é a coisa mais nobre que
um homem pode possuir; ele, por si mesmo, confere posição e participação na boa-vontade geral,
tornando digna qualquer situação e exaltando qualquer posição social. Ele exerce mais poder do que
a riqueza, e traz todas as honras sem as invejas da fama. Traz consigo uma influência que sempre
vale, pois é o resultado de honradez comprovada, probidade e coerência – qualidades que, talvez
mais do que quaisquer outras, atraem a total confiança e o respeito da humanidade... O espírito de
auto-ajuda é a raiz de todo crescimento genuíno do indivíduo; e, exibido nas vidas de muitos,
constitui a verdadeira fonte do vigor e da força nacionais... A experiência cotidiana nos mostra que é
o individualismo enérgico que produz os efeitos mais poderosos sobre as vidas e as ações dos
demais, e realmente constitui a melhor educação prática”.
Como biógrafo, Smiles poderia ter escrito sobre reis, políticos, e conquistadores, mas, ao invés
disso, ele ilustrou verdades fundamentais com histórias comoventes de pessoas comuns que fizeram
coisas extraordinárias. Exultou: “Os grandes homens da ciência, literatura, e arte... não pertenceram,
em vida, a uma única classe ou posição social. Eles vieram igualmente das universidades, oficinas e
fazendas – dos casebres dos pobres e das mansões dos ricos... Os mais pobres chegaram por vezes
às mais altas posições”. A historiadora Asa Briggs aclamou Smiles, “que, mais do que qualquer
outro autor do século XIX, popularizou os heróis da revolução industrial e proclamou seus valores”.
Sua neta Aileen descreveu “sua figura marcante, sua cabeça enorme, seus olhos penetrantes e cheios
de benevolência”. Ela observou que “ele cometeu todos os crimes vitorianos. Usava barba e pintava
aquarelas. Acreditava em famílias grandes (moderadamente) e pensava que os pais deviam
alimentar e educar seus filhos, mesmo se isso custasse a eles seu conforto... Lembro-me de meu avô
como um homem gentil, alegre e bem-humorado”.
Samuel Smiles nasceu em 23 de dezembro de 1812, no número 16 de High Street, a residência de
sua família em Haddington, um vilarejo escocês a cerca de dezoito milhas de Edimburgo. Era o
terceiro dos onze filho de Samuel Smiles, que tinha um armazém. Sua mãe, Janet Wilson, vinha de
uma família de fazendeiros e mecânicos. O jovem Samuel estudou na Haddington Grammar School,
e sonhava em tornar-se artista, mas acabou virando médico, uma escolha mais prática. Em
novembro de 1826, começou a trabalhar meio-período como aprendiz de dois médicos. Passava
metade do dia em uma escola onde lia literatura grega e latina, e durante o resto do dia aprendia
medicina. Ele fez os exames de medicina, formou-se em 1832, e continuou a viver com a família
para ajudar a cuidar de seus irmãos. Não ganhava muito dinheiro como médico, pois muitos de seus
pacientes eram indigentes. Em 1837 Smiles começou a escrever artigos para o jornal Leeds Times,
em um centro da indústria têxtil, sobre a expansão do direito ao voto. No ano seguinte, o jornal
precisou de um editor, e ele foi contratado.
Smiles ouviu muitos dos principais oradores da época, incluindo Daniel O’Connell, o grande
defensor da liberdade irlandesa. Smiles tornou-se um bom amigo de Richard Cobden, de
Manchester, que, junto com John Bright, liderou a campanha pela abolição de tarifas que impediam
a população pobre de comprar comida importada a preços baixos. Smiles conheceu Sarah Ann
Holmes, que parece ter sido neta de um conde. Seu pai não desaprovou a origem humilde de Smiles,
e o casal fugiu, casando-se em 7 de dezembro de 1843. Foram viver no número 24 da Wellington
Street, em Leeds. Tiveram cinco filhos: Janet (1844), William (1846), Edith (1847), Samuel (1852)
e Lilian (1854). Conforme a revolução industrial inglesa ganhava impulso, houve uma explosão na
construção de ferrovias, e em 1845 Smiles novamente deixou de lado a prática da medicina para se
tornar secretário-assistente da ferrovia de Leeds e Thirsk. Uma década mais tarde, após a
consolidação da indústria ferroviária, ele foi trabalhar na ferrovia South Eastern, sediada em
Newcastle, onde ele permaneceu até 1866. Como notou sua neta, Smiles se dedicava à literatura “de
forma fragmentada, em momentos isolados separados por longos intervalos”. Newcastle foi o lugar
onde um de seus heróis, o engenheiro George Stephenson, havia desempenhado um papel-chave no
desenvolvimento da locomotiva. Smiles escreveu sua biografia. O prestigiado editor londrino John
Murray se interessou pelo livro, e Smiles fez com ele um acordo de divisão dos lucros. O livro saiu
em 1857, e houve cinco impressões apenas no primeiro ano. Nesse intervalo, em março de 1845,
Smiles foi convidado para falar na Mutual Improvement Society [“Sociedade de melhoria mútua”],
e deu a sua palestra o título “A educação das classes trabalhadoras”. Ele desenvolveu o tema da
auto-ajuda, falando sobre pessoas comuns que haviam tido iniciativa, perseverado, e tirado a si
mesmas da pobreza. Ele celebrou as possibilidades da vida: “Qual é a grande ideia que tomou as
mentalidades de nossa época?”, perguntou ele. “É a grandiosa ideia do homem – da importância do
homem enquanto homem; que cada ser humano tem uma grande missão a cumprir – faculdades
nobres para cultivar, grandes direitos para afirmar, um vasto destino para conquistar”.
A plateia adorou a palestra, e ele foi convidado a repeti-la em outras organizações e igrejas. Ele
expandiu a palestra com mais histórias de pessoas que trabalharam duro e realizaram seus sonhos, e
acabou abandonando a medicina e aceitando um emprego como assistente do secretário de uma
nova ferrovia para ter as noites livres para escrever. Ao longo dos anos, ele transformou o texto da
palestra em um livro. “Meu objetivo, ao escrever Self-Help, primeiro como palestra e depois
reescrito e publicado em forma de livro”, explicou Smiles, “era principalmente ilustrar e reforçar o
poder da grande palavra de George Stephenson – PERSEVERANÇA. Quando era menino, eu
gostava muito de Pursuit of Knowledge under Difficulties [“A busca do conhecimento sob
dificuldades”], do sr. [G. L.] Craik. Eu o lia frequentemente, e sabia as passagens mais
emocionantes de cor. Me ocorreu que um livro similar, lidando não com grandes obras literárias e
aquisição de conhecimento, mas sim com as tarefas e negócios das vidas comuns, ilustrado com
exemplos de conduta e caráter vindos da leitura, observação e experiência, poderia ser igualmente
útil para a geração em formação. Parecia-me que os resultados mais importantes da vida cotidiana
são obtidos não pelo emprego de poderes extraordinários, como o gênio ou o intelecto, mas pelo uso
enérgico de meios simples e qualidades comuns, das quais quase todos os seres humanos são mais
ou menos dotados. Tal era meu objetivo, e eu acredito que, de modo geral, eu o atingi”.
Smiles certamente ilustrou a perseverança com histórias dramáticas. Por exemplo, ele contou como
ratos roeram duzentas das famosas ilustrações de pássaros de John James Audubon, deixando-as em
pedaços. Audubon decidiu que não seria derrotado e “seguiu para a floresta alegremente, como se
nada tivesse acontecido”. Uma empregada inglesa pensou que estava jogando fora um monte de
lixo, mas afinal era o manuscrito do livro A revolução francesa, de Thomas Carlyle; ele escreveu
tudo outra vez e a obra tornou-se um clássico. O cão de Isaac Newton, Diamond, destruiu papéis
que registravam cálculos feitos ao longo de diversos anos, mas o físico e matemático inglês
conquistou a imortalidade porque teve a determinação de refazer todo o trabalho. Smiles entendia
claramente que a pobreza não pode ser erradicada com a distribuição de dinheiro aos pobres. “Nem
as melhores instituições podem ativamente ajudar uma pessoa”, ele declarou. “Talvez o máximo
que elas possam fazer seja deixá-lo livre para desenvolver a si mesmo e melhorar sua condição
individual... A cada dia se compreende mais claramente que a função do governo é negativa e
restritiva, e não positiva e ativa; resumindo-se principalmente à proteção – proteção da vida, da
liberdade, e da propriedade. As leis, bem aplicadas, dão ao homem segurança para aproveitar os
frutos de seu trabalho, seja ele mental ou físico, mediante relativamente pouco sacrifício pessoal;
mas nenhuma lei, por mais rígida que seja, pode transformar preguiçosos em trabalhadores,
perdulários em poupadores, ou bêbados em sóbrios. Tais reformas apenas são possíveis através de
ações individuais”.
John Murray publicou Self-Help em julho de 1859, com uma impressão inicial de três mil cópias,
mas falava-se tanto no livro que pedidos antecipados levaram o editor a fazer outra impressão, de
mais três mil exemplares. Durante o primeiro ano, as vendas chegaram a vinte mil. O livro
continuou a ser muito procurado, e nos quarenta anos seguintes as vendas passaram de um quarto de
milhão. Houve muitas edições piratas, especialmente nos Estados Unidos. Smiles tornou-se
biógrafo de homens que, durante a revolução industrial, trabalharam duro para tornar o povo
britânico o mais próspero do mundo. Entre 1858 e 1861, ele escreveu os três volumes de Lives of
the Engineers [“Vidas dos engenheiros”] (1861), uma crônica de dois séculos de progresso
extraordinário conquistado por indivíduos auto-disciplinados e muitas vezes autodidatas, que
contava a história da tecnologia, do progresso econômico, e das mudanças sociais. “Destas páginas
se pode observar”, escreveu ele, “que os obras de nossos engenheiros tiveram importante influência
no progresso da nação inglesa... A maioria das nações do continente começou a avançar muito antes
de nós na arte, na ciência, na mecânica, na navegação e na engenharia. Poucos séculos atrás, Itália,
Espanha, França e Holanda olhavam com desprezo para os pobres mas orgulhosos ilhéus que
lutavam contra a natureza para subsistir, em meio à neblina. Embora rodeados pelo mar,
praticamente não tínhamos marinha até os últimos trezentos anos. Mesmo nossas pescas eram tão
improdutivas que nossos mercados eram abastecidos pelos holandeses, que nos vendiam os
arenques capturados em nosso próprio litoral. A Inglaterra de então era vista principalmente como
um entreposto fornecedor de matérias-primas, que eram levadas em navios estrangeiros e parte das
quais retornava para nós em produtos manufaturados fabricados por artesãos estrangeiros.
Nós plantávamos comida para Flandres, como a América hoje planta algodão para a Inglaterra.
Mesmo o pouco tecido manufaturado no país era enviado aos Países Baixos para ser tingido. “A
maior parte dos modernos ramos de nossa indústria foi fundada por estrangeiros, a maioria dos
quais foi forçada por perseguições religiosas a buscar asilo na Inglaterra. Nossos primeiros
fabricantes de tecidos, sedas e rendas eram refugiados franceses e flamengos. Os irmãos Elers,
holandeses, começaram a fabricação de cerâmica; Spillman, um alemão, construiu a primeira
fábrica de papel em Dartford; e Booman, um holandês, trouxe a primeira carruagem para a
Inglaterra. “Quando precisávamos de qualquer trabalho especializado, quase invariavelmente
contratávamos estrangeiros para fazê-lo. Nossos primeiros navios foram construídos por
dinamarqueses ou genoveses. Quando o Mary Rose afundou em Spithead en 1545, venezianos
foram contratados para resgatá-lo... Quando precisamos de um motor para bombear água do Tâmisa
para abastecer Londres, Peter Morice, o holandês, foi empregado para construí-lo. Nossas primeiras
lições de engenharia civil e mecânica foram obtidas principalmente dos holandeses, que nos
forneceram nossos primeiros moinhos de vento, moinhos de água, rodas d’água e bombas
hidráulicas... Em resumo, dependíamos da engenharia de estrangeiros ainda mais do que de suas
pinturas ou música. “Um século mais tarde, o estado de coisas se reverteu por completo. Ao invés
de tomar emprestados engenheiros do exterior, nós agora os enviamos para todas as partes do
mundo. Navios a vapor de fabricação britânica atravessam todos os mares; exportamos máquinas
para todos os lugares e fornecemos motores de bombas para a própria Holanda. Durante este
período nossos engenheiros completaram um magnífico sistema de canais, estradas, pontes e
ferrovias que abriram completamente as comunicações internas do país; construíram faróis ao longo
de nossas costas, por meio dos quais os navios carregados com os produtos de todas as regiões, ao
se aproximarem da orla, são guiados com segurança até seus destinos; construíram portos para
acomodar um gigantesco comércio; e seu gênio criativo fez do fogo e da água os mais incansáveis
trabalhadores em todos os ramos da indústria, e os mais eficientes agentes na locomoção terrestre e
marítima”.
O historiador Thomas Park Hughes escreveu que Smiles “usava fontes escritas – especialmente as
contemporâneas a seus biografados – e também as memórias daqueles que haviam conhecido os
engenheiros do final do século XVIII e começo do XIX... A excelência de sua pesquisa é provada
pela grande frequência com que os historiadores subseque ntes se apoiaram em suas biografias, e
pela raridade das ocasiões em que eles puderam justificar revisões de sua obra citando e corrigindo
erros”. Lives of the Engineers teve sucesso comercial e mais tarde foi expandido para cinco
volumes. William Ewart Gladstone, o defensor da liberdade e da paz que foi primeiro-ministro
britânico por quatro mandatos, disse a Smiles que “parece-me que pela primeira vez deu expressão
prática a uma importante verdade – a saber, que o caráter de nossos engenheiros é uma das mais
claras e características expressões do caráter britânico”. Em Industrial Biography [“Biografia
Industrial”] (1863), Smiles fez um relato semelhante das contribuições dos mais importantes
metalúrgicos e fabricantes de ferramentas. Smiles reconhecia a imensa contribuição dos imigrantes,
e desenvolveu uma fascinação pelos huguenotes, protestantes que, perseguidos na França durante o
final do século XVII, haviam emigrado para a Inglaterra e a Irlanda. Por conta disso, ele escreveu
The Huguenots: Their Settlements, Churches and Industries in England and Ireland [“Os
Huguenotes: suas comunidades, igrejas e indústrias na Inglaterra e na Irlanda”]. O primeiro volume
saiu em 1867 e o segundo em 1873. Foram reimpressos diversas vezes. Ele escreveu Character
[“Caráter”] em 1871. “A honestidade é a base de toda excelência pessoal”, escreveu ele. “E um
homem já tem relevância no mundo quando todos sabem que ele é confiável – que quando ele diz
que sabe uma coisa, ele sabe – que quando ele diz que vai fazer alguma coisa, ele pode fazê-la, e
faz... São os indivíduos, e o espírito que os anima, que determinam a estatura moral e a estabilidade
de uma nação. A única verdadeira defesa contra o despotismo da opinião pública, seja de muitos ou
de poucos, é a liberdade individual esclarecida e a pureza de caráter. Sem isso não pode haver
hombridade vigorosa ou liberdade verdadeira em uma nação”.
Em Thrift [“Poupança”] (1875), Smiles insistiu que “homens que recebem bons salários também
podem se tornar capitalistas, e tomar sua parte merecida no progresso e no bem-estar do mundo...
Os principais líderes da indústria de nossos dias são, em sua maioria, homens saídos diretamente
das suas fileiras. É a acumulação de experiência e habilidade que faz a diferença... Poupança é o
resultado do trabalho, e só quando os trabalhadores começam a poupar os resultados da civilização
se acumulam... Poupança produz capital, e capital é o resultado do trabalho conservado. O
capitalista é apenas um homem que não gasta tudo o que ganha por seu trabalho”. Smiles começou
Duty [“Dever”] (1880) com uma discussão a respeito da consciência, que é “a própria essência do
caráter individual... Cada homem está fadado a desenvolver sua individualidade, a buscar o
caminho certo para sua vida, e a segui-lo. Ele tem o arbítrio pra fazê-lo, ele tem o poder de ser ele
mesmo e não o eco de outrem”. Dever, explicou ele, significa pôr princípios corretos em ação:
“Nossas necessidades afiam nossa inteligência, e o indivíduo se antecipa para conhecer e superar as
dificuldades... Um homem é um milagre do gênio, porque é um milagre do trabalho. A força pode
vencer as circunstâncias”.
Smiles recebeu uma enxurrada de pedidos para escrever biografias, e, apesar de um derrame
paralisante que sofreu em novembro de 1871, produziu meia dúzia delas. Nos anos 1890, no
entanto, as tendências intelectuais eram muito desfavoráveis a Smiles. O socialismo estava em
voga, e autores como Edward Carpenter e Sidney Webb promoviam a ideia de que indivíduos não
eram capazes de cuidar de si mesmos e que o governo poderia resolver todos os problemas se
tomasse para si o controle da economia. As vendas dos livros de Smiles decaíram. Em 1898, seu
editor, John Murray, recusou-se a publicar seu último livro de auto-ajuda, Conduct [“Conduta”]. O
manuscrito foi destruído. Smiles e sua esposa passaram seus últimos anos em uma casa que
construíram no número 8 de Pembroke Gardens, em Londres. Ele tinha um grande escritório, onde,
segundo as lembranças de sua neta Aileen Smiles, “mal havia espaço para andar. Era um lugar
abarrotado. Havia livros por todos os lados”. Smiles ficou cada vez mais fraco e morreu em 16 de
abril de 1904. Tinha noventa e dois anos. Foi enterrado no cemitério de Brompton.
A maior parte de seus papéis, incluindo cerca de mil cartas, foi para a biblioteca pública de Leeds.
Por algum tempo, Smiles havia trabalhado em sua autobiografia. Ela foi publicada em 1905, mas
não gerou muito interesse. Desde então, houve apenas mais uma biografia de Smiles, escrita por sua
neta e publicada em 1956. Smiles foi quase totalmente esquecido. No entanto, um número crescente
de pesquisadores concluiu que Smiles estava certo. Os empreendedores da revolução industrial
geraram a prosperidade que tornou possível a sobrevivência de milhões de pessoas que em outras
circunstâncias teriam morrido. Segundo o economista Thomas S. Ashton, a Inglaterra “foi salva não
por seus governantes mas por aqueles que, sem dúvida buscando apenas seus objetivos, tiveram o
engenho e a iniciativa de criar novos instrumentos de produção e novos métodos de administração
da indústria. Hoje em dia, nas planícies da China e da Índia, há homens e mulheres, aflitos por fome
e doença, vivendo de forma pouco melhor, aparentemente, do que o gado com quem trabalham
durante o dia e dividem o lugar onde dormem à noite. Esses padrões asiáticos, tais horrores não
mecanizados, são a sorte daqueles que aumentam sua população sem passar por uma revolução
industrial”.
Smiles estava certo quando disse que dar dinheiro não vai resolver os problemas sociais. Nas
últimas três décadas, o governo americano gastou mais de seis trilhões de dólares em seus esforços
para eliminar a pobreza, e o resultado foi uma classe de pessoas cronicamente dependentes. Tornou-
se novamente aceitável, embora não esteja na moda, falar, como Smiles falava, sobre a importância
crucial da ação individual para cultivar o caráter. Por isso, best-sellers como The Book of Virtues
[“O livro das virtudes”] (1993), The Moral Compass [“A bússola moral”] (1995), The Children’s
Book of Virtues [“O livro das virtudes para crianças”] (1995) e The Children’s Book of Heroes [“O
livro dos heróis para crianças”] (1997), de William J. Bennet, venderam diversos milhões de cópias.
Hoje há um interesse renovado em Smiles. Uma nova edição de Self-Help foi lançada, e todas as
suas obras voltaram aos catálogos. Várias delas podem ser baixadas em sites da internet. Os
princípios que ele explicou podem ajudar pessoas determinadas a lutar para melhorar sua situação,
em qualquer parte do mundo.

Booker T. Washington

Booker T. Washington fez mais do que qualquer outra pessoa para ajudar os negros americanos a
erguerem-se da escravidão. Fundou uma importante instituição, a Tuskegee (agora Universidade
Tuskegee), que ajudou dezenas de milhares de pessoas a adquirir as qualificações de que
precisavam. A universidade já formou pessoas vindas da África, de Cuba, da Jamaica, de Porto Rico
e de outros países, assim como dos Estados Unidos. A pesquisa feita em Tuskegee, especialmente a
do botânico George Washington Carver, ajudou fazendeiros pobres do sul.
A influência de Washington como educador vai muito além de Tuskegee. Ele dirigiu uma campanha
privada que levou à construção de milhares de escolas primárias para negros. Como membro dos
conselhos de administração da Universidade Howard e da Universidade Fisk, as duas principais
instituições de ensino superior para negros, ele angariou centenas de milhares de dólares.
A inspiradora autobiografia de Washington, Up from Slavery “Elevado da escravidão”, foi traduzida
para diversos idiomas e ainda está em catálogo. Embora tenha nascido escravo, Washington obteve
uma boa educação e encontrou uma importante vocação, e ajudou outros negros a melhorar suas
vidas apesar das leis discriminatórias. Ele acreditava que responsabilidade pessoal e espírito
empreendedor são cruciais. Assim ele expressou sua visão de longo prazo: “Intelecto, propriedade e
caráter para os negros resolverão a questão dos direitos civis.”
Ensinar comportamento moral e competência era o melhor modo de promover a harmonia entre as
raças, pensava ele. Ele não acreditava que a salvação viria por meio do governo. Quanto mais os
negros produzissem coisas de que os brancos precisassem, maior a probabilidade de que os brancos
abandonassem os estereótipos raciais e mostrassem respeito. Para melhorar as relações entre as
raças era necessário mudar os corações humanos, o que não pode ser feito através de leis.
Os esforços de Washington para atrair a boa-vontade da maioria branca, que controlava as
legislaturas, os tribunais, as empresas, os jornais, as universidades e demais instituições, foram
severamente criticados por intelectuais negros do norte como W. E. B. Du Bois, que defendiam
táticas de confronto para combater a segregação racial. A historiadora Page Smith oferece a seguinte
perspectiva: “Grande parte da discussão atual sobre a educação e a filosofia racial de Washington
não leva em conta o fato de que ele não tinha alternativa. Em seu tempo e lugar, sua doutrina de
que os negros devem conquistar a confiança e a amizade dos brancos para fazer progressos, mesmo
que modestos, era indubitavelmente verdadeira. Aqueles que discordavam dele, quase sem exceção,
não viviam no sul. No mínimo, não tinham que proteger uma instituição – Tuskegee – pela qual ele
era o principal, se não o único, responsável.”
Até a publicação da biografia escrita por Louis R. Harlan, cujo primeiro volume saiu em 1972,
poucas pessoas sabiam que Washington combateu a segregação racial secretamente. Usava os
contatos que estabeleceu durante as longas viagens que fazia pelo norte e pelo oeste para arrecadar
fundos. Insistia em permanecer anônimo ao financiar processos judiciais que desafiaram a exclusão
dos negros do direito ao voto e dos júris, e a aplicação indevida da pena de morte.
Washington nunca se afastou de suas raízes. Segundo Harlan, “Em suas aparições públicas, ele se
vestia como um camponês próspero, usando chapéu de feltro marrom em vez de cartola. Sua origem
rural sulista também transparecia em seu modo de falar, jamais grosseiro mas sempre simples e
direto... Ele andou a cavalo a vida inteira, caçava e pescava sempre que podia, e relaxava cultivando
seu próprio jardim.” E mesmo assim ele se tornou um dos mais dinâmicos oradores públicos de sua
época, viajando pelos Estados Unidos e pela Europa promovendo a responsabilidade individual,
auto-ajuda, dedicação ao trabalho, austeridade, e boa-vontade. Sua ex-professora Nathalie Lord
relembrou: “Consigo ver sua figura masculina, seu rosto forte e expressivo, e ouvir sua voz, tão
poderosa e séria quando um pensamento o exigia, mas também gentil e terna...”
Booker Taliaferro Washington nasceu em uma plantação pertencente a James Burroughs, próxima a
Hale’s Ford, no estado de Virgínia, provavelmente em abril de 1856. Sua mãe, Jane, quase
certamente deu à luz em um chalé de madeira, sobre um chão de terra coberto por trapos. Ele nunca
soube quem era seu pai. Sua mãe era a cozinheira da família Burroughs. Washington conta: “Ela
roubava alguns momentos para cuidar dos filhos no início da manhã, antes de começar o trabalho, e
à noite após terminar o trabalho do dia... Não me lembro de uma única ocasião de minha infância ou
início de juventude em que toda a nossa família tenha se sentado à mesa... As crianças conseguiam
comida de um jeito muito parecido com o dos animais. Era um pedaço de pão aqui, um resto de
carne ali.”
Após a Guerra Civil, a família se mudou para Malden, em West Virginia, onde fábricas de sal e
minas de carvão ofereciam trabalho. O jovem Washington tinha um enorme desejo de ler e escrever,
mas as leis sulistas proibiam a alfabetização de negros. Sua mãe deu a ele uma cartilha, e ele
começou a frequentar a escola dominical na Igreja Batista Africana, onde aprendeu com William
Davis, um garoto de Ohio de dezoito anos que vivia com o pastor. Uma escola abriu na cidade
próxima de Tinkerville, e Washington passou a frequentá-la enquanto trabalhava nas fábricas de sal.
Então Washington foi trabalhar como criado para Louis Ruffner e sua esposa, Viola, e aprendeu a
fazer faxina de acordo com os padrões rígidos da Sra. Ruffner. Depois de aproximadamente um ano
e meio, Washington partiu para uma escola da qual havia ouvido falar – o Hampton Normal and
Agricultural Institute, em Hampton, na Virgínia, onde negros pobres podiam pagar suas despesas
trabalhando no campus. Washington percorreu parte das 500 milhas até a escola de trem, depois de
diligência, até que ficou sem dinheiro. Ele andou o resto do caminho, ocasionalmente pegando
caronas em carroças que passavam. Quando chegou em Richmond, não tinha dinheiro algum, e teve
de dormir sob uma passarela. Ele ganhou dinheiro para comer ajudando a descarregar lingotes de
ferro de um navio, e continuou fazendo este trabalho até acumular cinquenta centavos, o suficiente
para terminar a viagem.
Quando chegou à escola, suas roupas estavam esfarrapadas, e ele não tomava banho havia algum
tempo. A diretora, Mary Fletcher Mackie, testou sua capacidade de trabalho pedindo a ele que
limpasse uma sala de aula. Ele fez um trabalho minucioso, e ela o aceitou. Ele concordou em
trabalhar como faxineiro para pagar suas despesas. “A vida em Hampton era um aprendizado
constante,” relatou Washington, “Fazer refeições em horários regulares, em uma mesa com toalha e
usando um guardanapo, usar banheira e escova de dentes, e também lençóis na cama, eram
novidades para mim.” Washington foi apresentado à oratória por um professor que lhe deu aulas
particulares de respiração, ênfase e articulação. Ele participou da sociedade de debates, que se
reunia aos sábados à noite. A parte mais extraordinária de Hampton era seu fundador de trinta e três
anos, Samuel Chapman Armstrong, um exemplo inspirador de integridade, responsabilidade e
empreendedorismo.
Após se formar, em 1875, Washington foi convidado para dar aulas na escola Tinkerville, onde
demonstrou considerável iniciativa. Ele ensinava noções de higiene, além de leitura, escrita e
aritmética. Logo a classe tinha mais de oitenta alunos, e ele fundou uma escola noturna, que
também atraiu cerca de oitenta alunos. Ele deu aulas de catecismo na Igreja Batista Zion e na
fábrica de sal Snow Hill, fundou uma biblioteca pública e uma sociedade de debates, e mais tarde
abriu uma escola noturna em Hampton.
Em 1881, Armstrong recebeu uma carta pedindo que recomendasse uma pessoa que pudesse ser um
bom diretor para uma nova escola em Tuskegee, no Alabama, uma cidadezinha a cerca de cinco
milhas da estação ferroviária mais próxima. A função da escola seria treinar professores primários.
Armstrong recomendou Washington, e ele foi aceito. Quando chegou, em 24 de junho, descobriu
que a escola ainda não havia sido construída ou financiada.
Washington decidiu que embora a escola fosse começar com algum dinheiro público, ele manteria o
máximo de independência que pudesse. A nova escola, chamada Instituto Tuskegee, começou a
funcionar na igreja Metodista Africana, em 4 de julho de 1881. Washington convenceu um homem
da região a emprestar-lhe duzentos dólares para comprar uma fazenda abandonada que os alunos
pudessem transformar em um campus, e o título da propriedade ficou em nome da escola, e não do
estado. Amigos doaram jornais, livros, mapas, garfos e facas. Washington, o único professor, adotou
uma disciplina muito parecida com a de Hampton, com inspeções diárias de roupas, quartos e
instalações. O número inicial de alunos, cerca de trinta e sete, dobrou em dois meses, e Washington
começou a contratar novos professores, em sua maioria formados em Hampton.
Ao longo dos anos, o contratado mais ilustre de Washington foi o botânico George Washington
Carver (1861?-1943). Nascido escravo no Misouri, ele foi separado da mãe e nunca conheceu seu
pai. Sustentando a si mesmo como empregado doméstico, lavador de roupas, cozinheiro de hotel e
trabalhador rural, ele aprendeu tanto quanto pôde sobre plantas e animais. Conseguiu completar o
ensino secundário quase aos trinta anos. Entrou na Simpson College, em Indianola, Iowa, e mais
tarde se transferiu para o Iowa State Agricultural College, onde obteve o grau de bacharel (1894), e
de mestre (1896). Em Tuskegee, ele assumiu o departamento de agricultura. O sistema de
monocultura do sul havia exaurido o solo, e Carver incentivou os fazendeiros a restaurar o
nitrogênio ao solo plantando soja, amendoim, e batata-doce. Como havia pouca demanda por esses
produtos, Carver imaginou centenas maneiras novas de usá-los.
Com o comerciante George Marshall encarregado de administrar as finanças, Washington e a
professora de Tuskegee Olivia Davidson (matemática, astronomia, botânica), começaram a fazer
viagens pelos estados do norte para angariar fundos, chegando a levantar três mil dólares por mês.
Então começaram a receber doações de fundos filantrópicos do norte, como o Slater Fund e o
Peabody Fund. Washington organizou os Tuskegee Singers [“cantores de Tuskegee”], que fizeram
turnês pelo norte arrecadando dinheiro. Uma viúva da Nova Inglaterra deu a Washington um relógio
de ouro, que ele penhorou diversas vezes.
Em 2 de agosto de 1882, Washington casou-se com Fanny Smith, que havia sido sua aluna em
Tinkersville e depois se formado em Hampton. Tiveram uma filha, Portia, nascida em 1883. Fanny
morreu no ano seguinte, aos vinte e seis anos. Em 1885, ele se casou com Olivia Davidson. Tiveram
dois filhos, Booker Taliaferro Washington Jr. e Ernest Davidson Washington. A saúde de Olivia, que
era frágil, piorou após o parto, e ela faleceu em 8 de maio de 1889.
Quando fez uma palestra na Fisk University, Washington conheceu uma aluna do último ano
chamada Margaret James Murray, que havia escrito para ele a respeito de uma vaga de professora
em Tuskegee. Impressionado, ele a contratou para ensinar inglês. Logo ela se tornou supervisora de
indústrias femininas em Tuskegee. Então ele a convidou para ser a diretora. Os dois acabaram
casando-se. Ela assumiu mais e mais responsabilidades em Tuskegee, dando a Washington tempo
para se dedicar à arrecadação de fundos e a questões políticas.
Em 18 de setembro de 1895, Washington discursou na Exposição Internacional dos Estados
Algodoeiros. Ele observou que um terço da população do sul era negra, portanto o sul não poderia
prosperar a menos que os negros prosperassem. Ele recomendou aos negros que “baixem seus
baldes onde estão” e aproveitem todas as oportunidades disponíveis, e aos brancos que “baixem
seus baldes entre esses homens [negros] que, sem greves ou rebeliões, araram seus campos,
derrubaram suas florestas, construíram suas ferrovias e cidades e extraíram tesouros das entranhas
da terra, e ajudaram a tornar possível esta magnífica representação do progresso do sul.” Então, em
um apelo à paz racial, ele propôs o que se tornaria conhecido como a Conciliação de Atlanta: “Em
todas as coisas puramente sociais, podemos ser tão separados como dedos, mas unidos como uma
mão em tudo que for essencial ao progresso mútuo.”
Instantaneamente, Washington foi reconhecido como um líder negro, um sucessor de Frederick
Douglass, que havia morrido sete meses antes. Foram tempos difíceis, porque as tendências
continuaram a se mover contra os negros. Em 1890, o Mississippi havia sido o primeiro estado a
negar aos negros o direito ao voto. A Carolina do Sul fez o mesmo em 1895. Três anos depois,
Washington tentou impedir a Louisiana de seguir o exemplo. Não teve sucesso, mas venceu na
Geórgia. A seguir, apesar de todos os seus esforços, o Alabama também negou o voto aos negros em
1900.
Washington fez tudo que pôde para influenciar opiniões políticas, chegando a fazer três palestras
por dia. Em outubro de 1898, ele avisou dezesseis mil pessoas no Chicago Peace Jubilee: “Nós
teremos, especialmente no sul do nosso país, um câncer atacando o coração da República, que um
dia se revelará tão perigoso quanto um ataque de um exército externo ou interno.”
Por conta de suas muitas viagens, ele sofria de fadiga crônica, por isso seus patrocinadores do norte
providenciaram férias na Europa para Washington e sua esposa. Na Holanda, ele ficou
impressionado pela eficiência com que os fazendeiros extraíam um bom padrão de vida de
propriedades pequenas. O casal foi tratado como celebridade em Paris e Londres; a rainha Vitória
serviu-lhes o chá. Conheceram Mark Twain, Susan B. Anthony, e Henry Stanley (o jornalista
britânico que havia encontrado o explorador e abolicionista David Livingstone na África).
De volta aos Estados Unidos, Washington contratou um escritor para ajudá-lo com suas memórias.
O resultado, Story of My Life and Work “História de minha vida e obra”, foi publicado por uma
empresa de Naperville, Illinois, que vendia livros por assinatura. Segundo os registros, setenta e
cinco mil cópias foram vendidas. Então ele contratou o escritor Max Bennet Thrasher, do estado de
Vermont, e Walter Hines Page, da editora Doubleday, concordou em publicar uma autobiografia
melhor. O livro, Up from Slavery, saiu em 1901. Foi traduzido para o árabe, o chinês, o
dinamarquês, o holandês, o finlandês, o francês, o alemão, o hindi, o japonês, o malaio, o
norueguês, o russo, o espanhol, o sueco e o zulu.
Up from Slavery teve um enorme impacto nas arrecadações. Entre os que foram levados pelo livro a
apoiar Tuskegee estão o empresário da fotografia George Eastmann, o sócio da Standard Oil Henry
H. Rogers, e o empresário do aço Andrew Carnegie. Percebendo que os judeus também haviam
sofrido muito, Washington fez apelos bem-sucedidos a empreendedores judeus como os banqueiros
Jacob Schiff, Paul Warburg, Isaac Seligman e as famílias Lehman, Goldman, e Sachs. O executivo-
chefe da Sears Roebuck, Julius Rosenwald, tornou-se um grande doador. Washington conquistou os
corações desses empresários com sua austeridade e iniciativa. Após construir o Rockefeller Hall por
menos do que havia sido previsto, Washington enviou a John Rockefeller Jr. um reembolso de
US$239.
Washington se indignava com o fato de que todos tinham de pagar impostos para financiar a
educação pública, mas quase nada deste dinheiro beneficiava os negros. A quaker da Filadélfia
Anna Jeanes nomeou Washington para gastar um milhão de dólares para melhorar a qualidade dos
professores das crianças negras do sul. Washington foi conselheiro de Julius Rosenwald, que
começou a financiar a contrução de escolas para crianças negras por todo o sul. Ele ajudou a
promover a educação universitária para negros quando fez parte dos conselhos das universidades
Howard e Fisk, e usou sua influência com Carnegie para conseguir uma biblioteca para Howard.
Washington também persuadiu Carnegie a doar US$25.000 à universidade Fisk. Washington e o
advogado corporativo novaiorquino Paul Cravath se encarregaram de uma campanha de
arrecadação de fundos para Fisk de US$300.000.
Por baixo dos panos, Washington ajudava a montar um contra-ataque jurídico aos esforços
crescentes para negar aos negros suas liberdades civis. Ele pagou seu advogado pessoal de Nova
York, Wilfred Smith, para levar dois casos do Alabama sobre o direito ao voto, Giles v. Harris
(1903) e Giles v. Teasley (1904), à Suprema Côrte. Perderam. A seguir, Washington e Smith
desafiaram a prática de excluir negros dos júris com mais um caso do Alabama, que eles levaram à
Suprema Côrte em 1904. A Côrte reverteu a condenação de um homem negro que havia sido
considerado culpado por um júri do qual negros haviam sido excluídos. Washington arrecadou
dinheiro e contratou advogados que convenceram a Suprema Côrte a revogar leis que forçavam
devedores a se tornar servos de seus credores.
Por ser uma figura pública tão conciliadora e lutar contra a segregação secretamente, Washington
foi duramente criticado por intelectuais negros radicais do norte. Seu crítico mais persistente foi W.
E. B. Du Bois, sociólogo nascido em Massachusetts, formado pela Fisk University, e com um PhD
da universidade de Harvard. Suas críticas a Washington apareceram na revista Dial e no livro The
Souls of Black Folk “As almas do povo negro”, entre outros. “O sr. Washington”, acusou ele,
“representa, no pensamento negro, a velha atitude de adaptação e submissão.”
Em novembro de 1915, Washington começou a sofrer os sintomas de sérios problemas renais e
hipertensão. Ele foi ao hospital St. Luke’s, em Nova York, e consultou os médicos de lá, mas não
havia muito que eles pudessem fazer. Ele decidiu voltar para casa. “Nasci no sul,” disse, “vivi e
trabalhei no sul, e espero morrer e ser enterrado no sul.” Sua esposa o ajudou a pegar o trem na
estação Pennsylvania na sexta-feira, 12 de novembro. Ela providenciou uma ambulância para
encontrá-los em Chehaw, a estação que ficava a cerca de cinco milhas de Tuskegee, por volta das
nove horas da noite de sábado.
Washington tinha muitos motivos de orgulho. Tuskegee tinha cerca de duzentos professores
treinando aproximadamente dois mil e quinhentos alunos em trinta e oito profissões. O campus
tinha cem edifícios modernos. Tuskegee não tinha dívidas e possuía mais de dois mil acres de terra
e um fundo de mais de 2 milhões de dólares. O mais importante legado eram os formandos, que,
observou ele, “estão mostrando às massas de nossa raça como melhorar sua vida material,
educacional, moral e religiosa.... [eles estão] fazendo os homens brancos do sul aprenderem a
acreditar no valor de educar os homens e mulheres de minha raça.”
Washington chegou à sua casa, mas faleceu às 4:45 da manhã de domingo, 14 de novembro de
1915. Tinha cinquenta e nove anos. Um funeral simples foi organizado na quarta-feira, em
Tuskegee. Ele foi enterrado no cemitério do campus, com um enorme pedaço de granito como
lápide.
A auto-ajuda saiu de moda entre os intelectuais negros, que, como W. E. B. Du Bois, passaram a
acreditar que melhorar a vida dos negros dependia de ação política e intervenção governamental.
No entanto, embora os negros não tenham feito avanço político algum entre as décadas de 1890 e
1920, conforme Thomas Sowell escreveu em seu livro Race and Economics “Raça e economia”,
“para a massa da população negra, esses foram anos de grande avanço econômico... e mesmo
culturalmente, a década de 1920 foi um período de grande desenvolvimento, às vezes chamado de
‘renascença negra’ ou de surgimento do ‘novo negro’. Grandes números de negros ingressaram nas
profissões industriais pela primeira vez durante a primeira guerra mundial, e começaram um
movimento de migração em massa para o norte que transformou a história da América negra.”
Du Bois viveu por mais quase meio século após a morte de Washington, e sua crença na salvação
através do governo teve grande influência sobre os intelectuais negros, embora a renda dos negros,
relativamente à dos brancos, tenha caído durante o New Deal do presidente Franklin D. Roosevelt.
Du Bois perdeu credibilidade ao aderir ao comunismo, e mesmo ao ditador soviético Josef Stálin.
Os negros, no entanto, continuaram a ajudar a si mesmos. Após a Segunda Guerra Mundial, quatro
vezes mais negros migraram do sul para o norte do que nos anos 1920. “A segunda Grande
Migração trouxe enormes melhoras na qualidade dos empregos ocupados pelos afro-americanos e
em suas rendas”, relatam Stephan e Abigail Thernstrom em seu livro America in Black and White
“América em preto e branco”. “Em muitos aspectos, o progresso foi mais rápido antes das leis sobre
direitos civis do início dos anos 1960 e as políticas de ação afirmativa que começaram no final da
mesma década, do que tem sido desde então.”
Booker T. Washington provou compreender como melhorar as vidas das pessoas, especialmente dos
mais pobres, muito melhor do que Du Bois. Ele compreendeu que é possível fazer progressos
espantosos, mesmo em um ambiente político hostil, se os indivíduos se educarem, trabalharem
duro, e produzirem coisas que outras pessoas querem. Ele reconheceu que, em se tratando de
avanço individual, não há nada que substitua responsabilidade, honestidade, austeridade e boa-
vontade. O caráter faz o destino.

Ayn Rand
Ayn Rand, conhecida principalmente por seus romances filosóficos The Fountainhead (publicado
em português com o título A nascente) e Atlas Shrugged (A Revolta de Atlas), fez mais do que
qualquer outra pessoa para desenvolver um argumento moral convincente a favor do
individualismo, da liberdade, e do livre mercado, e conquistou milhões de pessoas com a filosofia
dos direitos naturais, que havia saído de moda mais de um século antes. Ela construiu uma visão
ética, econômica e política coerente. Em uma pesquisa feita pela biblioteca do Congresso americano
e o Book-of-the-Month Club (empresa de venda de livros por correspondência), A Revolta de Atlas
foi escolhido o segundo livro que mais influenciou a vida das pessoas, perdendo apenas para a
Bíblia. Rand escreveu muito mais – ficção e não-ficção. Aproximadamente 20 milhões de cópias de
seus livros já foram vendidas, e novas coleções de suas obras e livros sobre ela continuam a ser
lançados.
Nascida na Rússia, Rand falava inglês com um sotaque forte e não parecia totalmente à vontade
sendo o centro das atenções, mas aproveitou ao máximo a fama. Apareceu na televisão com
entrevistadores famosos como Mike Wallace e Phil Donahue, e a revista Playboy publicou uma
entrevista com ela.
Rand explicava as coisas com uma clareza fora do comum. Escreveu, por exemplo: “Qual é o
princípio básico, essencial, crucial, que diferencia a liberdade da escravidão? É o princípio da ação
voluntária versus a coerção física ou por ameaças... A questão não é a escravidão por uma ‘boa’
causa versus a escravidão por uma causa ‘ruim’; a questão não é a ditadura de uma gangue ‘boa’
contra a ditadura de uma gangue ‘má’. A questão é liberdade versus ditadura... Se defendemos a
liberdade, devemos defender os direitos individuais do homem; se defendemos os direitos
individuais do homem, devemos defender seu direito à sua própria vida, à sua própria liberdade, e à
busca de sua própria felicidade... Sem direitos de propriedade, nenhum outro direito é possível.
Uma vez que o homem precisa sustentar sua vida através de seu próprio trabalho, o homem que não
tem direito ao produto de seu trabalho não tem meios de sustentar sua vida.” E ela discordava dos
defensores da liberdade que esperavam ganhar influência apenas com a economia de mercado: “A
maioria das pessoas sabe, de uma forma vaga e incômoda, que há algo de errado com a teoria
econômica marxista... A raiz da tragédia moderna é filosófica e moral. As pessoas não estão
aderindo ao coletivismo porque aceitaram a má teoria econômica, elas estão aceitando a má teoria
econômica porque aderiram ao coletivismo.”
É verdade que Rand perdia a paciência com aqueles que não conseguiam compreendê-la, e com
compatriotas que se desviavam de suas opiniões. Talvez isso se devesse em parte ao fato de que ela
havia passado muitos anos lutando para escapar da Rússia, estabelecer-se em Hollywood, superar
rejeições de editoras e suportar críticas duras.
A biógrafa Barbara Branden descreveu Rand na época de sua chegada aos EUA, aos vinte e um
anos: “Enquadrado por cabelo curto e liso, seu rosto quadrado tinha a forma enfatizada pela
mandíbula firme, uma boca grande e sensual sempre tensa, e olhos enormes, negros e intensos.
Parecia o rosto de uma mártir, uma inquisidora ou uma santa. Seus olhos tinham uma paixão
simultaneamente emocional e intelectual – como se pudessem queimar quem os olhasse”. Ao longo
da vida de Rand, o tabagismo e os hábitos sedentários tiveram suas consequências, mas ela ainda
era inesquecível.
Rand nasceu em 5 de fevereiro de 1905, em São Petersburgo, com o nome Alissa Rosenbaum. Seu
pai, Fronz Rosenbaum, havia emergido da pobreza para a classe média como farmacêutico. Sua
mãe, Anna, era extrovertida e acreditava em exercícios físicos vigorosos e vida social intensa, mas
Alissa não se interessava por nenhuma dessas coisas. Depois da escola, ela estudava francês e
alemão em casa. Inspirada por uma série publicada em uma revista, ela começou a escrever
histórias, e aos nove anos decidiu ser escritora.
A vida confortável dos Rosenbaum acabou quando o czar entrou na Primeira Guerra Mundial. A
guerra devastou a economia da nação, e, em um período de um ano, mais de um milhão de russos
foram mortos ou feridos. Os bolcheviques tomaram o poder.
A Revolução Russa inspirou Rosenbaum a criar histórias sobre indivíduos heróicos que combatiam
reis ou ditadores comunistas. Também nesta época ela descobriu o romancista Victor Hugo, cujo
estilo dramático e heróis grandiosos capturaram sua imaginação. “Fiquei fascinada com a visão da
vida de Hugo”, ela lembrou. “Era alguém escrevendo algo de importante. Eu senti que este era o
tipo de escritora que eu queria ser, mas eu não sabia quanto tempo isso levaria.”
Na Universidade de Petrogrado, ela teve aulas com o rígido filósofo aristotélico Nicholas Lossky,
que, conforme demonstrou o pesquisador Chris Sciabarra, teve grande influência em seu
pensamento. Ela leu peças de Friedrich Schiller (que amava) e William Shakespeare (que odiava),
filosofia de Friedrich Nietzsche (pensador provocador) e romances de Fiódor Dostoiévsky (bons
enredos). Filmes estrangeiros a cativavam. Teve seu primeiro romance com um homem chamado
Leo, que arriscava sua vida para esconder membros da oposição clandestina aos Bolcheviques.
Em 1925, os Rosenbaum receberam uma carta de parentes que haviam emigrado para Chicago mais
de três décadas antes, para escapar do anti-semitismo russo. Alissa queria desesperadamente
conhecer os EUA, e os parentes concordaram em pagar sua passagem e se responsabilizar por ela.
Milagrosamente, as autoridades soviéticas concederam-lhe um passaporte, para uma visita de seis
meses. Em 10 de fevereiro de 1926, ela embarcou no navio De Grasse e chegou a Nova York com
cinquenta dólares.
Alissa logo se juntou a seus parentes num apartamento apertado em Chicago. Ela assistia a muitos
filmes e trabalhava com sua máquina de escrever, em geral começando por volta da meia-noite (o
que dificultava o sono dos outros). Ela adotou um novo nome, Ayn (de uma escritora finlandesa que
ela nunca tinha lido, mas ela gostava do som) e um novo sobrenome, Rand (de sua máquina de
escrever Remington Rand). A biógrafa Branden diz que Rand pode ter mudado de nome para
proteger sua família de possíveis represálias do regime soviético.
Determinada a se tornar roteirista de cinema, ela se mudou pra Los Angeles e trabalhou como
figurante no estúdio de Cecil B. DeMille. E se apaixonou por um ator alto, bonito e de olhos azuis
chamado Frank O’Connor. Eles se casaram em 15 de abril de 1929. Rand não tinha mais que se
preocupar em voltar para a União Soviética, e pediu cidadania americana.
Quando o estúdio de DeMille fechou, Rand começou a fazer trabalhos temporários. Finalmente, em
1935, ela experimentou o sucesso pela primeira vez: sua peça Night of January 16th [Noite de 16 de
janeiro], sobre um industrial cruel e uma poderosa mulher sendo julgada por seu assassinato, ficou
em cartaz na Broadway por 283 performances. Em 1936, seu romance We the Living [Nós, os
Vivos], sobre a luta pela liberdade na Rússia soviética, foi publicado. A editora Macmillan imprimiu
três mil cópias, mas o livro não fez sucesso. A propaganda boca-a-boca levantou um pouco as
vendas após mais ou menos um ano, mas a editora havia destruído as chapas, e o livro saiu de
catálogo. Rand havia ganhado apenas US$ 100 em royalties.
Em 1937, enquanto se esforçava para resolver a trama de A Nascente, Rand escreveu um conto
lírico e futurista, Anthem [Hino], sobre um indivíduo contra a tirania coletivista. Anthem é uma
audaciosa afirmação de liberdade, que vai muito além de romances anti-totalitários mais famosos,
como Admirável mundo novo (1932), de Aldous Huxley, O zero e o infinito (1941), de Arthur
Koestler, e A Revolução dos Bichos (1945) e 1984 (1949), de George Orwell. Em Anthem, um
homem redescobre a palavra “eu”. Ele explica: “Minha felicidade não é um meio para nenhum fim.
Ela é o fim. Ela é seu próprio objetivo. Ela é seu próprio propósito. Tampouco eu sou um meio para
qualquer fim que outros possam desejar realizar. Eu não sou um instrumento para seu uso. Eu não
sou um servo de suas necessidades.” O agente literário de Rand vendeu a obra para uma editora
britânica, mas não conseguiu encontrar quem o publicasse nos Estados Unidos. Cerca de sete anos
mais tarde, o gerente geral da Câmara de Comércio de Los Angeles, Leonard Read, fez uma visita a
Rand e O’Connor, que viviam em Nova York, e comentou que alguém deveria escrever um livro
defendendo o individualismo. Rand falou sobre Anthem, e a pequena editora de Read, a
Pamphleteers, lançou uma edição americana em 1946. Desde então, cerca de 2,5 milhões de cópias
foram vendidas.
Rand havia terminado a trama de A Nascente em 1938, após quase quatro anos de trabalho, e
começado a escrever. O herói, o arquiteto Howard Roark, expressava sua visão do homem ideal. Ele
lutava contra os coletivistas ao seu redor para defender a integridade de suas ideias, mesmo que isso
significasse dinamitar um prédio porque seu desenho foi alterado, em violação de seu contrato. Ele
defendeu sua ação dizendo, em parte: “Os grandes criadores – os pensadores, os artistas, os
cientistas, os inventores – enfrentaram sozinhos os homens de seu tempo. Toda nova grande ideia
encontrou oposição. Toda nova grande invenção foi combatida. O primeiro motor foi considerado
uma tolice. O avião foi considerado impossível. O tear mecânico foi considerado maléfico. A
anestesia foi considerada pecaminosa. Mas os homens de visão original seguiram em frente. Eles
lutaram, eles sofreram, e eles pagaram o preço. Mas venceram.”
Vender A Nascente foi difícil. O editor de Rand na Macmillan mostrou interesse e ofereceu um
adiantamento de US$250, mas ela insistiu que a empresa concordasse em gastar ao menos US$1200
em publicidade, então a Macmillan retirou a oferta. Até 1940, uma dúzia de editores haviam visto
capítulos completos e rejeitado o livro. Um editor influente disse que a obra jamais venderia, e até o
agente literário de Rand se voltou contra o livro. Suas economias haviam caído a apenas US$700.
Rand sugeriu que o manuscrito parcial fosse oferecido à Bobbs-Merrill, uma editora de Indianápolis
que havia publicado The Red Decade [“A Década Vermelha”], do jornalista anticomunista Eugene
Lyons. Os editores da Bobbs-Merrill em Indianápolis recusaram A Nascente, mas o editor da
empresa em Nova York, Archibald Ogden, amou o livro e ameaçou demitir-se se a editora não o
aceitasse. Eles assinaram um contrato em dezembro de 1941, pagando a Rand um adiantamento de
US$1000. Com dois terços do livro ainda por escrever, ela se esforçou para completá-lo dentro do
prazo, que terminava em 1º de janeiro de 1943.
Rand se viu em uma disputa amigável com sua amiga Isabel Paterson, a jornalista de temperamento
esquentado e às vezes sem tato que estava trabalhando para completar The God of the Machine [“O
deus da máquina”]. Paterson escreveu romances e cerca de mil e duzentas colunas em jornais, mas
foiThe God of the Machine que solidificou sua reputação. O livro dispara um ataque poderoso ao
coletivismo, e explica a extraordinária dinâmica do livre-mercado. Paterson era dezenove anos mais
velha do que Rand, e durante diversos anos cruciais foi sua mentora. O professor de inglês Stephen
Cox, da Universidade da Califórnia (San Diego), acredita que, com Paterson, Rand teve “o que
pode ter sido o relacionamento intelectual mais íntimo de sua vida.” Rand e Paterson se conheceram
quando Paterson estava revisando críticas de livros que havia escrito para o jornal New York Herald
Tribune. Ela apresentou a Rand muitos livros sobre história, economia, e filosofia política,
ajudando-a a sofisticar sua visão de mundo.
A Nascente foi publicado em maio de 1943, o mesmo mês em que saiu The God of the Machine. Da
concepção à publicação haviam se passado nove anos. Paterson promoveu o livro em diversas
colunas no Herald Tribune. A Nascente recebeu muito mais atenção do que We the Living, mas a
maioria dos críticos ou o atacou ou o descreveu incorretamente como um livro sobre arquitetura.
Uma das críticas mais surpreendentes veio do jornal The New York Times, em que Lorine Pruette
escreveu: “A srta. Rand tomou uma posição contra o coletivismo... Ela escreveu um hino em louvor
do indivíduo.”
Rand ficou emocionada ao receber uma carta do famoso arquiteto Frank Lloyd Wright. “Li cada
palavra de A Nascente”, escreveu. “Sua tese é grande... O indivíduo é a Nascente de toda Sociedade
de valor. A Liberdade do Indivíduo é o único objeto legítimo do governo: a Consciência Individual
é o grande inviolável.” Embora Roark não tivesse sido inspirado em Wright, há relatos de que o
arquiteto guardava uma cópia de A Nascente ao lado de sua cama em Taliesin West, no Arizona.
(Ele projetou uma casa para Rand, que nunca foi construída porque ela e seu marido decidiram ficar
em Nova York. O desenho continua na coleção Wright.)
Por algum tempo, as vendas do livro foram lentas. Mas a propaganda boca-a-boca gerou um
interesse crescente, e a editora pediu uma série de reimpressões, quase sempre pequenas, em parte
por causa da escassez de papel nos tempos de guerra. O livro ganhou impulso e chegou às listas dos
mais vendidos. Dois anos após a publicação, 100.000 cópias haviam sido vendidas, e, em 1948,
400.000 cópias. Veio então a edição da New American Library, e A Nascente chegou a vender mais
de 6 milhões de exemplares.
No dia em que a Warner Brothers concordou em pagar a Rand US$50.000 pelos direitos
cinematográficos de A Nascente, ela e O’Connor fizeram uma extravagância e saíram para um
jantar de 65 centavos cada um na lanchonete do bairro. Rand brigou para preservar a integridade do
roteiro, e, em grande parte, teve sucesso, embora algumas de suas falas preferidas tenham sido
cortadas. O filme, estrelado por Gary Cooper, Patricia Neal, e Raymond Massey, estreou em julho
de 1949 e levou o livro mais uma vez às listas dos mais vendidos.
Logo após a primeira publicação do livro, Rand havia dito à sua amiga Isabel Paterson que estava
desapontada com a forma como o público o havia recebido. Paterson incentivou Rand a escrever um
livro de não-ficção, dizendo que ela tinha o dever de divulgar mais suas opiniões. Mas Rand se
rebelou contra a ideia de que devia algo às outras pessoas. “E se eu entrasse em greve?”, ela
perguntou. “E se todas as mentes criadoras do mundo entrassem em greve?” Essa se tornou a ideia
central de sua última grande obra, que recebeu o título provisório A greve.
Ao longo dos catorze anos que Rand dedicou ao livro, a maior parte deles em seu apartamento em
Nova York, cada elemento da história se tornou superlativo. A história apresenta o mais famoso
herói de Rand, o misterioso John Galt, físico e inventor que organiza uma greve das pessoas mais
produtivas contra os cobradores de impostos e outros exploradores. O livro também apresenta
Dagny Taggart, a primeira mulher ideal de Rand, que encontra seu par em Galt. Um amigo
comentou que o título original poderia fazer muitas pessoas pensarem que o livro era sobre
sindicatos, então ela o abandonou. O’Connor a incentivou a usar o nome de um dos capítulos como
título do livro: Atlas Shrugged [A Revolta de Atlas].
O livro está cheio de ideias provocadoras. Por exemplo, o empresário do cobre Francisco
d’Anconia, conversando com o empresário do aço Hank Rearden, expressa a visão de Rand sobre o
sexo: “A escolha sexual de um homem é o resultado de suas convicções fundamentais. Diga-me o
que um homem acha sexualmente atraente, e eu te direi toda a sua filosofia de vida. Mostre-me a
mulher com quem ele dorme e eu te direi o que ele pensa de si mesmo.” Anconia fala sobre a
moralidade do dinheiro: “O dinheiro se baseia no axioma de que cada homem é dono de sua mente
e de seu trabalho... O dinheiro exige que todos reconheçam que os homens devem trabalhar em seu
próprio benefício, não em seu detrimento, para seu ganho, não para sua perda... A ligação comum
entre todos os homens não é a troca de sofrimento, mas a troca de bens.” Rearden defende suas
conquistas da seguinte forma: “Eu ganhei meu dinheiro por meu próprio esforço, em trocas livres e
com o consentimento voluntário de todos os homens com quem fiz negócios... Eu me recuso a pedir
desculpas pelo meu talento... Eu me recuso a pedir desculpas pelo meu sucesso.” E da transmissão
de rádio de John Galt para os opressores vem esta poderosa frase: “Estamos em greve contra o
dogma de que buscar a própria felicidade é errado.”
As ideias de Rand ainda eram extremamente polêmicas, mas as vendas de A Nascente haviam
impressionado as editoras, e várias das maiores se interessaram por A Revolta de Atlas. Bennett
Cerf, sócio da Random House, deu muito apoio ao lançamento, e Rand recebeu um adiantamento de
US$50.000 sobre royalties de 15%, uma primeira impressão de no mínimo setenta e cinco mil
cópias, e um orçamento de US$25.000 para divulgação. O livro foi publicado em 10 de outubro de
1957.
A maioria dos críticos foi selvagem. O socialista da velha guarda Granville Hicks fez um escândalo
no New York Times, e outros ficaram igualmente ofendidos pelos ataques de Rand ao coletivismo.
Mas a crítica mais histérica de todas veio da conservadora National Review, em que Whittaker
Chambers, presumivelmente ofendido pelas críticas de Rand à religião, comparou-a a um nazista
ordenando “Para a câmara de gás – vá!” No entanto, a propaganda boca-a-boca foi mais forte do
que os detratores, e as vendas começaram a subir, acabando por passar dos 4,5 milhões de cópias.
Com A Revolta de Atlas, Rand havia realizado seus sonhos, e entrou em depressão. Ela não tinha
mais um imenso projeto para absorver suas prodigiosas energias, e passou a se apoiar cada vez mais
em seu discípulo intelectual canadense, Nathaniel Branden, com quem ela teve um relacionamento
íntimo. Para servir ao interesse cada vez maior do público por Rand e ajudar a reanimá-la, ele
fundou o Nathaniel Branden Institute (NBI), que oferecia seminários, vendia gravações de palestras
e começou a editar publicações sobre a filosofia de Rand, chamada Objetivismo. Branden às vezes
era um guardião implacável da ortodoxia objetivista, mas tinha uma habilidade notável para
promover os ideais do individualismo e do livre-mercado. Estima-se que vinte e cinco mil pessoas
tenham participado dos cursos do NBI.
Os bons tempos continuaram até 23 de agosto de 1968, quando Branden contou a Rand que tinha
um caso com outra mulher. Rand o repudiou publicamente, e os dois romperam relações, mas os
motivos só foram totalmente revelados dezoito anos depois, quando a ex-esposa de Branden,
Barbara, escreveu uma biografia de Rand. Nathaniel Branden se tornou um autor de sucesso
escrevendo sobre auto-estima.
Durante este período, Rand começou a escrever não-ficção. For a New Intellectual“Por um novo
intelectual” reuniu trechos selecionados de sua filosofia, de We the Living, Anthem, A Nascente, e A
Revolta de Atlas. Ela editou e publicou os periódicos The Objectivist Newsletter (1962-1966), The
Objectivist (1966-1971) e The Ayn Rand Letter (1971-1976). Alguns de seus ensaios, junto com
ensaios de Nathaniel Branden, Alan Greenspan e Robert Hessen, foram republicados na coletânea
Capitalism: The Unknown Ideal “Capitalismo: o ideal desconhecido”. Rand tinha talento para a
polêmica, e deu a uma coletânea de seus ensaios o título The Virtue of Selfishness “A virtude do
egoísmo”. Seus escritos sobre cultura foram reunidos em The Romantic Manifesto “O manifesto
romântico”. Indignada com a revolta dos jovens contra o capitalismo, ela lançou outro livro de
ensaios, The New Left: the Anti-Industrial Revolution “A nova esquerda: a revolução anti-
industrial”.
Após a morte de Frank O’Connor em novembro de 1979, Rand se tornou mais reservada,
praticamente inconsciente de que suas ideias inspiravam milhões de pessoas. Mesmo assim, ela fez
duas aparições no programa de entrevistas de Phil Donahue, transmitido para todos os Estados
Unidos. No ano seguinte, sabendo que Rand amava trens, James U. Blanchard III, empresário do
ramo de metais preciosos, providenciou um vagão particular para que ela viajasse de Nova York até
New Orleans, onde, em 21 de novembro de 1981, quatro mil pessoas aplaudiram seu discurso “The
Sanction of the Victims” [“A sanção das vítimas”]. Ela falou sobre como os empresários têm a
função vital de transformar novo conhecimento em melhores produtos e serviços. No entanto,
geralmente são desprezados como capitalistas gananciosos, e – o que é pior – financiam as
universidades, estúdios de Hollywood e outras instituições que fazem propaganda pela supressão da
liberdade. Ela exortou os empresários a defender a moralidade da liberdade.
O coração de Rand começou a ceder em dezembro, e ela faleceu em seu apartamento no número
120 da rua 34, em Manhattan, em 6 de março de 1982. Foi enterrada ao lado de O’Connor em
Valhalla, Nova York, com 200 pessoas jogando flores em seu caixão. Tinha 77 anos.
Desde então os editores estiveram ocupados com novos títulos relacionados a Rand. Seu colega
mais próximo, Leonard Peikoff, fundador do Ayn Rand Institute, lançou Philosophy: Who Needs It
“Filosofia: quem precisa dela”, material em grande parte extraído de The Ayn Rand Letter; The
Early Ayn Rand: A Selection from Her Unpublished Fiction (1984) [“Ayn Rand no início: uma
seleção de ficção inédita”]; e The Voice of Reason: Essays on Objectivist Thought “A voz da razão:
ensaios sobre o pensamento objetivista”. O diretor executivo do Ayn Rand Institute, Michael S.
Berliner, editou Letters of Ayn Rand “Cartas de Ayn Rand”, e o acadêmico David Harriman editou
Journals of Ayn Rand “Diários de Ayn Rand”. Depois vieram Marginalia (1998), The Ayn Rand
Column (1998) e The Art of Fiction “A arte da ficção”.
Em uma comemoração dos cinquenta anos da publicação de A Nascente, o professor de inglês
Stephen Cox observou que “O desafio corajoso de Rand às ideias estabelecidas se torna ainda mais
corajoso quando aliado à sua disposição a enunciar suas premissas individualistas nos termos mais
claros e a defender suas implicações mais radicais.”
O quadragésimo aniversário de A Revolta de Atlas, em outubro de 1997, foi celebrado por um
evento de um dia inteiro patrocinado pelo Cato Institute e pelo Institute for Objectivist Studies. “A
mensagem de A Revolta de Atlas,” declarou David Kelley, diretor executivo do Institute for
Objectivist Studies, “é que o capitalismo permite, recompensa e celebra o que há de melhor na
natureza humana. E o socialismo, ou qualquer outra forma de coletivismo, não é apenas ineficiente,
é imoral. É uma expressão degradante de inveja, malícia, da sede de poder dos poucos que
governam e do medo da liberdade dos muitos que se submetem.”
Os livros de Rand continuam a vender aproximadamente 300.000 cópias por ano. Embora tenha
causado um impacto maior nos Estados Unidos, ela tem leitores por todo o mundo. A Revolta de
Atlas foi publicado em alemão. Existem edições de A nascente em francês, alemão, norueguês,
sueco e russo. We the Living teve edições em francês, alemão, grego, italiano e russo. Traduções de
Anthem para o francês e o norueguês estão sendo preparadas.
Houve uma enxurrada de livros sobre Rand. A biografia escrita por Barbara Branden, The Passion
of Ayn Rand [“A paixão de Ayn Rand”], saiu em 1986. Nathaniel Branden contou sua história em
Judgement Day “Dia do julgamento”. Peikoff escreveu Objectivism: the Philosophy of Ayn Rand
“Objetivismo: a filosofia de Ayn Rand”. No mesmo ano, saiu The Ideas of Ayn Rand [“As ideias de
Ayn Rand”], do empresário de Los Angeles Ronald E. Merrill. Ayn Rand, the Russian Radical
[“Ayn Rand, a radical russa”], do acadêmico Chris Matthews Sciabarra, publicado em 1995, situa
suas ideias no contexto da filosofia russa. Segundo a revista Newsweek, “Ela está em toda parte”.
O documentário Ayn Rand: A Sense of Life, de Michael Paxton, lançado em 1997, foi indicado ao
Oscar. Em maio de 1999, o canal de televisão Showtime transmitiu o filme The Passion of Ayn
Rand, com Helen Mirren no papel de Rand, Peter Fonda como Frank O’Connor, Eric Stoltz como
Nathaniel Branden e Julie Delpy como Barbara Branden.
Ayn Rand veio do nada para combater um mundo corrupto e coletivista. Ela defendeu
obstinadamente suas crenças, afirmando o imperativo moral da liberdade e demonstrando que tudo
é possível.

Martin Luther King, Jr.


A liderança moral do dr. Martin Luther King Jr. foi crucial para a erradicação da segregação racial
imposta pelo governo nos Estados Unidos. Inspirado pelo individualista americano Henry David
Thoreau e pelo militante da não-violência indiano Mohandas Gandhi, King fez da ação política não-
violenta a principal estratégia de ataque às leis segregacionistas. Isso exigia grande coragem, uma
vez que ele foi preso catorze vezes, recebeu incontáveis ameaças de morte, foi apedrejado e
esfaqueado, sua casa foi alvo de tiros e de bombas, e uma bomba também explodiu em um quarto
de hotel onde ele se hospedou, antes de seu assassinato.
Dr. King expôs a escandalosa corrupção dos xerifes, prefeitos e governadores sulistas, que
aprovavam ataques da polícia contra passeatas pacíficas com armas de choque elétrico, cães ferozes
e jatos d’água de alta pressão usados contra crianças. Eles nada faziam quando a Ku Klux Klan
espancava passageiros negros nos ônibus e permitiam que os racistas do sul assassinassem
impunemente.
O princípios mais fundamentais de dr. King remetiam à tradição do direito natural: existem padrões
morais contra os quais a legitimidade das leis deve ser julgada. Elas não são legítimas apenas
porque o governo diz que são. “Um código humano que esteja de acordo com a lei moral, ou lei de
Deus, é uma lei justa”, explicou. “Mas um código humano em desarmonia com a lei moral é uma lei
injusta... Não esqueçamos, em memória dos seis milhões que morreram, que tudo que Adolf Hitler
fez na Alemanha era ‘legal’, e que tudo que os revolucionários da Hungria fizeram foi ‘ilegal’”.
King não levou seu pensamento tão longe quanto os filósofos do direito natural, mas disse isto:
“Uma lei injusta é um código que a maioria impõe à minoria mas não a si mesma... Podemos dizer
também que uma lei injusta é um código que a maioria impõe à minoria sem que esta minoria tenha
tido papel algum em sua criação ou promulgação, por não ter direito ao voto... Nossa consciência
nos diz que a lei está errada e temos o dever de resistir, mas temos a obrigação moral de aceitar a
pena... Jamais conquistamos nada sem fazer pressão, e espero que tal pressão seja sempre moral,
legal e pacífica.”
Decisões judiciais, ele disse, podiam ser tão ruins quanto as leis: “Embora os direitos da Primeira
Emenda garantam a qualquer cidadão ou grupo de cidadãos o direito de livre associação pacífica, o
Sul passou a recorrer a ações judiciais para bloquear nossas manifestações pelos direitos civis.
Quando nos preparamos para fazer uma manifestação não-violenta, a cidade simplesmente
consegue uma medida cautelar. Os tribunais sulistas são famosos por ‘enrolar’ nesse tipo de caso, é
possível haver atrasos de dois ou três anos... Em Birmingham, achamos que tínhamos que tomar
uma atitude e desobedecer uma ordem judicial contra manifestações, sabendo das consequências e
preparados para sofrê-las – ou a lei injusta acabaria com nosso movimento.”
King causou polêmica durante toda a sua tumultuada vida pública. Os conservadores se opunham a
ele porque ele desafiava “os direitos dos estados”. Os chamados liberais, no sentido americano,
como o presidente John F. Kennedy, temiam que ele provocasse desordem, e o procurador-geral
Robert F. Kennedy aprovou grampos do FBI na casa, no escritório, e em quartos de hotel de King
por todo o país. O diretor do FBI, J. Edgar Hoover, afirmou que King estava associado aos
comunistas.
Os grampos do FBI não resultaram em nenhuma prova de envolvimento de King com uma
conspiração comunista, mas revelaram sua infidelidade matrimonial. Isso causou grande
constrangimento aos líderes do movimento por direitos civis. Muitas pessoas ficaram ainda mais
escandalizadas com a revelação de que frases e até parágrafos inteiros de seu livro Stride Towards
Freedom “Longo passo para a liberdade” haviam sido copiados de Basic Christian Ethics [“Ética
Cristã Básica”], de Paul Ramsay, e Agape and Eros [“Ágape e Eros”], de Anders Nygren. Parece
que King tinha defeitos, como muitas outras pessoas. Além disso, ele tinha algumas ideias confusas.
Exasperado com a intransigência dos governos estatais e locais, ele pediu intervenção federal para
fazer valer a igualdade de direitos, e parece que chegou a acreditar que o poder federal poderia curar
a pobreza. Um biógrafo afirmou que ele era secretamente um socialista.
Ele protestou contra muitas leis. Algumas delas negavam aos negros acesso a serviços públicos
pelos quais eles eram forçados a pagar, por meio de impostos. Havia leis estatais e locais que
tornavam obrigatória a segregação no setor privado. Os ônibus municipais eram monopólios
garantidos pelo governo, que proibia que empresários oferecessem serviços concorrentes. Quando
King ajudou a liderar um boicote aos ônibus, os participantes foram punidos por desobedecer leis
antiboicote. Rodízios de carros foram organizados para ajudar os participantes a ir trabalhar, e eles
foram processados por violação de leis que exigiam que veículos usados em rodízios fossem
licenciados como táxis e que seus usuários pagassem taxas mínimas impostas pelo governo. Dr.
King teve discussões com policiais e coletores de impostos, e considerava o serviço militar
obrigatório uma forma de escravidão.
Dr. King, que ganhou o prêmio Nobel da paz em 1964, sempre insistiu na não-violência: “Ao
pressionar por justiça, certifique-se de proceder com dignidade e disciplina, usando apenas o amor
como arma... Evite sempre a violência. Se sucumbir à tentação de usar a violência em sua luta, as
gerações vindouras herdarão uma longa e amarga noite, e seu principal legado para o futuro será
uma era sem fim de caos sem sentido... Em sua luta por justiça, deixe claro a seu opressor que você
não pretende derrotá-lo ou humilhá-lo ... Está apenas buscando justiça, para ele assim como para si
próprio.”
Martin Luther King Jr., nasceu em Atlanta, em 15 de janeiro de 1929. Era o segundo filho de Martin
Luther King Sr., pastor da Igreja Batista Ebenezer, e Alberta Williams, filha de um pastor. Sua avó
materna, “Mama” Williams, vivia com a família, e ajudou na criação de King e de seus dois irmãos.
Aos doze anos, King participou de um concurso de oratória promovido pela associação negra Black
Elks, e fez seu discurso, “O negro e a constituição”, sem a ajuda de texto ou notas. Assim como seu
pai, King estudou no Morehouse College, uma universidade popular entre a classe média negra.
Aproximadamente aos dezenove anos, decidiu entrar para o ministério religioso, e se matriculou em
um curso de três anos no Seminário Teológico Crozer, em Chester, na Pensilvânia. Uma palestra do
presidente da Universidade Howard, Mordecai Johnson, despertou seu interesse pelos métodos não-
violentos empregados por Mohandas K. Gandhi. Após se formar com distinção em Crozer, foi fazer
um doutorado na Escola de Teologia da Universidade de Boston, onde adotou uma versão religiosa
do individualismo conhecida como personalismo. Segundo o biógrafo David J. Garrow, para o
pensamento personalista “a personalidade humana, ou seja, todos os indivíduos, é o principal valor
do mundo. Parte da forte atração de King por esta filosofia se baseava em um de seus principais
corolários: se a dignidade e valor de todas as personalidades humanas são o principal valor do
mundo, a segregação e a discriminação racial estão entre os maiores males.”
Enquanto estava em Boston, ele foi apresentado a Coretta Scott, nativa do Alabama que havia se
formado pelo Antioch College, de Ohio, e continuava os estudos no Conservatório Musical da Nova
Inglaterra. “Este homenzinho, que era tão baixo”, ela refletiu, “olhei para ele e pensei comigo
mesma, ‘ele não parece grande coisa’.” King Pai celebrou o casamento dos dois, em junho de 1953,
na casa dos pais dela, em Perry County, no Alabama. O casal voltou a Boston, e ele recebeu seu
PhD em junho de 1955.
King Pai queria que seu filho se tornasse seu co-pastor na Igreja Batista Ebenezer, em Atlanta, mas
King valorizava sua independência, e aceitou um posto na Igreja Batista Dexter Avenue, em
Montgomery, no Alabama. Em agosto de 1955, ele falou em uma reunião da organização pró-
direitos civis National Association for the Advancement of Colored People “Associação Nacional
para o Progresso das Pessoas de Cor” e subsequentemente foi convidado para integrar seu comitê
executivo.
Enquanto isso, a tensão crescia em torno da segregação racial imposta pelo governo. Tais leis
haviam sido aprovadas no início do século XX, apesar das objeções dos negócios privados, para os
quais as leis aumentariam custos e afastariam clientes. Conforme escreveu Thomas Sowell,
acadêmico da Hoover Institution: “Foram necessárias leis para fazer o preconceito racial se
converter em discriminação generalizada, porque as forças do mercado operavam na direção
contrária. O preconceito é gratuito mas a discriminação tem custos.”
Em seu livro America in Black and White [“América em preto e branco”], de 1997, o historiador
Stephan Thernstrom e a pesquisadora do Manhattan Institute Abigail Thernstrom explicam que “as
raças eram estritamente separadas por lei em bondes, ônibus, e trens; em escolas; em salas de
espera, restaurantes, hotéis, pensões, teatros, cemitérios, parques, tribunais, banheiros públicos,
bebedouros e todos os demais espaços públicos... A mania de separação chegou a tal ponto que
Oklahoma exigia cabines telefônicas separadas para as duas raças... Macon County, na Geórgia,
chegou ao cúmulo do absurdo ao debater seriamente uma proposta para que o país mantivesse dois
conjuntos separados de estradas públicas, um para cada raça, e rejeitar a ideia apenas por causa dos
custos proibitivos.”
Uma lei municipal de Montgomery obrigava os negros a ceder seus assentos aos brancos nos
ônibus. Em muitos casos, passageiros negros, especialmente mulheres, tinham que pagar a
passagem na parte da frente do ônibus, depois descer e subir novamente pela porta de trás – e nesse
intervalo o ônibus partia.
Em 1º de dezembro de 1955, uma mulher de quarenta e dois anos chamada Rosa Parks, que
trabalhava como assistente de um alfaiate e ajudava o conselho da juventude da NAACP, entrou em
um ônibus em Court Square, Montgomery. O motorista J. F. Blake ordenou que os negros fossem
para a parte de trás do ônibus, mas Parks recusou-se. Estava cansada. Blake parou o ônibus, foi até
um telefone, e chamou a polícia, que levou Parks para a cadeia. Uma mulher que estava no ônibus
avisou E. D. Nixon, da NAACP, que, acompanhado do advogado branco Clifford Dorr, conseguiu
sua soltura.
Nixon conseguiu o apoio de religiosos negros. Eles formaram a Montgomery Improvement
Association [Associação para a Melhoria de Montgomery] e escolheram King para ser seu primeiro
presidente, porque sua educação e habilidade pra falar em público atrairia tanto a elite negra quanto
pessoas comuns. King explicou, “Não estamos defendendo a violência... A maior glória da
democracia americana é o direito de protestar por direitos.” Seus objetivos eram
surpreendentemente moderados: “Não estamos pedindo o fim da segregação. Isso é uma questão
para a legislatura e os tribunais... Buscamos apenas justiça e tratamento honesto nos ônibus”.
O prefeito de Montgomery, W. A. Gayle, culpou “radicais negros” pelo boicote, e recusou-se a fazer
qualquer concessão. A Montgomery Improvement Association (MIA) organizou um rodízio
voluntário para levar os participantes do boicote para o trabalho. As autoridades municipais
ameaçaram prender os motoristas se eles cobrassem menos do que os quarenta e cinco centavos que
o governo impunha como tarifa de táxi de seus passageiros. O juiz estadual Eugene W. Carter
emitiu um mandado proibindo o rodízio por infringir o monopólio sobre os ônibus concedido pelo
governo, e a ágil MIA organizou um esquema de caronas. Um júri indiciou mais de noventa
membros da associação por violar a lei antiboicote do estado. King, o primeiro participante do
boicote a ser julgado, foi condenado a pagar uma multa de US$ 1000. Uma bomba explodiu em
frente à casa onde vivia a família de King, quebrando janelas e enchendo o lar de fumaça. Em
grandes reuniões semanais, King se referia à estratégia de não-violência a longo prazo de Gandhi.
Em junho de 1956, um tribunal federal decidiu, por dois votos contra um, derrubar a lei de
segregação nos ônibus de Montgomery, e mais tarde no mesmo ano a Suprema Corte americana
manteve essa decisão. Em 21 de dezembro de 1956, às 5h55 da manhã, o primeiro ônibus do dia
parou perto da casa de King. Ele foi o primeiro a bordo, acompanhado de Ralph Abernathy, E. D.
Nixon, Rosa Parks e Glenn Smiley, um branco do Texas que os apoiava. Tudo pareceu ir bem até 23
de dezembro, quando um tiro atravessou a porta da casa de King. Cinco dias depois, atiradores
alvejaram três ônibus não-segregados, ferindo um passageiro negro. Em 27 de janeiro de 1957, doze
tubos de dinamite com uma mecha queimada foram encontrados no terraço da casa do dr. King.
Oito meses depois, ele estava na loja de departamentos Blumstein’s, no bairro novaiorquino do
Harlem, promovendo seu livro Stride Towards Freedom [“Longo passo para a liberdade”], a história
do boicote aos ônibus de Montgomery, quando uma mulher negra mentalmente perturbada o
esfaqueou no peito com um abridor de cartas. O golpe passou a centímetros do coração de King.
Para promover um movimento mais amplo pelos direitos civis, King ajudou a organizar uma
“peregrinação a Washington” em 17 de maio, que, estima-se, chegou a reunir quinze mil pessoas no
Lincoln Memorial. A revista Ebony chamou King de “o líder negro número 1 da humanidade”. Ele
ajudou a formar a Southern Christian Leadership Conference Conferência da Liderança Cristã do
Sul, uma organização sediada em Atlanta cujo principal objetivo era registrar eleitores negros. No
Dia do Trabalho de 1957, King e Abernathy foram à Highlander Folk School, no Tennessee, e
ouviram Peter Seeger tocar banjo e cantar “We Shall Overcome”, que se tornou o hino do
movimento por direitos civis.
A fase seguinte do movimento começou em fevereiro de 1960, quando quatro estudantes negros do
A&M College da Carolina do Norte tentaram ser servidos em uma lanchonete F. W. Woolworth
exclusiva para brancos, em Greensboro. O serviço foi negado, mas eles se recusaram a sair. Outras
dezenas de estudantes chegaram, e a lanchonete fechou. Logo aconteceram protestos por toda a
Carolina do Norte, que se espalharam pela Virgínia, a Flórida e o Tennessee. O sit-in, forma de
protesto não-violento em que um grupo ocupa um lugar, virou a especialidade do Comitê Estudantil
de Coordenação Não-Violenta. King, que havia saído da igreja de Dexter para ser co-pastor com
King Pai na Igreja Batista Ebenezer, falou em uma reunião de manifestantes em Durham, na
Carolina do Norte.
Então dois xerifes o prenderam e tentaram extraditá-lo para o Alabama, onde ele enfrentava
acusações de perjúrio e crimes por conta de uma declaração de imposto de renda. A receita alegava
que em 1956 e 1958 ele havia ganhado US$27.000 além dos US$5.000 em salários como pastor e
US$4.100 em cachês por palestras que havia declarado. Se King fosse condenado, sua reputação
seria destruída. Cinco advogados consideraram a situação de King muito ruim, mas análises de seus
registros financeiros revelaram que ele havia ganhado apenas US$368 além do declarado. Em 28 de
maio, um júri de doze homens brancos o considerou inocente. Muitos observadores pensavam que
ele estava sendo assediado propositalmente.
Em 12 de outubro de 1960, Dr. King participou de manifestações na loja de departamentos Rich’s,
em Atlanta, e foi preso por invasão de propriedade privada. Ele já havia sido multado por dirigir um
carro emprestado com a licença vencida e por não ter tirado carteira de habilitação do estado da
Geórgia nos noventa dias seguintes à sua mudança para o estado (ele ainda tinha a habilitação do
Alabama), e foi condenado a quatro meses em uma prisão na Geórgia.
Em setembro de 1962, enquanto ele discursava em uma reunião da SCLC em Birmingham, um
homem acertou Dr. King com um soco no rosto. King permaneceu no pódio, e o homem desferiu
novos golpes. Ao invés de se retirar, King falou calmamente ao agressor, que foi identificado como
Roy James, de vinte e quatro anos, membro do Partido Nazista americano. A polícia veio, mas Dr.
King não quis registrar uma queixa. Segundo o biógrafo David J. Garrow, o episódio “deixou a
maioria dos espectadores impressionados com o destemor do Dr. King diante de violência física
direta”.
Em seguida, King direcionou suas atenções para Birmingham, uma das cidades onde a segregação
estava mais arraigada. Durante anos, casas de famílias negras haviam sido dinamitadas, e a polícia
jamais havia solucionado os casos. Um bairro negro era até conhecido como Dynamite Hill
[“Colina da dinamite”]. Embora não houvesse número suficiente de eleitores negros registrados
para causar um impacto, os clientes negros eram importantes para os negócios da região. Os
principais objetivos de King em Birmingham eram dessegregar instalações em lojas, como
banheiros e provadores; estabelecer um processo de contratação sem discriminação tanto nas lojas
quanto no governo; e reabrir locais de recreação financiados com dinheiro dos contribuintes.
O juiz William A. Jenkins Jr., da Suprema Corte do Estado, emitiu um mandado contra passeatas,
então, quando King liderou uma passeata em direção à prefeitura na Sexta-Feira Santa, foi preso.
Wyatt Walker, um religioso que trabalhava com King, reuniu milhares de estudantes negros do
ensino médio para também marcharem em direção à prefeitura, e eles também foram presos. O
comissário de segurança pública “Bull” (“Touro”) Connor deu ordens para que jatos d’água de alta
pressão fossem dirigidos contra os manifestantes e pedestres. Cães policiais foram ao ataque, e
policiais perseguiram manifestantes com cassetetes. Quando finalmente se chegou a um acordo,
King fez elogios aos comerciantes brancos com quem eles haviam negociado, e anunciou uma
iniciativa para registrar eleitores en Birmingham. Na noite seguinte a seu pronunciamento, a Ku
Klux Klan fez uma reunião perto de Birmingham, e uma bomba explodiu sob o quarto em que King
havia se hospedado no Gaston Motel.
Procurando restringir o poder dos governos sulistas, que tanto haviam feito para subverter as
liberdades civis, King procurou formas de gerar apoio a uma lei de direitos civis no Congresso. O
resultado foi a Marcha de Washington, marcada para 28 de agosto de 1963, patrocinada por King,
Wilkins, James Farmer do Congresso da Igualdade Racial, John Lewis da SNCC, Andrew Young da
SCLC e A. Philip Randolph da Brotherhood of Sleeping Car Porters, sindicato predominantemente
negro de trabalhadores ferroviários. Bayard Rustin foi o principal organizador.
“Eu tenho um sonho”, King disse à multidão, “de que um dia esta nação se insurgirá e viverá o
verdadeiro significado de seu credo – consideramos estas verdades auto-evidentes, que todos os
homens são criados iguais. Eu tenho um sonho de que um dia, nas colinas da Geórgia, os filhos dos
que foram escravos e os filhos dos que foram donos de escravos poderão sentar-se juntos à mesa da
fraternidade... Eu tenho um sonho de que meus quatro filhos um dia viverão em uma nação onde
não serão julgados pela cor da sua pele, mas pelo conteúdo de seu caráter... Quando permitirmos
que a liberdade ressoe... chegaremos mais rapidamente ao dia em que todos os filhos de Deus –
negros e brancos, judeus e gentios, protestantes e católicos – poderão dar-se as mãos e cantar as
palavras da antiga canção negra, ‘Finalmente livres, finalmente livres, graças a Deus todo-poderoso,
somos finalmente livres’.”
Transformado em lei por Lyndon Johnson, que se tornou presidente após o assassinato de John F.
Kennedy, o Ato dos Direitos Civis fez mais do que derrubar as leis que tornavam a segregação
obrigatória. Ele estabeleceu a Equal Opportunity Employment Commission [Comissão para
Igualdade de Oportunidade de Emprego], que tinha o poder de suprimir qualquer associação
voluntária julgada discriminatória. Considerando a barbárie dos governos estaduais e municipais do
sul, era compreensível que King procurasse uma solução federal; no entanto, aumentar os poderes
do governo sempre foi perigoso para minorias, que, por causa de seu número comparativamente
pequeno, não poderiam ter certeza de mantê-lo sob controle, como havia ocorrido no sul.
A seguir, King ajudou os negros a garantir o direito ao voto, para que ficassem mais protegidos de
políticos e burocratas. “O problema no sul”, explicou o vice-procurador geral Nicholas Katzenbach,
“era principalmente a questão dos testes de alfabetização e a forma como eles eram aplicados.
Havia negros com Ph.D que não conseguiam passar no teste, e brancos que mal conseguiam
escrever o próprio nome que não encontravam dificuldades em se registrar para votar.”
A questão chegou ao ponto culminante em Selma, no Alabama. Selma era uma cidade de cerca de
vinte e nove mil habitantes, onde apenas 2% dos negros em idade eleitoral eram registrados como
eleitores. Em fevereiro e março de 1956, King liderou manifestações pelo direito ao voto. Os
homens do xerife Jim Clark socaram os manifestantes e os agrediram com cassetetes e choques
elétricos. Mais de quatro mil pessoas foram detidas, e King foi para a cadeia. Ele escreveu a “Carta
de Martin Luther King de uma cadeia de Selma, Alabama”, que foi publicada como anúncio no
jornal The New York Times, e atraiu a atenção do país inteiro. Mais de vinte e cinco mil pessoas
participaram de uma passeata entre Selma e Montgomery. Foram atacadas pelos homens de Clark e
alvejadas por atiradores, mas chegaram a Montgomery, e King falou à multidão reunida em frente à
Assembléia Legislativa. O Ato dos Direitos Eleitorais foi assinado em 6 de agosto de 1965.
King corajosamente se opôs à guerra do Vietnã. Ele denunciou o recrutamento militar obrigatório
como “servidão involuntária” e expressou alguma desilusão com o poder político. “Nenhum
presidente fez muito pelo negro americano”, lamentou, “embora os dois últimos presidentes tenham
recebido muito crédito imerecido por nos terem ajudado. Este crédito coube a Lyndon Johnson e a
John Kennedy apenas porque foi durante os seus governos que os negros começaram a fazer mais
por si mesmos.”
King tinha a ideia equivocada de que mais discursos, passeatas e leis poderiam de alguma forma
acabar com a pobreza. Ele foi a Chicago e exigiu que as autoridades locais “acabassem com as
favelas”, com a discriminação habitacional, e com os conjuntos habitacionais populares
verticalizados, mas não obteve resultados. Ele não parecia entender que programas estatais são
dirigidos segundo o interesse dos que estão no poder, e não segundo os interesses das pessoas
supostamente sendo ajudadas. Ele tentou lançar uma “Campanha dos Pobres” em Memphis, mas ela
se tornou um tumulto.
Por volta das 6:01 da manhã do dia 4 de abril, no quarto 306 do Lorraine Motel, Dr. King foi para o
terraço. Houve um tiro. Uma bala arrancou um pedaço de sua mandíbula do tamanho de um punho
masculino, rompeu sua coluna vertebral, atravessou seu peito e parou em suas costas. Ele caiu no
chão do terraço. Uma ambulância o levou ao hospital St. Joseph’s. O cirurgião geral, o
neurocirurgião, o cirurgião torácico, o pneumologista e o nefrologista tentaram várias medidas
emergenciais, mas o coração de King cedeu. A hora oficial da morte foi 7:11 da noite.
A Igreja Batista Ebenezer ficou lotada para o culto funeral, em que King Pai rezou sobre o caixão
do filho. O caixão foi colocado em uma carroça de fazenda, e arrastado por duas mulas em um
percurso de três milhas e meia [5.6 km] pelas ruas de Atlanta, até o Morehouse College, recebendo
as homenagens de cinquenta mil pessoas, segundo estimativas. Em Morehouse, houve outro culto,
de duas horas. Dr. King foi enterrado no cemitério South View, sob um monumento de mármore
com a inscrição “Finalmente livre, finalmente livre, graças a Deus todo-poderoso, sou finalmente
livre”.
O FBI começou uma caçada humana que foi considerada a mais intensa da história americana –
aproximadamente mil e quinhentos agentes foram destacados para o caso, e, no total, por volta de
três mil trabalharam em seus diversos aspectos. Os investigadores identificaram como principal
suspeito James Earl Ray, que havia fugido da prisão, e seguiram sua pista até Londres. Ele foi
apreendido a caminho da Rodésia, onde havia um regime de supremacia branca. Ray confessou o
crime e foi condenado a noventa e nove anos em uma prisão no Tennessee.
Desde então, os líderes do movimento por “direitos civis” abandonaram o sonho de igualdade de
direitos e passaram a se comportar como qualquer outro grupo de interesse, buscando privilégios.
Eles promoveram a ação afirmativa para negros que jamais foram escravos, às custas de brancos,
latinos, asiáticos e outros que nunca foram proprietários de escravos, provocando ressentimento e
conflito. Além disso, escreveu Thomas Sowell, “é muito citada uma estatística que diz que o
número de negros em profissões liberais e outras ocupações de alto nível aumentou
significativamente nos anos que se seguiram à passagem do Ato dos Direitos Civis de 1964, mas
ignora-se quase totalmente o fato de que o número de negros nessas profissões cresceu ainda mais
rapidamente nos anos que precederam a passagem do Ato dos Direitos Civis de 1964.” Esses
primeiros ganhos dramáticos aconteceram conforme os negros do sul ajudavam a si mesmos,
migrando para o norte. Não é surpreendente que mais pessoas estejam voltando à visão original de
King de direitos iguais.
Com coragem e boa vontade, Martin Luther King Jr. reafirmou o conceito de uma “lei maior”, a
ideia de que as leis feitas pelo governo devem ser julgadas de acordo com padrões morais, uma
pedra fundamental da liberdade que remonta a mais de dois mil anos.

Maria Montessori
O que é que o inventor Graham Bell, o filósofo Bertrand Russel, o ator Cary Grant, a atriz Vanessa
Redgrave, o cantor Bing Crosby, o comediante Bob Hope, o violoncelista Yo-Yo Ma e a princesa
Diana da Grã-Bretanha têm em comum? Todos eles matricularam seus filhos ou netos em escolas
inspiradas por Maria Montessori, a corajosa mulher que mostrou por que a liberdade é
absolutamente essencial para a criatividade e a independência.
Apesar de grandes diferenças políticas, pessoas de todas as grandes culturas e religiões valorizam a
forma como as escolas montessorianas libertam as crianças para aprender. Há escolas
montessorianas por toda a Europa e as Américas. Elas estão bem estabelecidas na Índia, na China e
na Rússia, e estão se expandindo rapidamente no Japão. Há uma escola montessoriana no remoto
Camboja; tanto Israel quanto os Emirados Árabes Unidos as têm, e há relatos de que uma está sendo
construída na Somália. No total, há escolas montessorianas em cinquenta e dois países.
Tais escolas são bem-sucedidas porque alunos e pais as amam. Mais de 90% dos professores
montessorianos nos Estados Unidos, por exemplo, estão em escolas particulares, cujas receitas vêm
voluntariamente dos pais – e não dos contribuintes. Em contraste, as grandes faculdades de
pedagogia americanas fazem tudo o que podem para ignorar Maria Montessori, tratando-a como
uma figura histórica de pouca relevância atual. Enormes sindicatos de professores desconfiam da
liberdade que há nas salas de aula montessorianas.
O movimento montessoriano sempre foi independente. Desafiando os educadores progressistas que
moldavam as crianças à sua visão coletivista, Maria Montessori declarou que o objetivo da
educação é ajudar os indivíduos a realizar seus destinos. Ela se rebelou contra o ensino regimentado
e insistiu que as crianças precisam ter liberdade para crescer. Ela mostrou que crianças aprendem
principalmente ensinando a si mesmas, não com professores martelando conhecimento em cabeças
passivas. Montessori descobriu que as crianças aprendem praticamente desde o nascimento, e que a
educação – do tipo certo – pode começar a oferecer benefícios desde muito mais cedo do que se
pensava. “O princípio fundamental,” ela escreveu, “deve ser a liberdade do aluno; liberdade tal que
permita o desenvolvimento de manifestações individuais e espontâneas da natureza da criança. Se
uma pedagogia nova e científica for emergir do estudo do indivíduo, esse estudo deve se ocupar da
observação de crianças livres.”
Montessori tinha uma presença formidável quando, em 1906, começou a fazer grandes descobertas
sobre como as crianças aprendem. “Aproximando-se dos quarenta anos,” escreveu a biógrafa Rita
Kramer, “ela era uma figura algo corpulenta, ainda bonita, mas ganhando peso, ainda confiante, mas
um pouco mais circunspecta. Ela entrava na sala de aula usando um vestido escuro simples, mas
bonito, com o cabelo escuro amarrado no alto da cabeça, e sorria para as crianças.” Ela tinha um
“rosto liso, sem rugas, olhos claros e brilhantes... Porte elegante e serenidade”.
Montessori nasceu em 31 de agosto de 1870, em Chiaravalle, Itália, no ano em que os estados
italianos se uniram para formar uma nação. Seu pai, Alessandro Montessori, era um funcionário
público que administrava as finanças de uma fábrica estatal de tabaco. Sua mãe, Renilde Stoppani,
era uma intelectual, filha de um aristocrata proprietário de terras.
Quando Maria tinha por volta de cinco anos, Alessandro Montessori foi contratado como contador
em Roma e se mudou para lá com a família, para que Maria tivesse acesso a uma educação melhor.
Ela foi encorajada a escolher o magistério, uma das poucas profissões então abertas às mulheres. A
teimosa Maria, no entanto, pensou em uma série de profissões fechadas às mulheres: primeiro
engenharia, depois biologia e medicina. Em 1886, ela se tornou a primeira médica da Itália, mas foi
proibida de exercer a profissão porque era inconcebível uma mulher examinar o corpo de um
homem. Então aceitou uma posição de médica assistente da Clínica Psiquiátrica da Universidade de
Roma. Ali ela teve a oportunidade de observar “defeituosos” – crianças com deficiências mentais,
dificuldades de aprendizado, ou de comportamento difícil por outras razões. Essas crianças eram
mantidas em quartos lotados, sem brinquedos e sem muito o que fazer. Observando-as, Montessori
se convenceu de que suas vidas poderiam melhorar se elas recebessem melhores cuidados.
Procurando ideias, descobriu as obras de Jean Itard e Edouard Seguin, médicos franceses que
haviam dedicado suas vidas à busca de melhores maneiras de educar essas crianças.
Em 1899, ela fez uma palestra sobre o assunto em uma conferência de professores e causou
comoção. Foi convidada para dar aulas na Universidade de Roma e dirigir uma nova escola para
crianças “defeituosas”. Por dois anos, de 1899 a 1901, Montessori buscou incessantemente técnicas
de ensino que pudessem ajudar as crianças excepcionais. Visitou instituições para tais crianças em
Londres e Paris. Incrivelmente, seus alunos aprendiam a ler e escrever tão bem quanto as crianças
comuns.
Então veio a grande agonia e alegria de sua vida, que a levaria a uma nova carreira ajudando
crianças por todo o mundo. Na escola, ela trabalhava com um certo Dr. Giuseppe Montesano. Os
dois tiveram um relacionamento e ela deu à luz um filho, Mario. Montesano não concordou em
casar-se com ela, e logo casou-se com outra mulher. A mãe de Montessori teve pavor de que o
escândalo destruísse a carreira da filha. Mario foi viver com primos, no campo, perto de Roma, e o
acontecimento foi abafado. A biógrafa Kramer concluiu que a gravidez e o fim do relacionamento
com Montesano devem ter acontecido em 1901, quando Maria repentinamente demitiu-se da escola
e desapareceu por aproximadamente um ano, abandonando seu trabalho bem-sucedido.
Imagine a angústia desta mulher pressionada a abrir mão do próprio filho, impossibilitada de dividir
com ele suas extraordinárias descobertas que ajudariam os filhos de outras pessoas no mundo
inteiro. Por quase quinze anos, ela visitou o filho periodicamente, sem se identificar. Ele a via como
uma “bela senhora” misteriosa. Apenas após a morte da mãe de Maria, em 1912, Mario foi viver
com ela.
Durante este período, Montessori transformou sua tristeza em um novo objetivo para sua vida:
melhorar a educação das crianças comuns. Matriculou-se como aluna na Universidade de Roma e
estudou tudo que pudesse ajudá-la a entender melhor como as crianças aprendem – cursos de
psicologia, antropologia, higiene e pedagogia. Visitou escolas primárias, observando as ações dos
professores e as reações dos alunos. As escolas haviam adotado o método ao estilo militar
promovido na Prússia, nos Estados Unidos, e em outros lugares: grandes números de alunos
sentados em fileiras diante de um professor que ensinava todos ao mesmo tempo. Ela
instintivamente rejeitou o ensino regimentado, a passividade dos alunos, e o sistema de
recompensas e punições.
Suas ideias, expressas em um artigo de revista, atraíram a atenção de Eduardo Talamo, um
executivo de uma imobiliária, o Istituto Romani dei Beni Stabili. Dois dos novos prédios de
apartamentos da empresa, no bairro pobre e violento de San Lorenzo, em Roma, estavam sendo
depredados pelos filhos dos moradores enquanto os pais estavam trabalhando. Talamo concluiu que
seria do interesse da empresa fundar uma escola em cada prédio, para que as crianças tivessem
coisas construtivas para fazer, com supervisão adequada. Ele pediu conselhos a Montessori.
Ela se ofereceu para assumir o projeto pessoalmente, apesar das objeções de amigos que achavam
degradante uma médica dar aulas para crianças. Em vez das carteiras escolares convencionais,
Montessori adquiriu cadeiras e mesas de tamanho apropriado para entre cinquenta e sessenta e três
crianças de seis anos. Ela também levou para a escola os materiais autocorretivos que havia criado
para as crianças “defeituosas”, para ajudar os alunos a aprender a classificar e encaixar coisas, entre
outras habilidades essenciais para a independência. Conforme suas observações sugeriam que
outros materiais eram necessários, seu repertório se expandia. Ela descobriu que crianças aprendiam
conceitos abstratos mais rapidamente quando os materiais envolviam vários sentidos – tato, além da
visão e da audição. Conhecida como Casa dei Bambini (“Casa das Crianças”), a escola abriu em 6
de janeiro de 1907.
Os alunos não pareciam promissores: tristes, retraídos e rebeldes. No entanto Montessori aprendeu
coisas surpreendentes ao trabalhar com eles: descobriu que as crianças têm um desejo forte e inato
de aprender e conquistar autonomia, que aprendem espontaneamente quando têm liberdade
suficiente, que se concentram profundamente em tarefas que elas mesmas escolhem , que preferem
explorar coisas reais – o mundo dos adultos – aos brinquedos convencionais, e que se desenvolvem
ao máximo em uma atmosfera de dignidade, respeito e liberdade. A ordem na sala de aula era
mantida sem recompensas ou punições quando as crianças estavam alegremente interessadas.
Montessori dava às crianças uma liberdade considerável, mas isso não queria dizer que elas podiam
fazer qualquer coisa que quisessem. Ela insistia em fazer com que as crianças tivessem
comportamento adequado e tratassem os outros com respeito. “A primeira coisa que a criança deve
aprender,” escreveu ela, “é a diferença entre bem e mal; e a tarefa do educador é fazer com que as
crianças não confundam bem com imobilidade e mal com atividade, como acontece frequentemente
no caso da disciplina antiquada. Isso porque nosso objetivo é disciplinar para a atividade, para o
trabalho, para o bem, não para a imobilidade, não para a passividade, não para a obediência... Uma
sala em que todas as crianças se movem de forma útil, inteligente e voluntária, sem cometer
nenhum ato violento ou rude, me pareceria uma sala de aula muito bem disciplinada.”
Montessori observou que aprendiam melhor quando a professora (que ela chamava de
“orientadora”) mostrava como fazer alguma coisa e depois estimulava a descoberta livre. Para
ajudar a criança a desenvolver a auto-confiança e se tornar mais independente, Montessori
enfatizava habilidades práticas: higiene pessoal, guardar os materiais no lugar certo, limpar a sala de
aula, preparar refeições, cuidar de plantas e animais de estimação.
Como a maioria das pessoas, Montessori acreditava que as crianças não estariam preparadas para
aprender a ler e escrever até os seis anos de idade, mas seus alunos pediram para ser ensinados,
então ela e sua assistente fizeram conjuntos de letras cursivas com marcações para que as crianças
soubessem que lado ficava para cima. Montessori elaborou exercícios para ajudar os alunos a
aprender as formas e sons das letras. Em dois meses, ela presenciou uma explosão de escrita. No
Natal, quando as crianças das escolas do governo ainda lutavam com as letras, dois alunos de
Montessori – de quatro anos – escreveram mensagens de Natal para Edouardo Talamo, proprietário
do prédio. Montessori fez um relatório triunfante: “Foram escritas em papel de carta, sem rasura e
sem apagar, e a caligrafia foi julgada equivalente à obtida na terceira série do ensino primário.”
Contrariando as doutrinas predominantes, Montessori descobriu que crianças aprendiam a ler
melhor depois de aprender a escrever, então preparou cartões para rotular objetos de uso cotidiano e
mostrou como combinar os sons; os alunos já conheciam os sons individuais de cada letra. Dias
depois, já estavam lendo placas nas ruas e em lojas, rótulos de embalagem, e praticamente tudo à
sua volta, assim como livros.
Montessori começou a treinar professores, abrir mais escolas, e escrever livros. Seu primeiro livro,
Il Metodo della Pedagogia Scientifica applicato all’educazione infantile nelle Case dei Babini [“O
Método da Pedagogia Científica aplicado à educação infantil na Casa das Crianças”], foi lançado
em inglês em 1912 com o título The Montessori Method [“O Método Montessori”] e virou best-
seller nos Estados Unidos. Ela não era uma filósofa abstrata como seu contemporâneo John Dewey.
Ela propôs um método específico para ajudar crianças a aprenderem e se tornarem independentes.
Seu livro foi traduzido para o chinês, o dinamarquês, o holandês, o francês, o alemão, o japonês, o
polonês, o romeno, o russo e o espanhol.
Montessori virou sensação. Professores aspirantes viajavam milhares de quilômetros para serem
treinados por ela. Em dezembro de 1913 ela visitou os Estados Unidos, onde conheceu o inventor
do telefone, Alexander Graham Bell, o gênio da eletricidade Thomas Edison, a ativista social Jane
Addams, e Helen Keller, que, apesar de cega e surda, havia se tornado uma mulher notavelmente
culta. Durante as quatro décadas seguintes, Montessori viajou por toda a Europa e a Ásia; apenas na
Índia ela treinou mais de mil professores.
Escolas Montessorianas foram estabelecidas por todo o mundo, mas sua influência diminuiu após
uma onda inicial de publicidade sobre a Casa dei Bambini. Preocupada com a supersimplificação de
seu trabalho, Montessori insistia em ter controle total sobre o treinamento de professores e sobre os
materiais montessorianos, e isso afastou muitos dos que a apoiavam. Ela sofreu forte oposição de
acadêmicos, especialmente nos Estados Unidos. Seu adversário mais influente foi William Hurd
Kilpatrick, seguidor de John Dewey e professor do prestigiado Teachers College da Columbia
University. Montessori certamente sofreu rejeição por ser mulher em uma época em que
administradores de escolas e professores de pedagogia eram predominantemente homens; ela era
católica, o que deixava muitos americanos desconfiados; sua formação acadêmica era em medicina,
e não pedagogia; e ela era italiana. Os americanos estavam desiludidos com a intervenção do
presidente Woodrow Wilson na Primeira Guerra Mundial, que não cumpriu a promessa de “tornar o
mundo seguro para a democracia”, e se voltaram para si mesmos, afastando-se da Itália e de tudo
que fosse europeu.
Maria e Mario Montessori, com a família dele, deixaram a Itália em 1936, quando o ditador fascista
Benito Mussolini submeteu todas as escolas ao controle do governo. Instalaram-se em Amsterdã,
passaram a Segunda Guerra Mundial na Índia, e depois voltaram a Amsterdã, sempre promovendo
as ideias montessorianas. A mais famosa aluna de uma escola montessoriana de Amsterdã foi uma
menina judia chamada Anne Frank, cujo comovente diário foi publicado após sua morte no campo
de concentração nazista de Bergen-Belsen.
Enquanto conversava com amigos em Noordwijk aan Zee, uma pequena cidade à beira do Mar do
Norte próxima da Haia, com Mario a seu lado, Maria Montessori sofreu uma hemorragia cerebral e
morreu, em 6 de maio de 1952. Tinha quase oitenta e dois anos. Ela considerava qualquer lugar
onde estivesse o seu lugar, por isso foi enterrada no cemitério de uma igreja católica em Noordwijk.
Quando os obituários foram divulgados, poucos americanos tinham ideia de quem ela era. No
entanto, alguns indivíduos de iniciativa rejeitaram a fracassada educação progressista e, voltando a
doutrinas esquecidas, redescobriram Montessori.
Em Greenwich, no estado americano de Connecticut, uma educadora determinada chamada Nancy
McCormick Rambusch não estava satisfeita com as escolas locais e lembrou-se de ter lido sobre os
resultados obtidos por Montessori ao dar às crianças liberdade para aprender. Rambusch foi a
Londres para receber treinamento no método montessoriano. Amigos começaram a mandar seus
filhos para serem educados por ela, e, em 1958, ela abriu a Escola Whitby, que iniciou o
renascimento do método montessoriano nos Estados Unidos. Quatro anos depois, na Escola
Montessoriana de Santa Monica, na Califórnia, Ruth Dresser, ex-professora de uma escola pública,
liderou o retorno do método à costa oeste, atraindo pais famosos como Robert Mitchum, Yul
Brynner, Michael Douglas, Cher Bono, e Sarah Vaughan. Hoje existem 155 escolas credenciadas
pela Associação Montessori Internazionale (AMI), fundada por Maria Montessori em 1929 para
manter os padrões de seu trabalho. Outras oitocentas escolas são credenciadas pela Sociedade
Montessori Americana (AMS), fundada por Rambusch em 1960, que aceita algumas adaptações do
método à cultura americana. Cerca de três mil outras escolas chamam a si mesmas de
“montessorianas”. Em uma grande reviravolta, duzentas escolas públicas estabeleceram programas
montessorianos.
Em uma escola montessoriana é possível ver como as crianças se desenvolvem quando têm
liberdade de movimento. É possível ver a concentração intensa e profunda dos alunos que escolhem
livremente suas atividades. Com materiais montessorianos, as crianças aprendem habilidades
importantes sozinhas, e ganham independência com o espírito libertador de Maria Montessori.

marquês de Lafayette
O marquês de Lafayette, guerreiro da liberdade, mudou a história. Ajudou a derrotar os britânicos
em Yorktown, garantindo a independência americana, e, na França, ajudou a derrubar dois reis e um
imperador. Jean-Antoine Houdon, o grande escultor do século XVIII, autor de bustos de muitos
grandes heróis, chamou Lafayette “o apóstolo e defensor da liberdade nos dois mundos”.
Stanley Idzerda, historiador da Cornell University, observou: “Lafayette só teve uma causa durante
sua longa vida: a liberdade humana. Jovem, arriscou sua vida na guerra e na revolução por ela. Na
maturidade, vivendo sob a mal disfarçada ditadura de Napoleão, regime que detestava, recordo
como tinha sido ferido, denunciado, condenado à morte, desprezado, preso, destituído e exilado -
tudo a serviço da liberdade humana. Pobre, impotente, sem perspectivas à época, Lafayette
perguntou: ‘Como amei a liberdade? Com o entusiasmo da religião, com o arrebatamento do amor,
com a convicção da geometria - eis como eu sempre amei a liberdade’.”
Lafayette foi um campeão incansável dos direitos naturais e o principal autr da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão. “Existem certos direitos naturais inerentes em toda sociedade dos
quais nem uma, nem todas as nações poderiam com justiça privar um indivíduo”, insistia.
Sustentava que esses direitos não estão “sujeitos à condição da nacionalidade”, e incluem “a
liberdade de consciência e opinião, garantias judiciais, e o direito de ir e vir”. Promovia o livre
comércio, além de lutar pela tolerância religiosa e pela liberdade de imprensa. Quando o governo
francês atacou os imigrantes, ele abrigou vários deles em sua própria casa, e gastou muito de seu
próprio dinheiro para ajudar a libertar escravos nas colônias francesas.
Ele fez mais do que qualquer pessoa para unir os amigos da liberdade por toda parte. Mantinha
contato com Thomas Jefferson, Thomas Paine, George Washington, Benjamin Franklin, James
Madison, James Monroe, John Quincy Adams, Daniel Webster, Andrew Jackson e James Fenimore
Cooper, entre outros americanos. Era amigo de Pierre-Samuel du Pont de Nemours, Germaine de
Staël, Benjamin Constant e Horace Say na França. Correspondia-se com Charles James Fox na
Inglaterra e Simón Bolívar, que ajudou a garantir a independência de Venezuela, Colômbia,
Equador, Peru e Bolívia. Lafayette incentivou os liberais italianos, os constitucionalistas espanhóis
e os guerreiros da liberdade gregos e poloneses. Louis Gottschalk, repeitado estudioso de Lafayette,
escreveu que “durante boa parte dos últimos 50 anos de sua longa vida, ele foi o maior defensor da
liberdade na Europa - liberdade para todos os homens, por toda parte.”
Lafayette certamente destacava-se numa multidão. Era alto e ossudo, com olhos verdes. Disse o
biógrafo Vincent Cronin: “Pálido, magro, ruivo, com nariz pontudo e testa recuada, parecia menos
um oficial do que um flamingo. Também não era um grande cortesão, pois sua fala era vagarosa e
esquisita.”
Washington saudava as capacidades de estrategista e comandante de Lafayette: “Ele possui talentos
militares incomuns, tem o pensamento rápido e certo, é perseverante, empreendedor e cuidadoso;
além disso, tem o temperamento conciliador e perfeitamente sóbrio, qualidades que raramente se
encontram na mesma pessoa.” Jefferson disse a Lafayette: “Segundo as ideias do nosso país, não
nos permitimos dizer justas verdades quando elas podem soar como bajulações. Contento-me
portanto em dizer apenas que amo você, sua esposa e seus filhos.”
Marie Joseph Paul Yvres Roche Gilbert du Motier nasceu em 6 de setembro de 1757, no Château de
Chavaniac, em Auvergne, no centro-sul da França, filho de Michel Louis Christophe Roche Gilbert
du Motier, marquês de La Fayette, coronel dos Granadeiros franceses. Descendia de uma longa
linhagem de aristocratas guerreiros, um dos quais lutou com Joana D’Arc contra os ingleses. A mãe
de La Fayette era Marie-Louise-Julie de la Rivière, cuja família era rica.
Quando ele tinha dois anos, seu pai foi morto por uma bala de canhão britânica na batalha de
Minden (a cerca de 40 milhas de Hanover, Alemanha) durante a Guerra dos Sete Anos, e ele se
tornou marquês de La Fayette (essa era a grafia de antes da Revolução Francesa). Um de seus
primeiros heróis foi Vercingetorix, que defendera a Gália contra Júlio César. Sua mãe morreu em
abril de 1770 e seu avô, o marquês de la Rivière, morreu pouco depois, deixando La Fayette com
uma renda anual digna de príncipes.
Aos 15 anos, ele conheceu Marie Adrienne Françoise de Noailles (conhecida como Adrienne), então
com 14 anos e se apaixonou. Eles se casaram cerca de um ano depois, em 11 de abril de 1774.
Segundo o biógrafo André Maurois, ela tinha “olhos grandes, pensativos, e um ar de inteligência
alerta”.
La Fayette ouviu dizer que os insurgentes americanos procuravam recrutas franceses, e viajou para
a América em 20 de abril de 1777. Em julho, conheceu o General George Washington em um jantar
na Filadélfia. Washington tinha apenas cerca de 11 mil homens em seu exército, mal aparelhados e
perseguidos pelos britânicos. La Fayette juntou-se às forças americanas quando elas evadiam um
ataque do General Charles Cornwallis. Foram acuados em Brandywine, Pensilvânia, e La Fayette
foi ferido na perna. La Fayette, que suportou as dificuldades em Valley Forge em 1777 e 1778,
tornou-se oficial de informações de Washington.
Ele decidiu pedir ajuda francesa para os americanos, viajando de Boston em janeiro de 1779. O rei
Luís XVI autorizou uma missão liderada por Jean Baptiste Donatien, conde de Rochambeay,
veterano da Guerra dos Sete Anos. Em 11 de março do ano seguinte, La Fayette voltou à América a
bordo do Hermione para dizer que seis navios de guerra e seis mil soldados vinham da França.
Washington pediu a La Fayette que levasse cerca de dois mil homens para a Virgínia, a fim de
limitar os danos causados pelos britânicos e vigiá-los. La Fayette pegou dinheiro emprestado de
mercadores de Baltimore para garantir sapatos e roupas para seus homens. La Fayette conseguiu
incomodar os britânicos e escapar.
Em junho de 1781, o general britânico Charles Cornwallis recebeu ordens para estabelecer uma
posição defensiva na Virgínia e mandar parte de suas forças para Nova York. La Fayette monitorou
os movimentos de Cornwallis enquanto ocupava a península de Yorktown, em frente a Cheasapeake
Bay, uma área de onde poderiam ser lançados ataques contra Filadélfia. Em 31 de julho,
Washington, que acampava em West Point, Nova York, ordenou que La Fayette aumentasse suas
forças tão rápido quanto possível, para que pudesse manter Cornwallis preso em Yorktown. O
almirante François-Joseph-Paul, conde de Grasse, vinha das possessões francesas no Caribe de
barco para Yorktown, e Washington e Rochambeau estavam a caminho.
Em 30 de agosto, a frota do almirante de Grasse - seis fragatas e vinte e oito navios de guerra, com
quinze mil marinheiros e três mil e cem fuzileiros - chegou a Yorktown. Estes navios impediram
Cornwallis de escapar pelo mar e ajudaram a trazer mais soldados americanos e franceses
rapidamente. Logo La Fayette estava comandando cinco mil e quinhentos soldados e três mil
milicianos. Os oito mil e oitocentos homens - provinciais, britânicos e mercenários de hesse -
ficaram em menor número quando Washington e Rochambeau chegaram em 9 de setembro. “Se
Cornwallis agora enfentava a possibilidade de render-se”, escreveu o historiador Louis Gottschalk,
“foi em grande parte porque Lafayette persistiu, quando outros teriam desistido ou preferido a
cautela, ou ainda, cedendo a uma forte tentação, preferido a ousadia excessiva”. O sítio de
Yorktown começou em 6 de outubro, e La Fayette ajudou a conquistar as posições britânicas.
Cornwallis rendeu-se em 19 de outubro de 1781. Gottschalk observa: “Ninguém (exceto talvez De
Grasse) contribuiu mais ou mais diretamente para a derrota de um dos melhores exércitos ingleses
quanto o jovem general da ‘sociedade’ parisiense.”
Washington instou La Fayette a “vir com Madame La Fayette e conhecer-me em minha vida
doméstica... Ninguém o receberia com mais amizade e afeição do que eu”. La Fayette visitou
Washington por 11 dias em agosto de 1784. Após despedir-se, nunca mais se viram novamente.
La Fayette trabalhou incansavelmente pela liberdade. Promoveu a maior liberdade de comércio
entre a França e os EUA, tornou-se membro fundador da Sociedade de Amigos dos Negros, e foi
membro da Sociedade de Manumissão de Nova York e do Comitê Britânico para a Abolição do
Comércio de Escravos. Em 1785, ele e sua esposa compraram duas fazendas na Guiana Francesa e
libertaram os quarenta e oito escravos que trabalhavam ali, dando-lhes terra com que começar a
prover a própria subistência. O objetivo era mostrar como a emancipação poderia ser realizada com
sucesso.
A questão da escravidão logo foi suplantada pela revolução. O governo francês assumiu dívidas
enormes durante a Guerra dos Sete Anos com a Inglaterra (1756-1763), e o a situação piorou
quando o governo ajudou consideravelmente a luta americana contra a Inglaterra. Para cobrar novos
impostos, Luís XVI concordou em convocar os Estados Gerais, uma assembleia de clero, nobres e
pagadores de impostos que não se reunia há um século e meio. Lafayette reclamou uma assembleia
verdadeiramente nacional, e Luís XVI finalmente concordou. Os representantes foram eleitos, e os
Estados Gerais se reuniram em Versalhes em maio de 1789.
Nessa época, para deixar claros os devidos objetivos das políticas públicas, La Fayette rascunhou a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Fora inspirado pela Declaração dos Direitos da
Virgínia, e seu rascunho refletia sua visão de que a maior ameaça à liberdade era o absolutismo real.
Ele mostrou o rascunho a Jefferson, que o elogiou e enviou uma cópia a James Madison, que então
pensava em uma Carta de Direitos para a América. A Assembleia Nacional começou a debater em
11 de julho. Três dias depois, a Bastilha, uma prisão medieval, foi tomada por cerca de oitocentas
pessoas furiosas, e a Revolução Francesa estava a caminho. Os membros da Assembleia Nacional se
convenceram de que a maior ameaça à liberdade era a violência das turbas, e insistiram em que a
Declaração fosse modificada. A versão final trazia uma visão mais completamente desenvolvida da
liberdade do que a Declaração de Independência americana. Quanto a arranjos constitucionais
particulares, La Fayette acreditava que deveria haver separação de poderes, mas foi derrotado
quando a Assembleia Nacional deu 490 votos contra 89 para uma legislatura com uma única
câmara. Num gesto em prol de ideais republicanos, ele mudou a grafia de seu nome para Lafayette.
Milícias de cidadãos formadas por toda a França se uniram sob o nome de Guarda Nacional, que
servia à Assembléia Nacional. Lafayette, comandante nomeado da Guarda Nacional de Paris, salvou
pessoas de serem assassinadas pelas multidões. Ele resgatou o rei e a rainha da turba enfurecida em
Versalhes e escoltou a família real até o palácio das Tulherias em Paris. Durante a noite de junho de
1791, Luís XVI secretamente fugiu para Varennes, próxima à fronteira belga, numa tentativa de
convocar os monarquistas. Lafayette acordou seu hóspede, Thomas Paine, autor de Direitos do
homem, e exclamou: “Os pássaros foram embora voando!” Indignado, já que ele havia garantido ao
povo que o rei não iria a lugar nenhum, Lafayette assinou o primeiro mandado na história francesa
de prisão do rei, e trouxe a família real de volta a Paris.
Os jacobinos queriam sangue, e ganhavam mais seguidores a cada dia. Esse grupo de admiradores
igualitaristas de Jean-Jacques Rousseau tirava seu nome do salão onde se reuniram pela primeira
vez. Entre eles, estavam Paul Marat, René Hebert, Pierre Brissot e Maximilien de Robespierre. Eles
achavam que Lafayette deveria ser executado por traição. Para escapar, Lafayette partiu em direção
à fronteira belga com o propósito de chegar até a Holanda. Foi detido em Rochefort, na Bélgica,
lugar controlado pelo imperador austríaco François II.
Considerado um revolucionário perigoso, foi enviado de masmorra a masmorra e teve que aguentar
enxames de mosquitos, o mau cheiro dos esgotos e o frio gelado do inverno. Tiraram-lhe todos os
seus pertences, com exceção de uns poucos livros, incluindo uma cópia de Bom senso , de Thomas
Paine. Lafayette escreveu a um amigo: “A liberdade é o assunto constante de minhas meditações
solitárias… É o que um dos meus amigos certa vez chamou de “santa loucura”.
Enquanto isso, durante o Terror em 1793 e 1794, quando Robespierre ordenava sessenta execuções
por dia, a mãe, a avó e a irmã de Adrienne Lafayette foram guilhotinadas, e Adrienne foi presa em
Paris. Ela acabou sendo solta graças, em parte, aos esforços do diplomata americano James Monroe,
que também havia ajudado a libertar Thomas Paine de uma prisão francesa. Ela conseguiu que
George Washington Lafayette, na época um garoto de quatorze anos, encontrasse abrigo nos
Estados Unidos. Ele levou a carta dela a George Washington, que dizia: “Eu lhe envio o meu filho”.
François II deixou que ela e as filhas Anastasie e Virgine ficassem com Lafayette na prisão. Como
explica René de Chambrun, descendente e estudioso de Lafayette, “Lafayette já não falava com um
único ser humano em seu completo isolamento do mundo externo há quase um ano quando, de
repente, no dia 15 de outubro de 1795, a porta de sua cela se abre. Entram no quarto mal iluminado
uma mulher e duas crianças. Esse foi o instante mais dramático de sua vida”.
Os amigos de Lafayette, incluindo George Washington, a influente francesa Germaine de Staël, e o
inglês James Fox tentaram livrá-lo da prisão. Finalmente, depois que os exércitos de Napoleão
começaram a varrer a Áustria em direção ao oriente em 1797, eles foram libertos e puderam viajar
para Holstein, uma província da Dinamarca que provavelmente não se envolveria na guerra.
A maioria das propriedades de Lafayette foi confiscada e vendida durante a revolução francesa. A
família foi deixada com La Grande, um castelo abandonado do século XV aproximadamente 55
quilômetros ao leste de Paris. Eles limparam alguns quartos onde poderiam morar. O presidente
Thomas Jefferson fez com que o governo reembolsasse Lafayette por alguns dos suprimentos que
ele havia comprado para seus soldados durante a revolução americana, e isso tornou possível o
conserto do telhado. Jefferson insistiu que Lafayette estabelecesse residência nos Estados Unidos,
oferecendo-lhe terra na recentemente comprada Louisiana.
Em outubro de 1807, Adrienne teve febre e começou a delirar. A família se reuniu à sua volta. Na
noite de Natal, ela abraçou o pescoço de Lafayette e susurrou: “Je suis toute à vous” (“Sou toda
sua”). Ela procurou seus dedos, apertou-os, e faleceu. Lafayette escreveu a Jefferson, “Quem
poderia compreender melhor do que você a perda de uma esposa amada?”
René de Chambrun relatou que, em La Grange, todos os dias Lafayette acordava às cinco horas da
manhã e “ficava na cama por duas horas, escrevendo para amigos da liberdade em todo o mundo:
poloneses, húngaros, gregos, espanhóis e portugueses, americanos do norte e do sul… e, sozinho e
ajoelhado, segurando um pequeno retrato de Adrienne e um cacho de seu cabelo, passava um quarto
de hora em devoção meditativa”.
Embora derrotado em Waterloo em 1815, Napoleão ainda era o comandante militar mais temido da
Europa, e tentou manter-se no poder. Lafayette, que havia sido eleito para a nova Câmara dos
Deputados, mostrou-se indignado com as três milhões de vidas de franceses perdidas nas guerras de
Napoleão, e exigiu que ele abdicasse. Napoleão foi logo exilado, mas realistas fanáticos tomaram o
poder e assassinaram muitos de seus oponentes. Lafayette fundou um grupo, Amigos da Liberdade
de Imprensa, e defendeu a tolerância.
Em 1823, Lafayette aceitou o convite do presidente (americano) James Monroe para uma viagem de
despedida à América. Quando chegou a Nova York em 15 de agosto de 1824, foi recebido por
aproximadamente trinta mil pessoas. Estima-se que cinquenta mil tenham aplaudido Lafayette e
jogado flores durante seu trajeto em uma carruagem puxada por quatro cavalos brancos até a
prefeitura de Nova York. Mães levaram seus filhos para pedir-lhe a bênção, e cerca de seis mil
pessoas compareceram a um baile em sua homenagem. Ao começar uma viagem de treze meses
através de todos os vinte e quatro estados, ele louvou os americanos pelo que haviam conquistado:
“Nos Estados Unidos, a soberania popular, readquirida por uma Revolução gloriosa e imaculada,
universalmente reconhecida, garantida não apenas por uma constituição … mas também por
processos jurídicos que respeitam a vontade pública. Ela é exercida por eleições livres, gerais e
frequentes … Dez milhões de pessoas, sem monarquia, sem corte, sem aristocracia, sem
corporações de ofício, sem impostos desnecessários ou impopulares, sem polícia estatal e sem
nenhuma desordem, alcançaram o mais alto grau de liberdade, segurança, prosperidade e felicidade
que a civilização humana poderia imaginar … Na França, ao contrário, não há mais eleições
municipais ou administrativas, nem eleição popular alguma, nem liberdade de imprensa, nem júri…
nem representação alguma da vontade do povo.”
Em Bunker Hill, Massachusetts, o orador Daniel Webster declarou: “Os Céus designaram que a
centelha da liberdade deve ser conduzida através de você, do Novo Mundo para o Velho.” Lafayette
chegou à Filadélfia acompanhado por quatro carruagens, que levavam cerca de 160 veteranos da
Revolução Americana. Ele parou no campo de batalha de Brandywine, onde havia sido ferido, e
voltou a Yorktown, que ainda estava em ruínas. Foi recebido por grandes multidões em todos os
lugares: dez mil pessoas em Newburgh (Nova York), cinquenta mil em Baltimore, e setenta mil em
Boston. Foi aclamado em Richmond, Columbia, Charleston, Savannah, Augusta, Montgomery,
Mobile, New Orleans, Natchez, St. Louis, Nashville, Lexington, Cincinnati, Pittsburgh, Buffalo e
Albany. Apareceu em igrejas católicas, igrejas protestantes, e reuniões em lojas maçônicas. Foi a
recepções abertas a todos, e publicamente dava as boas-vindas a todos os negros e índios que
compareciam. Lafayette desceu à cripta da tumba de George Washington em Mount Vernon. Houve
uma recepção na universidade de Virginia. Viu John Adams em Quincy, Massachusetts, e James
Madison em Montpelier, Virginia.
Então Lafayette chegou a Monticello. “O marquês saiu de sua carruagem e, mancando, caminhou o
mais rápido que pôde em direção à casa,” explicou o biógrafo Brand Whitlock. “Entre as colunas
brancas da entrada surgiu a magra figura de um homem curvado pela idade, vestindo a casaca, o
longo colete e as meias altas de outra época. Ele havia cortado o cabelo longo, finos cachos brancos
emolduravam suas têmporas fundas e bochechas encovadas. Cambaleando escada abaixo, veio em
sua direção.
“‘Ah, Jefferson!’, exclamou Lafayette.
“Os dois velhos homens aceleraram os passos.
“‘Ah, Lafayette!’, exclamou Jefferson.
“Não houve necessidade de eloquência! Eles caíram no choro e se abraçaram.”
Algum tempo depois, o secretário de Lafayette, Auguste Levasseur, descreveu uma cena admirável
em Charlottesville: “O Convidado da Nação, em um banquete patriótico, sentado entre Jefferson e
Madison”.
Em 7 de setembro, Lafayette desceu o rio Potomac no barco a vapor Mount Vernon, e voltou à
França a bordo da fragata Brandywine.
Lafayette começou a passar os invernos em Paris. Nas noites de terça-feira, oferecia recepções que
atraíam liberais da América e da Europa. O autor americano James Fenimore Cooper relatou que as
reuniões eram “excepcionalmente bem frequentadas.” Benjamin Constant e Alexandre von
Humboldt compareciam, assim como membros da Câmara dos Deputados. O historiador Lloyd
Kramer escreveu que “as recepções de Lafayette em Paris, assim como suas longas conversas com
convidados em La Grange, facilitaram o contato entre diferentes gerações tanto quanto contribuíram
para forjar ligações entre políticos e escritores ou entre seus amigos franceses e estrangeiros.”
Enquanto isso, em 1824, Carlos X havia se tornado rei da França e restabelecido o poder da Igreja e
do trono. A Igreja Católica retomou o controle das escolas francesas, e qualquer pessoa condenada
por cometer sacrilégio dentro de uma igreja poderia ser executada. Em 26 de julho de 1830, o rei
assinou decretos dissolvendo a Câmara dos Deputados, suprimindo a liberdade de imprensa e
restringindo o direito ao voto. Paris se revoltou. “Façam uma revolução”, insistia Lafayette, aos
setenta e três anos. “Sem ela, não teremos feito nada além de um tumulto”. Ele teve um papel-chave
na deposição de Carlos X e na escolha de seu successor, Louis-Philippe, um monarca limitado por
uma constituição que dava alguma proteção à liberdade individual.
Lafayette continuou a ser um defensor da liberdade. Defendeu indivíduos presos por crimes
políticos, opôs-se à pena de morte e à escravidão e apoiou insurgentes na Bélgica. Também apoiou a
liberdade da Polônia, e – contrariando as leis francesas sobre refugiados – escondeu patriotas
poloneses como Antoine Ostrowski e Joachim Lelewell em sua propriedade.
No começo de fevereiro de 1834, Lafayette reclamou de dor e fadiga, talvez causadas por excesso
de exposição ao ar frio. Estava com pneumonia. Em 20 de maio de 1834, em companhia dos filhos,
Lafayette levou aos lábios uma medalha com um retrato de Adrienne e deu seu ultimo suspiro.
Tinha setenta e sete anos. O funeral aconteceu na igreja da Assunção, em Paris. Dezenas de
milhares de pessoas foram assistir a três mil soldados da Guarda Nacional acompanharem o caixão
de Lafayette ao humilde cemitério de Picpus, onde ele se juntaria a Adrienne e a tantas vítimas
guilhotinadas da Revolução Francesa. Lafayette foi enterrado na terra americana que havia trazido
no Brandywine.
Lafayette foi um ídolo durante o século XIX, especialmente nos Estados Unidos.. Seu retrato estava
em todos os lugares. Os Amigos Americanos de Lafayette têm mais de mil retratos históricos do
marquês. Dezenas de cidades, condados e escolas receberam seu nome. “Proclamem-no um dos
maiores homens de sua época”, disse John Quincy Adams em uma homenagem, “e ainda não terão
feito justiça”.
O neto de Lafayette herdou La Grange, e casou-se com uma inglesa (uma Tory) que depositou os
livros, papéis e outros objetos pessoais de Lafayette no sótão da torre noroeste, um espaço que ele
chamara de couloir des polonais (“esconderijo dos poloneses livres”). A maioria dos historiadores
do século XX tratou Lafayette como apenas um simplório vaidoso e doutrinário.
Felizmente, surgiu um interesse renovado por Lafayette. René de Chambrun, descendente de
Virginie, filha de Lafayette, comprou La Grange em 1955 e explorou o sótão da torre noroeste. Ele
e sua esposa encontraram verdadeiros tesouros, que sobreviveram graças à ausência de umidade e
vermes. A biblioteca de três mil volumes de Lafayette estava lá, assim como vinte e cinco mil cartas
para pessoas como Jefferson, Washington e Madison. O único livro derivado deste material é uma
biografia de Adrienne de 1961, escrita por André Maurois, amigo de de Chambrun. Os papéis foram
microfilmados em sessenta e quatro rolos e estão na biblioteca do Congresso americano.
O historiador Lloyd Kramer relembra a revelação pela qual passou quando ajudava a editar a vasta
coleção de cartas de Lafayette da Universidade de Cornell, recolhida em seu local de nascimento no
Château de Chavaniac: “Logo percebi o valor histórico da leitura de ‘fontes primárias’, e passei a
acreditar que a vida de Lafayette havia sido muito mais variada e complexa do que as irônicas
narrativas históricas sugeriam. Ler e discutir a correspondência de Lafayette com meus colegas
editores fez com que eu me perguntasse como a figura medíocre que aparecia nos livros de história
modernos poderia ser o mesmo homem a quem seus contemporâneos recorreram em tantas crises
políticas, pessoais e revolucionárias desde os anos 1770 até os de 1830.”
Mesmo um biógrafo ácido como Oliver Bernier reconheceu que “quaisquer que tenham sido suas
limitações, é mérito de Lafayette ter-se agarrado à ideia da liberdade. Nada pode substituir o direito
de falar, pensar, organizar e governar livremente: daí derivam todos os benefícios. Mesmo com sua
vaidade, sua obstinação, sua auto-satisfação, sua sede por popularidade, Lafayette nunca perdeu de
vista esse princípio inteiramente desejável. Por isso ele mereceu a gratidão de seus contemporâneos
e a estima das gerações posteriores. Em um mundo onde a liberdade é extremamente escassa,
existem heróis piores do que um homem que nunca deixou de idolatrá-la.” Aquilo que os críticos de
Lafayette concedem é o mais importante: ele ainda é o grande herói de dois mundos.

Richard Cobden
O século XIX foi o período mais pacífico da história moderna. Não houve grandes guerras entre a
queda de Napoleão em 1815 e o início da 1a Guerra Mundial em 1914. Esta paz extraordinária
seguiu-se a séculos de guerras intermináveis e antecedeu a colossal carnificina do século XX.
Uma das principais razões de a paz ter prevalecido foi a não-intervenção ter-se tornado a grande
marca da política estrangeira. As nações raramente tentavam intimidar umas às outras, motivadas
sobretudo pela política econômica. Houve uma liberdade sem precedentes de movimento para
pessoas, bens e capitais. Ao reduzir a intervenção em questões econômicas, os governos reduziram
os riscos de que as disputas econômicas se transformassem em disputas políticas. Não havia muito
incentivo econômico para a conquista militar, porque as pessoas de um lado de uma fronteira
poderiam ter acesso a certos recursos do mesmo jeito que as pessoas do outro lado da mesma
fronteira. O comércio se expandiu, fortalecendo o interesse das nações em sua mútua e contínua
prosperidade de fornecedores e consumidores. Se o livre mercado nunca foi uma garantia da paz,
ele reduziu o risco de uma guerra muito mais do que qualquer política pública que jamais tenha
existido.
Em tudo isso, um nome paira acima dos outros: Richard Cobden, empreendedor inglês da área de
tecidos, um homem sem rodeios, que abandonou seus negócios para realizar uma cruzada de três
décadas. Ele buscou as estratégias políticas de maior sucesso para o livre comércio e formulou um
decisivo argumento moral em seu favor. Seus inspirados discursos atraíram milhares de pessoas, e
levantaram muito dinheiro. Viajou por toda a Europa, pelos Estados Unidos, pelo norte da África e
pelo oriente próximo, anunciando o evangelho do livre comércio a reis e plebeus.
“Ele não tinha nenhuma qualidade física marcante”, observou John Morley, seu principal biógrafo.
“Em sua juventude, era fraco de corpo; depois, tornou-se quase garboso. Tinha uma cabeça grande e
imponente, e o charme indescritível de um olhar sincero. Seus traços não indicavam alguém
dominador, mas tornavam-se iluminados e atraentes pelo fulgor de sua inteligência, simpatia e
firmeza. Em sua boca havia uma mobilidade conquistadora. Sua voz era límpida, nunca monótona,
doce e penetrante; no entanto, praticamente não tinha o ritmo, a profundidade ou os diversos
recursos de que frequentemente dispunham os oradores que atraíam multidões. É fato que não lhe
faltava um fogo nervoso, ainda que não fosse um fogo em cujas chamas brilhassem as cores
radiantes de uma imaginação forte. Antes, tratava-se do luzir de uma razão amplamente testada, de
engenhosidade intelectual, da habilidade argumentativa. Vinham de sua sinceridade transparente,
ideias claríssimas e propósito definido.”
Cobden nasceu em 3 de junho de 1804, o quarto de 11 irmãos, perto de Heyshott, Sussex, na
Inglaterra. Seu pai, William Cobden, parece ter sido um fazendeiro de poucos talentos, pois ele e e
sua esposa, Millicent Amber, não conseguiram evitar a falência. Em 1819, tornou-se funcionário do
armazém de tecidos de seu tio, mandando dinheiro para casa regularmente. Tornou-se caixeiro
viajante, e doze anos depois abriu seu próprio armazém, especializando-se em calicó e musselina.
Em 1833, Cobden fez sua primeira viagem de negócios ao estrangeiro - a Paris. No ano seguinte, foi
à França e à Suíça. Dois anos depois, passou mais de um mês no leste dos EUA, tendo ficado muito
impressionado com o espírito empreendedor americano. Logo depois, viajou pela Espanha e pelo
Mediterrâneo, observando como todos os tipos de pessoas cooperam pacificamente nos mercados.
Enquanto isso, crescia o movimento político pelo livre mercado. As barreiras comerciais mais
absurdas eram as tarifas sobre corn[“milho”], que era como os ingleses chamavam qualquer tipo de
grão. Essas tarifas incluíam impostos sobre o pão, um alimento fundamental para milhões de
pessoas. Em 1836 surgiu a Associação Contra a Lei dos Grãos. Apesar de seus fundadores terem
apresentado um forte argumento lógico a favor do livre mercado, não obtiveram nenhum resultado.
Em 1836 ou 37, um homem chamado John Bright pediu que Cobden desse uma palestra sobre
educação, e os dois iniciaram um ótimo relacionamento. Bright, nascido em 16 de novembro de
1811, era filho de um tecelão de algodão de Rochdale. Assim como Cobden, sua educação formal
encerrou-se antes da universidade, mas ele manteve seu amor pela literatura inglesa. Era quaker e
seus antepassados tinham sido presos por suas ideias não-conformistas (não-anglicanas); por isso,
desenvolveu um fervor moral pelos assuntos de seu tempo. Lapidava sua oratória em praças
públicas, reuniões nas igrejas e outros encontros.
O movimento contra a lei dos grãos
Cobden e Bright ajudaram os defensores do livre mercado a se concentrar em três assuntos
principais. Em primeiro lugar, eles estabeleceram um objetivo radical e inspirador: abolir a lei dos
grãos. Cobden convenceu todos os que o apoiavam que cada xelim da tarifa se transformava em
miséria para o povo. Modificar as tarifas, uma posição favorecida pela mentalidade de concessões
da Câmara de Comércio, estava fora de questão.
Em segundo lugar, o livre comércio capturaria a imaginação das pessoas se o assunto se tornasse
uma questão moral. “Parece-me”, escreveu Cobden para um editor de Edimburgo, “que o espírito
moral e até mesmo religioso pode ser injetado nessa questão [livre comércio] e, se ela for conduzida
da mesma maneira que foi a questão da escravidão, será irresistível”.
Em terceiro lugar, o sucesso precisaria de uma campanha nacional que coordenasse associações
contra a lei dos grãos por toda a Inglaterra – a missão da Anti-Corn-Law League [“Liga contra a lei
dos grãos”], fundada em março de 1839. Para tanto, era necessário que Cobden se dedicasse a
levantar fundos. Ele então fez com que seu negócio de venda e estampa de calicó fosse transferido
para os seus sócios.
Cobden atacou a lei dos grãos, que deixavam as pessoas na miséria. “Ele conhecia um lugar”, notou
o biógrafo Morley, “onde cem alianças de casamento foram penhoradas em apenas uma semana
para que os proprietários pudessem comprar pão; e outro lugar onde homens e mulheres subsistiam
fervendo urtigas, e desenterravam as carcaças apodrecidas do gado para não morrer de fome”.
Cada vez mais Cobden e Bright apareciam juntos no mesmo palanque, e tinham um impacto muito
maior do que quando estavam sozinhos. "Cobden sempre falava primeiro”, explicou George
Macaulay Trevelyan, biógrafo de Bright, “desarmando o preconceito e expondo com argumentos
econômicos claros em ilustrações familiares os prejuízos que fazendeiros e trabalhadores, ou
fabricantes e operários, sofriam por causa do funcionamento da Proteção. Quando a audiência
estava mais simpática às ideias, então – para usar as palavras de Bright – ‘eu me levantava e entrava
no ringue’... Sua contribuição mais vital e característica era a paixão com a qual reforçava seus
raciocínios, e a audácia e indignação moral que inspirava nos seus ouvintes. E era nesse ponto que
Cobden, enquanto retor, era necessariamente mais fraco. Cada um supria com suas qualidades as
deficiências do outro. A conhecida amizade entre eles, a total ausência de rivalidade e interesse
pessoal, o fervor apostólico que entusiasmava esses missionários tão diferentes dos políticos Whig e
Tory comuns... Cobden e Bright viajavam quase sem parar, muitas vezes atraindo multidões que
chegavam aos milhares”.
Enquanto ainda faltava um longo caminho para a campanha do livre comércio atingir seu clímax,
Cobden se casou com Catherine Anne Williams, uma charmosa galesa, irmã de um de seus amigos.
Partiram em lua de mel para França, Suíça e Alemanha – o que acabou sendo a última vez que eles
passaram tanto tempo juntos.
Cobden concluiu que provavelmente não lograria sucesso enquanto fosse apenas um agitador das
ruas. Tinha que trabalhar dentro do parlamento também. Depois de uma tentativa malsucedida,
Cobden foi eleito em 1841. Exerceu influência considerável por causa de sua capacidade oratória e
sua influência popular.
Em 10 de setembro de 1841, Elizabeth, a esposa de Bright, morreu de tuberculose depois de menos
de dois anos de casamento. Bright ficou devastado. Três dias mais tarde, seu parceiro estava ao seu
lado. “O Sr. Cobden”, lembrava Bright, “se aproximou de mim como um amigo e falou, como se
pode esperar, palavras de condolência. Depois de um tempo, olhou para cima e disse: ‘há milhares
de casas na Inglaterra nesse momento onde esposas, mães e filhos estão morrendo de fome. Pois
bem’, disse, ‘quando passar a pior parte da sua tristeza, sugiro que venha comigo, e não
descansaremos até que a lei dos grãos seja abolida.’ Senti em minha consciência que tratava-se de
uma obra que precisava ser realizada, e portanto aceitei seu convite, e desde aquele momento, nós
nunca cessamos de laborar com empenho em nome da resolução que havíamos feito.”
Em setembro de 1845, enquanto uma torrencial tempestade varria as ilhas britânicas, Cobden disse
a Bright que estava exausto. Eles haviam passado mais de cinco anos viajando e se apresentando
para grandes públicos noite após noite. Cobden quis desistir. Bright respondeu: “Sua aposentadoria
seria equivalente à dissolução da Liga. Seu principal motor desapareceria. Eu não posso de forma
alguma tomar o seu lugar. Tal qual um assistente, posso lutar, mas existem incapacidades da minha
parte, de que tenho plena consciência, que me impedem de ser mais do que um auxiliar no trabalho
que temos feito.
Enquanto isso, as tempestades persistiam, acelerando uma praga nas plantações de batata, que já
havia arruinado colheitas nos Estados Unidos, Holanda e França. Os sinais da praga apareceram na
Inglaterra. Pessoas informadas estavam preocupadas sobre o que seria da miserável Irlanda, onde
quase todos dependiam das batatas para sobreviver. Com exceção da província nordeste de Ulster, a
Irlanda não havia passado por uma revolução industrial, e acreditava-se que os camponeses
irlandeses eram os mais pobres da Europa – em situação pior do que os escravos americanos.
Milhões de camponeses irlandeses viviam em habitações de pau a pique sem qualquer mobília.
Enfim, as plantações de batata apodreceram em toda parte. Mais de um milhão de camponeses
morreram de fome e de epidemias relacionadas, como o tifo e a cólera. E centenas de milhares
tiveram de emigrar para outras regiões.
Robert Peel, primeiro ministro Tory, relutantemente concluiu que a única solução imediata seria
abolir a lei dos grãos e permitir que os irlandeses famintos comprassem comida importada barata –
mesmo que isso pudesse provocar uma rebelião Tory que acabaria com sua carreira política. Peel
anunciou uma medida para a completa abolição da lei dos grãos gradativamente ao longo de três
anos. Sua medida se tornou lei em 26 de junho de 1846. Peel teve seu mandato impugnado três dias
depois.
A liberalização do comércio
A abolição da lei dos grãos era só o começo da liberalização do comércio. Nas três décadas
seguintes, a Inglaterra reduziu o número de produtos importados tarifados de 1.152 para 48 - estes
eram basicamente produtos de luxo com baixas tarifas.
Apesar de os países europeus manterem suas tarifas proibitivas, a Inglaterra prosperou. Muita
comida barata entrou no país, e os trabalhadores trocaram a agricultura pela manufatura. Então, à
medida em que outros países se industrializavam, muitos trabalhadores foram para o setor de
serviços. A Inglaterra tornou-se a líder mundial inquestionável de navegação, comércio, seguros e
finanças. As importações subiram 701%, e as exportações 673%. Os salários em espécie na
Inglaterra aumentaram cerca de 59% para os trabalhadores agrícolas, e 61% para os trabalhadores
da indústria.
Cobden e sua família passaram um mês descansando no País de Gales durante sua viagem por toda
a Europa. Segundo Morley, seu biógrafo, “por toda parte ele foi recebido como um grande
descobridor de uma ciência que interessa a quase toda a humanidade muito mais do que qualquer
outra, a ciência da riqueza. Ele tinha convencido o país mais rico do mundo a revolucionar sua
política comercial. As pessoas olhavam para ele como se tivesse descoberto um segredo
formidável”.
As viagens reafirmavam a visão de mundo cosmopolita e humanitária de Cobden, que escreveu a
um amigo: “Não sou daqueles que gostam de louvar a raça anglo-saxônica como se fosse superior a
todas as outras em tudo, pois, quando lembramos que devemos nossa religião aos asiáticos, nossa
literatura, arquitetura e belas artes principalmente aos gregos, nossos algarismos aos árabes, nossa
civilização aos habitantes da Itália e grande parte de nossas ciências físicas e invenções mecânicas
aos alemães - quando lembramos destas coisas, devemos moderar nossas pretensões de
exclusividade.”
A Guerra da Crimeia
Logo após sua volta à Inglaterra, Cobden foi levado mais uma vez às discussões sobre políticas
públicas por indicação do belicoso Lord Palmerston ao Ministério de Relações Exteriores (Foreign
Office). Em 1854, Palmerston arrastou a Inglaterra à Guerra da Crimeia, supostamente para manter
a balança de poder, salvando o corrupto império turco da gananciosa Rússia, que havia acabado de
devastar a Hungria. Cobden e Bright apoiaram a não-intervenção (e a libertação das colônias
inglesas) praticamente sozinhos. Nas eleições parlamentares seguintes, em 1857, ambos foram
derrotados.
A guerra de dois anos acabou se revelando uma carnificina inútil, que custou as vidas de
aproximadamente 25 mil soldados ingleses. Ela manchou a reputação de generais e o prestígio da
Inglaterra. A única estrela que surgiu foi Florence Nightingale, que organizou eficientes serviços de
enfermagem que reduziram dramaticamente a taxa de mortalidade entre os soldados feridos. Seu
corajoso trabalho inspirou o movimento da Cruz Vermelha.
Por várias décadas, a política externa inglesa retornou à não-intervenção, como Cobden e Bright
tinham defendido. A Inglaterra não participou da Guerra Franco-Austríaca, da Guerra Civil
Americana, da Guerra Dinamarquesa, da Guerra Franco-Prussiana e das guerras posteriores entre a
Turquia e a Rússia. Em 1859, tanto Cobden quanto Bright tinham sido reeleitos ao Parlamento.
Em 21 de julho de 1859, Bright proferiu um discurso em que sugeriu que a Inglaterra poderia cortar
seus gastos militares – grande parte dos quais era para proteção contra um possível ataque da França
– e que ambos os países deveriam retirar suas restrições ao comércio para ajudar a promover a paz.
Inspirado por essa ideia, o conselheiro comercial do governo francês, Michel Chevalier, instou
Cobden a tentar convencer o imperador da França, Luís Bonaparte, já que Cobden tinha sido tão
bem-sucedido em convencer a Inglaterra a liberalizar o comércio. Cobden consultou autoridades
inglesas e negociou um tratado comercial que estipulava que a Inglaterra acabaria com suas tarifas
sobre produtos franceses e reduziria as tarifas sobre os vinhos franceses em 85%. A França
substituiria suas proibições de importação por tarifas a serem reduzidas a menos de 25% dentro de 5
anos. O prazo inicial do tratado seria de 10 anos. Em 23 de janeiro de 1860, o tratado foi assinado
por Luís Bonaparte, invocando seus poderes executivos. Apesar da obstinada oposição dos Tories, o
Parlamento aprovou o tratado.
Ele teve um impacto dinâmico. Entre 1862 e 1866, a França negociou tratados de liberalização do
comércio com Zollverein (união aduaneira alemã), Itália, Bélgica, Países Baixos, Suíça, Espanha,
Portugal, Suécia, Noruega, os Estados Papais e as cidades comerciais do norte alemão. A maioria
desses, por sua vez, liberalizou o comércio entre si. Restrições ao comércio em águas internacionais
como o canal do Báltico e do Mar do Norte (1857), Danúbio (1857), Reno (1861), Scheldt (1863) e
Elba (1870) foram reduzidas ou eliminadas. Até a Rússia diminuiu um pouco suas tarifas, em 1857
e 1868. Como cada um dos tratados observava o princípio da “nação mais favorecida”,
liberalizaram o comércio não apenas para as nações signatárias, mas para todas as outras também.
As pessoas puderam conduzir seus negócios cotidianos com uma liberdade inédita na história
europeia.
Em uma ocasião nos seus últimos anos, Cobden passeava com um amigo pelo cemitério da Catedral
de São Paulo, onde estão enterrados muitos dos heróis mais famosos da Inglaterra. O amigo sugeriu
que Cobden poderia encontrar ali um lugar honrado. Cobden respondeu: “Espero que não. Meu
espírito não poderia descansar em paz entre esses homens de guerra. Não, não, catedrais não são
feitas para conter os restos mortais de homens como Bright e eu.”
Quando se aproximava de seu aniversário de 61 anos, Cobden sofreu graves ataques de asma.
Respirar tornou-se uma luta mortal. Em uma pensão londrina, aonde ia para relaxar nas
proximidades da Casa dos Comuns, morreu em um domingo, dia 2 de abril de 1865. John Bright
estava entre aqueles ao seu lado. “Só tenho a dizer que, após 20 anos da mais íntima e quase
fraterna amizade,” Bright lamentou, “eu mal sabia o quanto o amava até o momento em que o
perdi”.

William Penn
Willian Penn foi o primeiro grande herói da liberdade americana. Durante o final do século XVII,
quando os protestantes oprimiam os católicos e os católicos oprimiam os protestantes, e ambos
oprimiam os Quakers e os judeus, Penn estabeleceu um santuário americano que protegia a
liberdade de consciência. Em quase todo lugar, os colonos roubavam terras dos índios, mas Penn
viajava desarmado entre os índios e negociava aquisições pacíficas. Insistia que as mulheres
mereciam ter os mesmo direitos que os homens. Estabeleceu na Pensilvânia uma constituição
escrita que limitava o poder do governo, trazia um código penal humanitário e garantia várias
liberdades fundamentais.
Pela primeira vez na história moderna, uma grande parte da sociedade ofereceu direitos iguais ao
povo de diferentes raças e religiões. O exemplo dramático de Penn causou um grande alvoroço na
Europa. Voltaire, o filósofo francês, um campeão da tolerância religiosa, cobriu-lhe de elogios:
“Willian Penn talvez possa, com razão, orgulhar-se de ter trazido à terra a Idade de Ouro que,
provavelmente, nunca existiu realmente fora dos seus domínios”.
Penn foi a única pessoa que fez grandes contribuições à liberdade tanto no Novo Mundo como no
Velho. Antes de conceber a idéia da Pensilvânia, tornou-se o principal defensor da tolerância
religiosa na Inglaterra. Foi preso seis vezes por expor corajosamente suas opiniões. Na prisão,
escrevia um panfleto depois do outro, o que deu aos Quakers uma literatura contra a intolerância.
Sozinho, desafiou as opressivas políticas do governo nos tribunais – um de seus processos ajudou a
garantir o julgamento por júri. Penn usou suas habilidades diplomáticas e relações familiares para
tirar grandes números de Quakers da cadeia. Salvou muitos da forca.
Apesar da clareza notável da visão de Penn para a liberdade, ele tinha um curioso ponto cego em
relação à escravidão. Era dono de alguns escravos nos Estados Unidos, assim como vários outros
Quakers. O abolicionismo só se tornou uma posição amplamente aceita entre os Quakers em 1758,
quarenta anos depois da morte de Penn. Os Quakers estavam muito à frente da maioria dos
americanos, mas é surpreendente como pessoas com posições humanitárias pudessem mesmo
chegar a considerar ser donos de escravos.
Existem apenas dois retratos de Penn que foram pintados durante sua vida; em um deles, ele
aparece como um belo jovem e, no outro, como um velho determinado. Um biógrafo observou que
o jovem Penn tinha “um rosto oval, de uma beleza quase feminina, mas com traços fortes, a rudez
do nariz curto contrastando com uma boca quase sensual. O que dava ao seu rosto sua característica
dominante eram os olhos, brilhando com uma determinação negra e luminosa... Sabe-se por
descrições verbais que Penn era bastante alto e atlético. Em conjunto, o jovem rapaz devia ser tanto
belo como impressionante”.
William Penn nasceu no dia 14 de outubro de 1644 em Londres. A descrição mais específica de sua
mãe, Margaret, veio de um vizinho, Samuel Pepys, cáustico cronista, que a descreveu como “uma
mulher bem aparentada, gorda e baixinha, mas que outrora fora muito bonita”. Ela cuidava da
criação dos filhos, já que seu marido, William Penn Sr., raramente estava em casa. Ele foi um
comandante naval muito procurado por saber lidar com as águas ao redor da Inglaterra, e saber
manobrar um navio em tempo ruim, e conseguir o máximo de seus subordinados. O Almirante Penn
tinha bom relacionamento com os reis da dinastia Stuart e, por um tempo, serviu ao mais famoso
adversário deles, o puritano Oliver Cromwell.
Deixado por conta própria, o jovem William começou a se interessar por religião. Ele ficou
entusiasmado ao ouvir uma palestra de Thomas Loe, um missionário da Sociedade dos Amigos, que
eram conhecidos pelo termo derrogatório de Quakers. Fundada em 1647 pelo pregador inglês
George Fox, os Quakers eram uma seita mística protestante que enfatizava a relação direta com
Deus. A consciência individual, e não a Bíblia, era a autoridade última em questões morais. Os
Quakers não tinham clero ou igrejas. Em vez disso, organizavam reuniões em que os participantes
meditavam silenciosamente e falavam quando o Espírito lhes movia. Eles preferiam roupas comuns
e vidas simples à afetação dos aristocratas.
Depois de estudar a fundo os clássicos gregos e latinos, Penn emergiu como um rebelde ao entrar na
Universidade de Oxford. Desafiava as autoridades anglicanas, visitando John Owen, um professor
que fora afastado por defender um humanismo tolerante. Penn se rebelou ainda mais ao protestar
contra a freqüência compulsória aos cultos, o que causou sua expulsão aos dezessete anos.
Seus pais o enviaram para a França, onde era menos provável que ele causasse mais vexames e
talvez adquirisse bons modos. Ele se matriculou na Académie Protestante, a mais respeitada
universidade protestante, localizada em Saumur. Estudou com o humanista cristão Mose Amyraut,
que defendia a tolerância religiosa.
De volta à Inglaterra em agosto de 1664, Penn logo foi estudar em Loncoln’s Inn, a faculdade de
Direito mais prestigiada de Londres. Estudou os fundamentos da common law para as liberdades
civis e adquiriu alguma experiência com a estratégia nos tribunais. Ele viria a precisar dela.
O almirante Penn, designado para reconstruir a Marinha Britânica para a guerra contra os
holandeses, pediu que seu filho trabalhasse como seu assistente pessoal. O jovem William deve ter
adquirido uma valiosa experiência em primeira mão com o alto comando. O almirante Penn
também usou seu filho como mensageiro para transmitir informações militares para o rei Charles II.
O jovem William criou uma relação cordial com o rei e com seu irmão, o Duque de York, o futuro
rei James II.
A busca de Penn por paz espiritual o levou a participar das reuniões dos Quakers, apesar de o
governo considerá-las ilegais. Em setembro de 1667, a polícia invadiu uma das reuniões e prendeu
todo mundo. Como Penn parecia mais um aristocrata bem vestido que um simples Quaker, a polícia
o soltou. Ele protestou, declarando que era, sim, um Quaker, e que deveria receber o mesmo
tratamento que os outros. Penn usou seu treinamento jurídico para preparar uma defesa. Enquanto
isso, na prisão, começou a escrever sobre a liberdade de consciência. Seu pai o deserdou e o jovem
Penn passou a viver em casas de Quakers. Descobriu que o movimento fora iniciado por pregadores
apaixonados com pouca educação. Praticamente não havia nenhuma literatura dos Quakers. Ele se
decidiu a ajudar, fazendo uso do seu conhecimento acadêmico e treinamento jurídico. Começou por
escrever panfletos, que eram distribuídos pelas redes informais dos Quakers.
Em 1668, estava sendo hospedado por Isaac Penington, um homem de posses de Buckinghamshire.
Penn conheceu sua filha adotiva, Gulielma Springett, e foi praticamente amor à primeira vista. O
secretário literário do poeta John Milton, Thomas Ellwood, observou “sua fala inocentemente
aberta, livre e familiar, que brotava da abundante afabilidade, cortesia e doçura do seu
temperamento natural”. Penn se casou com Guilielma no dia 4 de abril de 1672. Ela teve sete filhos,
quatro dos quais morreram na infância.
Enquanto isso, Penn atacava a doutrina católica e anglicana da Trindade, e o bispo anglicano fez
com que ele fosse preso na notória Torre de Londres. Ordenado a retratar-se, Penn declarou da sua
fria cela de isolamento: “Minha prisão deve ser meu túmulo antes que eu ceda um milímetro; pois
não devo minha consciência a nenhum homem mortal”. Quando foi libertado, sete meses depois,
tinha escrito panfletos que definiam os principais elementos do quakerismo. Seu trabalho mais
conhecido desse período foi No Cross, No Crown [“Sem cruz não há coroa”], que apresentava um
argumento histórico pioneiro da tolerância religiosa.
O Conventicle Act
Ele não ficaria livre por muito tempo. Para restringir a potencial força dos católicos, sobretudo dos
Stuarts, o parlamento aprovou o Conventicle Act, que tinha como objetivo reprimir dissidências
religiosas como se fossem atos de sedição. Mas a lei foi aplicada principalmente contra os Quakers,
talvez por poucos deles terem conexões políticas. Milhares foram presos por suas crenças. O
governo tomou suas propriedades, incluindo o patrimônio das famílias de suas esposas.
Penn decidiu desafiar o Conventicle Act organizando uma reunião pública no dia 14 de agosto de
1670. O Lorde Prefeito de Londres ordenou a prisão dele e dos colegas Quakers assim que
começaram a expressar suas posições religiosas divergentes. No julgamento histórico, Penn insistiu
que, uma vez que o governo se recusava a apresentar uma acusação formal – as autoridades temiam
que o Conventicle Act pudesse ser cancelado – o júri nunca poderia chegar a um veredicto de culpa.
Ele apelou à herança inglesa da common law: “se essas leis antigas e fundamentais, relacionadas à
liberdade e propriedade, e que não se limitam a denominações religiosas particulares, tornam-se
dispensáveis, não sendo preservadas e seguidas, quem então poderá dizer que tem direito ao casaco
que traz nos ombros? Certamente nossas liberdades ficarão expostas a invasões; nossas esposas, ao
estupro; e nossos filhos, à escravidão; nossas famílias, à ruína; e nosso patrimônio arrastado
triunfalmente por qualquer miserável corpulento e qualquer delator malicioso como se fosse seu
troféu; mas será um peso em nossa consciência”.
O júri absolveu todos os acusados, mas o Lorde Prefeito de Londres se recusou a aceitar o
veredicto, aplicando multas aos membros do júri e condenondo-os à brutal prisão de Newgate.
Ainda assim, eles mantiveram o veredicto. Depois de o júri ter passado dois meses preso, o Tribunal
de Causas Comuns emitiu um habeas corpus por escrito para que eles fossem soltos. Então, eles
processaram o Lorde Prefeito de Londres por falsa prisão. O Lorde Ministro da Justiça da
Inglaterra, decidiram unanimemente que os júris não podem ser coagidos ou punidos por seus
veredictos. Foi um precedente chave que protegeu o direito a julgamento por júri.
Penn se tornou um famoso defensor da liberdade que atraía milhares de pessoas para uma palestra
pública. Viajou para a Alemanha e Holanda para ver como os Quakers estavam se saindo. A
Holanda deixou uma forte impressão, porque era praticamente livre. Era um centro comercial, onde
as pessoas davam importância sobretudo à cooperação pacífica. Judeus e protestantes perseguidos
fugiam em massa para a Holanda. Penn começou a desenvolver a visão de uma comunidade
fundamentada na liberdade.
Ele resolveu fazer uso de seus relacionamentos com a realeza em favor de sua causa. Com a benção
do rei Charles II e do Duque de York, Penn apresentou sua defesa da tolerância religiosa frente ao
parlamento. Eles não lhe deram ouvidos, pois temiam que os Stuarts impusessem o domínio
católico sobre a Inglaterra, especialmente porque o Duque de York tinha se convertido ao
catolicismo e casado com uma fervorosa católica.
A fundação da Pensilvânia
Penn se convenceu de que a tolerância religiosa não poderia ser alcançada na Inglaterra. Foi falar
com o rei e pediu uma autorização para estabelecer uma colônia americana. Talvez a idéia lhe tenha
parecido uma maneira fácil de se livrar dos problemáticos Quakers. No dia quatro de março de
1681, Charles II assinou uma autorização concedendo-lhe o território a oeste do Delaware River e a
norte de Maryland, aproximadamente do tamanho da Pensilvânia, onde cerca de mil alemães,
holandeses e índios viviam sem nenhuma forma particular de governo. O rei propôs o nome de
“Pennsylvania”, que significa “florestas de Penn” – em homenagem ao seu falecido pai, o
almirante. Penn seria o proprietário de todas as terras, respondendo diretamente ao rei. De acordo
com os relatos tradicionais, Penn concordou em cancelar a dívida de dezesseis mil libras que o
governo devia ao almirante por salários atrasados , mas não restam documentos de tal acordo. No
início de cada ano, Penn tinha que dar ao rei duas peles de castor e um quinto do ouro e da prata
minerados no território.
Penn navegou para a América do Norte no navio Welcome, desembarcando no dia 8 de novembro de
1682. Com os colegas da sociedade dos Quakers, ele fundou a Filadélfia – o nome foi escolha dele,
que significa “cidade do amor fraterno” em grego. Ele selecionou a área entre os rios Delaware e
Schuylkill. Ele planejava uma cidade de quarenta e cinco quilômetros quadrados, mas seus amigos
mais sóbrios da sociedade consideraram o objetivo exageradamente otimista. Aceitaram um plano
de cinco quilômetros quadrados. Penn deu nome às principais ruas, incluindo Broad, Chestnut, Pine
e Spruce.
Penn estabeleceu que haveria um governador – inicialmente, ele mesmo – cujos poderes seriam
limitados. Ele trabalharia com um Conselho (de setenta e dois membros) que iria propor legislações
para a Assembléia Geral (que chegaria a 500 membros), que poderia aprová-las ou rejeitá-las. A
cada ano, cerca de um terço dos membros seriam eleitos para um mandato de três anos. Como
governador, Penn mantinha o direito de vetar legislações propostas.
Seu primeiro First Frame of Government estabelecia a garantia de propriedade privada,
praticamente total liberdade comercial, liberdade de imprensa, julgamento por júri e, obviamente,
tolerância religiosa. Enquanto código penal inglês previa a pena de morte para cerca de 200 crimes,
Penn a reservou apenas para dois: assassinato e traição. Como um Quaker, Penn encorajava as
mulheres a educar-se e expor suas opiniões assim como os homens. Ele chamava a Pensilvânia de
seu “experimento sagrado”.
Penn insistia em manter os impostos baixos. Uma lei de 1683 estabelecia um leve imposto sobre
cidra e bebidas alcóolicas, uma pequena tarifa sobre produtos importados e sobre a exportação de
pele e couro de animais. Para ajudar a promover a colonização, Penn suspendeu todos os impostos
por um ano. Quando chegou a hora de implantar novamente os impostos, deparou-se com forte
oposição e teve que deixar isso de lado.
A First Frame of Government de Penn foi a primeira constituição a possibilitar mudanças pacíficas
por meio de emendas. Uma proposta de emenda constitucional requeria o consentimento do
governador e de oitenta e cinco por cento dos representantes eleitos. Mas, por mais benevolente que
ele fosse, o povo da Pensilvânia estava irritado com seu poder executivo como proprietário e
governador. As pessoas pressionavam para que os limites ao seu poder fossem mais específicos e
que se estabelecesse uma segurança mais forte quanto às prerrogativas do corpo legislativo. A
constituição foi emendada várias vezes. A versão adotada no dia 28 de outubro de 1701 perdurou
por três quartos de um século e depois se tornou a base da constituição do estado da Pensilvânia,
adotada em 1776.
Receber os aluguéis devidos como proprietário sempre foi uma dor de cabeça para Penn. Ele nunca
ganhou o suficiente da colônia para compensar os custos administrativos que pagava com seu
próprio capital. Perto do fim da vida, ele reclamaria que a Pensilvânia teria sido um prejuízo de
cerca de trinta mil libras.
As práticas de Penn contrastavam dramaticamente com as das outras primeiras colônias, em
especial com os puritanos da Nova Inglaterra, que tinham implantada uma traiçoeira teocracia. Os
puritanos desprezavam a liberdade. Consideravam a dissidência política um crime. Chicoteavam,
expulsavam e enforcavam os Quakers. Os puritanos roubavam o que podiam dos índios.
Penn conseguiu manter relações pacíficas com os índios – Susquehannocks, Shawnees, e Leni-
Lenape. Os índios respeitavam sua coragem, porque ele se aventurava no meio deles sem guardas
ou armas pessoais. Ele era um grande corredor, que conseguia ser mais rápido do que vários índios,
o que o ajudava a conquistar o respeito deles. Ele se deu o trabalho de aprender dialetos indígenas,
para poder conduzir negociações sem intérpretes. Desde o início, adquiria terra indígena por meio
trocas voluntárias e pacíficas. Segundo relatos, Penn assinou um “Grande Tratado”com os indíos
em Schackamaxon, perto do que agora é o distrito de Kensington na Filadélfia. Voltaire o louvou
como ‘o único tratado entre esses povos [índios e cristãos] que não foi ratificado por um juramento,
e que nunca foi violado”. Seus políticas pacifistas prevaleceram por setenta anos, o que é
praticamente um recorde na história americana.
Defendendo a Pensilvânia
Penn enfrentou duros desafios para defender a Pensilvânia na Inglaterra. Muita coisa estava em
jogo, porque a Pensilvânia se tornara a melhor esperança para as pessoas que sofriam perseguições
na Inglaterra, na França e na Alemanha. Charles II tentara estabelecer um absolutismo intolerante
como o do rei francês Louis XIV. Preocupado com uma possível revogação do decreto da
Pensilvânia, Penn usou suas qualidades de diplomata.
Por trás das cenas, Penn trabalhava como um notável diplomata para a tolerância religiosa. Todos os
dias, quase duzentas pessoas aguardavam na porta da Holland House, seus aposentos em Londres,
esperando por uma audiência e ajuda. Ele interveio pessoalmente junto ao rei para salvar vários
Quakers de sentenças de morte. Conseguiu que o fundador da Sociedade dos Amigos fosse retirado
da cadeia. Ele ajudou a convencer o rei a proclamar as Leis de Indulgência que libertaram cerca de
mil Quakers – muitos dos quais tinham estado presos por mais de doze anos.
A sorte de Penn acabou quando James II teve um filho em 1688, assegurando a sucessão católica.
Os ingleses se rebelaram e receberam o rei holandês William of Orange como William III, que
derrubou os Stuarts sem disparar um tiro. Subitamente, as conexões de Penn com os Stuarts se
tornaram um risco terrível. Ele foi preso por traição. O governo tomou seu patrimônio. Apesar de
ter sido libertado em novembro de 1690, foi marcado como traidor novamente. Tornou-se fugitivo
por quatro anos, escondendo-se em meio às miseráveis favelas de Londres. Seu amigo, John Locke,
o ajudou a restaurar sua reputação a tempo de ver sua esposa, Guli, morrer, no dia 23 de fevereiro
de 1694. Ela tinha 48 anos.
As duras experiências desgastaram Penn. Como o biógrafo Hans Fantel coloca, “ele estava se
tornando pálido e barrigudo. Os anos no esconderijo, com sua a inatividade forçada, lhe roubaram
de suas força e graças físicas de outrora. Sua postura agora estava ligeiramente curvada, e uma dor
constante por causa da morte de Guli colocava um ar de indiferença e distanciamento em seu rosto”.
Seu ânimo retornou dois anos depois quando ele se casou com Hannah Callowhill, uma mulher
prática e simples de trinta anos de idade, filha de um comerciante de linho de Bristol.
Mas ele estava com problemas por causa das suas práticas empresariais descuidadas.
Aparentemente ele não se preocupava com os detalhes administrativos e Philip Ford, o colega
Quaker que administrava seus negócios, desviou porções significativas de seu patrimônio. Pior
ainda, Penn assinou documentos sem os ler. Um dos contratos depois se mostrou ser um documento
transferindo a Pensilvânia para Ford, que exigiu um aluguel que excedia as possibilidades de Penn.
Depois da morte de Ford, em 1702, sua esposa, Bridget, jogou Penn na cadeia por violação de suas
dívidas, mas sua crueldade saiu pela culatra. Era impensável que tal pessoa governasse uma grande
colônia e, em 1708, o Lord Chancellor julgou que a “o direito sobre a terra ainda pertencia a
William Penn e seus herdeiros”.
Em outubro de 1712, Penn sofreu um infarto enquanto escrevia uma carta sobre o futuro da
Pensilvânia. Quatro meses depois, sofreria um segundo infarto.
Enquanto tinha dificuldades em falar e escrever, ele passava seu tempo com seus filhos, cuja
convivência tinha sido reduzida pro causa das suas viagens missionárias. Ele morreu no dia 30 de
julho de 1718 e foi enterrado em Jordans, ao lado de Guli.
Muito antes de sua morte, a Pensilvânia deixou de ser um lugar espiritual dominado pelos Quakers.
As políticas de Penn de tolerância religiosa e paz – sem serviço militar obrigatório – atraíram todo
tipo de imigrantes europeus castigados pelas guerras. Havia ingleses, irlandeses e alemães,
católicos, judeus e um agrupamento de seitas protestantes que incluiam tunkers, huguenotes,
luteranos, menonitas, moravians, pietistas e schwenkfelders. A liberdade trouxera tantos imigrantes
que, na época da Revolução Americana, a população da Pensilvânia crescera para trezentas mil
pessoas e se tornara uma das maiores colônias. A Pensilvânia foi o primeiro melting pot americano.
Filaldélfia era a maior cidade americana, com quase dezoito mil pessoas. Era um grande centro
comercial – às vezes mais de cem navios mercantes ancoravam lá em um único dia. As pessoas que
viviam na Filadélfia tinham acesso a todos os bens disponíveis na Inglaterra. As empresas
mercantes, navais e os bancos floresceram. A Filadélfia florescia como um entreposto comercial
entre a Europa e a fronteira americana.
Com sua atmosfera de liberdade, a Filadélfia crescia como centro intelectual. Entre 1740 e 1776, as
editoras da Filadélfia lançaram cerca de onze mil obras, incluindo panfletos, almanaques e livros.
Em 1776, havia sete jornais, que refletiam uma ampla variedade de opiniões. Não é surpreendente
que a “cidade do amor fraterno”de Penn tivesse se tornado o local mais sagrado para a liberdade
americana, onde Thomas Jefferson escreveu a Declaração da Independência, e onde os delegados
escreveram a Constituição.
Ao criar a Pensilvânia, Penn deu um exemplo extremamente importante para a liberdade. Ele
mostrou que as pessoas que são corajosas o suficiente, persistentes o suficiente, e dedicadas o
suficiente podem viver livres. Foi além das teorias dos direitos naturais de seu amigo John Locke e
mostrou como uma sociedade livre pode de fato funcionar. Mostrou como os indivíduos de
diferentes raças e religiões podem conviver pacificamente quando se preocupam com suas próprias
vidas privadas, e afirmou o resiliente otimismo das pessoas livres.

Goya
Poucos artistas ilustraram os horrores da guerra de forma tão dramática quanto o pintor espanhol
Francisco Goya, que viveu durante a violência das guerras napoleônicas. “Goya”, escreveram os
historiadores Pierre Gassier e Juliet Wilson, “retratou cenas de assassinatos, tiroteios, estupros e
incêndios, além daquelas cenas quase indecifráveis, certamente entre as melhores do gênero, em
que figuras moldadas por luz e sombras parecem agonizar ou tentar escapar da ameaça de um
perigo monstruoso e desconhecido. Nesses quadros, Goya vai além dos limites convencionais das
pinturas e gravuras para soltar um forte grito... Deve-se observar que ele nunca pintou uma cena que
glorificasse as forças armadas oficias da Espanha, e muito menos os exércitos de Wellington; os
únicos heróis aos seus olhos eram as pessoas comuns, os corajosos homens e mulheres sem
uniformes, e quase sem braços, que lutavam à sombra da aniquiladora bota do conquistador”.
As pinturas e gravuras de Goya, como observou o historiador José Lopez-Rey, mostram “o
sofrimento e a humilhação sofridos por pessoas criativas, justas, e inocentes por causa de tiranias e
fanatismos. Elas também registram o momento radiante, na época de Goya, em que os homens, por
mais iludidos pelo otimismo que estivessem, viram a liberdade e a verdade mudarem o curso da
história”. Goya viveu na época e lugar em que a palavra liberales – liberais – surgiu no mundo
moderno.
Como Beethoven, Goya produziu suas obras mais importantes enquanto sofria seus maiores
reveses. Ficou completamente surdo aos quarenta e seis anos, vivendo os trinta e seis anos seguintes
em silêncio. Quando suas obras satíricas se tornaram famosas, ele saiu das graças da realeza para se
tornar alvo da polícia. Acredita-se que ele teve dezenove filhos, mas apenas seu filho Francisco
Javier viveu mais que ele.
Goya foi o artista mais requisitado do seu tempo. Foi-lhe pedido para produzir retratos do Rei
Carlos III; do seu sucessor, Carlos IV; de Joseph Bonaparte, que lhe derrubou do trono; do duque de
Wellington, que tirou Napoleão do poder; de Ferdinand VII, que sucedeu Napoleão. Ainda assim,
Goya criou suas obras mais duradouras – especialmente as que expressavam sua visão pacifista –
em seu tempo livre. Muitas circulavam informalmente para evitar problemas com as autoridades.
A biógrafa Antonina Vallentin fez uma descrição de Goya durante a década de 1790 quando ele
começou a transformação espiritual que faria dele um grande mestre: “Seu rosto se tornara muito
mais fino. Suas rasas bochechas estavam delineadas por uma farta barba... Seu vasto cabelo preto
estava sempre despenteado com seus curtos cachos caindo desordenadamente sobre sua vasta testa e
se amontoando pesadamente ao redor das orelhas que nunca ouviriam de novo... Seu grande nariz se
projetava audaciosamente para frente entre suas bochechas secas, em seu rosto prolongado e oval.
Sua larga boca estava marcada por sua doença: o lábio superior sinuoso estava ligeiramente
retorcido, como se a rigidez da paralisia ainda se demorasse por lá. Nos cantos da boca, profundos
vincos encontravam as rugas que faziam sulcos em seu rosto... Seus olhos imensos estavam
cercados por profundos círculos, como se a tristeza se derramasse em sombras sobre seu rosto... Um
olhar pesado se voltava para dentro, mas com a força de um golpe aterrador”.
Crescer em uma pobreza miserável acendeu as ambições de Goya. Ele era um rebelde determinado
a criar o próprio caminho – mas com cautela. O crítico Richard Schickel comentou que: “Ele tinha a
natureza inflamável e vigorosa de um rebelde, mas sua profunda necessidade de segurança e
conforto material lhe ensinou a domar sua língua. No entanto, o sucesso material e a prudência
pessoal nunca diminuíram a força sua arte. Ele permaneceu, até o fim dos seus dias, aos 82 anos,
um espanhol apaixonado que desenhava e pintava com uma sinceridade intensa as coisas que via ao
seu redor e as emoções que estas lhe provocavam”.
Francisco José de Goya y Lucientes nasceu em Fuendetodos, na província de Aragon ao norte da
Espanha, no dia 30 de março de 1746. Sua mãe, Gracia Lucientes, era uma hidalga, a posição mais
baixa na hierarquia da nobreza espanhola. Seu pai, José Goya, era filho de um tabelião, e nunca
ganhou muito dinheiro trabalhando como ourives de altar de igrejas. A família vivia em uma cabana
de pedras escura. Goya tinha dois irmãos, Camillo e Tomas.
A Espanha era então um país europeu estagnado, onde criminosos aterrorizavam os camponeses e
os aristocratas viviam das rendas das suas terras e tinham preconceito contra qualquer trabalho útil.
As profissões liberais eram controladas pelas guildas medievais, que impediam o surgimento de
empreendedores inovadores. Os membros da associação de pastores de Mesta, que era
politicamente poderosa, podiam deixar seus rebanhos se alimentarem de qualquer pasto na região
das fazendas, o que desencorajava os fazendeiros a aprimorarem suas terras. A Inquisição impunha
uma ortodoxia religiosa.
Pouco se sabe sobre a juventude de Goya. Ao freqüentar uma escola dirigida pelo Padre Joaquim,
que era um membro da ordem dos Scolopis, Goya parece ter aprendido pouco mais dos que os
rituais católicos que permaneceram com ele por toda sua vida. Ele mal aprendeu a ler e escrever e
decidiu tornar-se artista evidentemente por querer se expressar e por perceber que os artistas podiam
viajar com mais facilidade do que os demais plebeus. Aprendeu a pintar corpos humanos imitando
pinturas, porque na Espanha era ilegal pintar pessoas nuas.
Goya começou a receber contratos para produzir pinturas religiosas e decidiu que estava na hora de
se tornar uma pessoa respeitável. No dia 23 de maio de 1773, casou-se com Josefa Bayeu, a irmã
mais nova do pintor Francisco Bayeu, que trabalhara para a corte real espanhola. O único retrato
que se supõe ser dela mostra uma mulher com grandes olhos, lábios finos e um cabelo ruivo claro.
Não se sabe quantos filhos eles tiveram, mas todos, com uma única exceção, morreram na infância.
Uma grande oportunidade surgiu quando a Royal Tapestry Manufacture ofereceu um contrato a
Goya para que ele produzisse trinta desenhos dinâmicos sobre a vida em Madri. Em seguida,
trabalhou em uma série bem recebida de retratos de aristocratas, pelos quais ele freqüentemente era
pago, e depois foi nomeado pintor do rei Carlos IV em abril de 1789.
Enquanto Goya se estabelecia como artista da nobreza, a revolução francesa despertou seus ideais
de justiça. Em particular, ele simpatizava com aqueles que queriam pôr um fim à Inquisição
espanhola, que reprimia brutalmente os hereges. Os acusados eram trazidos para diante dos juízes
sem saber o nome dos seus acusadores. Comumente, eles eram torturados até que dissessem aos
inquisidores algo incriminador e, então, eram condenados. As acusações eram lidas publicamente
para humilhar os acusados antes de serem queimados.
Em 1792, Goya sofreu um colapso causado pela sífilis que lhe custara a audição. Isolado das
pessoas e forçado a buscar inspiração dentro de si, sua arte mudou drasticamente. Adotou um
realismo chocante, retratando a família real como um grupo de pessoas simplórias.
Goya começou a trabalhar em obras que não haviam sido encomendadas. Em fevereiro de 1799, ele
terminou Caprichos, oito gravuras que caricaturavam a irracionalidade da vida ao seu redor. “A
palavra capricho”, explicou o historiador da arte A. Hyatt Mayor, “se refere à cabra que despreza o
rebanho que descansa no vale para se arriscar perigosamente pelos penhascos. Caprichos, de Goya,
era um comentário declarado sobre o retrocesso da ignorância da Espanha medieval, que estava
então sendo exposta pelas novas idéias vindas da França e da Inglaterra”. Entre outros temas, Goya
retratava uma mulher volúvel, uma mãe severa, aristocratas estúpidos e inquisidores brutais. Uma
imagem parece resumir tudo: El sueño de la razón produce monstruos (O sono da razão produz
monstros). Aparentemente por temer a Inquisição espanhola, Goya retirou Caprichos do mercado
duas semanas depois de oferecê-lo.
Logo os espanhóis tiveram que se preocupar com muito mais do que a Inquisição. Napoleão
Bonaparte, expandindo seu poder pela Europa, entendeu as brigas da corte real espanhola como
uma oportunidade para tomar o controle direto sobre a Espanha. Em março de 1808, ele baniu
Carlos IV para a Itália, prendeu seu rival, Ferdinando, e fez do seu irmão mais velho o rei da
Espanha.
Como muitos dos espanhóis desgostosos com a sanguinária Inquisição e com a monarquia corrupta,
Goya provavelmente esperou que Napoleão trouxesse as reformas necessárias. Napoleão, afinal,
tinha reformado a bagunça das leis civis francesas e abolido práticas medievais. Mas os soldados
franceses estavam se comportando como conquistadores, estuprando, roubando e pilhando. Por toda
a Espanha, o clero, os aristocratas e os comerciantes, lojistas, entre outros, formaram comitês para
organizar o que veio a ser chamado de resistência de guerrilla (pequena guerra). Eles
constantemente alternavam táticas e atuavam por meio de sabotagens e de terrorismo contra o
invasor estrangeiro. Essa luta foi a Guerra Peninsular.
Napoleão enviou trezentos mil soldados para manter seu controle, e os espanhóis retaliaram contra a
brutalidade crescente. “Os corpos dos franceses eram empilhados nos vales”, relatava a biógrafa
Antonina Vallentin, “Embrigados pela fúria contra os servos de Cristo que pregavam o ódio, os
soldados franceses saqueavam as igrejas, roubavam os objetos de adoração e profanavam a casa. Os
padres das vilas chacinavam os franceses que buscavam refúgio entre eles. Fazendas eram
incendiadas e deixadas como tochas acesas depois que os franceses passavam por elas. Os feridos e
doentes eram assassinados enquanto estavam sendo carregados de um lugar para outro. As estradas
estavam cobertas por corpos nus; as árvores estavam curvadas pelo peso dos enforcados; um ódio
cego se voltava contra ódio, um terror sem nome rugia pelo campo deserto, a morte se aproximava
lentamente por meio das mais horripilantes mutilações... Goya observava a devastação da guerra
com seus próprios olhos”.
As guerras napoleônicas, relatou Paul Johnson, “atrasaram a vida econômica da maior parte da
Europa por toda uma geração. Elas levaram os homens a se comportarem como bestas ou algo pior.
As batalhas se tornaram maiores e muito mais sangrentas. Os exércitos dos antigos regimes eram
compostos por veteranos profissionais, geralmente composto por condenados à morte, obcecados
por uniformes, cachimbos, bronze polido, e manobras militares elaboradas – e os reis não podiam
perdê-los. Bonaparte cortou o tabaco, acabou com as perucas empoladas, proveu uniformes
produzidos em massa, e desperdiçou as vidas dos seus jovens recrutas – forçados a servir - como se
fossem meros trocados. Sua política de que os soldados deveriam se sustentar da renda do campo
não funcionava em economias de subsistência como a Espanha ou Rússia, onde, caso os soldados
roubassem, os camponeses passariam fome. Então, na Espanha os franceses que se dispersavam
eram roubados e cozinhados vivos... Por toda a Europa, os padrões de conduta humana declinavam
na medida em que homens, mulheres e seus filhos aprendiam a viver brutalmente”.
Goya ficou quieto por um tempo. Em 1810, começou uma série de oitenta e cinco gravuras
dramáticas, Los desastres de la guerraLes misères et les malheurs de la guerre (As misérias e
desastres da guerra), as gravuras do artista francês Jacques Callot, que ilustrara os monstruosos
assassinatos da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648). As provas de Goya circularam, mas publicá-
las teria trazido represálias duras da igreja e das autoridades do governo. Elas deixavam pouco
trabalho para a imaginação, mostrando como as pessoas eram fuziladas, castradas, decapitadas e
enforcadas. As mulheres eram cruelmente estupradas pelos soldados, os corpos dos mortos
roubados de tudo que tinha valor e depois empilhados e deixados para os urubus. Para evitar colocar
o foco nos franceses, Goya fazia apenas um rascunho dos uniformes militares; os soldados podiam
pertencer a qualquer exército. “Desastres”, escreveu Elie Faure, “constitui o mais terrível dos
documentos, porque é o mais verdadeiro que nos foi legado sobre a guerra espanhola pela
independência, ou, aliás, sobre qualquer guerra, do passado, presente ou futuro”.
Em 1812, o ano em que a esposa de Goya, Josefa, morreu, as Cortes de Cadiz aprovaram uma
constituição liberal. Ela estabelecia uma monarquia com poderes limitados, afirmava o princípio da
soberania popular, estabelecia uma câmera legislativa, sem cadeiras reservadas para a Igreja
Católica ou para aristocratas. A Constituição de Cadiz aboliu os poderes inquisitoriais do Santo
Ofício, estabeleceu um poder judiciário independente da interferência do poder executivo, e
decretou a liberdade de imprensa.
“Os primeiros liberais a denominar-se assim surgiram na Espanha entre os opositores da ocupação
napoleônica”, observou o historiador Robert R. Palmer. “A palavra então foi repassada para a
França, onde denotava a oposição à monarquia depois da restauração dos Bourbons em 1814. Na
Inglaterra, muitos Whigs se tornaram cada vez mais liberais, assim como mesmo alguns Tories, até
que o grande Partido Liberal foi fundado na década de 1850”. Mas essa faísca de liberalismo foi
logo apagada na Espanha. Em 1813, depois das surpreendentes derrotas de Napoleão na Rússia, o
duque de Wellington, o brilhante general inglês nascido na Irlanda, expulsou os franceses da
Espanha e, em seguida, derrotou Napoleão em Waterloo. Quando Ferdinand, apoiado pelo exército
espanhol e pela Igreja Católica assumiu a coroa espanhola em março de 1814, ele prendeu os
liberais, reestabeleceu a Inquisição espanhola e dissolveu as Cortes de Cádiz dizendo: “Não apenas
eu me recuso a jurar seguir a constituição ou reconhecer qualquer decreto das Cortes, como declaro
que a constituição e tais decretos estão anulados e revogados, para hoje e sempre”.
Goya despejou paixões vulcânicas na imortalização da luta contra a