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Marcelo A.

Cattoni de Oliveira,
David F. L. Gomes & Deivide Júlio Ribeiro
ORGANIZAÇÃO

1988-2018:
o que constituímos?
HOMENAGEM A MENELICK DE CARVALHO NETTO
NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO DE 1988

ANAIS DE CONGRESSO

Belo Horizonte
2018
1988-2018:
o que constituímos?
HOMENAGEM A MENELICK DE CARVALHO NETTO
NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Marcelo A. Cattoni de Oliveira,


David F. L. Gomes & Deivide Júlio Ribeiro
ORGANIZAÇÃO DO LIVRO

Copyright © desta edição [2018] Initia Via Editora Ltda.


Rua dos Timbiras, nº 2250 – sl. 103-104, Lourdes
Belo Horizonte, MG - CEP 30140-061
www.initiavia.com

Editora-Chefe: Isolda Lins Ribeiro.


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Diagramação e Capa: Kívia Bueno.
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Fachada do STF por Nelson Jr; Protesto no Congresso Nacional do Brasil por Agencia Brasil.

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Congresso de Direito Constitucional


(2. : 2018: Belo Horizonte, MG)
1988-2018: O que contituímos? Homenagem a Menelick de Carvalho Netto nos 30 anos
da Constituição de 1988 / organizadores: Marcelo A. Cattoni de Oliveira, David F. L. Gomes,
Deivide Júlio Ribeiro - Belo Horizonte : Initia Via, 2018.
174p. – Anais de Congresso
ISBN 978-85-9547-036-1
1. Direito constitucional - Congressos . 2. Filosofia do direito – Congressos.
I. Oliveira, Marcelo A. Cattoni de. II. Gomes, David F. L. III. Ribeiro, Deivide Júlio

CDU: 34(061.3)
1988-2018:
o que constituímos?
HOMENAGEM A MENELICK DE CARVALHO NETTO
NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO DE 1988

COORDENAÇÃO GERAL:
Marcelo A. Cattoni de Oliveira,
David F. L. Gomes

CONSELHO CIENTÍFICO:
Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira
Bernardo Gonçalves Alfredo Fernandes
David F. L. Gomes
Emílio Peluso Neder Meyer
Maria Fernanda Salcedo Repolês
Thomas da Rosa de Bustamante

COMISSÃO ORGANIZADORA:
Amós Silvestre dos Reis
Almir Megali Neto
Deivide Júlio Ribeiro
Felipe Capareli
Giulia Maria Giusti Athayde Pinto
Henrique Pereira de Queiroz
João Pedro Lopes Fernandes
Jéssica Holl
Mariana Rezende de Oliveira
Marina Leite
Raquel Possolo
Rayann K. Massahud de Carvalho
ANAIS DE CONGRESSO 5

APRESENTAÇÃO
No momento em que celebra seus 30 anos, a Constituição de 1988 vê-se sob um
ataque advindo de múltiplos lados. Se esse ataque possui, certamente, uma força e uma ar-
ticulação inéditas, não é a primeira vez que isso ocorre: desde antes mesmo de sua promul-
gação em 5 de outubro, o tom emancipatório que nela se manifesta já levantava resistências
variadas, sendo o célebre discurso do então presidente José Sarney uma espécie de metoní-
mia de um processo de crítica destrutiva que acompanharia a Constituição ao longo de sua
vigência. Por outro lado, a réplica presente no discurso de Ulysses Guimarães também pode
ser lida como uma metonímia, uma metonímia da continuada luta em sua defesa que acom-
panharia igualmente a vida dessa Constituição.
Se a Constituição de 1988 é luta, luta contínua em sua defesa, nada mais adequado
do que homenagear, em um evento que se apresenta como uma etapa a mais nessa luta, um
intelectual que sempre sustentou exatamente isto: Constituição é luta, luta constante por
sua defesa, início de um projeto que se efetiva no tempo apenas se nos engajamos como ci-
dadãs e cidadãos ativas e ativos nessa luta.
É com esse sentido que foi realizado o congresso: “1988-2018: O QUE CONS-
TITUÍMOS? Homenagem a Menelick de Carvalho Netto nos 30 anos da Constituição de
1988”. Entre as homenagens, estão aqui os trabalhos apresentados no evento, em forma de
Caderno de Resumos.
6 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

SUMÁRIO
CONTRIBUIÇÕES DE UMA TEORIA CRÍTICA DA CONSTITUIÇÃO PARA A COMPREENSÃO 9
DO CONTROLE JURISDICIONAL DO PROCESSO DE IMPEACHMENT
ALMIR MEGALI NETO

PRECARIADO E CIDADANIA: 25
APONTAMENTOS SOBRE A CONSTITUIÇÃO DE DIREITOS SOCIAIS
ÂNGELA VITÓRIA ANDRADE GONÇALVES DA SILVA & OTÁVIO LOPES DE SOUZA

A PROIBIÇÃO DA CONDUÇÃO COERCITIVA PARA INTERROGATÓRIO E O APRIMORAMENTO DA 39


APLICAÇÃO DO DIREITO AO SILÊNCIO:
UM PEQUENO AVANÇO EM MEIO AO RETROCESSO 79
LUDMILA CORRÊA DUTRA & CAROLINE MESQUITA ANTUNES

OCUPAÇÃO DANDARA: 53
LITIGÂNCIA ESTRATÉGICA E A ARTICULAÇÃO JURÍDICA-POLÍTICA NAS LUTAS DA CLASSE TRABALHADORA PRECARIZADA
FERNANDA VIEIRA OLIVEIRA, ISABELA DE ANDRADE PENA MIRANDA CORBY & MARCELO ANDRADE CATTONI DE OLIVEIRA

ENTIDADE DE CLASSE E PLURALISMO: 71


A CAPACIDADE DE ADAPTAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 E AS MUDANÇAS SOCIAIS SOB UM CONTEXTO DE SUBCIDADANIA
JOÃO LUCAS RIBEIRO MOREIRA & TIAGO SOARES SIQUEIRA

ENTRE A REALIDADE DO CÁRCERE E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS: 82


SOBRE O PAPEL DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA NA POLÍTICA DE ENCARCERAMENTO EM MASSA BRASILEIRA
LEO MACIEL JUNQUEIRA RIBEIRO

O PRINCÍPIO DA IGUALDADE NA PRÁTICA CONSTITUCIONAL CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA, 98


E SUA TENSÃO E CONTRADIÇÕES NO TRATAMENTO DE MINORIAS ÉTNICAS
LEONARDO FAUSTINO PEREIRA & SARA ZICA RIBEIRO

FAZER JUSTIÇA A RONALD DWORKIN: 115


A INTEGRIDADE DO DIREITO E A COMUNIDADE DE PRINCÍPIOS INSTITUÍDA PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988
À LUZ DE MENELICK DE CARVALHO NETTO
MARCUS VINÍCIUS FERNANDES BASTOS & MATEUS ROCHA TOMAZ

O DIREITO FUNDAMENTAL À EDUCAÇÃO A PARTIR DA CONSTITUINTE DE 1988: 133


UMA BREVE ANÁLISE DA EVOLUÇÃO DESTE DIREITO NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO CIDADÃ
MICAELA AFONSO LAMOUNIER
ANAIS DE CONGRESSO 7

A CONSTITUIÇÃO DE 1988, AVANÇOS E DESAFIOS PARA A EDUCAÇÃO INCLUSIVA 143


COMO DIREITO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA:
UMA LEITURA DA REALIDADE BRASILEIRA A PARTIR DA TEORIA DA JUSTIÇA DE JOHN RAWLS
TATIANA RIBEIRO PROVETTI

OS AMICI CURIAE NA EXPERIÊNCIA CONSTITUCIONAL BRASILEIRA: 157


DA PLURALIDADE À PARTICIPAÇÃO SOCIAL
WAGNER VINICIUS DE OLIVEIRA
ANAIS DE CONGRESSO 9

CONTRIBUIÇÕES DE UMA TEORIA CRÍTICA DA CONSTITUIÇÃO


PARA A COMPREENSÃO DO CONTROLE JURISDICIONAL
DO PROCESSO DE IMPEACHMENT

ALMIR MEGALI NETO1

RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo apresentar as contribuições de uma Teoria
Crítica da Constituição para a compreensão do controle jurisdicional do processo de impe-
achment. Para tanto, são considerados os recentes estudos produzidos pela Ciência Política
para demonstrar que o impeachment surgiu como um novo padrão de instabilidade política
na América Latina. Em seguida, é feita uma distinção entre a recepção do instituto pela tra-
dição constitucional brasileira em relação à norte-americana, evidenciando que, no consti-
tucionalismo brasileiro, os contornos do impeachment sempre contaram com a atuação da
jurisdição constitucional como instrumento apto a reparar eventuais abusos cometidos pelo
Congresso Nacional.
Palavras-chave: Controle de constitucionalidade; Impeachment; Instabilidade po-
lítica; Teoria Crítica da Constituição.

INTRODUÇÃO
Desde a abertura do processo de impeachment em face da ex-Presidente da Repú-
blica Dilma Rousseff, “formou-se no Brasil um campo propício para a teoria constitucional
rever aquele instituto” (BACHA E SILVA; BAHIA; CATTONI DE OLIVEIRA, 2017, p.
16). A despeito de se tratar de um instituto cuja ativação causa grandes repercussões para as
instituições democráticas, que sempre esteve presente nas constituições republicanas brasi-

1 Mestrando em Direito pelo Programa de Pós Graduação em Direito da UFMG. Linha de Pesquisa: História,
Poder e Liberdade. E-mail: almir_megali@hotmail.com. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
10 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

leiras,2 poucos são os trabalhos que têm em mira a compreensão deste fenômeno constitu-
cional a partir do papel político-institucional do Judiciário, principalmente no que se refere
a uma possível capacidade de mediação entre os demais poderes.3 Dessa maneira, pode-se
dizer que o tema passou a ser objeto de discussões, divergências e enfrentamentos, confor-
mando uma agenda de pesquisa a ser explorada.
Muito se discutiu se o Supremo Tribunal Federal (STF) teria competência para
apreciar as questões que foram levadas à sua jurisdição no curso do processo de impeach-
ment da ex-Presidente Dilma Rousseff. As alegações eram no sentido de que as matérias re-
lativas ao processo de impeachment consistiram questões políticas4 e que, em virtude disso,
não deveriam ser apreciadas pelo Tribunal. Para os defensores desta linha de raciocínio, a
questão representaria uma verdadeira judicialização da política, no sentido da instauração
de um governo de juízes.5 A questão teria ficado clara quando do julgamento do mandado
de segurança n. 34.441 (MS n. 34.441), no qual a ex-Presidente intentava a anulação da
decisão proferida pelo Senado Federal, quando o Tribunal se limitou a dizer que sua par-
ticipação se limitaria à definição do rito do processo, sendo-lhe vedado apreciar quaisquer
questões que envolvessem direta ou indiretamente o mérito da acusação, ao argumento de
que os senadores da república seriam os únicos juízes constitucionais do caso.
Sendo assim, é preciso questionar se há espaço para apreciação jurisdicional de
questões afetas ao processo de impeachment ou, se pelo contrário, tais questões se inseririam
naquilo que se costuma denominar questões políticas. Aqui, pretende-se demonstrar que,
na experiência constitucional brasileira, há um legítimo espaço de atuação para o Poder Ju-
diciário, em especial, para o STF, no curso do processo de impeachment instaurado em face
do Presidente da República. Isso porque, com Bacha e Silva, Bahia e Cattoni de Oliveira
(2017, p. 95-104), acredita-se que o impeachment está diretamente relacionado ao estudo
do princípio da separação dos Poderes, do sistema presidencialista de governo e, em última
instância, da soberania popular, com o mote do constitucionalismo e suas relações com a

2 Um esclarecimento quanto à utilização do termo constituição se faz necessário. Quando o termo for empre-
gado de modo genérico, sem particularizar de qual constituição se está a falar, utilizar-se-á o termo com a letra “c”
minúscula. Quando se fizer referência a uma constituição específica o termo será escrito com a letra “c” maiúscula.

3 Para fins deste trabalho, propõe-se a adoção da definição de Salcedo Repolês da expressão, sintetizada na se-
guinte passagem: “Outro sentido para o qualificativo ‘político’ usado para a Corte é o que chamaremos aqui de políti-
co-institucional, que ajuda a afirmá-la como um terceiro poder capaz de equilibrar os poderes legislativo e executivo.
Esse sentido que retira aquela semântica negativa do partidarismo, solidifica o Supremo Tribunal Federal como órgão
de consolidação da República e da democracia” (SALCEDO REPOLÊS, 2010, p. 68).

4 A doutrina das questões políticas é uma criação da jurisprudência da Suprema Corte norte-americana para
determinar quais matérias poderão ou não ser judicializadas. Para a Corte, certas questões, em razão de seu caráter emi-
nentemente político, não poderiam ser apreciadas pelos órgãos jurisdicionais, em nome de uma suposta autorrestrição
dos poderes dos juízes. Criada em Marbury v. Madison, a doutrina das questões políticas foi aplicada pela primeira vez
em Luther v. Borden, julgado pela Suprema Corte daquele país em 1849. Cf. SAMPAIO, 2002, p. 319-339.

5 Cf. BAHIA; BACHA E SILVA; CATTONI DE OLIVEIRA, 2017, p. 97-104.


ANAIS DE CONGRESSO 11

democracia, razão pela qual o alcance do instituto não deve ficar à disposição de maiorias
parlamentares eventuais.
A apreciação jurisdicional da matéria aqui defendida não implica em uma revisão
do mérito da decisão proferida pelo Senado Federal, como se passa em algumas experiências
constitucionais compradas, principalmente naquelas que possuem Legislativo unicameral,
nas quais a Corte Constitucional possui a palavra final sobre a condenação ou não do pre-
sidente da república (SAN JUAN; TIOJANCO, 2016).6 Pelo contrário, o propósito deste
trabalho é evidenciar que o STF tem um importante papel a desempenhar no curso do
processo de impeachment do presidente da república, de modo a evitar que o instituto seja
manejado inadequadamente pelo Congresso Nacional. Defende-se, portanto, que o STF
deve atuar no sentido da garantia da justa causa para deflagrar o processo, dos direitos do
acusado à ampla defesa, ao contraditório e ao devido processo legal em todas as suas eta-
pas, no intuito de questionar se o mero seguimento das etapas do procedimento previstas
na Constituição, na Lei n. 1.079/50 e nos Regimentos Internos das Casas Legislativas seria
capaz de conferir legitimidade ao processo.

1. O NOVO PADRÃO DE INSTABLIDADE POLÍTICA NA AMÉRICA LATINA


Se no âmbito da teoria constitucional brasileira o instituto do impeachment não
vem sendo um tema de constante estudo, o mesmo não se pode dizer dos estudos recen-
tes que têm sido desenvolvidos, principalmente no campo da Ciência Política. Chega-se a
apontar que o socorro ao instituto do impeachment para deposição de presidentes demo-
craticamente eleitos na América Latina se transformou em um novo padrão de instabilidade
política na região (PÉREZ-LÍÑAN, 2007). Inserida neste contexto, a experiência constitu-
cional brasileira não parece se diferenciar, pelo menos neste aspecto, das demais experiências
constitucionais do continente.
Ora, não custa lembrar que, em um curto período de tempo, a história constitu-
cional brasileira vivenciou dois afastamentos de Presidentes da República após a deflagra-
ção de processos de impeachment.7 Isso em um país cuja história é marcada por instabili-
dades político-institucionais e em um contexto no qual o impeachment surgiu como um
novo padrão de instabilidade político-institucional na região. De acordo com Pérez-Líñan
(2007), a conjugação de quatro elementos teria sido decisiva para o desencadeamento de
processos de impeachment na América Latina durante o período compreendido entre os
anos de 1992 e 2004, pouco importando o fundamento jurídico utilizado, quais sejam:
(i) crise econômica; (ii) escândalo de corrpução; (iii) manifestações populares; e (iv) falta

6 Exemplares neste sentido são as Constituições da Albânia, da Coreia do Sul, da Hungria e da República Tche-
ca. Para maiores detalhes, cf. SAN JUAN; TIOJANCO, 2016.

7 Tratam-se, respectivamente, dos impeachments de Fernando Collor de Melo em 1992 e de Dilma Vana Rou-
sseff em 2016.
12 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

de apoio do Executivo no Legislativo.8


A razão para tanto, deve-se ao fato das elites locais terem percebido que a nova con-
juntura política dos fins dos anos 1980 e início dos anos 1990 não seria mais conivente com
a forma tradicional de tomada do poder na região. Sendo assim, ao invés de golpes militares,
de tanques nas ruas; da tomada do poder pela via da força, a nova tendência latino-america-
na seria a tomada do poder através do manejo de institutos previstos pelas próprias ordens
constitucionais, como o impeachment. Agora, a tomada do poder se daria sem a quebra
do regime democrático. Manter-se-iam as instituições em funcionamento e tudo se daria
dentro dos limites previstos pelas próprias constituições. Como é de se imaginar, essa nova
tendência criou um alto grau de insegurança para os políticos da região.9
Assim como Pérez-Líñan (2007), a canadense Kathryn Hochstetler (2007) e o
norueguês Leiv Marsteintredet (2009) perceberam que a queda dos presidentes democra-
ticamente eleitos na região não se daria mais com o auxílio das forças armadas. Segundo
apontam os autores, as forças políticas conservadoras latino-americanas teriam se conscien-
tizado do alto custo político de levar adiante um golpe militar nos moldes clássicos, consi-
derando que nem a população e nem a comunidade internacional perceberia a prática com
bons olhos. Neste contexto, chega-se a sustentar, inclusive, a adoção de novos mecanismos
de substituição presidencial distintos do impeachment, a fim de permitir a deposição do
chefe do Poder Executivo por razões exclusivamente políticas. Isso, porque há um consenso
no sentido de que a deflagração de um processo de impeachment prescinde da observância
de elementos jurídicos mínimos, tais como, no caso brasileiro, a hipótese de crime de res-
ponsabilidade cometido dolosamente pelo presidente da república.10
Em sua clássica obra Coup D’Etat: a pratical handbook, Edward Luttwak descreve
a forma tradicional de golpe de Estado: uma sublevação armada para a tomada do poder.
Um golpe de Estado bem-sucedido seria, para o autor, aquele no qual se pudesse fazer uma
separação clara entre um antes e um depois. Isso porque a finalidade seria não deixar dúvidas
quanto ao que teria acontecido, pois esta seria a melhor maneira de assegurar obediência ao

8 Os casos analisados pelo cientista político argentino foram: Fernando Collor de Mello (Brasil, 1992), Carlos
Andrés Pérez (Venezuela, 1993), Ernesto Samper (Colômbia, 1996), Abdalá Bucaram (Equador, 1997), Raúl Cubas
Grau (Paraguai, 1999) e Luis González Macchi (Paraguai, 2002).

9 Interessante notar que os próprios fundadores da incipiente república norte-americana temiam o uso faccioso
do impeachment, conforme se depreende da leitura do artigo 65 de O federalista. Sobre isso, Cf. LEVINSON, 2015,
p. 245-249.

10 Cf. MARSTEINTREDET; KASAHARA, 2018, p. 30-54. À luz do caso brasileiro de 2016, os autores pro-
põem a adoção de alguns mecanismos institucionais em regimes presidencialistas latino-americanos destinados a fa-
cilitar a resolução de impasses político-institucionais entre o Executivo e o Legislativo, para que a interrupção do
mandato presidencial se dê de uma maneira menos tensa, isto é, sem controvérsias do ponto de vista da legitimidade
e da legalidade dos processos de impeachment e sem os custos dos elevados níveis de polarização política, comumente
observados nos processos de impeachment até então deflagrados na região.
ANAIS DE CONGRESSO 13

novo regime.11 Contudo, para as formas golpistas não tradicionais, a manutenção de apa-
rências democráticas seria fundamental. O problema é que, enquanto um golpe tradicional
dá certo ou fracassa em questão de horas, um golpe do segundo tipo se prolonga no tempo,
sendo mais difícil perceber quando ele de fato acontece (BERMEO, 2016, p. 05-19). No
último caso, enquanto se espera por um golpe real, o golpe gradual já pode estar em curso
há tempos, sendo, inclusive, mais difícil se opor a ele do que à modalidade tradicional dos
golpes. Por tais razões, e, considerando o contexto histórico e regional latino-americano,
faz-se preciso investigar qual papel político-institucional pode ser desempenhado pelo STF
em relação ao controle do devido processo legal do processo de impeachment, a fim de evi-
tar que o instituto seja utilizado de maneira inadequada, isto é, como um mecanismo para
deposição do Presidente da República sem que reste demonstrada a ocorrência de um crime
de responsabilidade cuja autoria possa ser atribuída ao mais alto chefe político da nação.

2. O CONTROLE JURISDICIONAL DO PROCESSO DE IMPEACHMENT NO MS N.


34.441 E AS QUESTÕES JURÍDICAS DE FUNDO DA DEMANDA
No curso do processo de impeachment instaurado em face da ex-Presidente Dilma
Rousseff, o STF fora instado a se manifestar sobre a regularidade dos atos praticados pelas
autoridades responsáveis pela tramitação do feito em diversas oportunidades. Não foi ape-
nas a ex-Presidente que provocou o Tribunal durante o transcurso do processo. Em uma pes-
quisa no sítio eletrônico do Pretório Excelso, constatou-se que tanto seus correligionários,
quanto a oposição no Congresso Nacional, bem como cidadãos e associações provocaram a
jurisdição do STF a intervir no curso do feito.12 Dentre as dezenove impetrações realizadas,
destaca-se o MS n. 34.441.
Isso porque, a decisão proferida nestes autos constitui a última manifestação do
11 Segundo Luttwak, na América Latina, os golpes de Estado se dariam a partir daquilo que ele denomina de
pronunciamiento, uma forma ritualizada de tomada do poder em que, primeiro vêm os trabajos em que as opiniões dos
oficiais das forças armadas eram pronunciadas e ouvidas pela população. Em segundo lugar, vêm os compromisos, nos
quais promessas são feitos pelas forças armadas e recompensas são prometidas à população. Por fim, vem a chamada
para a ação e, finalmente, o apelo às tropas para seguirem seus oficiais em rebelião contra o governo até então estabe-
lecido. Cf. LUTTWAK, 1968, p. 09-10.

12 A pesquisa foi realizada tendo como base os seguintes recortes jurisprudenciais: (i) institucional; (ii) temático;
(iii) processual; (iv) temporal; e (v) subjetivo. Nesse sentido, averiguou-se no sítio eletrônico oficial do STF (critério
institucional), todas as oportunidades nas quais o Tribunal fora instado a se manifestar sobre a regularidade dos atos
praticados pelas autoridades responsáveis pela condução do processo de impeachment instaurado em face da ex-Presi-
dente Dilma Rousseff (critério temático), nos mandados de segurança impetrados durante a tramitação do feito, única
via processual adequada para formulação de questionamentos deste teor perante aquele Tribunal (critério processual),
no período compreendido entre o recebimento da denúncia pelo então presidente da Câmara dos Deputados, Depu-
tado Eduardo Cunha, em dezembro de 2015, até a sessão de julgamento ocorrida no Senado Federal em 31 de agosto
de 2016 (critério temporal), contemplando os nomes dos protagonistas na tramitação do processo – os presidentes da
Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do STF; os presidentes bem como os relatores das comissões especiais do
impeachment em cada uma das Casas do Congresso Nacional; a própria ex-Presidente Dilma Rousseff e seu advogado
de defesa durante todo o processo, José Eduardo Cardozo (critério subjetivo).
14 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

STF em relação à possibilidade de intervenção da jurisdição constitucional no curso do


processo de impeachment. Além disso, nessa oportunidade, o Tribunal corroborou o enten-
dimento por ele adotado nas demais impetrações realizadas pela ex-Presidente a respeito dos
limites do controle jurisdicional do processo de impeachment. Daí o destaque desses autos.
No MS n. 34.441, a impetrante intentava a anulação da decisão proferida pelo
Senado Federal, ao fundamento da ausência de justa causa para abertura do processo de im-
peachment e da inobservância do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa
no trâmite do feito. Por tais razões, pleiteava a imediata suspensão da decisão condenatória
proferida pelo Senado Federal, bem como seu retorno ao exercício da função presidencial.
Questionava, portanto, a legitimidade do processo que culminou em sua condenação por
crime de responsabilidade.
Os autos foram distribuídos por dependência ao então Ministro do STF Teori Za-
vascki,13 que indeferiu os pedidos formulados em sede liminar. Dentre os argumentos susci-
tados para o indeferimento da medida liminar, constata-se, de um lado, a consideração das
consequências de eventual intervenção judicial na vida institucional do país, e, do outro, a
repercussão internacional da medida em relação à credibilidade das instituições brasileiras.
Recuperando aquilo que enxerga como caráter jurídico-político do impeachment,
o então Ministro lança mão de argumentos por ele expendidos nos autos do Mandado de
Segurança n. 34.193, no sentido de que a matéria atinente a crimes de responsabilidade do
Presidente da República seria de competência exclusiva do Congresso Nacional, não haven-
do base constitucional para qualquer intervenção judicial que envolva direta ou indireta-
mente análise sobre o mérito da causa.
Sendo assim, o Relator considerou que, por vezes, os atores políticos, no exercício
da função atípica de processar e julgar o presidente da república por crime de responsabili-
dade, podem estar orientados à satisfação de interesses meramente políticos, motivação esta
que seria diversa daquela que orientaria a atuação dos membros do Poder Judiciário. Levan-
do-se em consideração “questões de prudência”, o Ministro Relator se absteve de analisar o
mérito do pedido formulado pela ex-Presidente da República, tendo em vista a complexi-
dade dos questionamentos aviados na impetração. Dessa maneira, consignou que eventual
intervenção judicial àquele momento representaria inédita margem de atuação jurisdicional
nos contornos jurídicos do impeachment, o que envolveria a delimitação semântica do prin-
cípio da separação dos Poderes.
Por isso, diferentemente do que se passou no julgamento da Arguição de Descum-

13 Houve substituição do relator nos termos do art. 38 do Regimento Interno do STF sendo designado para re-
latoria do caso o Ministro Alexandre de Moraes, em razão do acidente aéreo ocorrido no dia 19/01/2017 que vitimou
fatalmente o então Ministro Relator Teori Zavascki. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProces-
soAndamento.asp?incidente=5062276>. Acesso em: 14 jul. 2017.
ANAIS DE CONGRESSO 15

primento de Preceito Fundamental n. 378 (ADPF n. 378),14 quando o célere pronuncia-


mento do STF se impunha para oferecer as condições necessárias para o desenvolvimento
das competências dos demais Poderes, o momento em que proferida a decisão monocrática
nos autos do MS n. 34.441 justificaria sua abstenção. Ao final, consignou o Ministro que,
ao tempo da impetração, somente a demonstração de danos às instituições, à democracia,
ou ao Estado de Direito é que poderia justificar a intervenção imediata do STF em relação
às questões postas na demanda, motivo pelo qual o pedido liminar formulado pela ex-Pre-
sidente foi indeferido.
Nesse sentido, constata-se que, em prol de uma suposta autorrestrição judicial (ju-
dicial self restraint), o STF, por meio da decisão monocrática proferida pelo então Ministro
Teori Zavascki, se absteve de intervir no curso do processo. Socorrendo-se àquilo que se
poderia considerar uma espécie de virtude passiva da jurisdição constitucional em assuntos
com carregada conotação política, Zavascki se absteve de intervir no curso do feito deixando
a questão ser resolvida (como de fato o foi) por aqueles que ele denominou de “juízes cons-
titucionais do caso”, a saber, os senadores da República.
Dessa forma, salta aos olhos que, mesmo diante das alegações formuladas pela im-
petração – (i) desvio de poder na decisão do Presidente da Câmara dos Deputados de aber-
tura do processo; (ii) ausência de justa causa; e (iii) violação à ampla defesa, ao contraditório
e ao devido processo legal no curso do feito –, o Tribunal tenha decidido não decidir. Tudo
isso considerando que o momento da impetração não seria favorável à intervenção juris-
dicional no curso do feito, pois, àquela altura, uma mudança nos rumos políticos do país
pela via judicial seria pior do que deixar de apreciar as irregularidades apontadas no MS
n. 34.441. Causa espanto, ainda, como um possível impeachment ilegítimo não poderia
representar danos às instituições, à democracia, ou ao Estado de Direito, únicas hipóteses
nas quais Zavascki considerou ser possível cogitar de uma intervenção imediata do STF em
relação às questões postas na demanda. Isto é, questiona-se, aqui, o que o então Ministro
consideraria como causa apta a representar danos às instituições, à democracia, ou ao estado
de direito, se nem as alegações de um impeachment (ao longo de toda sua tramitação no
Congresso Nacional) sem crime de responsabilidade e com violações às garantias processuais
da acusada serviria para tanto.
Ao lavar as mãos em relação às questões jurídicas que fundamentavam a impetra-
ção no MS n. 34.441, o STF acabou na verdade se negando a exercer o controle do devido
processo legal do processo de impeachment e, consequentemente, deixando questões cons-
titucionais relevantes sobre a forma e o sistema de governo constitucionalmente adotadas
serem resolvidas pela maioria parlamentar do tempo da impetração. Diante disso, a questão
que se coloca é: como deveria se dar o controle jurisdicional do processo de impeachment
na experiência constitucional brasileira?

14 Referida ação tinha o objetivo de analisar a compatibilidade do rito de impeachment de Presidente da Repú-
blica previsto na Lei n. 1.079/50 com a CRFB/88.
16 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

3. CONTROLE JURISDICIONAL DO PROCESSO DE IMPEACHMENT


Tradicionalmente, sustenta-se que, na experiência constitucional norte-americana,
a atuação do Judiciário em relação ao processo de impeachment deveria ser limitada (HA-
MILTON; MADSON; JAY, 2003, p. 394-398). Analisando o artigo 65 de O federalista,
Sanford Levinson (2015, p. 247-249) recupera os debates em torno da possibilidade da Su-
prema Corte norte-americana desempenhar o papel de árbitro final nos processos de impe-
achment. A razão pela qual os fundadores optaram por deixá-la de fora desses processos foi
o receio de que a Corte não teria autoridade suficiente para exercer um papel tão difícil. Isso
porque os membros da Corte não teriam capital político suficiente para mediar as tensões
entre o representante eleito pelo povo (no caso do presidente da república) e os próprios ci-
dadãos. A principal preocupação, portanto, parecia ser a de como domar as paixões políticas
do momento, o que exigia que os tomadores desta decisão gozassem de genuíno respeito
público e, àquele tempo, acreditava-se que os membros da Suprema Corte não seriam tão
respeitados quanto os senadores.
Um argumento adicional reforçaria a preferência pelo Senado ao invés da Suprema
Corte: caso o órgão judicial fosse o detentor da palavra final sobre a condenação ou não
do presidente da república, os rumos políticos da nação ficariam nas mãos de um pequeno
número de pessoas. Como o impeachment seria um tipo especial de julgamento no qual
a condenação traz uma forma única de punição (a remoção do cargo pelo exercício inade-
quado das funções presidenciais e a proibição de ocupar qualquer cargo público no futuro),
seria preferível deixar que os próprios representantes do povo fossem os “juízes” desta deci-
são. Logo, seria coerente confiar ao Senado Federal “the sole Power to try all Impeachments”,
conforme consagrado no artigo I, Seção 3, da Constituição norte-americana.
Além da Suprema Corte norte-americana não possuir a palavra final sobre o afasta-
mento definitivo do presidente da república, a tradição do impeachment naquele país parece
sugerir que referido órgão jurisdicional também não possui competência para apreciar even-
tuais questionamentos direcionados ao Judiciário no decorrer da tramitação de processos de
impeachment. O principal precedente norte-americano sobre o tema parece apontar nessa
direção. Como afirma Sunstein (2017, p. 192-193), em Nixon v. United States, julgado em
1993, a Suprema Corte norte-americana relegou o tema à doutrina das questões políticas.
Talvez Black Jr. (1974, p. 63), tenha conseguido expressar o significado de referido enten-
dimento ao afirmar que “os tribunais não têm nenhum papel a desempenhar” nos processos
de impeachment deflagrados em face do presidente da república.
No entanto, é preciso salientar que “a ausência de ‘Judicial Review’ sobre a matéria
não significa, contudo, uma licença para o Congresso ignorar os limites e obrigações impos-
tas pelas normas constitucionais do Impeachment” (BACHA E SILVA; BAHIA e CATTO-
NI DE OLIVEIRA, 2017, p. 21).15 Muito antes pelo contrário, o debate na tradição norte-

15 Cf. BERGER, 1973, p. 86-93; GERHARDT, 2000, p. 103-111; SUNSTEIN, 2017, p. 154-155; TRIBE, 2000, p. 152-153.
ANAIS DE CONGRESSO 17

-americana do impeachment dedica várias passagens à tentativa de definição do que seriam


as impeachable offenses. Nesse sentido, um impeachment somente seria tolerado se exercido
dentro dos limites constitucionais, isto é, de acordo com os requisitos do artigo II, seção
4, da Constituição norte-americana. É que seria difícil supor que os pais fundadores, tão
devotos do princípio da separação de Poderes e do sistema de freios e contrapesos, tivessem
pretendido conferir ao Congresso a possibilidade de exercer suas competências de maneira
arbitrária.
De todo modo, é preciso deixar claro pelo menos duas observações sobre o tema. A
primeira, no sentido de que há importantes vozes na teoria constitucional norte-americana
que sustentam a possibilidade de controle jurisdicional do processo de impeachment, tais
como, por exemplo, Sunstein (2017, p. 192-193) e Berger (1973, p. 103-121), na hipótese
de impeachments inconstitucionais. A duas, porque a ratio decidendi que pode ser extraída
do precedente firmado em Nixon v. United States é no sentido de que quando as disposições
constitucionais da matéria não forem capazes de regulamentar per se o processo de impeach-
ment ter-se-ia aberto a possibilidade de definição dos rumos do processo pelos atores políti-
cos responsáveis pela condução do feito afastando, somente em tal hipótese, a possibilidade
de controle do processo pelo Poder Judiciário.16
O resgate da recepção do instituto do impeachment pela experiência constitucional
norte-americana se mostra relevante, porque assim é possível compreender como a prática
constitucional daquele país conferiu ao impeachment contornos distintos do direito inglês,
isto é, adaptando um instituto gestado em uma monarquia para uma república presidencia-
lista. No Brasil, o instituto fora recepcionado por influência da experiência constitucional
norte-americana, de acordo com as especificidades e necessidades da experiência constitucio-
nal pátria. Dessa maneira, pode-se afirmar que a atuação do STF em relação ao controle dos
atos perpetrados pelas autoridades parlamentares responsáveis pela condução do processo de
impeachment é nada mais do que uma distinção da matriz norte-americana do impeach-
ment que, por sua vez, também é distinta da matriz britânica. Tudo isso, considerando que,
a adoção do impeachment em formas de governo republicana e em sistemas presidencilistas
de governo se deu seguindo um processo de recepção: o caso norte-americano recepcionou
o instituto dos britânicos, enquato o caso brasileiro o recepcionou dos norte-americanos.17
No Brasil, “os contornos do Impeachment [...] sempre contou com a intervenção
da jurisdição constitucional, instrumento apto a aparar as ilegalidades cometidas pelo Par-
lamento” (BACHA E SILVA; BAHIA e CATTONI DE OLIVEIRA, 2017, p. 25). No en-
tanto, é preciso salientar que, no caso brasileiro, a apreciação jurisdicional da matéria não
implica em uma revisão do mérito da decisão proferida pelo Senado Federal, como se passa

16 Aqui, a Suprema Corte se preocupou em demonstrar que o caso Nixon não divergia do precedente sobre
controle jurisdicional dos atos políticos firmado em Powell v. McCormack, julgado em 1969. Sobre isso, em língua
portuguesa, cf. GALUPPO, 2016, p. 171-179; e CAMARGO, 2016.

17 Cf. VIEIRA; CAMARGO, 2016.


18 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

em algumas experiências constitucionais comparadas. Portanto, há aqui uma distinção da


atuação jurisdicional em relação ao processo de impeachment que distingue o caso brasileiro
do norte-americano.
Ainda no início da década de 1990, o STF reafirmou seu papel de garantidor do
devido processo legal do processo de impeachment e dos direitos do investigado no curso do
processo de responsabilização horizontal do presidente da república, considerando seu papel
precípuo de guardião da Constituição, a inafastabilidade da prestação jurisdicional e a ga-
rantia da observância da ampla defesa e do contraditório aos litigantes em processo judicial
ou administrativo, nos termos do art. 103, caput, c/c art. 5º, XXXV e LV, da Constituição
de 1988, nos autos dos mandados de segurança n. 20.941; n. 21.564; n. 21.623; n. 21.628;
n. 21.633; e n. 21.689. Posicionamento este que remonta à atuação do Tribunal ainda na
primeira República, quando do julgamento do habeas corpus n. 4.116, em 1918, envol-
vendo o processo de impeachment do então Presidente do estado do Mato Grosso, General
Caetano de Albuquerque18 e que fora reafirmado no caso da ex-Presidente Dilma Rousseff,
já que o Tribunal em nenhuma oportunidade se disse incompetente para apreciar os ques-
tionamentos direcionados a ele no curso do processo movido em face da ex-Presidente.
Conforme já dito anteriormente, em Nixon v. United States, a Suprema Corte nor-
te-americana consignou que a ausência de regramento constitucional suficientemente pre-
ciso justificaria a abstenção por parte da jurisdição constitucional para exercer o controle
de constitucionalidade do processo de impeachment. É preciso lembrar que, nos termos do
artigo II, seção 4 da Constituição dos Estados Unidos, apenas os casos de traição, suborno,
crimes e contravenções graves seriam hipóteses legitimadoras para a deflagração de processos
de impeachment. Para a Suprema Corte daquele país, a redação sucinta conferida ao referi-
do dispositivo constitucional, revelaria a pretensão dos fundadores de delegar aos deputados
e senadores norte-americanos a tarefa de definir quais seriam as causas suficientemente aptas
a autorizar a deflagração de processo de impeachment em face do presidente da república.
Pois bem, isso significa que a associação do impeachment à political question doctri-
ne não pode ser adotada acriticamente pela experiência constitucional brasileira. No Brasil,
“desde 1891, portanto, é a lei quem definirá os delitos de responsabilidade do Presidente da
República e também o procedimento a ser adotado para o processo e julgamento” (BACHA
E SILVA; BAHIA e CATTONI DE OLIVEIRA, 2017, p. 24). Com relação ao atual marco
constitucional brasileiro, fica ainda mais clara a distinção do modelo de responsabilização
presidencial adotado em solo pátrio em comparação ao modelo norte-americano.
Ora, em seu artigo 85, a Constituição de 1988 apresenta um rol de condutas que
podem configurar hipóteses de crime de responsabilidade delegando, em seu parágrafo úni-
co, à lei especial a definição das normas de processamento e julgamento desses crimes.19
18 Para uma recuperação dos elementos deste caso, cf. RODRIGUES, 1991, p. 300-310; HORBACH, 2007, p. 115-119.

19 Como já visto neste trabalho, trata-se da Lei n. 1.079/50, recepcionada em parte pela Constituição de 1988,
conforme decidido pelo STF no julgamento da ADPF n. 378.
ANAIS DE CONGRESSO 19

Dessa forma, é evidente a diferença da disciplina jurídica do impeachment conferida pela


Constituição de 1988 em relação à norte-americana, seja porque nossa atual Constituição
regulamenta a matéria em um nível de detalhamento maior que nos Estados Unidos, seja
porque no Brasil é a Lei n. 1.079/50, na medida em que esta fora recepcionada pela Cons-
tituição de 1988, que define as regras de processamento e julgamento do presidente da
república nos crimes de responsabilidade. Crimes de responsabilidade estes que, aliás, no
entendimento reiterado da jurisprudência do STF, são de competência legislativa privativa
da União, em virtude de seu caráter jurídico-penal.20 Isso quer dizer que o impeachment
combina elementos jurisdicionais e políticos, razão pela qual devem ser observadas todas as
garantias do acusado no trâmite do feito.
Para além de uma distinção do arranjo institucional do impeachment no Brasil e
nos Estados Unidos cabe questionar, ainda, se a intervenção jurisdicional seria cabível apenas
nos casos de descumprimento direto das disposições constitucionais e legais que regulamen-
tam o processo de impeachment. Em face deste formalismo, não seria melhor compreender
a questão como dizendo respeito à cidadania em geral? Isto é, que o controle jurisdicional
do devido processo legal do processo de impeachment deva estar comprometido com a
garantia do princípio da separação dos poderes, do sistema presidencialista de governo, da
soberania popular e da própria força normativa da Constituição, evitando que o instituto
fique à disposição de um suposto interesse exclusivo e particular das maiorias parlamentares
do momento? É nesse sentido que, acredita-se que a compreensão do controle jurisdicional
do processo de impeachment tem muito a ganhar com as contribuições de uma Teoria Crí-
tica da Constituição, já que, o que está em jogo aqui, é a própria manutenção do Estado de
Direito entre nós.

4. AS CONTRIBUIÇÕES DE UMA TEORIA CRÍTICA DA CONSTITUIÇÃO


Em sua Tese de Titularidade em Direito Constitucional, Marcelo Andrade Cattoni
de Oliveira sustenta a necessidade de superação do dualismo metodológico típico da teoria tra-
dicional da constituição para que a efetividade e a legitimidade constitucionais sejam adequa-
damente compreendidas. Nesse sentido é que Cattoni de Oliveira (2017) afirma ser preciso
superar a compreensão segundo a qual as questões normativas devam ser apreendidas como um
hiato entre um Direito Constitucional que se pretende legítimo e realidades político-sociais e
econômicas recalcitrantes. Sua proposta, em diálogo com Müller (2002), é no sentido de que
as questões relativas à legitimidade e efetividade constitucionais no Estado Democrático de
Direito devam ser reconhecidas não apenas como conflitos concretos ou tensões constitutivas do
direito positivo, mas também, como conflitos inscritos na própria legalidade constitucional.
Nessa perspectiva, os conceitos de legalidade, legitimidade e de efetividade estariam
diretamente relacionados ao conceito de constitucionalidade. Dessa forma, romper-se-ia
com a teoria tradicional da constituição para a qual a efetividade de uma determinada ordem

20 Cf. Súmula n. 722 do STF convertida em Súmula Vinculante n. 46.


20 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

constitucional estaria diretamente relacionada à correspondência ou à observância de suas


prescrições normativas com os processos políticos e sociais observados no seio de uma dada
sociedade. Legitimidade e efetividade constitucional não dependeriam da correspondência
do conteúdo dos enunciados normativos abstratamente contidos no texto constitucional aos
processos político-sociais observados na realidade, mas sim, da disputa interpretativa sobre
o sentido de e da constituição.
Considerando que “uma constituição não deve ser tratada como uma mera questão
de especialistas, pois ela não é monopólio de ninguém, nem mesmo de uma corte consti-
tucional ou de um tribunal supremo; o sentido de e da constituição é uma questão que diz
respeito à cidadania em geral” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2017, p. 111) (destaques do
original). Pois bem, dessa maneira, é preciso ter em vista que a disputa interpretativa em
torno do sentido de e da constituição, para dizer com Cattoni de Oliveira, envolve, por um
lado, o reforço da centralidade que a constituição adquiriu ao longo de sua vigência e, por
outro, a possibilidade de rupturas institucionais a partir da tentativa de lançar uma consti-
tuição contra ela mesma, o que representaria uma hipótese de fraude à constituição.
Assim, espera-se que a compreensão do procedimento não apenas reduzido “à sua
significação ‘funcional’ (uma espécie de ‘legitimação pelo procedimento’)” possa contribuir
para o estudo das teses jurídicas levantadas nos autos do MS n. 34.441, pressupondo, “num
nível institucional, a garantia do ‘contraditório’ – enquanto coparticipação, em ‘simétri-
ca paridade’, dos destinatários das decisões nos procedimentos que as prepara; da ‘ampla
defesa’ – como liberdade de argumentação e de negociação sob condições equânimes; da
‘fundamentação racional’– enquanto exigência de justificação ‘interna’ e ‘externa’ das deci-
sões; e, enfim, do devido processo legal (e legislativo) – enquanto modelo constitucional de
processo” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2017, p. 115-116). Atuação jurisdicional esta que
(i) não deve substituir o processo democrático (CATTONI DE OLIVEIRA, 2016, p. 121),
mas sim, retroalimentar a disputa interpretativa do sentido de e da Constituição a partir da
garantia dos direitos fundamentais como constitutivos da democracia e do reconhecimento
de novos sujeitos e novos direitos; e (ii) não se equivale a ouvir o clamor das ruas e manter
uma suposta correspondência do sentido normativo do Direito às demandas de determina-
dos setores da sociedade.
Considerando a decisão monocrática do Ministro Teori Zavascki nos autos do MS n.
34.441, constata-se a manutenção da distinção entre ser e dever-ser, numa tentativa de manter
uma correspondência do sentido normativo do Direito às demandas captadas no seio da socie-
dade que Cattoni de Oliveira denuncia em suas Contribuições para uma Teoria Crítica da Cons-
tituição, como inadequadas para compreender as questões relativas à efetividade e à legitimidade
constitucional. Além disso, percebe-se a pretensão de substituir as dinâmicas próprias do pro-
cesso democrático e em representar os interesses de uma determinada parcela da sociedade, uma
vez que a lógica argumentativa utilizada por Zavascki para fundamentar sua decisão acabou por
confundir o papel da jurisdição constitucional no marco de um Estado Democrático de Direito
com o papel do Legislativo e do Executivo (CATTONI DE OLIVEIRA, 2016, p. 121).
ANAIS DE CONGRESSO 21

Apesar de Zavascki se mostrar propício a adotar uma posição autocontida em re-


lação à intervenção jurisdicional no curso do processo de impeachment, o que parece ter
havido no caso foi a substituição do caráter deontológico das normas jurídicas por uma
perspectiva teleológica. É o que pode ser percebido quando se verifica que foram adotados
como fundamentos para decidir o caso (i) as consequências de eventual intervenção judicial
na vida institucional do país; (ii) a repercussão internacional da medida em relação à credibi-
lidade das instituições brasileiras; (iii) as “questões de prudência” para não apreciar o mérito
do pedido; e (iv) o momento político-institucional do país no momento da impetração para
justificar a abstenção de intervenção jurisdicional no caso.
Ora, a decisão de não intervir no curso do processo de impeachment, levando-se
em consideração as circunstâncias do momento da impetração, bem como uma suposta
necessidade de manter uma espécie de correspondência entre o sentido atribuído às dispo-
sições constitucionais e os anseios de parcela da sociedade demonstra que a atuação do STF
no caso se deu orientada por razões de ordem política. Nesse sentido, no MS n. 34.441,
considerou-se que as consequências de uma possível intervenção jurisdicional no curso da
vida política do país naquele momento seriam piores do que, por assim dizer, deixar o Con-
gresso Nacional conduzir um processo impeachment cuja legalidade, constitucionalidade e
legitimidade foram questionadas desde o recebimento da denúncia por crime de responsa-
bilidade ofertada em desfavor da ex-Presidente Dilma Rousseff.

CONCLUSÃO
Como diagnosticado pelos recentes estudos desenvolvidos pela Ciência Política,
o impeachment presidencial tem se apresentado como um novo padrão de instabilidade
política na América Latina. As prematuras quedas presidencias na região têm se dado em
razão de embates entre Executivo e Legislativo e da pressão popular pela saída dos presi-
dentes, geralmente apontados como responsáveis pelo quadro de crise política e econômica
atravessada pelos países da região, pouco importando o fundamento jurídico utilizado para
deflagrar o processo e a observância das garantias do acusado no curso do feito. Sendo assim,
a compreensão do espaço que pode ser ocupado pelo STF no que diz respeito à apreciação
jurisdicional de questões afetas ao processo de impeachment é fundamental. Para tanto, é
preciso ter em vista que, longe de ser uma “jabuticaba brasileira”,21 a atuação do STF em
relação ao controle dos atos perpetrados pelas autoridades parlamentares responsáveis pela
condução do processo de impeachment é nada mais do que uma distinção da matriz nor-
te-americana do impeachment que, por sua vez, também é distinta da matriz britânica, no
longo processo de recepção pelo qual passou o instituto desde suas origens no Direito inglês.
À luz do MS n. 34.441, constatou-se que o STF se absteve de interveir no curso do
processo de impeachment por razões de ordem política. Dessa maneira, acredita-se que uma
21 Expressão utilizada para designar eventos inusitados da cena política nacional à jabuticaba, fruta silvestre que
só existe no Brasil.
22 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

Teoria Crítica da Constituição poderia contribuir para a compreensão do controle jursidi-


cional do processo de impeachment na medida em que esta teoria se mostra ciente de que
os processos de disputa em torno do sentido de e da constituição podem comportar hipóte-
ses de fraude à constituição. Isto é, do socorro aos discursos constitucionais e legais que, nos
dizeres de Cattoni de Oliveira (2017, p. 111), “se contradiz no seu próprio uso, revelando
a si mesmo como abusivo”. Pois bem, neste contexto, a atuação jurisdicional em relação ao
controle do processo de impeachment não deve pretender substituir o processo democrático
a ponto de, sob o argumento de ouvir o clamor das ruas, manter uma suposta correspon-
dência do sentido normativo do Direito às demandas de determinados setores da sociedade.

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ANAIS DE CONGRESSO 25

PRECARIADO E CIDADANIA:
APONTAMENTOS SOBRE A CONSTITUIÇÃO DE DIREITOS SOCIAIS

ÂNGELA VITÓRIA ANDRADE GONÇALVES DA SILVA1


OTÁVIO LOPES DE SOUZA2

RESUMO
A partir do entendimento de que o processo de constituição dos direitos sociais no
Brasil resultou de um momento de lutas históricas empreendidas pela classe trabalhadora, o
presente trabalho objetiva analisar quais são os reflexos dessas movimentações no status de
cidadão de um segmento social submetido à constante espoliação: o precariado. Igualmen-
te, visa entender como os discursos provenientes da história oficial o alijam ainda mais, já
que tentam apartá-lo do espaço político de forma a promover uma deslegitimação de suas
ações, partindo do pressuposto que não compartilhariam de uma noção mínima de cidada-
nia. Clarifica, também, que o desmonte da CLT, ocorrido por meio da Lei n° 13.467/2017,
traz consigo consequências àquele segmento, em constante expansão. E é justamente por
isso que este texto, orientado pela história cultural, aonde os trabalhadores são considerados
como “donos” de suas próprias histórias, busca desvelar os equívocos e retrocessos empreen-
didos pela interpretação de grupos dominantes, com ênfase nos processos de luta e o direito
de persistir do precariado, que é um importante ator de um processo de constituição em
constante devir.
Palavras-chave: trabalhismo; populismo; precariado; direitos sociais; Reformas
Trabalhistas.

1 Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora – Campus Governador Valadares. Pesquisa-
dora VIC/UFJF. Monitora de Direito Constitucional. E-mail: angelavitoriaandrade@hotmail.com.

2 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora – Campus Governador Valadares. Pesquisa-
dor BIC/UFJF. Membro do grupo de pesquisa Centro de Estudos do Pensamento Político (CEPP/UFJF-GV). E-mail:
lopesdesouzaotavio@gmail.com.
26 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

INTRODUÇÃO
A mediação normativa, que havia sido constituída desde o período varguista e que
parecia ser a regulação mais permanente e consistente entre Estado e classes entre si, ao ser
colocada em xeque, em virtude das Reformas Trabalhistas de 2017, traz à tona a tensão
entre direitos sociais e uma nova classe em formação (STANDING, 2014): o precariado.
Além disso, a flexibilização desses direitos torna evidente as fissuras presentes no interior
dessa classe, mas também faz questionar a própria força normativa3 dos direitos sociais como
garantias da classe trabalhadora, para muito além de sua positivação. Por mais que haja
um salto temporal entre o momento de criação da mediação normativa – a invenção do
trabalhismo (GOMES, 2005) – e o surgimento do precariado enquanto fenômeno (BRA-
GA, 2012, 2012b), classe-que-vive-do-trabalho (ANTUNES, 2018), ou mesmo nova classe
(STANDING, 2014), é possível vislumbrar a correlação entre o trabalhismo, certos dilemas
da precarização do trabalho e eventos mais contemporâneos.
Diante do tema, duas perguntas principais se apresentam: em que medida as Re-
formas Trabalhistas de 2017 representam ainda mais um alijamento do precariado e o seu
assolamento à margem da sociedade e de seu status cidadão? Como seu surgimento, expan-
são e inquietação interferem na própria noção de cidadania pós-88?
Antes de respondê-las, entretanto, considera-se importante tecer algumas conside-
rações sobre populismo e trabalhismo na Era Vargas, como meio tentar de entender, sem
lançar mão de anacronismos, suas decorrências na atualidade. Opta-se, então, pela utilização
da história cultural, no intuito de tentar viabilizar certa colaboração à revisão bibliográfica
da história oficial.
Para tanto, utiliza-se daquela para fornecer certas contribuições à reinterpretação
de processos macro-históricos, nos quais os trabalhadores desse período não foram inter-
pretados como “donos” de suas ações e, consequentemente, de suas trajetórias de vida. Em
seguida, busca-se analisar como o processo de constituição de direitos sociais, sob a ótica do
trabalhismo, reflete-se no conceito de cidadania no universo do precariado, que é segmento
social em constante expansão e espoliação.

1. POPULISMO E TRABALHISMO
Partindo do conceito de Weffort4 (2003), pode-se compreender o populismo como

3 3
Para Hesse (2009), a Constituição expressa mais um dever ser na realidade social, impresso pela sua pretensão
de eficácia e conformação. Dessa forma, quando se analisa a constitucionalização dos direitos sociais, tem-se que o
texto constitucional age de maneira determinante em relação a essa realidade, sendo também definido por ela, em uma
relação mútua, onde surgem essas tensões e questionamentos.

4 Na opinião de Gomes (2017), talvez Weffort possa ser considerado o nome mais importante da interpretação
do populismo brasileiro.
ANAIS DE CONGRESSO 27

uma forma de exaltação do poder público pós-Revolução de 1930. Trata-se de um momento


em que o próprio Estado passou a ter contato direto com as massas, mediante a contribuição
significativa de um líder, que sempre foi alguém que exercia algum tipo de função pública,
de modo que tivesse condições de realizar “doações” àquelas.
De acordo com ele, não cabe reduzir esse fenômeno social e político à ideia de ma-
nipulação, levando-se em consideração que esta nunca se deu de forma absoluta. Isso porque
o populismo, em sua concepção, também serviu de meio para demonstração de insatisfações
das classes populares, que se encontravam ausentes em ação, mas presentes o suficiente para
pressionarem o status quo ante da oligarquia brasileira. Para Gomes (2017), essa manipula-
ção, sobre a qual aquele autor comenta, estabeleceu-se por meio de ambiguidades, partin-
do-se do pressuposto de que era um meio que o Estado tinha para controlar as massas e, ao
mesmo tempo, atender suas demandas.
Weffort (2003) também entende que a penetração das massas populares na política
começou a se constituir como fonte de legitimidade para o governo pessoal do governante
e, sob certa perspectiva, até mesmo para o Estado, que passou a atuar como um “árbitro”
em situações de compromisso que envolviam demandas das classes dominantes e das massas
populares. Dessa forma, tinha-se um Estado de massas, aonde era possível perceber limites
e possibilidades. Para Gomes (2017),

[...] um compromisso junto aos grupos dominantes, consagrando um


equilíbrio instável abrindo espaço para a emergência do poder pessoal
do líder, que passa a se confundir com o Estado como instituição; e
um compromisso entre o Estado/Príncipe e as classes populares, que
passam a integrar, de forma subordinada, o cenário político nacional
(GOMES, 2017, p. 33).

Concomitantemente, Weffort (2003) tenta relativizar a ideia de passividade de


classes populares no regime político brasileiro. Para ele, as interpretações quanto às lutas
de classes europeias no século XIX não podem ser transplantadas para a realidade nacional,
visto que “as relações políticas que as classes populares urbanas mantiveram com o Estado
e as demais classes (...) foram predominantemente individuais e nelas o conteúdo de classe
não se manifesta de maneira direta” (WEFFORT, 2003, p. 81).
Ele ainda elucida que, se antes de 1930 as massas não tinham quaisquer chances
reais de participação política, após esse período a sua situação não foi acompanhada de
grandes mudanças, já que sua emergência política se deu de maneira condicionada pela crise
interna dos grupos dominantes.
É o que o leva a compreender que as massas populares, entre os anos de 1930 e 1964,
“foram a grande força que nunca chegou a participar diretamente dos grandes embates, sempre
resolvidos entre os quadros políticos dos grupos dominantes, alguns dos quais reivindicando
para si a interpretação legítima dos interesses populares” (WEFFORT, 2003, p. 13). Com base
28 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

nesse pensamento, pode-se estabelecer que aquelas massas sempre foram parceiras fantasmas,
que apenas tinham possibilidades de participação, mas que nunca chegaram a se concretizar,
pelo fato de sempre terem sido blefadas pelos parceiros reais do jogo político.
Ao comentar sobre a legislação trabalhista desse período, Weffort (2003) também
elucida que o Estado a “doava” às massas urbanas. Isso porque ele aponta que era a parcela da
população com maior capacidade de pressão diante do Estado e que já possuía alguma tra-
jetória de luta antes mesmo de 1930. Além disso, o autor estabelece que essa restrição ainda
atendia aos grandes proprietários de terra – embora tivesse sido finalizada com a Revolução
de 1930, ele aponta que a hegemonia regional e local da oligarquia não foi drasticamente
afetada, tanto que ainda contava com representação estatal naquele contexto.
Igualmente com relação ao populismo, Carvalho (2016) estabelece que, no Brasil,
Argentina ou Peru, aquele era pautado em uma relação de ambiguidade entre cidadãos e
Estado. Em termos gerais, tratava-se de um vínculo capaz de trazer as massas para a política,
mediante a expansão da cidadania, ainda que esta fosse mais “passiva e receptora antes que
ativa e reivindicadora” (CARVALHO, 2016, p. 130). Por conseguinte, aprecia-se que aquele
autor realiza uma interpretação condizente com a decorrência de posição de subordinação
das massas frente aos seus líderes políticos, em nome do sentimento de gratidão que tinham
por eles.
Não obstante, toda essa trajetória começou a ser “desmontada” a partir do ano de
19875, quando parte do debate historiográfico começou a transformar o populismo “de
pedra à vidraça” (GOMES, 2017, p. 43), por ter passado a se utilizar da história cultural
para ir de encontro às narrativas da história oficial, no intuito de promover uma elucidação
histórica alternativa. Autores que pertencem a essa vertente de interpretação histórica, como
Ferreira (2011) e Gomes (1998), compreendem que toda mensagem é sempre interpretada
de forma ativa pelo seu receptor, que passa a agir dentro de seu horizonte de possibilidades,
de modo a afastar entendimentos de passividade nesse processo.
Segundo Gomes (2002), reconhecer a interlocução ativa dos trabalhadores com o
Estado significa romper com essa percepção de manipulação, na medida em que esta se con-
forma por meio de uma visão histórica bastante simplista de uma suposta desorganização e
ausência de consciência de classe daqueles.
Ademais, destaca-se que é possível decifrar o trabalhismo como sendo fruto de uma

5 Tal período corresponde ao grande marco do estudo historiográfico do fenômeno do trabalhismo no Brasil,
qual seja, A Invenção do Trabalhismo, de Ângela Maria de Castro Gomes. Não muito bem recebido por historiadores
no fim da década de 1980, o trabalho em questão tinha por intuito produzir “uma interpretação histórica alternativa,
fundada em pesquisa empírica mais demorada e iluminada pelas novas contribuições da produção internacional sobre
a formação da classe trabalhadora” (GOMES, 2017, p. 45) e, talvez, essa tenha sido uma das principais razões pela sua
“falta de espaço” no período de seu lançamento.
ANAIS DE CONGRESSO 29

ideologia6 (PARANHOS, 2007) que se desdobrou pelos esforços de políticos e intelectu-


ais que ajudaram na construção da imagem da Vargas pós-1930 e, consequentemente, na
“captura” das classes populares, por meio do reconhecimento (ou autoreconhecimento) dos
trabalhadores.
Gomes (2005) cita como exemplo o fato de Alexandre Marcondes Filho, respon-
sável pelo Mistério do Trabalho, Indústria e Comércio do Estado Novo, ter começado a
falar, em janeiro de 1942, todas as quintas-feiras, no programa radiofônico A Hora do Brasil,
que era produzido pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) e irradiado pela
Rádio Nacional. Esse era um meio que o Ministro tinha para transmitir conhecimentos ao
grande público sobre medidas governamentais em matéria de legislação social. Para que os
trabalhadores realmente fixassem o conteúdo transmitido, suas mensagens eram transcritas
e publicadas, às sextas-feiras, no jornal A Manhã.
Além disso, Gomes (2005) ressalta que, no intuito de se aproximar ainda mais des-
ses trabalhadores, o governo varguista também criou três principais datas comemorativas,
quais sejam, o aniversário de Vargas (19 de abril), o Dia do Trabalhador (1º de maio) e o
aniversário do Estado Novo (10 de novembro). Eram ocasiões “que contribuíram em mui-
to para a formação de uma metodologia do Estado Novo, do trabalhador e do presidente”
(GOMES, 2005, p. 217), já que, com exceção da primeira, Vargas sempre esteve presente
para falar diretamente ao povo, o que contribuiu, significativamente, para a construção e
reafirmação de sua imagem, com ênfase na de “pai dos pobres” e líder carismático.
A partir disso, Paranhos (2007) considera que Marcondes Filho, ao tentar reforçar
a ideia de Vargas como “amigo”, “milagroso” ou “clarividente”, potencializou a ideia de doa-
ção da legislação aos trabalhadores por parte do presidente. Com isso, passou-se a ter vários
outros mitos, como Estado-providência, Estado-benfeitor e Estado de democracia social,
por meio dos quais o trabalhismo tentou “roubar” o lugar de fala dos trabalhadores, se for
levado em consideração que o Estado objetivava apagar as memórias de suas lutas políticas,
que já vinham se desenvolvendo desde a Primeira República.7 Dessa forma, quando se co-
6 Enquanto ideologia, Paranhos (2007) identifica que a utiliza, assim como Gramsci, em Concepção Dialética
da História, no sentido de uma forma de concepção do mundo, cujos desdobramentos encontram-se, ainda que indi-
retamente, nas mais distintas concepções de vidas individuais e coletivas. Com relação à região ideológica da ideologia
do Estado Novo, como aquele autor identifica o trabalhismo, destaca-se a sua seguinte passagem: “quando a tomamos
in stato nascendi – e não simplesmente a partir de uma análise post factum –, percebemos que, em seu fazer-se, ela
obedeceu a toda uma dinâmica que estava em conexão direta com os acontecimentos de seu tempo e de seu lugar. Ela
é, nessa ótica, relativamente cambiante, ainda que conserve uns tantos elementos permanentes ao longo do tempo. O
importante a registrar, na sua etapa de nascimento e consolidação, é que ela desponta num campo em que se travam
as lutas de representações” (PARANHOS, 2007, p. 83).

7 Gomes (2014) demonstra que os debates sobre a constituição dos direitos sociais no Brasil aconteceram,
inicialmente, entre os anos 1917 e 1919. Antes disso, entretanto, a autora mapeia algumas medidas relacionadas à
“proteção e assistência ao trabalho do menor e também aos benefícios destinados aos funcionários públicos civis e mi-
litares” (GOMES, 2014, p. 74-75), mas destaca que a preocupação predominante ainda não era com uma formação
de legislação trabalhista propriamente dita.
30 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

meçou a prezar pelas histórias de vida desses trabalhadores, ignoradas pela história oficial,
passou-se a desmitificar os efeitos do mito da “ideologia da outorga”, entre eles, o da “a su-
pressão da memória das classes subalternas, que apareceriam como impotentes e incapazes
de reivindicar seus direitos elementares por si sós” (VIANNA, 1999, p. 57).
Segue-se, então, no sentido de tentar desvelar essas memórias, de modo que os
ecos das vozes das massas se tornem mais perceptíveis, até porque, como aponta Paranhos
(2007), a voz do Estado era responsável por abafar, ou mesmo silenciar, a dos trabalhado-
res, relegando-os à categoria de “sem vozes”, o que não foi completamente bem-sucedido.
Esta constatação implica reconhecer que a ideologia do trabalhismo não foi integralmen-
te absorvida pelos trabalhadores, já que também conseguiam demostrar suas insatisfações
e, consequentemente, promover suas resistências, sem se submeterem à “unanimidade” de
aprovação das políticas de propagadas do Estado Novo.
Assim, compreender o trabalhismo por meio da perspectiva de narrativas de resis-
tência significa vislumbrar, sem a presença marcante de resignação e conformismo por parte
dos trabalhadores, a constituição da cidadania por meio dos direitos sociais como mediação,
cujo processo não se deu de modo cooptado. Trata-se de um dos momentos nos quais a Te-
oria Crítica da Constituição, enquanto chave interpretativa, ganha seu espaço, já que:

[...] o sentido do papel central da Teoria da Constituição como cha-


ve interpretativa, significa que ela contribui: a) para a compreensão do
Direito Constitucional na tradição do constitucionalismo. A Teoria da
Constituição leva a sério o caráter histórico e institucional do Direito
Constitucional no horizonte da tradição do constitucionalismo moder-
no, visto como processo de aprendizagem, em longo prazo e aberto ao
por vir, com o direito e com a política, e; b) para a reconstrução do
Direito Constitucional. A Teoria da Constituição procura recuperar os
princípios normativos que dão sentido à tradição do constitucionalismo
moderno. Se a tradição do constitucionalismo pode assim ser vista como
um processo de aprendizado social, o sentido dos princípios não se reduz
à mera facticidade social ou à história efetual de uma dada tradição cons-
titucional, na medida em que esses princípios são abertos ao porvir das
lutas por reconhecimento (CATTONI DE OLIVEIRA, 2017, p. 93).

Assim, corrobora-se com o posicionamento de Cattoni de Oliveira (2015), quando este


ressalta que a Teoria Crítica da Constituição se afasta dos discursos empreendidos pela Teoria Tra-
dicional, uma vez que aquela não reflete os preconceitos reproduzidos pelas leituras da chamada
“tradição e retratos dos intérpretes do Brasil”8 (CATTONI DE OLIVEIRA, 2015, p. 2).
8 A Teoria Tradicional da Constituição “é de matriz culturalista e reflete, no direito, os pré-conceitos, dilemas e
mitos típicos de determinadas leituras que na área foram e são feitas da chamada “tradição dos retratos e intérpretes
do Brasil” (do idealismo constitucional de que falava Oliveira Vianna, passando pela plasticidade de Gilberto Freire,
pela cordialidade de Sérgio Buarque de Holanda e pelo patrimonialismo de Raimundo Faoro até o que, por exemplo,
Roberto da Mata considera “o que faz do Brasil, Brasil”, etc.)” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2015, p. 2).
ANAIS DE CONGRESSO 31

2. O PRECARIADO
Antes de analisar os reflexos dessas narrativas (populismo e trabalhismo) na ideia de
cidadania sob a ótica do precariado, faz-se necessário promover alguns apontamentos teóricos
sobre esse segmento social. Destaca-se que não há um consenso do que seja, necessariamen-
te, o precariado, que pode se manifestar como uma classe em formação (STANDING, 2014),
classe-que-vive-do-trabalho (ANTUNES, 2018) ou fenômeno (BRAGA, 2012a 2012b).
No entanto, mesmo face às divergências teóricas, é razoável afirmar que o preca-
riado se constitui como um segmento social que estabelece relações precárias de trabalho,
compartilhando uma série de inseguranças, que são traduzidas por Standing (2014) como
sendo a ausência das sete formas de garantias do trabalho, entre elas, a ausência de vínculo
empregatício, segurança do trabalho e garantia de representação. Tais déficits em relação aos
demais agrupamentos sociais influenciariam, diretamente, nas características do grupo e no
seu reconhecimento entre si.
Para além das incertezas empregatícias, a precariedade é marcada pela falta de uma
identidade, pautada no reconhecimento e baseada no trabalho, o que obstaculizou, em um
primeiro momento, a formação de uma consciência de classe por parte desse grupo social.
Além disso, sua dispersão espacial e as condições de trabalho individualizadas tornariam di-
fícil a formação de uma solidariedade de classe e formas de organização de ações coletivas.
Igualmente, as tendências do capital, ao organizar as relações de trabalho por uma lógica
destrutiva, com incentivos a sua individualização e isolamento, contribuem para o enfra-
quecimento das formas de manifestação e resistência desse segmento, como atestado por
Antunes (2018).
Quanto ao perfil dos indivíduos que constituem o precariado, tem-se que, desde a
década de 1930, houve um aumento deste enquanto fenômeno (BRAGA, 2012a; 2012b).
Todavia, o perfil de pessoas que o compõe, atualmente, é bastante heterogêneo, não se li-
mitando aos perfis dos antigos fluxos migratórios que remontavam àquela época. Para Alba
Maria Pinto (2014), o precariado, caracterizado por ser uma “multidão global em expan-
são”, constitui-se de:

[...] milhões de trabalhadores jovens-adultos com alta escolaridade, de-


sempregados ou inseridos em contratos de trabalho precários que tran-
sitam de uma ocupação para outra, quase sempre com baixos salários,
sem projetos de vida e perspectiva de futuro. É uma multidão de jo-
vens proletários assalariados, vinculados a camadas médias, com níveis
elevados de qualificação profissional, entrando e saindo de empregos
precários, a viver em situação de insegurança econômica e social, sem
identidade ocupacional, sem garantia de direitos e tomados pelo senti-
mento de ansiedade perante o futuro (PINTO, 2014, p. 230).

Como demonstrado, longe de se definir como um grupo homogêneo, o precariado


32 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

consegue se manifestar em várias formas de trabalho e perfis de trabalhadores, como recém-


-formados, estagiários, mulheres, mães e idosos.
Existem várias “portas de entrada” para a vivência nessa precarização, seja por meio
dos empregos temporários, seja por meio dos empregos de meio período. Quanto ao pri-
meiro grupo, tem-se que alguns de seus membros se submetem a essas ocupações como
uma forma de iniciar sua carreira profissional, mas a maioria deles se vale delas como uma
forma de enfrentar o desemprego.9 Quanto ao segundo, sabe-se que seus membros podem
ser alvo de mais exploração, uma vez que eles – na maioria das vezes, mulheres, com duplas
ou triplas jornadas de trabalho – se sujeitam a outras ocupações não remuneradas, como o
serviço doméstico.
Assim, percebe-se que o precariado pode se mostrar em diversas realidades, tra-
zendo uma noção de que todos estão sujeitos a essa nova morfologia (ANTUNES, 2018)
presente no mundo do trabalho. Em suma, nesta imensidão de realidades, é imprescindível
que a identificação do precariado enquanto processo perpasse pela maneira que as pessoas
são precarizadas. Dessa maneira, “ser precarizado é ser sujeito a pressões e experiências que
levam a uma existência precariada” (STANDING, 2014, p. 37), sem segurança de trabalho
e identidade coletiva.

3. A CONSTITUIÇÃO DE DIREITOS SOCIAIS E SEUS REFLEXOS NA NOÇÃO DE


CIDADANIA
Agora, importa salientar que não se compartilha, aqui, da noção de cidadania nega-
tiva (CARVALHO, 2016), uma vez que esta é incompatível com os pressupostos teóricos
10

adotados neste presente trabalho, os quais se assentam em uma organização de resistência,


representada pelas memórias enquadradas11 (POLLAK, 1989). Isso porque se acredita que o
processo de constituição dos direitos sociais, em especial os relacionados ao Direito do Tra-

9 Standing (2014) destaca uma tendência política de se lutar contra o desemprego com incentivos a ocupações
temporárias, identificada por workfare, como forma de acabar com o “hábito do desemprego”. O termo faz alusão aos
requisitos que devem ser cumpridos pelo indivíduo, como formação ou permanência em trabalho não remunerado,
para receber benefícios de assistência social.

10 José Murilo de Carvalho (2016) entende que o processo de regulamentação da legislação social estaria imerso
em um ambiente político de baixa participação popular e que este fato obstaculizou a consolidação de uma cidadania
ativa, resultando em uma cidadania passiva e receptora, antes ativa que reivindicadora, como ressaltado no próprio
texto em oportunidade anterior.

11 Para Pollak (1989), a memória se expressaria a partir do processo coletivo de acontecimentos e das interpre-
tações do passado que se desejaria resguardar. Assim, o enquadramento das memórias se expressaria a partir de “um
denominador comum de todas essas memórias, mas também uma tensão entre elas, intervêm na definição de um
consenso social e nos conflitos em um determinado momento conjuntural” (POLLAK, 1989, p. 9-10). Assim, tratar
das memórias subterrâneas é impulsionar essas interpretações do passado para além do “não-dito”, passando a ser iden-
tificada como uma contestação, ou mesmo reinvindicação.
ANAIS DE CONGRESSO 33

balho, foi resultado de uma luta que existiu antes de mesmo da década de 1930, com sua
regulamentação. Logo, presumir que a legislação social construída e consolidada no país, em
um ambiente de nula ou baixa participação, equivale, no mais das vezes, desconsiderar todos
os processos de luta que a envolve.
Diferentemente da ideia de passividade relacionada a essa classe social, os traba-
lhadores, em especial os precariazados, demonstraram inquietação social ao longo de sua
história. Assim, nas palavras de Braga (2012a),

[...] em vez de um comportamento passivo e permeável à manipulação


política, argumentaremos que a hegemonia populista caracterizou-se
por um estado permanente de inquietação social entre os operários,
especialmente sua fração precarizada, e que se expressou em seguidos
desencontros entre o ativismo nas bases metalúrgicas e a moderação
das cúpulas sindicais (BRAGA, 2012a, p. 15-16).

Dessa forma, o autor enfatiza que, mesmo em face às tentativas do Estado Novo
em mobilizar as formas de resistência, como havia um sindicalismo burocratizado12 (BRAGA,
2012a), as pressões e reinvindicações operárias permaneciam. Nessa perspectiva, a despeito
do surgimento de um sindicalismo pelego, a organização sindical se mostrou mais comba-
tiva, a partir da década de 1950, como aconteceu nas greves de Osasco, com destaque para
ação política municipal, e Contagem, representando um movimento espontâneo dos traba-
lhadores precarizados, no ano de 1968.
Reconhecendo os sindicatos como ferramentas de importância ímpar para a orga-
nização coletiva e construção de uma trajetória de lutas, esclarece-se que esse instrumento
coletivo tem passado por constantes ataques, na tentativa de desmobilizar a classe trabalha-
dora. Ao analisar o assunto sob a ótica do precariado – para além da falta de identidade já
mencionada e a heterogeneidade do grupo – quando há algum tipo de representação, Braga
(2018) a identifica na figura dos sindicatos carimbo13 (BRAGA, 2018).
Por estarem aquém da reconhecida cidadania regulada14 (SANTOS, 1979), ligada à
12 O sindicalismo burocratizado pode ser entendido como a institucionalização dos sindicatos, a partir de 1931,
com a Lei da Sindicalização (Decreto n° 19.770), que vinculava o poder de barganha e a efetividade dessa organização
coletiva ao reconhecimento estatal, o que, na prática, significou no afastamento dos líderes sindicais das demandas da
classe trabalhadora.

13 A figura dos sindicatos carimbo surge para ilustrar os sindicatos sem representatividade classista, existindo so-
mente “no papel”.

14 Nas palavras de Wanderley Guilherme dos Santos (1979): “por cidadania regulada entendo o conceito de
cidadania cujas raízes encontram-se, não em um código de valores políticos, mas em um sistema de estratificação
ocupacional, e que, ademais, tal sistema de estratificação ocupacional é definido por norma legal. Em outras palavras,
são cidadãos todos aqueles membros da comunidade que se encontram localizados em qualquer uma das ocupações
reconhecidas e definidas em lei. A extensão da cidadania se faz, pois, via regulamentação de novas profissões e/ou ocu-
34 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

noção de populismo, que inter-relaciona a ideia de direitos como uma “dádiva” estatal, os
direitos dessa nova classe social, como os previdenciários e trabalhistas, encontram-se cons-
tantemente submetidos à espoliação. Além do mais, essa concepção hermética de cidadania
fortaleceria a blindagem política construída no país ao longo dos anos, limitando ou mesmo
afastando essas minorias de debates políticos.
Butler (2018), ao analisar o processo político em espaços públicos, chega à seguinte
conclusão: o fato de assumir que os indivíduos submetidos à precarização estão destituídos
da política, ou seja, que são destituídos do próprio poder político, importa aceitar os modos
dominantes de limitação política – o que não é o objetivo do presente trabalho, pelo con-
trário. Nas palavras da autora,

[...] quando estes corpos que laboram emergem na estrada, agindo


como cidadãos, eles fazem uma reivindicação mimética à cidadania que
altera não somente como eles aparecem, mas como a esfera de apare-
cimento opera. Na realidade, a esfera do aparecimento é simultanea-
mente mobilizada e desabilitada quando uma categoria trabalhadora e
explorada emerge nas ruas para anunciar a si própria e expressar sua
oposição a seguir existindo como a condição não-visível daquilo que
aparece como “político” (destaques nossos) (BUTLER, 2018, p. 88)

Essa reinvindicação ao status de cidadão, isto é, ao direito de ter direitos, independe


de qualquer forma de organização para que seja reconhecida sua legitimidade. Para Butler
(2018), esse direito ganha existência quando é exercido por aqueles que agem em aliança.
Por conseguinte, perceber o processo de luta pelos direitos sociais como fruto de
uma luta dos próprios trabalhadores – e não meramente como uma “dádiva” – auxilia na
compreensão do processo de constitucionalização desses direitos no período varguista, com
reflexos nos dias atuais, como resultado de inúmeras influências, aonde se localizam, entre
outras, as memórias coletivas dos próprios trabalhadores, como dito, as raízes positivistas,
tenentistas, socialistas, anarquistas e também as populistas, que não costumam ser esqueci-
das pela história oficial. Atacar as etnografias operárias e seus processos de luta seria equi-
valente a atacar o direito – o direito de persistir15 (BUTLER, 2018) – em si mesmo, uma
vez que seu exercício é fora do regime e contra ele. Assim, como esclarecido por Cattoni de
Oliveira (2017), é possível entender o processo de constitucionalização como aprendizagem
pações, em primeiro lugar, e mediante ampliação do escopo dos direitos associados a estas profissões, antes que por
expansão dos valores inerentes ao conceito de membro da comunidade. A cidadania está embutida na profissão e os
direitos do cidadão restringem-se aos direitos do lugar que ocupa no processo produtivo, tal como reconhecido por
lei. Tornam-se pré-cidadãos, assim, todos aqueles cuja ocupação a lei desconhece. A implicação imediata deste ponto
é clara: seriam pré-cidadãos todos os trabalhadores da área rural, que fazem parte ativa do processo produtivo e, não
obstante, desempenham ocupações difusas, para efeito legal; assim como seriam pré-cidadãos os trabalhadores urbanos
em igual condição, isto é, cujas ocupações não tenham sido reguladas por lei” (SANTOS, 1979, p. 75)
15 Para Butler (2018), o direito de persistir à precariedade, independentemente de sua codificação, representa um
direito a ter direitos. Isso porque simbolizaria a persistência do corpo contra as forças que buscam debilita-lo.
ANAIS DE CONGRESSO 35

social sujeito a continuidades, irrupções e tropeços, mas em constante devir.

4. TENTATIVAS DE (DES)CONSTITUIÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS


É viável avaliar que, com as recentes modificações na legislação trabalhista, acom-
panhadas da terceirização e da subcontratação, a aceleração na precarização do trabalho
dá sinais de que o fenômeno do precariado não se delineou por completo no período de
surgimento do trabalhismo, mas que segue se compondo ainda nesse cenário de crise estru-
tural do capital e de contradições da ordem burguesa hipertardia, ora aprofundando essas
contradições, ora expondo a necessidade de se resgatar uma narrativa capaz de compreender
e elaborar os mecanismos da ação proletária. Os trabalhos já realizados sobre as etnografias
operárias e as revisitas arqueológicas ao fenômeno do proletariado interferem na compreen-
são de uma memória coletiva, que contribui para analisar o novo precariado que se forma,
por vezes como continuidade da classe trabalhadora da década de 1930, por vezes como
uma nova classe que se acomoda ao neodesenvolvimentismo.
Dessa forma, compreender as narrativas de resistência e as memórias enquadradas
e subterrâneas é o mesmo que tentar compreender o modo através do qual o precariado se
forma e se projeta na economia e nas relações sociais atuais, tendo os direitos sociais como
mediação. Ao se desvelar tais memórias, torna-se claro que o desmonte dos direitos traba-
lhistas, ocorrido por meio das Reformas Trabalhistas de 2017, implica, em larga medida,
desconsiderar as lutas históricas dos trabalhadores na conquista dos direitos garantidos pela
Consolidação das Leis Trabalhistas de 1943, que já projetava alguns direitos sociais adquiri-
dos tão somente após a promulgação da Constituição Federal de 1988. Por esse motivo, Ruy
Braga (2012a), ao comentar sobre esses retrocessos, entende que estes implicam na perda da
chamada cidadania salarial16(BRAGA, 2012a), sobre a qual se estabelecem os conjuntos de
proteção dos trabalhadores frente aos abusos de seus empregadores.
Ademais, a Lei n° 13.467/2017 representa uma série de retrocessos à CLT, fazendo
com que Ricardo Antunes (2018) chegue a afirmar que houve a desfiguração com imposição
do negociado sobre o legislado. Um dos pontos emblemáticos do dispositivo legal supraci-
tado é justamente a regulamentação da terceirização da atividade-fim.17 À frente da Coorde-
nadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho
(Conaete), Maurício Ferreira Brito (2017) alerta para o fato de que, “a depender do que se
negocie, você pode legislar práticas de trabalho escravo” (MAGALHÃES, 2017, p. única).

16 A cidadania salarial pode ser identificada como a “institucionalização dos direitos da cidadania por meio da
relação salarial” (BRAGA, 2012a, p. 14). Para Ruy Braga (2012a) essa vinculação teria “amortecido” a luta de classes
por meio do planejamento estatal.

17 Registra-se que a terceirização da atividade-fim é só um dos exemplos dentre outros que podem ser considera-
dos (in)constitucionais, tais como o aumento das formas de contratação de profissionais autônomos e possibilidade de
aumento de negociação da jornada de trabalho até doze horas por dia.
36 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

O problema é ainda maior quando essas mudanças são declaradas constitucionais,


por aquele que deveria ser o “guardião” do texto constitucional. É o que aconteceu com
o Supremo Tribunal Federal no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF) 324 e do Recurso Extraordinário (RE) 958252, com repercussão ge-
ral reconhecida, em que sete dos onze ministros julgaram ser constitucional a terceirização
da atividade-fim, ainda que haja importantes constatações no sentido de clarificar que o
“combate ao trabalho escravo mostra que todos os resgatados são contratados por interme-
diários que já são autônomos ou terceirizados, e quem contrata busca se esquivar da respon-
sabilidade” (MAGALHÃES, 2017, p. única).

CONCLUSÕES
Diante do exposto, é plausível afirmar que o significado das Reformas Trabalhistas
de 2017 equivale a retrocessos no status cidadão, tendo implicações no modo que ocorrerá o
crescimento do precariado, que é marcado por relações de insegurança e precarização no tra-
balho. Inseridas em uma lógica de mercadorização (STANDING, 2014) das relações políti-
cas e trabalhistas, essas transformações também foram orientadas por uma lógica mercantil,
que foi uma marca do Governo Temer. Revestidos de um véu de legitimidade e legalidade,
aquém de objetivar a concretização de direitos fundamentais e, consequentemente, de con-
cretizar as conquistas de uma democracia relativamente nova, aquelas buscaram consolidar
os interesses do patronato, tratando-se de um fato característico de um golpe parlamentar,
o qual pode ser entendido, na visão de Santos (2017), como um fenômeno típico das de-
mocracias representativas. Esse grupo de habitantes, metáfora utilizada por Guy Stanting
(2014) ao não os equiparar a cidadãos, está em constante crescimento e ficará ainda mais à
margem da sociedade.
A despeito dos retrocessos empreendidos neste tempo de crise política, analisar
o precariado como um segmento apartado da noção de cidadania é uma afronta ao texto
constitucional. Isso porque, ao avaliar o processo de constitucionalização brasileiro do ano
de 1988, que completa 30 anos em 2018, diferentemente da lógica de cidadania regulada
empreendida anteriormente, percebe-se uma noção ampliativa de cidadania, aonde todas as
pessoas humanas são partes dela, e não apenas aquelas que gozam da regulação do trabalho.
A noção tradicional deixa de ser suficiente para analisar uma realidade pós-88, uma vez que
o sentido da constitucionalização se relaciona diretamente com o exercício de disputa inter-
pretativa por diversos grupos, que é aberta a lutas políticas diversas e plurais e, até mesmo
por isso, engloba o precariado. Dessa forma, em um contexto democrático, de uma demo-
cracia sem espera (CATTONI DE OLIVEIRA, 2010), abrem-se possibilidades ao futuro
nos mais diversos moldes, permitindo que seja afirmada a condição cidadã dessa classe em
formação e expansão.
ANAIS DE CONGRESSO 37

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ANAIS DE CONGRESSO 39

A PROIBIÇÃO DA CONDUÇÃO COERCITIVA PARA INTERROGATÓRIO E


O APRIMORAMENTO DA APLICAÇÃO DO DIREITO AO SILÊNCIO:
UM PEQUENO AVANÇO EM MEIO AO RETROCESSO

CAROLINE MESQUITA1
LUDMILA CORRÊA DUTRA2

RESUMO
O presente estudo aborda o direito ao silêncio, que é uma das vertentes do princí-
pio nemo tenetur se detegere, e que se encontra consagrado no artigo 5º, LXIII, da CR/88,
no artigo 186, caput e parágrafo único, do Código de Processo Penal, além de tratados
internacionais de direitos humanos que foram ratificados pelo Brasil. Entretanto, todas as
disposições acerca da mencionada garantia são superficiais, porquanto não há regras em re-
lação ao seu âmbito de aplicabilidade e extensão, o que da margem a diversas interpretações,
que, muitas vezes, são restritivas. Apesar das diversas discussões a respeito da abrangência
de sua aplicação na prática judiciária brasileira, referido direito ainda não encontrou sua ex-
pressão máxima, haja vista os resquícios inquisitoriais arraigados no processo penal pátrio, o
aumento da criminalidade e o punitivismo emergencial presentes no Direito e na sociedade
brasileira atual. Contudo, recentemente o Supremo Tribunal Federal caminhou no sentido
de aumentar a dimensão do direito ao silêncio no Brasil, ao proibir a condução coercitiva
de imputados para participarem de interrogatório, seja policial ou judicial, o que representa
um avanço frente ao retrocesso de alguns procedimentos penais atuais.

INTRODUÇÃO
O interrogatório do imputado é um procedimento que se reveste de relativa com-
plexidade no direito brasileiro, haja vista a possibilidade de muitas das regras nele aplicadas
serem inobservadas e a forma com que é conduzido pelas autoridades, seja policial ou judi-
cial, ferirem direitos e garantias fundamentais, constitucionalmente asseguradas ao acusado.

1 Mestranda em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Advogada e Pro-
fessora de Direito. E-mail: carolmesquita2@hotmail.com.

2 Doutoranda e Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Advo-
gada e Professora de Direito. E-mail: ludmilacd@hotmail.com.
40 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

Nesse sentido, insere-se o direito ao silêncio, que, apesar de estar previsto na Cons-
tituição da República, no Código de Processo Penal e em tratados internacionais de direitos
humanos ratificados pelo Brasil, vem sendo negligenciado pelas autoridades estatais nos
últimos anos.
Sua previsão no ordenamento jurídico brasileiro é apenas superficial, já que sua
dimensão e âmbito de aplicabilidade encontram-se indefinidos, o que dá margem a diversas
interpretações, que, muitas vezes, acabam por restringir o seu conteúdo. Ademais, na prática
investigativa é comum o direito ao silêncio ser ignorado.

1. O DIREITO AO SILÊNCIO COMO VERTENTE DO PRINCÍPIO NEMO TENETUR SE


DETEGERE
Nemo tenetur se detegere é uma expressão que decorre do latim e que pode ser tra-
duzida como “ninguém é obrigado a se descobrir”. Existem outros brocardos latinos que
expressam a mesma ideia, como: nemo tenetur se accusare3, nemo tenetur se ipsum accusare4,
nemo tenetur se ipsum prodere5 e nemo tenetur prodere seipsum, quia nemo tenetur detegere tur-
pitudinem suam6.
Em síntese, a máxima nemo tenetur se detegere pode ser definida como o direito con-
ferido a pessoa de não produzir provas que lhe possam ser desfavoráveis e acarretar em sua
incriminação, assim, esta não pode sofrer qualquer prejuízo diante de sua recusa ou omissão
em colaborar com as autoridades na investigação ou na instrução de um processo criminal
do qual é ré.
O princípio possui ampla dimensão e, embora sua vertente mais conhecida seja o
direito ao silêncio, abrange também o direito de não confessar, de não colaborar com a in-
vestigação ou instrução criminal, de não declarar contra si, direito de declarar o inverídico,
desde que não haja prejuízos para terceiros, direito de não apresentar provas prejudiciais,
direito de não produzir ou não contribuir ativamente para a produção de provas contra si,
direito de não ceder o corpo, seja total ou parcialmente, para produção probatória, a inexis-
tência do dever de dizer a verdade, entre outros que se adéquem ao sentido expresso em seu
conceito, que de acordo com Carlos Henrique Borlido Haddad, abarca

[...] todas as ações, verbais ou físicas, capazes de contribuir para a incri-


minação de alguém. A recusa em submeter-se a intervenções corporais

3 Ninguém é obrigado a acusar-se.

4 Ninguém é obrigado a se acusar a si próprio.

5 Nenhuma pessoa pode ser obrigada a trair a si mesma em público.

6 Ninguém pode ser compelido a depor contra si mesmo, pois ninguém é obrigado à auto-incriminar-se.
ANAIS DE CONGRESSO 41

– colheita de sangue para exame de DNA – e a participar da reconsti-


tuição do crime, a negativa em sujeitar-se ao exame de dosagem etílica
em delitos de trânsito, a oposição à entrega de documentos que possam
comprometer seu possuidor. Todos esses comportamentos, por traze-
rem potencial lesão ao direito de defesa do acusado, estão encobertos
pela máxima (2000, p.136).

No ordenamento jurídico brasileiro a única vertente do nemo tenetur se detegere que


encontra previsão expressa é o direito ao silêncio, incluído como direito fundamental no
artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição da República de 1988, que determina que o preso
deve ser “informado de seus direitos entre os quais o de permanecer calado”, complementa-
do pelo artigo 186, caput e parágrafo único, do Código de Processo Penal, incluído em 2003
pela Lei nº 10.792, in verbis:
Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro teor da acu-
sação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o interrogatório, do seu direito de
permanecer calado e de não responder perguntas que lhe forem formuladas.
Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser inter-
pretado em prejuízo da defesa.
O artigo supra acarretou a parcial inconstitucionalidade do artigo 198 do mesmo
diploma legal, que prevê que o “silêncio do acusado [...] poderá constituir elemento para a
formação do convencimento do juiz”, o que não mais pode ser admitido em razão do direito
ao silêncio ser uma garantia individual do acusado na persecução penal, que encontra fiança
na lei maior.
As demais versões do nemo tenetur se detegere, dentre as quais, o direito a não au-
to-incriminação, devem ser extraídas de outros princípios constitucionalmente assegurados
e diplomas internacionais ratificados pelos Brasil, como o Pacto Internacional de Direitos
Civis e Políticos, ratificado pelo Brasil em 06 de julho de 1992, por meio do Decreto nº.
592, e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, ou como é mais conhecida, Pacto
São José da Costa Rica, ratificada em 06 de novembro do mesmo ano, através do Decreto
nº. 678, que o abordam em seus artigos 14, § 3º, g7 e 8º, § 2º, g8, respectivamente.
Referidos tratados foram recepcionados pelo nosso ordenamento jurídico como
normas supralegais, de acordo com o entendimento do Supremo Tribunal Federal, já que
não passaram pelo procedimento previsto no art. 5º, § 3º, que foi incorporado a nossa

7 Art. 14, § 3 Durante o processo, toda a pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualdade, às seguin-
tes garantias mínimas: g) A não ser obrigada a prestar declarações contra si própria nem a confessar-se culpada

8 Art. 8, § 2 Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for
legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes ga-
rantias mínimas: g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada.
42 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

Constituição da República pela Emenda Constitucional nº. 45, de 2004, e que dispõe que
os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos serão equivalentes as emen-
das constitucionais, desde que aprovadas em cada casa do Congresso Nacional, em dois
turnos, por três quintos dos votos de seus membros.
Entretanto, mesmo que os aludidos diplomas legais não tratassem expressamente
do princípio nemo tenetur se detegere ou de suas vertentes, este estaria presente no ordena-
mento jurídico brasileiro, por meio de interpretação extensiva do conteúdo dos princípios
da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, CR/88), do devido processo legal (artigo
5º, LIV, CR/88) e da presunção de inocência (artigo 5º, LVII, CR/88), pois conforme de-
termina o artigo 5º, § 2º, da CR/88, “os direitos e garantias expressos na constituição não
excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados”.
Ademais, o nemo tenetur se detegere visa proteger o acusado diante de possíveis ex-
cessos que podem ser cometidos pelas autoridades estatais durante a persecução criminal, ao
assegurar que a integridade física e moral do cidadão sejam preservadas.
Cabe ressaltar que esta é uma garantia que vai além da figura daquele que é alvo de
uma imputação criminal, pois é destinada a qualquer pessoa que se encontre em uma situação
em que haja pretensão do Estado em apurar fatos. Para que o nemo tenetur se detegere seja apli-
cado deve haver uma relação entre autoridade e indivíduo, assim, o princípio não se restringe
apenas ao interrogatório, policial ou judicial, ou ao processo como um todo, mas é cabível em
toda a persecução penal e em qualquer outra instância não penal ou situação cotidiana que
justifique o seu uso. Nesse sentido, é válido citar Manuel da Costa Andrade, que diz:

[...] enquanto emanação normativa da dignidade humana e do livre


desenvolvimento da personalidade, o princípio ‘nemo tenetur’ não
comporta descontinuidades, sequer graduações, em função das suces-
sivas fases do processo ou da intervenção das diferentes instâncias for-
mais. Irrestritamente válido em relação às autoridades judiciárias, terá
de sê-lo igualmente perante os órgãos de polícia criminal. Acolhendo-
nos à conhecida e expressiva metáfora de Radbruch, o princípio terá
de colher o respeito tanto do juiz que ‘habita o andar nobre da casa,
onde predominam formas esmeradas de tratamento’, como da polícia
criminal que ocupa a ‘cave do edifício, onde a regra é o recurso a pro-
cessos mais rudes de tratamento (2012, p. 131-132.).

Entretanto, no que tange ao direito ao silêncio como vertente do nemo tenetur se


detegere, o momento em que este ganha relevo é no interrogatório, seja policial ou judicial,
pois faculta ao imputado a escolha dele participar ou não.

2. O INTERROGATÓRIO E O DIREITO AO SILÊNCIO


A etimologia da palavra interrogatório provém do latim interrogatorius, que deriva
ANAIS DE CONGRESSO 43

do termo interrogar, do latim interrogare, cujo prefixo inter é traduzido como entre e sufixo
rogare significa pedir.
Carlos Henrique Borlido Haddad indica que o uso do vocábulo interrogatório é
equivocado, pois o termo possui “mais de um significado para expressar distintas realidades”.
Numa primeira acepção, seria o ato ou efeito de interrogar, ou seja, a sucessão de perguntas
dirigidas a alguém, em uma segunda, seria um adjetivo e poderia ser substituído pelo termo
“interrogativo”, que designa o que é próprio para interrogar e, por fim, indica o ato em que
perguntas são feitas a um acusado ou indiciado, dependendo do momento da persecução
penal em que as perguntas são realizadas e da autoridade que as realiza (2000, p. 25).
Para Hélio Tornaghi o “Interrogatório, por antonomásia, é a inquirição do réu. Em
sentido um pouco mais amplo é também a do indiciado, no inquérito” (1989, p. 357). José
Frederico Marques, por sua vez, diz que o interrogatório consiste “em declarações do réu
resultantes de perguntas formuladas para esclarecimento do fato delituoso que se lhe atribui
e de circunstâncias pertinentes a este fato” (1997, p. 297).
Adalto Dias Tristão informa que é da essência do interrogatório:

a) Ser um ato processual, b) ser presidido pelo Juiz Criminal (no in-
terrogatório judicial praticado para a instrução de processo criminal,
na fase do inquérito é realizado pelo Delegado de Polícia); c) realiar-se
através de perguntas dirigidas ao acusado ou ao indiciado; d) objeti-
var a coleta de dados acerca do fato delituoso; e) oportunizar que o
acusado apresente a sua versão dos fatos, e querendo, deles de defenda
(2009, p. 81).

O Código de Processo Penal brasileiro aborda o interrogatório em seu capítulo III,


artigos 185 a 196, que estabelecem regras para a realização do interrogatório judicial, mas
nada falam sobre o interrogatório na fase pré-processual, cujas referências estão expressas
nos artigos 6º, I, que trata da competência da autoridade policial após recebimento da no-
titia criminis e 304, caput, que dispõe sobre o interrogatório a ser realizado após prisão em
flagrante, e que, portanto, segue os ditames do interrogatório judicial no que for possível, já
que possui natureza inquisitiva.
Há, ainda, o artigo 260, do Código de Processo Penal, que possibilita a condu-
ção coercitiva do acusado para interrogatório, já que sua inocorrência é causa de nulidade,
conforme artigo 564, III, e, do mesmo diploma legal, o que representa flagrante violação
do conteúdo do direito ao silêncio, um dos motivos que fizeram com que, recentemente o
regramento fosse objeto de revisão pelo Supremo Tribunal Federal, que, por meio do jul-
gamento das ADPF 395 e 444, decidiu proibir a condução coercitiva do imputado para
interrogatório.
Ressalta-se que, no decorrer dos últimos anos, a possibilidade da condução coerciti-
44 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

va do imputado para realização do interrogatório foi objeto de diversas críticas por parte dos
estudiosos do Direito, que já haviam percebido que o procedimento estava em descompasso
com o conteúdo da Constituição da República de 1988. A título de exemplo, colaciona-se
a observação feita por Roberto Delmanto Junior em 2004:

Tampouco existe embasamento legal, a nosso ver, para a sua condução


coercitiva com fins de interrogatório, prevista no art. 260 do CPP, já
que de nada adianta o acusado ser apresentado sob vara e, depois de
todo esse desgaste, silenciar. Se ele não atende ao chamamento judi-
cial, é porque deseja, ao menos no início do processo, calar. Ademais, a
condução coercitiva ‘para interrogatório’, daquele que deseja silenciar,
consistiria inadmissível coação, ainda que indireta (2004, p. 192-193).

A prática da condução coercitiva para interrogatório do imputado, inclusive, já


havia sido suprimida em propostas de projeto de reforma do Código de Processo Penal,
conforme a elaborada pela comissão nomeada pela portaria 61, em 20 de janeiro de 2000,
do Ministro de Justiça, em que, segundo Maria Elizabeth Queijo, ao dispor sobre o Tribunal
do Jurí: “O anteprojeto permite a realização do julgamento sem a presença do acusado que,
em liberdade, poderá exercer a faculdade de não-comparecimento como um corolário lógico
do direito ao silêncio constitucionalmente assegurado” (2003, p. 238).
As diretrizes sobre a realização do interrogatório no Tribunal do Jurí estão expressas
no artigo 474 do Código de Processo Penal.
O interrogatório no Brasil possui natureza jurídica dúplice, sendo considerado tanto
um meio de prova, quanto um meio de defesa. Sobre o tema, Guilherme de Souza Nucci expõe:

Em verdade, o interrogatório é fundamentalmente, um meio de defe-


sa. Em segundo plano, trata-se de um meio de prova. Meio de defesa,
essencialmente, porque é a primeira oportunidade que tem o acusado
de ser ouvido, garantindo a sua autodefesa, quando narrará a sua ver-
são do fato, podendo negar a autoria e indicar provas em seu favor.
Poderá, ainda, calar-se, sem que se possa extrair daí qualquer prejuízo à
sua defesa ou, então, é possível que assuma a prática do delito, alegan-
do em sua defesa alguma excludente de ilicitude ou de culpabilidade.
Por outro lado, não deixa de ser, para a lei brasileira, em segundo lugar,
meio de prova. Note-se as várias perguntas que o juiz fará ao réu que
se disponha a falar: se a acusação é verdadeira; onde estava ao tempo
da infração; se conhece as provas contra ele apuradas; se conhece a
vítima e as testemunhas; se conhece o instrumento com que foi prati-
cada a infração; se, não sendo verdadeira a imputação, conhece a razão
pela qual está sendo acusado; todos os demais fatos e pormenores que
conduzam à elucidação dos antecedentes e circunstâncias da infração,
além de dados sobre a vida pregressa [...] (NUCCI, 1999, p. 163).
ANAIS DE CONGRESSO 45

Dos direitos conferidos ao acusado durante o interrogatório, sobreleva-se o direito


ao silêncio, que assegura ao acusado o direito de não responder as perguntas que lhe forem
formuladas, sem que sua recusa importe em confissão ou interpretação em seu prejuízo.
Ademais, com o julgamento das ADPF 395 e 444, que acabou por ampliar o sentido da
referida garantia, o acusado não está nem mesmo obrigado a participar do interrogatório,
seja ele judicial ou policial. Nesse sentido, reforça-se a noção de interrogatório como meio
de defesa, por assegurar ao acusado o poder agir de acordo com o seu livre arbítrio.
De acordo com Maria Elizabeth Queijo, o nemo tenetur se detegere é um princípio
que assegura a liberdade moral do acusado durante o interrogatório, onde tem a liberdade
de “querer e poder determinar o próprio comportamento sem imposições externas”. Além
disso, resguarda sua liberdade de autodeterminação, que está inserida na liberdade moral, o
que lhe oportuniza a livre escolha a respeito do comportamento processual que queira ado-
tar (2003, p. 189).
É necessário ressaltar que, apesar de diversos ordenamentos jurídicos adotarem o
direito ao silêncio e o nemo tenetur se detegere, cuja dimensão é muito maior do que aquele,
que nele está contido, o âmbito de aplicação desses direitos acabam sendo restringidos por
conflitarem com regras que deitam raízes no modelo inquisitorial de processo. As caracterís-
tica do direito ao silêncio, como espécie do princípio o nemo tenetur se detegere, inserem-se
no modelo acusatório de processo, pois no modelo inquisitório não há lugar para o silêncio,
já que existe uma verdade pré-concebida, que leva o acusado a ser visto e tratado como mero
objeto, sendo nele autorizado a aplicação de qualquer método que o leve a confissão. Maria
Elizabeth Queijo ao citar Vittorio Grevi explica que:

[...] o nemo tenetur se detegere é um princípio de civilidade, típico do


modelo acusatório. Nele, o acusado não é mais considerado como a
pessoa que deve contribuir e “iluminar o juiz com o seu conhecimen-
to”. É-lhe dada liberdade para decidir se fornece ou não a sua própria
contribuição para o processo. Desse modo, a acusação não poderá fa-
zer uso, como regra, do conhecimento do acusado, devendo buscar
outras provas para demonstrar os fatos a ele imputados (QUEIJO,
2003, p. 84).

Nesse contexto, o direito ao silêncio e as demais vertentes do nemo tenetur se detege-


re encontram-se estritamente vinculados com outros direitos pertinentes ao Estado Demo-
crático de Direito, como o direito a intimidade, à liberdade moral, à dignidade e à intangi-
bilidade corporal.
Acontece que restam resquícios inquisitoriais no ordenamento jurídico brasileiro,
muitos deles ligados a diversos preceitos do Código de Processo Penal, de 1941, que tem um
cunho totalitário, por ser inspirado no Codice Rocco italiano de 1930, marcado pela adoção
do sistema inquisitório nas duas fases da persecutio criminis. E, mesmo após as diversas refor-
mas a que foi submetido, o Código de Processo Penal brasileiro não conseguiu se adequar
46 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

por completo a Constituição da República de 1988, que é democrática e adota o modelo


acusatório de processo, o que levou a formação de um sistema híbrido.
Ademais, o aumento da criminalidade e o punitivismo emergencial acabam levan-
do a inobservância de direitos e garantias fundamentais do acusado, para encobrir a incom-
petência dos agentes estatais no exercício da função investigativa, dentre os quais se encontra
o nemo tenetur se detegere e, portanto, o direito ao silêncio que, se aplicados de forma ampla
e irrestrita, certamente, aumentarão o trabalho dos que exercem referida função pública.

3. INOBSERVÂNCIA DO CONTEÚDO DIREITO AO SILÊNCIO


Sabe-se que, se por um lado tem-se direitos resguardados pela Constituição da Re-
pública, como é o caso do direito ao silêncio, por outro, o cenário jurídico atual demonstra
uma série de ofensas às garantias do imputado, que são constantemente justificadas pelo
aumento da criminalidade e pela necessidade de punir os transgressores da lei penal.
Aury Lopes Júnior pontua que, diante da imersão nesse problema, há uma dificul-
dade em fazer o esforço do afastamento, do estranhamento, em relação ao ritual judiciário 9
brasileiro, principalmente na esfera criminal, em que se tem um processo penal primitivo e
inquisitório (2018, passim). Esse fato é perceptível nas exposições da imprensa e das redes
sociais, onde se vê a existência de uma onda de punitivismo presente na sociedade brasi-
leira, em que, aqueles que professam tais discursos, buscam o endurecimento das leis, a
redução da menor idade penal e o encarceramento como resposta imediatista às mazelas
sociais.
Essa realidade preocupa os constitucionalistas, uma vez que o Poder Legislativo
busca responder ao anseio popular, com a criação de novos tipos penais (muitos deles desne-
cessários) e com o aumento das penas - em um país com a terceira população carcerária do
mundo e em que quase metade dos presos são provisórios10. Apesar disso, ainda é comum o
discurso de magistrados e operadores do Direito, que alegam que a falta de punição na socie-
dade brasileira é a razão para o aumento da criminalidade. Outros tantos, ainda defendem a
ideia de que se criou uma sociedade em que o crime frequentemente compensa11.
É fomentado por esse anseio por punição e pela substituição do Direito pela moral
que se tem visto as garantias constitucionais serem relativizadas. O jurista Lênio Luís Streck
há muito tem apontado a celeuma dos representantes da justiça: delegados que indiciam po-
líticos por intuição, juízes e membros do Ministério Público negando o direito ao silêncio,

9 “Ritual judiciário” na perspectiva de Antoine Garapon, na obra Bem julgar: ensaio sobre o ritual judiciário, pu-
blicado pela editora Piaget.

10 Segundo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), de 2017.

11 Conforme declarou o Ministro Luís Roberto Barroso no Habeas Corpus nº 152752 :“Criamos um país de
ricos delinquentes, um sistema judicial que não funciona e faz as pessoas acreditarem que o crime compensa”.
ANAIS DE CONGRESSO 47

entre várias outros imbróglios.


Para Lênio Streck, trata-se do “espírito desta época”, o Zeitgeist da “wäscht schnell”
(lava rápido ou “a jato”) que se transformou em uma ideologia e cujas maiores consequên-
cias recairão sobre aqueles com menores condições de se defender (2018, on-line). E alerta
para o retrocesso dos dias atuais, em que aplicar a Constituição da República de 1988 virou
um ato subversivo e revolucionário. Cumprir as garantias e princípios constitucionais como
constam na Constituição da República virou algo perigoso, já que os juízes só são bem ava-
liados se atuarem enviesados pela punição.
O advogado Geoffrey Robertson, amplamente conhecido no cenário jurídico in-
ternacional, afirma que o sistema judiciário atual é “uma afronta direta aos preceitos funda-
mentais do Pacto de San José da Costa Rica”, pois “esvaziam as garantias constitucionais da
Carta brasileira de 1988”, inclusive pelo uso ilegal das prisões preventivas, pela violação do
direito de presunção de inocência e pelo uso desnecessário da condução coercitiva (2017,
on-line).
O procurador apontou o que há muito tempo juristas brasileiros alertam: o Brasil
tem um sistema jurídico primitivo, que tem sido instrumento de abuso de poder através das con-
duções coercitivas, utilizada amplamente em todo território nacional, afrontando o direito
ao silêncio do réu. E é justamente em observância ao uso generalizado dessa medida, que se
extrai a relevância do presente artigo e esclarece-se detalhadamente sobre o instituto a seguir.

4. A CONDUÇÃO COERCITIVA E O DIREITO AO SILÊNCIO


A condução coercitiva pode ser definida como um meio conferido à autoridade
competente, de fazer comparecer a ato, algum sujeito que, injustificadamente, deixou de
cumprir determinação que o convoca para prestar esclarecimentos acerca de determinado
fato. Nesse sentido, configura-se como forma de restrição à liberdade de locomoção do in-
divíduo.
No Brasil, a primeira manifestação do instituto se deu nas Ordenações Filipinas, de
1603, que aqui vigeu até 1916, pelo menos no âmbito cível, cuja estrutura jurídica resulta
da reforma do Código Manuelino, de 1513, e que determinava que testemunhas e réus re-
calcitrantes poderiam ser conduzidos à força pelos Oficiais de Justiça. Além disso, o art. 95,
do Código de Processo Criminal do Império, de 1832, estabelecia que: “as testemunhas que
não comparecerem sem motivo justificado, tendo sido citadas, serão conduzidas debaixo de
vara e sofrerão a pena da desobediência”.
Atualmente, o Código de Processo Penal dispõe sobre a condução coercitiva nos
artigos 201, 218, 260, 278, 411, 461 e 535, que a regulamenta em relação ao ofendido, as
testemunhas, aos acusados, e aos peritos. Contudo, faz-se ressalva ao artigo 260 do Código
de Processo Penal que passou por nova interpretação pelo Supremo Tribunal Federal, que
proibiu a condução coercitiva de imputados para fins de interrogatório a luz dos direitos
48 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

constitucionalmente assegurados ao acusado, entre eles, o direito ao silêncio.


Destaca-se que, em relação as vítimas, as testemunhas e os peritos, a medida encon-
tra fundamento na busca pela verdade, mesmo quando a condução coercitiva é decretada
na fase pré-processual, com fins investigatórios, já que destes é possível exigir uma postura
ativa de participação processual, quanto a prestar depoimentos ou declarações, participar da
reconstrução do crime, realizar reconhecimento de pessoas, entre outros. No entanto, do
imputado espera-se apenas uma postura passiva, já que não está obrigado a se auto incrimi-
nar, conforme determina o nemo tenetur se detegere.
Nesse sentido, o instituto da condução coercitiva foi objeto das Arguições de Des-
cumprimento de Preceito Fundamental de nº 395 e 444, a primeira interposta pelo Partido
dos Trabalhadores e a última pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil
perante o Supremo Tribunal Federal, no ano de 2017, com o fim de que fosse reconhecida
a não recepção pela Constituição da República de 1988, do artigo 260, do Código de Pro-
cesso Penal de 1941, no que concerne a sua aplicação no âmbito das investigações criminais,
ante a incompatibilidade com os preceitos fundamentais constitucionalmente previstos.
Nas demandas questionou-se o conteúdo do artigo 260 do Código de Processo
Penal, cuja norma, no âmbito do processo judicial, prevê a condução coercitiva do acusado
para realização de interrogatório e outros atos. Todavia, a previsão normativa era aplicada
de maneira a contrariar os ditames constitucionais, vez que, além de utilizada para a consti-
tuição de atos no curso da investigação criminal, através de interpretação extensiva, afronta
o direito ao silêncio, previsto no artigo 5º, LXIII, da CR/88, o princípio do nemo tenetur se
detegere, entre outras garantias.
O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ressaltou a dualidade dos
efeitos trazidos pela condução coercitiva, pois possui repercussão sobre a liberdade do indi-
víduo, ainda que de forma passageira, configurando uma forma de coação. Nesse sentido,
Ingo Sarlet inclui a condução coercitiva de testemunhas - e por óbvio, permite-se concluir,
também dos investigados - entre as hipóteses de restrições legais ao direito fundamental de
liberdade de locomoção (apud MARINONI; MITIDIERO, 2013, passim).
Além disso, o Conselho Federal ressaltou o não cabimento da condução coercitiva
sem anterior recusa no cumprimento de intimação e, mais, que o não comparecimento do
acusado, por si só, não enseja a determinação de condução coercitiva na fase de investigação
criminal. Isso porque a resistência do investigado em participar ativamente de atos é uma
manifestação do seu direito a não autoincriminação, o que não configura desobediência ou
desacato, mas, sim, direito subjetivo constitucionalmente expresso.
Ademais, ressaltou que o uso dessa medida em sede inquisitorial representa um retro-
cesso à concepção do acusado como mero objeto de prova, desprovido de garantias individu-
ais, pois o seu não comparecimento é uma manifestação do direito à ampla defesa e de que ele
se resguardou ao direito ao silêncio, optando por manifestar-se durante a fase judicial.
ANAIS DE CONGRESSO 49

Diante disso, o Supremo Tribunal Federal inicialmente em sede de liminar apontou


para uma mudança de entendimento, em dezembro de 2017, através de decisão monocrá-
tica do relator, ministro Gilmar Mendes, no bojo da Ação de Descumprimento de preceito
fundamental – ADPF de nº 444/DF, onde vedou, em todo o território nacional: “(...) a con-
dução coercitiva de investigados para interrogatório, sob pena de responsabilidade discipli-
nar, civil e penal do agente ou da autoridade e de ilicitude das provas obtidas, sem prejuízo
da responsabilidade civil do Estado”.
Importante frisar que ao deferir a medida cautelar, o ministro Gilmar Mendes foi
imperativo em esclarecer que o deferimento tocava apenas às conduções coercitivas levadas
a efeito no âmbito da primeira fase de persecução penal, ou seja, em sede de investigações
criminais.
Apesar da restrição inicial explicitada na cautelar, o relator pontuou que a ADPF
nº 395 visava, no mérito, à declaração da não recepção parcial do artigo 260, do Código de
Processo Penal, no que tocava a permissão da condução coercitiva do investigado – em sede
de investigações criminais – ou do réu – no bojo do processo judicial propriamente dito –
para a realização de interrogatório, bem como a declaração da inconstitucionalidade do uso
da condução coercitiva como medida cautelar autônoma, com a finalidade de obtenção de
depoimentos de suspeitos, indiciados ou acusados em qualquer investigação de natureza
criminal.
É de fato inconcebível e ilógico, em se tratando de um Estado Democrático de
Direito, que se obrigue um cidadão presumidamente inocente a comparecer diante de uma
autoridade policial para ali valer-se do seu direito constitucional ao silêncio. E, como se não
fosse suficiente, a sua inadequação ao sistema normativo, o instituto ainda tem sido ma-
nejado pelas autoridades públicas de modo a aumentar os seus efeitos nocivos em prol da
espetacularização do “processo penal midiático” (2006, on-line).
Desse modo, e em consonância com muitos doutrinadores que sustentam a incom-
patibilidade da condução coercitiva com o texto constitucional, defendida, entre outros,
por Alexandre Morais da Rosa, Michelle Aguiar, Aury Lopes Jr. e Delmanto Jr., o Ministro
Gilmar Mendes decidiu em sede de cautelar que:

(...) a condução coercitiva para interrogatório representa uma restrição


da liberdade de locomoção e da presunção de não culpabilidade, para
obrigar a presença em um ato ao qual o investigado não é obrigado a
comparecer. Daí sua incompatibilidade com a Constituição Federal.

Posteriormente, em decisão do Pleno, que atentou para os preceitos constitucio-


nais, firmou-se entendimento sobre a inconstitucionalidade da condução coercitiva, inclu-
sive em sede processual. A votação obteve seis votos contrários às conduções e cinco a favor.
Os posicionamentos favoráveis partiram dos ministros Gilmar Mendes, Rosa Weber, Dias
Toffoli, Celso de Mello, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio Mello.
50 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

Na oportunidade, o ministro Dias Toffoli ressaltou a importância de estrita obe-


diência aos limites da lei para a utilização da condução coercitiva, sob pena de se atentar
contra o direito fundamental de ir e vir, e a garantia do contraditório, da ampla defesa e a
garantia da não autoincriminação.
No mesmo sentido o ministro Lewandowski ressaltou que o direito ao silêncio, pre-
visto no art. 5º da CR/88, por si só já seria suficiente para paralisar os efeitos da condução
coercitiva do réu para interrogatório, pois, “se cria um estado psicológico no qual o exercício
do direito ao silencio é propositalmente dificultado.” Frisou, ainda, que caso o réu seja de-
vidamente intimado e não comparecer, outra consequência não poderá ser extraída senão a
de que preferiu simplesmente não se apresentar.
Em seu voto, o ministro Marco Aurélio alertou sobre o perigo do punitivismo an-
tecipado, uma vez que a medida expõe a honra de qualquer cidadão investigado em prática
criminosa, alcançando profundamente a sua dignidade e por isso dever ser tratada com
maior rigor, sob pena de prejuízo à segurança jurídica.
No tocante à opinião midiática e popular, o ministro Celso de Mello destacou que
os julgamentos do STF, para que sejam isentos, não podem expor-se às pressões externas;
afirmou, ainda, a necessidade de se dar proteção ao devido processo legal e que o Estado
“não tem o direito de tratar suspeitos, indiciados ou réus como se culpados fossem”.
O relator Gilmar Mendes por sua vez enfatizou que a decisão não tem o condão de
desconstituir interrogatórios realizados até o julgamento, mesmo que o interrogado tenha
sido coercitivamente conduzido para o ato. Isto porque estaria se reconhecendo a inadequa-
ção do tratamento dado ao imputado, e não do interrogatório em si.
Para a maioria dos ministros, nos termos do voto do relator, o método representa
restrição da liberdade de locomoção e da presunção de não culpabilidade e por isso deve ser
esquecido. Portanto, declarado inconstitucional.

CONCLUSÃO
Diante de todo o exposto, conclui-se que a decisão do Supremo Tribunal Federal
mostrou-se correta, pois apontou no sentido de aumentar a dimensão do direito ao silên-
cio no Brasil, ao deixar a conveniência do acusado e de seu defensor o comparecimento ao
interrogatório, seja policial ou judicial, o que representa um avanço frente ao retrocesso de
alguns procedimentos penais da atualidade.
É certo que o novo entendimento afasta a obrigatoriedade do imputado na parti-
cipação de um procedimento que pode se mostrar degrante, porquanto manter-se em si-
lêncio enquanto perguntas lhe são dirigidas pode causar constrangimento e na seara do júri
influenciar até mesmo um julgamento, o que vai contra o conteúdo do direito ao silêncio.
ANAIS DE CONGRESSO 51

Ademais, a condução coercitiva quando exercida contra alguém que está sendo acusada do
cometimento de um crime revela-se como forma de coação e exerce intimidação para que
o imputado participe ativamente do interrogatório e responda às indagações que lhe forem
formuladas.
Nesse sentido, proibir a condução coercitiva de imputados para fins de interroga-
tório, aproxima o processo penal brasileiro do modelo acusatório e o concilia com os ideais
constitucionais, já que a possível consequência do não comparecimento para interrogatório,
como exercício do direito ao silêncio, será a não apresentação da versão dos fatos pelo acusa-
do, que deixará de aproveitar a oportunidade que lhe é ofertada para exercer sua autodefesa.
A observância do conteúdo do direito ao silêncio na realização de um interrogató-
rio policial ou judicial representa respeito à dignidade do imputado e a demonstração de que
as provas de sua culpabilidade devem ser colhidas sem a sua cooperação, já que não pode
mais ser considerado como objeto na atual feição do processo penal, mas sim como sujeito
de direitos. Assim, se afere que o nemo tenetur se detege, em toda a sua extensão, é um direito
do cidadão diante do poder estatal, já que age como limitador da atividade investigativa na
busca pela verdade dos fatos na persecução penal.
Apesar do Código de Processo Penal brasileiro ter um claro viés inquisitorial, suas
normas devem ser interpretadas a luz da Constituição da República e do Estado Democráti-
co de Direito, de forma que nada justifica a lesão a direitos e garantias fundamentais assegu-
radas aos cidadãos, nem mesmo o aumento da criminalidade e o punitivismo emergencial.

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ANAIS DE CONGRESSO 53

OCUPAÇÃO DANDARA:
LITIGÂNCIA ESTRATÉGICA E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A ARTICULAÇÃO DA CLASSE
TRABALHADORA PRECARIZADA A PARTIR A LUTA PELO DIREITO À MORADIA.

FERNANDA VIEIRA OLIVEIRA 1

ISABELA DE ANDRADE PENA MIRANDA CORBY 2

MARCELO ANDRADE CATTONI DE OLIVEIRA3

“Enquanto morar é um privilégio, ocupar é um direito.”

RESUMO
O presente artigo tem como objetivo central correlacionar duas pautas intrínsecas
às lutas sociais que geralmente são analisadas de modo dissociado, a precarização do traba-
lho e o déficit histórico de moradia, por meio do caso emblemático da Ocupação Danda-
ra, hoje, Comunidade Dandara. Na primeira parte traçamos uma linha do tempo da luta
permanente da Dandara e seus/suas moradores/as, como também recuperamos as etapas
preparatórias da organização popular que resultou na Ocupação Urbana. Abordamos tam-
bém a compreensão conservadora do direito à propriedade em contraposição à função social
da propriedade na Constituição. Na segunda parte do artigo dedicamos a compreensão da
litigância estratégica construída e viabilizada através da assessoria jurídica popular, e como
essa alternativa jurídico-política foi fundamental para cada vitória ao longo dessa trajetória
de lutas da Comunidade Dandara. Por fim, consideramos que ainda é um desafio compilar,
organizar e traduzir para a academia as experiências e estratégias criadas pelas organizações
sociais junto a assessorias jurídicas populares ao longo das últimas décadas, pois acreditamos
que esta tarefa seja imprescindível para subsidiar mais pesquisas que tenham no seu centro
os sujeitos vulneráveis e periféricos e a luta organizada.

1 Mestranda em Direito pela UFOP na Linha de Pesquisa: Novos Sujeitos e Novos Direitos. Advogada crimina-
lista na Assessoria Popular Maria Felipa. fernandavieira.advogada@gmail.com

2 Doutoranda em Direito pela UFMG na Linha de Pesquisa: História, Poder e Liberdade. Professora Universitá-
ria. Advogada apoiadora da Assessoria Popular Maria Felipa. isabelacorbyadv@gmail.com

3 Professor Titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da UFMG. mcattoni@gmail.com


54 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

Palavras-chave: Função Social da Propriedade; Litigância Estratégica; Ocupação


Urbana e Precarização do Trabalho

INTRODUÇÃO4
A Constituição da República de 1988 é fruto de lutas e disputas desde o processo
constituinte. Nada mais adequado que na comemoração dos seus trinta anos retomemos e
registremos as possibilidades de enfrentamentos jurídicos-políticos que ela viabilizou, den-
tre estas, a luta da classe trabalhadora precarizada por uma moradia digna, como é o caso
concreto da Ocupação Dandara em Minas Gerais, na região metropolitana de Belo Hori-
zonte. Um projeto constitucional se faz também na medida que nós, cidadãs e cidadãos,
organizamos numa militância social em conjunto com a assessoria jurídica popular. Portan-
to, um dos objetivos deste artigo é resgatar as memórias das lutas que compuseram e ainda
compõem a construção da Ocupação Dandara, bem como apresentar o papel da assessoria
jurídica popular nesta história de resistência diária.
Tradicionalmente quando falamos da organização dos/as trabalhadores/as ou da
lutados/as trabalhadores/as o nosso imaginário nos remete quase que automaticamente a
categorias de trabalhadores/as específicas, tais como funcionários/as públicos/as, trabalha-
dores/as das fábricas, do transporte coletivo urbano, entre outras. Estas categorias carregam
em comum a possibilidade de seu espaço físico de trabalho ser determinado ou determinável
e dele ser suscetível de alguma troca de experiência e diálogo. Contudo, o reconhecimento
jurídico dos sindicatos não afasta o conflito que no interior da própria ordem jurídica capi-
talista ainda ocorre, assim como a tentativa permanente por parte do sistema de controlar
a atuação organizada dos/as trabalhadores/as via sindicatos e outras formas de organizações
e movimentos sociais.
Neste sentido, o local de trabalho, onde é fácil o monitoramento pelo capital, e
passa a ser um ambiente inóspito para o debate com o/a trabalhador/a, para mobilizá-lo/a
ou simplesmente acessá-lo/a. Porém, as necessidades do/a trabalhador/a não desaparecem e
de crise econômica em crise econômica, mesmo que respeitando as regras do jogo, várias tra-
balhadoras e trabalhadores se veem asilados de seus postos de trabalho formais e constroem
novas formas de sobrevivência na informalidade e na ausência de direitos trabalhistas.
A informalidade aumenta a pressão sobre a classe trabalhadora em relação à dificul-
dade de acesso a direitos fundamentais, em decorrência da precariedade econômica e da cri-
minalização de determinados de meios de sobrevivência. Portanto, esse processo potenciali-

4 Este artigo é um desdobramento do ensaio “Litigância Estratégica e a Articulação Jurídico-Política nas Lutas da
Classe Trabalhadora Precarizada: Ocupação Dandara na obra “Movimentos Sociais versus Retrocessos Trabalhistas: Poder
e Resistência no mundo do Trabalho (2018)”, coletânea de artigos organizados por Fernanda Nigri Faria e Márcio Tú-
lio Viana, Editora LTR. Agradecemos ao Professor Márcio Túlio Viana por nos propor o desafio de resgatar a memória
dessa luta, abordando a articulação da luta por moradia e os trabalhadores precarizados.
ANAIS DE CONGRESSO 55

za demandas antes localizadas no espectro do sonho a ser conquistado por meio do trabalho
formal e se transforma em fator insuportável de aumento da pobreza, fazendo com que a
miséria de fato bata à porta, retirando das famílias recursos, inclusive, para a subsistência.
Nesse momento a moradia, o morar pagando o aluguel, cumpre um papel acirrador
de contradições e impõe à classe trabalhadora, que percebe sessenta por cento da sua parca
renda auferida em trabalhos informais ou precários, o comprometimento com a sina mensal
do aluguel e os outros quarenta por cento não alcançam o pagamento das demais despesas,
nada supérfluas, como alimentação.
Diante desse contexto, o que antes parecia criminoso, em virtude de uma interpre-
tação conservadora dada ao direito de propriedade, se toma uma decisão por sobrevivência.
Afinal, “a forma de tratar a propriedade como um fetiche em torno do qual giram todos os
direitos é um equívoco. Nem tudo se reduz a uma questão de domínio ou de mercancia”
(CATTONI DE OLIVEIRA, 2001, p.8).
Assim ocupar um terreno que há décadas constata-se vazio se torna, de absurdo,
uma realidade. Nasce, assim, a Ocupação Dandara, fruto da imposição que o capitalismo faz
a classe trabalhadora precarizada que a compeli tomar a única decisão possível, sobreviver.
A Ocupação Dandara surge da organização do povo trabalhador, como também
nasce da decisão política tomada por este povo em contestar a interpretação conservadora
dada à propriedade privada e descortinar para a assessoria jurídica popular o desafio de en-
frentar nas arenas jurídicas as disputas de terras urbanas que não cumprem a função social.
A Ocupação Dandara passa a existir e com ela uma grande batalha jurídica e políti-
ca entorno da função social da propriedade que impõe a advocacia seja privada -a assessoria
jurídica popular - ou pública (Defensoria Pública) o desafio da criatividade e da reconstru-
ção de um fazer jurídico estrategicamente aliado com o político. O que hoje após dez anos
sabemos e nominamos de litigância estratégica.

1. A TRAJETÓRIA DA OCUPAÇÃO DANDARA: CLASSE TRABALHADORA


PRECARIZADA E DIREITO À MORADIA
A memória oral de anos de muita garra e luta dos(as) moradores(as) da Ocupação
Dandara pode ser transcrita em apertada linha cronológica contendo os episódios mais mar-
cantes desta jornada ainda em construção5;
2008 - MST e Brigadas Populares planejam uma ocupação “rururbana”.

5 Algumas informações sobre a trajetória de lutas da Ocupação Dandara foram extraídas da vivência e militância
da coautora Fernanda Oliveira com a comunidade, e também por meio da interlocução e atuação das coautoras como
advogadas populares junto aos movimentos sociais de luta por moradia.
56 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

2009 – Ocupação de um grande “latifúndio urbano”


2010 – O Vereador Adriano Ventura do Partido dos Trabalhadores apresenta o Pro-
jeto de Lei (1.271/2010) na Câmara Municipal de Belo Horizonte com a finalidade de que
a comunidade seja desapropriada para fins de interesse social.
2010 – Moradores(as), apoiadores(as) e militantes da Comunidade Dandara dor-
mem uma semana na Praça 7 em Belo Horizonte, reivindicando uma reunião com o gover-
nador do Estado.
2010- A Defensoria Pública ingressa com uma Ação Cível Pública em favor dos
moradores da Dandara.
2011 – A banda Graveola e o Lixo Polifônico faz uma apresentação na comunidade
Dandara marcando o apoio de setores da cultura à ocupação.
2012 – Há uma tentativa frustrada de negociação com a 3ª Vice-Presidência do
Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
2013 – Acontece a 5ª Grande Marcha dos moradores da Dandara em direção ao
centro da cidade de Belo Horizonte em dia de julgamento de recurso no Tribunal de Justiça
de Minas Gerais. O recurso foi favorável à comunidade.
2014 – A Comunidade Dandara faz 05 anos de vida e comemora com uma grande
festa. Mais uma conquista da organização popular da comunidade quando em 2014, atra-
vés do orçamento participativo, adquiriram o PRU - Plano de Regularização Urbanística, já
realizado pela URBEL e que previu a pavimentação como a primeira prioridade.
2016 – Governo do Estado de Minas Gerais desapropria para fins de interesse social
a Comunidade Dandara. (Decreto com numeração especial 196, de 20/04/2016, Legislação
Mineira)
2017/2018–A Ocupação Dandara também conquistou um posto de saúde(ainda
provisório), o serviço de água e esgotamento sanitário.
2018/2019- A Ocupação Dandara consolida-se como um dos maiores projetos de
habitação social de Belo Horizonte e de Minas Gerais, com quase 2 mil famílias com acesso
ao direito à moradia digna, em lotes de 128 metros quadrados, inúmeras casas com 2 ou 3
andares, água, e luz e saneamento. Obras de pavimentação em curso, serão 6 ruas asfaltadas
e mais sua principal via interna, a Avenida Dandara que atravessa todo o seu território. E
uma luta permanente por acesso à saúde, cultura, lazer e transporte público.
A partir desta memória da resistência torna-se evidente como a disputa política e
jurídica voltada aos trabalhadores e trabalhadoras precarizados/as acerca dos institutos da
propriedade privada é uma batalha contínua tanto no judiciário como nos demais poderes,
ANAIS DE CONGRESSO 57

em face da compreensão inadequada à constituição desse direito.


Retomamos o início do planejamento desta ocupação afim de melhor compreender
o processo preliminar que deslindou nela. Hoje, a Comunidade Dandara trata-se de um pro-
cesso de ocupação urbana organizada iniciada “pelas Brigadas Populares e pelo Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem-terra – MST, em abril de 2009, num terreno de 31 hectares
localizado na região da Pampulha, em Belo Horizonte, área limítrofe com os municípios de
Ribeirão das Neves e Contagem.” (Pontes, 2014, p. 62). Segundo Lourenço (2013), arqui-
teto e urbanista, um dos apoiadores do planejamento urbanístico da ocupação:

A ocupação Dandara recebeu o nome em homenagem à guerreira ne-


gra companheira do líder quilombola Zumbi dos Palmares. Juntos,
Zumbi e Dandara são referências importantes na luta contra o traba-
lho escravo durante o período da América Portuguesa. Também foi de-
terminante para a escolha deste nome a liderança de muitas mulheres
no início da ocupação. A ocupação Dandara trata-se de um processo
de ocupação urbana de uma área vaga por famílias e grupos com gran-
de dificuldade de acesso à moradia e que vêem, nesse processo, uma
maneira de conseguirem terrenos para construir. Ele demonstra como
a população tem criado soluções para o problema habitacional em face
da ausência ou ineficácia das políticas públicas no Brasil. (LOUREN-
ÇO, 2013, p. 2).

A organização da ocupação iniciou um ano antes da sua concretização. E uma de


suas etapas foi o mapeamento dos terrenos ociosos que não cumpriam sua função social e
que tivessem dimensões adequadas. Outro momento determinante foi também a organiza-
ção de núcleos de formação política com as famílias de trabalhadores e trabalhadoras em sua
maioria informais, que não suportavam o ônus do aluguel e se interessavam pelo projeto.
Para Miranda (2012),

Os núcleos de formação política e preparação para a ocupação são uma


etapa importante de todo o processo. Nesses encontros, há uma for-
mação mínima sobre o direito à cidade e a organização das ocupa-
ções e, além disso, são momentos onde as famílias entram em contato
umas com as outras. Na realização da Ocupação Dandara, as reuniões
com as famílias duraram cerca de três meses e conjugaram oficinas
sobre as dinâmicas das cidades, oficinas de agroecologia e discussões
sobre os assentamentos do campo. (MIRANDA, 2012, p. 64- grifo
nosso)

Primeiramente, o planejamento da Dandara versava numa ocupação urbana, a par-


tir da proposta comum entre as Brigadas Populares e o MST na construção de uma luta que
articulasse as pautas da reforma urbana e da reforma agrária (Pontes,2014, p. 62). Conforme
Mayer e Assis (2006), ocupações urbanas:
58 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

[…] são ocupações realizadas no entorno próximo de alguma me-


trópole com famílias de perfil urbano, cujas principais bandeiras são
moradia, trabalho e dignidade. Nestes territórios, busca-se superar a
dicotomia campo-cidade criando condições de auto sustentabilidade
com produção de alimentos, trabalho artesanal ou outra forma de ge-
ração de renda, conforme a aptidão dos indivíduos envolvidos. Junto
a isso, são mantidas escolas, rádio comunitária e serviço de saúde. Os
exemplos mais próximos de acampamento/assentamento rururbano
são as Comunas da Terra construídas pelo MST, na grande São Paulo.
(MAYER; ASSIS, 2006, p. 10).

A proposta é ocupar um território urbano para moradia é ao mesmo tempo, que


essa mesma ocupação produza alimentos para o entorno onde está localizada. Essa propos-
ta já contemplava debates que ocorreram nos anos anteriores a 2009. O termo rururbana,
foi cunhado pelos movimentos que atuaram coletivamente para que a Ocupação Dandara
nascesse, contudo ele deriva de uma compreensão de agricultura denominada urbana ou
periurbana.
A lei 10.257/2001, o Estatutos da Cidade, publicada em 10/07/2001, assinada
pelo então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso, que regulamenta os arts.
182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras
providências, estabelecendo no §2º, do art. 182 quando será reconhecida a uma propriedade
urbana a característica de cumpridora da função social, abordando de “exigências funda-
mentais de ordenação da cidade que serão expressas no plano diretor.”
Em continuidade, na mesma legislação, já se inclui a ideia de espaços urbanos que
cumpram funções de produção de alimentos, tipicamente rurais, a partir da ideia expressa
de integração e complementariedade.

Art. 1o Na execução da política urbana, de que tratam os arts. 182 e 183 da


Constituição Federal, será aplicado o previsto nesta Lei.
III – integração e complementaridade entre as atividades urbanas e ru-
rais, tendo em vista o desenvolvimento socioeconômico do Município
e do território sob sua área de influência; (Lei 10.257/2001)

Moura; Ferreira e Lara (2013, p. 69 - 80), destacam que o debate agricultura urba-
na e periurbana;

[...] agricultura em espaços urbanos acontece no mundo desde o sur-


gimento das primeiras cidades.” E que a “partir da década de 1990,
os benefícios destas práticas na melhoria da qualidade de vida da po-
pulação e do ambiente urbano chamam a atenção de organizações da
sociedade civil e de governos no Brasil, que passam a incentivar a sua
organização e multiplicação. A agricultura urbana integra a produção
ANAIS DE CONGRESSO 59

agroecológica de alimentos, plantas medicinais e ornamentais, manejo


de áreas de cerrado e mata, criação de pequenos animais, beneficia-
mento e comercialização solidária.

Os benefícios dessas práticas despertaram a atenção de governo brasileiro, sendo


que publicações na página do Ministério do Desenvolvimento Agrário, destaca-se as práticas
de agricultura urbana e periurbana, inclusive com publicação específica que se refere a re-
gião metropolitana de Belo Horizonte como exemplo. Em reportagem do Site da Secretaria
Especial de Agricultura Familiar e Desenvolvimento Agrário (2017), ressalta-se o entendi-
mento de que as “dinâmicas relacionadas à produção de alimentos em centros urbanos são
estratégias efetivas de fornecimento de alimentos e geração de empregos”.
Contudo, este planejamento não pôde prosseguir, uma vez que nos dias posteriores
à ocupação, iniciada por 150 famílias, o número de ocupantes aumentou expressivamente
inviabilizando a concretização de uma ocupação rururbana, “dada a necessidade de um novo
projeto, que contemplasse o número máximo de habitações que o terreno comportaria, de
acordo com os parâmetros definidos pela legislação urbanística municipal” (Pontes, 2014,
p. 63). Como pode-se verificar há uma preocupação desde o início em construir uma ocu-
pação nos termos das legislações urbanísticas, desfazendo a percepção equivocada que os
movimentos sociais de luta por moradia agem de forma desorganizada e na ilegalidade.
Diante deste novo contexto somado a outros fatores, deslindou na decisão do Mo-
vimento Sem Terra em se retirar da organização da comunidade, mantendo o apoio políti-
co, marcando a passagem da luta associado campo e cidade para uma disputa urbana sobre
moradia.
A repercussão da ocupação na mídia foi tão intensa que poucos dias após a ocupação
das iniciais 150 famílias já havia por volta de 1100. E é justamente a partir desse momento
que se percebe o confronto entre uma compreensão conservadora do direito à propriedade
e aquela, constitucional que reconhece a função social como elemento constitutivo da pro-
priedade privada.
Quanto a compreensão conservadora do direito à propriedade é necessário recu-
perar em breve histórico do Direito Brasileiro no que tange a esse instituto. Inicia-se em-
basando seu debate na ideia da propriedade como direito absoluto do homem, paulatina-
mente, acompanhado de legislações emblemáticas, como a Lei de Terras (Lei 601/1850) e
o Estatuto da Terra (Lei 4.504/1964). Essa última inicia seu texto prevendo explicitamente
a Reforma Agrária, demarcando a preocupação que a propriedade e o seu direito, respei-
tem algum critério de utilidade coletiva. Posteriormente a Constituição Federal de 1988, se
conquista prevendo no texto a função social da propriedade, expressamente em seu art. 5º,
incisos XXII e XXIII. No entanto, o Código Civil de 1916 em face a Constituição Federal
de 1988 representa um hiato nestas construções normativas, um problema de recepção da
norma no novo ordenamento jurídico constituído em 1988, quando estabelece a presunção
absoluta em relação ao direito de propriedade em seu art. 527. Sobre a tradição civilista do
60 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

conceito de propriedade:

Uma longa tradição civilista tem há quase dois séculos determinado e


privilegiado a definição dos direitos individuais de propriedade imobi-
liária urbana, e, por conseguinte, as possibilidades de intervenção do
Estado na criação de uma ordem urbanística que seja também expres-
siva de interesses coletivos e necessidade socioambientais. Concebida a
propriedade imobiliária quase que exclusivamente como uma merca-
doria, cujo conteúdo de aproveitamento econômico é de ser determi-
nado pelos interesses individuais do proprietário, qualquer valor social
de uso fica restringido, assim como ficam reduzidos os limites de ação
do poder público na determinação de uma ordem pública mais equili-
brada e includente. (FERNANDES, 2006, p. 8)

Considerando a tradição civilista em relação ao direito de propriedade Fernandes


(2006) na analisa que

[...] o olhar da maioria dos juristas e juízes ainda é profundamente


marcado pelo paradigma civilista, que se encontra materializado nos
currículos obsoletos das faculdades de direito no Brasil e nos países la-
tino-americanos, sendo que as decisões judiciais mais comprometidas
com outros princípios e valores tendem a ser anuladas por tribunais
superiores (FERNANDES, 2006, p. 10)

Calixto (2018, p. 197), conclui existe a necessidade de “determinar o poder de ex-


clusividade sobre o bem determinando, quem poderá usar o bem imóvel e quem será afas-
tado do seu uso”, ou seja, de determinar sua propriedade. Nesse sentido, Calixto (2018, p.
197) sustenta que ficou demonstrado “no caso das ocupações urbanas não há uma disputa
entre quem defende e quem busca extinguir o direito de propriedade. Há disputa sobre o
conceito de propriedade”.
Portanto, superar uma visão conservadora do direito de propriedade, exige acres-
centar outros elementos ao debate, uma perspectiva sobre a propriedade capaz de abordar
uma construção relacional, só seria possível então uma análise que levasse em consideração
interesses coletivos. (CALIXTO, 2018, p. 196)

2. A COMPREENSÃO DA LITIGÂNCIA ESTRATÉGICA ATRAVÉS DO CASO


CONCRETO: OCUPAÇÃO DANDARA
Trata-se de um desafio metodológico tentar conceituar ou minimamente registrar
a litigância estratégica em Direitos Humanos no campo das lutas populares, contudo é um
exercício imprescindível para fins da memória de uma advocacia popular forjada na escola
ANAIS DE CONGRESSO 61

do Direito Insurgente ou Achado nas Ruas6 (MEDEIROS, 2016; RIBAS, 2009; RODRI-
GUES, 2015 e SOUSA JÚNIOR, 2008).
Consideramos também que se trata de um movimento retroalimentado, ou seja, a
teoria e a prática dessa escola foram se erguendo lado a lado. Estas escolas surgem no Bra-
sil praticamente no mesmo período em meados dos anos 80 e início dos anos 90 com um
grupo de magistrados do Rio Grande do Sul, liderado pelos juízes, Amilton Bueno e Sérgio
Pereira e da Faculdade de Direito da UNB, pelos Professores José Geraldo Júnior e Roberto
Lyra Filho.
Entender e definir o Direito Achado nas Ruas, em primeiro lugar nos exige a su-
peração da compreensão do sujeito de Direito como individual, nesse sentido essa nova
compreensão nos coloca diante do desafio conceitual, pois, conforme explicita Sousa Júnior
(2008, p. 271)

[...] a originalidade destas lutas por direitos diz respeito precisamente


ao caráter coletivo do sujeito de direito, o qual não deve ser confundi-
do com os interesses difusos de sujeitos individuais, nem com o sujeito
ainda individualizado dos direitos individuais homogêneos, definidos
como os de origem comum.

Conjugando a necessidade do registro e de recuperar a memória destas lutas, a vi-


vência da Dandara com a assessoria jurídica popular (Medeiros, 2016; Ribas, 2009), opta-se
por utilizar este exemplo paradigmático para demonstrar como ocorre a litigância estratégica
em suas diversas dimensões desde as mais invisíveis.
Contudo, antes de adentrar no cerne da litigância estratégica, vale uma breve ex-
plicação do que se objetiva a advocacia popular, ou melhor, conceituada como assessoria
jurídica popular. Segundo Ribas:

A assessoria jurídica popular, amplamente concebida, consiste no tra-


balho desenvolvido por advogados populares, estudantes, educadores,
militantes dos direitos humanos em geral, entre outros, de assistência,
orientação jurídica e/ou educação popular com movimentos sociais,
com o objetivo de viabilizar um diálogo sobre os principais proble-
mas enfrentados pelo povo para realização de direitos fundamentais
para uma vida com dignidade, seja por meio dos mecanismos oficiais,
institucionais, jurídicos, seja por meios extrajurídicos, políticos e de
conscientização. (RIBAS, 2009, p.46)

6 Para maiores elucidações sobre o Direito Insurgente: RIBAS, Luiz Otávio. Direito insurgente e pluralismo jurí-
dico: assessoria jurídica de movimentos populares em Porto Alegre e no Rio de Janeiro (1960-2000) 2009. 148f. Dis-
sertação de Mestrado. Universidade Federal de Santa Catarina. E RODRIGUES, Letícia Gondim. Os sinais poéticos
do direito insurgente para uma advogada popular, 2015.Disponível em:http://assessoriajuridicapopular.blogspot.com.
br/2015/03/os-sinais-poeticos-do-direito.html. Acesso em 27 de Janeiro de 2017
62 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

Esta denominada litigância estratégica, no caso em análise, inicia-se antes da pró-


pria ocupação, nas referidas reuniões preparatórias, nas quais ocorrem a participação das
advogadas e dos advogados populares propondo uma formação jurídica por meio da educa-
ção popular, explorando os direitos que estarão em disputa em uma Ocupação Urbana e os
possíveis processos judiciais que serão travados ao longo da trajetória.
Partindo-se da premissa que a educação popular orienta a atuação da advocacia po-
pular, todos os atores envolvidos no litígio têm igual capacidade de elaboração e compreen-
são, participando em igualdade das construções táticas e estratégicas tanto jurídicas quanto
políticas, sobretudo se apropriando pouco a pouco da linguagem inacessível do Direito e
seus conceitos, conferindo vida e sentidos para além do texto a Constituição Brasileira e as
garantias e direitos fundamentais insculpidas nela7.
O direito à propriedade que é visto de forma conservadora sofre um grande im-
pacto quando o povo organizado ao entender ou acessar o que está escrito na Constituição
adquire a capacidade para estabelecer uma interpretação mais adequada às suas necessidades
e anseios, por sua vez beneficiando a maioria em detrimento de uma minoria.
A cada audiência, sessão de julgamento ou liminar os(as) moradores(as) da Ocu-
pação Dandara caminharam quilômetros, nas suas marchas até o Tribunal de Justiça, sendo
o instrumento necessário para chamar atenção tanto do Poder Judiciário para sua incapa-
cidade de abstração ou imparcialidade para responder a realidade concreta, como também
da cidade, para a constitucionalidade do direito à moradia, e sobretudo a ausência desse na
vida da população.
O Site Fundação João Pinheiro, em abril de 2018, divulgou nova pesquisa sobre
déficit habitacional no país, sendo que dedicou especial atenção a Minas Gerais, destacando
que em termos gerais o déficit habitacional aumentou em 20 dos 27 Estados do país, e no
Estado de Minas Gerais em 2014 era de 7,6, subiu para 8,1%. (Site da Fundação João Pi-
nheiro, 2018). Em termos metodológicos, para cálculo do déficit habitacional:

[...] considera-se integrante do déficit habitacional qualquer domicí-


lio no qual se encontre uma das quatro situações: habitação precária
(domicílios improvisados ou rústicos), coabitação familiar (soma dos
cômodos e das famílias conviventes com intenção de constituir um
domicílio exclusivo), ônus excessivo com aluguel (famílias com ren-
dimento de até três salários mínimos e gasto superior a 30% da renda
familiar) ou adensamento excessivo de moradores em imóveis aluga-
dos (mais de três moradores por dormitório). (Site da Fundação João
Pinheiro, 2018)

7 Maiores informações sobre a educação popular na assessoria jurídica popular em RIBAS, Luiz Otávio. Assessoria
jurídica popular universitária. Revista Discente do Curso de Pós-Graduação em Direito. Universidade Federal de Santa
Catarina. Disponível em: http://danielafeli.dominiotemporario.com/d oc/RIBAS_ASSESSORIA_JURIDICA_PO-
PULAR_UNIVERSITARAI.pdf. Acesso em 03/10/2016
ANAIS DE CONGRESSO 63

Segundo essa pesquisa, o principal fator do aumento do déficit habitacional em


Minas Gerais, foi o ônus excessivo com o aluguel, destacando que nas nove regiões metro-
politanas, a única que experimentou uma redução do déficit habitacional foi a de Curitiba.
(Site da Fundação João Pinheiro, 2018)
Na litigância estratégica cada ação jurídica é precedida por um ou inúmeros deba-
tes políticos para que esta ação acompanhe ou fortaleça uma ação política, não cabendo ao
advogado assumir o lugar de quem vive cotidianamente a violação de direitos e sim garantir
a estes espaços de (pré)compreensão dos direitos fundamentais a partir das suas próprias
realidades sociais. Portanto, um dos mecanismos da litigância estratégica, no contexto da
organização de uma ocupação urbana, é o fato de qualquer decisão que implique em desdo-
bramentos no processo judicial é previamente debatida em assembleias comunitárias.
Um elemento que diferencia a litigância estratégica realizada por meio da assessoria
jurídica popular da advocacia tradicional é que a primeira tem como premissa em sua atua-
ção o contato com o povo periférico e vulnerável em termos sociais, econômicos e jurídicos,
ou seja, existem destinatários muito bem delineados. Não importando se esse contato se dá
de forma direta ou por meio de movimento sociais ou organizações políticas.
Como mencionado anteriormente em se tratando de uma relação dialógica, não
existe conhecimento em situação de superioridade, portanto os cinco anos de Faculdade de
Direito não são superiores ao conhecimento do povo trabalhador, periférico e vulnerável,
logo desafia-se que a fundamentação jurídica escolha uma possibilidade estratégica proces-
sual que na estreita via do Direito conservador aparentemente é dada como uma decisão
com poucas chances de êxito, contudo numa preceptiva da articulação jurídica e política
toma novos contornos podendo até resultar numa tese vencedora nos Tribunais.
Dessa convivência e construção ombro a ombro surge a potência da litigância es-
tratégica, pois, neste momento é imposto a advogada e ao advogado, romper todo o conhe-
cimento jurídico conservador, construindo uma solução criativa que ultrapassa o que esta
posto, forçando a ousadia jurídica para atender e acatar a decisão política tomada pela orga-
nização popular seja por um movimento em luta por moradia ou por tantos outros, como
de mulheres e atingidos pela mineração.
Muller (2003) no livro “Quem é o povo ? A Questão Fundamental da Democracia” já
nos alertava para necessidade de pensarmos em estratégias judiciais para lutarmos em face das
“múltiplas formas de exclusões sociais e jurídica por meio de dentro do sistema”, vejamos:

As pessoas são pobres – mas isso não significa que “se possa” tortu-
rá-las impunemente: elas são social, cultural e politicamente destitu-
ídas de oportunidades de participação, mas isso não significa que “a
gente” possa mata-las impunemente. A resistência legal que juristas
sinaliza de maneiras mais eficaz que se pode imaginar em termos
pacíficos: ela é areia colocada na engrenagem de um sistema jurídico
64 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

denunciado pela presença da inclusão/exclusão, mais precisamente a


areia colocada na engrenagem pelos “outsiders” do lado interno do
sistema ( Muller, 2003, p. 101)

A partir da leitura desse trecho acima, pode-se em certa medida correlacionar os


“outsiders” do lado interno do sistema com a assessoria jurídica popular realizada pela advo-
cacia comprometida com a justiça social e que também coloca areia na engrenagem conser-
vadora do Poder Judiciário ao disputar os sentidos da Constituição Federal de 88 por meio
dos casos concretos de violações dos direitos fundamentais.
Muller também propõe uma atuação para essa resistência legal e compreendemos
que tal proposta é uma das formas possíveis de se construir uma litigância estratégica, ten-
do em vista que não há uma formula ou procedimento fechado e engessado que guie essa
construção, em virtude da sua própria natureza que exige capacidade criativa permanente
nas arenas judiciais. A possibilidade proposta por Muller:

Os juristas competentes, auxiliados pelos grupos de auto-ajuda (...), or-


ganizações protetoras de direitos humanos, devem selecionar casos in-
dividuais, que apresentam vantagens tão grandes quanto possíveis no
tocante à demonstrabilidade dos fatos revelantes para o caso e à possibi-
lidade de proteção das testemunhas. Fundamentos nesses casos, procedi-
mento piloto e processos exemplares devem ser levados tão longe quanto
possível na hierarquia do Judiciário, de maneira a realizar a proclamada
pretensão genérica de punição do Estado. ( Muller, 2003, p. 102)

Muito embora, a Ocupação Dandara não seja um caso individual no sentido es-
trito e literal em uma interpretação de Muller, podemos compreender o individual como
casos paradigmáticos. A Ocupação Dandara representa uma coletividade de lutas e uma
organização popular, torna-se um exemplo notório de uma das possibilidades de litigância
estratégica. Tendo em vista que quando todos os recursos jurídicos pareciam esgotados e a
única solução possível seria negociar aquiescendo pela desocupação da área, a construção
de unidades habitacionais no modelo de apartamento, com a frágil garantia de reassenta-
mento, as moradoras e os moradores da hoje Comunidade Dandara e as Brigadas Populares
confrontando a todas as orientações jurídicas decidiram pela luta e desafiaram a assessoria
jurídica popular e a Defensoria Pública com a tarefa de construírem e executarem uma nova
ação jurídica, ousada e de êxito improvável.
O provimento liminar buscava, especificamente alcançar sete pedidos, o central era
o número quatro, requerendo a abstenção por parte dos réus, de qualquer medida tendente
a interferência física no imóvel, incluindo a remoção das famílias.
Dos fundamentos da decisão que concedeu a liminar, atendendo em especial o
ponto quatro dos pedidos, há o enfrentamento pelo Poder Judiciário mineiro a tensão cons-
titutiva entre princípios constitucionais:
ANAIS DE CONGRESSO 65

Lógico que há o direito de propriedade da Construtora Modelo Ltda


que deve ser preservado, afinal é um direito constitucional, mas para
além da propriedade como direito há a dignidade humana, aqui cons-
tituída como valor fonte do Estado de Direito (Democrático), tanto
que figura no inciso III do art. 1º da CF como um dos seus funda-
mentos. Assim se queremos preservar a propriedade, não podemos de
forma alguma, decurar da dignidade humana, e esta serve como men-
surador quando temos em conflito de um lado a propriedade (art.
5º, caput da CF), e, de outro lado, a moradia (art. 6º, caput da CF).
(TJMG, 024.10.035.660-9. ª Vara da Fazenda Pública Estadual e Au-
tarquias, decisão prolatada em data,25/03/2010, pelo juiz Manoel dos
Reis Morais)

Dessa forma, nasceu a Ação Civil Pública na Vara de Fazenda Estadual que retirou
a comodidade do não posicionamento o Governo do Estado de Minas Gerais e a Prefeitura
Municipal de Belo Horizonte, e contrariando a todos os prognósticos jurídicos resultou em
uma liminar, confirmada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais que pôs fim ao fantasma
da reintegração de posse.

EMENTA: AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE - “COMU-


NIDADE DANDARA” - CONCESSÃO DE LIMINAR - POSTE-
RIOR REMESSA DOS AUTOS AO JUÍZO DA VARA DA FAZEN-
DA PÚBLICA ESTADUAL, POR CONEXÃO - REVOGAÇÃO
DA LIMINAR - AVALIAÇÃO DE NOVO CONTEXTO FÁTICO
E PROCESSUAL - POSSIBILIDADE - AUSÊNCIA DE PRECLU-
SÃO PARA O JUIZ - DECISÃO MANTIDA.
- Sem prejuízo não há nulidade, conforme dispõe o art. 249, § 1º do
CPC.
- A revogação de decisão concessiva de liminar, pelo magistrado com-
petente, não encontra nenhum impedimento nas normas de regência,
independentemente do lastro em tutela de urgência ou de evidência,
desde que devidamente fundamentada e abalizada em modificação
superveniente dos aspectos que relevam à apuração dos pressupostos
contidos na lei. Precedentes do STJ.
- O magistrado competente para o julgamento de ações conexas po-
derá revogar a liminar concedida por outro juízo antes da remessa dos
autos, considerando que avaliará substrato material e processual mais
amplo do que o sopesado na oportunidade do deferimento. (TJMG
- Agravo de Instrumento-Cv 1.0024.09.545746-1/006, Relator(a):
Des.(a) Vanessa Verdolim Hudson Andrade , 1ª CÂMARA CÍVEL,
julgamento em 19/02/2013, publicação da em 28/02/2013)

Ao longo da presente pesquisa nos propusemos a compreender como ocorre a prá-


tica da assessoria jurídica em sua permanente articulação com os movimentos sociais e orga-
66 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

nizações populares, assim a litigância estratégica em breve síntese é

a substituição de um direito conceitual, conservador e intocável por


um direito pragmático, deliberativamente moldável, aberto à interdis-
ciplinaridade, à pesquisa empírica, à realidade. Trata-se da necessidade
de conexão do direito com o social e a sua transformação. (CALA-
BRIA, 2014, p.314)

Ainda que pareça a princípio distante, não podemos deixar de ter negritado a
importância que em searas tradicionais de organização do povo trabalhador, como os
sindicatos, a potência de luta e enfrentamento que pode significar a construção política
associada a jurídica de forma dialógica como se deu no caso da Comunidade Dandara e
as Brigadas Populares.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo tem como objetivo central correlacionar duas pautas intrínsecas
às lutas sociais que geralmente são analisadas de modo desconectado, a precarização do tra-
balho e o déficit histórico de moradia, por meio do caso paradigmático da Ocupação Dan-
dara, hoje, Comunidade Dandara.
Inicialmente traçamos uma linha do tempo da luta permanente da Dandara e seus/
suas moradores/as, como também recuperamos as etapas preparatórias da organização po-
pular que deslindou na Ocupação. Demonstramos que desde as primeiras reuniões há uma
preocupação com a educação popular dos/das futuras ocupantes no que tange a constitu-
cionalidade ao direito à moradia, assim como ao respeito as regras do Direito Urbanístico
quanto a questão espacial e demarcatória da ocupação. Logo, desmistifica-se que as Ocupa-
ções previamente articuladas em organizações populares desrespeitam as leis.
Na breve linha do tempo proposta fica negritado que cada direito básico como
acesso a água é conquistado, um a um. E essa permanente luta por conquistas de direitos
não cessou, haja vista que a Ocupação ainda não tem acesso a um direito básico, os correios,
apesar de terem conseguido integrar o PRU- Plano de Regularização Urbanística por meio
do orçamento participativo e a desapropriação para interesse de fins sociais. Ou seja, um di-
reito básico de terem CEP ainda não é uma realidade na vida Comunidade Dandara. Logo,
podemos constatar que é um desafio cotidiano romper com a segregação habitacional que
historicamente lhes foi imposta. Nessa primeira parte também abordamos como a compre-
ensão conservadora do direito à propriedade é colocada em discussão em face da constitu-
cionalização da função social da propriedade no caso concreto da Ocupação Dandara.
Na segunda parte do artigo dedicamos a compreensão da litigância estratégica
construída e viabilizada através da assessoria jurídica popular, e como essa alternativa ju-
rídico-política foi fundamental para cada vitória ao longo dessa trajetória de lutas da Co-
ANAIS DE CONGRESSO 67

munidade Dandara. Demonstramos como o fazer dessa litigância estratégica exige uma
articulação entre diversos/as atores e atrizes, nos quais todos os saberes, sejam jurídicos
ou políticos, estão no mesmo patamar de importância. Destacamos também o papel da
assessoria jurídica popular nas conquistas da luta por moradia e da precarização do traba-
lho. E sobretudo, salientamos que a criatividade é fator primordial desse instrumento das
organizações sociais, a litigância estratégica que surpreende até mesmo o conservadorismo
presente no Poder Judiciário.
Consideramos que ainda é um desafio compilar, organizar e traduzir para a acade-
mia as experiências e estratégias criadas pelas organizações sociais junto a assessorias jurídicas
populares ao longo das últimas décadas, mas acreditamos que esta tarefa seja imprescindível
para subsidiar mais pesquisas que tenham no seu centro os sujeitos vulneráveis e periféricos e
a luta organizada. Essa articulação jurídica-política é uma força motriz para dar vida ao texto
constitucional e disputar seus sentidos com o povo e o Poder Judiciário, principalmente no
porvir que nos espera.
A trajetória da litigância estratégica não é construída apenas por casos notórios e
emblemáticos como a Dandara, há inúmeros exemplos como este e outros; Izidora (Belo
Horizonte/ Santa Luzia),Novo Paraíso (Belo Horizonte), Casa do Estudante/MOFUCE
(Belo Horizonte), Novo Horizonte (Ribeirão das Neves), Areias(Ribeirão das Neves), Gua-
rani Kaiowa (Contagem), Ocupa Estelita (Pernambuco), Vila Soma (São Paulo), Contesta-
do (Santa Catarina). Esses casos e tantos outros emanam a energia fulcral para que possamos
r(e)existir as violências perpetradas pelas instituições. E o ponto em comum de todas estas
lutas é justamente a litigância estratégica como meio da subversão ao Direito conservador,
contando sempre com o toque fundamental e diferencial da criatividade, ousadia e coragem
da assessoria jurídica popular e da luta organizada do povo.

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ANAIS DE CONGRESSO 71

ENTIDADE DE CLASSE E PLURALISMO:


A CAPACIDADE DE ADAPTAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 E AS MUDANÇAS
SOCIAIS SOB UM CONTEXTO DE SUBCIDADANIA

JOÃO LUCAS RIBEIRO MOREIRA1


TIAGO SOARES SIQUEIRA2

RESUMO
A decisão monocrática do Ministro Luís Roberto Barroso em relação à Arguição
de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 527, de maneira contrária à atual
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) suscitou o debate em relação ao conceito
de entidade de classe de âmbito nacional, visto que essa categoria possui legitimidade para
propor ao STF, ação de controle de constitucionalidade concentrado. Referida Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental, proposta pela Associação Brasileira de Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ALGBT), tinha como objeto os arts. 3º, §§1º e
2º, e 4º, caput e parágrafo único, da Resolução Conjunta da Presidência da República e do
Conselho de Combate à Discriminação nº 1, de 14 de abril de 2014 (Resolução Conjunta).
No que diz respeito a legitimidade de propositura da ação pela ALGBT, o relator acatou o
pedido de equiparação desta à entidade de classe de âmbito nacional, de acordo com o inci-
so IX do art.103 da Constituição da República de 1988 (CR/88).
A controvérsia da decisão consiste na possibilidade de proposição de ação de con-
trole concentrado pela requerente, uma vez que a representação de uma classe é caracteriza-
da por filiados ligados entre si pelo exercício da mesma atividade econômica ou profissional
(aplicação analógica art. 920 CLT). O objetivo do presente artigo é discutir o conceito de
entidade de classe previsto na Constituição da República de 1988 e a possibilidade de am-
pliação da atual jurisprudência para englobar as mudanças sociais não previstas pelo cons-
tituinte. Dessa forma, será feito um paralelo entre o conceito de Entidade de Classe e o de
Povo, esse já amplamente discutido pela Teoria da Constituição. Será também feita análise
das possíveis consequências de tal mudança para o fortalecimento da Democracia e também

1 Bacharel em Ciências do Estado (UFMG) e graduando do curso de Direito (PUC – Minas) - jlucasmoreira@
hotmail.com;

2 Graduando do curso de Direito (PUC – Minas) – tiagosoares_1994@hotmail.com


72 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

para a já alta demanda do Supremo Tribunal Federal.


Palavras-chave: Entidade de Classe; Supremo Tribunal Federal; Pluralismo, Povo;
Controle de Constitucionalidade.

INTRODUÇÃO
O art. 103, IX, da Constituição da República de 1988 (CR/88) dispõe como prer-
rogativa à confederação sindical ou à entidade de classe de âmbito nacional a possibilidade
de provocarem o Supremo Tribunal Federal (STF) para que este exerça o controle concen-
trado, a partir da postulação de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), Ação Direta
de Inconstitucionalidade por omissão (ADO), Ação Declaratória de Constitucionalidade
(ADC) ou Arguição de descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) apenas pelos
sujeitos e entidades dispostas pela CR/883.
Por conseguinte, compõem este o seleto rol de sujeitos e entidades legítimas de pro-
porem a ADI, ADC, ADO, ou ADPF ao STF, além da confederação sindical ou entidade
de classe de âmbito nacional, de acordo com o artigo supracitado da CR/88: o Presidente
da República, as Mesas do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, a Mesa de Assem-
bleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal, o Governador de Estado ou
do Distrito Federal, o Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil e o partido político com representação no Congresso Nacional.
Com efeito, o que não se determina, entretanto, é a definição do que os termos
entidade de classe e âmbito nacional abrangem e representam. Assim, propiciou-se ao STF
definir tais especificidades em jurisprudência4, essa que estabelece os requisitos como: (i)
possuir alcance nacional, por meio da comprovação de afiliados presentes em ao menos nove
Estados da Federação, de forma a concordar com a Lei dos Partidos Políticos; (ii) represen-
tar uma classe, caracterizada por filiados ligados entre si pelo exercício da mesma atividade
econômica ou profissional, estipulada no art. 920 da Consolidação das Leis do Trabalho;
(iii) haja existência de pertinência temática entre o objeto da entidade e o direito defendido
por meio da ação.
Logo, os requisitos (i) e (iii) são indiscutivelmente preenchidos pela Requerente,
entretanto, o segundo não diz respeito ao caráter intrínseco da ALGBT, fato central a dis-
cussão apresentada.
Nada obstante, devido à amplitude destes conceitos que compõem os requisitos

3 Ainda no âmbito das ações de controle de constitucionalidade, existe a Ação direta de inconstitucionalidade
interventiva. Entretanto, essa só pode ser proposta pelo Procurador Geral da República.

4 Como exemplo da posição do Tribunal, têm-se que o STF negou legitimidade à UNE (União Nacional dos
Estudantes) na ADIn 894, rel. Min. Néri da Silveira.
ANAIS DE CONGRESSO 73

jurisprudencialmente concebidos, o STF, para apurar a legitimidade das ações de controle


concentrado, analisa caso a caso, tendo em vista a variedade de organizações destinadas à
representação de determinadas profissões e atividades econômicas.
Aponta o ministro Barroso em sua decisão, que a solução encontrada pelo STF ao
limitar o significado de classe às categorias econômicas e profissionais, assim como a exigên-
cia do requisito de pertinência temática, se deu pela discricionariedade promovida pelo art
103,IX da CR/88 na indefinição do conceito jurídico classe e pelo fato de que a inclusão fei-
ta no referido artigo foi uma novidade introduzida pela Constituição de 1988, que segundo
o relator, gerou receio em alguns ministros e juristas da época que temiam que o instituto
do controle concentrado de constitucionalidade se tornasse uma espécie de ação popular,
sobrecarregando o STF.
Por esta maneira, segundo a decisão monocrática em análise, a manutenção desta
rigidez quanto aos requisitos expostos acima:

[...] implica a violação à teleologia e ao sistema da Constituição e im-


pede que o Supremo cumpra uma dimensão fundamental da sua mis-
são institucional: a proteção de direitos fundamentais com celeridade,
efetividade e em ampla escala. (BRASIL,2018)

Deste modo, apoia-se na hermenêutica constitucional como instrumento recorren-


te para a realização de alterações na aplicabilidade da lei máxima nacional relativamente aos
casos concretos como uma alternativa judiciária à necessidade de uma alteração formal em
seu texto, que compete ao Poder Legislativo.
Nesse sentido, a Mutação Constitucional se mostra como processo informal de mu-
dança constitucional, na qual o sentido se altera, contudo, a letra e o espírito permanecem
intactos, de maneira que a Constituição não é de forma alguma contrariada por essa inter-
pretação. Entretanto, esse processo de mudança, quando não correspondido pelo controle
jurisdicional, violentará a própria Constituição, denominando-se como uma mutação in-
constitucional. Para que este fenômeno não ocorra, é mister o confronto da proposta de
mutação com a Lei Fundamental, no qual esta segunda deve sempre subsistir, como bem
coloca Anna Cândida Da Cunha Ferraz (2015)
Isto posto, houve uma grande repercussão social após a mudança de entendimento
sobre a interpretação da legislação pelo STF relativa à efetivação e equiparação de direitos
constitucionais à comunidade composta pelo movimento das Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis, Transexuais e Transgêneros (LGBTs).
Através da mutação constitucional, com as decisões proferidas na ADI 4277/DF e
ADPF 132/RJ, o art. 226 § 3° da CR/88 bem como o art. 1723 do Código Civil, apesar de
delimitarem expressamente que é reconhecida como entidade familiar a união estável ape-
nas entre homens e mulheres, o STF, amparado na vedação constitucional do preconceito
74 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

em razão do sexo ou na discriminação por idade, cor da pele ou raça determinou que aplica-
-se esta vedação relativamente à possibilidade concreta de utilização da sexualidade também,
reconhecendo assim o direito à união estável por pessoas do mesmo sexo.
Por fim, evidencia-se que recentemente o controle concentrado exercido pelo STF
é provocado com o fim de assegurar e garantir direitos a camadas da sociedade brasileira
negligenciada pelo legislador.

1. POVO - A EXCLUSÃO:
Friedrich Müller, em sua obra Quem é o Povo? publicada ao final da década de
1990, especialmente no capítulo intitulado A Exclusão (VIII), explicita e desvenda como al-
gumas distorções do Estado de Direito se agigantam, por exemplo, em relação à seletividade
da investidura de direitos às distintas parcelas da sociedade. De acordo com Müller (2003):

Trata-se aqui da discriminação parcial de parcelas consideráveis da po-


pulação, vinculada preponderantemente a determinadas áreas; per-
mite-se a essas parcelas da população a presença física no território
nacional, embora elas sejam excluídas tendencial e difusamente dos
sistemas prestacionais [Leistungssysternen] econômicos, jurídicos, po-
líticos, médicos e dos sistemas de treinamento e educação, o que sig-
nifica ‘marginalização” corno subintegração. (MULLER, 2003, p. 91)

Nada obstante, quando essas vozes se agregam livremente ou são “forçadas” a se


juntar, tornam-se maioria quantitativa da população, como ocorre nos pleitos bienais de
escolha dos representantes políticos. Por conseguinte, e de forma surpreendente, seu valor
se qualifica oportunamente para o sistema político-jurídico, em contraposição aos longos
períodos de negligência continuada.
Todavia, são esses, a grande porção da sociedade, marginalizada e apartada da vida
pública e política, de forma mais evidente nos países não-centrais, como no Brasil, que re-
correntemente possuem esses direitos mínimos (porém essenciais) vilipendiados e desconsi-
derados pelo Estado Democrático de Direito. Dessa forma:

Na prática se retira aos excluídos a dignidade humana, retira-se-lhes


mesmo a qualidade de seres humanos conforme se evidencia na atu-
ação do aparelho de repressão: não-aplicação sistemática dos direitos
fundamentais e de outras garantias jurídicas perseguição física, “execu-
ção” sem acusação nem processo, impunidade dos agentes estatais da
violação, da opressão ou do assassino. (...) O objetivo da luta é impor
a igualdade de todos no tocante à sua qualidade de seres humanos. à
dignidade humana, aos direitos fundamentais e às restantes garantias
legalmente vigentes de proteção - sem que se permitisse aqui as mais
ANAIS DE CONGRESSO 75

ligeiras diferenças, tampouco aquelas com vistas à nacionalidade, aos


direitos eleitorais passivos e ativos ou à faixa etária (meninos de rua).
(MULLER, 2003. P. 95)

Com efeito, destaca-se o emprego e a identificação de “subversão” ao sistema, quan-


do os excluídos e os minimamente integrados reivindicam e demandam, aquilo que a Cons-
tituição já os concedeu, logo os garantiu, os direitos que propiciam o exercício da cidadania,
os direitos fundamentais e humanos.
Isto posto, resulta na ‘pobreza política’, um dos resultados de uma sucessão de ex-
clusões oriundas não apenas da ausência de privilégio de um (ou mais) determinado grupo
social, mas de uma condição latente de precarização e de subcidadania em pleno século
XXI, em que, de forma concomitante nos ambientes e espaços privilegiados, iniciam-se as
discussões sobre direitos dos animais e o direito à paz, ao passo que a realidade de grande
parcela da sociedade é a tentativa de implementação de condições básicas de subsistência
como moradia, educação, trabalho, saneamento básico.
Outro argumento levantado por Müller sobre a relação entre povo e Constituição
trata-se que a positivação do direito moderno como textificação pode resultar em dois cami-
nhos opostos. Segundo Müller (2003):

A positivação do direito moderno como textificaçäo é faca de dois


gumes. Como já se assinalou, ela pode ser desvirtuada na direção do
simbólico de má qualidade, mas também pode ser levada precisamente
ao pé da letra. A exclusão primacial não está expressa no texto de nor-
ma da Constituição. Aqui uma estratégia de dialética real pode fincar
pé. Ela principia com o fato da positivação: a República Federativa do
Brasil pôs em vigor o texto moderno e elaborado da sua constituição
de 1988. Não só não fala de exclusão - o que poderia ser uma forma do
“silêncio da constituição” - senão que se pronuncia contrária (arts.231
e 232 sobre os índios) bem como contra outras discriminações (art.
5 da Constituição Brasileira, que estatui que “todos são iguais perante
a lei, sem distinção de qualquer natureza”). Pode-se virar os textos de
normas vigentes contra a exclusão ancorada não em leis da natureza,
mas “apenas” nas mentes, contra essa exclusão, que forma uma par-
te da pré-compreensão da sociedade em geral e dos juristas em espe-
cial (função “apenas nominalista”, “apenas simbólica” da constituição)
(MULLER, 2003, p. 102).

Visto que, de um lado é possível que o atributo simbólico do texto constitucional,


como meio de expandir-se para acompanhar a constante mutabilidade social, por outro lado,
muitas vezes pode resultar em algo maléfico ou inoportuno se orientado inadequadamente.
76 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

2. O ENFRAQUECIMENTO DAS ENTIDADES DE CLASSE TRADICIONAIS


Sob este mesmo prisma, questiona-se caso a interpretação jurisprudencial predomi-
nante sobre a limitação constitucional relativa às entidades de classe (enquanto instituição
coletivo-social não-partidária) para a proposição de ação de controle concentrado estaria em
consonância com a recente alteração na legislação que regulamenta as relações de trabalho e
emprego (Lei Federal nº 13.467/17), mas também com proteção dos direitos fundamentais
e do adequado funcionamento do processo democrático.
Inicialmente, pressupõe-se que o intuito do legislador constituinte, ao adotar requisi-
tos taxativos para a configuração de uma entidade aos moldes do art. 103, IX, da CR/88 visava
a legitimação de uma entidade que reverbera-se a posição homogênea e consensual entre deter-
minada classe trabalhadora (observando rigorosamente os três critérios já apresentados acima)
como meio democrático e representativo de provocar o Supremo Tribunal Federal.
Contudo, como resultado da Reforma Trabalhista houve o nítido enfraquecimento
dos sindicatos (devido a alteração dos art. 578 e 579 da CLT) por exemplo, mas também
das demais entidades de representação do trabalhador em âmbito macro ou nacional em be-
nefício de acordos coletivos ou de negociações individuais entre empregador e empregado.
Por certo, em relação a Lei Federal nº 13.467/17 aponta Maria Cecília Máximo
Teodoro e Marcos Paulo da Silva Oliveira (2018):

[...] A reforma também generaliza formas de contratação a tempo parcial


(ART. 58-A) – e com possibilidade de realização de horas extras – e não
o bastante, traz ainda a retirada da contribuição sindical obrigatória, sem
antes disso garantir o fomento a organização coletiva e sem coibir verda-
deiramente as práticas antissindicais (Art. 579 e seguintes). (…) Por isso,
parece que essa legislação tem clara tentativa de institucionalização da
precariedade, desconsiderando princípios basilares do Direito Laboral,
como a proteção, alteridade, primazia, da realidade sobre forma, dentre
outros. (OLIVEIRA, TEODORO, 2018, p. 178-179).

Nesta esteira, verifica-se como desdobramento da significativa alteração da legislação


trabalhista recente (Lei nº 13.467/17) o enfraquecimento das associações que reúnem pessoas
de um mesmo segmento econômico ou trabalhista, tal como expresso pelo dispositivo art.
103, IX, CR/88: confederações sindicais e entidades de classe (tradicionais) de âmbito nacional.
Logo, em benefício da manutenção de que setores organizados da sociedades civil
possam ser legitimados à proposição de ação de controle concentrado, evidencia-se a ne-
cessidade de flexibilização do termo entidade de classe com o objetivo de agregar entidades
protetoras dos direitos fundamentais. Como expõe o Min. Barroso na Medida Cautelar da
ADPF 527/DF:
ANAIS DE CONGRESSO 77

O ethos da Constituição de 1988 liga-se a uma densa proteção dos di-


reitos fundamentais, sobretudo de grupos minoritários e vulneráveis, e à
ampliação da interlocução direta entre o Poder Público e a sociedade ci-
vil. Portanto, a interpretação que restringe o acesso de associações repre-
sentativas dos direitos de grupos vulneráveis ao Supremo Tribunal Fe-
deral está em desacordo com o sistema constitucional. (BRASIL, 2018)

Em suma, tendo em vista as alterações advindas da Reforma Trabalhista e como


consequência o enfraquecimento da capacidade de postulação ao STF pela sociedade civil
organizada, reitera-se a imprescindibilidade da observação do princípio da participação po-
pular em benefício da proteção dos direitos fundamentais, especialmente em relação a gru-
pos minoritários da sociedade, tal qual os representados pela ALGBT. Assim, como resulta-
do, será consolidado o princípio republicano e efetivada garantia de que todos os cidadãos
possuam voz frente ao Estado e sejam ouvidos sem discriminação.

3. AMPLIAÇÃO DOS LEGITIMADOS A PROPOR CONTROLE DE CONSTITUCIONA-


LIDADE E AS CAPACIDADE ESTRUTURAL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
A possibilidade de Entidades de Classe sem vínculo profissional, como a ALGBT,
proporem ações de controle concentrado, resulta na viabilidade para que outras tantas As-
sociações detenham o mesmo direito, fato que pode receber críticas daqueles que defendem
um Supremo Tribunal Federal mais célere5. A demanda constitucional, entretanto, não de-
veria ser tratada como mais uma questão entre várias que chegam ao STF, isso porque o
Tribunal exerce a função dúplice de Suprema Corte e Corte Constitucional. Esse conflito de
funções é explicado por Guilherme Pupe de Nóbrega no sentido de que:

[...] o STF, no Brasil, acumula as duas técnicas de controle de cons-


titucionalidade consagradas pelos modelos europeu e americano:
concentrado e difuso. Em decorrência deste perfil híbrido adotado, a
Constituição reservou ao STF um feixe de competências, além de al-
gumas estranhas ao próprio mecanismo de controle, que faz com que
esse Tribunal tenha que conciliar duas funções: a de cúpula do Poder
Judiciário (funcionando como verdadeira Corte de Apelação, face à
banalização de sua condição de instância extraordinária) e a de Corte
Constitucional (NÓBREGA, 2018, p.g 1)

Dessa forma, temos que o tratamento final de questões constitucionais ocorre jus-
tamente na corte máxima brasileira, sendo, então, o STF competente para arbitrar e inter-
pretar divergências ligadas à Carta Magna nacional.
A princípio, a flexibilização do conceito de entidade de classe poderia pressupor a
5 A necessidade em aumentar a celeridade do STF ocorreu na instalação da inteligência artificial Victor, que au-
xiliará os ministros nos julgamentos.
78 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

ampliação da demanda processual do Tribunal. Contudo, o relatório “STF em números”,


feito pela Fundação Getúlio Vargas em 2014, traz informações pertinentes às porcentagens
de classes processuais ajuizadas no STF e por ele é possível observar que o número de ações
de controle de constitucionalidade concentrado, somadas, representam 1% da demanda to-
tal do tribunal, fato considerado pelo Ministro Barroso como argumento para justificar que
não haveria um aumento significativo das ações julgadas pelo Supremo. A realidade é que o
STF tem exercido muito mais o papel de Suprema Corte do que de Corte Constitucional.
De acordo com o relatório supramencionado, o Agravo de Instrumento é o que
representa a maior demanda do STF, com 47,866% do total de ações no tribunal, em se-
gundo temos o Recurso Extraordinário com 34,879%. A partir dessas informações, pode-se
questionar se o Supremo Tribunal Federal não está demasiadamente ocupado com funções
que poderiam ser repartidas com outros órgãos do poder judiciário, dando mais espaço para
questões estritamente constitucionais. (FALCÃO et al. 2012)
Para que se possa aprofundar na discussão acerca da prioridade de certas demandas,
deve-se rever o papel do Supremo Tribunal Federal como guardião da Constituição. Tal função
não significa ser simplesmente detentor da palavra final em relação a conflitos envolvendo a
hermenêutica constitucional, mas sim, nas palavras de Maria Fernando Salcedo Repolês

[...] o STF deve acima de tudo defender a Constituição como um


âmbito que não é passível de ser apropriado por ninguém, que pre-
cisa se manter aberto como fonte principiológica inesgotável, capaz
de permitir que os cidadãos venham, na medida das práticas sociais, a
reivindicar a sua inclusão. (REPOLÊS, 2008, p. 102)

Pensando dessa forma, o próprio voto do ministro Barroso segue a lógica de que o
dever de guardar a Constituição pressupõe a adaptação da forma constitucional à própria dinâ-
mica social, em um processo dialético constante. Essa lógica ancora-se em elementos histórico-
-constitucionais já expostos acima, além de apresentar precedentes do próprio STF quanto ao
entendimento similar de outros ministros sobre a ampliação do conceito de entidade de classe
de âmbito nacional composta por indivíduos ligados não apenas por vínculos econômicos,
profissionais, mas também ligados pela defesa de direitos fundamentais (ADIs 4029 e 5291).
A decisão do relator é condizente com sua trajetória como ministro e posições
doutrinárias e no que diz respeito a normas de linguagem aberta, como a discutida nesse
trabalho, afirma que:

[...] a Constituição se utiliza igualmente, de inúmeras cláusulas abertas,


que incluem conceitos jurídicos indeterminados e princípios. Calami-
dade pública, relevância e urgência ou crime político são conceitos que
transmitem uma ideia inicial de sentido, mas precisam ser integrados à
luz do caso concreto (BARROSO, 2012. Pg. 386).
ANAIS DE CONGRESSO 79

A reivindicação da ALGBT pode ser vista, então, como uma demanda natural e
provavelmente inevitável, no que diz respeito a indeterminação do conceito de entidade de
classe, uma vez que esse é suscetível a ressignificação histórica. Ademais, a peculiaridade des-
te caso em particular resuma-se a grande exposição que a temática LGBT possui no cenário
social brasileiro, atrelado às particularidades desse Tribunal como a popularização de suas
sessões por meio da transmissão destas em veículos de comunicação em massa.
Uma vez estabelecido o compromisso do Supremo Tribunal Federal com a própria
Constituição, novamente se volta a questão de como torná-la um instrumento de exercício
da soberania popular e concretizar o compromisso estabelecido pelo constituinte de 1988
com o Estado Democrático de Direito.

4. PATRIOTISMO CONSTITUCIONAL E AS LIÇÕES DE HABERMAS PARA UMA


TENTATIVA DE CONSOLIDAÇÃO DA DEMOCRACIA
A Democracia participativa e a pluralidade de discursos, temas centrais na proposta
Habermasiana de Direito e elucidados por Fernandes (2018) nos direcionam a um modelo
de constituição no qual há uma solidariedade social dos coautores da norma para com os
destinatários dessa. Nesse sentido, o controle constitucional deveria ser utilizado como for-
ma de defesa do maior número de discursos possíveis, considerando a pluralidade de grupos
sociais inerente à atual conjectura nacional.
A tese apresentada pela ALGBT, corroborada pelo Ministro Roberto Barroso, é
baseada principalmente nos princípios da isonomia e da igualdade, dessa forma, é impor-
tante rever uma ideia de igualdade que possa ser comparada ao voto do Ministro e que seja
coerente com os princípios democráticos. Partindo da Teoria Discursiva do Direito proposta
por Jurgen Habermas, uma igualdade no tratamento de qualquer falante, de modo que essa
é vista como uma pessoa apta a participar da produção e aplicação do ordenamento jurídico,
é inerente a legitimidade do Estado Democrático de Direito (GALUPPO, 2002). Assim,
pode-se dizer que:

Só se pode reconstruir discursivamente o Estado Democrático de Di-


reito e o direito que lhe é próprio, bem como sua legitimidade, se, no
caso limite, presumir-se o Sistema de Direitos, cuja existência depende
da condição de se distribuir igualmente para todos os cidadãos os di-
reitos de participação no processo de formação da opinião e da vonta-
de pública… (GALUPPO, 2002, p 207).

Uma extensão do pensamento de Habermas é o conceito de patriotismo constitucional,


que defende uma relação direta entre a força da Constituição e o número de pessoas que acredi-
tam em seu projeto de Estado, logo, uma Constituição forte é aquela que agrega o maior número
possível de pessoas que veem nela, um norte no qual a nação deve seguir. Para que se possa atingir
tal feito, a inclusão de grupos antes forçados a viver uma subcidadania, é essencial.
80 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

O patriotismo constitucional, para Habermas, na verdade estaria além de qualquer


limite geográfico ou barreiras étnicas/culturais, pois se fundamenta nos princípios democrá-
ticos conquistados no Estado republicano. Como bem coloca Álvaro Ricardo Souza Cruz:

[...] a visão de Habermas sobre uma Constituição não o vincula neces-


sariamente ao Estado, e sim a processos que garantem a potência desse
projeto. (...) De todo modo, para ele a questão fundamental não se da-
ria em torno da instalação de uma Constituição e, sim, em torno des-
ses procedimentos que permitissem o transporte do Estado nacional
para essa constelação pós-nacional (SOUZA CRUZ, 2006, p. 224).

De fato, a abertura daqueles passíveis de propor ações de controle de constituciona-


lidade concentrado para entidades sem vínculo profissional aumentaria o senso de pertenci-
mento desses grupos, fator que agregaria legitimidade a própria Magna Carta.

CONCLUSÃO
Como apresentado no transcurso deste artigo, a Constituição da República de
1988, apesar de ser um texto moderno e inovador, de acordo com a ambiguidade apontada
por Müller sobre a textificação, mostra-se ineficaz em certo aspecto. Visto que, não é possível
normatizar todas as manifestações de pluralidade da sociedade brasileira, tendo em vista que
as transformações sociais serão mais céleres que o processo legislativo.
Ademais, outras inovações normativas recentemente aprovadas, tal como a Lei Fe-
deral nº 13.467/17 (Reforma Trabalhista), como desdobramento desta houve o enfraqueci-
mento da representação das distintas categorias de trabalhadores em benefício da autonomia
do empregado, ou seja, em certa medida, afetou as entidades legitimadas pelo art. 103, IX,
da CR/88 à provocação do STF no tocante as ações de controle constitucional concentrado.
Deste modo, faz-se necessária a interpretação da Constituição pelo detentor do
controle concentrado de constitucionalidade em benefício da efetivação de direitos e garan-
tias constitucionais, especialmente, à população historicamente negligenciada pelos repre-
sentantes do Estado.
Por fim, ainda não é possível afirmar com clareza quais seriam as consequências
práticas da abertura do rol de legitimados no art. 103, IX da CR/88 para além daquilo já
posto em jurisprudência. Entretanto, a tentativa parece ser válida, uma vez que os números
mais recentes não sugerem um aumento de demanda sufocante para o Supremo Tribunal
Federal. Mister salientar que tal medida pode ter um fator positivo no sentido de fortalecer o
respeito à diversidade e também aparenta ser o caminho natural tendo em vista os princípios
democráticos estabelecidos na Constituição de 1988, uma vez que essa possui capacidade
adaptativa para abarcar as novas dinâmicas sociais brasileiras.
ANAIS DE CONGRESSO 81

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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posição sistemática da Doutrina e análise crítica da jurisprudência – 6. ed. rev e atual. - São
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SOUZA CRUZ, Álvaro Ricardo. Habermas e o Direito Brasileiro. 1 ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2006.
82 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

ENTRE A REALIDADE DO CÁRCERE E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS:


SOBRE O PAPEL DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA NA POLÍTICA DE
ENCARCERAMENTO EM MASSA BRASILEIRA

LEO MACIEL JUNQUEIRA RIBEIRO1

RESUMO
A partir de pesquisas e relatórios que identificam as situações degradantes no siste-
ma penitenciário brasileiro, o presente artigo busca identificar quais são os principais fato-
res jurídico-institucionais que fomentam a política de encarceramento em massa brasileira.
Nesses termos, os principais fatores destacados neste artigo são a utilização da prisão preven-
tiva como regra, a repressão penal às drogas com uma lógica bélica e a persecução penal aos
crimes econômicos e à classe política. A análise desses fatores visa à realização de um diag-
nóstico sobre quais dispositivos constitucionais garantem, e quais deles falham em garantir,
os direitos fundamentais dos acusados e dos indivíduos encarcerados. Por fim, o diagnóstico
realizado poderá oferecer novas perspectivas para estratégias de combate ao encarceramento
em massa, possibilitando o debate sobre modificações constitucionais, legislativas e institu-
cionais que poderão reduzir o número de pessoas encarceradas e motivar melhorias estrutu-
rais no sistema penal brasileiro.
Palavras-chave: sistema penal; direitos fundamentais; prisão preventiva; tráfico de
drogas; crimes econômicos.

INTRODUÇÃO
Passados mais de trinta anos da promulgação da Constituição da República, o sistema
penal brasileiro talvez nunca tenha sido estruturado de forma tão discrepante a seus princípios
e direitos fundamentais como é atualmente. Essa afirmação se fundamenta, em primeiro lugar,
na instrumentalização política da punição que se constata na atualidade. Nesse sentido, foi su-

1 Graduando em Direito na Universidade Federal de Minas Gerais. leoribeiromj@gmail.com


ANAIS DE CONGRESSO 83

perado o ideal democrático2 (CASARA, 2017, p. 19-46) do constitucionalismo, provocando


o retrocesso do sistema penal para estruturas anteriores até mesmo ao projeto reformista3 que
fora proposto a partir do século XVIII por Cesare Beccaria (BECCARIA, 2012, p. 125). Além
disso, a caracterização do sistema penal como seletivo, repressivo e estigmatizante (BATIS-
TA, 2011, p. 125) foi potencializada, levando à sublimação do punitivismo como norteador
da política criminal e regente de um projeto político que visa a inocuização de certos grupos
sociais. Esse projeto tem como principal aspecto e demonstração empírica a realidade do cár-
cere no Brasil, provocando a desumanização do condenado, conforme será descrito abaixo. A
partir desse contexto, o presente trabalho tem como objetivo analisar os principais aspectos
do sistema penal que produzem a política de encarceramento em massa brasileira, que subme-
te os indivíduos à desumanização do cárcere à constante violação de princípios e de direitos
fundamentais que estão contidos na Constituição da República. Nesses termos, a política de
encarceramento em massa brasileira é constituída e fomentada por algumas questões jurídico-
-institucionais que serão debatidas a seguir.

1. REALIDADE DO CÁRCERE
Tendo como ponto de partida a realidade do cárcere, pode-se reiterar que a principal
característica do sistema penal é, sem dúvidas, o encarceramento em massa. Dados concre-
tos apontam que, no mês de junho de 2016, já havia a assustadora soma de 726.712 pessoas
encarceradas (BRASIL, 2017), destacando-se o encarceramento feminino, que apresentou o
crescimento de 567% entre os anos de 2000 a 2014 (BRASIL, 2018). Não obstante, o as-
pecto mais degradante do encarceramento em massa se manifesta nas péssimas condições do
sistema penitenciário brasileiro. De início, destaca-se um relatório da ONU, publicado em
2018, que indicou que os condenados sofriam severas limitações no acesso à comida, água,
tratamento médico e luz solar, vivendo em condições totalmente desumanas (ONU, 2018).
Em sentido semelhante, um estudo realizado no presídio público de Paracatu, no
estado de Minas Gerais destacou que 0,7% dos presos faziam apenas uma refeição por dia
e que 7,2% faziam duas refeições por dia. Quanto ao banho de sol, cerca de 16,5% dos
presos não tomava qualquer banho de sol, enquanto 96% dos que tomavam, o faziam me-
nos de três vezes por semana, ficando a maior parte do tempo totalmente enclausurados.
Nesse contexto, foi destacado que fatores como a superlotação, a alta umidade local e a má
higienização das celas ocasionaram a prevalência de doenças respiratórias nos presos (MEN-
DONÇA, 2018, p. 9-19).
Em seu livro “Falência da Pena de Prisão”, Cezar Roberto Bitencourt descreve com
2 A estrutura do Estado passa a ser marcada pela sublimação do espetáculo, pela flexibilização dos limites demo-
cráticos e pela permissividade crescente à ilegalidade no processo penal (CASARA, 2017, p. 19-46)

3 O autor afirmava e fundamentava esse ideal com base na seguinte premissa: “Que a pena não seja um ato de
violência de um ou de muitos contra um membro da sociedade. Ela deve ser pública, imediata e necessária, a menor
possível para o caso, proporcional ao crime e determinada pelas leis” (BECCARIA, 2012, p. 125)
84 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

maestria os aspectos teóricos que dificultam a aplicação da pena de prisão no sistema penal
contemporâneo, e ainda destaca que a “manifesta deficiência das condições penitenciárias
existentes na maior parte dos países de todo o mundo, sua persistente tendência a ser uma
realidade quotidiana, faz pensar que a prisão se encontra efetivamente em crise” (BITEN-
COURT, 2011, p. 161).
Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal, após julgamento da medida cautelar
na ADPF 347 (BRASIL, 2015), reconheceu o estado de coisas inconstitucional em relação
ao sistema penitenciário brasileiro. O julgamento seguiu o voto do Ministro Marco Aurélio,
determinando, em síntese, as seguintes medidas paliativas para reduzir os danos causados aos
presos: que os magistrados fundamentem a não aplicação das medidas cautelares alternativas
do art. 319 do CPP; realizar audiência de custódia em 24h após a prisão (PIDCP, art. 9.3 e
CADH, art. 7.5),por aplicação do direito internacional; que os juízes considerem o quadro
degradante do sistema penitenciário quando determinarem alguma prisão; que se apliquem
as penas alternativas do art. 44 do CP; que a União libere o saldo do Fundo Penitenciário
para investir no sistema penal, abstendo-se de novos contingenciamentos. Contudo, mesmo
após o julgamento a situação continua grave.
Sendo assim, o problema do encarceramento em massa não caracteriza “apenas”
um problema quantitativo - referente à quantidade exorbitante de pessoas presas - mas tam-
bém qualitativo, visto que a maioria desses indivíduos estão submetidos a situações absolu-
tamente desumanas de cumprimento de pena. Com base nessa análise, pode-se afirmar que
o cárcere é um ambiente no qual se multiplicam diversas violações a direitos fundamentais,
incluindo-se a própria dignidade humana, que foi colocada como base essencial do orde-
namento jurídico brasileiro (SARLET, 2010, p. 32). Provocando constantes violações aos
direitos fundamentais de centenas de milhares de indivíduos, o encarceramento em massa
pode ser considerado verdadeiro projeto político, tendo sido fomentado por algumas ques-
tões jurídico-institucionais presentes no sistema penal brasileiro, as quais serão discutidas
nos itens abaixo.

2. PRISÃO PREVENTIVA COMO REGRA


A primeira questão é a utilização da prisão preventiva como regra, a despeito da ex-
cepcionalidade que deveria possuir - de acordo com a lei - no sistema de medidas cautelares
do Código de Processo Penal (CPP) (SILVEIRA, 2015, p. 241). Nesse sentido, destaca-se
que, 34% dos presos atualmente são provisórios, dentre os quais, 49% estão presos por
um período superior a 180 dias (BRASIL, 2018). Ou seja, não apenas se decreta a prisão
preventiva como regra, como também se mantém o acusado encarcerado como se a pena
estivesse sendo executada provisoriamente. A função central da prisão preventiva na política
de encarceramento em massa é incentivada pelos fundamentos gerais e abstratos que lhe po-
dem ser atribuídos, sem que existam outras cláusulas que sejam suficientes para restringir a
interpretação judicial desses fundamentos. Conforme consta no art. 312 do CPP, é possível
ANAIS DE CONGRESSO 85

decretar a prisão preventiva com base na ordem pública e na ordem econômica4, conceitos
extremamente amplos que possibilitam a fundamentação da prisão preventiva em casos nos
quais é totalmente prescindível, gerando sérias dúvidas em relação à constitucionalidade
desses dispositivos (LIMA, 2003, p. 148). Nesses termos, podem ser destacados os ensina-
mentos de Luigi Ferrajoli (2006, p. 444), no sentido de que:

A perversão mais grave do instituto, legitimada infelizmente por Car-


rara e antes de tudo por Pagano, foi a sua mutação de instrumento
exclusivamente processual destinado à “estrita necessidade” instrutória
para instrumento de prevenção e de defesa social, motivado pelas ne-
cessidades de impedir que o imputado cometa outros crimes. [...] Com
o advento do fascismo, a presunção de inocência entrou francamente
em crise, não houve mais freios ao uso e abuso da prisão preventiva e
à sua aberta legitimação, sem jogo de palavras ingênuo, como “medida
de segurança processual”, “necessária para a defesa social” e indispen-
sável sempre que o delito tenha desencadeado “grave clamor público”.
[...] [A] prisão preventiva assumia assim a fisionomia de uma verda-
deira medida de prevenção contra os perigosos e suspeitos ou, de uma
execução provisória, ou antecipada, da pena. E terminava por alterar a
ordem completa do processo e, mais em geral, do sistema penal.

Sendo assim, a utilização da prisão preventiva como regra é diretamente responsá-


vel pelo encarceramento em massa, violando o próprio sistema legal de medidas cautelares
que a coloca como medida excepcional. A prisão preventiva se apresenta também como par-
te essencial de um complexo ciclo reificador da segregação, da exclusão e da estigmatização
que são impostas sobre os encarcerados, tornando o grupo social duplamente excluído por
consequência da imposição do cárcere (BATISTA, 2003, p. 48). Dessa forma, e tendo em
vista sobretudo a flexibilidade legal dos pressupostos materiais da prisão preventiva, pode-se
afirmar que sua aplicação, na maioria dos casos, é em essência arbitrária e discricionária,
possibilitando que exceda seus fundamentos jurídicos para se tornar uma das mais nefastas
ferramentas de controle social existentes na atualidade (KATO, 2005, p. 179-182).
Além disso, as decisões judiciais também violam a ideia central da aplicação da
prisão preventiva, restringindo de forma ilegal o direito à liberdade dos indivíduos. O papel
da Constituição da República em relação à prisão preventiva é múltiplo, destacando-se so-
bretudo em relação a dois dispositivos: a garantia do estado de inocência (CATTONI DE
OLIVEIRA [et. al.], 2016), que deveria proibir que a medida cautelar fosse aplicada como
pena provisória; o direito à impetração de habeas corpus, que é o remédio constitucional
mais adequado para buscar a revogação de uma prisão preventiva ilícita, quando há ilegali-
dade ou abuso de poder. Contudo, embora a previsão desses dispositivos no texto constitu-

4 Embora existam restrições impostas pela jurisprudência à fundamentação das prisões preventivas, isso não é
suficiente para vetar interpretações inidôneas e desvinculadas com o princípio da ultima ratio na intervenção penal.
Afinal, destaca-se que no ordenamento jurídico brasileiro não há uma estrutura consistente de precedentes.
86 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

cional tenha sido um grande avanço, pode-se afirmar que, talvez pela ineficácia do sistema
de controle sobre as decisões judiciais, a prisão preventiva tem sido utilizada como regra,
como pena provisória. Sendo assim, a impetração de habeas corpus perde seu objetivo, vis-
to que os critérios de admissibilidade e a caraterização como “via estreita” (BRASIL, 2018)
impedem o saneamento de diversos atos coatores ilícitos, especialmente aqueles que exijam
análise sobre elementos probatórios que estejam no processo originário.5

3. REPRESSÃO PENAL ÀS DROGAS


A segunda questão jurídico-institucional que incentiva o encarceramento em mas-
sa é a repressão penal às drogas com uma lógica bélica. Essa repressão ocorre de forma seletiva,
incidindo sobretudo no “tráfico varejista” de drogas, deixando quase totalmente impunes os
grandes empresários do tráfico e os indivíduos pertencentes a classes abastadas que também
realizam essa conduta (VALOIS, 2017, p. 647-648).6 Portanto, a repressão penal às drogas, na
lógica atualmente vigente, se direciona a grupos sociais específicos e a substâncias específicas,
muito embora, na prática, seja possível constatar que produtos potencialmente mais nocivos à
saúde são legalizados e indivíduos de grupos sociais que possuem maior poder econômico são
praticamente imunes à intervenção penal, gerando um sistema absolutamente incoerente.
Além de um evidente problema de coerência jurídica em relação a outros bens jurí-
dicos tutelados pelo sistema penal, a criminalização das drogas sofre de uma profunda falta
de justificação racional em termos de política criminal, estratégia preventiva, necessidade
médica ou até mesmo fundamentação moral. Nesses termos, não se pode pensar na crimi-
nalização das drogas como necessidade ontológica, mas sim como escolha político-criminal
de repressão.
Quanto à Lei nº 11.343/2006, também chamada de Lei de Drogas, pode-se dizer que
é um instrumento punitivo desproporcional à conduta de vender substâncias entorpecentes
proibidas. Afinal, além da já existente caracterização constitucional7 do tráfico de drogas - ex-
ceto em sua forma privilegiada - como crime equiparado ao hediondo,8 a lei traz um proce-

5 Em geral, a justificativa utilizada para o não cabimento da ordem é referente à suposta “impossibilidade de
dilação probatória na estreita via do habeas corpus” (BRASIL, 2018). Outro exemplo claro é o art. 210 do Regimento
do Superior Tribunal de Justiça, para o qual “quando o pedido for manifestamente incabível, ou for manifesta a in-
competência do Tribunal para dele tomar conhecimento originariamente, ou for reiteração de outro com os mesmos
fundamentos, o relator o indeferirá liminarmente”.

6 Nesse sentido, Luís Carlos Valois destaca que é necessário perceber “estar a sua política de drogas matando
pobres, negros, crianças e mulheres, culpados ou inocentes, em nome de uma relação comercial construída arbitraria-
mente como crime”.(VALOIS, 2017, p. 647-648)

7 Talvez essa tenha sido uma das maiores falhas do texto constitucional no âmbito penal, prevista no art. 5º, XLIII.

8 Inclusive, vedando fiança, sursis, graça, indulto, anistia, liberdade provisória e a substituição da pena privativa
de liberdade por restritiva de direitos (MARONNA, 2006, p. 6-7).
ANAIS DE CONGRESSO 87

dimento especial marcado por características gravemente inquisitoriais, como a realização do


interrogatório antes da oitiva das testemunhas nas audiências de instrução e julgamento.9
Dessa forma, a própria lei possibilita a construção e a reafirmação do estigma atri-
buído ao traficante, sendo ele visto como um constante - e ilusório - perigo à sociedade. Por
certo, são necessárias medidas como aquela realizada pelo STF, no âmbito do julgamento do
HC nº 97.256/RS, que declarou incidenter tantum a inconstitucionalidade dos arts. 33, §
4º, e 44, caput, da Lei nº 11.343/2006, especialmente na parte em que vedava a substituição
de pena privativa de liberdade por restritiva de direitos nos crimes hediondos (MENDES;
BRANCO, 2015, p. 519). Ademais, é possível destacar também a decisão colegiada proferi-
da no HC nº 118.533/MT, pelo STF, a qual entendeu que o chamado tráfico privilegiado,
no qual as penas podem ser reduzidas a patamar inferior, conforme o artigo 33, parágrafo 4º,
da Lei de Drogas, não deve ser considerado crime de natureza hedionda (BRASIL, 2016).
Embora, por óbvio, os referidos julgados não signifiquem a total descriminalização
das drogas, eles foram essenciais em termos político-criminais e, por certo, correspondem à
urgente necessidade de se repensar a política de drogas como uma questão de saúde públi-
ca alheia, sempre que possível, da intervenção penal. Destaca-se, contudo, que a previsão
constitucional expressa é claramente tendenciosa a movimentos punitivistas, como o Mo-
vimento da Lei e da Ordem, surgido a partir da década de 1970, ao considerar o tráfico de
drogas como um crime grave e especialmente reprovável, de acordo com a acertada lição da
doutrina penal:

Não há dúvida de que as valorações político-criminais próprias do


Movimento da Lei e da Ordem (Law and Order) se fizeram presentes à
retaguarda do posicionamento assumido pelo legislador constituinte.
O que, em verdade, essa corrente político-criminal, surgida na década
de setenta e com reflexo nas décadas imediatas do século XX, tomava
em consideração? Antes de tudo a premissa de que o tratamento dado
à criminalidade se mostrava extremamente brando e isso era devido a
perspectivas dogmática sofisticadas e a considerações de ordem socio-
lógica. As grandes construções teóricas só serviam, em verdade, para
aumentar a criminalidade. Tornava-se imprescindível repropor a or-
dem – e não a justiça – como valor supremo, as taxas de criminalidade
tinham sofrido grande incremento porque foram minimizadas as pos-
sibilidades da prisão, da condenação e da imposição de penas graves.
A lei deveria restabelecer a ordem, agravando os níveis punitivos e pe-
nalizando com rigor até da pena de morte, os criminosos perigosos ou
reincidentes. Nenhuma indulgência teria cabimento. ‘Quem faz paga’
é a proposta de núcleo concentradamente retributivo adotado pelo

9 Art. 57. Na audiência de instrução e julgamento, após o interrogatório do acusado e a inquirição das teste-
munhas, será dada a palavra, sucessivamente, ao representante do Ministério Público e ao defensor do acusado, para
sustentação oral, pelo prazo de 20 (vinte) minutos para cada um, prorrogável por mais 10 (dez), a critério do juiz.
88 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

Movimento da Lei e da Ordem. Era necessário ‘voltar ao básico, àquilo


que a gente comum entende como bem e mal’, ou seja, ‘à criminologia
da vida cotidiana. (FRANCO; LYRA; FELIX, 2011, p. 142).

Não obstante, destaca-se que o texto constitucional também prevê um extenso rol
de direitos e garantias individuais, o que torna possível a estruturação de um sistema penal
racional e legítimo, sobretudo se respeitados os princípios da ultima ratio e da culpabilida-
de, sendo que ambos são aferíveis a partir do texto constitucional. Sem a efetivação desses
princípios, que constituem parâmetros para interpretações conforme à Constituição, não é
possível que se pense em um sistema penal democrático. Colocando esses princípios como
base de qualquer sistema penal que se pretenda democrático, ainda que não estejam expres-
samente determinados e delimitados na Constituição, Bernd Schünemann (2018, p. 34-35)
escreve que:

Por isso, a racionalidade teleológica sob a forma do princípio da ul-


tima ratio de proteção de bens jurídicos por meio da prevenção geral
ameaçadora e o legitimador princípio da culpabilidade constituem os
dois princípios jurídico-penais fundamentais de todo estado democrá-
tico de direito. [...] com o que o princípio do dano social de Beccaria
formulou-se como condição prévia ao direito positivo, cuja validade
atemporal não pode ser degenerada por uma ‘jurisprudência literal’
(Buchstabenjurisprudenz). Tal jurisprudência, a partir de uma leitura
sem dúvida não menos republicana da Lei Fundamental, sente falta
de uma determinada palavra na literalidade do texto constitucional. O
fato de que nem o conceito de bem jurídico nem o de danosidade so-
cial aparecem textualmente na Constituição não importa muito, pois
também lá não se lê a palavra ‘embrião’ e, ainda assim, a Corte Cons-
titucional formulou importantes considerações acerca dessa questão.
[...] Pode-se, por isso, explicar apenas com ignorância ou desonestida-
de – ou ambos, quando a fundação e limitação do direito penal pela
e à fórmula da ultima ratio da proteção de bens jurídicos, enquanto
reformulação do princípio comum europeu da danosidade social, de
pretensão de validade global e articulado inicialmente por um italiano
e proclamado pela Assembleia Nacional Francesa, são rotulados como
provincialismo anacrônico.

Com base no que foi exposto, pode-se dizer que a leitura do tráfico de drogas como
crime equiparado ao hediondo deve ser desconstruída, pois que em prol da inocuização da
figura do traficante, viola-se os princípios da proporcionalidade, do contraditório, da ampla
defesa, da ultima ratio e da culpabilidade, sendo que todas essas violações se direcionam,
direta ou indiretamente, para violar o direito fundamental à liberdade dos indivíduos, sem
o qual não se pode construir um Estado de Direito verdadeiramente democrático, conforme
exigido pelo texto constitucional. Sendo assim, pode-se concluir intermediariamente que
não há qualquer motivo para a caracterizar o tráfico de drogas como crime equiparado ao
ANAIS DE CONGRESSO 89

hediondo, devendo-se considerar a necessidade de que esse delito não possui mais essa ca-
racterização jurídica, seja por medidas judicias, como as demonstradas acima, ou até mesmo
por meio de alteração formal ao texto constitucional, fazendo valer o que está determinado
pelo texto constitucional.

4. PERSECUÇÃO PENAL A CRIMES ECONÔMICOS


Quanto a terceira questão jurídico-institucional que passou a contribuir atualmente
para o encarceramento em massa, pode-se dizer que é a persecução penal aos crimes econômicos
dos empresários e da classe política. Essa questão está ligada à corrupção nas instituições públi-
cas e ao papel que as empresas - sobretudo empresas de marketing e grandes empreiteiras - pos-
suíram nas duas maiores operações persecutórias que foram realizadas nos últimos anos, quais
sejam, o Mensalão e a Lava Jato. É importante ressaltar que os crimes econômicos ainda não
são os responsáveis diretos pelo encarceramento em massa no sistema penal brasileiro. Na rea-
lidade, quantitativamente, pode-se afirmar que a contribuição dessa espécie de delito é pouco
expressiva frente aos aspectos descritos acima. Contudo, destaca-se que a violação de garantias
que é realizada em prol da punição desses tipos de delitos acaba por agravar o já existente des-
respeito às garantias dos grupos sociais que sempre foram os principais alvos do sistema penal,
levando a um aumento geral do encarceramento em massa.
Nesse sentido, a compreensão desses tipos de delito e da criminalidade na classe
política é maximizada pela mídia, que se coloca como porta-voz da versão acusatória do de-
bate processual. Pode-se afirmar, inclusive, que a publicização midiática é construída por di-
versas narrativas dramáticas que visam, exclusivamente, atrair audiência (BATISTA, 2003,
p. 5-6), as quais, aliadas à crescente arbitrariedade da justiça criminal, geram consequências
irreparáveis e injustificáveis nas vidas dos acusados.10 Movida pela sensação de insegurança
que é motivada pela mídia, grande parte da sociedade passa a solicitar o recrudescimento da
intervenção penal e a punição passam a se tornar pressuposto para toda a classe empresarial
e, sobretudo, política, talvez como uma forma de sobrepujar o mal-estar causado pela inca-
pacidade sistêmica em gerar prevenção sem que seja necessária a pena. Sobre a seletividade
do sistema penal, destaca-se a lição acertada de Zaffaroni (2001, p. 27):

Diante da absurda suposição – não desejada por ninguém – de crimi-


nalizar reiteradamente toda a população, torna-se óbvio que o sistema
penal está estruturalmente montado para que a legalidade processual
não opere e, sim, para que exerça seu poder com altíssimo grau de
arbitrariedade seletiva dirigida, natural mente aos setores vulneráveis.
Esta seleção é produto do exercício de poder que se encontra, igual-
mente em mãos dos órgãos executivos, de modo que também no siste-
ma penal ‘formal’ a incidência seletiva dos órgãos legislativo e judicial
é mínima.

10 Um triste exemplo dessas consequências foi o caso notório do Reitor da Universidade Federal de Santa Catari-
na, que suicidou após ter sofrido diversas arbitrariedades por parte da Polícia Federal. (CARVALHO, 2018)
90 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

Não obstante, a afirmação de Zaffaroni foi, de certa forma, otimista. Atualmente,


busca-se a “absurda suposição” de criminalizar reiteradamente grande parte da população,
sendo que a tradicional seletividade penal se direciona para novos grupos e classes sociais,
podendo-se inclusive falarmos no processo de “administrativização do direito penal” (SIL-
VA SÁNCHEZ, 2006, p. 131), em que o sistema penal assume a lógica e certas caracterís-
ticas administrativas, com mais penas restritivas de direitos, identidade com o “interesse
público” e procedimentos mais céleres para aplicação das sanções penais. Conduto, ainda
assim prevalecem no ideário social as ideias falaciosas de que a prisão é a forma mais efe-
tiva de solução de conflitos e de que se deve aplicar o direito penal sempre. Contudo, nas
palavras de Silva Sánchez:

“[São diferentes] a finalidade que perseguem, respectivamente, o Di-


reito Penal e o administrativo sancionador. O primeiro persegue a
proteção de bens concretos em casos concretos e segue critérios de
lesividade ou periculosidade concreta e de imputação individual de
um injusto próprio. O segundo persegue a ordenação, de modo geral,
de setores da atividade (isto é, o reforço, mediante sanções, de um de-
terminado modelo de gestão setorial). Por isso não tem por que seguir
critérios de lesividade ou periculosidade concreta, senão que deve pre-
ferencialmente atender a considerações de afetação geral, estatística;
ainda assim, não tem por que ser tão estrito na imputação, nem sequer
na persecução (regida por critérios de oportunidade e não de legalida-
de)” (SILVA SÁNCHEZ, 2002, p. 116).

Assim, o sistema penal de fato passa a ser um pouco menos seletivo, por se direcionar
aos políticos e empresários, grupos sociais que até então estavam praticamente alheios às penas,
mas essa transformação se dá a custo de um aumento imensurável na repressividade do sistema
penal, pois os grupos sociais que possuem menos recursos materiais – que são tradicionalmen-
te os principais “alvos” da persecução penal – também sofrem os reflexos da violação de direitos
fundamentais que é realizada em nome da prisão de políticos e empresários.
Nesse sentido, a repressão à criminalidade econômica e seus agentes se direciona so-
bretudo à punição dos que são considerados “poderosos”, ou seja, daquelas pessoas que pos-
suem determinado poder que provém, sobretudo, do grupo social ao qual pertencem, sendo
que “o que caracterizaria a criminalidade dos poderosos seria o fato de seus autores pertencerem
a classe social elevada, atuando no exercício de sua atividade ocupacional” (SUTHERLAND,
1941, p. 112). No que concerne especificamente à classe política, que está incluída nessa nova
tendência do sistema penal, cabe citar as palavras de Boaventura Santos (2003, p. 1-5):

Qualquer que seja o caso, uma coisa é certa: a judicialização da polí-


tica está a conduzir à politização da justiça. Esta consiste num tipo de
questionamento da justiça que põe em causa, não só a sua funcionali-
dade, como também a sua credibilidade, ao atribuir-lhe desígnios que
violam as regras da separação dos poderes dos órgãos de soberania. A
ANAIS DE CONGRESSO 91

politização da justiça coloca o sistema judicial numa situação de stress


institucional que, dependendo da forma como o gerir, tanto pode re-
velar dramaticamente a sua fraqueza como a sua força.

Sobre essa questão, vale ressaltar que este trabalho não busca apoiar a prática de
delitos por empresários ou políticos, nem considerar que essa prática deva ser aceita na so-
ciedade. Ao contrário, defende-se que deve haver aplicação da pena legalmente prevista a
quem pratica uma conduta tipificada pela lei penal, mas desde que respeitando as normas
convencionais, constitucionais e legais vigentes. Inclusive, pode-se indicar como conclusão
intermediária que também é papel da Constituição da República a limitação do desejo pu-
nitivo da sociedade por meio de estruturas concretas, nas instituições, de questionamento e
de vedações à ilegalidade, à inconvencionalidade ou à inconstitucionalidade, especialmente
nos crimes econômicos.

5. SÍNTESE SOBRE O PAPEL DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA


No decorrer dos itens anteriores, foram tecidas algumas conclusões intermediá-
rias sobre o papel da Constituição da República no atual contexto da política de encar-
ceramento em massa brasileira. Além das considerações que foram feitas, destaca-se que
talvez o papel que é mais importante, e talvez também o mais geral, seja compreendermos
e fazermos com que o sistema jurídico absorva a ideia de que não há qualquer legitimida-
de na utilização do sistema penal como prima ratio.11 Nesses termos, destaca-se a lição de
Ferrajoli (1997, p. 109):

Compreende-se que uma ciência jurídica assim entendida confina e


entrelaça-se com a política do Direito; melhor, com a luta pelo Direito
e pelos direitos levados a sério. Pode também dar-se o caso de uma tal
perspectiva basear-se numa excessiva confiança no papel garantista do
Direito. Mas eu penso que, independentemente do nosso otimismo
ou pessimismo, para a crise do Direito não há outra resposta senão o
próprio Direito; e que não existem, para a razão jurídica, alternativas
possíveis. Ela é a única via para responder à complexidade social e para
salvar, com o futuro do Direito, também o futuro da democracia.

Assim, somente com respeito ao sistema jurídico vigente é que a intervenção penal
poderá atingir seus objetivos preventivos gerais e especiais, de forma legítima, em respeito
aos princípios constitucionais penais, principalmente o da ultima ratio. É por essa razão que
os dispositivos constitucionais devem exercer o papel de fazer valer os princípios norteadores
do sistema penal. Sendo assim, não basta que existam dezenas de princípios constitucionais
penais se não há mecanismos concretos que consigam fazer com que os poderes públicos se
11 Com a tentativa de colocar o sistema penal como principal protagonista dos problemas sociais existentes, o
sistema jurídico-penal contemporâneo é composto de uma estrutura que representa violação direta ao princípio da
ultima ratio, que é implicitamente determinado pelo texto constitucional. (TOLEDO, 1994, p. 21-22)
92 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

submetam a esses limites constitucionais, vetando as possibilidades de ativismo judicial:

O ativismo é uma forma virulenta de pragmatismo jurídico. Um juiz


ativista ignoraria o texto da Constituição, a história de sua promulga-
ção, as decisões anteriores da Suprema Corte que buscaram interpre-
tá-la e as duradouras tradições de nossa cultura política. O ativista ig-
noraria tudo isso para impor a outros poderes do Estado o seu próprio
ponto de vista sobre o que a justiça exige. O direito como integridade
condena o ativismo e qualquer prática de jurisdição constitucional que
lhe esteja próxima. Insiste em que os juízes apliquem a Constituição
por meio da interpretação, e não por fiat, querendo com isso dizer que
suas decisões devem ajustar-se à prática constitucional, e não a ignorar.
Um julgamento interpretativo envolve a moral política, e o faz da ma-
neira complexa que estudamos em vários capítulos. Mas põe em práti-
ca não apenas a justiça, mas uma variedade de virtudes políticas que às
vezes entram em conflito e questionam umas às outras. Uma delas é a
equidade: o direito como integridade é sensível às tradições e à cultura
política de uma nação, e, portanto, também a uma concepção de equi-
dade que convém a uma Constituição. A alternativa ao passivismo não
é um ativismo tosco, atrelado apenas ao senso de justiça de um juiz,
mas um julgamento muito mais apurado e discriminatório, caso por
caso, que dá lugar a muitas virtudes políticas, mas, ao contrário tanto
do ativismo quanto do passivismo, não cede espaço algum à tirania”.
(DWORKIN, 2010, p. 451-452).

Sendo assim, é possível afirmar que tamanha tarefa de limitação de poderes, que é
essencial para qualquer democracia, excede a restrição do âmbito nacional brasileiro para se
impor como uma tarefa e um objetivo do próprio constitucionalismo. Ademais, destaca-se
que essa tarefa se impõe como um reforço aos limites impostos ao poder público, de forma
que não se admita a possibilidade de interpretações divergentes aos princípios e direitos
fundamentais contidos no texto constitucional. Nessa linha, Bernd Schünemann (2018, p.
88-93) define, em algumas de suas dez teses sobre a relação da dogmática penal com a polí-
tica criminal e com a prática do sistema penal, indicando, em síntese, que é indispensável a
função da dogmática e da ciência jurídica como forma de exercer esse controle:

Segunda tese. Disso resulta a possibilidade e a tarefa da dogmática –


praticada por cientistas – de controle intelectual da dogmática prati-
cada por juízes. Por essa razão, designei a ciência jurídica como uma
forma de quarto poder, que não possui literalmente poder algum (ou
seja, não exerce domínio, e justamente por isso deve responder à qua-
se indecifrável pergunta: ‘quis custodiet ipsos custodientes’? Apenas
assim é possível obter uma quebra do regresso ao infinito de controle
que se teria em um Estado de Direito com divisão de poderes. Terceira
Tese. Até mesmo quem nisso enxerga uma inadequada apoteose da
ANAIS DE CONGRESSO 93

dogmática jurídica não poderá negar que uma jurisprudência, que não
se abre para a crítica científica, não passa de uma justiça do cádi, que
não pode existir em um Estado de Direito. Somente por meio desse
controle, o poder judicial, de precária legitimidade democrática, se
justifica e se torna suportável. Trata-se de uma condição necessária de
um Estado de Direito (ideal). Quarta tese. Por isso, é necessário que
haja uma abertura da jurisprudência para o diálogo dogmático com a
ciência do direito. Quando esse diálogo não ocorre ou ocorre parcial-
mente, como em vários estados membros da União Europeia e mesmo
no plano da EU, a atividade dos tribunais afigura-se necessariamente
como uma usurpação de poder sem legitimidade, ou seja, tem-se um
déficit de republicanismo. [...] Oitava tese. Ou seja, o déficit na relação
entre jurisprudência e dogmática jurídica não está na dogmática (seja
ela de qualquer proveniência, alemã, espanhola ou outra), senão numa
judicatura que não se legitima discursivamente, mas que age despoti-
camente [...].

Sendo assim, também se coloca como papel fundamental da Constituição da Re-


pública, com o objetivo de reestruturar os aspectos jurídico-institucionais debatidos neste
artigo, a maior abertura ao diálogo com a dogmática e as ciências jurídicas de forma geral. É
preciso ir além da lógica tradicional da intervenção de terceiros, do amicus curiae e, portan-
to, da simples e restrita possibilidade de sustentação oral em julgamentos muito específicos.
Precisa-se de fato criar uma via aberta de comunicação, reflexão e debate entre a
jurisprudência e a ciência do direito, sem a qual as decisões estarão fadadas a posicionamen-
tos arbitrários e desconexos de vínculo racional com o sistema jurídico. Portanto, coloca-se
como papel da Constituição da República a realização efetiva dessa comunicação, ampliando
as possibilidades de debates entre jurisprudência e ciência jurídica e, principalmente dessa
forma, possibilitando que o arbítrio dos magistrados seja limitado por parâmetros racionais
e normativamente orientados de decisão judicial e da edição de normas penais.

CONCLUSÃO
A análise realizada neste artigo nos leva a concluir que a Constituição de República
trouxe diversos avanços quanto à instituição de princípios norteadores da ordem jurídica e
de direitos fundamentais dos indivíduos, colocando a dignidade humana como elemento
central do sistema jurídico. Contudo, a despeito dos avanços trazidos pelo texto constitucio-
nal, a realidade do cárcere é diametralmente oposta do que é determinado por seus dispositi-
vos, provocando constantes violações aos direitos fundamentais que estão nele contidos. Por
isso, buscou-se entender quais são as questões jurídico-institucionais que levam ao encarce-
ramento em massa, submetendo os indivíduos à desumanização do cárcere.
As principais questões e argumentos destacados como fundamento do encarcera-
94 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

mento em massa foram a utilização da prisão preventiva como regra, a repressão penal às
drogas com uma lógica bélica e a persecução penal aos delitos econômicos, especialmente no
que concerne à classe política e empresários. Nesse contexto, é possível constatar uma estru-
tura caótica no sistema penal, com leis inconstitucionais, decisões judiciais que violam leis,
princípios constitucionais e tratados internacionais, “precedentes” que contrariam o texto
constitucional e que são consolidados sem as devidas formalidades determinadas pela lei e,
por fim, a potencialização institucional do retrocesso ao sistema processual inquisitório.
Sendo assim, é possível visualizar possíveis soluções para o encarceramento em mas-
sa, que perpassam, inicialmente, pela estruturação de novas formas de controle às decisões
judiciais ou da edição das normas penais. Para tanto, é indispensável que se façam valer os
princípios norteadores do sistema penal, especialmente o princípio da ultima ratio, o qual
sofreu as mais incisivas violações nos últimos anos, tanto em termos legislativos como juris-
dicionais. Somente com total respeito à vigência desses princípios é que se poderá pensar na
desconstrução da política de encarceramento em massa brasileira.
Ademais, devem ser urgentemente repensadas as formas de realização do debate en-
tre a jurisprudência e a ciência jurídica, podendo-se afirmar que este talvez seja um dos prin-
cipais caminhos e meios pelos quais as decisões judicias podem ser consideradas legítimas,
posto que compatíveis com os parâmetros interpretativos estabelecidos pela ciência jurídica.
Dessa forma, será possível pensarmos numa estrutura de sistema jurídico em que os limites
ao poder de punir não se restringem apenas ao sistema normativo vigente, mas também às
teses e aos posicionamentos desenvolvidos no âmbito da dogmática penal, potencializando
ao máximo a participação democrática em seu exercício.

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98 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

O PRINCÍPIO DA IGUALDADE NA PRÁTICA CONSTITUCIONAL


CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA E SUA TENSÃO E CONTRADIÇÕES NO
TRATAMENTO DE MINORIAS RACIAIS

LEONARDO FAUSTINO PEREIRA1*


SARA ZICA RIBEIRO2**

RESUMO
Um dos pilares fundantes da identidade nacional brasileira é o mito do bem-aven-
turado e pacífico éden multirracial, acolhedor a todas as cores, crenças, credos e modos de
vida, mas que se desintegra perante qualquer análise mais cuidadosa da realidade brasileira
hodierna. A sociedade brasileira, sofre desde a sua fundação simbólica com as tensões exis-
tentes entre igualdade e segregação. Notadamente, enquanto esses valores de seletividade e
discriminação causam um esvaziamento e relativização do princípio da igualdade, tornam-se
cada vez mais comum a dispersão de ideais contrários aos direitos humanos e à construção
de quaisquer leis ou normas direcionadas aos grupos minoritários negros. O presente texto
se presta a desenvolver uma análise quanto às limitações e tensões do princípio da igualda-
de postulado pela Constituição da República de 1988 no tratamento dos temas relativos às
relações inter-raciais.
Palavras-chave: Constituição de 1988; Minorias; Igualdade.

INTRODUÇÃO
A Constituição de 1988 foi (e é) um marco na história da proteção e do desenvolvi-
mento de direitos para as minorias, podendo ser facilmente apontada como um dos maiores
marcos de progresso civilizatório do país no século XX. Entretanto, apesar de significar um
grande passo para a jovem democracia brasileira, a proteção dada pelo texto constitucional
no campo das relações inter-raciais ainda é, seja em seu texto literal, ou no seu arcabouço
valorativo e principiológico cotidianamente invocado nos tribunais e na labuta jurídica di-

1 *
Graduado em Direito pela UFMG.

2 **
Graduada em Direito pela UFMG. Especialista em Processo Civil e em Direito de Família e Sucessões pelo CAD.
ANAIS DE CONGRESSO 99

ária, incompleta. Percebe-se, que os constituintes, embora possuídos dos mais republicanos
desejos ao escrever a Carta Magna e a despeito de suas divergências e da pluralidade de suas
opiniões, eram seres humanos e, portanto, naturalmente fadados aos limites de seu próprio
tempo e sociedade, vítimas de difusos preconceitos e pré-cognições que assombram mesmo
hoje os praticantes do Direito, assim como toda a sociedade em que esses estão imersos.
Dessa forma, apesar da abrangência de tratamento o texto constitucional foi levado a não
ser tão preciso como deveria no tema.
Em parte, isso ocorre porque embora a moderna Carta tenha estabelecido a proi-
bição de distinções e discriminações injustas ou mesmo tenha avançado significativamente
naquilo que Carbonell chamou de igualdade substancial,3 a compreensão do fenômeno da
discriminação pelo texto constitucional ainda engatinha. Além disso, aspectos culturais da
identidade brasileira contemporânea limitam o debate e evolução do princípio constitucio-
nal, limitando-o, seja na esfera jurídica, seja na esfera legislativa, à sua camada mais superfi-
cial. A discussão quanto às discriminações justas, aquelas que não violam direitos ou garan-
tias fundamentais, e injustas, as que são abusivas e violam direitos e garantias fundamentais,
não avançam e existe uma enorme resistência a acolher quaisquer teorias ou práticas novas
quanto ao assunto, além disso, políticas públicas destinadas a minorar as desigualdade e
ações afirmativas acabam sendo restritas e tímidas em sua atuação e efeitos.

Dessa maneira, salvo algumas exceções dignas de nota em que a prática


discriminatória tem sido considerada como presumida, o Judiciário
brasileiro ainda está longe de se posicionar de modo efetivo contra
ações ilegítimas de discriminação.
Portanto, o Legislativo nacional se preocupa quase que exclusivamente
com legislações repressivas e o Judiciário assume postura nitidamen-
te conservadora, ou seja, refratária a posições de vanguarda na defesa
dos direitos fundamentais das minorias. Por sua vez, o Executivo, no
Governo Lula, passou a desenvolver uma “agressiva” postura em favor
de ações afirmativas, em uma notável mudança de perspectiva. Contu-
do, exageros tais como, por exemplo, as normas que determinavam a

3 La igualdad sustancial. El estadio más reciente en el recorrido de la igualdad a través del texto de las consti-
tuciones más modernas se encuentra en el principio de igualdad sustancial, es decir, en el mandato para los poderes
públicos de remover los obstáculos a la igualdad en los hechos, lo que puede llegar a suponer, o incluso a exigir, la
implementación de medidas de acción positiva o de discriminación inversa. Hay dentro de esta cuarta modalidad, al
menos, dos distintos tipos de preceptos, unos que se podrían llamar de “primera generación” y otros que tal vez puedan
ser calificados como de “segunda generación”. Entre los primeros se encuentran, por ejemplo, los artículos 9.2 de la
Constitución española o 3.2 de la Constitución italiana. Entre los segundos está el importante y polémico agregado
de 1999 al artículo 3 de la Constitución francesa, que ha dado lugar a importantes cambios en la legislación electoral
de ese país (al respecto, véase Carrillo, 2002; Pizzorusso y Rossi, 1999); el texto en cuestión dispone que “La ley fa-
vorece el igual acceso de las mujeres y de los hombres a los mandatos electorales y funciones electivas”. Este precepto
se complementa con un añadido al artículo 4 de la misma Constitución, de acuerdo con el cual los partidos políticos
deben contribuir a la puesta en acción del mandato del artículo 3 dentro de las condiciones que establezca la ley. Son
mandatos de este tipo los que permiten el establecimiento, entre otras medidas, de las llamadas cuotas electorales de
género, cuyo estudio se emprende en párrafos posteriores. (CARBONELL, 2013, p. 13-14.)
100 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

identificação da cor da pele em documentos de identidade, a provisão


do emprego de termos como negro em favor do emprego da expressão
‘afro-descendente’, bem como a imposição de cotas raciais sem qual-
quer contrapartida na cobrança de apoio específico a tais estudantes,
têm contribuído para um crescente sentimento de rejeição da popula-
ção no tocante a tais políticas públicas. Ao contrário dos EUA, que dis-
põe a debater e a enfrentar o problema de forma ampla e democrática,
no Brasil, as autoridades preferem “escondê-lo” debaixo do tapete”, de
um lado fazendo “lindos discursos” em favor das minorias e na prática,
avançando pouquíssimo nessa direção. CRUZ, 2009, p. 36-37.

Tendo isso em conta, o presente texto se presta a desenvolver uma análise quanto
às limitações e tensões do moderno princípio da igualdade postulado pela Constituição da
República de 1988 no tratamento dos temas relativos às relações inter-raciais. Para isso, o
presente estudo realizará uma revisão de literatura, se utilizando de obras de renomados
doutrinadores nacionais e internacionais, além de também analisar brevemente decisões ju-
diciais relevantes para o Judiciário brasileiro hodierno e mesmo, quando necessário, realizar
ocasionais esforços de Direito Comparado.
Inicialmente, o trabalho se preocupará em traçar um panorama histórico sobre o
desenvolvimento do princípio da igualdade nas relações inter-raciais nas diferentes Consti-
tuições brasileiras anteriores à Carta Republicana de 1988. No entanto, entendendo que o
Direito não é um monólito impermeável à cultura de sua época e período histórico, se de-
senvolverá uma pequena análise sobre o pensamento que baseou, em cada diferente período
da história, o tratamento jurídico do tema. Obviamente, tratando-se de um trabalho cujo
foco é compreender o instituto da igualdade no presente, mais precisamente nos últimos 30
anos da Constituição, e não seu passado histórico remoto, o tópico dará especial atenção à
formação do mito da democracia racial, cujo valor cultural para a compreensão das relações
inter-raciais no Brasil (e de como são tratadas juridicamente) é essencial.
Posteriormente, o texto se preocupará em delinear com mais cuidado o conceito e
fronteiras mais modernas do princípio da igualdade. Também discorrerá sobre como esse
impede discriminações injustas e abusivas, esforçando-se, claro, para também conceituar
as diferentes modalidades de discriminação. Também se intentará em criticar a moderna
compreensão do princípio constitucional da igualdade no campo das relações inter-ra-
ciais, assim como se apontará os avanços quanto à compreensão do princípio nessas últi-
mas três décadas.
Por fim, o texto apresentará suas conclusões, comentando sobre as tensões existen-
tes no tratamento constitucional do princípio da igualdade e apresentando possíveis solu-
ções aos problemas apresentados ao longo do estudo.
ANAIS DE CONGRESSO 101

1. O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL E A LUTA PELA IGUALDADE ANTES DA


CONSTITUIÇÃO DE 1988
A primeira Constituição brasileira foi a Constituição Imperial de 1824. Esse texto
normativo era bastante imbuído dos ideais filosóficos do iluminismo, a despeito de grande
parte dos mesmos serem absolutamente anacrônicos frente à sociedade brasileira da época,
que se baseava no latifúndio, no privilégio e na escravidão. Castro (2003), inclusive, chega a
dizer que a Constituição de 1824 era basicamente uma cópia fiel da Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão elaborada durante a Revolução Francesa. É curioso notar como já
na concessão da cidadania aos habitantes do território brasileiro a Carta, a despeito de seu
caráter liberal, já passava a traçar discriminações entre brancos e negros.:

Art. 6. São Cidadãos Brazileiros


I. Os que no Brazil tiverem nascido, quer sejam ingênuos, ou libertos,
ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por ser-
viço de sua Nação.
II. Os filhos de pai Brazileiro, e Os ilegítimos de mãe Brazileira, nasci-
dos em paiz estrangeiro, que vierem estabelecer domicilio no Imperio.
III. Os filhos de pai Brazileiro, que estivesse em paiz estrangeiro em
serviço do Imperio, embora elles não venham estabelecer domicilio
no Brazil.
IV. Todos os nascidos em Portugal, e suas Possessões, que sendo já resi-
dentes no Brazil na época, em que se proclamou a Independencia nas
Provincias, onde habitavam, adheriramáesta expressa, ou tacitamente
pela continuação da sua residencia.
V. Os estrangeiros naturalisados, qualquer que seja a sua Religião. A Lei
determinará as qualidades precisas, para se obter Carta de naturalisação.

Atribuía-se aos escravos uma cidadania totalmente restrita, e aos libertos uma ci-
dadania um pouco mais ativa, pois tinham alijada a sua participação no processo político,
não podendo se candidatar a cargos públicos ou mesmo votar nas eleições provinciais (art.
94, II da Constituição do Império/1824)4. Perceba-se que havia na época um grande medo
de que os escravos se revoltassem, como ocorreu nas Antilhas, ao mesmo tempo que o co-
mércio de escravos se tornava cada vez maior e mais importante para a economia da época.
No entanto, não se deve pensar que o texto era tão liberal quanto poderia parecer à primeira
vista, uma vez que apesar da “cidadania” ter sido estendida até algum ponto para negros e
indígenas, havia um relativo consenso quanto à inferioridade de ambos.
Comentando sobre a tensão entre os membros da constituinte durante os trabalhos
para a elaboração da carta magna de 1824, Wolkmer (2003) faz um interessante relato:

4 Art. 94. Podem ser Eleitores, e votar na eleição dos Deputados, Senadores, e Membros dos Conselhos de Pro-
vincia todos, os que podem votar na Assembléa Parochial. Exceptuam-se(...)II. Os Libertos.
102 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

O deputado Vergueiro declarou-se favorável a uma cidadania ampla


que incluísse os escravos, pois achava absurda a existência de uma so-
ciedade com cidadãos e não cidadãos. Admitia, porém, a limitação do
gozo efetivo da cidadania por vários processos. Os deputados Ferreira
França e Montezuma manifestaram-se contra, defendendo a distinção
entre brasileiros – inclusive escravos e índios – e cidadãos. A mesma
posição foi defendida por Almeida e Albuquerque e Costa Barros, sob
o argumento que a existência de escravos implicava forçosamente a
distinção. Ambos defendiam, ainda mais radicalmente, ser absurda a
concessão incondicional de cidadania ao liberto. O padre Alencar afir-
mou ser um risco à “salvação do Estado” a cidadania ampla, pois repre-
sentaria o abandono da agricultura e afetaria o direito de propriedade
dos senhores sobre os seus escravos.

Quando da discussão do §6º, sobre a extensão da cidadania aos libertos renovou-se


a discussão. Costa Barros manifestou-se inteiramente contra, Ferreira França defendeu a
distinção entre libertos nascidos no Brasil e na África, Maciel da Costa expressou claramente
seu temor aos libertos, que assim seriam estimulados a avançar sobre os proprietários terri-
toriais com “superioridade numérica e a consciência de sua força”, o ex-revolucionário de
1817, Muniz Tavares, pediu para que o parágrafo fosse aprovado sem maiores discussões, a
fim de não suscitar uma rebelião escrava como acontecera em São Domingos. WOLKMER
et Al, 2003, p.377.

Publicada posteriormente à Lei Áurea, embora ainda com resquícios


da velha estrutura escravista do Império, a Constituição Republicana
de 1891, inspirada pelos ideais democráticos da Constituição norte-
-americana, foi a primeira a enunciar expressamente o princípio da
igualdade em seu texto.
Art.72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residen-
tes no paiz a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á
segurança individual e á propriedade, nos termos seguintes: (Redação
dada pela Emenda Constitucional de 3 de setembro de 1926)
§ 2º Todos são iguaes perante a lei. (Redação dada pela Emenda Cons-
titucional de 3 de setembro de 1926)
A Republica não admitteprivilegios de nascimento, desconhece fóros
de nobreza, e extingue as ordens honoríficas existentes e todas as suas
prerogativas e regalias, bem como os titulosnobiliarchicos e de con-
selho. (Redação dada pela Emenda Constitucional de 3 de setembro
de 1926)

No entanto, esse novo texto constitucional tinha um conceito de igualdade pu-


ramente formal. A igualdade, para a época, era entendida apenas como a ausência de tra-
tamento desigual para os indivíduos de acordo com seu nascimento, religião e etc. Perce-
ba-se, que boa parte dos valores que justificavam a inferioridade das pessoas negras, ainda
ANAIS DE CONGRESSO 103

existiam e eram comumente compartilhados e reproduzidos durante o início do período


republicano. Também não ajudou o fato de que aos anos finais do Império, pouco depois
da promulgação da Lei Áurea, ex-escravos foram politicamente arregimentados por grupos
de interesse monarquistas naquilo que seria conhecida como Guarda Negra, cujo objetivo
seria combater o emergente republicanismo.5 Era comum se acreditar que as pessoas negras
eram naturalmente indolentes ou possuíam aversão ao trabalho e à disciplina, creditando-se
para a solução desse problema a migração europeia que, segundo acreditava-se, seria capaz
de embranquecer o país, livrando do mesmo o legado negro.6
A constituição de 1934, trouxe uma redação um pouco melhor do princípio, embo-
ra a sociedade a qual regulava não houvesse evoluído tanto quanto as relações inter-raciais,
nem houvesse sido desenvolvida nenhuma forma de reparação para as camadas descenden-
tes dos escravos libertos.

Art. 113 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residen-


tes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à sub-
sistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
1) Todos são iguais perante a lei. Não haverá privilégios, nem distin-
ções, por motivo de nascimento, sexo, raça, profissões próprias ou dos
pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou idéias políticas.

Já as Constituições de 1937 e 1946, trouxeram uma redação muito mais minima-


lista ao princípio, reduzindo-o apenas à frase “Todos são iguais perante a lei.” É interessante
notar, que a narrativa do caráter cordial, senão mesmo amistoso, entre as raças se tornou
bastante comum no período, em grande parte pela publicação de Casa Grande & Senzala
de Gilberto Freyre em 1933.
Interessantemente, foi apenas na Constituição de 1967 que pela primeira vez se
5 “A Guarda Negra era um movimento contraditório e confuso. Apoiava a monarquia porque os escravos conse-
guiram libertar-se do cativeiro através da magnanimidade da Princesa Isabel. Via a Abolição como um ato de munifi-
cência social praticado pela regente, sem analisar as estratégias ocultas nessas medidas e as consequências negativas que
a Abolição traria, feita da forma inconclusa que foi.
Por outro lado, deixaram de pressionar os republicanos, especialmente os mais democratas, como Silva Jardim, no
sentido de radicalizar o seu programa, exigindo reformas sociais, econômicas e estruturais, como a distribuição de
terras aos ex-escravos. Foi, portando, um movimento conjuntural e reacionário, e o próprio José Patrocínio, ao ver
proclamada a República, foi um dos primeiros a aderir ao novo regime. Com isso, a Guarda Negra se desarticulou
completamente logo após a proclamação da República, vindo a desaparecer, sem maiores consequências. (MOURA,
1992, p. 65-66.)

6 “O elemento estrangeiro que aponta às nossas plagas é portador de uma outra educação [...], traz na bagagem
outras energias, que nós os brasileiros brancos, pardos e pretos não temos atualmente [...]. O Brasileiro branco deixou-
-se vencer pelo elemento estrangeiro, devido à sua indolência característica [...], devido à péssima educação do passado,
onde ele apenas aprendeu a receber e gastar o fruto do trabalho escravo [...]. O Brasileiro negro, esse é naturalmente
inimigo do trabalho, é indolente e preguiçoso, mas não por sua culpa. O nosso negro é atavicamente uma vítima do
passado e do viciado cativeiro de quatrocentos anos”. AZEVEDO, 1987, p. 251.
104 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

falou na repressão às manifestações preconceituosas.

Art 150 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros


residentes no Pais a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à
liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
§ 1º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção, de sexo, raça, traba-
lho, credo religioso e convicções políticas. O preconceito de raça será
punido pela lei.

Em parte, esse progresso civilizatório em meio a um evidente retrocesso democráti-


co, pode ser explicado pela irradiação de ideias e teorias estrangeiras para o substrato cultural
brasileiro da época. Poucos anos antes, houve grandes mobilizações pelos direitos civis nos
Estados Unidos, sendo que Martin Luther King chegou a ganhar o prêmio Nobel da Paz em
1964. Dessa forma, a despeito de alguns dos autores clássicos ainda insistirem na perspec-
tiva da Democracia Racial como um marco teórico para a compreensão das relações inter-
-raciais no país, passou a haver uma discussão maior sobre o tema.7 É importante destacar,
que importantes mobilizações relativas ao movimento negro ocorreram no período, sendo
que a formação do INBA (Sociedade de Intercâmbio Brasil-África), o IPCN (Instituto de
Pesquisa das Culturas Negras) e o MNU (Movimento Negro Unificado) na década de 1970,
que posteriormente evoluiriam para se tornar o Movimento Negro Contra a Discriminação
Racial em 1978. Ainda é importante destacar a formação do Ipeafro (Instituto de Pesquisas
e Estudos Afro Brasileiros) em 1981.
É importante ressaltar, que o movimento negro se fortaleceu bastante com a Cons-
tituição de 1988 e o novo pensamento político reinante, podendo-se apontar a criação da
Fundação Cultural Palmares em 1988 e, mais tardiamente, com a tentativa da construção de
políticas públicas de reparação e na criação da Secretaria Especial de Promoção da Igualda-
de Racial (SEPIR) em 2003, como provas disso. No entanto, existem mesmo hoje grandes
7 “Pois bem, a geração brasileira formada pelo projeto UNESCO, que a rigor comanda esse campo de estudos
dos anos 1950 até os 1970, buscará entender o preconceito de cor de um modo inovador, encravando-o no âmbito
das transformações estruturais da sociedade brasileira em sua transição de sociedade de castas para a de classes, ou de
sociedade tradicional para a moderna. Ao contrário de Charles Wagley, de Donald Pierson e de Gilberto Freyre, essa
geração não restringe sua análise ao campo da cultura ou da interação social. Não se trata de simples abertura (classes)
de relações sociais antes fechadas (castas), que teriam sido propiciadas, sem grandes fricções, seja pela maior miscibili-
dade dos luso-brasileiros ou sua tolerância racial, seja pelos mores católicos ou pelas supostas características intimistas
do sistema escravista. Do mesmo modo, as queixas de preconceito e o seu registro, mais abundantes no Sul que no
Norte, não se devem a valores introduzidos por imigrantes recentes, mas às características próprias ao processo de
mudança social. Aliás, nesse ponto, me permitam notar a ironia de ser justamente o Norte berço do racismo científico
brasileiro, que é, nessa leitura culturalista, isentado de preconceito, enquanto o Sul passa a ser a referência geográfica
para estes e outros antibrasileirismos.
Os estudiosos brasileiros, Florestan à frente, ainda que aceitando o paradigma de Blumer, darão ênfase no descom-
passo entre os valores da ordem escravocrata, que permanecem, e as relações sociais da nova ordem competitiva em
formação. O preconceito de cor, entre nós, seria um sintoma da incompletude da revolução burguesa e da sociedade de
classes. Seria uma persistência do passado, enquanto “negros” e “mulatos” seriam apenas “metamorfoses do escravo”.
(GUIMARÃES, 2004.)
ANAIS DE CONGRESSO 105

desafios quanto ao tema e, se por um lado narrativas eugenistas ou que afirmavam a infe-
rioridade das raças não brancas perderam força no Brasil, por outro, o discurso negacionista
quanto à existência de discriminação racial no processo histórico brasileiro vêm se tornando
cada vez mais relevante.
Qualquer discussão sobre o campo das relações inter-raciais no Direito deve passar
por uma seara inescapável, um verdadeiro ovo da serpente que, em grande parte, é o culpado
pelo tratamento legislativo (e jurídico) inadequado do tema, o mito da democracia racial.
Toda a sociedade possui um conjunto de mitos fundadores, narrativas ligadas a um remoto
e fabuloso passado histórico onde um evento ou fenômeno social específico deu partida ao
processo de construção de sua moderna identidade nacional. A hodierna nação norte-ame-
ricana, por exemplo, identifica seu nascedouro no suposto espírito de liberdade e justiça dos
pais fundadores, o contemporâneo Estado chinês, por outro lado, funda sua atual identidade
no período Maoísta, assim como o a hodierna Rússia crê que sua presente identidade nasceu
sob o som dos canhões da segunda guerra, já o Brasil identifica o seu nascimento na con-
vergência e miscigenação das mais variadas raças em seu território. Segundo a crença desse
último, o desenrolar de sua história teria sido uma narrativa de harmonia inter-racial, que
teria convergido na criação de uma nação fundamentalmente mestiça e acolhedora, reunin-
do as melhores características de cada um dos povos que participaram na miscigenação, um
verdadeiro homo-brasiliensis. Um ser naturalmente cordial e pacífico. Conforme mostrado
por Azevedo (1987), entretanto, tal visão idealizada esconde um esforço de encobrimento
do real, transcendendo, inclusive, em um anacronismo essencial.

Além de assegurar a possibilidade desde já do embranquecimento da


população brasileira, a imagem da ausência de preconceitos raciais
permitia também a defesa da continuidade da escravidão ainda por
algum tempo, até que correntes massivas de imigrantes começassem
a se dirigir ao Brasil. Sim, porque, conforme tornou-se comum argu-
mentar, não importava que este país fosse um dos últimos baluartes da
escravidão. Afinal, aqui as relações raciais eram isentas de preconceitos,
essencialmente distintas daquelas vigentes nos Estados Unidos — afir-
mavam enfaticamente alguns reformadores, orgulhosos da \ suposta
benignidade dos senhores brasileiros para com os seus escravos.
E por último, muito provavelmente, a imagem da ausência de precon-
ceitos assumia a condição de um recado tranquilizador aos europeus
que estivessem à procura de um país para emigrar. Ao contrário dos
Estados Unidos, onde a escravidão terminou com uma guerra, no Bra-
sil reinava a mais plena harmonia racial e, por isso, assegurava-se, os
conflitos de classe entre senhores e escravos poderiam se resolver em
paz, dentro dos quadros legais e sem sobressaltos para a população tra-
balhadora. AZEVEDO, 1987, p. 76-77.

Dessa forma, duas das grandes funções do mito da democracia racial em seu nas-
cedouro foram tanto a justificação e a preservação das estruturas escravistas, assim como o
106 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

apaziguamento das massas migrantes da Europa, trazidas para o país com o objetivo de em-
branquecer a população. A despeito disso, tal discurso negacionista quanto à possibilidade
da existência de quaisquer preconceitos de ordem estrutural entre a população se tornou
cada vez mais popular.

2. O PRINCÍPIO DA IGUALDADE NA CONSTITUIÇÃO DE 1988


Na Carta Magna promulgada em 1988, o princípio da igualdade, seguindo cons-
tituições anteriores, foi mencionado de forma explícita no texto normativo através do caput
do art. 5º da CR/1988.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natu-
reza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País
a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à seguran-
ça e à propriedade, nos termos seguintes:

No entanto, ao contrário das outras cartas constitucionais brasileiras em que o


princípio da igualdade existia em uma forma eminentemente formal, a Constituição Cidadã
desenvolveu um novo paradigma para a compreensão do princípio. Agora, mais do que ape-
nas uma igualdade formal, busca-se uma igualdade material ou, para BOBBIO, “igualdade
proporcional”8. CANOTILHO(2003, p.430) chega mesmo a afirmar, que o princípio da
igualdade pode ser considerado um princípio de justiça social. Tratam-se desigualmente os
desiguais, a fim de que os mesmos sejam tratados igualmente. Tendo isso em conta, Canoti-
lho (2003, p. 430), inclusive, chega a dizer que “o princípio da igualdade não é apenas um
princípio de Estado de Direito, mas também um princípio de Estado Social”.

Partindo-se da ideia de que o princípio igualdade não exige tratamento


idêntico, em quaisquer circunstâncias, para todas as pessoas, ele guar-
da uma dupla diretriz: a determinação para tratamento igual, se não
houver autorização constitucional para tratamento diferenciado; e a
exigência de tratamento diferenciado se a situação das pessoas envolvi-
das for essencialmente distinta.
Portanto, o princípio constitucional da isonomia pressupõe um dever
de igualdade para o Poder Público, desdobrando-se em tratamento
8 Atualmente, a versão mais comum da Igualdade proporcional é a seguinte: uma regra de distribuição é iguali-
tária se, e apenas se, as diferenças na distribuição correspondem a diferenças relevantes das características pessoais; por
outras palavras, se a característica especificada é relevante em relação ao gênero de benefícios ou encargos a distribuir.
Sendo a idade e a cidadania relevantes com relação ao direito de voto, é igualitário limitar o privilégio aos cidadãos
adultos. A riqueza é relevante para a imposição de impostos; portanto, o imposto fixo ou o imposto progressivo sobre
a renda são igualitários. Inversamente, uma regra é inigualitária, tanto se se baseia em diferenças de características não
relevantes, como se não leva em conta as relevantes. Sexo, cor ou riqueza não são relevantes para o fato de votar; a
limitação deste direito aos homens, ou aos brancos, ou aos proprietários, não é igualitária. A riqueza é relevante para
a tributação; por conseguinte, o imposto indireto é inigualitário, pois impõe uma contribuição de igual medida aos
adquirentes pobres e ricos (BOBBIO et Al, 1998, p. 600-601.)
ANAIS DE CONGRESSO 107

igualitário se as situações consideradas apresentarem circunstâncias


iguais, e autorizando tratamento diferenciado, se as situações forem
diversas. TORRES, Ricardo Lobo et al, 2011, 524-525

É importante perceber que o tratamento desigual não importa sempre em uma viola-
ção do princípio da igualdade. Na verdade, existem discriminações legais e ilegais, sendo que
as primeiras são absolutamente essenciais para a concretização dos direitos e garantias constitu-
cionais aos grupos minoritários, alijados de oportunidades justamente por causa das segundas.
Torna-se importante, por conseguinte, diferenciar uma da outra. Celso Antônio Bandeira de
Mello apresenta quatro elementos identificadores de lesões ao princípio da igualdade:

1º) a diferenciação não pode atingir apenas uma pessoa;


2º) as situações (ou pessoas) a serem diferenciadas pela norma jurí-
dica devem ser de fato distintas (isto é, apresentarem características
diferenciadas);
3º) deve existir, abstratamente, uma lógica entre os fatos diferenciais e
a distinção estabelecida pela norma jurídica;
4º) concretamente, o vínculo de correlação deve ser pertinente em ra-
zão de interesses constitucionais protegidos, tendo em vista para tanto
o “bem público”.

As discriminações lícitas (diferenciações) também seriam possíveis nos casos em que:

1º) não atinjam de modo atual e absoluto os princípios da generalida-


de e abstração da norma jurídica;
2º) haja realmente nas situações, coisa ou pessoas com características
ou traços diferenciados;
3º) existe lógica entre os fatores existentes e a distinção estabelecida;
4º) a distinção estabelecida tenha um valor positivo, à luz do que
estabelece a Constituição. MELLO apud FERNANDES, 2018, p.
482-483.

Em que pese a razoabilidade da distinção proposta por Mello, a distinção entre dis-
criminações legais e ilegais, ou lícitas e ilícitas, é um pouco vaga tendo em conta as nuances e
problemáticas das relações raciais. Cruz (2009), discorrendo sobre o assunto propõem duas
modalidades básicas de discriminação ilícita em situações no trato com grupos minoritários,
particularmente raciais. A primeira, seria a discriminação direta ou intencional, correspon-
dendo ao conjunto de condutas às quais o animus discriminatório, o dolo/desejo consciente
de ofender a integridade física e moral do outro, seria facilmente visível. Já a segunda for-
ma de discriminação seria a discriminação de fato, essa modalidade “culposa” que Gomes
(2001) denomina de “racismo inconsciente” seria a mais comum no Brasil, a despeito de
apenas a primeira ser contemplada pelo nosso ordenamento.
108 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

Ainda quanto ao tema, CRUZ(2009, p.34-37) discute que essa compreensão li-
mitada quanto ao fenômeno discriminatório, castraria qualquer hipótese real de combate à
discriminação racial no país. Para o autor, seria vital exportar institutos do direito norte-a-
mericano como a teoria dos motivos mistos (Mixed Motive Theory) ou a teoria do impacto
desproporcional (disparate impact doctrine) cujo foco se destinaria exatamente a tornar mais
perceptíveis ao julgador casos da modalidade “inconsciente” da discriminação racial. Tais
sofisticações hermenêuticas, entretanto, ainda estão longe de serem adotadas pelo judiciário
nacional, que se debate ainda entre a comum interpretação majoritariamente econômica do
fenômeno discriminatório9 e uma compreensão do princípio da igualdade muito tangencia-
da pela ideia do limite do possível.
Entretanto, é inegável que houveram avanços no tema, em 2003, por exemplo, du-
rante o julgamento do Habeas Corpus 82424/RS o Supremo Tribunal Federal reconheceu
que raça é um conceito cultural/antropológico/sociológico, e não biológico, não havendo
sentido em negar a existência dessa “desigualdade” fundamental sob argumentos da inexis-
tência de diferenças gênicas entre as “raças”.

HABEAS-CORPUS. PUBLICAÇÃO DE LIVROS: ANTI-SEMI-


TISMO. RACISMO. CRIME IMPRESCRITÍVEL. CONCEITUA-
ÇÃO. ABRANGÊNCIA CONSTITUCIONAL. LIBERDADE DE
EXPRESSÃO. LIMITES. ORDEM DENEGADA. 1. Escrever, edi-
tar, divulgar e comerciar livros “fazendo apologia de idéias preconcei-
tuosas e discriminatórias” contra a comunidade judaica (Lei 7716/89,
artigo 20, na redação dada pela Lei 8081/90) constitui crime de racis-
mo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF,
artigo 5º, XLII). 2. Aplicação do princípio da prescritibilidade geral
dos crimes: se os judeus não são uma raça, segue-se que contra eles não
pode haver discriminação capaz de ensejar a exceção constitucional de
imprescritibilidade. Inconsistência da premissa. 3. Raça humana. Sub-
divisão. Inexistência. Com a definição e o mapeamento do genoma
humano, cientificamente não existem distinções entre os homens,
seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pêlos ou
por quaisquer outras características físicas, visto que todos se qua-

9 “Acreditar que a questão racial do negro, por exemplo, se reduza a um problema de classe social, é simplificá-la
demasiadamente com o risco de obscurecer a inteligibilidade das relações entre negros e brancos e a cair no truísmo,
segundo o qual a estrutura das classes condiciona de algum modo o estígmaétnico ou racial. Achar, por outro lado que
a especificidade da situação do negro – ou de uma minoria qualquer – seja de tal ordem que dispense a consideração
comparativa de outros casos de relações interétnicas, é empobrecer injustificadamente o campo de referência empírica
e, por suposto, as possibilidades de construção de modelos mais abrangentes e da elaboração de teorias de maior alcan-
ce (...) A maior colaboração entre aqueles que investigam as relações interétnicas no Brasil, seja entre indios e brancos,
brancos e negros, nacionais e imigrantes que desfrutem da situação de minorias, parece-nos ser altamente desejável
para se atingir um estado mais satisfatório sobre a dinâmica das relações interétnicas no Brasil, e além disso, alcançar-
mos uma explicação melhor para nós mesmos – membros da sociedade nacional – revelados nos outros, muitas vezes
desmascarados como homens cordiais, portadores de ideologias mistificadoras da realidade interétnica – ou como se
queira racial – entre nós.” (OLIVEIRA, 1976 apud MOURA,1994, p.155-156)
ANAIS DE CONGRESSO 109

lificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas entre


os seres humanos. Na essência são todos iguais. 4. Raça e racismo.
A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de
conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se
o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito
segregacionista. 5. Fundamento do núcleo do pensamento do nacio-
nal-socialismo de que os judeus e os arianos formam raças distintas.
Os primeiros seriam raça inferior, nefasta e infecta, características su-
ficientes para justificar a segregação e o extermínio: inconciabilidade
com os padrões éticos e morais definidos na Carta Política do Brasil
e do mundo contemporâneo, sob os quais se ergue e se harmoniza
o estado democrático. Estigmas que por si só evidenciam crime de
racismo. Concepção atentatória dos princípios nos quais se erige e se
organiza a sociedade humana, baseada na respeitabilidade e dignidade
do ser humano e de sua pacífica convivência no meio social. Condu-
tas e evocações aéticas e imorais que implicam repulsiva ação estatal
por se revestirem de densa intolerabilidade, de sorte a afrontar o or-
denamento infraconstitucional e constitucional do País. 6. Adesão do
Brasil a tratados e acordos multilaterais, que energicamente repudiam
quaisquer discriminações raciais, aí compreendidas as distinções entre
os homens por restrições ou preferências oriundas de raça, cor, cre-
do, descendência ou origem nacional ou étnica, inspiradas na pretensa
superioridade de um povo sobre outro, de que são exemplos a xeno-
fobia, “negrofobia”, “islamafobia” e o anti-semitismo. 7. A Constitui-
ção Federal de 1988 impôs aos agentes de delitos dessa natureza, pela
gravidade e repulsividade da ofensa, a cláusula de imprescritibilidade,
para que fique, ad perpetuam rei memoriam, verberado o repúdio e a
abjeção da sociedade nacional à sua prática. 8. Racismo. Abrangência.
Compatibilização dos conceitos etimológicos, etnológicos, sociológi-
cos, antropológicos ou biológicos, de modo a construir a definição
jurídico-constitucional do termo. Interpretação teleológica e sistêmica
da Constituição Federal, conjugando fatores e circunstâncias históri-
cas, políticas e sociais que regeram sua formação e aplicação, a fim de
obter-se o real sentido e alcance da norma. 9. Direito comparado. A
exemplo do Brasil as legislações de países organizados sob a égide do
estado moderno de direito democrático igualmente adotam em seu
ordenamento legal punições para delitos que estimulem e propaguem
segregação racial. Manifestações da Suprema Corte Norte-Americana,
da Câmara dos Lordes da Inglaterra e da Corte de Apelação da Califór-
nia nos Estados Unidos que consagraram entendimento que aplicam
sanções àqueles que transgridem as regras de boa convivência social
com grupos humanos que simbolizem a prática de racismo. 10. A edi-
ção e publicação de obras escritas veiculando idéiasanti-semitas, que
buscam resgatar e dar credibilidade à concepção racial definida pelo
110 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

regime nazista, negadoras e subversoras de fatos históricos incontro-


versos como o holocausto, consubstanciadas na pretensa inferioridade
e desqualificação do povo judeu, equivalem à incitação ao discrímen
com acentuado conteúdo racista, reforçadas pelas conseqüências his-
tóricas dos atos em que se baseiam. 11. Explícita conduta do agente
responsável pelo agravo revelador de manifesto dolo, baseada na equi-
vocada premissa de que os judeus não só são uma raça, mas, mais do
que isso, um segmento racial atávica e geneticamente menor e perni-
cioso. 12. Discriminação que, no caso, se evidencia como deliberada e
dirigida especificamente aos judeus, que configura ato ilícito de prática
de racismo, com as conseqüências gravosas que o acompanham. 13.
Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como
absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não
pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imo-
ral que implicam ilicitude penal. 14. As liberdades públicas não são
incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica,
observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF,
artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade
de expressão não consagra o “direito à incitação ao racismo”, dado que
um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condu-
tas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos
princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica. 15.
“Existe um nexo estreito entre a imprescritibilidade, este tempo jurídi-
co que se escoa sem encontrar termo, e a memória, apelo do passado à
disposição dos vivos, triunfo da lembrança sobre o esquecimento”. No
estado de direito democrático devem ser intransigentemente respeita-
dos os princípios que garantem a prevalência dos direitos humanos. Ja-
mais podem se apagar da memória dos povos que se pretendam justos
os atos repulsivos do passado que permitiram e incentivaram o ódio
entre iguais por motivos raciais de torpeza inominável. 16. A ausência
de prescrição nos crimes de racismo justifica-se como alerta grave para
as gerações de hoje e de amanhã, para que se impeça a reinstauração de
velhos e ultrapassados conceitos que a consciência jurídica e histórica
não mais admitem. Ordem denegada.
(HC 82424, Relator(a): Min. MOREIRA ALVES, Relator(a) p/
Acórdão: Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em
17/09/2003, DJ 19-03-2004 PP-00017 EMENT VOL-02144-03
PP-00524)(GRIFOS DO AUTOR)

A mesma corte, também julgou improcedente a ADPF 186/DF.

Ementa: ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO


FUNDAMENTAL. ATOS QUE INSTITUÍRAM SISTEMA DE
RESERVA DE VAGAS COM BASE EM CRITÉRIO ÉTNICO-RA-
ANAIS DE CONGRESSO 111

CIAL (COTAS) NO PROCESSO DE SELEÇÃO PARA INGRES-


SO EM INSTITUIÇÃO PÚBLICA DE ENSINO SUPERIOR.
ALEGADA OFENSA AOS ARTS. 1º, CAPUT, III, 3º, IV, 4º, VIII,
5º, I, II XXXIII, XLI, LIV, 37, CAPUT, 205, 206, CAPUT, I, 207,
CAPUT, E 208, V, TODOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE. I – Não contraria - ao con-
trário, prestigia – o princípio da igualdade material, previsto no
caput do art. 5º da Carta da República, a possibilidade de o Estado
lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem
um número indeterminados de indivíduos, mediante ações de na-
tureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos
sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes cer-
tas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes
a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas
particulares. II – O modelo constitucional brasileiro incorporou di-
versos mecanismos institucionais para corrigir as distorções resultantes
de uma aplicação puramente formal do princípio da igualdade. III –
Esta Corte, em diversos precedentes, assentou a constitucionalidade
das políticas de ação afirmativa. IV – Medidas que buscam reverter,
no âmbito universitário, o quadro histórico de desigualdade que ca-
racteriza as relações étnico-raciais e sociais em nosso País, não podem
ser examinadas apenas sob a ótica de sua compatibilidade com de-
terminados preceitos constitucionais, isoladamente considerados, ou a
partir da eventual vantagem de certos critérios sobre outros, devendo,
ao revés, ser analisadas à luz do arcabouço principiológico sobre o qual
se assenta o próprio Estado brasileiro. V - Metodologia de seleção di-
ferenciada pode perfeitamente levar em consideração critérios étnico-
-raciais ou socioeconômicos, de modo a assegurar que a comunidade
acadêmica e a própria sociedade sejam beneficiadas pelo pluralismo de
ideias, de resto, um dos fundamentos do Estado brasileiro, conforme
dispõe o art. 1º, V, da Constituição. VI - Justiça social, hoje, mais do
que simplesmente redistribuir riquezas criadas pelo esforço coletivo,
significa distinguir, reconhecer e incorporar à sociedade mais ampla
valores culturais diversificados, muitas vezes considerados inferiores
àqueles reputados dominantes. VII – No entanto, as políticas de ação
afirmativa fundadas na discriminação reversa apenas são legítimas se
a sua manutenção estiver condicionada à persistência, no tempo, do
quadro de exclusão social que lhes deu origem. Caso contrário, tais
políticas poderiam converter-se benesses permanentes, instituídas em
prol de determinado grupo social, mas em detrimento da coletividade
como um todo, situação – é escusado dizer – incompatível com o espí-
rito de qualquer Constituição que se pretenda democrática, devendo,
outrossim, respeitar a proporcionalidade entre os meios empregados e
os fins perseguidos. VIII – Arguição de descumprimento de preceito
112 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

fundamental julgada improcedente.


(ADPF 186, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tri-
bunal Pleno, julgado em 26/04/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO
DJe-205 DIVULG 17-10-2014 PUBLIC 20-10-2014)(GRIFOS
DO AUTOR)

Ambas as decisões são fundamentais para a compreensão dos avanços e mesmo na


mudança de paradigma da compreensão do princípio constitucional da igualdade no campo
dos direitos de minorias étnico-raciais. Ao assumir que o conceito de raça é um constructo
social e não uma condição genética, o STF desintegra da arena jurídica uma perigosa falácia
(infelizmente ainda muito comum no discurso cotidiano), dessa forma estabelecendo mono-
liticamente a “raça” como um elemento de desigualdade social. Já a segunda decisão, a corte
consolida o aspecto material do princípio da igualdade e, ao mesmo tempo, estabelece que as
cotas são formas de discriminação justas, inclusive, afirmando o compromisso da corte com
aquilo que Canotilho (2003) chamou de “justiça social” através do princípio da igualdade.

CONCLUSÃO
Fica evidenciado, portanto, que nessas últimas três décadas de vigência da Carta
Magna, houve uma grande sofisticação da compreensão do princípio da igualdade. De uma
igualdade majoritariamente entendida meramente em seu sentido formal como era nos tex-
tos constitucionais anteriores, a Constituição Cidadã evoluiu o princípio da igualdade para
uma norma cada vez mais entendida em seu caráter material, progressivamente se tornando
menos uma mera tecnicidade de qualquer Estado liberal moderno e mais um guia, senão
mesmo marco, de otimização social e divisão de renda.
Obviamente, entretanto, existem ainda problemas e tensões quanto à hodierna in-
terpretação do sentido em hard cases envolvendo questões étnico-raciais. O racismo, aqui em
seu sentido lato, é ainda um tabu na sociedade brasileira, e mesmo seu tratamento jurídico
sofre por causa do acanhamento legislativo e social que inevitavelmente acaba por lhe per-
mear. Ainda é necessário se avançar nas políticas públicas retributivas para além das meras
cotas, que em sua natureza paliativa e localizada ainda está distante de poder ser considera-
da uma real solução para a desigualdade étnico-racial brasileira e remanesce mais um mero
instrumento de interesse político do que efetivamente uma política pública. Além disso, é
importante expandir a compreensão do princípio importando do direito norte-americano
técnicas mais sofisticadas para entender a presença de discriminações ilícitas em suas formas
mais difusas.
No entanto, a despeito das limitações e obstáculos, é inegável que a Carta Consti-
tucional de 1988, um marco civilizatório fundamental da sociedade brasileira, trouxe uma
relevante evolução para o princípio da igualdade, sendo de esperar, inclusive, que tal evo-
lução continue pelas próximas décadas, enquanto que cada vez mais o caráter material do
princípio se aprofunde em nossas práticas cotidianas.
ANAIS DE CONGRESSO 113

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ADPF 186, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em
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_____. HABEAS CORPUS. HC 82424, Relator(a): Min. MOREIRA ALVES, Relator(a)
p/ Acórdão: Min. MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 17/09/2003, DJ
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ANAIS DE CONGRESSO 115

FAZER JUSTIÇA A RONALD DWORKIN:


A INTEGRIDADE DO DIREITO E A COMUNIDADE DE PRINCÍPIOS INSTITUÍDA PELA
CONSTITUIÇÃO DE 1988 À LUZ DE MENELICK DE CARVALHO NETTO

MARCUS VINÍCIUS FERNANDES BASTOS1


MATEUS ROCHA TOMAZ2

RESUMO
O presente paper almeja proceder a uma releitura das teses dworkinianas à luz da
obra de Menelick de Carvalho Netto, de modo a melhor compreender a exata dimensão das
transformações que Dworkin opera no campo da teoria do direito (e, sobretudo, da teoria da
Constituição) e assim lançar as bases teoréticas para que se possa proceder a uma apreciação
crítica da recepção da obra de Dworkin, à luz da obra de Menelick de Carvalho Netto. Após
uma breve introdução, a divergência entre Dworkin e os autores ditos neopositivistas acerca
da discricionariedade judicial será utilizada de mote para apresentar a particular leitura que
faz Menelick de Carvalho Netto da obra de Dworkin, concluindo-se com a demonstração
de como Dworkin opera, no campo do Direito, o chamado giro linguístico-pragmático.
Palavras-chave: Filosofia do Direito; Teoria do Direito; Ronald Dworkin; Meneli-
ck de Carvalho Netto; discricionariedade judicial; giro linguístico-pragmático.

INTRODUÇÃO
Em 1991, por ocasião de colóquio organizado pela Sociedade de História da Psi-
quiatria e da Psicanálise a propósito do aniversário de 30 anos da obra “História da Loucura”,
o filósofo Jacques Derrida proferiu notória conferência, sugestivamente intitulada “Fazer
Justiça a Freud”, por meio da qual retomava seu debate com Michel Foucault, travado al-

1 Mestre em Direito, Estado e Constituição e Bacharel pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília
(FD-UnB, sob a orientação do professor Menelick de Carvalho Netto. marcusfbastos@gmail.com

2 Professor voluntário de Sociologia Jurídica da Faculdade de Direito da UnB. Mestre em Direito, Estado e
Constituição e Bacharel pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (FD-UnB), sob a orientação do profes-
sor Menelick de Carvalho Netto. mateusrochatomaz@gmail.com
116 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

gumas décadas antes3, buscando redimensionar alguns pontos da obra freudiana. Tomando
como mote a referida exposição, o trabalho ora proposto almeja proceder a uma apreciação
crítica da recepção da obra de Ronald Dworkin por alguns de seus leitores (e mais ferrenhos
críticos), sobretudo no Brasil.
Mais especificamente, propõe-se uma releitura das teses dworkinianas à luz da obra
de Menelick de Carvalho Netto, de modo a melhor compreender a exata dimensão das
transformações que Dworkin opera no campo da teoria do direito (e, sobretudo, da teoria
da Constituição), bem como para lançar as bases de uma eventual inquirição acerca de como
um irrefletido e inconsistente uso de seu instrumental teórico pode explicar muitos dos obs-
táculos que temos enfrentado, nos últimos 30 anos, na consecução do Estado Democrático
de Direito instituído pela Constituição de 1988.

1. O PROBLEMA
Ronald Dworkin é, indubitavelmente, um dos mais relevantes teóricos a pensar
sobre o direito no contexto do último quartel do século XX. Amplamente citado, Dworkin
teve sua contundente crítica à discricionariedade judicial do neopositivismo jurídico de
Hart (DWORKIN, 1978) adotada mundo afora, tendo a sua postura em relação à dimen-
são principiológica do direito, e mesmo o seu conceito de integridade do direito, servido de
base para grande parte dos desenvolvimentos teóricos que o sucederam. Jürgen Habermas,
por exemplo, toma de empréstimo praticamente toda a teoria do direito como integridade
para fundamentar a sua teoria discursiva do direito, ainda que faça questão de consignar
suas divergências em face do autor estadunidense (HABERMAS, 1997a, pp. 241-296).
Robert Alexy, por outro lado, apropria-se dos desenvolvimentos de Dworkin para construir
a sua própria interpretação da dimensão principiológica do direito, buscando igualmente o
controle do arbítrio, por meio da proposição de um rigoroso método, por meio do qual a
incidência principiológica se efetivaria (ALEXY, 2015) – em que pesem as inerentes com-
plicações deste projeto em face dos próprios pressupostos teóricos próprios da concepção do
direito como integridade.
Também no Brasil, a obra de Dworkin tem encontrado grande recepção. Segundo
aponta Lênio Streck, é inequívoca a importância da teoria de Dworkin enquanto alicerce
para a tentativa de superação dos históricos poderes de livre convencimento ou livre aprecia-
ção que ao Judiciário eram expressamente conferidos pelo ordenamento jurídico processual
brasileiro. O art. 926 do CPC/2015, ao dispor que “os tribunais devem uniformizar sua
jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”, valeu-se, segundo pontua Streck, da
teoria do direito como integridade de Dworkin (STRECK, 2016, p. 62).
Com efeito, não é de todo incomum encontrar, em decisões judiciais Brasil afora,
3 DERRIDA, Jacques. “Fazer justiça a Freud: a história da loucura na era da psicanálise”. In: ROUDINESCO,
Elisabeth et. al. Foucault: leituras da História da loucura. Trad. Maria Ignes Duque Estrada. Rio de Janeiro: Relume-
-Dumará, 1994.
ANAIS DE CONGRESSO 117

citações e evocações do constructo teórico do direito como integridade – ainda que, em mui-
tos casos, sem o devido rigor metodológico ou a título de mero argumento de autoridade ou
erudição. O fenômeno é tal que alguns autores chegarão inclusive a falar na existência de um
“fascínio doutrinário” com a questão dos princípios no Brasil (NEVES, 2013, pp. 171-220) –
debate este em muito decorrente da apropriação (adequada ou não) da obra de Dworkin.
Ao mesmo tempo, para além de adoções e apropriações, a obra de Dworkin é tam-
bém objeto de duras críticas. Sua tese da única decisão correta é por vezes tida como inadequa-
da por supostamente não dar conta da impossibilidade até mesmo filosófica de se conceber,
no contexto de uma prática social hipercomplexa, uma resposta que, aprioristicamente, possa
solucionar os problemas que são postos ao direito. Nessa linha, também o modelo de juiz por
ele proposto, aquele que segue a teoria do direito como integridade (juiz Hércules), é por vezes
caracterizado como um tipo ideal “monológico”, “abstrato”, “sobre-humano” e, portanto, uma
mera construção mental abstrata, de capacidade explicativa duvidosa em face da realidade con-
creta da prática jurídica. São essas, em maior ou menor grau, as objeções que lhe vão formular
autores como José Rodrigo Rodriguez (RODRIGUEZ, 2013, pp. 16-17), Marcelo Neves
(NEVES, 2013, p. 59-60) e Habermas (HABERMAS, 1997, v. I. p. 276-278).
A essas leituras, contrapõe-se a obra de Menelick de Carvalho Netto, avançada
também por Guilherme Scotti, que, a partir de Hans Georg Gadamer e do próprio Haber-
mas, empreenderá uma original leitura do arcabouço teorético de Ronald Dworkin, tendo
sempre como pano de fundo o Estado Democrático de Direito, instituído com o advento
da Constituição de 1988.
Sob essa ótica, a obra de Dworkin funda-se numa rejeição da tese neopositivista de
redução da legitimidade do direito à simples textualidade legal, sem contudo abrir mão da
distinção entre direito, política e moral, na medida em que essa distinção se concretiza jus-
tamente na “tradução dos princípios morais e dos objetivos políticos na linguagem propria-
mente jurídica, internalizando e ressignificando assim seus conteúdos no direito positivo”
(CARVALHO NETTO; SCOTTI, 2011, p. 57-58).
Dworkin concebe o direito, então, como uma prática interpretativa indubitavel-
mente imersa no contexto passado de história institucional em que se inscreve, mas que, ao
mesmo tempo, deve se abrir à tarefa de resolver cada caso concreto que lhe submetido em
sua unicidade. E é nesse contexto que se inscreve a tese da única resposta correta, tida não
como a antecipação apriorística do conteúdo de uma dada decisão judicial (muito menos
como um método a ser seguido pelo intérprete a lhe garantir a retidão de suas conclusões),
mas antes como uma postura contrafactual do intérprete, que deve levar os direitos a sério,
interpretando reconstrutivamente e em sua melhor luz os princípios jurídicos eleitos por
uma determinada comunidade para reger sua vida em comum.
Dworkin opera, no campo da teoria do direito, o chamado giro linguístico (por ele
chamado de “aguilhão semântico”), retrabalhando suas consequências epistemológicas para a
prática jurídica (DWORKIN, 2014, p. 55-56) – exercício que se efetiva pelo deslocamento
118 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

da questão acerca do que é uma Constituição para o questionamento acerca do que uma
Constituição constitui. Nessa linha, a Constituição constitui “uma comunidade fundada
sobre princípios” alicerçada no “reconhecimento recíproco da liberdade de todos e cada um
de seus membros” (CARVALHO NETTO; SCOTTI, 2011. p. 158).
Tais princípios consistem justamente nos compromissos mais essenciais de igual-
dade e liberdade (direitos fundamentais) reciprocamente reconhecidos pelos membros de
uma dada comunidade enquanto coautores desses mesmos compromissos. Trata-se de uma
noção, portanto, intimamente ligada à prática cotidiana da democracia, o que é particular-
mente verdadeiro sobre o processo que resultou na instituição da Constituição de 1988, em
que, salienta Menelick de Carvalho Netto, uma “crescente organização da sociedade civil”,
verificada e intensificada ao longo dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, “não
apenas forçou a transição para o regime democrático, mas, sobretudo, emprestou ao pro-
cesso nacional constituinte, muito embora a Assembleia não fosse exclusiva, legitimidade
jamais alcançada em nossa história constitucional, em razão da participação ativa e direta do
cidadão” (CARVALHO NETTO, 1992, p. 293).4
É a democracia, tomada em sua dimensão procedimental de elaboração do texto
constitucional, a grande novidade do processo constituinte de 1987/1988, e é essa circuns-
tância, que, por uma via até então inesperada, efetivamente rompe com a ordem autocrática
e confere o caráter originário e genuinamente instituinte aos trabalhos da Assembleia Nacio-
nal Constituinte (REZENDE, 2017).
A integridade do direito significa justamente “a densificação vivencial do ideal da comu-
nidade de princípio [...], bem como, em uma dimensão diacrônica, a leitura à melhor luz da sua
histórica institucional como um processo de aprendizado em que cada geração busca, da melhor
forma que pode, vivenciar esse ideal” (CARVALHO NETTO; SCOTTI, 2011. p. 67).
Em meio a esse debate, o trabalho ora realizado almeja proceder a uma apreciação
crítica da recepção da obra de Dworkin à luz da obra de Menelick de Carvalho Netto. Mais
especificamente, em virtude do escopo delimitado da obra coletiva em que este esforço se
insere e em face dos próprios limites de tempo e espaço do Congresso em que esta exposição
foi originalmente apresentada, o presente paper se debruçará sobre as bases teoréticas da lei-
tura que Menelick de Carvalho Netto faz de parte da obra de Ronald Dworkin.

2. DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL E “ÚNICA RESPOSTA CORRETA”: A


INDISPENSABILIDADE DO DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS
PARA A INTEGRIDADE DO DIREITO DE DWORKIN
Sabe-se, segundo reconhecido pelo próprio H.L.A. Hart em seu revelador Posts-
cript à segunda edição de sua obra “The Concept of Law”, que o ponto central do embate

4 Nessa linha, ver também FERNANDES BASTOS, 2018.


ANAIS DE CONGRESSO 119

teórico travado entre ele, expoente maior do neopositivismo jurídico anglo-saxão, e Ronald
Dworkin, seu principal crítico e sucessor na cátedra de Teoria do Direito da Universidade de
Oxford, se deu em torno da discricionariedade judicial (HART, 1994, p. 272).
Partindo da reconstrução dessa importante divergência, um bom mote para apre-
sentar a particular leitura que faz Menelick de Carvalho Netto da obra de Dworkin reside
em elucidar o que a teoria do direito como integridade tem a dizer sobre a fundamentação
das decisões judiciais, enquanto instrumento de resguardo da validade do Direito contra
casuísmos e preferências dos juízes quando da aplicação concreta da Lei.

2.1 O NEOPOSITIVISMO JURÍDICO E A DISCRICIONARIEDADE DO APLICADOR: TEXTURA


ABERTA DO ORDENAMENTO JURÍDICO (HART) E MOLDURA DE SENTIDOS POSSÍVEIS
(KELSEN)
Hart adotou, em sua explicação de como se daria a aplicação do Direito, a ideia
de que há situações em que o juiz não tem a seu dispor uma solução legalmente pronta de
como decidir um determinado caso que tem diante de si (HART, 2009, p. 163-167). Em
suas palavras:

Qualquer que seja a ideia escolhida para a transmissão de padrões de


comportamento, seja o precedente ou a legislação, esses padrões, por
muito facilmente que funcionem na grande massa de casos comuns, se
mostrarão imprecisos em algum ponto, quando sua aplicação for pos-
ta em dúvida; terão o que se tem chamado de textura aberta (HART,
2009, p. 166).

E isso se dá porque “[...] no caso da legislação, como característica geral da lin-


guagem humana; a incerteza nas zonas limítrofes é o preço a pagar pelo uso de termos
classificatórios gerais em qualquer forma de comunicação referente a questões factuais”
(HART, 2009, p. 166). Dando uma resposta um tanto quanto cética a essa indetermina-
ção do Direito em alguns casos fronteiriços, Hart afirma, sobre o juiz, que “[...] a discri-
cionariedade que a linguagem lhe confere [...] pode ser muito ampla, de tal forma que [...]
a conclusão, embora possa não ser arbitrária ou irracional, será de fato resultado de uma
escolha” (HART, 2009, p. 165).
De maneira assemelhada, Hans Kelsen, também partindo do pano de fundo ne-
opositivista de crença na cientificidade do Direito pelo controle da linguagem, criou sua
própria teoria da discricionariedade judicial. No particular, a teoria da interpretação pro-
posta por Kelsen também parte da premissa de que o Direito não prescreve todas as soluções
para todos os casos – ou seja, o ato de aplicação do Direito é parcialmente indeterminado,
quer intencional (KELSEN, 1987, p. 364), quer não intencionalmente (KELSEN, 1987, p.
365). Sendo assim, Kelsen firma a crucial tese da moldura de sentidos possíveis:
120 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

A norma do escalão superior não pode vincular em todas as direções


(sob todos os aspectos) o ato através do qual é aplicada. Tem sempre
de ficar uma margem, ora maior ora menor, de livre apreciação, de tal
forma que a norma do escalão superior tem sempre, em relação ao ato
de produção normativa ou de execução que a aplica, o caráter de um
quadro ou moldura a preencher por esse ato (KELSEN, 1987, p. 364).

Para Kelsen, o juiz, ao apreciar um caso concreto, deve ter em mente que qualquer
decisão que se atenha aos limites da moldura, ou seja, qualquer sentido decisório possível ex-
traído dentro desse quadro, é Direito (KELSEN, 1987, p. 366). E a quem incumbiria então
a fixação dos limites da moldura de sentidos possíveis? Segundo Kelsen, esse seria o papel da
interpretação, isto é, “[...] a fixação por via cognoscitiva do sentido do objeto a interpretar”,
tendo por resultado “[...] o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldu-
ra existem” (KELSEN, 1987, p. 366).
De acordo com Dworkin, o esqueleto do (neo) positivismo, comum a suas diversas
vertentes5, pode ser assim sinteticamente descrito: (a) por Direito deve-se entender o conjun-
to de regras que regem a vida em sociedade, as quais podem ser identificadas não de acordo
com o seu conteúdo propriamente, mas de acordo com seu pedigree, ou seja, de acordo com
a maneira como foram inseridas no ordenamento jurídico e de como ganharam autoridade;
(b) sendo o Direito o conjunto de regras da comunidade, na hipótese de uma pretensão não
estar albergada pela aplicação clara de uma determinada regra, haverá discricionariedade
do aplicador, que deve decidir o caso; e, (c) direitos e obrigações jurídicos derivam único e
exclusivamente das regras, não havendo que se falar em direitos e obrigações preexistentes e
predeterminados ao ordenamento jurídico positivo (DWORKIN, 2002, p. 27-28).
Como se vê, apesar de suas particularidades, as teorias neopositivistas de H.L.A.
Hart e de Hans Kelsen, no que interessa ao objeto do presente trabalho, são convergentes
quanto à abertura semântica dos enunciados normativos e quanto à discricionariedade dos
aplicadores no momento da escolha de um dos sentidos possíveis a serem aplicados em casos
sem solução imediata pela técnica de subsunção de problemas concretos a normas legais em
abstrato. Nessa linha, ambos os autores rechaçam a ideia, que será posteriormente ressigni-
ficada pela teoria de Dworkin, de que há uma única decisão correta para um determinado
caso concreto (HART, 2009, p. 171; KELSEN, 1987, p. 371).
Dworkin, em sua contundente crítica a Hart, vai apontar que tanto o neopositi-
vismo quanto o antinormativismo realista não conseguiram responder à questão subjacente
ao problema central da Teoria do Direito: “[...] existem controvérsias relativas a princípios
morais que subjazem a um problema aparentemente linguístico” quando da análise factual
de decisões de tribunais em casos ditos fáceis ou difíceis (DWORKIN, 2002, p. 9). Segundo
aponta Dworkin, “a teoria do direito deveria responder a essa preocupação explorando a na-

5 Segundo aponta Dworkin, “[...] as diferentes versões diferem sobretudo na sua descrição do teste fundamental
de pedigree que uma regra deve satisfazer para ser considerada uma regra jurídica” (DWORKIN, 2002, p. 29).
ANAIS DE CONGRESSO 121

tureza da argumentação moral, tentando esclarecer o princípio de equidade que os críticos


têm em mente, para ver se a prática judicial satisfaz realmente esse princípio” (DWORKIN,
2002, p. 9). É esse o objetivo central de sua teoria do direito como integridade.

2.2 INTEGRIDADE NA POLÍTICA: O ENFRETAMENTO DA VELHA-NOVA QUESTÃO SOBRE


OS FUNDAMENTOS DE LEGITIMIDADE DO DIREITO.
Dworkin suscita, de início, a questão filosófica fundamental atinente à legitima-
ção política e moral do aparato jurídico de uma comunidade (DWORKIN, 2014, p. 231):
de onde advém a autoridade moral do Direito para monopolizar a força coercitiva estatal,
criando deveres e obrigações jurídicas para as pessoas?
Para ele, as explicações dadas pelos filósofos políticos clássicos, como Kant e Rou-
sseau, com suas ideias de legitimação mediante noções de contrato social, auto legislação e
autonomia, não explicariam satisfatoriamente a natureza da legitimidade do Direito, uma
vez que se olvidariam para o aspecto indeclinável referente às obrigações morais mais inti-
mistas e fundamentais que os membros de uma determinada comunidade básica possuem
uns em relação aos outros. Em suas palavras:

A integridade [...] promove a união da vida moral e política dos cida-


dãos: pede ao bom cidadão, ao decidir como tratar seu vizinho quando
os interesses de ambos entram em conflito, que interprete a organi-
zação comum da justiça à qual estão comprometidos em virtude da
cidadania (DWORKIN, 2014, p. 230).

Na sua concepção, essas obrigações políticas e morais basilares são importantes


na medida em que o “[...] Estado é legítimo se sua estrutura e suas práticas constitucionais
forem tais que seus cidadãos tenham uma obrigação geral de obedecer às decisões políti-
cas que pretendam impor-lhes deveres” (DWORKIN, 2014, p. 232). Para a caracteriza-
ção da natureza dessas obrigações, Dworkin recupera um dos famosos lemas da Revolução
Francesa (1789), a fraternidade, conhecido mais comumente pelo sinônimo “comunidade”
(DWORKIN, 2014, p. 228). O que caracteriza uma comunidade? Quais laços político-mo-
rais unem seus membros?
Segundo aponta, as comunidades associativas e as obrigações delas resultantes são
definidas pela história das suas práticas sociais, o que ocorre “[...] não por decreto ou ritual,
não através da extensão explícita das convenções, mas de maneira mais complexa, introdu-
zida pela atitude interpretativa” (DWORKIN, 2014, p. 238).
Dworkin combina dois complexos vieses ao caracterizar as obrigações associativas
de uma comunidade: a prática social criadora das obrigações e a interpretação crítica dessas
mesmas práticas. Isso porque há práticas sociais forjadoras de grupos que não se enquadram
nas exigências para que mútuas responsabilidades individuais passem a ser vistas como verda-
122 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

deiras obrigações fraternais (DWORKIN, 2014, pp. 242-243). Justamente a delimitação do


cumprimento ou não dessas condições é uma questão de interpretação crítica (DWORKIN,
2014, p. 246-247).
É nesse sentido que políticas de pureza racial e de discriminação são práticas sociais
que, apesar de criarem obrigações genuínas a priori, devem ser extintas devido à profunda
injustiça que provocam, bem como ao flagrante desrespeito aos requisitos das comunidades
associativas, notadamente no que concerne à exigência de igual interesse, consideração e
respeito pelos cidadãos entre si.
Com efeito, Dworkin não está preocupado simplesmente com a observação e des-
crição sociológica de práticas comunitárias, mas com “[...] a questão interpretativa da natu-
reza do interesse e das responsabilidades mútuas que nossas práticas políticas devem expres-
sar para justificar a pretensão de verdadeira comunidade que parecemos ter” (DWORKIN,
2014, p. 252). Sendo assim, Dworkin propõe três modelos ilustrativos gerais de associação
política, tendo por base os tipos de atitudes e de laços entre os seus respectivos membros: (a)
a associação de fato: não há qualquer caráter especial na associação de seus integrantes, uma
vez que ela resulta de mera causalidade histórico-geográfica da qual não se deriva qualquer
obrigação ou responsabilidade associativa especial; (b) o modelo das regras: os membros da
comunidade comungam do pacto geral de obedecer às regras particularmente estabelecidas
pela comunidade, enquanto compromissos que refletem negociações de interesses diversos,
estando as obrigações dos indivíduos para com os demais esgotadas tão-somente nos limites
prescritos pelos conteúdos das regras e não em quaisquer princípios de moral política subja-
centes; e, (c) o modelo dos princípios: parte do pressuposto de que os membros da comunida-
de estão ligados por princípios comuns e não simplesmente por regras estipuladas consen-
sualmente, sendo os indivíduos portadores de direitos e deveres quando estes são derivados
desse rol de princípios, ainda que nunca tenham sido formalmente declarados por qualquer
autoridade pública (DWORKIN, 2014, p. 252-255).
Desses três espécimes de comunidade, apenas o terceiro, o modelo dos princípios, sa-
tisfaria os três requisitos para a configuração de uma associação autêntica, uma vez que seria
o único a apresentar o terceiro requisito, qual seja, o interesse genuíno e profundo de cada
membro por todos os indivíduos da comunidade. Em outras palavras: “[...] sua exigência
de integridade pressupõe que cada pessoa é tão digna quanto qualquer outra, que cada uma
deve ser tratada com o mesmo interesse, de acordo com uma concepção coerente do que isso
significa” (DWORKIN, 2014, p. 257).
De acordo com Menelick de Carvalho Netto e Guilherme Scotti:

Uma verdadeira comunidade, que Dworkin denomina de princípios,


é uma comunidade especial. Além de compartilhar esses princípios
comuns, eles a compreendem como uma comunidade de princípio,
pois seus membros se conhecem reciprocamente como livres e iguais,
há um respeito pela diferença do outro que não se confunde com a
ANAIS DE CONGRESSO 123

emoção moral, o altruísmo ou o amor. As obrigações recíprocas dessa


comunidade decorrem dessa natureza especial que lhe é constitutiva.
Não se obedece a essas normas como realização de uma justiça global,
universal, no exemplo dado por Dworkin. Tais obrigações nascem jus-
tamente desse senso de pertencimento a uma comunidade que com-
partilha os mesmos princípios (CARVALHO NETTO; SCOTTI,
2011, p. 62-63).

Com efeito, uma verdadeira comunidade aceita o postulado da integridade, en-


quanto “[...] interpretação construtiva bem-sucedida de nossas práticas políticas como um
todo” (DWORKIN, 2014, p. 259), como uma de suas maiores virtudes políticas, ao lado
da equidade, da justiça e do devido processo legal (DWORKIN, 2014, p. 62). Sendo assim,
para ele, em resposta ao clássico dilema da filosofia política, pode-se ver “[...] a legitimidade
de nossas instituições, e as obrigações políticas que elas pressupõem, como uma questão de
fraternidade, e deveríamos, portanto, tentar aperfeiçoar nossas instituições em tal direção”
(DWORKIN, 2014, p. 258).
É por isso que, para Dworkin, a Constituição constitui uma comunidade de princí-
pios (CARVALHO NETTO; SCOTTI, 2011, p. 158), fundada no igual respeito e conside-
ração entre seus membros; sendo a integridade política uma exigência e uma virtude maior
de coerência quando se reconstrói a trajetória política de determinada associação genuína
de indivíduos governados por princípios comuns, pela mesma Constituição. Nas palavras
de Menelick de Carvalho Netto: “o Direito Constitucional é vida; ou é vida ou não é nada”
(CARVALHO NETTO, 2003).

2.3 INTEGRIDADE NO DIREITO: “ROMANCE EM CADEIA” E “ÚNICA RESPOSTA CORRETA”


No entanto, essa virtude política da integridade não se aplica exclusivamente ao
processo legislativo. Dworkin deriva o raciocínio tecido sobre a legitimação política da prá-
tica jurídica para a deliberação judicial propriamente, passando a falar de integridade no
direito e centrando-se na figura do juiz.
Segundo aponta, ao contrário do convencionalismo e do pragmatismo, o direito
como integridade se propõe a ser uma teoria interpretativa e não uma determinada inter-
pretação ou programa específico de como os juízes deveriam decidir (de acordo com as de-
cisões do passado – convencionalismo – ou mediante cálculos maximizadores do bem-estar
coletivo –pragmatismo). Isso porque o direito como integridade exige que o juiz continue
“[...] interpretando o mesmo material que ele próprio afirma ter interpretado com sucesso.
Oferece-se como a continuidade — e como a origem — das interpretações mais detalhadas
que recomenda” (DWORKIN, 2014, p. 273).
Nesse sentido, tal como ocorre com a integridade na política, a história político-
-constitucional da comunidade é essencial para a integridade na deliberação judicial, uma
vez que exige uma coerência de princípio vertical e radical entre as pretensões declinadas
124 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

pelas partes (a serem apreciadas pelo juiz), e o conjunto de princípios de equidade, justiça e
devido processo legal necessários à sua justificação enquanto mecanismo institucional atri-
buidor de direitos, deveres e obrigações às pessoas (DWORKIN, 2014, p. 273-274).
Importante pontuar o que significa coerência para ele. Dworkin critica uma “[...]
forma cega de coerência” (DWORKIN, 2014, p. 266), segundo a qual os papeis do legislador,
ao propor e deliberar sobre um projeto de lei, e do juiz, ao se debruçar sobre uma lide, não
podem ser vistos como a mera repetição irrefletida das decisões pretéritas. Segundo aponta, a
coerência exigida pela integridade é mais profunda, pois “[...] exige que as normas públicas da
comunidade sejam criadas e vistas, na medida do possível, de modo a expressar um sistema
único e coerente de justiça e equidade na correta proporção” (DWORKIN, 2014, p. 264).
É dessa forma que sua teoria, reconhecendo a condição permanentemente inter-
pretativa do Direito, vai defender a perfeita compatibilidade entre inovações e novas inter-
pretações das práticas jurídicas com o conceito de coerência que suscita. Isso porque “[...]
uma instituição que aceite esse ideal às vezes irá, por esta razão, afastar-se da estreita linha
das decisões anteriores, em busca de fidelidade aos princípios concebidos como mais funda-
mentais a esse sistema como um todo” (DWORKIN, 2014, p. 264).
E acrescenta: “[...] A integridade é uma norma mais dinâmica e radical do que pa-
recia de início, pois incentiva um juiz a ser mais abrangente e imaginativo em busca de coe-
rência com o princípio fundamental” (DWORKIN, 2014, p. 265). Nesse contexto, emerge
o conceito de interpretação criativa inerente ao direito como integridade, a qual prescreve
que interpretar o material jurídico da comunidade, à semelhança da interpretação artística,
não é simplesmente descrever, mas sim “[...] impor um propósito, ao texto, aos dados ou
às tradições que está interpretando” (DWORKIN, 2014, p. 275). Trata-se do aspecto nor-
mativo da interpretação, que se mostra mais evidente ainda para o Direito, o qual é, para
Dworkin, um sistema de ação coerentemente organizado e precipuamente voltado para a
solução de conflitos de acordo com o postulado do igual respeito e consideração, inclusive
pelas diferentes concepções morais da comunidade política (DWORKIN, 2014, p. 202).
Tendo esse modelo de interpretação em perspectiva, Dworkin propõe uma com-
paração entre o papel do juiz e o do crítico literário que analisa um complexo poema, com
a peculiaridade de que os juízes são, ao mesmo tempo, autores e críticos do Direito inter-
pretado (DWORKIN, 2014, p. 275). Como consequência, Dworkin cria a metáfora do
romance em cadeia para explicar a prática jurídica6: imagine-se um ousado projeto literário
6 Sobre o romance em cadeia: “Ao levarmos em conta a história constitucional, podemos ver o que esse duro
processo de aprendizado institucional nos ensinou a respeito dos direitos fundamentais à igualdade e à liberdade. A
produtiva tensão constitutiva inerente a esses princípios encontra-se presente em todas as dicotomias clássicas típicas
da modernidade, como público e privado, soberania popular constitucionalismo, republicanismo e liberalismo, etc.,
pois apenas aparentemente apresentam uma natureza paradoxal. Também aqui esses polos efetivamente opostos, são
também, a um só tempo, constitutivos um do outro, de tal sorte que instauram uma rica, produtiva e permanente
tensão, capaz de dotar a doutrina constitucional da complexidade necessária para enfrentar problemas que ela antes
nem era capaz de ver” (CARVALHO NETTO; SCOTTI, 2011, p. 67-68).
ANAIS DE CONGRESSO 125

composto por vários romancistas com o objetivo de se escrever coletivamente um romance,


sendo cada escritor responsável pela escrita de um capítulo, o qual se desenvolve a partir do
capítulo anterior escrito por outra pessoa e assim sucessivamente, de maneira que, ao fim
e ao cabo, o romance transpareça ter sido escrito por um só autor, mesmo sendo uma obra
coletiva (DWORKIN, 2014, p. 276).
Reinvocando a clássica questão “os juízes descobrem ou inventam o Direito?”, afir-
ma Dworkin que “[...] não podemos estabelecer uma distinção muito nítida entre a etapa
em que um romancista em cadeia interpreta o texto que lhe foi entregue e a etapa em que ele
acrescenta seu próprio capítulo, guiado pela interpretação pela qual optou” (DWORKIN,
2014, p. 279).
Em outras palavras:

Um juiz que decide [...] introduz acréscimos na tradição que interpre-


ta; os futuros juízes deparam com uma nova tradição que inclui o que
foi feito por aquele. É claro que a crítica literária contribui com tradi-
ções artísticas em que trabalham os autores; a natureza e a importância
dessa contribuição configuram, em si mesmas, problemas de teoria
crítica. Mas a contribuição dos juízes é mais direta, e a distinção entre
autor e intérprete é mais uma questão de diferentes aspectos do mesmo
processo (DWORKIN, 2014, p. 275).

Dworkin, ao avançar em sua teoria, propõe como arquétipo do direito como inte-
gridade e do seu caráter holístico e permanentemente interpretativo, a metáfora de um juiz
sobre-humano chamado Hércules:

O direito como integridade, então, exige que um juiz ponha à prova


sua interpretação de qualquer parte da vasta rede de estruturas e deci-
sões políticas de sua comunidade, perguntando-se se ela poderia fazer
parte de uma teoria coerente que justificasse essa rede como um todo.
Nenhum juiz real poderia impor nada que, de uma só vez, se aproxime
de uma interpretação plena de todo o direito que rege sua comunida-
de. É por isso que imaginamos um juiz hercúleo, dotado de talentos
sobre-humanos e com um tempo infinito a seu dispor. Um juiz verda-
deiro, porém, só pode imitar Hércules até certo ponto. Pode permitir
que o alcance de sua interpretação se estenda desde os casos imedia-
tamente relevantes até os casos pertencentes ao mesmo campo ou de-
partamento geral do direito, e em seguida desdobrar-se ainda mais,
até onde as perspectivas lhe pareçam mais promissoras (DWORKIN,
2014, p. 294).

E aqui surge o postulado da única decisão correta. Contra a tese da discricionarie-


dade judicial em casos difíceis (Hard Cases), amplamente sustentada pelo neopositivismo
126 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

jurídico de Hart e de Kelsen, Dworkin sugere que, ainda nesses casos sem solução pré-defi-
nida por qualquer regra – tendo em vista que cada caso é único e irrepetível –, há um direito
pré-estabelecido de se ter sua pretensão jurídica assegurada (SCOTTI, 2008, p. 18).
Há de se dizer, contudo, que esse argumento da única decisão correta não represen-
ta, em absoluto, um método7 capaz de determinar, a priori, a solução de uma determinada
lide. Ao contrário, trata-se de “[...] uma postura a ser adotada pelo aplicador diante da situ-
ação concreta e com base nos princípios jurídicos, entendidos em sua integridade” (SCOT-
TI, 2008, p. 18-19, grifos no original). Nas próprias palavras do autor, “[...] o direito como
integridade consiste numa abordagem, em perguntas mais do que em respostas, e outros
juristas e juízes que o aceitam dariam respostas diferentes das dele às perguntas colocadas
por essa concepção de direito” (DWORKIN, 2014, p. 287).

CONCLUSÃO: DWORKIN E A OPERAÇÃO DO GIRO LINGUÍSTICO NO DIREITO


“A sensibilidade do juiz para as especificidades do caso concreto que tem diante de si é
fundamental, portanto, para que possa encontrar a norma adequada a produzir
justiça naquela situação específica”. Menelick de Carvalho Netto (2004)
As teorias contemporâneas do Direito perceberam, a duras penas, que o controle
rigoroso da linguagem jurídica e da realidade social mediante a promulgação de leis gerais
e abstratas não seria possível, precisamente porque não se pode controlar a linguagem. Nós
somos linguagem (CARVALHO NETTO; SCOTTI, 2011, p. 50). Ronald Dworkin, pro-
fundamente influenciado por tais desdobramentos da filosofia da linguagem e da herme-
nêutica filosófica, opera, no campo da Teoria do Direito, o chamado giro linguístico (por ele
chamado de “aguilhão semântico”), retrabalhando suas consequências epistemológicas para a
prática jurídica (DWORKIN, 2014, p. 55-56).
De acordo com Dworkin, a explicação positivista para os direitos e obrigações jurí-
dicas, partindo de uma ótica autocentrada num modelo eminentemente de regras, ignorou
outros padrões obrigatórios de conduta que regulam as decisões dos juízes, especialmente
nos casos difíceis (aqueles em que não há uma solução predefinida por uma regra suposta-
mente autoaplicável): os princípios jurídicos e as políticas (DWORKIN, 2002, p. 35-36).
Por políticas, Dworkin chama aquelas razões de decidir calcadas na maximização de
objetivos coletivos da comunidade, sejam eles econômicos, políticos ou sociais. Já os princípios
seriam padrões de conduta dissociados de quaisquer objetivos dessa natureza, uma vez que

7 Com efeito, “[...] o ponto de partida de Dworkin aqui, portanto, é o da crítica ao excesso de racionalidade
inconsciente que marcava a visão anterior não só do conceito de ciência mas do próprio conceito de direito, de norma
e de ordenamento jurídico, é saber que uma norma geral e abstrata nunca regulará por si só as situações de aplicação
individuais e concretas, até mesmo pela incorporação de maior complexidade ao ordenamento de princípios que a sua
adoção necessariamente significa, ao dar uma maior densidade aos princípios constitucionais básicos e ao, simultane-
amente, abrir novas possibilidades de pretensões abusivas” (CARVALHO NETTO; SCOTTI, 2011, p. 65-66)..
ANAIS DE CONGRESSO 127

consubstanciam “uma exigência de justiça ou equidade ou alguma outra dimensão da mora-


lidade” (DWORKIN, 2002, p. 36) ou, em outras palavras, trunfos (trumps) contra pretensões
de afastamento de direitos em detrimento de políticas (DWORKIN, 2014a, p. 499-536).
A diferença básica, quanto à natureza lógica da orientação que oferecem, entre
regras e princípios diria respeito ao fato de que, enquanto as regras funcionam “à manei-
ra tudo-ou-nada”, sendo aplicáveis se válidas (DWORKIN, 2002, p. 39), ao passo que os
princípios possuem uma “dimensão de peso ou importância”, podendo ser invocados, na
resolução de um caso concreto, em contraposição a outro princípio que pode ou não ser
afastado8 a depender de sua importância para a resolução da demanda (DWORKIN, 2002,
p. 42-43), o que não o exclui definitivamente do ordenamento jurídico como sói acontecer
com regras que seriam, a priori, válidas e aplicáveis (DWORKIN, 2002, p. 39).
Para Dworkin, não há que se falar em discricionariedade do juiz no sentido empre-
gado pelos positivistas, eis que, partindo-se do fundamental fato de que o ordenamento ju-
rídico é composto por regras e por princípios, na hipótese de não haver uma regra específica
reguladora de uma determinada situação concreta a ser apreciada, o juiz ainda assim estará
adstrito a padrões de comportamento, quais sejam, os princípios, os quais, interpretados em
sua integridade oferecem uma restrição jurídica ao ato de decidir do magistrado.
Sobre a forma como os princípios jurídicos podem ser identificados, Dworkin vai
dizer que, ao contrário do sugerido pela construção neopositivista das regras de reconheci-
mento – que supostamente representariam a transição de uma sociedade primitiva para o
Estado de Direito, eis que forneceriam um teste para determinar qual o pedigree jurídico das
regras –, os princípios exsurgem como tais na medida em que representam uma dimensão de
moralidade política importante para a comunidade, sendo descobertos interpretativamente.
As próprias regras, nesse cenário, se apresentam como densificação de princípios.
Para ele, portanto, não mais se sustenta a visão do Direito como ordem escalonada
de normas jurídicas, as quais, ante a textura aberta da linguagem, poderiam ser desafiadas
de maneiras diferentes nos easy cases e nos hard cases – classificação neopositivista para dife-
renciar casos concretos em que há, respectivamente, uma regra clara disciplinando determi-
nada situação e outros em que há verdadeira indeterminação jurídica quanto à solução do
caso. Buscando superar essa simplificação, Dworkin passa a afirmar que o Direito é prática
essencialmente interpretativa e que a interpretação carrega consigo as marcas de seu tempo,
estando subordinada a uma verdadeira condição paradigmática. Em outras palavras, a um
pano de fundo compartilhado de silêncio que constitui e conforma a visão do intérprete
acerca do significado de determinado enunciado normativo e de determinado princípio,
naquele momento e diante da história institucional da comunidade jurídica.

8 De acordo com Dworkin, “[...] somente regras ditam resultados. Quando se obtém um resultado contrário, a
regra é abandonada ou mudada. Os princípios não funcionam dessa maneira; eles inclinam a decisão em uma direção,
embora de maneira não conclusiva. E sobrevivem intactos quando não prevalecem” (DWORKIN, 2002, p. 57).
128 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

Não há de se falar, então, numa:

[...] redução da legitimidade do texto à simples textualidade legal, em


termos de uma gênese puramente formal do Direito, como em Kelsen
ou Hart. A diferenciação entre direito, moral e política deve ser manti-
da, mas isso se torna possível justamente pela tradução dos princípios
morais e dos objetivos políticos na linguagem propriamente jurídica,
internalizando e ressignificando assim seus conteúdos no direito posi-
tivo (CARVALHO NETTO; SCOTTI, 2011, p. 57).

Para Dworkin, ao contrário do defendido pelos neopositivistas, o Direito é um sis-


tema aberto de regras e princípios. E porque seria um sistema aberto? A resposta se encontra,
justamente, no giro hermenêutico-pragmático, operado pelo professor americano no campo
da Teoria do Direito e no seu reconhecimento de que é impossível o controle da linguagem
por regras gerais e abstratas, pretensamente exaustivas e racionalmente capazes de regular
todas as suas situações de aplicação.
Um das grandes questões colocadas por Dworkin, ao desenvolver sua teoria do di-
reito como integridade, é apontar, contra a discricionariedade positivista, que “[...] mesmo
nos casos considerados pelo positivismo como hard cases, onde não há uma regra estabelecida
dispondo claramente sobre o caso, uma das partes pode mesmo assim ter um direito preesta-
belecido de ter sua pretensão assegurada” (CARVALHO NETTO; SCOTTI, 2010, p. 55).
Sobre o ponto, assim discorre Menelick de Carvalho Netto:

Dworkin, é claro, sabe tão bem quanto Kelsen, que qualquer texto
possibilita várias leituras, o problema da decisão judicial, no entanto,
é que a mesma se dá como solução de um conflito concreto e envolve
igualmente a interpretação dos fatos que configuram uma situação de
aplicação única e irrepetível. Esses fatos, como revelam a própria ci-
ência e sua teoria, por exemplo, através do conceito de ‘paradigma’ de
Thomas Khun, são, na verdade, equivalentes a texto, ou seja, somente
apreensíveis por meio da atividade de interpretação, mediante uma
atividade de reconstrução da situação fática profundamente marcada
pelo ponto de vista de cada um dos envolvidos. Por isso mesmo, aqui,
no domínio dos discursos de aplicação normativa, faz-se justiça não
somente na medida em que o julgador seja capaz de tomar uma deci-
são consistente com o Direito vigente, mas para isso ele tem que ser
igualmente capaz de se colocar no lugar de cada um desses envolvidos,
de buscar ver a questão de todos os ângulos possíveis e, assim, proceder
racional ou fundamentadamente à escolha da única norma plenamen-
te adequada à complexidade e à unicidade da situação de aplicação que
se apresenta (CARVALHO NETTO, 2004).
ANAIS DE CONGRESSO 129

Um dos grandes problemas a serem respondidos pelo Estado Democrático de Di-


reito, competentemente diagnosticado por Dworkin, é aquele referente à racionalidade do
Direito e à impossibilidade linguístico-pragmática de se obliterar sua indeterminação estru-
tural mediante qualquer método ou através da pretensão de controle rigoroso da linguagem
e da despudorada edição de atos normativos, supostamente capazes de prever e regular toda
e qualquer problemática social.
O grande insight de Dworkin foi apontar que os juízes possuem a indeclinável mis-
são de, quando debruçados sobre um caso concreto a ser julgado, analisar as peculiaridades
da demanda em sua melhor luz (DWORKIN, 2014, p. 292), reconstruindo a história insti-
tucional dos princípios constitucionais envolvidos na lide, ressignificando-os para a solução
daquele caso específico, com a plena consciência de que não mais se pode supor a existência
de um método heurístico pré-estabelecido capaz de conferir racionalidade sobre-humana a
um mecanismo social eminentemente humano, como o é o Direito.
Com efeito, segundo Menelick de Carvalho Netto:

[...] no paradigma do Estado Democrático de Direito, é de se requerer


do Judiciário que tome decisões que, ao retrabalharem construtiva-
mente os princípios e regras constitutivos do Direito vigente, satisfa-
çam, a um só tempo, a exigência de dar curso e reforçar a crença tanto
na legalidade, entendida como segurança jurídica, como certeza do
Direito, quanto ao sentimento de justiça realizada, que deflui da ade-
quabilidade da decisão às particularidades do caso concreto (CARVA-
LHO NETTO, 2004).9

Portanto, a importância de Dworkin reside em perceber que “[...] racional é o saber


que sabe da precariedade do nosso próprio saber e busca lidar racionalmente com os riscos
que ele acarreta” (CARVALHO NETTO; SCOTTI, 2011, p. 65).
Segundo apontam Menelick de Carvalho Netto e Guilherme Scotti:

O ponto de partida de Dworkin aqui, portanto, é o da crítica ao ex-


cesso de racionalidade inconsciente que marcava a visão anterior não
só do conceito de ciência, mas do conceito de direito, de norma e de
ordenamento jurídico, é saber que uma norma geral e abstrata nunca
regulará por si só as situações de aplicação individuais e concretas,
até mesmo pela incorporação de maior complexidade ao ordenamento
de princípios que a sua adoção necessariamente significa, ao dar uma
maior densidade aos princípios constitucionais básicos e, ao, simulta-
neamente abrir novas possibilidades de pretensões abusivas (CARVA-
LHO NETTO; SCOTTI, 2011, p. 65-66).

9 Na mesma linha, vide também CATTONI, 2013, p. 153.


130 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

Dessa forma, para Dworkin, é insustentável a pretensão neopositivista de conceber


o Direito como um sistema fechado de regras, suficientemente racional para reger a vida em
sociedade. O Direito contemporâneo, com a consciência das limitações de sua racionalidade
e da condição paradigmática em que vivemos, não mais suporta a insubsistente pretensão de
se regular todos os problemas sociais mediante a pura e simples edição de atos normativos.
Conforme aponta Menelick de Carvalho Netto:

Com essa abertura para a complexidade de toda situação de aplicação,


o aplicador deve exigir então que o ordenamento jurídico apresente-se
diante dele, não através de uma única regra integrante de um todo
passivo, harmônico e predeterminado que já de antemão regulado de
modo absoluto a aplicação de suas regras, mas em sua integridade,
como um mar revolto de norma sem permanente tensão concorrendo
entre si para regerem situações (CARVALHO NETTO, 2004).

Sendo assim, a racionalidade jurídica não mais pode depender, no paradigma do


Estado Democrático de Direito, de um sistema hermético de regras, mas – ao contrário
– deve representar uma abertura procedimental para a reconstrução, perante a esfera pú-
blica e tendo sempre o caso concreto como fio condutor, daqueles pactos de liberdade e
de igualdade chamados de direitos fundamentais, os quais legitimam o Direito na moder-
nidade tardia, na medida em que propiciam uma tensão produtiva e co-originária com a
democracia, entendida como soberania popular, como o povo tomando as decisões sobre
a sua vida em comunidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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ANAIS DE CONGRESSO 133

O DIREITO FUNDAMENTAL À EDUCAÇÃO A


PARTIR DA CONSTITUINTE DE 1988:
UMA BREVE ANÁLISE DA EVOLUÇÃO DESTE DIREITO NOS 30 ANOS DA
CONSTITUIÇÃO CIDADÃ

MICAELA AFONSO LAMOUNIER1

RESUMO
Este trabalho tem por escopo elucidar os rumos da educação de excelência poste-
riormente à Constituição da República de 1988 e verificar de qual maneira a atual Carta
Constitucional auxilia na concretização deste direito. Dito isto, se faz necessário analisar a
previsão que faz a Constituição acerca da educação, observando a diferença entre a disposi-
ção no Texto Constitucional de 1967 e a atual, buscando assentar sobre a evolução e atual
condição da educação no Brasil.
Palavras-chave: Educação; Constituições; Direto Fundamental e Social; Aplica-
ção; Ações Coletivas.

INTRODUÇÃO
O presente trabalho busca analisar como o direito fundamental à educação é trata-
do após a Constituição da República de 1988 e como esta vem auxiliando para a efetivação
deste direito. Sabe-se que a educação é prerrogativa máxima no Estado de Democrático de
Direito, que tem por finalidade a justiça social.
Para tanto, buscar-se-á realizar um exame comparativo da educação sob a luz da
Constituição de 1967, anterior à Carta Constitucional de 1988, e a atual Constituição
Federal, observando a previsão constitucional no tocante à educação e verificando como o
hodierno Texto Constitucional vem contribuindo para realização deste direito.
Nessa esteira, o objetivo deste artigo é verificar como o direito fundamental social

1 Mestranda em Direito pelo programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG). Advogada. micaelalamounieradv@gmail.com.
134 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

à educação vem sendo visto após a promulgação da Constituinte de 1988 e como ela tem
contribuído para a efetivação deste direito no Brasil. Para isto, imprescindível perpassar pe-
los dizeres constitucionais sobre a matéria e elucidar acerca do status do direito à educação
após a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
A metodologia usada será constituída por pesquisa bibliográfica em livros que propor-
cionarão o esclarecimento da relevância da CRFB/88 para a realização do direito à educação.
Desta feita, diante do trintenário da Lex Mater de 1988, aduzir a respeito da cons-
titucionalidade da educação parece fundamental para esclarecer os avanços da concretização
do ensino de qualidade nesse ínterim.

1. O DIREITO À EDUCAÇÃO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1967:


O período ditatorial gerou penosos resultados à educação brasileira que são senti-
dos até hoje. À época da Constituição de 1967, o Brasil se encontrava sob a égide da dita-
dura militar que resultou em duras consequências ao direito ora tratado, tais como, evasão
escolar, alta taxa de analfabetismo, ausência de profissionais e materiais, índices altissímos
de repetência e professores extremamente mal remunerados (PILETTI; PILETTI, 1985).
Nesse tempo, as instituições de todos os níveis educacionais eram fiscalizadas por
agentes da ditadura, responsáveis por buscar discentes e mestres com pensamentos diver-
gentes aos preceitos ditatoriais. Sob o controle do Serviço Nacional de Informações (SNI),
referidos agentes tinham o poder de prender, torturar e até matar alunos e professores.
Foram tempos díficeis, nos quais se acreditaram, no início, que a democracia logo
reinaria novamente, o que não ocorreu:

A “intervenção cirúrgica” acabou durando mais do que se imagina-


va. O arbítrio se instalou definitivamente e a sociedade foi emudeci-
da, seus líderes perseguidos, torturados, assassinados. (BONAVIDES;
ANDRADE, 1989, p. 431).

Nas palavras de Luís Roberto Barroso (2006, p. 34/35):

O que se pode constatar, isentamente, é que o período ditatorial exibiu


indicadores econômicos positivos e custos sociais dramáticos. Inserido
na economia mundial como um dos grandes produtores de riquezas,
o Brasil convivia e continua a conviver com índices sofríveis em áreas
como educação, habitação e saúde”.

Para o Prof. José Luiz Borges Horta, em sua obra Direito Constitucional da Edu-
cação, as Emendas Constitucionais nº 9 de 1964, nº 18 de 1965 e nº 20 de 1966, todas
concernentes à educação, davam sinais que viria um texto constitucional antidemocrático:
ANAIS DE CONGRESSO 135

“Eram as primeiras manifestações do constitucionalismo de exceção, que impôs ao país uma


tecno-ditadura ainda maior – e mais longa – que a de Vargas” (HORTA, 2007, p. 98).
Entretanto, diferentemente do que defendido por Luís Roberto Barroso, na visão
de José Luiz Borges Horta, a educação durante a ditadura de 1964-1985 foi brindada com
altos investimentos no tocante à educação pública superior, senão vejamos:

(Fica à História a tarefa de explicar e compreender porque, num con-


texto ditatorial, tanto recurso seria investido na Universidade pública,
e porque cessada a exceção, os celeiros intelectuais do País viveriam,
em especial após a primeira eleição direta, uma crise que já dura tanto
tempo quanto durou a ditadura Vargas). (HORTA, 2007, p. 100).

Destarte, a educação estava prevista nos artigos 8º, inciso XVII, “q” e § 2º, e artigo
168 e seguintes da Ordem Constitucional de 1967. No artigo 168, posteriormente predito
no art. 176 em razão da Emenda Constitucional nº 1 de 1969, a educação era vista como
direito universal de todos, todavia, era baseada no principio da unidade nacional, na liber-
dade e na solidariedade humana:

Art. 168. A educação é direito de todos e será dada no lar e na escola;


assegurada a igualdade de oportunidade, deve inspirar-se no princípio
da unidade nacional e nos ideais de liberdade e de solidariedade huma-
na. (BRASIL, 1967, p. 131).
Art. 176. A educação, inspirada no princípio da unidade nacional e nos
ideais de liberdade e solidariedade humana, é direito de todos e dever do
Estado, e será dada no lar e na escola. (BRASIL, 1969, p. 198).

Cumpre destacar que em relação à Emenda Constitucional nº 1 de 1969, formal-


mente não foi uma nova Constituição, mas materialmente sim, tendo em vista a ampla
reforma que fez na Constituição Federal de 1967. Tal emenda nasceu da intensificação no
quadro do regime de exceção política experimentda pelo Brasil na época, alterando consi-
deravelmente as disposições relativas ao direito à educação.
Ressalta-se que a Constituição de 1967 não se preocupou em determinar percentu-
ais obrigatórios de receita tributária para a educação, bem como definiu que a gratuidade do
ensino ulterior ao primário seria substituída, sempre que possível, pela concessão de bolsas
de estudo, cujo reembolso seria exigido quando se tratasse de educação superior (artigo 168,
§ 3º, inc. III, da CF/67).
Já no cenário da Emenda de 1969, a obrigatoriedade para investimentos exigidos
aos entes federados foi estabelecida somente aos municípios, sendo ampliada à União, aos
estados e ao Distrito Federal pela Emenda Constitucional nº 24 de 1983.
136 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

2. O DIREITO FUNDAMENTAL SOCIAL À EDUCAÇÃO NA CONSTITUIÇÃO DA


REPÚBLICA DE 1988
O momento atual revela a necessidade da educação de excelência, a notória urgên-
cia e a premência que é a concretização do direito à educação no Brasil. No contexto dos
direitos fundamentais previstos na Constituição da República de 1988, direitos estes enten-
didos como um conjunto de direitos humanos universais acrescidos dos direitos nacionais
subjetivos assegurados pela Constituição Federal de um Estado, tem-se a educação. (NERY
JÚNIOR; NERY, 2009).
A matéria está disciplinada nos artigos 22, XXIV, 23, V, 30, VI e, predominante
nos artigos 205 a 214, todos da Constituição Federal, bem como nos artigos 60 e 61 do Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).
O Texto Constitucional de 1988 é o mais generoso das Cartas Constitucionais bra-
sileiras no que tange à previsão de direitos e garantias fundamentais. A declaração do direito
à educação passa a ser mais precisa nessa Constituição, evoluindo na qualidade em relação
à Constituição anterior, sendo mais minuciosa em suas previsões, inclusive, definido meios
jurídicos para a sua efetivação.
Nesse ponto, a Constituição Cidadã, em seu artigo 6º preceitua que a educação é
um direito fundamental e social, previsto ainda no artigo 205, que assim dispõe: “A edu-
cação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a
colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o
exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (BRASIL, 1988, p. 123).
Nesse sentido, cabe ao Estado e à família efetivar a educação com o auxílio da so-
ciedade, buscando o desenvolvimento do indivíduo. Assim, a comemoração dos 30 anos de
promulgação da Constituinte de 1988 faz ressaltar que, por força do artigo 6º da CRFB, a
educação tem status constitucional e se encontra sob o prisma de proteção de direito funda-
mental e social.
Nesse diapasão, a Constituição Federal de 1988, promulgada à luz da democracia,
trouxe três classes de princípios constitucionais referentes à educação, a saber: princípios
gerais que determinam os valores inseridos constitucionalmente relativos à educação, os
princípios especiais que estabelecem a estrutura normativa de parte de campos ligados à
educação e, por fim, os princípios conexos que dão base a outros valores constitucionais,
mas que surtem efeitos na esfera educacional (HORTA, 2007).
Nessa esteira, destaca-se os princípios da liberdade para aprender, ensinar e divulgar
o pensamento, a arte e o saber; a gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais,
a gestão democrática do ensino público, na forma da lei e a garantia de padrão de qualidade
(art. 206, inc. II, IV, VI e VII, da CF/88).
ANAIS DE CONGRESSO 137

No que concerne ao orçamento financeiro mínimo destinado à educação, a Cons-


tituição estabeleceu em seu artigo 212, que a União disponibilizaria 18% e os estados, Dis-
trito Federal e Municípios 25% da receita oriunda de impostos.
Ademais, o artigo 207, que versa sobre o ensino superior, estabeleceu a autonomia
didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial das universidades, em
estrito cumprimento à indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.
Destaca-se os avanços da atual Constituição concernentes ao tema, tais como, dar
à educação natureza de direito público subjetivo, a obrigatoriedade na oferta de ensino no-
turno regular, a responsabilidade do Estado em fornecer creche e pré-escola às crianças de
0 a 6 anos de idade, dever de prestar ensino especializado aos portadores de deficiências e a
responsabilização da autoridade competente no caso de não-oferecimento do ensino obriga-
tório pelo Poder Público ou sua oferta irregular.
Assim, verifica-se que a Constituição Cidadã vem auxiliando para a concretização
deste direito nesses últimos 30 anos. Sabe-se, como bem explica Joaquim Carlos Salgado,
que a positivação dos direitos fundamentais é um importante passo para o Estado Demo-
crático de Direito, mas o verdadeiro apogeu destes direitos está na sua efetiva fruição pelo
sujeito de direito universal. (SALGADO, 2006, p. 18).
Desta feita, deve o Poder Público elaborar ações para a concretização do direito em
prol do bem estar social, demandando do ente prestações econômicas materiais para a plena
executoriedade das normas. Nesse sentido, o direito fundamental social à educação se insere
no acervo dos direitos de segunda geração (ou segunda dimensão).
Além disto, outro fator que evidencia o avanço da educação pós Constituição de
1988, é o fato deste Texto Constitucional assentar princípios, valores e direitos referentes
à educação, bem como, conceder meios para executar o direito à educação via processual
(HORTA, 2007).
A preocupação pela educação nasce, especialmente, com o rompimento do Esta-
do Liberal, surgindo o Estado do Bem-Estar Social2, advindo do direito europeu, que teve
como questão central a atuação do Estado como fomentador do desenvolvimento social,
sempre buscando do ente Estatal prestações positivas, ações que realmente acarretariam no
seu exercício pela a plena concretização de direitos.
Esclarece Paulo Bonavides (2013, p. 392):

2 Também conhecido por sua denominação em inglês como Welfare State. Sobre o tema, explica Paulo Bonavides
(2013, p. 380): “O constitucionalismo dessa terceira época fez brotar no Brasil desde 1934 o modelo fascinante de
um Estado social de inspiração alemã, atado politicamente a formas democráticas, em que a Sociedade e o homem-
-pessoa-não o homem-indivíduo-são os valores supremos. Tudo porém indissoluvelmente vinculado a uma concepção
reabilitadora legitimante do papel do Estado com referência à democracia, à liberdade e à igualdade”.
138 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

Façamos a seguir ligeiro confronto entre o Estado de Direito da bur-


guesia liberal do passado e o novo Estado de Direito que tem por
base primeira a igualdade. Naquele os valores fundamentais – vida,
liberdade e propriedade – gravitam, segundo Schambeck e Huber, no
centro da ordem jurídica, ao passo que com o advento do Estado so-
cial os novos valores fundamentas produzidos pela sociedade industrial
abrangem o pleno emprego, a segurança existencial e a conservação da
força de trabalho.

Todavia, tal modelo de Estado não foi suficiente para suprir os anseios sociais,
sendo necessário, portanto, um novo modelo de Estado: o Estado Democrático de Direito.
Nesse novo paradigma, o cerne não está apenas em concretizar os direitos de primeira e se-
gunda geração, o objetivo vai além.
A preocupação também está em universalizar os direitos para todos sem se conter
diante de limites sociais, financeiros e/ou geográficos, o que se corrobora através da criação
da Organizações das Nações Unidas (ONU).
Ante tais premissas, possível inferir que a Constituição da República, nesses últimos
30 anos, vem se empenhando para a concretização do direito em questão, seja dedicando
exaustivamente previsões no tocante à matéria ou, ainda, constitucionalizando o direito à
educação, dando caráter fundamental e social.

3. A APLICAÇÃO DO DIREITO À EDUCAÇÃO


Aparenta que o constituinte, no momento da criação do Texto Constitucional, pre-
viu o cenário de inaplicabilidade normativa no qual sofreria o Brasil e introduziu meios de
efetivação do direito à educação no próprio ordenamento constitucional.
Decerto, o constituinte de 1988 se preocupou com o suprassumo dos direitos fun-
damentais, isto é, na sua plena realização e não apenas na sua previsão. Desta feita, criou
medidas para consubstanciar o direito fundamental social à educação, sendo a principal
destas a aplicação imediata das benesses da educação (HORTA, 2007).
A aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais está enunciada no artigo 5º,
§1º, da CF, que assim dispõe: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais
têm aplicação imediata”. (BRASIL, 1988, p. 17).
Desta forma, o direito à educação é um direito fundamental que não depende de
norma regulamentadora para sua imediata realização, exigindo do Estado uma postura po-
sitiva para a sua concretização, de tal sorte que não pode o juiz deixar de aplicá-las arguindo
inexistência de norma integradora já que tal ausência não é obstáculo para a efetivação.
Soa óbvio tal previsão, mas infelizmente o contexto de violações de prerrogativas
ANAIS DE CONGRESSO 139

fundamentais nos mostra que não é, sendo que, uma vez desprezadas tais normas, cabe ao
Poder Judiciário o cumprimento (BARROSO, 2006).
Apesar da disposição contida no art. 5º, §1º, da CF, raras não são as vezes em que
os operadores do direito, especialmente os advogados na defesa dos direitos de seus clientes,
demandam ao Judiciário a resolução de lides que atentam contra normas e garantias funda-
mentais. Aqui está o verdadeiro espírito da norma: impedir a violação de direito, mas uma
vez transgredida, que o Judiciário possua meios concretos de solucionar a questão em bene-
fício dos direitos fundamentais.
Ademais, há outros mecanismos importantes para aplicação dos direitos funda-
mentais, buscando a materialização da educação por todos os indivíduos, a saber, a menção
que os direitos e garantias dispostos na CRFB/88 não suprimem os demais oriundos do re-
gime e princípios por ela adotados e dos tratados internacionais que o Brasil tenha aderido
(art. 5º, parágrafo segundo, da CF/1988).
Insta salientar que a Carta Constitucional de 1988 foi a primeira Constituição bra-
sileira a prever explicitamente a possibilidade de novos direitos receberem a proteção consti-
tucional, embora estando previstos em tratados internacionais. Assim, os direitos e garantias
fundamentais não decorrem apenas do enunciado do art. 5ª da CF, já que o rol ali presente
é meramente exemplificativo, devendo incluir outros direitos (BULOS, 2009).
Nesse sentido, explica Uadi Lammêgo Bulos (2009, p. 596):

Na realidade, o §2 do art. 5º constitui um portal que propicia o in-


gresso no ordenamento jurídico, de normas materialmente constitu-
cionais – constatação extraída de uma exegese sistemática da Carta de
199, que procura conceber os direitos fundamentais de mãos dadas
com o princípio da dignidade humana (CF, art. 1ª, III). [...]. Trata-se
de uma norma de competência cuja a missão é fomentar o nascimento
de um ordenamento jurídico supraconstitucional, que pouco a pouco
está surgindo e, muito em breve, se expandirá, como tem ocorrido em
diversos países europeus, notadamente pela influência da União Euro-
peia.

Lado outro, outra relevante medida é dispor que os direitos e garantias individuais
não poderão ser extintos ou reduzidos por proposta de emenda constitucional (art. 60, inc.
IV, da CF/1988). Insta salientar, que a vedação diz respeito à diminuição ou eliminação dos
referidos direitos, mas jamais a sua ampliação. (HORTA, 2007).
É nesse sentido que defende José Luiz Borges Horta (2007, p. 186): “Nestes ter-
mos, não temos nenhuma dúvida em afirmar: O Direito à Educação, como todos os direitos
dele decorrentes, constitui cláusula pétrea da Constituição Federal de 1988” (Grifo do autor).
Destarte, a natureza pétrea dos direitos individuais e, por consequência, do direito
140 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

à educação não presume a sua imutabilidade, pois se a mudança for em prol da expansão dos
direitos que já estão inseridos no acervo de direitos ou pela criação de novas prerrogativas
que necessitam estar consagradas em nossa Constituição, não recai qualquer tipo de impe-
dimento na elaboração das emendas.

4. MEIOS PROCESSUAIS COLETIVOS DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO À EDUCAÇÃO


Além de prever constitucionalmente o direito à educação, necessário se faz criar
mecanismos processuais em prol de sua executoriedade, exigindo do Estado prestações po-
sitivas com intuito de concretizar os direitos fundamentais.
Para a proteção de direitos individuais, tem-se as tutelas específicas para sanar ofen-
sa a estas normas. Contudo, quando as violações de direito atingem um grupo de pessoas,
usar-se-á das tutelas coletivas no ingresso judicial, não excluindo do ente jurisdicional, como
bem preceitua a CRFB/1988 em seu art. 5º, inc. XXXV, lesão ou ameaça ao direito.
Os interesses coletivos são classificados em interesses difusos, interesses coletivos
em sentido estrito e interesses individuais homogêneos. Sendo, a saber, a Ação Civil Pública,
a Ação Civil Pública por Ato de Improbidade Administrativa e a Ação Popular, são algumas
das ações cabíveis para deslindar conflitos a respeito de direitos de toda uma coletividade.
A Ação Civil Pública, prevista no art. 129, inciso III, da CRFB e na Lei nº 7.347 de
1985, é proposta quando há dano moral e patrimonial gerado aos entes contidos no rol do
art. 1º da supracitada lei. Salienta-se que tal rol é meramente ilustrativo, razão pela qual, pode
e deve ser ajuizada na defesa do direito à educação, como defende brilhantemente Gregório
Assagra de Almeida em sua obra Manual das Ações Constitucionais (2007, p. 261): “Outros
direitos difusos e coletivos existentes [...] dentre muitos outros: [...] c) o direito à educação”.
Acerca da Ação Civil Pública, ensina Luís Roberto Barroso em O Direito Consti-
tucional e a Efetividade de suas Normas (2006, p. 212):

No final dos anos 70, intensificam-se os estudos a respeito da tutela


em juízo dos interesses transindividuais, resultando daí, já na década
de 80, a elaboração de anteprojetos de lei visando a criação de instru-
mentos mais eficazes para a tutela dos interesses difusos ou coletivos.
Da aprovação de um desses anteprojetos resultou a Lei nº 7.347, de
24.7.85, que criou a ação civil pública, disciplinando a responsabilida-
de por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor e a bens e
direitos de valor artísticos, estético, histórico, turístico e paisagístico.
(Grifo do autor).

No tocante, a Ação Civil Pública por Ato de Improbidade Administrativa predita


na Lei nº 8.429 de 1992, tem em seu art. 11, as hipóteses que ensejam a propositura desta
ação, podendo ser ajuizada, inclusive, na proteção pelo direito à educação. É bem comum
ANAIS DE CONGRESSO 141

nos ser noticiados situações de desvio de verbas destinadas à educação para outras finalida-
des, onde membros do poder executivo são responsabilizados e condenados no pleito pela
prática de Ação Civil Pública por Ato de Improbidade Administrativa.
Já a Ação Popular, também mandamento constitucional contido no art. 5º, inc.
LXXIII, é uma garantia fundamental do cidadão, no gozo de seus direitos políticos, que
pode ser usada quando o direito ameaçado é a educação. Embora o supracitado artigo cite
apenas como objeto desta ação coletiva o dano ao erário público, à moralidade administra-
tiva, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, referida ação é utilizada ainda a
outros direitos conexos a esses objetos.
Prevista também na Constituição de 1967, mesmo após a Emenda nº 1 de 1969,
a Ação Popular ganhou maiores proporções com a Constituição de 1988, inclusive com a
proteção à moralidade administrativa e ao meio ambiente, estabelecendo, ainda, a isenção
de custas e do ônus de sucumbência à parte autora, exceto em casos de má-fé.
Compete dizer que a educação não é uma benesse dada pelo “benevolente” Poder
Público no sentido de ter do Estado uma postura quase que paternal em relação ao seu povo.
Não, a educação não é benefício, é direito! Se o indivíduo, desde o início de seu desenvol-
vimento, tivesse acesso à educação de qualidade sem ter que, para tanto, pagar por ela, não
haveria a necessidade de demandar em juízo pela a efetivação do direito à educação através
das ações coletivas ou individuais.
Insta salientar que todas as ações coletivas nesta oportunidade abordadas vêm sido
aceitas de forma pacífica pela jurisprudência brasileira na proteção ao direito fundamental
social à educação, o que torna essencial para que os jurisdicionados envolvidos nas lides co-
letivas possam ter provimento jurisdicional eficiente e em tempo razoável, agindo a justiça
em proveito de um dos mais basilares direitos, a educação.

CONCLUSÃO
Expostas as considerações acerca do tema ora tratado, permite-se concluir que a
Constituição Cidadã cumpriu seu dever quanto à previsão concernente ao direito à educa-
ção de excelência, eis que assegurou meios eficazes para a execução desta prerrogativa.
Decerto, a educação tem evoluído quanto à sua aplicação e previsão constitucional,
tanto é que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 progrediu no que
tange aos mandamentos normativos acerca da matéria, definindo princípios norteadores,
recursos orçamentários e demais garantias imprescindíveis para aplicação do direito funda-
mental social à educação.
A análise das Constituições de 1967 e 1988 no que toca à educação é ponto rele-
vante para a reflexão sobre a efetivação do ensino de excelência. O Texto Constitucional é o
142 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

norte que orientará a sociedade, auxiliando na criação de preceitos para a concretização dos
direitos fundamentais.
Nesse sentido, ressaltam-se como forma de efetivação do direito à educação a previsão
de aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais (art. 5º,
§1º, da CF/88), a possibilidade de incluir no rol de direitos fundamentais os direitos provenien-
tes de tratados internacionais que o Brasil tenha aderido (art. 5º, §2º, da CF/88), a natureza de
cláusula pétrea dos direitos fundamentais (art. 60, inc. IV, da CF/1988) e ações coletivas.
Necessário agora é a atuação incisiva dos Poderes Executivo, Judiciário e Legislativo
para que os dizeres constitucionais deixem o plano teórico a fim de alcançar o aspecto práti-
co tão sonhado pela CRFB/88 que é promover a todos os sujeitos de direito a educação de
qualidade, essencial ao Estado Democrático de Direito.

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ANAIS DE CONGRESSO 143

A CONSTITUIÇÃO DE 1988, AVANÇOS E DESAFIOS PARA A EDUCAÇÃO


INCLUSIVA COMO DIREITO DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA:
UMA LEITURA DA REALIDADE BRASILEIRA A PARTIR
DA TEORIA DA JUSTIÇA DE JOHN RAWLS

TATIANA RIBEIRO PROVETTI1

RESUMO
O artigo discorre sobre o direito das pessoas com deficiência a uma educação efe-
tivamente inclusiva, conforme determina a Constituição de 1988, a legislação infraconsti-
tucional e os Tratados e Convenções das quais o Brasil é signatário. Faz também uma bre-
ve retrospectiva, analisando como Constituições brasileiras anteriores trataram dos direitos
fundamentais das pessoas com deficiência. Em seguida, procurará fazer uma leitura da situ-
ação do ensino inclusivo e das pessoas com deficiência no Brasil a partir da filosofia política
de John Rawls, analisando se as teorias desenvolvidas pelo filósofo se aplicam à realidade
brasileira. Destacará também as conquistas alcançadas e os desafios que devem ser enfrenta-
dos para uma verdadeira e eficiente educação inclusiva no Brasil.
Palavras-chave: John Rawls; filosofia política; constituição de 1988; educação in-
clusiva; pessoas com deficiência.

INTRODUÇÃO
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 tutelou os direitos fun-
damentais das pessoas com deficiência como nenhuma outra Constituição brasileira havia
feito até então.
Consagrou constitucionalmente as obrigações que o poder público e a sociedade
têm para com as pessoas com deficiência, destacando entre essas obrigações o direito a uma
educação verdadeiramente inclusiva.
Nestes trinta anos de vigência, a Constituição de 1988 e os princípios por ela res-
1 Mestranda em Teoria Constitucional pelo programa de pós-graduação da UFMG.
144 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

guardados (e que também a resguardam) iluminaram a produção de leis que objetivam pro-
mover o direito à educação das pessoas com deficiência e que pretendem também coibir a
discriminação praticada por instituições de ensino públicas e particulares.
Como exemplo recente, temos o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº
13.146/15), que ao tratar da educação inclusiva, veda que escolas particulares façam cobran-
ças adicionais para a matrícula e manutenção do aluno com deficiência nos bancos escolares.
Além disso, o Estatuto elenca uma série de obrigações que as instituições de ensino públicas
e privadas precisam cumprir.
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela constitucionalidade dos
dispositivos do Estatuto da Pessoa com Deficiência que reafirmavam o dever das escolas
particulares em promover a educação inclusiva para alunos com deficiência, fornecendo as
ferramentas necessárias para que essas pessoas tenham acesso ao conhecimento dividido em
sala de aula.2
Saliente-se que o ensino inclusivo de qualidade garante que, mais tarde, pessoas
com deficiência consigam acesso ao mercado de trabalho, senão em condições idênticas a
das pessoas sem deficiência, ao menos mais justas.
A educação inclusiva não tem como objetivo apenas qualificar pessoas com defici-
ência para que estas mais tarde ocupem vagas de emprego, mas principalmente para que os
indivíduos com deficiência construam o seu autorrespeito (ZANITELLI, 2015), tenham
as mesmas oportunidades oferecidas aos indivíduos sem deficiência para desenvolver seus
talentos e aptidões, convivam com a diversidade - e não segregados em escolas e classes es-
peciais, limitando a sua convivência a outras pessoas com deficiência - e para que possam
usufruir integralmente de seus direitos e sejam capazes de cumprir seus deveres. Enfim, para
que exerçam a cidadania com plenitude.
Rawls, em seus estudos sobre filosofia política, reconhece a importância do acesso à
educação para a ideia de sociedade cooperativa, pois indivíduos educados poderão ter uma
participação política mais efetiva e qualificada na sociedade.
Nesse artigo, além de tratar da realidade da educação inclusiva no Brasil, procura-
remos fazer uma leitura do panorama a partir da teoria da justiça desenvolvida por Rawls.
As ideias de Rawls sobre uma sociedade bem ordenada e sobre os princípios da justiça
(e sua aplicação) se encaixam na situação atual de vida das pessoas com deficiência no Brasil?
A evolução da tutela constitucional e infraconstitucional do direito ao ensino inclu-
sivo para a pessoa com deficiência no país refletiu como deveria na realidade dessas pessoas,
ajudando-as no acesso às mesmas oportunidades dadas às pessoas sem deficiências? O que

2 Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=318570>. Acesso em:


10 dez. de 2018.
ANAIS DE CONGRESSO 145

pode ser feito para a efetiva concretização do ensino inclusivo de qualidade no Brasil? São
essas as perguntas que procuraremos responder por meio desse artigo.

1. A EVOLUÇÃO DA TUTELA CONSTITUCIONAL NA QUESTÃO DA EDUCAÇÃO


INCLUSIVA
Antes de tratarmos da educação inclusiva na Constituição de 1988 e de buscarmos
no liberalismo igualitário de John Rawls a demonstração da importância do ensino inclusivo
das pessoas com deficiência, é importante fazermos uma breve “linha do tempo”, mostrando
como as Constituições anteriores tutelavam - quando o faziam - os direitos mais básicos das
pessoas com deficiência.
As Constituições pretéritas foram silentes ou demasiadamente tímidas sobre a in-
clusão das pessoas com deficiência no mundo social, e pouco falaram sobre a tutela dos di-
reitos mais básicos dessa minoria (FERREIRA, 2016).
Com efeito, a Carta Constitucional do período imperial não fazia menção expressa
às pessoas com deficiência, é dizer, a Constituição de 1824 falava apenas em “incapazes”
(FERREIRA,2016, p.31), (a qualidade de deficiente sobressaia à qualidade de humano, de
sujeito de direitos) categoria onde certamente restavam enquadrados os indivíduos possui-
dores de qualquer tipo de deficiência.
A carta seguinte, de 1891, seguiu a mesma ideia.
Ambas as Constituições eram regidas por um conceito de igualdade puramente formal.
A Constituição de 1934, por sua vez, significou um importante avanço no trata-
mento constitucional dos direitos sociais.
No que diz respeito às pessoas com deficiência, o artigo 138, a, da Carta previa o
seguinte: “Incumbe à União, aos Estados e aos Municípios, nos termos das leis respectivas:
a) assegurar amparo aos desvalidos, criando serviços especializados e animando os serviços
sociais, cuja orientação procurarão coordenar’’.3
Pela leitura do texto, depreende-se que os constituintes determinaram ser de com-
petência concorrente (da União, dos Estados e dos Municípios) a atribuição de fornecer ser-
viços especializados para os “desvalidos”, palavra usada para definir um grupo formado por
pessoas que, segundo o entendimento da época, não teriam tanta valia ou importância para
a sociedade: pobres, idosos, deficientes, enfim, por minorias que enfrentavam uma situação
de extremo abandono e miserabilidade, sem apoio do Poder Público até então (FERREIRA;
SOUZA, 2016, p. 36).

3 Constituição da República do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/const ituicao/


constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 12 dez. 2018.
146 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

Houve sim um avanço quando pensamos em políticas públicas para pessoas com
deficiência, mas pouca evolução quanto às ideias de inserção e inclusão.
A Carta de 1937 não trouxe avanços significativos quanto aos direitos sociais.
Quanto aos direitos das pessoas com deficiência, houve na verdade retrocesso. Em seu texto
não havia qualquer referência expressa a essa minoria (FERREIRA; SOUZA, 2016, p.37).
A Constituição de 1946, promulgada após Segunda Guerra Mundial, instituiu a
aposentadoria por invalidez ao trabalhador acidentado (artigo 157, inciso XVI) (FERREI-
RA; SOUZA, 2016, p.37).
A Constituição Brasileira de 1967 garantiu a igualdade no parágrafo primeiro do
artigo 150 e a emenda nº 12 de outubro de 1978 trouxe um dispositivo que previa o direito
à educação para pessoas com deficiência (ARAUJO, 2003).
A Constituição Cidadã de 1988 significou o início da tutela constitucional efetiva
dos direitos das pessoas com deficiência (ARAUJO, 2003) tutela essa iluminada pelo prin-
cípio da Dignidade da Pessoa Humana (art. 1º, III, da Constituição da República) pelo
princípio da não discriminação (art. 3º, IV da Constituição da República), pelo princípio
da igualdade, dentre outros. A minoria composta pelas pessoas com deficiência finalmente
conquistou um catálogo de direitos constitucionalmente previstos, e entre eles encontramos
o direito não apenas à educação, mas o direito a uma educação não excludente ou estigma-
tizante, mas inclusiva.

2. APARATO LEGAL PARA A DEFESA DO ENSINO INCLUSIVO NO BRASIL


Comecemos pelo próprio texto constitucional. O artigo 205 da Constituição de
1988 esclarece que a educação é direito de todos e dever do Estado e da família, devendo ser
promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimen-
to da pessoa e preparando-a para a vida em geral.
O dispositivo constitucional deve ser lido em conjunto com o artigo 208 da Carta,
que no inciso III assevera que o dever do Estado para com a educação será efetivado median-
te atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, “preferencialmente”
na rede regular de ensino. Pode-se afirmar que o termo “preferencialmente” presente no arti-
go sofreu uma releitura com a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de
2006, recebido no Brasil com status de norma constitucional, em 2009. Lendo a convenção
na integralidade, além dos artigos que tratam diretamente da educação para as pessoas com
deficiência4, conclui-se que o ensino inclusivo não é apenas recomendável, mas obrigatório,
ou seja, deve ser obrigatoriamente oferecido pelo Estado, com a colaboração de toda a socie-
4 Artigo 24. 1. Os Estados Partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência à educação. Para efetivar esse
direito sem discriminação e com base na igualdade de oportunidades, os Estados Partes assegurarão sistema educa-
cional inclusivo em todos os níveis, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida, (grifou-se) com os seguintes
objetivos:”
ANAIS DE CONGRESSO 147

dade (inclusive das instituições de ensino particulares, que não devem apresentar embaraços
para que pessoas com deficiência integrem os seus bancos).
Antes da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, tivemos a im-
portante “Declaração de Salamanca”. A Declaração é fruto da Conferência Mundial sobre
Necessidades Educacionais Especiais, que ocorreu na cidade espanhola de Salamanca, em
1994. Proclama a convenção que aqueles com necessidades especiais devem ter acesso à es-
cola regular, que deve acomodá-los dentro de uma pedagogia centrada na criança, capaz de
satisfazer as suas necessidades.5
O Brasil foi um dos signatários da Declaração de Salamanca, comprometendo-se
em promover a educação inclusiva. Reflexo das determinações da Constituição de 1988,
dos Tratados e Convenções internacionais com os quais o Brasil se comprometeu e princi-
palmente da luta das pessoas com deficiência e também de outros cientes da necessidade da
verdadeira inclusão dessa minoria na sociedade, em 2015 foi promulgada a Lei nº 13.146,
que instituiu a Lei Brasileira da Pessoa com Deficiência, ou o Estatuto da Pessoa com Defi-
ciência (PEREIRA e MORAIS, 2018, p.95).
Busca o Estatuto da Pessoa com Deficiência auxiliar na concretização da inclusão
social. Tutela (entre outros direitos fundamentais das pessoas com deficiência), o direito ao
ensino inclusivo, instrumento imprescindível para que essas pessoas desfrutem de uma ci-
dadania plena:

Art. 27. A educação constitui direito da pessoa com deficiência, assegu-


rados sistema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado
ao longo de toda a vida, de forma a alcançar o máximo desenvolvimen-
to possível de seus talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectu-
ais e sociais, segundo suas características, interesses e necessidades de
aprendizagem.

Parágrafo único. É dever do Estado, da família, da comunidade escolar e da socie-


dade assegurar educação de qualidade à pessoa com deficiência, colocando-a a salvo de toda
forma de violência, negligência e discriminação. 6

Elenca o Estatuto os deveres das instituições públicas e privadas de ensino para a


promoção da educação inclusiva, como por exemplo, elaboração de “projeto pedagógico que
institucionalize o atendimento educacional especializado, assim como os demais serviços e adap-
tações razoáveis, para atender às características dos estudantes com deficiência e garantir o seu

5 Declaração de Salamanca. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/salamanca.pdf>. Aces-


so em: 08 dez. 2018.

6 Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br /ccivil_03/_
ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm.> Acesso em: 08 dez. 2018.
148 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

pleno acesso ao currículo em condições de igualdade.”7


Saliente-se que o Estatuto da Pessoa com Deficiência também reforçou as obriga-
ções das instituições de ensino particulares para comas pessoas com deficiência.8
Apesar do todo aparato constitucional e infraconstitucional, no entanto, pessoas
com deficiência ainda encontram dificuldade para se matricularem em instituições de en-
sino particulares e públicas regulares. Quando finalmente conseguem integrar os bancos
destas, precisam enfrentar a ausência de adaptações e de profissionais especializados que são
indispensáveis para que ocorra a efetiva inclusão.
Neste cenário, não é difícil compreender outra faceta cruel da discriminação ou da
inclusão malfeita: pessoas com deficiência muitas vezes não conseguem concluir todas as
etapas escolares.

A inclusão de alunos com algum tipo de deficiência em escolas do Bra-


sil encontra barreiras desde o início da escolarização, mas é no ensino
médio que a dificuldade se torna ainda maior. De acordo com uma
pesquisa feita pelo Instituto Unibanco, o índice de alunos incluídos
vai caindo ao longo da trajetória escolar até chegar em um percentual
de 0,8% das 8 milhões de matrículas do ensino médio. Entre os moti-
vos, os pesquisadores destacam a falta de preparo das escolas para aco-
lher esses estudantes e os entraves da própria configuração pedagógica
dessa etapa.
Embora o número de alunos com algum tipo de deficiência no ensino
médio tenha triplicado nas escolas públicas e particulares do país nos
últimos dez anos, a etapa é a que tem menos alunos incluídos pro-
porcionalmente. No primeiro segmento do ensino fundamental esses
estudantes são 2,9% do total de matrículas. No segundo segmento, o
índice cai para 1,8% e no ensino médio chega aos 0,8% do total, o que
corresponde a 62.167 matrículas (TENENTE, 2016).

Escolas particulares e públicas regulares, por mais que estejam inseridas em realida-
des diferentes, falham quando a questão é oferecer educação de qualidade para pessoas com
deficiência. Isso porque o ensino inclusivo passa por oferecer ferramentas para que crianças
e adolescentes com deficiência possam tirar o máximo proveito possível do que é ensinado
durante as atividades escolares.

7 Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_


ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm.> Acesso em: 08 dez. 2018

8 Segundo o art. 27, §1º do Estatuto das Pessoas com Deficiência: “às instituições privadas, de qualquer nível e
modalidade de ensino, aplica-se obrigatoriamente o disposto nos incisos I, II, III, V, VII, VIII, IX, X, XI, XII, XIII,
XIV, XV, XVI, XVII e XVIII do caput deste artigo, sendo vedada a cobrança de valores adicionais de qualquer natureza
em suas mensalidades, anuidades e matrículas no cumprimento dessas determinações.”
ANAIS DE CONGRESSO 149

Assim, nesse ponto, é importante destacar que neste artigo, quando falamos de
“educação inclusiva”, não estamos nos referindo a apenas “inserir” o aluno com deficiência
em classes regulares9. O que realmente importa é se este aluno terá todo apoio necessário
para desenvolver as suas potencialidades, podendo mais tarde usá-las para buscar o que
deseja da vida, para que tenha acesso as mesmas oportunidades garantidas às pessoas sem
deficiências e principalmente, para que possa exercer plenamente a cidadania.
No próximo tópico, veremos se as teorias sobre o liberalismo igualitário do filósofo
político de John Rawls se subsumem à realidade das pessoas com deficiência no Brasil, base-
ando-nos principalmente na interpretação dos “princípios da justiça”, que tratam justamen-
te da igual liberdade e da equidade na diferença.

3. A FILOSOFIA POLÍTICA DE JOHN RAWLS APLICADA À REALIDADE DO ENSINO


INCLUSIVO NO BRASIL. POSSIBILIDADE?
Antes de relacionarmos as ideias de Rawls à realidade do ensino inclusivo no Brasil,
é fundamental esclarecermos alguns conceitos fundamentais da teoria Rawlsiana.
Em “Justiça com Equidade: uma Reformulação”, Rawls conceitua sociedade como
“um sistema equitativo de cooperação”, ideia de sociedade como um sistema equitativo de
cooperação social que se perpetua de uma geração para outra (RAWLS, 2003). Essa ideia
fundamental sustenta-se em duas outras: a existência de cidadãos livres e iguais e a ideia de
uma sociedade bem ordenada, ou seja, uma sociedade regulada por um “conceito público
de justiça”.
A partir do conceito de sociedade bem-ordenada, Rawls parte para a ideia fun-
damental de estrutura básica. Denomina esta como “a maneira como distribuem direitos
e deveres básicos e determinam a divisão das vantagens provenientes da cooperação social
no transcurso do tempo”.) (RAWLS, 2003, p.12). A estrutura básica compõem-se de uma
Constituição Política e um Judiciário independente, das formas legalmente reconhecidas de
propriedade e da estrutura da economia, além da família, que de certa forma, também inte-
gra a mencionada estrutura (RAWLS, 2003).
É na posição original onde as partes racionais e razoáveis selecionam os princípios
da justiça aplicáveis à estrutura básica, para que estes possam definir os termos equitativos
de cooperação social.

9 Seguindo o entendimento de Maria Thereza Mantoan: a inclusão prevê a inserção de forma radical, completa
e sistemática do aluno com deficiência nas escolas comuns. Quer-se dizer com isso que o objetivo é incluir o sujeito
com deficiência em instituições de ensino regulares desde o início da vida escolar, nas mesmas salas dos alunos sem
deficiências. As escolas inclusivas levam em conta as necessidades de todos os alunos para estruturar o seu sistema de
ensino, e por isso mesmo a inclusão implica uma mudança de perspectiva educacional, pois “não se limita aos alunos
com deficiência e aos que apresentam dificuldade de aprender, mas envolve todos os demais, para que obtenham su-
cesso na corrente educativa gera”.
150 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

Ao se reunirem, as partes que deliberarão sobre os princípios da justiça encontram-


-se em uma situação que o jusfilósofo denomina “posição original”.
Na posição original, as partes desconhecem sua classe social, seus talentos, sua inte-
ligência, sua força, sua raça, a sorte ou desventura que tiveram na distribuição de capacidades
naturais (RAWLS, 2003, p.152) ou seja, estão sob um “véu da ignorância”. Logo, pessoas
com deficiência e sem deficiência que estão nesta situação não conhecem suas condições e se
tratarão com igualdade.
Contudo, as partes têm acesso aos conhecimentos desenvolvidos sobre ciências so-
ciais - economia, psicologia social etc. Estão cientes, certamente, da possibilidade de possu-
írem alguma deficiência.
Nestas condições são escolhidos os princípios da justiça: um primeiro que con-
substancia a ideia de igual liberdade e um segundo que traz a ideia da igualdade equitativa
de oportunidades. Comumente se diz que há ainda um terceiro princípio, oriundo de uma
divisão do segundo: o princípio da diferença.
John Rawls esclarece que o primeiro princípio, que exprime a ideia de igual liber-
dade tem precedência sobre o segundo, assim como a igualdade equitativa de oportunidades
prevalece sobre o princípio da diferença (RAWLS, 2003, p.65). Por isso afirma-se que os
mencionados princípios seguem uma ordem lexical.
Sobre o primeiro princípio, Rawls lista as liberdades que considera mais impor-
tantes: a liberdade política (liberdade de votar e ocupar um cargo público), liberdade de
expressão e reunião; liberdade de consciência e pensamento; os direitos da pessoa; o direito à
propriedade privada, entre outras. Estas liberdades devem ser iguais (RAWLS, 2003, p.65).
O segundo princípio da justiça – que se divide em outros dois – muito nos inte-
ressa. Tratando primeiramente do princípio da igualdade equitativa de oportunidades, que
tem precedência em relação ao princípio da diferença, saliente-se que exige não apenas que
os cargos públicos e posições sociais estejam abertos, mas que todos tenham uma chance
equitativa de ter acesso a eles. Ou seja, o princípio exige que a abertura não seja apenas no
sentido formal, mas também que todos tenham (efetivamente) acesso aos cargos públicos e
posições sociais.
Rawls supõe que haja uma distribuição de dons naturais e, que assim sendo, aque-
les que têm o mesmo nível de talento e habilidade e a mesma disposição para desenvolver
esses dons, devem ter as mesmas perspectivas de sucesso, independentemente de sua classe
social.10 Uma das formas de se alcançar o ideal de chances equitativas é o oferecimento pela

10 Uma advertência: Rawls fala em dar as mesmas oportunidades para quem tem o mesmo nível de talento e ha-
bilidade, o que a princípio poderia significar uma restrição aos indivíduos que tem deficiência intelectual. No entanto,
com a variabilidade que encontramos no universo das pessoas com deficiência, é difícil definir de antemão que estas
pessoas não poderão apreender a mesma matéria ministrada às pessoas sem deficiência. Com as adaptações necessárias,
ANAIS DE CONGRESSO 151

sociedade de “oportunidades equitativas de educação para todos, independentemente da


renda familiar” (RAWLS, 2003, p. 62).
Quando se fala em “todos”, não se imagina como poderíamos deixar de contemplar
as pessoas com deficiência. O princípio da diferença, por sua vez, defende um acordo na dis-
tribuição de talentos naturais, visando o bem comum, e o compartilhamento dos benefícios
econômicos e sociais. Neste acordo, os contemplados pela “loteria natural” só podem ser
beneficiados se os desafortunados também o forem. Para sustentar tal entendimento, Rawls
assevera que ninguém merece partir de uma posição melhor do que os outros, nem uma
melhor capacidade natural.
Há, então, uma tentativa de corrigir distorções decorrentes da distribuição anterior
de talentos e habilidades naturais (e as possibilidades diferentes para o desenvolvimento
destas), que mais tarde refletirá na distribuição de renda e riqueza, combinando a exigência
de carreiras abertas ao talento à condição adicional de uma equitativa igualdade (KYLMLI-
CKA, 2006, p. 72).
Vários artigos e pesquisas partem da teoria de John Rawls para justificar as ações
afirmativas e outras políticas de inclusão social. Referem-se a essas como medidas que bus-
cam a justa oportunidade defendida por Rawls, compensando ao menos parcialmente as
perdas provocadas pela discriminação e marginalização decorrentes de motivos raciais, ét-
nicos, religiosos, de gênero e porque não incluir aqui a discriminação sofrida pelas pessoas
com deficiência.
Por esse motivo, deve-se buscar mecanismos para promover a inclusão das pessoas
com deficiência na sociedade, e a melhor maneira de se alcançar esse intento é por meio da
educação inclusiva.
Norman Daniels, na leitura que faz da teoria da justiça de Rawls, refere-se ao di-
reito à saúde como fundamental para a busca da equidade de oportunidades (DANIELS,
2018). O acesso à educação também é uma forma de se proteger a oportunidade, e por isso
seria interessante incluir instituições de ensino na noção de oportunidade dada por Rawls.
Uma educação deficitária impossibilitaria o indivíduo de desenvolver suas habilidades e ta-
lentos da melhor maneira possível, limitando as suas oportunidades (RIGUETTI, 2009).
A educação inclusiva é o melhor caminho para que pessoas com deficiência desenvolvam
plenamente seus talentos, preservando as oportunidades que terão no futuro (ORGANIZA-
ÇÃO ALANA, 2016).
Segundo interessante pesquisa presente no estudo “Os Benefícios da Educação In-
clusiva para Alunos com e Sem Deficiência”, da Organização Alana:

Há forte evidência de que os alunos com deficiência beneficiam-se


academicamente da educação inclusiva. Os impactos acadêmicos da

crianças e adolescentes com deficiência poderão acompanhar a turma regular.


152 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

inclusão têm sido estudados em muitos aspectos, com diferentes po-


pulações de alunos em todo o mundo. Várias revisões sistemáticas da
literatura de pesquisa acadêmica indicam que estudantes com deficiên-
cia que foram educados em classes de educação regular superaram aca-
demicamente seus pares que foram educados em ambientes segregados
Um estudo de 2012 realizado por pesquisadores examinou o desempe-
nho de mais de 68.000 alunos com deficiência do ensino fundamental
e médio no estado de Massachusetts, nos Estados Unidos. Com base
em dados dos testes desse estado, os autores identificaram vários fatores
que influenciam o desempenho acadêmico dos alunos. Renda familiar,
qualidade da escola e proficiência em inglês estavam relacionados com
o desempenho acadêmico das crianças. Depois de criar um controle
estatístico para esses fatores, os autores descobriram que, em média, os
alunos com deficiência que passaram uma parte maior do dia na escola
com seus pares sem deficiência tiveram desempenho significativamen-
te melhor em testes de linguagem e matemática do que estudantes
com semelhantes deficiências que passaram um menor período do dia
na escola com seus pares sem deficiência. As crianças com deficiência
também beneficiam-se da inclusão nos programas de pré-escola. Um
estudo com 757 crianças de 3 a 4 anos na região Centro-Oeste dos Es-
tados Unidos constatou que alunos com deficiência conquistam uma
melhora substancial nas competências linguísticas quando eles têm a
oportunidade de frequentar a pré-escola com alunos sem deficiência
(ORGANIZAÇÃO ALANA, 2016).

A inclusão das pessoas com deficiência como é feita em muitas das instituições de ensi-
no no Brasil ainda está distante do ideal que buscamos pela linha de raciocínio aqui defendida.
A igualdade de oportunidades é na verdade perversa quando garante o acesso à es-
cola comum por pessoas com alguma deficiência de nascimento ou de indivíduos que não
têm possibilidades das demais de passar pelo processo educacional em toda a sua extensão,
por problemas alheios aos seus esforços, mas não lhes assegura a permanência e o prossegui-
mento da escolaridade em todos os níveis de ensino (MANTOAN, 2008, p. 32).
Pode-se comprovar isso por números. Um grande avanço se deu com o aumento de
estudantes com deficiência matriculados em escolas regulares:

A cada ano, aumenta o número de pessoas com deficiência em salas de


aula comuns: entre 2005 e 2015, o salto foi o equivalente a 6,5 vezes, de
acordo com o Censo Escolar, do Inep (Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira). O total subiu de 114.834 para
750.983 estudantes especiais convivendo com os demais alunos.
Os dados do Inep, órgão ligado ao Ministério da Educação (MEC),
apontam que no ano passado, eram, ao todo, 930.683 alunos com de-
ANAIS DE CONGRESSO 153

ficiência, transtornos globais de desenvolvimento e altas habilidades/su-


perdotação no ensino regular e no EJA (Educação de Jovens e Adultos).
Destes, 81% estavam em escolas e salas comuns e 19% nos colégios ou
salas exclusivas para pessoas com deficiência. Em 2005, o quadro era
bem diferente: 492.908 pessoas com necessidades especiais estudavam
no país – apenas 23% no ensino comum e 77% em escolas especiais.
(INSTITUTO ALANA, 2018)

No entanto, pessoas com deficiência encontram uma série de entraves (relacionados à


falta de adaptações das escolas, e não necessariamente às “limitações” atribuídas a essas pesso-
as), para concluírem todas as etapas escolares. O número de pessoas com deficiência matricu-
ladas em instituições de ensino regulares brasileiras cai substancialmente no ensino médio, por
exemplo (como pode ser comprovado pelos dados apresentados no tópico anterior).
O resultado é que pessoas com deficiência mais tarde não terão o mesmo acesso as
oportunidades da vida do que os que não possuem deficiência, o que reflete na distribuição
de renda e riqueza. Para se ter uma ideia melhor do panorama, o Censo 2010 mostrou que
quase 24% da população brasileira possui algum tipo de deficiência.
Dentro deste universo, dos 44 milhões de deficientes11 que estão em idade ativa,
53,8% estão desocupados ou fora do mercado de trabalho. A população ocupada com pelo
menos uma das deficiências investigadas representava 23,6% (20,3 milhões) do total de ocu-
pados (86,3 milhões) - 40,2% tinham a carteira de trabalho assinada; na população geral, esse
índice é de 49,2% (Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República, 2013).
Ademais, dados da RAIS por Grau de Instrução e Tipo de Deficiência revelam que
o Ensino Médio Completo concentra o maior número de vínculos empregatícios de todas as
modalidades, à semelhança do total dos vínculos. (Secretaria dos Direitos Humanos da Pre-
sidência da República, 2013).
Mais da metade das pessoas com deficiência empregada ganha até dois salários mí-
nimos e, em relação aos setores da economia, 31% atuam no setor de serviços (com o auxílio
também de Leis que garantem cota para pessoas com deficiência nas empresas). Entretanto,
a renda média mensal da maioria das pessoas com deficiência encontra-se abaixo dos rendi-
mentos mensais da população brasileira em geral (BAPTISTA E SILVA, 2010), atingindo
o valor de 1.285,00 reais em 2009. Some-se isso ao fato de que ter alguma deficiência au-
menta o custo de vida em cerca de um terço da renda, em média (NAÇÕES UNIDAS NO
BRASIL, 2011).
Pelos dados expostos, percebe-se um avanço quando nos referimos ao número de
pessoas com deficiência matriculadas em escolas comuns, mas também um desafio enorme a
ser enfrentado quando enfocamos o problema da evasão escolar pela ausência de um ensino

11 Os tipos de deficiência referidos na pesquisa são as deficiências física, auditiva, visual, intelectual e múltipla.
154 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

efetivamente inclusivo. Essa questão reflete negativamente no acesso às oportunidades e na


distribuição de renda.
O Brasil ainda não promove a educação inclusiva como se comprometeu a fazer
pela Constituição de 1988, pelos Tratados e Convenções dos quais é signatário e pelas leis
infraconstitucionais (produzidas sob a luz do que determina os princípios e regras da Magna
Carta de 1988), encontrando-se distante do modelo de reparação das desigualdades e da
busca da equidade mesmo na diferença, como defendido por John Rawls.

CONCLUSÃO
A Constituição de 1988 significou um notável avanço quando nos referimos à tu-
tela dos direitos fundamentais das pessoas com deficiência, e nesse artigo cuidamos de uma
questão crucial: o direito à educação inclusiva.
Sob a luz da Carta de 1988 e dos princípios por ela proclamados, como o princípio
da isonomia, da não discriminação, da dignidade da pessoa humana, o Legislativo produziu
uma série de leis que visam promover a inclusão das pessoas com deficiência na sociedade,
principalmente por meio do ensino inclusivo. Citamos como exemplo mais recente o Esta-
tuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015).
Baseando-se nos mesmos mandamentos constitucionais, o Poder Judiciário tam-
bém atuou diretamente na defesa do direito à educação inclusiva. O Supremo Tribunal Fe-
deral, em 2016, decidiu que escolas particulares regulares têm sim o dever de incluir pessoas
com deficiência em seus bancos, sem cobrar para isso valores adicionais em matrículas e ou-
tras taxas, além de possuírem a obrigação de oferecer todo uma estrutura para que os alunos
com deficiência possam desenvolver integralmente as suas potencialidades, lado a lado aos
alunos sem deficiências.
Entretanto, apesar de todo aparato constitucional e infraconstitucional, o Brasil
ainda encontra-se faticamente distante do ideal na promoção do ensino inclusivo. Isso se
torna ainda mais evidente quando fazemos uma leitura da realidade a partir da filosofia polí-
tica, dos princípios da justiça de John Rawls. O Brasil encontra dificuldades para seguir um
modelo de reparação das desigualdades e da busca da equidade mesmo na diferença para as
pessoas com deficiência.
O panorama dificilmente mudará enquanto as instituições de ensino públicas e
particulares continuarem julgando como sendo o “problema” as “limitações” das pessoas
com deficiência. O problema não é a pessoa com deficiência, como querem fazer parecer.
Na verdade, o “problema” é a ausência de estrutura, de treinamento do corpo docente, de
práticas pedagógicas apropriadas e sensíveis às diferenças, de equipes especializadas que faci-
litem a interação dos alunos com deficiência com o ambiente escolar. Essas são as questões
a serem resolvidas para termos a verdadeira inclusão.
ANAIS DE CONGRESSO 155

A leitura deveria mudar: temos escolas e espaços limitados para a inclusão, e não
simplesmente pessoas limitadas por suas deficiências. Como bem diz Maria Thereza Manto-
an, é a escola que deve se adaptar ao aluno com deficiência, e não o contrário.
Somente com a promoção de uma educação efetivamente inclusiva (e não apenas
não excludente ou integradora) teremos avanços significativos e faremos cumprir o que de-
termina a Constituição de 1988.

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ANAIS DE CONGRESSO 157

OS AMICI CURIAE NA EXPERIÊNCIA CONSTITUCIONAL BRASILEIRA:


DA PLURALIDADE À PARTICIPAÇÃO SOCIAL

WAGNER VINICIUS DE OLIVEIRA1

RESUMO
Lançar um olhar crítico para a experiência constitucional brasileira referente ao perí-
odo de 1990 até 2017 auxilia na tarefa de compreender a atuação dos amici curiae no controle
concentrado de constitucionalidade. O objetivo central consiste em demonstrar como é a
atuação deste instituto jurídico-político, que traz consigo a promessa de democratização da ju-
risdição constitucional. Compete, portanto, investigar a conformidade das hipóteses tanto de
pluralidade, quanto de participação social, realizadas pelas intervenções dos amici. A partir da
análise dos materiais e dos julgados prolatados pelo Supremo Tribunal Federal busca-se confir-
mar, teórica e empiricamente, na experiência constitucional brasileira as sobreditas hipóteses
ao longo dos últimos vinte e sete anos. Para tanto, utiliza-se o método de análise bibliográfica
e documental com o propósito de fornecer elementos adequados e atualizados para a com-
preensão dos fenômenos investigados. Finalmente, confirma-se parcialmente as hipóteses pes-
quisadas; isto porque, quantitativamente os amici pluralizam os debates no ambiente testado,
sem, contudo, representar um autêntico veículo de participação social, que, de maneira geral,
se revela pouco expressiva na jurisdição constitucional brasileira.
Palavras-chave: controle concentrado de constitucionalidade; democracia partici-
pativa; efetividade; Estado democrático de direito; intervenção de terceiros.

INTRODUÇÃO
O presente artigo destaca o tema-problema da participação social, no qual se inves-
tiga a realização da pluralidade interpretativa e da participação social mediante a atuação dos
amici curiae na experiência constitucional brasileira. Especificamente, procura-se demons-

1 Doutorando em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Nacional de Direito da


Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. oliveirawagnervinicius@gmail.com
158 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

trar que essa modalidade de “intervenção de terceiros” constitui um fator de pluralidade, do


ponto de vista quantitativo, sem, contudo, inserir os diversos seguimentos sociais. Subme-
te-se esta resposta provisória ao processo de testagem teórica e empírica.
Quanto aos procedimentos metodológicos, consistem na reunião e na análise dos
elementos teóricos e normativos constantes em artigos científicos, dissertações, teses, livros
etc., que colaborem para o entendimento dos fenômenos focalizados. Concomitantemente
a pesquisa teórica, surge a necessidade de explorar o caráter quantitativo da jurisprudência
do Supremo Tribunal Federal (STF), isto é, fazer “referência a uma pluralidade frequente-
mente muito ampla de decisões relativas a vários e diversos casos concretos” (TARUFFO,
2014, p. 3) acerca das participações sociais no controle objetivo das leis e atos normativos
em face da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88).
Para se compreender em profundidade como o direito constitucional mobiliza as
participações sociais faz-se adequado realizar um levantamento de como essa questão vem
sendo tratada pelos Ministros e Ministras do STF. O objetivo central consiste em verificar o
“comportamento institucional” em relação as participações societais nas ADI’s no período
de 1990 até 2017.
Historicamente essa espécie de controle concentrado surgiu no ordenamento jurí-
dico brasileiro ainda sob a égide da Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946, pela
Emenda Constitucional n. 16/1965, então chamada de “representação contra inconstitu-
cionalidade de lei ou ato de natureza normativa” (BRASIL, 1965), de propositura exclusiva
da Procuradoria Geral da República (PGR), nos termos do art. 101, inciso I, alínea “k” do
Texto Constitucional.
Na atual sistemática jurídica, assim como nas pretéritas, o povo não possui legiti-
midade ativa para a propositura das ações do controle concentrado de constitucionalidade,
mas se encontra inexoravelmente submetido as suas decisões. Nesse sentido, a participação
social constitui uma significativa forma de atuação para que a sociedade civil não esteja ou
permaneça apartada das questões e das decisões acerca do conteúdo constitucional.
O principal motivo que justifica este recorte temporal, cujos termos inicial e final
antecede e acompanha, respectivamente, a vigência da Lei n. 9.868/1999, que dispõe sobre
o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de
constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal (BRASIL, 1999), geralmente apon-
tada como um dos instrumentos jurídicos para a “democratização” do controle concentrado
de constitucionalidade brasileiro,2 abrangendo de forma quantitativa as participações sociais
até o período atual.

2 Cabe ressaltar que referente a Lei n. 9.868/1999 recaem contundentes críticas, sobre o tema, entre outros,
conferir Oliveira (2001, p. 77; 2003 p. 166 e seg. Especialmente o item 6. A inconstitucionalidade da Lei Federal n.
9.868 em face de uma interpretação constitucionalmente adequada do modelo constitucional brasileiro do controle de cons-
titucionalidade, p. 200-209).
ANAIS DE CONGRESSO 159

Assim, procedeu-se um levantamento inicial junto ao sítio eletrônico do STF3 no


qual se chegou à população de 250 (duzentos e cinquenta) processos relacionados. Excluídas
as ações que mediante decisão monocrática do relator ou da relatora do processo tiveram
o seguimento prejudicado, bem como as decisões de indeferimento das intervenções dos
amici, chegou-se ao número de 138 (cento e trinta e oito) ações examinadas, cujos dados
apresentados foram extraídos de uma pesquisa mais abrangente4 que também originou ou-
tros trabalhos.5
Realizadas as devidas apresentações passa-se a expor o itinerário que será percorri-
do. Afora a introdução e as referências, este artigo será estruturado em cinco partes suces-
sivas. Na primeira seção, Na trilha aberta pelos amici curiae: construção de 1990 até 2017,
cuida-se de demonstrar alguns dos preceitos normativos que permitiram o acesso à jurisdi-
ção constitucional dos amici. Na segunda parte, Seria possível pluralizar o debate no controle
concentrado de constitucionalidade sem democratizar o acesso ao Supremo Tribunal Federal?,
questiona-se a possibilidade de se atribuir o adjetivo democrático apenas em virtude do au-
mento quantitativo das participações no STF.
Em sequência, no terceiro momento, Participações que constroem e que são constru-
ídas, são demostrados os dados jurisprudenciais que identificam e analisam os fenômenos
da pluralização e da participação social no ambiente da ação direta de inconstitucionalidade
(ADI), para facilitar a compreensão as informações serão demostradas com o auxílio de duas
tabelas (Tabela 01 - Relação amici relator(a); Tabela 02 - Crescimento das participações so-
ciais nas ADI’s).
Ato contínuo, Algumas linhas sobre pluralidade e democracia participativa, retoma-se
a análise com um pouco mais de detalhe referente à pluralidade e à participação no ambien-
te do Estado democrático de direito. Por fim, serão as consignadas as considerações finais.

3 Os procedimentos para a coleta dos dados no sítio eletrônico do STF foram acessados na aba “Processos”,
“ADI, ADC, ADO e ADPF” a base selecionada foi a “ADI” o “Termo de busca” foram as palavras “amicus” e “amici”.

4 Cf. “ANEXO A - População dos julgados analisados (ação direta de inconstitucionalidade - ADI)” Disponível
em: <https://drive.google.com/file/d/1qk1Y_RARbZuU2l6I7b9XCfukoO48Z6If/view?usp=sharing>.

5 Cf. OLIVEIRA, Wagner Vinicius de. A promessa constitucional de participação social: Constituição da Repú-
blica de 1988 e amici curiae sob debate. In: SILVA, Paulo Roberto Coimbra; SOUSA, Simone Letícia Severo e. (Orgs.).
A Constituição trinta anos depois: teoria constitucional, direitos humanos e instituições democráticas. Belo Horizonte:
D`Plácido, 2018. No prelo; OLIVEIRA, Wagner Vinicius de. Os amici curiae na experiência constitucional brasileira:
da pluralidade à participação social. Comunicação oral apresentada no Grupo de Trabalho 3 do “Congresso 1988-2018
O quê constituímos? Homenagem a Menelick de Carvalho Netto nos trinta anos da Constituição de 1988” realizado no dia
04/10/2018 na Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Belo Horizonte/MG; OLIVEIRA, Wagner Vinicius
de. Os amici curiae na experiência constitucional brasileira: da pluralidade à participação social. In: GOMES, David
Francisco Lopes; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de; RIBEIRO, Deivide Júlio. (Orgs.). 1988-2018: O que
constituímos? Homenagem a Menelick de Carvalho Netto nos 30 anos da Constituição de 1988. Belo Horizonte:
Initia Via, 2018, p. 117-127.
160 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

1. NA TRILHA ABERTA PELOS AMICI CURIAE: CONSTRUÇÃO DE 1990 ATÉ 2017


De início, é importante reconhecer o trabalho desenvolvido pelos amici curiae ao
longo dos últimos vinte e sete anos na experiência brasileira e, até mesmo outras possibili-
dades que certamente virão. Isto, contudo, não obsta o exame crítico e aprofundado de sua
atuação nesse período pregresso; muito menos a aceitação irrestrita de que suas intervenções
representam o “pleno acesso ao judiciário” ou o “caráter democratizador da interpretação
constitucional” (AMORIM, 2010, p. 75-89), pela via da participação social.
Antes, porém, cabe destacar os referenciais normativos, constitucional e infracons-
titucional, que em certo sentido viabilizam o acesso dos amici na modalidade de tutela
judicial repressiva desenvolvida pelo controle objetivo de “lei ou ato normativo federal ou
estadual” pela “ação direta de inconstitucionalidade” (BRASIL, 1988) realizada com exclu-
sividade pelo STF, nos termos do art. 102, I, “a”, CRFB/88.
Tem-se, portanto, uma das formas de impor determinados limites ao exercício das
funções legislativas estadual e federal, à medida que “um controle judicial da constitucio-
nalidade serve, em última instância, para a clareza do direito e para a manutenção de uma
ordem jurídica coerente” (HABERMAS, 1997a, p. 302, 1 v).
O chamado controle objetivo de constitucionalidade é disciplinado, entre outros
instrumentos normativos, pela Lei n. 9.868/1999. Legislação infraconstitucional que dispõe
sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade, vale dizer que se trata
da modalidade mais frequente do controle concentrado de constitucionalidade; conforme se
sabe, a partir de um tribunal com competência exclusiva busca-se declarar a conformidade
ou a inconformidade de determinada lei ou ato normativo em face da Constituição da Re-
pública de 1988.
Não se afirma, no entanto, que o tribunal competente detenha o monopólio ou a
exclusividade de “decidir sozinho” sobre questões relevantes levadas a apreciação do controle
concentrado de constitucionalidade. Sob esse ponto de vista, pretende-se afastar do equí-
voco de sustentar que o tribunal possua a “última palavra” sobre os sentidos e alcances da
Constituição. Está dito, implicitamente, que as participações sociais importam e muito na
construção desses sentidos dentro de uma perspectiva democrática.
Pela pesquisa jurisprudencial empreendida, que será detalhada na terceira seção
deste artigo, restou comprovado o crescimento exponencial das participações dos amici,
que antes da edição da sobredita lei atuava amparado por construção jurisprudencial, cuja
frequência das participações era sensivelmente menor, explicada, em parte, pela ausência de
enunciado normativo que assegurasse a “participação de terceiros” no controle concentrado.
Assim, excetuada a possibilidade de realização de audiências públicas, também apon-
tada como um dos mecanismos de participação e de influência da sociedade civil organizada
ANAIS DE CONGRESSO 161

no processo decisório do STF,6 nos termos do art. 7º, § 2º, Lei n. 9.868/1999, compete ao
relator ou a relatora do processo acolher a “manifestação de outros órgãos ou entidades, con-
siderando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes” (BRASIL, 1999).
Considerando a amplitude e o expressivo número de ajuizamento de ação direta de
inconstitucionalidade (ADI), aumentam-se as possibilidades de identificar as intervenções
dos amici e deste modo verificar sua procedência enquanto participação social no controle
abstrato de constitucionalidade. Já é possível adiantar o crescimento dessas intervenções nas
ADI’s, resta, portanto, a tarefa de confirmar (ou não) se os amici ostentam adequada repre-
sentatividade social nesse ambiente.
Ademais, pretende-se trazer para o debate dados contextualizados e atualizados que
permitam compreender a temática das participações no controle concentrado de consti-
tucionalidade brasileiro, bem como verificar o suposto comportamento institucional em
relação a temática abordada. A necessidade das participações sociais, são também para fazer
frente a centralidade estatal constatada no rol de legitimados ativos para a deflagração do
controle concentrado de constitucionalidade (art. 103, CRFB/1988), compostos em sua
ampla maioria pelas “autoridades políticas” (MARIANO, 2009, p. 114).
Frise-se que o desenho institucional adotado em 1988 privilegiou a restrição do
acesso popular à jurisdição constitucional, no sentido acima indicado, contudo, em contra-
partida, reforça-se a necessidade das participações sociais, a partir das possibilidades infra-
constitucionais de intervenções acima indicadas. Por isso, admitir e levar em consideração as
participações sociais cumpre o objetivo de, para além de pluralizar, democratizar os debates
acerca das disputas sobre os sentidos e o alcance da Constituição na República Federativa
do Brasil a partir de uma sociedade aberta, pluralista e inclusiva em conformidade com a
perspectiva democrática do Estado de direito.

2. SERIA POSSÍVEL PLURALIZAR O DEBATE NO CONTROLE CONCENTRADO DE


CONSTITUCIONALIDADE SEM DEMOCRATIZAR O ACESSO AO SUPREMO TRIBUNAL
FEDERAL?
Das linhas passadas surge a indagação que confere o título do presente tópico, ou
seja, a tensão existente entre pluralidade, participação social e democratização. Certo é que
não deveria haver qualquer antagonismo entre estas ideias, à medida que democratizar im-
plica pluralizar e participar, ou vice-versa. Mas, a julgar pela experiência constitucional bra-
sileira, social e institucional, é possível constatar um paradoxo aparente, fato que justifica o
presente questionamento.

6 Também cabe ressaltar que repousam dúvidas sobre essa atribuição em relação as audiências públicas, sobre o
tema, entre outros, conferir: HERDY, Rachel; LEAL, Fernando; MASSADAS, Júlia. Uma década de audiências pú-
blicas no Supremo Tribunal Federal (2007-2017). Revista de investigações constitucionais, Curitiba, v. 05, n. 01, jan./
abr. 2018, p. 331-372.
162 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

Quer dizer então que a pluralidade apenas do ponto de vista numérico não se
harmoniza com os propósitos constitucionais erigidos a partir do Texto Constitucional de
1988, sem, antes, democratizar, de fato, o acesso aos debates do controle concentrado de
constitucionalidade realizados no STF. Em última avaliação, consiste na hipótese de, a um
só tempo, considerar o espaço público institucional deste Tribunal, mediado pelas interven-
ções dos amici curiae, como uma possível chave para pluralizar e democratizar o controle
concentrado de constitucionalidade.
Trata-se de uma tarefa sujeita a avanços e retrocessos, conquistas e dificuldades in-
compatível, portanto, com a linearidade, no sentido cronológico do termo. Igualmente, é
uma realidade que não poderá ser alterada simplesmente pela edição de enunciados positi-
vos (constitucional e infraconstitucional), exige-se, pois, a efetiva inserção das participações
sociais na experiência prática brasileira.
Os desafios não são apenas das capacidades das instituições que arrogam para si a
pecha de democráticas, são, em igual medida, das ditas instituições sociais ou da socieda-
de civil. Convém explicitar os principais argumentos referentes à sociedade civil, segundo
Habermas (1997b, p. 99, 2 v), existe um “núcleo institucional formado por associações e
organizações livres, não estatais e não econômicas, as quais ancoram as estruturas de comu-
nicação da esfera pública nos componentes sociais do mundo da vida.”
De forma exemplificativa, prossegue o citado autor, “A sociedade civil compõe-se
de movimentos, organizações e associações, os quais captam os ecos dos problemas sociais
que ressoam nas esferas privadas, condensam-nos e os transmitem, a seguir, para a esfera
pública política” (HABERMAS, 1997b, p. 99, 2 v).
Destarte, um amicus poderá ser agrupado na categoria social quando apresente
cumulativamente os seguintes elementos: a) personalidade jurídica privada; b) ausência de
pertencimento, direto ou indireto, aos quadros estatais; c) sem finalidade lucrativa; d) indi-
cação do contexto de atuação social. Tais características formam um esboço para delimitação
do objeto de pesquisa não constituem, portanto, a descrição exaustiva e peremptória sobre
as participações sociais (OLIVEIRA, 2018).
Antes de indicar os possíveis impactos das atuações no posicionamento dos Minis-
tros e Ministras do STF cabe delinear aquilo que se entende por impacto das participações
no processo decisório com o fim de analisar como o instituto jurídico-político do amicus
vem sendo utilizado. Em síntese, impactar consiste na efetiva repercussão provocada nas
manifestações do STF pelos dados e argumentos apresentados pelos amici. Vale registrar que
impactar não significa, necessariamente, acolher os argumentos oferecidos, mas, em alguma
medida, influenciar ou conduzir os debates entre os(as) intérpretes oficiais e não-oficias da
Constituição (HÄBERLE, 2013).
De fato, a “participação é uma questão de sopesamento e não uma questão de
tudo ou nada” (ANDRADE, 2018, p. 119), embora a ausência de menção aos critérios
ANAIS DE CONGRESSO 163

que norteiam as dimensões de sopesamento evidencia uma das circunstâncias que dificul-
tam sobremaneira a aplicabilidade prática dessa sugestão teórica, tem-se, portanto, que o
exercício do direito humano e fundamental à participação sujeita-se a variações, avanços
e retrocessos. No mesmo sentido, as participações poderão se manifestar de forma proces-
sual ou extraprocessual.
No momento, cuida-se da forma de participação processual representada pelas in-
tervenções dos amici. Sabe-se que para analisar uma decisão judicial é preciso relacioná-la
com as demais decisões, posicionando-a em face das disposições normativas (constitucionais
e infraconstitucionais) e teóricas, pois, definitivamente não se decide em abstrato. Nessa
tônica, análises pontuais ou desprovidas de qualquer parâmetro de racionalidade deixam de
reconstruir ou de recontar a própria história do controle de constitucionalidade e não res-
tauram o contexto no qual se inserem dentro da experiência constitucional brasileira.
De outra sorte, objetiva-se, mediante a análise jurisprudencial recuperar a “cadeia
da integridade do direito” ou o “DNA do direito” (STRECK, 2012, p. 14) no tocante as
intervenções dos amici. Portanto, pretende-se compreender seus possíveis impactos a par-
tir de uma estratégia que combine “o ‘como?’ com o ‘por que?’” (AARNIO, 1991, p. 14),
mesmo porque, à luz do Estado democrático de direito “os Tribunais devem comportar-se
de maneira tal que os cidadãos possam planejar sua própria atividade sobre bases racionais”
(AARNIO, 1991, p. 26).
Ao tocar no ponto específico da atuação dos amici, permite-se reconstruir a história
institucional das ADI’s, para tanto, casos isolados não se prestam para firmar qualquer posi-
cionamento sobre o tema examinado. De outra sorte, é devido que essa “história institucio-
nal” - entendida como a demonstração do comportamento institucional do STF referente
às participações sociais no controle concentrado de constitucionalidade - esteja presente
nos julgados analisados. Logo, no tópico seguinte será traçado o panorama desse contexto
seguindo os contornos acima delineados.

3. PARTICIPAÇÕES QUE CONSTROEM E QUE SÃO CONSTRUÍDAS7


Mediante a experiência jurisdicional brasileira, formada ao longo de vinte e sete
anos, objetiva-se construir respostas para cinco questões específicas, quais sejam: (i) qual a
origem da lei ou ato normativo impugnado? (ii) quem são os legitimados ativos? (iii) qual a re-
lação de admissão dos amici por relator ou relatora? (iv) quantos e quem são os amici admitidos?
(v) quais foram as decisões apresentadas?

7 Parte das reflexões apresentadas nesse tópico foram trabalhadas de modo introdutório no item 5 A consoli-
dação do compromisso público de participação social: um diagnóstico em variados momentos. OLIVEIRA, Wagner
Vinicius de. A promessa constitucional de participação social: Constituição da República de 1988 e amici curiae sob
debate. In: SILVA, Paulo Roberto Coimbra; SOUSA, Simone Letícia Severo e. (Orgs.). A Constituição trinta anos de-
pois: teoria constitucional, direitos humanos e instituições democráticas. Belo Horizonte: D`Plácido, 2018. No prelo.
164 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

De tal modo, (i) qual a origem da lei ou ato normativo impugnado? Para situar o STF
em seu contexto de atuação, foram identificadas precisamente 70 (50,72%) ações propostas
em face de leis ou atos normativos de origem estadual; ao passo que 68 (49,28%) das ações
analisadas possuem objeto de matriz federal.
Percebe, portanto, o equilíbrio, no que toca a origem das leis e atos normativos
impugnados perante o STF, ou seja, a partir do recorte proposto, as participações dos amici
estão praticamente em condições de igualdade nas ações que versaram sobre leis e atos nor-
mativos federais e estaduais.
Todavia, quando se desloca o foco para a propositura da ação judicial, (ii) quem são
os legitimados ativos?, o quadro se modifica substancialmente, isto porque, a PGR iniciou 34
(24,63%) ações. Ao passo que as participações sociais não acompanham, nem de longe, a
deflagração do processo por sindicato (ADI n. 5.450), confederações (ADI’s n. 5.357; 4.762;
4.697; 3.937; 3.470; 3.406; 3.357), associações (ADI’s n. 5.062; 5.035; 4.756; 4.747) e
pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (ADI’s n. 4.772; 4.650; 4.414;
3.880; 3.614; 3.154), que totalizaram 18 (13,04%) ações nesse contexto.
No entanto, conforme já se disse, a julgar pelo desenho institucional adotado pela
Constituição da República de 1988 esse cenário já era até certo ponto previsível. Outro pon-
to de análise consiste em compreender (iii) qual a relação de admissão dos amici por relator
ou relatora?

TABELA 01 - RELAÇÃO AMICI RELATOR(A)


AMICI
N. % MIN. RELATOR(A) DATA DE INGRESSO NO STF
ADMITIDOS
01 17 12% Luiz Fux 03/03/2011
02 15 11% Marco Aurélio 13/06/1990
03 15 11% Gilmar Mendes 20/06/2002
04 10 7% Cármen Lúcia 21/06/2006
05 9 7% Rosa Weber 19/12/2011
06 8 6% Roberto Barroso 26/06/2013
07 8 6% Ricardo Levandowski 16/03/2006
08 7 5% Edson Fachin 16/06/2015
09 6 4% Dias Toffoli 23/10/2009
10 5 4% Celso de Mello 17/08/1989
11 3 2% Alexandre de Moraes 22/03/2017
Fonte: elaborado pelo autor com dados extraídos do sítio eletrônico do STF.

Apesar de a admissão dos amici depender majoritariamente do entendimento pes-


soal do relator ou da relatora do processo, deve-se ter em mente as especificidades da maté-
ria debatida. Portanto, para que se possa indicar as tendências desse comportamento cabe
observar a diferença entre a data de ingresso dos Ministros e Ministras no STF, fato que
explica, em parte, a discrepância dos dados apresentados na tabela supra.
ANAIS DE CONGRESSO 165

Ressalte-se que a compreensão dos dados acima apresentados devem ser realizada
de forma articulada com os demais dados e contexto de incidência, sob pena de incorrer no
equívoco interpretativo de considerar que a pluralidade numérica é numericamente propor-
cional à pluralidade de ideias.
De agora em diante, o foco recai sobre (iv) quantos e quem são os amici admitidos?
A partir dos 483 (quatrocentos e oitenta e três) amici, que participaram das 138 (cento e
trinta e oito) ADI’s analisadas, precisamente 177 (36,65%) destes possuem origem social;
pelo menos 306 (63,35%) “não possuem origem social”.
Alguns pontos sobre os critérios utilizados para a classificação da origem social
precisam ser minimamente explicitados. Assim, existem alguns paradoxos. Em princípio
os sindicatos e confederações possuem origem social, salvo o patronal ou de determinados
servidores públicos, a exemplo do Sindicato dos Delegados de Polícia Civil (ADI n. 1.470)
ou do Sindicato dos Notários e Registradores (ADI n. 3.773).
No mesmo sentido, as associações privadas possuem origem social, excetuadas a As-
sociação do Ministério Público de Contas (ADI n. 3.736), das Companhias de Energia Elé-
trica (ADI n. 4.902), dos Shopping Centers (ADI n. 4.862), dos Defensores Públicos (ADI
n. 4.163), dos Magistrados Brasileiros (ADI n. 3.889), entre outros exemplos possíveis.
Não se cogita afirmar que essas participações sejam todas a priori ilegítimas, mas,
para fazer avançar e democratizar o controle concentrado de constitucionalidade é necessário
incluir outros agentes e as perspectivas sociais. Idênticas considerações, se fosse o caso, pode-
riam ser replicadas as participações majoritariamente sociais que fossem capaz de neutralizar
ou esvaziar o conteúdo e a atuação de outros seguimentos nesse ambiente judicial. De fato,
nessas duas hipóteses constrói-se a pluralidade de agentes, sem, contudo, aproximar-se da
participação democrática efetiva.
De toda sorte, (v) quais foram as decisões apresentadas? Das ações analisadas, 42 (30%)
foram julgadas improcedentes, 37 (27%) procedentes, 36 (26%) encontram-se aguardando
julgamento, 23 (17%) foram julgadas parcialmente procedentes. Mais uma vez, se percebe
um relativo equilíbrio numérico no resultado dos julgamentos em abstrato; condição que
poderá ser alterada quando da análise de conteúdo das decisões judiciais prolatadas.
Quantitativamente não é de todo questionável atribuir aos amici a função de plu-
ralização dos debates no STF, ou seja, diretamente ligada ao número de participantes e a
frequência das participações admitidas; todavia, se controverte acerca da construção de um
espaço público nesse ambiente especialmente, porque se deve levar em consideração as efe-
tivas contribuições e impactos dos amici.
Toma-se como exemplo as participações que decorrem de categorias ligadas aos
servidores públicos, principalmente do Judiciário, ou de atividade econômica, tais parti-
cipações estão em conformidade com os fenômenos identificados em trabalhos anteriores
166 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

(BENVINDO, COSTA, 2014; BORGES, CÂMARA, VILLAROEL, 2016; OLIVEIRA,


2016; entre outros), isto é, revelam a prevalência do aspecto formal8 e a baixa frequência das
pautas sociais nas ações do controle concentrado de constitucionalidade brasileiro, confir-
mando as conclusões apresentadas nesse sentido.
Talvez por isso, Carvalho Netto (2003, p. 163) já considerava o traço característico
dos mais de duzentos anos de tradição do controle difuso de constitucionalidade consiste
em fazer “com que qualquer um de nós seja intérprete autorizado da Constituição”. Por
outro lado, também é possível identificar manifestações que partem da abertura conferida
pelo controle abstrato de constitucionalidade mesclada com a participação social asseme-
lhando-o a uma “ação popular de inconstitucionalidade, pois permite que qualquer um do
povo logre induzir um dos entes legitimados a propor a ação direta de inconstitucionalidade
pretendida.” (BRASIL, 2002, p. 78, grifos do autor).9 Esta expectativa se apresenta com
uma hipótese de difícil constatação empírica e não foi possível identificar qualquer indício
de sua existência.
De se dizer, ainda, que as práticas institucionais de um dos órgãos juridicamente
autorizados para interpretar a Constituição da República de 1988 adquirem especial relevo
para avaliar empiricamente quais são os atores que figuraram como amici nas ADI’s ao longo
do período analisado.
Por isso, em que pese as possibilidades de admissão, na qualidade de amici, de Es-
tados-membros e do Distrito Federal, de partidos políticos, do Ministério Público estadual,
de tribunal de justiça, entre outros, acredita-se que estes exemplos cumprem, de modo sa-
tisfatório, a função de pluralizar o debate, ainda que em pautas específicas, mas, passam ao
largo das participações sociais.
Assim, grosso modo, a maioria dos amici refletem diferentes interesses em disputa,
isto é, atuam em pautas corporativas, estatais, político-partidárias, entre outras que corrobo-
ram o regime de perpetuação no exercício no poder de determinados grupos hegemônicos.
Doutro lado, ainda que deficiente, se percebe a crescente e controversa atuação social.
Exceções ficam a cargo da atuação acadêmica (ADI’s n. 5.617; 5.525; 4.815; 4.269),
de movimentos estudantis (ADI n. 5.108), ambientais (ADI’s n. 4.903; 4.902; 4.901), LGB-
TI’s (ADI’s n. 4.277; 4.275; 4.269), grupos religiosos (ADI n. 4.439), conforme se detalha
na tabela infra:

8 Uma objeção precisa ser levantada. Isto porque as possibilidades de declaração por inconstitucionalidade for-
mal (subjetiva ou objetiva) são mais recorrentes, inclusive no próprio Texto Constitucional de 1988, que, por sua vez,
reflete na experiência constitucional brasileira.

9 Essa afirmação deve ser atribuída a Gilmar Ferreira Mendes, Presidente da Comissão encarregada de elaborar a
primeira Edição do Manual de Redação da Presidência da República.
ANAIS DE CONGRESSO 167

TABELA 02 - CRESCIMENTO DAS PARTICIPAÇÕES SOCIAIS NAS ADI’S


AUTOS DO N. DE AMICI
N. MIN. RELATOR(A) DATA DE DISTRIBUIÇÃO
PROCESSO N. SOCIAIS
01 4.903 Luiz Fux 21/01/2013 12
02 4.902 Luiz Fux 21/01/2013 12
03 4.901 Luiz Fux 21/01/2013 12
04 4.815 Cármen Lúcia 05/07/2012 07
05 4.650 Luiz Fux 05/09/2011 05
06 4.439 Roberto Barroso 02/08/2010 18
07 4.277 Ayres Britto 22/07/2009 06
08 4.275 Marco Aurélio 21/07/2009 06
09 4.269 Ricardo Levandowski 09/07/2009 07
10 4.066 Rosa Weber 02/04/2008 07
11 3.772 Ricardo Levandowski 10/08/2006 14
12 3.406 Rosa Weber 11/02/2005 05
13 3.510 Roberto Barroso 31/05/2005 05
Fonte: elaborado pelo autor com dados extraídos do sítio eletrônico do STF.

Identifica-se um crescente movimento de transição em curso. São contribuições


objetivas que não se limitam apenas em apresentar outras narrativas, mas, buscam promo-
ver o atendimento a uma demanda social específica (participação efetiva), que, por sua vez,
trazem consigo a promessa de maior transparência aos procedimentos jurisdicionais.
Em outras palavras, compete analisar não apenas o aspecto numérico - embora seja
necessário (porém não suficiente) o aumento do quantitativo das participações social nas
discussões acerca da constitucionalidade das leis e atos normativos - mas, aquilo que se busca
é garantir que as “vozes da sociedade” (BUZINGNANI, 2011, p. 121-127) ecoem nas ruas
e nos tribunais.
Por fim, cabe acrescentar que o “princípio de igual participação não exige que todas
as pessoas sejam dedicadas as atividades políticas, embora todas tenham direito a esse enga-
jamento” (ANDRADE, 2018, p. 114). E nesse ponto o instituto jurídico-político dos amici
se sobressai ao conciliar a necessidade com a vontade de participação, isto porque, conforme
se sabe as participações dessa natureza podem ser (i) espontâneas ou autoprovocadas, (ii)
requeridas pelo relator ou relatora do processo ou (iii) decorrerem da competência fiscaliza-
tória atribuída por lei.

4. ALGUMAS LINHAS SOBRE PLURALIDADE E DEMOCRACIA PARTICIPATIVA


Neste tópico concentra-se os esforços para sintetizar aquilo que se entende por plu-
ralidade e democracia participativa. Tais concepções preliminares se prestam a demonstra-
ção dos pressupostos teóricos destes termos polissêmicos. Em igual medida refletem acerca
da temática estritamente ligada ao Estado democrático de direito, nesse sentido, descabe a
exposição conceitual estéril dos substantivos pluralidade e democracia.
168 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

Assim, conforme entendimento corredio tem-se que pluralidade está diretamente


determinada pelo número de participações. Outrossim, se cogita a hipótese de que quanto
maior for o número de participantes, mais democrático será o processo. Cabe, no entanto,
apresentar alguns contrapontos.
Primeiro, em termos de cognição judicial e extrajudicial, o aspecto quantitativo será
um dos elementos que compõe a pluralidade, embora importante, o quantitativo numérico
daqueles e daquelas que participam da relação processual não se presta como elemento de-
terminante do grau democrático de uma decisão judicial (participação e legitimidade).
Quanto maior for o número de sujeitos processuais envolvidos na fase cognitiva
ou pré-decisional, mais acertada será a decisão judicial prolatada é uma premissa que não se
sustenta; sob pena de coroar a regra majoritária como “única resposta” adequada aos pro-
cessos democráticos. Portanto, o aspecto quantitativo é apenas e tão-somente um critério
introdutório para a análise da pluralidade.
O segundo elemento constitutivo que se sugere é a diversidade. Dispensa-se muito
esforço para associar as ideias de pluralidade e de diversidade. Diversidade tomada em seu
duplo sentido: (i) subjetivo e (ii) teórico-objetivo. Sem incidir no equívoco acima apontado,
tem-se que a diversidade, na máxima medida possível, de sujeitos processuais, que podem
ser pessoas naturais ou jurídicas, está mais próxima da ideia de pluralidade. Mas, antes, é
devido que essa pluralidade e diversidade se traduza nos sujeitos processuais envolvidos, que
não se satisfaz apenas com a divisão entre intérpretes estatais e sociais, exige-se diversidade
interna entre estes grupos.
Em seu sentido teórico-objetivo diversidade deve abarcar, também na máxima me-
dida possível, a defesa de distintos pontos de vista, ideias ou pensamentos. Daí a diversidade
de percepções sobre as questões levadas até a apreciação do controle concentrado de consti-
tucionalidade. Por outro lado, a singularidade de sujeitos processuais, isto é, um rol pré-fi-
xado de agentes interpretativos da Constituição (HÄBERLE, 2013) ou a unidade teórica,
se é que isso seja possível, entre os diversos agentes que participaram da cognição judicial
termina por prejudicar a pluralidade ora delineada. Portanto, para que haja pluralidade tam-
bém é devido que haja pluralidade de ideias.
O terceiro elemento que a compõe é a possibilidade de dissenso, quer dizer, a real
possibilidade de apresentar argumentos contrários, até mesmo contraditórios, em relação a
corrente dominante. O diverso é o primum mobile do dissenso que, por sua vez, compõe os
aspectos, inafastáveis e inerradicáveis, daquilo que é verdadeiramente democrático. Ponde-
ra-se, no entanto, não se deve abrir divergência pela mera divergência. Um capricho inacei-
tável. Mas, a necessidade de que os muitos desacordos presentes na sociedade civil brasileira
surjam na interpretação judicial.
Sobre o tema, é emblemático o entendimento apresentado por Mendes (2013, p.
ANAIS DE CONGRESSO 169

153, tradução nossa),10 ao sustentar que “Um tribunal plural, muito mais do que simples-
mente numeroso, simboliza o reconhecimento de que a interpretação e aplicação do direito
é um empreendimento que inclui diferentes tipos de vozes.”
Em termos de democracia participativa a questão crucial a ser enfrentada nessa
parte derradeira do artigo será compreender, ainda que minimamente, em que consiste os
sentidos e alcances desta locução demasiadamente ampla. Caso seja utilizada de forma des-
contextualizada perderá seu potencial significativo, caindo, portanto, em um chavão vazio.
Contíguo a isso desvelar o interesse jurídico para fins de intervenção de terceiros, em geral,
e do amicus curiae, em especial, no sentido das implicações no âmbito do controle concen-
trado de constitucionalidade.
Na atual prática constitucional brasileira, os procedimentos anteriores as tomadas
de decisão judicial (fase pré-decisional) não permanecem democraticamente abertos, pois,
em sua maioria, permanecem despidos das participações sociais conforme visto no terceiro
tópico. As pré-compreensões ou aquilo que subjaz, implicitamente velado, torna-se rele-
vante à medida que é capaz de atribuir sentidos para um tribunal que paradoxalmente se
encontra aberto as participações e fechado para o social.
Ainda mais, quando o recorrente argumento de que os amici conferem um “colo-
rido diferenciado” ao processo, conforme encontrado na população de julgados analisados
(ADI’s n. 3.998; 3.660; 3.614; 3.599; 3.538 e 2.548), não foi identificado no espectro ana-
lisado. Caso o suposto colorido esteja presente, torna-se imprescindível acrescentar “outras
cores” ou a efetiva utilização das cores já existentes para que se possa imprimir decisões ju-
dicias compostas pelo colorido social e democrático.
Esta questão é ainda mais aguda do que a “condução de uma educação/correção
ética” da coletividade (sociedade) pela jurisdição constitucional preponderante em face de
uma “cidadania imatura” (OLIVEIRA, 2001, p. 70). Por outra ótica, parece acertado que
apenas alguns seguimentos específicos são considerados “imaturos” ao ponto de o controle
de constitucionalidade prescindir de suas participações.
A ideia central repousa na distinção ou sobreposição de determinados seguimentos
em relação a outros (sociais) que, via de regra, não são suficientemente justificados na decisão
irrecorrível do relator ou relatora do processo. Imprescindível consignar que essa dupla con-
dição: necessidade de deferimento e irrecorribilidade, foi a posição legislativa manifestada
em 1999 (art. 7º, § 2º, Lei n. 9.868/1999) e em 2015 (art. 138, caput, Lei n. 13.105/2015,
Código de Processo Civil), bem como no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal
(art. 13, XVIII. Atualizado com a introdução da Emenda Regimental n. 29/2009).
Embora a impossibilidade recursal “não seja algo consolidado (visto que ainda há
conflito entre os Ministros do STF sobre o tema, ora permitindo, ora negando tal possibi-
10 No original: “A plural court, even more than a simply numerous one, can symbolize the recognition that in-
terpreting and applying the law is an enterprise that includes different kinds of voices.” (MENDES, 2013, p. 153).
170 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?

lidade)”, para Fernandes (2018, p. 1.598) é cabível a interposição de agravo regimental na


hipótese de indeferimento da admissão do amicus curiae.
Contudo, até o presente momento, o mais recente posicionamento sobre o tema,
exarado no bojo do recurso extraordinário n. 602.584/DF, na sessão extraordinária realizada
em 17/10/2018, por maioria de votos, o plenário do STF entendeu pela impossibilidade de
provimento do recurso interposto em face da decisão denegatória de inadmissão do amicus.
De certo, o tema ainda está longe de ser pacificado e assim, essa e outras decisões são apenas
fotografias de um momento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo do artigo foi questionado o papel desempenhado pelas participações dos
amici curiae no controle concentrado de constitucionalidade ao longo dos últimos vinte e
sete anos da experiência constitucional brasileira. Uma das respostas encontradas, pela aná-
lise dos dados, indica o crescimento das participações sociais nesse ambiente, porém, majo-
ritariamente desempenhados por agentes estatais e corporativos.
Como consequência, parece ser possível afirmar uma representação majoritária dos
ramos estatais-corporativos, as pautas sociais não aparecem ou, quando muito, de forma de-
ficitária. A participação efetivamente social, de origem e pauta reivindicatória, geralmente se
revela coadjuvante ou episódica no controle concentrado de constitucionalidade brasileiro,
mas, a bem da verdade, vem crescendo nos últimos tempos. Os dados apresentados na tabela
02 sustentam essa afirmação.
Por isso, até certo ponto, o STF é deferente as participações dos amici, mas, quando
se pergunta sobre quais são os agentes que participaram ou participam das ADI’s chega-se a
outras conclusões. Das hipóteses inicialmente testadas, apenas uma subsiste, ou seja, os amici
a partir dos recortes propostos pela pesquisa, de fato, pluralizam quantitativamente a cognição
judicial, proporcionando uma relativa “abertura” da jurisdição constitucional brasileira.
Todavia, o método de análise quantitativa empregada na produção deste artigo é
adequado para constatar uma visão abrangente (global) da atuação dos amici, revela-se insu-
ficiente para afirmar que a o STF, como um todo, ou que seus Ministros e Ministras atuem
para que a cognição constitucional seja democrática e participativa. Mas, para se chegar até
as razões é preciso ir além dos números, sob pena de acolher como “verdade peremptória” a
fotografia de um momento da história constitucional brasileira.

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