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Cattoni de Oliveira,
David F. L. Gomes & Deivide Júlio Ribeiro
ORGANIZAÇÃO
1988-2018:
o que constituímos?
HOMENAGEM A MENELICK DE CARVALHO NETTO
NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO DE 1988
ANAIS DE CONGRESSO
Belo Horizonte
2018
1988-2018:
o que constituímos?
HOMENAGEM A MENELICK DE CARVALHO NETTO
NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO DE 1988
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial deste livro ou de quaisquer umas
de suas partes, por qualquer meio ou processo, sem a prévia autorização do Editor. A violação dos direitos
autorais é punível como crime e passível de indenizações diversas.
CDU: 34(061.3)
1988-2018:
o que constituímos?
HOMENAGEM A MENELICK DE CARVALHO NETTO
NOS 30 ANOS DA CONSTITUIÇÃO DE 1988
COORDENAÇÃO GERAL:
Marcelo A. Cattoni de Oliveira,
David F. L. Gomes
CONSELHO CIENTÍFICO:
Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira
Bernardo Gonçalves Alfredo Fernandes
David F. L. Gomes
Emílio Peluso Neder Meyer
Maria Fernanda Salcedo Repolês
Thomas da Rosa de Bustamante
COMISSÃO ORGANIZADORA:
Amós Silvestre dos Reis
Almir Megali Neto
Deivide Júlio Ribeiro
Felipe Capareli
Giulia Maria Giusti Athayde Pinto
Henrique Pereira de Queiroz
João Pedro Lopes Fernandes
Jéssica Holl
Mariana Rezende de Oliveira
Marina Leite
Raquel Possolo
Rayann K. Massahud de Carvalho
ANAIS DE CONGRESSO 5
APRESENTAÇÃO
No momento em que celebra seus 30 anos, a Constituição de 1988 vê-se sob um
ataque advindo de múltiplos lados. Se esse ataque possui, certamente, uma força e uma ar-
ticulação inéditas, não é a primeira vez que isso ocorre: desde antes mesmo de sua promul-
gação em 5 de outubro, o tom emancipatório que nela se manifesta já levantava resistências
variadas, sendo o célebre discurso do então presidente José Sarney uma espécie de metoní-
mia de um processo de crítica destrutiva que acompanharia a Constituição ao longo de sua
vigência. Por outro lado, a réplica presente no discurso de Ulysses Guimarães também pode
ser lida como uma metonímia, uma metonímia da continuada luta em sua defesa que acom-
panharia igualmente a vida dessa Constituição.
Se a Constituição de 1988 é luta, luta contínua em sua defesa, nada mais adequado
do que homenagear, em um evento que se apresenta como uma etapa a mais nessa luta, um
intelectual que sempre sustentou exatamente isto: Constituição é luta, luta constante por
sua defesa, início de um projeto que se efetiva no tempo apenas se nos engajamos como ci-
dadãs e cidadãos ativas e ativos nessa luta.
É com esse sentido que foi realizado o congresso: “1988-2018: O QUE CONS-
TITUÍMOS? Homenagem a Menelick de Carvalho Netto nos 30 anos da Constituição de
1988”. Entre as homenagens, estão aqui os trabalhos apresentados no evento, em forma de
Caderno de Resumos.
6 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
SUMÁRIO
CONTRIBUIÇÕES DE UMA TEORIA CRÍTICA DA CONSTITUIÇÃO PARA A COMPREENSÃO 9
DO CONTROLE JURISDICIONAL DO PROCESSO DE IMPEACHMENT
ALMIR MEGALI NETO
PRECARIADO E CIDADANIA: 25
APONTAMENTOS SOBRE A CONSTITUIÇÃO DE DIREITOS SOCIAIS
ÂNGELA VITÓRIA ANDRADE GONÇALVES DA SILVA & OTÁVIO LOPES DE SOUZA
OCUPAÇÃO DANDARA: 53
LITIGÂNCIA ESTRATÉGICA E A ARTICULAÇÃO JURÍDICA-POLÍTICA NAS LUTAS DA CLASSE TRABALHADORA PRECARIZADA
FERNANDA VIEIRA OLIVEIRA, ISABELA DE ANDRADE PENA MIRANDA CORBY & MARCELO ANDRADE CATTONI DE OLIVEIRA
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo apresentar as contribuições de uma Teoria
Crítica da Constituição para a compreensão do controle jurisdicional do processo de impe-
achment. Para tanto, são considerados os recentes estudos produzidos pela Ciência Política
para demonstrar que o impeachment surgiu como um novo padrão de instabilidade política
na América Latina. Em seguida, é feita uma distinção entre a recepção do instituto pela tra-
dição constitucional brasileira em relação à norte-americana, evidenciando que, no consti-
tucionalismo brasileiro, os contornos do impeachment sempre contaram com a atuação da
jurisdição constitucional como instrumento apto a reparar eventuais abusos cometidos pelo
Congresso Nacional.
Palavras-chave: Controle de constitucionalidade; Impeachment; Instabilidade po-
lítica; Teoria Crítica da Constituição.
INTRODUÇÃO
Desde a abertura do processo de impeachment em face da ex-Presidente da Repú-
blica Dilma Rousseff, “formou-se no Brasil um campo propício para a teoria constitucional
rever aquele instituto” (BACHA E SILVA; BAHIA; CATTONI DE OLIVEIRA, 2017, p.
16). A despeito de se tratar de um instituto cuja ativação causa grandes repercussões para as
instituições democráticas, que sempre esteve presente nas constituições republicanas brasi-
1 Mestrando em Direito pelo Programa de Pós Graduação em Direito da UFMG. Linha de Pesquisa: História,
Poder e Liberdade. E-mail: almir_megali@hotmail.com. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
10 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
leiras,2 poucos são os trabalhos que têm em mira a compreensão deste fenômeno constitu-
cional a partir do papel político-institucional do Judiciário, principalmente no que se refere
a uma possível capacidade de mediação entre os demais poderes.3 Dessa maneira, pode-se
dizer que o tema passou a ser objeto de discussões, divergências e enfrentamentos, confor-
mando uma agenda de pesquisa a ser explorada.
Muito se discutiu se o Supremo Tribunal Federal (STF) teria competência para
apreciar as questões que foram levadas à sua jurisdição no curso do processo de impeach-
ment da ex-Presidente Dilma Rousseff. As alegações eram no sentido de que as matérias re-
lativas ao processo de impeachment consistiram questões políticas4 e que, em virtude disso,
não deveriam ser apreciadas pelo Tribunal. Para os defensores desta linha de raciocínio, a
questão representaria uma verdadeira judicialização da política, no sentido da instauração
de um governo de juízes.5 A questão teria ficado clara quando do julgamento do mandado
de segurança n. 34.441 (MS n. 34.441), no qual a ex-Presidente intentava a anulação da
decisão proferida pelo Senado Federal, quando o Tribunal se limitou a dizer que sua par-
ticipação se limitaria à definição do rito do processo, sendo-lhe vedado apreciar quaisquer
questões que envolvessem direta ou indiretamente o mérito da acusação, ao argumento de
que os senadores da república seriam os únicos juízes constitucionais do caso.
Sendo assim, é preciso questionar se há espaço para apreciação jurisdicional de
questões afetas ao processo de impeachment ou, se pelo contrário, tais questões se inseririam
naquilo que se costuma denominar questões políticas. Aqui, pretende-se demonstrar que,
na experiência constitucional brasileira, há um legítimo espaço de atuação para o Poder Ju-
diciário, em especial, para o STF, no curso do processo de impeachment instaurado em face
do Presidente da República. Isso porque, com Bacha e Silva, Bahia e Cattoni de Oliveira
(2017, p. 95-104), acredita-se que o impeachment está diretamente relacionado ao estudo
do princípio da separação dos Poderes, do sistema presidencialista de governo e, em última
instância, da soberania popular, com o mote do constitucionalismo e suas relações com a
2 Um esclarecimento quanto à utilização do termo constituição se faz necessário. Quando o termo for empre-
gado de modo genérico, sem particularizar de qual constituição se está a falar, utilizar-se-á o termo com a letra “c”
minúscula. Quando se fizer referência a uma constituição específica o termo será escrito com a letra “c” maiúscula.
3 Para fins deste trabalho, propõe-se a adoção da definição de Salcedo Repolês da expressão, sintetizada na se-
guinte passagem: “Outro sentido para o qualificativo ‘político’ usado para a Corte é o que chamaremos aqui de políti-
co-institucional, que ajuda a afirmá-la como um terceiro poder capaz de equilibrar os poderes legislativo e executivo.
Esse sentido que retira aquela semântica negativa do partidarismo, solidifica o Supremo Tribunal Federal como órgão
de consolidação da República e da democracia” (SALCEDO REPOLÊS, 2010, p. 68).
4 A doutrina das questões políticas é uma criação da jurisprudência da Suprema Corte norte-americana para
determinar quais matérias poderão ou não ser judicializadas. Para a Corte, certas questões, em razão de seu caráter emi-
nentemente político, não poderiam ser apreciadas pelos órgãos jurisdicionais, em nome de uma suposta autorrestrição
dos poderes dos juízes. Criada em Marbury v. Madison, a doutrina das questões políticas foi aplicada pela primeira vez
em Luther v. Borden, julgado pela Suprema Corte daquele país em 1849. Cf. SAMPAIO, 2002, p. 319-339.
democracia, razão pela qual o alcance do instituto não deve ficar à disposição de maiorias
parlamentares eventuais.
A apreciação jurisdicional da matéria aqui defendida não implica em uma revisão
do mérito da decisão proferida pelo Senado Federal, como se passa em algumas experiências
constitucionais compradas, principalmente naquelas que possuem Legislativo unicameral,
nas quais a Corte Constitucional possui a palavra final sobre a condenação ou não do pre-
sidente da república (SAN JUAN; TIOJANCO, 2016).6 Pelo contrário, o propósito deste
trabalho é evidenciar que o STF tem um importante papel a desempenhar no curso do
processo de impeachment do presidente da república, de modo a evitar que o instituto seja
manejado inadequadamente pelo Congresso Nacional. Defende-se, portanto, que o STF
deve atuar no sentido da garantia da justa causa para deflagrar o processo, dos direitos do
acusado à ampla defesa, ao contraditório e ao devido processo legal em todas as suas eta-
pas, no intuito de questionar se o mero seguimento das etapas do procedimento previstas
na Constituição, na Lei n. 1.079/50 e nos Regimentos Internos das Casas Legislativas seria
capaz de conferir legitimidade ao processo.
6 Exemplares neste sentido são as Constituições da Albânia, da Coreia do Sul, da Hungria e da República Tche-
ca. Para maiores detalhes, cf. SAN JUAN; TIOJANCO, 2016.
7 Tratam-se, respectivamente, dos impeachments de Fernando Collor de Melo em 1992 e de Dilma Vana Rou-
sseff em 2016.
12 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
8 Os casos analisados pelo cientista político argentino foram: Fernando Collor de Mello (Brasil, 1992), Carlos
Andrés Pérez (Venezuela, 1993), Ernesto Samper (Colômbia, 1996), Abdalá Bucaram (Equador, 1997), Raúl Cubas
Grau (Paraguai, 1999) e Luis González Macchi (Paraguai, 2002).
9 Interessante notar que os próprios fundadores da incipiente república norte-americana temiam o uso faccioso
do impeachment, conforme se depreende da leitura do artigo 65 de O federalista. Sobre isso, Cf. LEVINSON, 2015,
p. 245-249.
10 Cf. MARSTEINTREDET; KASAHARA, 2018, p. 30-54. À luz do caso brasileiro de 2016, os autores pro-
põem a adoção de alguns mecanismos institucionais em regimes presidencialistas latino-americanos destinados a fa-
cilitar a resolução de impasses político-institucionais entre o Executivo e o Legislativo, para que a interrupção do
mandato presidencial se dê de uma maneira menos tensa, isto é, sem controvérsias do ponto de vista da legitimidade
e da legalidade dos processos de impeachment e sem os custos dos elevados níveis de polarização política, comumente
observados nos processos de impeachment até então deflagrados na região.
ANAIS DE CONGRESSO 13
novo regime.11 Contudo, para as formas golpistas não tradicionais, a manutenção de apa-
rências democráticas seria fundamental. O problema é que, enquanto um golpe tradicional
dá certo ou fracassa em questão de horas, um golpe do segundo tipo se prolonga no tempo,
sendo mais difícil perceber quando ele de fato acontece (BERMEO, 2016, p. 05-19). No
último caso, enquanto se espera por um golpe real, o golpe gradual já pode estar em curso
há tempos, sendo, inclusive, mais difícil se opor a ele do que à modalidade tradicional dos
golpes. Por tais razões, e, considerando o contexto histórico e regional latino-americano,
faz-se preciso investigar qual papel político-institucional pode ser desempenhado pelo STF
em relação ao controle do devido processo legal do processo de impeachment, a fim de evi-
tar que o instituto seja utilizado de maneira inadequada, isto é, como um mecanismo para
deposição do Presidente da República sem que reste demonstrada a ocorrência de um crime
de responsabilidade cuja autoria possa ser atribuída ao mais alto chefe político da nação.
12 A pesquisa foi realizada tendo como base os seguintes recortes jurisprudenciais: (i) institucional; (ii) temático;
(iii) processual; (iv) temporal; e (v) subjetivo. Nesse sentido, averiguou-se no sítio eletrônico oficial do STF (critério
institucional), todas as oportunidades nas quais o Tribunal fora instado a se manifestar sobre a regularidade dos atos
praticados pelas autoridades responsáveis pela condução do processo de impeachment instaurado em face da ex-Presi-
dente Dilma Rousseff (critério temático), nos mandados de segurança impetrados durante a tramitação do feito, única
via processual adequada para formulação de questionamentos deste teor perante aquele Tribunal (critério processual),
no período compreendido entre o recebimento da denúncia pelo então presidente da Câmara dos Deputados, Depu-
tado Eduardo Cunha, em dezembro de 2015, até a sessão de julgamento ocorrida no Senado Federal em 31 de agosto
de 2016 (critério temporal), contemplando os nomes dos protagonistas na tramitação do processo – os presidentes da
Câmara dos Deputados, do Senado Federal e do STF; os presidentes bem como os relatores das comissões especiais do
impeachment em cada uma das Casas do Congresso Nacional; a própria ex-Presidente Dilma Rousseff e seu advogado
de defesa durante todo o processo, José Eduardo Cardozo (critério subjetivo).
14 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
13 Houve substituição do relator nos termos do art. 38 do Regimento Interno do STF sendo designado para re-
latoria do caso o Ministro Alexandre de Moraes, em razão do acidente aéreo ocorrido no dia 19/01/2017 que vitimou
fatalmente o então Ministro Relator Teori Zavascki. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProces-
soAndamento.asp?incidente=5062276>. Acesso em: 14 jul. 2017.
ANAIS DE CONGRESSO 15
14 Referida ação tinha o objetivo de analisar a compatibilidade do rito de impeachment de Presidente da Repú-
blica previsto na Lei n. 1.079/50 com a CRFB/88.
16 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
15 Cf. BERGER, 1973, p. 86-93; GERHARDT, 2000, p. 103-111; SUNSTEIN, 2017, p. 154-155; TRIBE, 2000, p. 152-153.
ANAIS DE CONGRESSO 17
16 Aqui, a Suprema Corte se preocupou em demonstrar que o caso Nixon não divergia do precedente sobre
controle jurisdicional dos atos políticos firmado em Powell v. McCormack, julgado em 1969. Sobre isso, em língua
portuguesa, cf. GALUPPO, 2016, p. 171-179; e CAMARGO, 2016.
19 Como já visto neste trabalho, trata-se da Lei n. 1.079/50, recepcionada em parte pela Constituição de 1988,
conforme decidido pelo STF no julgamento da ADPF n. 378.
ANAIS DE CONGRESSO 19
CONCLUSÃO
Como diagnosticado pelos recentes estudos desenvolvidos pela Ciência Política,
o impeachment presidencial tem se apresentado como um novo padrão de instabilidade
política na América Latina. As prematuras quedas presidencias na região têm se dado em
razão de embates entre Executivo e Legislativo e da pressão popular pela saída dos presi-
dentes, geralmente apontados como responsáveis pelo quadro de crise política e econômica
atravessada pelos países da região, pouco importando o fundamento jurídico utilizado para
deflagrar o processo e a observância das garantias do acusado no curso do feito. Sendo assim,
a compreensão do espaço que pode ser ocupado pelo STF no que diz respeito à apreciação
jurisdicional de questões afetas ao processo de impeachment é fundamental. Para tanto, é
preciso ter em vista que, longe de ser uma “jabuticaba brasileira”,21 a atuação do STF em
relação ao controle dos atos perpetrados pelas autoridades parlamentares responsáveis pela
condução do processo de impeachment é nada mais do que uma distinção da matriz nor-
te-americana do impeachment que, por sua vez, também é distinta da matriz britânica, no
longo processo de recepção pelo qual passou o instituto desde suas origens no Direito inglês.
À luz do MS n. 34.441, constatou-se que o STF se absteve de interveir no curso do
processo de impeachment por razões de ordem política. Dessa maneira, acredita-se que uma
21 Expressão utilizada para designar eventos inusitados da cena política nacional à jabuticaba, fruta silvestre que
só existe no Brasil.
22 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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titucional brasileira. 2. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.
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BERMEO, Nancy. On democratic backsliding. In. Journal of Democracy, Vol. 27, n. 01,
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BLACK JR, Charles L. Impeachment a handbook. Yale University Press, 1974.
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CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Contribuições para uma Teoria Crítica
da Constituição. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2017.
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Devido processo legislativo: uma justi-
ficação democrática do controle jurisdicional de constitucionalidade das leis e do processo
legislativo. 3. ed. Belo Horizonte: Fórum, 2016.
GALUPPO, Marcelo Campos. Impeachment: o que é, como se processa e por que se faz.
Belo Horizonte: D’Plácido, 2016.
GERHARDT, Michael. Federal impeachment process: a constitutional and historical
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HAMILTON, Alexander; MADSON, James; JAY, John. O federalista. Belo Horizonte:
Líder, 2003.
ANAIS DE CONGRESSO 23
PRECARIADO E CIDADANIA:
APONTAMENTOS SOBRE A CONSTITUIÇÃO DE DIREITOS SOCIAIS
RESUMO
A partir do entendimento de que o processo de constituição dos direitos sociais no
Brasil resultou de um momento de lutas históricas empreendidas pela classe trabalhadora, o
presente trabalho objetiva analisar quais são os reflexos dessas movimentações no status de
cidadão de um segmento social submetido à constante espoliação: o precariado. Igualmen-
te, visa entender como os discursos provenientes da história oficial o alijam ainda mais, já
que tentam apartá-lo do espaço político de forma a promover uma deslegitimação de suas
ações, partindo do pressuposto que não compartilhariam de uma noção mínima de cidada-
nia. Clarifica, também, que o desmonte da CLT, ocorrido por meio da Lei n° 13.467/2017,
traz consigo consequências àquele segmento, em constante expansão. E é justamente por
isso que este texto, orientado pela história cultural, aonde os trabalhadores são considerados
como “donos” de suas próprias histórias, busca desvelar os equívocos e retrocessos empreen-
didos pela interpretação de grupos dominantes, com ênfase nos processos de luta e o direito
de persistir do precariado, que é um importante ator de um processo de constituição em
constante devir.
Palavras-chave: trabalhismo; populismo; precariado; direitos sociais; Reformas
Trabalhistas.
1 Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora – Campus Governador Valadares. Pesquisa-
dora VIC/UFJF. Monitora de Direito Constitucional. E-mail: angelavitoriaandrade@hotmail.com.
2 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora – Campus Governador Valadares. Pesquisa-
dor BIC/UFJF. Membro do grupo de pesquisa Centro de Estudos do Pensamento Político (CEPP/UFJF-GV). E-mail:
lopesdesouzaotavio@gmail.com.
26 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
INTRODUÇÃO
A mediação normativa, que havia sido constituída desde o período varguista e que
parecia ser a regulação mais permanente e consistente entre Estado e classes entre si, ao ser
colocada em xeque, em virtude das Reformas Trabalhistas de 2017, traz à tona a tensão
entre direitos sociais e uma nova classe em formação (STANDING, 2014): o precariado.
Além disso, a flexibilização desses direitos torna evidente as fissuras presentes no interior
dessa classe, mas também faz questionar a própria força normativa3 dos direitos sociais como
garantias da classe trabalhadora, para muito além de sua positivação. Por mais que haja
um salto temporal entre o momento de criação da mediação normativa – a invenção do
trabalhismo (GOMES, 2005) – e o surgimento do precariado enquanto fenômeno (BRA-
GA, 2012, 2012b), classe-que-vive-do-trabalho (ANTUNES, 2018), ou mesmo nova classe
(STANDING, 2014), é possível vislumbrar a correlação entre o trabalhismo, certos dilemas
da precarização do trabalho e eventos mais contemporâneos.
Diante do tema, duas perguntas principais se apresentam: em que medida as Re-
formas Trabalhistas de 2017 representam ainda mais um alijamento do precariado e o seu
assolamento à margem da sociedade e de seu status cidadão? Como seu surgimento, expan-
são e inquietação interferem na própria noção de cidadania pós-88?
Antes de respondê-las, entretanto, considera-se importante tecer algumas conside-
rações sobre populismo e trabalhismo na Era Vargas, como meio tentar de entender, sem
lançar mão de anacronismos, suas decorrências na atualidade. Opta-se, então, pela utilização
da história cultural, no intuito de tentar viabilizar certa colaboração à revisão bibliográfica
da história oficial.
Para tanto, utiliza-se daquela para fornecer certas contribuições à reinterpretação
de processos macro-históricos, nos quais os trabalhadores desse período não foram inter-
pretados como “donos” de suas ações e, consequentemente, de suas trajetórias de vida. Em
seguida, busca-se analisar como o processo de constituição de direitos sociais, sob a ótica do
trabalhismo, reflete-se no conceito de cidadania no universo do precariado, que é segmento
social em constante expansão e espoliação.
1. POPULISMO E TRABALHISMO
Partindo do conceito de Weffort4 (2003), pode-se compreender o populismo como
3 3
Para Hesse (2009), a Constituição expressa mais um dever ser na realidade social, impresso pela sua pretensão
de eficácia e conformação. Dessa forma, quando se analisa a constitucionalização dos direitos sociais, tem-se que o
texto constitucional age de maneira determinante em relação a essa realidade, sendo também definido por ela, em uma
relação mútua, onde surgem essas tensões e questionamentos.
4 Na opinião de Gomes (2017), talvez Weffort possa ser considerado o nome mais importante da interpretação
do populismo brasileiro.
ANAIS DE CONGRESSO 27
nesse pensamento, pode-se estabelecer que aquelas massas sempre foram parceiras fantasmas,
que apenas tinham possibilidades de participação, mas que nunca chegaram a se concretizar,
pelo fato de sempre terem sido blefadas pelos parceiros reais do jogo político.
Ao comentar sobre a legislação trabalhista desse período, Weffort (2003) também
elucida que o Estado a “doava” às massas urbanas. Isso porque ele aponta que era a parcela da
população com maior capacidade de pressão diante do Estado e que já possuía alguma tra-
jetória de luta antes mesmo de 1930. Além disso, o autor estabelece que essa restrição ainda
atendia aos grandes proprietários de terra – embora tivesse sido finalizada com a Revolução
de 1930, ele aponta que a hegemonia regional e local da oligarquia não foi drasticamente
afetada, tanto que ainda contava com representação estatal naquele contexto.
Igualmente com relação ao populismo, Carvalho (2016) estabelece que, no Brasil,
Argentina ou Peru, aquele era pautado em uma relação de ambiguidade entre cidadãos e
Estado. Em termos gerais, tratava-se de um vínculo capaz de trazer as massas para a política,
mediante a expansão da cidadania, ainda que esta fosse mais “passiva e receptora antes que
ativa e reivindicadora” (CARVALHO, 2016, p. 130). Por conseguinte, aprecia-se que aquele
autor realiza uma interpretação condizente com a decorrência de posição de subordinação
das massas frente aos seus líderes políticos, em nome do sentimento de gratidão que tinham
por eles.
Não obstante, toda essa trajetória começou a ser “desmontada” a partir do ano de
19875, quando parte do debate historiográfico começou a transformar o populismo “de
pedra à vidraça” (GOMES, 2017, p. 43), por ter passado a se utilizar da história cultural
para ir de encontro às narrativas da história oficial, no intuito de promover uma elucidação
histórica alternativa. Autores que pertencem a essa vertente de interpretação histórica, como
Ferreira (2011) e Gomes (1998), compreendem que toda mensagem é sempre interpretada
de forma ativa pelo seu receptor, que passa a agir dentro de seu horizonte de possibilidades,
de modo a afastar entendimentos de passividade nesse processo.
Segundo Gomes (2002), reconhecer a interlocução ativa dos trabalhadores com o
Estado significa romper com essa percepção de manipulação, na medida em que esta se con-
forma por meio de uma visão histórica bastante simplista de uma suposta desorganização e
ausência de consciência de classe daqueles.
Ademais, destaca-se que é possível decifrar o trabalhismo como sendo fruto de uma
5 Tal período corresponde ao grande marco do estudo historiográfico do fenômeno do trabalhismo no Brasil,
qual seja, A Invenção do Trabalhismo, de Ângela Maria de Castro Gomes. Não muito bem recebido por historiadores
no fim da década de 1980, o trabalho em questão tinha por intuito produzir “uma interpretação histórica alternativa,
fundada em pesquisa empírica mais demorada e iluminada pelas novas contribuições da produção internacional sobre
a formação da classe trabalhadora” (GOMES, 2017, p. 45) e, talvez, essa tenha sido uma das principais razões pela sua
“falta de espaço” no período de seu lançamento.
ANAIS DE CONGRESSO 29
7 Gomes (2014) demonstra que os debates sobre a constituição dos direitos sociais no Brasil aconteceram,
inicialmente, entre os anos 1917 e 1919. Antes disso, entretanto, a autora mapeia algumas medidas relacionadas à
“proteção e assistência ao trabalho do menor e também aos benefícios destinados aos funcionários públicos civis e mi-
litares” (GOMES, 2014, p. 74-75), mas destaca que a preocupação predominante ainda não era com uma formação
de legislação trabalhista propriamente dita.
30 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
meçou a prezar pelas histórias de vida desses trabalhadores, ignoradas pela história oficial,
passou-se a desmitificar os efeitos do mito da “ideologia da outorga”, entre eles, o da “a su-
pressão da memória das classes subalternas, que apareceriam como impotentes e incapazes
de reivindicar seus direitos elementares por si sós” (VIANNA, 1999, p. 57).
Segue-se, então, no sentido de tentar desvelar essas memórias, de modo que os
ecos das vozes das massas se tornem mais perceptíveis, até porque, como aponta Paranhos
(2007), a voz do Estado era responsável por abafar, ou mesmo silenciar, a dos trabalhado-
res, relegando-os à categoria de “sem vozes”, o que não foi completamente bem-sucedido.
Esta constatação implica reconhecer que a ideologia do trabalhismo não foi integralmen-
te absorvida pelos trabalhadores, já que também conseguiam demostrar suas insatisfações
e, consequentemente, promover suas resistências, sem se submeterem à “unanimidade” de
aprovação das políticas de propagadas do Estado Novo.
Assim, compreender o trabalhismo por meio da perspectiva de narrativas de resis-
tência significa vislumbrar, sem a presença marcante de resignação e conformismo por parte
dos trabalhadores, a constituição da cidadania por meio dos direitos sociais como mediação,
cujo processo não se deu de modo cooptado. Trata-se de um dos momentos nos quais a Te-
oria Crítica da Constituição, enquanto chave interpretativa, ganha seu espaço, já que:
2. O PRECARIADO
Antes de analisar os reflexos dessas narrativas (populismo e trabalhismo) na ideia de
cidadania sob a ótica do precariado, faz-se necessário promover alguns apontamentos teóricos
sobre esse segmento social. Destaca-se que não há um consenso do que seja, necessariamen-
te, o precariado, que pode se manifestar como uma classe em formação (STANDING, 2014),
classe-que-vive-do-trabalho (ANTUNES, 2018) ou fenômeno (BRAGA, 2012a 2012b).
No entanto, mesmo face às divergências teóricas, é razoável afirmar que o preca-
riado se constitui como um segmento social que estabelece relações precárias de trabalho,
compartilhando uma série de inseguranças, que são traduzidas por Standing (2014) como
sendo a ausência das sete formas de garantias do trabalho, entre elas, a ausência de vínculo
empregatício, segurança do trabalho e garantia de representação. Tais déficits em relação aos
demais agrupamentos sociais influenciariam, diretamente, nas características do grupo e no
seu reconhecimento entre si.
Para além das incertezas empregatícias, a precariedade é marcada pela falta de uma
identidade, pautada no reconhecimento e baseada no trabalho, o que obstaculizou, em um
primeiro momento, a formação de uma consciência de classe por parte desse grupo social.
Além disso, sua dispersão espacial e as condições de trabalho individualizadas tornariam di-
fícil a formação de uma solidariedade de classe e formas de organização de ações coletivas.
Igualmente, as tendências do capital, ao organizar as relações de trabalho por uma lógica
destrutiva, com incentivos a sua individualização e isolamento, contribuem para o enfra-
quecimento das formas de manifestação e resistência desse segmento, como atestado por
Antunes (2018).
Quanto ao perfil dos indivíduos que constituem o precariado, tem-se que, desde a
década de 1930, houve um aumento deste enquanto fenômeno (BRAGA, 2012a; 2012b).
Todavia, o perfil de pessoas que o compõe, atualmente, é bastante heterogêneo, não se li-
mitando aos perfis dos antigos fluxos migratórios que remontavam àquela época. Para Alba
Maria Pinto (2014), o precariado, caracterizado por ser uma “multidão global em expan-
são”, constitui-se de:
9 Standing (2014) destaca uma tendência política de se lutar contra o desemprego com incentivos a ocupações
temporárias, identificada por workfare, como forma de acabar com o “hábito do desemprego”. O termo faz alusão aos
requisitos que devem ser cumpridos pelo indivíduo, como formação ou permanência em trabalho não remunerado,
para receber benefícios de assistência social.
10 José Murilo de Carvalho (2016) entende que o processo de regulamentação da legislação social estaria imerso
em um ambiente político de baixa participação popular e que este fato obstaculizou a consolidação de uma cidadania
ativa, resultando em uma cidadania passiva e receptora, antes ativa que reivindicadora, como ressaltado no próprio
texto em oportunidade anterior.
11 Para Pollak (1989), a memória se expressaria a partir do processo coletivo de acontecimentos e das interpre-
tações do passado que se desejaria resguardar. Assim, o enquadramento das memórias se expressaria a partir de “um
denominador comum de todas essas memórias, mas também uma tensão entre elas, intervêm na definição de um
consenso social e nos conflitos em um determinado momento conjuntural” (POLLAK, 1989, p. 9-10). Assim, tratar
das memórias subterrâneas é impulsionar essas interpretações do passado para além do “não-dito”, passando a ser iden-
tificada como uma contestação, ou mesmo reinvindicação.
ANAIS DE CONGRESSO 33
balho, foi resultado de uma luta que existiu antes de mesmo da década de 1930, com sua
regulamentação. Logo, presumir que a legislação social construída e consolidada no país, em
um ambiente de nula ou baixa participação, equivale, no mais das vezes, desconsiderar todos
os processos de luta que a envolve.
Diferentemente da ideia de passividade relacionada a essa classe social, os traba-
lhadores, em especial os precariazados, demonstraram inquietação social ao longo de sua
história. Assim, nas palavras de Braga (2012a),
Dessa forma, o autor enfatiza que, mesmo em face às tentativas do Estado Novo
em mobilizar as formas de resistência, como havia um sindicalismo burocratizado12 (BRAGA,
2012a), as pressões e reinvindicações operárias permaneciam. Nessa perspectiva, a despeito
do surgimento de um sindicalismo pelego, a organização sindical se mostrou mais comba-
tiva, a partir da década de 1950, como aconteceu nas greves de Osasco, com destaque para
ação política municipal, e Contagem, representando um movimento espontâneo dos traba-
lhadores precarizados, no ano de 1968.
Reconhecendo os sindicatos como ferramentas de importância ímpar para a orga-
nização coletiva e construção de uma trajetória de lutas, esclarece-se que esse instrumento
coletivo tem passado por constantes ataques, na tentativa de desmobilizar a classe trabalha-
dora. Ao analisar o assunto sob a ótica do precariado – para além da falta de identidade já
mencionada e a heterogeneidade do grupo – quando há algum tipo de representação, Braga
(2018) a identifica na figura dos sindicatos carimbo13 (BRAGA, 2018).
Por estarem aquém da reconhecida cidadania regulada14 (SANTOS, 1979), ligada à
12 O sindicalismo burocratizado pode ser entendido como a institucionalização dos sindicatos, a partir de 1931,
com a Lei da Sindicalização (Decreto n° 19.770), que vinculava o poder de barganha e a efetividade dessa organização
coletiva ao reconhecimento estatal, o que, na prática, significou no afastamento dos líderes sindicais das demandas da
classe trabalhadora.
13 A figura dos sindicatos carimbo surge para ilustrar os sindicatos sem representatividade classista, existindo so-
mente “no papel”.
14 Nas palavras de Wanderley Guilherme dos Santos (1979): “por cidadania regulada entendo o conceito de
cidadania cujas raízes encontram-se, não em um código de valores políticos, mas em um sistema de estratificação
ocupacional, e que, ademais, tal sistema de estratificação ocupacional é definido por norma legal. Em outras palavras,
são cidadãos todos aqueles membros da comunidade que se encontram localizados em qualquer uma das ocupações
reconhecidas e definidas em lei. A extensão da cidadania se faz, pois, via regulamentação de novas profissões e/ou ocu-
34 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
noção de populismo, que inter-relaciona a ideia de direitos como uma “dádiva” estatal, os
direitos dessa nova classe social, como os previdenciários e trabalhistas, encontram-se cons-
tantemente submetidos à espoliação. Além do mais, essa concepção hermética de cidadania
fortaleceria a blindagem política construída no país ao longo dos anos, limitando ou mesmo
afastando essas minorias de debates políticos.
Butler (2018), ao analisar o processo político em espaços públicos, chega à seguinte
conclusão: o fato de assumir que os indivíduos submetidos à precarização estão destituídos
da política, ou seja, que são destituídos do próprio poder político, importa aceitar os modos
dominantes de limitação política – o que não é o objetivo do presente trabalho, pelo con-
trário. Nas palavras da autora,
16 A cidadania salarial pode ser identificada como a “institucionalização dos direitos da cidadania por meio da
relação salarial” (BRAGA, 2012a, p. 14). Para Ruy Braga (2012a) essa vinculação teria “amortecido” a luta de classes
por meio do planejamento estatal.
17 Registra-se que a terceirização da atividade-fim é só um dos exemplos dentre outros que podem ser considera-
dos (in)constitucionais, tais como o aumento das formas de contratação de profissionais autônomos e possibilidade de
aumento de negociação da jornada de trabalho até doze horas por dia.
36 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
CONCLUSÕES
Diante do exposto, é plausível afirmar que o significado das Reformas Trabalhistas
de 2017 equivale a retrocessos no status cidadão, tendo implicações no modo que ocorrerá o
crescimento do precariado, que é marcado por relações de insegurança e precarização no tra-
balho. Inseridas em uma lógica de mercadorização (STANDING, 2014) das relações políti-
cas e trabalhistas, essas transformações também foram orientadas por uma lógica mercantil,
que foi uma marca do Governo Temer. Revestidos de um véu de legitimidade e legalidade,
aquém de objetivar a concretização de direitos fundamentais e, consequentemente, de con-
cretizar as conquistas de uma democracia relativamente nova, aquelas buscaram consolidar
os interesses do patronato, tratando-se de um fato característico de um golpe parlamentar,
o qual pode ser entendido, na visão de Santos (2017), como um fenômeno típico das de-
mocracias representativas. Esse grupo de habitantes, metáfora utilizada por Guy Stanting
(2014) ao não os equiparar a cidadãos, está em constante crescimento e ficará ainda mais à
margem da sociedade.
A despeito dos retrocessos empreendidos neste tempo de crise política, analisar
o precariado como um segmento apartado da noção de cidadania é uma afronta ao texto
constitucional. Isso porque, ao avaliar o processo de constitucionalização brasileiro do ano
de 1988, que completa 30 anos em 2018, diferentemente da lógica de cidadania regulada
empreendida anteriormente, percebe-se uma noção ampliativa de cidadania, aonde todas as
pessoas humanas são partes dela, e não apenas aquelas que gozam da regulação do trabalho.
A noção tradicional deixa de ser suficiente para analisar uma realidade pós-88, uma vez que
o sentido da constitucionalização se relaciona diretamente com o exercício de disputa inter-
pretativa por diversos grupos, que é aberta a lutas políticas diversas e plurais e, até mesmo
por isso, engloba o precariado. Dessa forma, em um contexto democrático, de uma demo-
cracia sem espera (CATTONI DE OLIVEIRA, 2010), abrem-se possibilidades ao futuro
nos mais diversos moldes, permitindo que seja afirmada a condição cidadã dessa classe em
formação e expansão.
ANAIS DE CONGRESSO 37
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38 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
CAROLINE MESQUITA1
LUDMILA CORRÊA DUTRA2
RESUMO
O presente estudo aborda o direito ao silêncio, que é uma das vertentes do princí-
pio nemo tenetur se detegere, e que se encontra consagrado no artigo 5º, LXIII, da CR/88,
no artigo 186, caput e parágrafo único, do Código de Processo Penal, além de tratados
internacionais de direitos humanos que foram ratificados pelo Brasil. Entretanto, todas as
disposições acerca da mencionada garantia são superficiais, porquanto não há regras em re-
lação ao seu âmbito de aplicabilidade e extensão, o que da margem a diversas interpretações,
que, muitas vezes, são restritivas. Apesar das diversas discussões a respeito da abrangência
de sua aplicação na prática judiciária brasileira, referido direito ainda não encontrou sua ex-
pressão máxima, haja vista os resquícios inquisitoriais arraigados no processo penal pátrio, o
aumento da criminalidade e o punitivismo emergencial presentes no Direito e na sociedade
brasileira atual. Contudo, recentemente o Supremo Tribunal Federal caminhou no sentido
de aumentar a dimensão do direito ao silêncio no Brasil, ao proibir a condução coercitiva
de imputados para participarem de interrogatório, seja policial ou judicial, o que representa
um avanço frente ao retrocesso de alguns procedimentos penais atuais.
INTRODUÇÃO
O interrogatório do imputado é um procedimento que se reveste de relativa com-
plexidade no direito brasileiro, haja vista a possibilidade de muitas das regras nele aplicadas
serem inobservadas e a forma com que é conduzido pelas autoridades, seja policial ou judi-
cial, ferirem direitos e garantias fundamentais, constitucionalmente asseguradas ao acusado.
1 Mestranda em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Advogada e Pro-
fessora de Direito. E-mail: carolmesquita2@hotmail.com.
2 Doutoranda e Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Advo-
gada e Professora de Direito. E-mail: ludmilacd@hotmail.com.
40 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
Nesse sentido, insere-se o direito ao silêncio, que, apesar de estar previsto na Cons-
tituição da República, no Código de Processo Penal e em tratados internacionais de direitos
humanos ratificados pelo Brasil, vem sendo negligenciado pelas autoridades estatais nos
últimos anos.
Sua previsão no ordenamento jurídico brasileiro é apenas superficial, já que sua
dimensão e âmbito de aplicabilidade encontram-se indefinidos, o que dá margem a diversas
interpretações, que, muitas vezes, acabam por restringir o seu conteúdo. Ademais, na prática
investigativa é comum o direito ao silêncio ser ignorado.
6 Ninguém pode ser compelido a depor contra si mesmo, pois ninguém é obrigado à auto-incriminar-se.
ANAIS DE CONGRESSO 41
7 Art. 14, § 3 Durante o processo, toda a pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualdade, às seguin-
tes garantias mínimas: g) A não ser obrigada a prestar declarações contra si própria nem a confessar-se culpada
8 Art. 8, § 2 Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for
legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes ga-
rantias mínimas: g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada.
42 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
Constituição da República pela Emenda Constitucional nº. 45, de 2004, e que dispõe que
os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos serão equivalentes as emen-
das constitucionais, desde que aprovadas em cada casa do Congresso Nacional, em dois
turnos, por três quintos dos votos de seus membros.
Entretanto, mesmo que os aludidos diplomas legais não tratassem expressamente
do princípio nemo tenetur se detegere ou de suas vertentes, este estaria presente no ordena-
mento jurídico brasileiro, por meio de interpretação extensiva do conteúdo dos princípios
da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, CR/88), do devido processo legal (artigo
5º, LIV, CR/88) e da presunção de inocência (artigo 5º, LVII, CR/88), pois conforme de-
termina o artigo 5º, § 2º, da CR/88, “os direitos e garantias expressos na constituição não
excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados”.
Ademais, o nemo tenetur se detegere visa proteger o acusado diante de possíveis ex-
cessos que podem ser cometidos pelas autoridades estatais durante a persecução criminal, ao
assegurar que a integridade física e moral do cidadão sejam preservadas.
Cabe ressaltar que esta é uma garantia que vai além da figura daquele que é alvo de
uma imputação criminal, pois é destinada a qualquer pessoa que se encontre em uma situação
em que haja pretensão do Estado em apurar fatos. Para que o nemo tenetur se detegere seja apli-
cado deve haver uma relação entre autoridade e indivíduo, assim, o princípio não se restringe
apenas ao interrogatório, policial ou judicial, ou ao processo como um todo, mas é cabível em
toda a persecução penal e em qualquer outra instância não penal ou situação cotidiana que
justifique o seu uso. Nesse sentido, é válido citar Manuel da Costa Andrade, que diz:
do termo interrogar, do latim interrogare, cujo prefixo inter é traduzido como entre e sufixo
rogare significa pedir.
Carlos Henrique Borlido Haddad indica que o uso do vocábulo interrogatório é
equivocado, pois o termo possui “mais de um significado para expressar distintas realidades”.
Numa primeira acepção, seria o ato ou efeito de interrogar, ou seja, a sucessão de perguntas
dirigidas a alguém, em uma segunda, seria um adjetivo e poderia ser substituído pelo termo
“interrogativo”, que designa o que é próprio para interrogar e, por fim, indica o ato em que
perguntas são feitas a um acusado ou indiciado, dependendo do momento da persecução
penal em que as perguntas são realizadas e da autoridade que as realiza (2000, p. 25).
Para Hélio Tornaghi o “Interrogatório, por antonomásia, é a inquirição do réu. Em
sentido um pouco mais amplo é também a do indiciado, no inquérito” (1989, p. 357). José
Frederico Marques, por sua vez, diz que o interrogatório consiste “em declarações do réu
resultantes de perguntas formuladas para esclarecimento do fato delituoso que se lhe atribui
e de circunstâncias pertinentes a este fato” (1997, p. 297).
Adalto Dias Tristão informa que é da essência do interrogatório:
a) Ser um ato processual, b) ser presidido pelo Juiz Criminal (no in-
terrogatório judicial praticado para a instrução de processo criminal,
na fase do inquérito é realizado pelo Delegado de Polícia); c) realiar-se
através de perguntas dirigidas ao acusado ou ao indiciado; d) objeti-
var a coleta de dados acerca do fato delituoso; e) oportunizar que o
acusado apresente a sua versão dos fatos, e querendo, deles de defenda
(2009, p. 81).
va do imputado para realização do interrogatório foi objeto de diversas críticas por parte dos
estudiosos do Direito, que já haviam percebido que o procedimento estava em descompasso
com o conteúdo da Constituição da República de 1988. A título de exemplo, colaciona-se
a observação feita por Roberto Delmanto Junior em 2004:
9 “Ritual judiciário” na perspectiva de Antoine Garapon, na obra Bem julgar: ensaio sobre o ritual judiciário, pu-
blicado pela editora Piaget.
11 Conforme declarou o Ministro Luís Roberto Barroso no Habeas Corpus nº 152752 :“Criamos um país de
ricos delinquentes, um sistema judicial que não funciona e faz as pessoas acreditarem que o crime compensa”.
ANAIS DE CONGRESSO 47
CONCLUSÃO
Diante de todo o exposto, conclui-se que a decisão do Supremo Tribunal Federal
mostrou-se correta, pois apontou no sentido de aumentar a dimensão do direito ao silên-
cio no Brasil, ao deixar a conveniência do acusado e de seu defensor o comparecimento ao
interrogatório, seja policial ou judicial, o que representa um avanço frente ao retrocesso de
alguns procedimentos penais da atualidade.
É certo que o novo entendimento afasta a obrigatoriedade do imputado na parti-
cipação de um procedimento que pode se mostrar degrante, porquanto manter-se em si-
lêncio enquanto perguntas lhe são dirigidas pode causar constrangimento e na seara do júri
influenciar até mesmo um julgamento, o que vai contra o conteúdo do direito ao silêncio.
ANAIS DE CONGRESSO 51
Ademais, a condução coercitiva quando exercida contra alguém que está sendo acusada do
cometimento de um crime revela-se como forma de coação e exerce intimidação para que
o imputado participe ativamente do interrogatório e responda às indagações que lhe forem
formuladas.
Nesse sentido, proibir a condução coercitiva de imputados para fins de interroga-
tório, aproxima o processo penal brasileiro do modelo acusatório e o concilia com os ideais
constitucionais, já que a possível consequência do não comparecimento para interrogatório,
como exercício do direito ao silêncio, será a não apresentação da versão dos fatos pelo acusa-
do, que deixará de aproveitar a oportunidade que lhe é ofertada para exercer sua autodefesa.
A observância do conteúdo do direito ao silêncio na realização de um interrogató-
rio policial ou judicial representa respeito à dignidade do imputado e a demonstração de que
as provas de sua culpabilidade devem ser colhidas sem a sua cooperação, já que não pode
mais ser considerado como objeto na atual feição do processo penal, mas sim como sujeito
de direitos. Assim, se afere que o nemo tenetur se detege, em toda a sua extensão, é um direito
do cidadão diante do poder estatal, já que age como limitador da atividade investigativa na
busca pela verdade dos fatos na persecução penal.
Apesar do Código de Processo Penal brasileiro ter um claro viés inquisitorial, suas
normas devem ser interpretadas a luz da Constituição da República e do Estado Democráti-
co de Direito, de forma que nada justifica a lesão a direitos e garantias fundamentais assegu-
radas aos cidadãos, nem mesmo o aumento da criminalidade e o punitivismo emergencial.
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52 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
OCUPAÇÃO DANDARA:
LITIGÂNCIA ESTRATÉGICA E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A ARTICULAÇÃO DA CLASSE
TRABALHADORA PRECARIZADA A PARTIR A LUTA PELO DIREITO À MORADIA.
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo central correlacionar duas pautas intrínsecas
às lutas sociais que geralmente são analisadas de modo dissociado, a precarização do traba-
lho e o déficit histórico de moradia, por meio do caso emblemático da Ocupação Danda-
ra, hoje, Comunidade Dandara. Na primeira parte traçamos uma linha do tempo da luta
permanente da Dandara e seus/suas moradores/as, como também recuperamos as etapas
preparatórias da organização popular que resultou na Ocupação Urbana. Abordamos tam-
bém a compreensão conservadora do direito à propriedade em contraposição à função social
da propriedade na Constituição. Na segunda parte do artigo dedicamos a compreensão da
litigância estratégica construída e viabilizada através da assessoria jurídica popular, e como
essa alternativa jurídico-política foi fundamental para cada vitória ao longo dessa trajetória
de lutas da Comunidade Dandara. Por fim, consideramos que ainda é um desafio compilar,
organizar e traduzir para a academia as experiências e estratégias criadas pelas organizações
sociais junto a assessorias jurídicas populares ao longo das últimas décadas, pois acreditamos
que esta tarefa seja imprescindível para subsidiar mais pesquisas que tenham no seu centro
os sujeitos vulneráveis e periféricos e a luta organizada.
1 Mestranda em Direito pela UFOP na Linha de Pesquisa: Novos Sujeitos e Novos Direitos. Advogada crimina-
lista na Assessoria Popular Maria Felipa. fernandavieira.advogada@gmail.com
2 Doutoranda em Direito pela UFMG na Linha de Pesquisa: História, Poder e Liberdade. Professora Universitá-
ria. Advogada apoiadora da Assessoria Popular Maria Felipa. isabelacorbyadv@gmail.com
INTRODUÇÃO4
A Constituição da República de 1988 é fruto de lutas e disputas desde o processo
constituinte. Nada mais adequado que na comemoração dos seus trinta anos retomemos e
registremos as possibilidades de enfrentamentos jurídicos-políticos que ela viabilizou, den-
tre estas, a luta da classe trabalhadora precarizada por uma moradia digna, como é o caso
concreto da Ocupação Dandara em Minas Gerais, na região metropolitana de Belo Hori-
zonte. Um projeto constitucional se faz também na medida que nós, cidadãs e cidadãos,
organizamos numa militância social em conjunto com a assessoria jurídica popular. Portan-
to, um dos objetivos deste artigo é resgatar as memórias das lutas que compuseram e ainda
compõem a construção da Ocupação Dandara, bem como apresentar o papel da assessoria
jurídica popular nesta história de resistência diária.
Tradicionalmente quando falamos da organização dos/as trabalhadores/as ou da
lutados/as trabalhadores/as o nosso imaginário nos remete quase que automaticamente a
categorias de trabalhadores/as específicas, tais como funcionários/as públicos/as, trabalha-
dores/as das fábricas, do transporte coletivo urbano, entre outras. Estas categorias carregam
em comum a possibilidade de seu espaço físico de trabalho ser determinado ou determinável
e dele ser suscetível de alguma troca de experiência e diálogo. Contudo, o reconhecimento
jurídico dos sindicatos não afasta o conflito que no interior da própria ordem jurídica capi-
talista ainda ocorre, assim como a tentativa permanente por parte do sistema de controlar
a atuação organizada dos/as trabalhadores/as via sindicatos e outras formas de organizações
e movimentos sociais.
Neste sentido, o local de trabalho, onde é fácil o monitoramento pelo capital, e
passa a ser um ambiente inóspito para o debate com o/a trabalhador/a, para mobilizá-lo/a
ou simplesmente acessá-lo/a. Porém, as necessidades do/a trabalhador/a não desaparecem e
de crise econômica em crise econômica, mesmo que respeitando as regras do jogo, várias tra-
balhadoras e trabalhadores se veem asilados de seus postos de trabalho formais e constroem
novas formas de sobrevivência na informalidade e na ausência de direitos trabalhistas.
A informalidade aumenta a pressão sobre a classe trabalhadora em relação à dificul-
dade de acesso a direitos fundamentais, em decorrência da precariedade econômica e da cri-
minalização de determinados de meios de sobrevivência. Portanto, esse processo potenciali-
4 Este artigo é um desdobramento do ensaio “Litigância Estratégica e a Articulação Jurídico-Política nas Lutas da
Classe Trabalhadora Precarizada: Ocupação Dandara na obra “Movimentos Sociais versus Retrocessos Trabalhistas: Poder
e Resistência no mundo do Trabalho (2018)”, coletânea de artigos organizados por Fernanda Nigri Faria e Márcio Tú-
lio Viana, Editora LTR. Agradecemos ao Professor Márcio Túlio Viana por nos propor o desafio de resgatar a memória
dessa luta, abordando a articulação da luta por moradia e os trabalhadores precarizados.
ANAIS DE CONGRESSO 55
za demandas antes localizadas no espectro do sonho a ser conquistado por meio do trabalho
formal e se transforma em fator insuportável de aumento da pobreza, fazendo com que a
miséria de fato bata à porta, retirando das famílias recursos, inclusive, para a subsistência.
Nesse momento a moradia, o morar pagando o aluguel, cumpre um papel acirrador
de contradições e impõe à classe trabalhadora, que percebe sessenta por cento da sua parca
renda auferida em trabalhos informais ou precários, o comprometimento com a sina mensal
do aluguel e os outros quarenta por cento não alcançam o pagamento das demais despesas,
nada supérfluas, como alimentação.
Diante desse contexto, o que antes parecia criminoso, em virtude de uma interpre-
tação conservadora dada ao direito de propriedade, se toma uma decisão por sobrevivência.
Afinal, “a forma de tratar a propriedade como um fetiche em torno do qual giram todos os
direitos é um equívoco. Nem tudo se reduz a uma questão de domínio ou de mercancia”
(CATTONI DE OLIVEIRA, 2001, p.8).
Assim ocupar um terreno que há décadas constata-se vazio se torna, de absurdo,
uma realidade. Nasce, assim, a Ocupação Dandara, fruto da imposição que o capitalismo faz
a classe trabalhadora precarizada que a compeli tomar a única decisão possível, sobreviver.
A Ocupação Dandara surge da organização do povo trabalhador, como também
nasce da decisão política tomada por este povo em contestar a interpretação conservadora
dada à propriedade privada e descortinar para a assessoria jurídica popular o desafio de en-
frentar nas arenas jurídicas as disputas de terras urbanas que não cumprem a função social.
A Ocupação Dandara passa a existir e com ela uma grande batalha jurídica e políti-
ca entorno da função social da propriedade que impõe a advocacia seja privada -a assessoria
jurídica popular - ou pública (Defensoria Pública) o desafio da criatividade e da reconstru-
ção de um fazer jurídico estrategicamente aliado com o político. O que hoje após dez anos
sabemos e nominamos de litigância estratégica.
5 Algumas informações sobre a trajetória de lutas da Ocupação Dandara foram extraídas da vivência e militância
da coautora Fernanda Oliveira com a comunidade, e também por meio da interlocução e atuação das coautoras como
advogadas populares junto aos movimentos sociais de luta por moradia.
56 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
Moura; Ferreira e Lara (2013, p. 69 - 80), destacam que o debate agricultura urba-
na e periurbana;
conceito de propriedade:
do Direito Insurgente ou Achado nas Ruas6 (MEDEIROS, 2016; RIBAS, 2009; RODRI-
GUES, 2015 e SOUSA JÚNIOR, 2008).
Consideramos também que se trata de um movimento retroalimentado, ou seja, a
teoria e a prática dessa escola foram se erguendo lado a lado. Estas escolas surgem no Bra-
sil praticamente no mesmo período em meados dos anos 80 e início dos anos 90 com um
grupo de magistrados do Rio Grande do Sul, liderado pelos juízes, Amilton Bueno e Sérgio
Pereira e da Faculdade de Direito da UNB, pelos Professores José Geraldo Júnior e Roberto
Lyra Filho.
Entender e definir o Direito Achado nas Ruas, em primeiro lugar nos exige a su-
peração da compreensão do sujeito de Direito como individual, nesse sentido essa nova
compreensão nos coloca diante do desafio conceitual, pois, conforme explicita Sousa Júnior
(2008, p. 271)
6 Para maiores elucidações sobre o Direito Insurgente: RIBAS, Luiz Otávio. Direito insurgente e pluralismo jurí-
dico: assessoria jurídica de movimentos populares em Porto Alegre e no Rio de Janeiro (1960-2000) 2009. 148f. Dis-
sertação de Mestrado. Universidade Federal de Santa Catarina. E RODRIGUES, Letícia Gondim. Os sinais poéticos
do direito insurgente para uma advogada popular, 2015.Disponível em:http://assessoriajuridicapopular.blogspot.com.
br/2015/03/os-sinais-poeticos-do-direito.html. Acesso em 27 de Janeiro de 2017
62 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
7 Maiores informações sobre a educação popular na assessoria jurídica popular em RIBAS, Luiz Otávio. Assessoria
jurídica popular universitária. Revista Discente do Curso de Pós-Graduação em Direito. Universidade Federal de Santa
Catarina. Disponível em: http://danielafeli.dominiotemporario.com/d oc/RIBAS_ASSESSORIA_JURIDICA_PO-
PULAR_UNIVERSITARAI.pdf. Acesso em 03/10/2016
ANAIS DE CONGRESSO 63
As pessoas são pobres – mas isso não significa que “se possa” tortu-
rá-las impunemente: elas são social, cultural e politicamente destitu-
ídas de oportunidades de participação, mas isso não significa que “a
gente” possa mata-las impunemente. A resistência legal que juristas
sinaliza de maneiras mais eficaz que se pode imaginar em termos
pacíficos: ela é areia colocada na engrenagem de um sistema jurídico
64 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
Muito embora, a Ocupação Dandara não seja um caso individual no sentido es-
trito e literal em uma interpretação de Muller, podemos compreender o individual como
casos paradigmáticos. A Ocupação Dandara representa uma coletividade de lutas e uma
organização popular, torna-se um exemplo notório de uma das possibilidades de litigância
estratégica. Tendo em vista que quando todos os recursos jurídicos pareciam esgotados e a
única solução possível seria negociar aquiescendo pela desocupação da área, a construção
de unidades habitacionais no modelo de apartamento, com a frágil garantia de reassenta-
mento, as moradoras e os moradores da hoje Comunidade Dandara e as Brigadas Populares
confrontando a todas as orientações jurídicas decidiram pela luta e desafiaram a assessoria
jurídica popular e a Defensoria Pública com a tarefa de construírem e executarem uma nova
ação jurídica, ousada e de êxito improvável.
O provimento liminar buscava, especificamente alcançar sete pedidos, o central era
o número quatro, requerendo a abstenção por parte dos réus, de qualquer medida tendente
a interferência física no imóvel, incluindo a remoção das famílias.
Dos fundamentos da decisão que concedeu a liminar, atendendo em especial o
ponto quatro dos pedidos, há o enfrentamento pelo Poder Judiciário mineiro a tensão cons-
titutiva entre princípios constitucionais:
ANAIS DE CONGRESSO 65
Dessa forma, nasceu a Ação Civil Pública na Vara de Fazenda Estadual que retirou
a comodidade do não posicionamento o Governo do Estado de Minas Gerais e a Prefeitura
Municipal de Belo Horizonte, e contrariando a todos os prognósticos jurídicos resultou em
uma liminar, confirmada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais que pôs fim ao fantasma
da reintegração de posse.
Ainda que pareça a princípio distante, não podemos deixar de ter negritado a
importância que em searas tradicionais de organização do povo trabalhador, como os
sindicatos, a potência de luta e enfrentamento que pode significar a construção política
associada a jurídica de forma dialógica como se deu no caso da Comunidade Dandara e
as Brigadas Populares.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo tem como objetivo central correlacionar duas pautas intrínsecas
às lutas sociais que geralmente são analisadas de modo desconectado, a precarização do tra-
balho e o déficit histórico de moradia, por meio do caso paradigmático da Ocupação Dan-
dara, hoje, Comunidade Dandara.
Inicialmente traçamos uma linha do tempo da luta permanente da Dandara e seus/
suas moradores/as, como também recuperamos as etapas preparatórias da organização po-
pular que deslindou na Ocupação. Demonstramos que desde as primeiras reuniões há uma
preocupação com a educação popular dos/das futuras ocupantes no que tange a constitu-
cionalidade ao direito à moradia, assim como ao respeito as regras do Direito Urbanístico
quanto a questão espacial e demarcatória da ocupação. Logo, desmistifica-se que as Ocupa-
ções previamente articuladas em organizações populares desrespeitam as leis.
Na breve linha do tempo proposta fica negritado que cada direito básico como
acesso a água é conquistado, um a um. E essa permanente luta por conquistas de direitos
não cessou, haja vista que a Ocupação ainda não tem acesso a um direito básico, os correios,
apesar de terem conseguido integrar o PRU- Plano de Regularização Urbanística por meio
do orçamento participativo e a desapropriação para interesse de fins sociais. Ou seja, um di-
reito básico de terem CEP ainda não é uma realidade na vida Comunidade Dandara. Logo,
podemos constatar que é um desafio cotidiano romper com a segregação habitacional que
historicamente lhes foi imposta. Nessa primeira parte também abordamos como a compre-
ensão conservadora do direito à propriedade é colocada em discussão em face da constitu-
cionalização da função social da propriedade no caso concreto da Ocupação Dandara.
Na segunda parte do artigo dedicamos a compreensão da litigância estratégica
construída e viabilizada através da assessoria jurídica popular, e como essa alternativa ju-
rídico-política foi fundamental para cada vitória ao longo dessa trajetória de lutas da Co-
ANAIS DE CONGRESSO 67
munidade Dandara. Demonstramos como o fazer dessa litigância estratégica exige uma
articulação entre diversos/as atores e atrizes, nos quais todos os saberes, sejam jurídicos
ou políticos, estão no mesmo patamar de importância. Destacamos também o papel da
assessoria jurídica popular nas conquistas da luta por moradia e da precarização do traba-
lho. E sobretudo, salientamos que a criatividade é fator primordial desse instrumento das
organizações sociais, a litigância estratégica que surpreende até mesmo o conservadorismo
presente no Poder Judiciário.
Consideramos que ainda é um desafio compilar, organizar e traduzir para a acade-
mia as experiências e estratégias criadas pelas organizações sociais junto a assessorias jurídicas
populares ao longo das últimas décadas, mas acreditamos que esta tarefa seja imprescindível
para subsidiar mais pesquisas que tenham no seu centro os sujeitos vulneráveis e periféricos e
a luta organizada. Essa articulação jurídica-política é uma força motriz para dar vida ao texto
constitucional e disputar seus sentidos com o povo e o Poder Judiciário, principalmente no
porvir que nos espera.
A trajetória da litigância estratégica não é construída apenas por casos notórios e
emblemáticos como a Dandara, há inúmeros exemplos como este e outros; Izidora (Belo
Horizonte/ Santa Luzia),Novo Paraíso (Belo Horizonte), Casa do Estudante/MOFUCE
(Belo Horizonte), Novo Horizonte (Ribeirão das Neves), Areias(Ribeirão das Neves), Gua-
rani Kaiowa (Contagem), Ocupa Estelita (Pernambuco), Vila Soma (São Paulo), Contesta-
do (Santa Catarina). Esses casos e tantos outros emanam a energia fulcral para que possamos
r(e)existir as violências perpetradas pelas instituições. E o ponto em comum de todas estas
lutas é justamente a litigância estratégica como meio da subversão ao Direito conservador,
contando sempre com o toque fundamental e diferencial da criatividade, ousadia e coragem
da assessoria jurídica popular e da luta organizada do povo.
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ANAIS DE CONGRESSO 71
RESUMO
A decisão monocrática do Ministro Luís Roberto Barroso em relação à Arguição
de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 527, de maneira contrária à atual
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) suscitou o debate em relação ao conceito
de entidade de classe de âmbito nacional, visto que essa categoria possui legitimidade para
propor ao STF, ação de controle de constitucionalidade concentrado. Referida Arguição de
Descumprimento de Preceito Fundamental, proposta pela Associação Brasileira de Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ALGBT), tinha como objeto os arts. 3º, §§1º e
2º, e 4º, caput e parágrafo único, da Resolução Conjunta da Presidência da República e do
Conselho de Combate à Discriminação nº 1, de 14 de abril de 2014 (Resolução Conjunta).
No que diz respeito a legitimidade de propositura da ação pela ALGBT, o relator acatou o
pedido de equiparação desta à entidade de classe de âmbito nacional, de acordo com o inci-
so IX do art.103 da Constituição da República de 1988 (CR/88).
A controvérsia da decisão consiste na possibilidade de proposição de ação de con-
trole concentrado pela requerente, uma vez que a representação de uma classe é caracteriza-
da por filiados ligados entre si pelo exercício da mesma atividade econômica ou profissional
(aplicação analógica art. 920 CLT). O objetivo do presente artigo é discutir o conceito de
entidade de classe previsto na Constituição da República de 1988 e a possibilidade de am-
pliação da atual jurisprudência para englobar as mudanças sociais não previstas pelo cons-
tituinte. Dessa forma, será feito um paralelo entre o conceito de Entidade de Classe e o de
Povo, esse já amplamente discutido pela Teoria da Constituição. Será também feita análise
das possíveis consequências de tal mudança para o fortalecimento da Democracia e também
1 Bacharel em Ciências do Estado (UFMG) e graduando do curso de Direito (PUC – Minas) - jlucasmoreira@
hotmail.com;
INTRODUÇÃO
O art. 103, IX, da Constituição da República de 1988 (CR/88) dispõe como prer-
rogativa à confederação sindical ou à entidade de classe de âmbito nacional a possibilidade
de provocarem o Supremo Tribunal Federal (STF) para que este exerça o controle concen-
trado, a partir da postulação de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), Ação Direta
de Inconstitucionalidade por omissão (ADO), Ação Declaratória de Constitucionalidade
(ADC) ou Arguição de descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) apenas pelos
sujeitos e entidades dispostas pela CR/883.
Por conseguinte, compõem este o seleto rol de sujeitos e entidades legítimas de pro-
porem a ADI, ADC, ADO, ou ADPF ao STF, além da confederação sindical ou entidade
de classe de âmbito nacional, de acordo com o artigo supracitado da CR/88: o Presidente
da República, as Mesas do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, a Mesa de Assem-
bleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal, o Governador de Estado ou
do Distrito Federal, o Procurador-Geral da República, o Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil e o partido político com representação no Congresso Nacional.
Com efeito, o que não se determina, entretanto, é a definição do que os termos
entidade de classe e âmbito nacional abrangem e representam. Assim, propiciou-se ao STF
definir tais especificidades em jurisprudência4, essa que estabelece os requisitos como: (i)
possuir alcance nacional, por meio da comprovação de afiliados presentes em ao menos nove
Estados da Federação, de forma a concordar com a Lei dos Partidos Políticos; (ii) represen-
tar uma classe, caracterizada por filiados ligados entre si pelo exercício da mesma atividade
econômica ou profissional, estipulada no art. 920 da Consolidação das Leis do Trabalho;
(iii) haja existência de pertinência temática entre o objeto da entidade e o direito defendido
por meio da ação.
Logo, os requisitos (i) e (iii) são indiscutivelmente preenchidos pela Requerente,
entretanto, o segundo não diz respeito ao caráter intrínseco da ALGBT, fato central a dis-
cussão apresentada.
Nada obstante, devido à amplitude destes conceitos que compõem os requisitos
3 Ainda no âmbito das ações de controle de constitucionalidade, existe a Ação direta de inconstitucionalidade
interventiva. Entretanto, essa só pode ser proposta pelo Procurador Geral da República.
4 Como exemplo da posição do Tribunal, têm-se que o STF negou legitimidade à UNE (União Nacional dos
Estudantes) na ADIn 894, rel. Min. Néri da Silveira.
ANAIS DE CONGRESSO 73
em razão do sexo ou na discriminação por idade, cor da pele ou raça determinou que aplica-
-se esta vedação relativamente à possibilidade concreta de utilização da sexualidade também,
reconhecendo assim o direito à união estável por pessoas do mesmo sexo.
Por fim, evidencia-se que recentemente o controle concentrado exercido pelo STF
é provocado com o fim de assegurar e garantir direitos a camadas da sociedade brasileira
negligenciada pelo legislador.
1. POVO - A EXCLUSÃO:
Friedrich Müller, em sua obra Quem é o Povo? publicada ao final da década de
1990, especialmente no capítulo intitulado A Exclusão (VIII), explicita e desvenda como al-
gumas distorções do Estado de Direito se agigantam, por exemplo, em relação à seletividade
da investidura de direitos às distintas parcelas da sociedade. De acordo com Müller (2003):
Dessa forma, temos que o tratamento final de questões constitucionais ocorre jus-
tamente na corte máxima brasileira, sendo, então, o STF competente para arbitrar e inter-
pretar divergências ligadas à Carta Magna nacional.
A princípio, a flexibilização do conceito de entidade de classe poderia pressupor a
5 A necessidade em aumentar a celeridade do STF ocorreu na instalação da inteligência artificial Victor, que au-
xiliará os ministros nos julgamentos.
78 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
Pensando dessa forma, o próprio voto do ministro Barroso segue a lógica de que o
dever de guardar a Constituição pressupõe a adaptação da forma constitucional à própria dinâ-
mica social, em um processo dialético constante. Essa lógica ancora-se em elementos histórico-
-constitucionais já expostos acima, além de apresentar precedentes do próprio STF quanto ao
entendimento similar de outros ministros sobre a ampliação do conceito de entidade de classe
de âmbito nacional composta por indivíduos ligados não apenas por vínculos econômicos,
profissionais, mas também ligados pela defesa de direitos fundamentais (ADIs 4029 e 5291).
A decisão do relator é condizente com sua trajetória como ministro e posições
doutrinárias e no que diz respeito a normas de linguagem aberta, como a discutida nesse
trabalho, afirma que:
A reivindicação da ALGBT pode ser vista, então, como uma demanda natural e
provavelmente inevitável, no que diz respeito a indeterminação do conceito de entidade de
classe, uma vez que esse é suscetível a ressignificação histórica. Ademais, a peculiaridade des-
te caso em particular resuma-se a grande exposição que a temática LGBT possui no cenário
social brasileiro, atrelado às particularidades desse Tribunal como a popularização de suas
sessões por meio da transmissão destas em veículos de comunicação em massa.
Uma vez estabelecido o compromisso do Supremo Tribunal Federal com a própria
Constituição, novamente se volta a questão de como torná-la um instrumento de exercício
da soberania popular e concretizar o compromisso estabelecido pelo constituinte de 1988
com o Estado Democrático de Direito.
CONCLUSÃO
Como apresentado no transcurso deste artigo, a Constituição da República de
1988, apesar de ser um texto moderno e inovador, de acordo com a ambiguidade apontada
por Müller sobre a textificação, mostra-se ineficaz em certo aspecto. Visto que, não é possível
normatizar todas as manifestações de pluralidade da sociedade brasileira, tendo em vista que
as transformações sociais serão mais céleres que o processo legislativo.
Ademais, outras inovações normativas recentemente aprovadas, tal como a Lei Fe-
deral nº 13.467/17 (Reforma Trabalhista), como desdobramento desta houve o enfraqueci-
mento da representação das distintas categorias de trabalhadores em benefício da autonomia
do empregado, ou seja, em certa medida, afetou as entidades legitimadas pelo art. 103, IX,
da CR/88 à provocação do STF no tocante as ações de controle constitucional concentrado.
Deste modo, faz-se necessária a interpretação da Constituição pelo detentor do
controle concentrado de constitucionalidade em benefício da efetivação de direitos e garan-
tias constitucionais, especialmente, à população historicamente negligenciada pelos repre-
sentantes do Estado.
Por fim, ainda não é possível afirmar com clareza quais seriam as consequências
práticas da abertura do rol de legitimados no art. 103, IX da CR/88 para além daquilo já
posto em jurisprudência. Entretanto, a tentativa parece ser válida, uma vez que os números
mais recentes não sugerem um aumento de demanda sufocante para o Supremo Tribunal
Federal. Mister salientar que tal medida pode ter um fator positivo no sentido de fortalecer o
respeito à diversidade e também aparenta ser o caminho natural tendo em vista os princípios
democráticos estabelecidos na Constituição de 1988, uma vez que essa possui capacidade
adaptativa para abarcar as novas dinâmicas sociais brasileiras.
ANAIS DE CONGRESSO 81
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82 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
RESUMO
A partir de pesquisas e relatórios que identificam as situações degradantes no siste-
ma penitenciário brasileiro, o presente artigo busca identificar quais são os principais fato-
res jurídico-institucionais que fomentam a política de encarceramento em massa brasileira.
Nesses termos, os principais fatores destacados neste artigo são a utilização da prisão preven-
tiva como regra, a repressão penal às drogas com uma lógica bélica e a persecução penal aos
crimes econômicos e à classe política. A análise desses fatores visa à realização de um diag-
nóstico sobre quais dispositivos constitucionais garantem, e quais deles falham em garantir,
os direitos fundamentais dos acusados e dos indivíduos encarcerados. Por fim, o diagnóstico
realizado poderá oferecer novas perspectivas para estratégias de combate ao encarceramento
em massa, possibilitando o debate sobre modificações constitucionais, legislativas e institu-
cionais que poderão reduzir o número de pessoas encarceradas e motivar melhorias estrutu-
rais no sistema penal brasileiro.
Palavras-chave: sistema penal; direitos fundamentais; prisão preventiva; tráfico de
drogas; crimes econômicos.
INTRODUÇÃO
Passados mais de trinta anos da promulgação da Constituição da República, o sistema
penal brasileiro talvez nunca tenha sido estruturado de forma tão discrepante a seus princípios
e direitos fundamentais como é atualmente. Essa afirmação se fundamenta, em primeiro lugar,
na instrumentalização política da punição que se constata na atualidade. Nesse sentido, foi su-
1. REALIDADE DO CÁRCERE
Tendo como ponto de partida a realidade do cárcere, pode-se reiterar que a principal
característica do sistema penal é, sem dúvidas, o encarceramento em massa. Dados concre-
tos apontam que, no mês de junho de 2016, já havia a assustadora soma de 726.712 pessoas
encarceradas (BRASIL, 2017), destacando-se o encarceramento feminino, que apresentou o
crescimento de 567% entre os anos de 2000 a 2014 (BRASIL, 2018). Não obstante, o as-
pecto mais degradante do encarceramento em massa se manifesta nas péssimas condições do
sistema penitenciário brasileiro. De início, destaca-se um relatório da ONU, publicado em
2018, que indicou que os condenados sofriam severas limitações no acesso à comida, água,
tratamento médico e luz solar, vivendo em condições totalmente desumanas (ONU, 2018).
Em sentido semelhante, um estudo realizado no presídio público de Paracatu, no
estado de Minas Gerais destacou que 0,7% dos presos faziam apenas uma refeição por dia
e que 7,2% faziam duas refeições por dia. Quanto ao banho de sol, cerca de 16,5% dos
presos não tomava qualquer banho de sol, enquanto 96% dos que tomavam, o faziam me-
nos de três vezes por semana, ficando a maior parte do tempo totalmente enclausurados.
Nesse contexto, foi destacado que fatores como a superlotação, a alta umidade local e a má
higienização das celas ocasionaram a prevalência de doenças respiratórias nos presos (MEN-
DONÇA, 2018, p. 9-19).
Em seu livro “Falência da Pena de Prisão”, Cezar Roberto Bitencourt descreve com
2 A estrutura do Estado passa a ser marcada pela sublimação do espetáculo, pela flexibilização dos limites demo-
cráticos e pela permissividade crescente à ilegalidade no processo penal (CASARA, 2017, p. 19-46)
3 O autor afirmava e fundamentava esse ideal com base na seguinte premissa: “Que a pena não seja um ato de
violência de um ou de muitos contra um membro da sociedade. Ela deve ser pública, imediata e necessária, a menor
possível para o caso, proporcional ao crime e determinada pelas leis” (BECCARIA, 2012, p. 125)
84 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
maestria os aspectos teóricos que dificultam a aplicação da pena de prisão no sistema penal
contemporâneo, e ainda destaca que a “manifesta deficiência das condições penitenciárias
existentes na maior parte dos países de todo o mundo, sua persistente tendência a ser uma
realidade quotidiana, faz pensar que a prisão se encontra efetivamente em crise” (BITEN-
COURT, 2011, p. 161).
Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal, após julgamento da medida cautelar
na ADPF 347 (BRASIL, 2015), reconheceu o estado de coisas inconstitucional em relação
ao sistema penitenciário brasileiro. O julgamento seguiu o voto do Ministro Marco Aurélio,
determinando, em síntese, as seguintes medidas paliativas para reduzir os danos causados aos
presos: que os magistrados fundamentem a não aplicação das medidas cautelares alternativas
do art. 319 do CPP; realizar audiência de custódia em 24h após a prisão (PIDCP, art. 9.3 e
CADH, art. 7.5),por aplicação do direito internacional; que os juízes considerem o quadro
degradante do sistema penitenciário quando determinarem alguma prisão; que se apliquem
as penas alternativas do art. 44 do CP; que a União libere o saldo do Fundo Penitenciário
para investir no sistema penal, abstendo-se de novos contingenciamentos. Contudo, mesmo
após o julgamento a situação continua grave.
Sendo assim, o problema do encarceramento em massa não caracteriza “apenas”
um problema quantitativo - referente à quantidade exorbitante de pessoas presas - mas tam-
bém qualitativo, visto que a maioria desses indivíduos estão submetidos a situações absolu-
tamente desumanas de cumprimento de pena. Com base nessa análise, pode-se afirmar que
o cárcere é um ambiente no qual se multiplicam diversas violações a direitos fundamentais,
incluindo-se a própria dignidade humana, que foi colocada como base essencial do orde-
namento jurídico brasileiro (SARLET, 2010, p. 32). Provocando constantes violações aos
direitos fundamentais de centenas de milhares de indivíduos, o encarceramento em massa
pode ser considerado verdadeiro projeto político, tendo sido fomentado por algumas ques-
tões jurídico-institucionais presentes no sistema penal brasileiro, as quais serão discutidas
nos itens abaixo.
decretar a prisão preventiva com base na ordem pública e na ordem econômica4, conceitos
extremamente amplos que possibilitam a fundamentação da prisão preventiva em casos nos
quais é totalmente prescindível, gerando sérias dúvidas em relação à constitucionalidade
desses dispositivos (LIMA, 2003, p. 148). Nesses termos, podem ser destacados os ensina-
mentos de Luigi Ferrajoli (2006, p. 444), no sentido de que:
4 Embora existam restrições impostas pela jurisprudência à fundamentação das prisões preventivas, isso não é
suficiente para vetar interpretações inidôneas e desvinculadas com o princípio da ultima ratio na intervenção penal.
Afinal, destaca-se que no ordenamento jurídico brasileiro não há uma estrutura consistente de precedentes.
86 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
cional tenha sido um grande avanço, pode-se afirmar que, talvez pela ineficácia do sistema
de controle sobre as decisões judiciais, a prisão preventiva tem sido utilizada como regra,
como pena provisória. Sendo assim, a impetração de habeas corpus perde seu objetivo, vis-
to que os critérios de admissibilidade e a caraterização como “via estreita” (BRASIL, 2018)
impedem o saneamento de diversos atos coatores ilícitos, especialmente aqueles que exijam
análise sobre elementos probatórios que estejam no processo originário.5
5 Em geral, a justificativa utilizada para o não cabimento da ordem é referente à suposta “impossibilidade de
dilação probatória na estreita via do habeas corpus” (BRASIL, 2018). Outro exemplo claro é o art. 210 do Regimento
do Superior Tribunal de Justiça, para o qual “quando o pedido for manifestamente incabível, ou for manifesta a in-
competência do Tribunal para dele tomar conhecimento originariamente, ou for reiteração de outro com os mesmos
fundamentos, o relator o indeferirá liminarmente”.
6 Nesse sentido, Luís Carlos Valois destaca que é necessário perceber “estar a sua política de drogas matando
pobres, negros, crianças e mulheres, culpados ou inocentes, em nome de uma relação comercial construída arbitraria-
mente como crime”.(VALOIS, 2017, p. 647-648)
7 Talvez essa tenha sido uma das maiores falhas do texto constitucional no âmbito penal, prevista no art. 5º, XLIII.
8 Inclusive, vedando fiança, sursis, graça, indulto, anistia, liberdade provisória e a substituição da pena privativa
de liberdade por restritiva de direitos (MARONNA, 2006, p. 6-7).
ANAIS DE CONGRESSO 87
9 Art. 57. Na audiência de instrução e julgamento, após o interrogatório do acusado e a inquirição das teste-
munhas, será dada a palavra, sucessivamente, ao representante do Ministério Público e ao defensor do acusado, para
sustentação oral, pelo prazo de 20 (vinte) minutos para cada um, prorrogável por mais 10 (dez), a critério do juiz.
88 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
Não obstante, destaca-se que o texto constitucional também prevê um extenso rol
de direitos e garantias individuais, o que torna possível a estruturação de um sistema penal
racional e legítimo, sobretudo se respeitados os princípios da ultima ratio e da culpabilida-
de, sendo que ambos são aferíveis a partir do texto constitucional. Sem a efetivação desses
princípios, que constituem parâmetros para interpretações conforme à Constituição, não é
possível que se pense em um sistema penal democrático. Colocando esses princípios como
base de qualquer sistema penal que se pretenda democrático, ainda que não estejam expres-
samente determinados e delimitados na Constituição, Bernd Schünemann (2018, p. 34-35)
escreve que:
Com base no que foi exposto, pode-se dizer que a leitura do tráfico de drogas como
crime equiparado ao hediondo deve ser desconstruída, pois que em prol da inocuização da
figura do traficante, viola-se os princípios da proporcionalidade, do contraditório, da ampla
defesa, da ultima ratio e da culpabilidade, sendo que todas essas violações se direcionam,
direta ou indiretamente, para violar o direito fundamental à liberdade dos indivíduos, sem
o qual não se pode construir um Estado de Direito verdadeiramente democrático, conforme
exigido pelo texto constitucional. Sendo assim, pode-se concluir intermediariamente que
não há qualquer motivo para a caracterizar o tráfico de drogas como crime equiparado ao
ANAIS DE CONGRESSO 89
hediondo, devendo-se considerar a necessidade de que esse delito não possui mais essa ca-
racterização jurídica, seja por medidas judicias, como as demonstradas acima, ou até mesmo
por meio de alteração formal ao texto constitucional, fazendo valer o que está determinado
pelo texto constitucional.
10 Um triste exemplo dessas consequências foi o caso notório do Reitor da Universidade Federal de Santa Catari-
na, que suicidou após ter sofrido diversas arbitrariedades por parte da Polícia Federal. (CARVALHO, 2018)
90 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
Assim, o sistema penal de fato passa a ser um pouco menos seletivo, por se direcionar
aos políticos e empresários, grupos sociais que até então estavam praticamente alheios às penas,
mas essa transformação se dá a custo de um aumento imensurável na repressividade do sistema
penal, pois os grupos sociais que possuem menos recursos materiais – que são tradicionalmen-
te os principais “alvos” da persecução penal – também sofrem os reflexos da violação de direitos
fundamentais que é realizada em nome da prisão de políticos e empresários.
Nesse sentido, a repressão à criminalidade econômica e seus agentes se direciona so-
bretudo à punição dos que são considerados “poderosos”, ou seja, daquelas pessoas que pos-
suem determinado poder que provém, sobretudo, do grupo social ao qual pertencem, sendo
que “o que caracterizaria a criminalidade dos poderosos seria o fato de seus autores pertencerem
a classe social elevada, atuando no exercício de sua atividade ocupacional” (SUTHERLAND,
1941, p. 112). No que concerne especificamente à classe política, que está incluída nessa nova
tendência do sistema penal, cabe citar as palavras de Boaventura Santos (2003, p. 1-5):
Sobre essa questão, vale ressaltar que este trabalho não busca apoiar a prática de
delitos por empresários ou políticos, nem considerar que essa prática deva ser aceita na so-
ciedade. Ao contrário, defende-se que deve haver aplicação da pena legalmente prevista a
quem pratica uma conduta tipificada pela lei penal, mas desde que respeitando as normas
convencionais, constitucionais e legais vigentes. Inclusive, pode-se indicar como conclusão
intermediária que também é papel da Constituição da República a limitação do desejo pu-
nitivo da sociedade por meio de estruturas concretas, nas instituições, de questionamento e
de vedações à ilegalidade, à inconvencionalidade ou à inconstitucionalidade, especialmente
nos crimes econômicos.
Assim, somente com respeito ao sistema jurídico vigente é que a intervenção penal
poderá atingir seus objetivos preventivos gerais e especiais, de forma legítima, em respeito
aos princípios constitucionais penais, principalmente o da ultima ratio. É por essa razão que
os dispositivos constitucionais devem exercer o papel de fazer valer os princípios norteadores
do sistema penal. Sendo assim, não basta que existam dezenas de princípios constitucionais
penais se não há mecanismos concretos que consigam fazer com que os poderes públicos se
11 Com a tentativa de colocar o sistema penal como principal protagonista dos problemas sociais existentes, o
sistema jurídico-penal contemporâneo é composto de uma estrutura que representa violação direta ao princípio da
ultima ratio, que é implicitamente determinado pelo texto constitucional. (TOLEDO, 1994, p. 21-22)
92 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
Sendo assim, é possível afirmar que tamanha tarefa de limitação de poderes, que é
essencial para qualquer democracia, excede a restrição do âmbito nacional brasileiro para se
impor como uma tarefa e um objetivo do próprio constitucionalismo. Ademais, destaca-se
que essa tarefa se impõe como um reforço aos limites impostos ao poder público, de forma
que não se admita a possibilidade de interpretações divergentes aos princípios e direitos
fundamentais contidos no texto constitucional. Nessa linha, Bernd Schünemann (2018, p.
88-93) define, em algumas de suas dez teses sobre a relação da dogmática penal com a polí-
tica criminal e com a prática do sistema penal, indicando, em síntese, que é indispensável a
função da dogmática e da ciência jurídica como forma de exercer esse controle:
dogmática jurídica não poderá negar que uma jurisprudência, que não
se abre para a crítica científica, não passa de uma justiça do cádi, que
não pode existir em um Estado de Direito. Somente por meio desse
controle, o poder judicial, de precária legitimidade democrática, se
justifica e se torna suportável. Trata-se de uma condição necessária de
um Estado de Direito (ideal). Quarta tese. Por isso, é necessário que
haja uma abertura da jurisprudência para o diálogo dogmático com a
ciência do direito. Quando esse diálogo não ocorre ou ocorre parcial-
mente, como em vários estados membros da União Europeia e mesmo
no plano da EU, a atividade dos tribunais afigura-se necessariamente
como uma usurpação de poder sem legitimidade, ou seja, tem-se um
déficit de republicanismo. [...] Oitava tese. Ou seja, o déficit na relação
entre jurisprudência e dogmática jurídica não está na dogmática (seja
ela de qualquer proveniência, alemã, espanhola ou outra), senão numa
judicatura que não se legitima discursivamente, mas que age despoti-
camente [...].
CONCLUSÃO
A análise realizada neste artigo nos leva a concluir que a Constituição de República
trouxe diversos avanços quanto à instituição de princípios norteadores da ordem jurídica e
de direitos fundamentais dos indivíduos, colocando a dignidade humana como elemento
central do sistema jurídico. Contudo, a despeito dos avanços trazidos pelo texto constitucio-
nal, a realidade do cárcere é diametralmente oposta do que é determinado por seus dispositi-
vos, provocando constantes violações aos direitos fundamentais que estão nele contidos. Por
isso, buscou-se entender quais são as questões jurídico-institucionais que levam ao encarce-
ramento em massa, submetendo os indivíduos à desumanização do cárcere.
As principais questões e argumentos destacados como fundamento do encarcera-
94 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
mento em massa foram a utilização da prisão preventiva como regra, a repressão penal às
drogas com uma lógica bélica e a persecução penal aos delitos econômicos, especialmente no
que concerne à classe política e empresários. Nesse contexto, é possível constatar uma estru-
tura caótica no sistema penal, com leis inconstitucionais, decisões judiciais que violam leis,
princípios constitucionais e tratados internacionais, “precedentes” que contrariam o texto
constitucional e que são consolidados sem as devidas formalidades determinadas pela lei e,
por fim, a potencialização institucional do retrocesso ao sistema processual inquisitório.
Sendo assim, é possível visualizar possíveis soluções para o encarceramento em mas-
sa, que perpassam, inicialmente, pela estruturação de novas formas de controle às decisões
judiciais ou da edição das normas penais. Para tanto, é indispensável que se façam valer os
princípios norteadores do sistema penal, especialmente o princípio da ultima ratio, o qual
sofreu as mais incisivas violações nos últimos anos, tanto em termos legislativos como juris-
dicionais. Somente com total respeito à vigência desses princípios é que se poderá pensar na
desconstrução da política de encarceramento em massa brasileira.
Ademais, devem ser urgentemente repensadas as formas de realização do debate en-
tre a jurisprudência e a ciência jurídica, podendo-se afirmar que este talvez seja um dos prin-
cipais caminhos e meios pelos quais as decisões judicias podem ser consideradas legítimas,
posto que compatíveis com os parâmetros interpretativos estabelecidos pela ciência jurídica.
Dessa forma, será possível pensarmos numa estrutura de sistema jurídico em que os limites
ao poder de punir não se restringem apenas ao sistema normativo vigente, mas também às
teses e aos posicionamentos desenvolvidos no âmbito da dogmática penal, potencializando
ao máximo a participação democrática em seu exercício.
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98 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
RESUMO
Um dos pilares fundantes da identidade nacional brasileira é o mito do bem-aven-
turado e pacífico éden multirracial, acolhedor a todas as cores, crenças, credos e modos de
vida, mas que se desintegra perante qualquer análise mais cuidadosa da realidade brasileira
hodierna. A sociedade brasileira, sofre desde a sua fundação simbólica com as tensões exis-
tentes entre igualdade e segregação. Notadamente, enquanto esses valores de seletividade e
discriminação causam um esvaziamento e relativização do princípio da igualdade, tornam-se
cada vez mais comum a dispersão de ideais contrários aos direitos humanos e à construção
de quaisquer leis ou normas direcionadas aos grupos minoritários negros. O presente texto
se presta a desenvolver uma análise quanto às limitações e tensões do princípio da igualda-
de postulado pela Constituição da República de 1988 no tratamento dos temas relativos às
relações inter-raciais.
Palavras-chave: Constituição de 1988; Minorias; Igualdade.
INTRODUÇÃO
A Constituição de 1988 foi (e é) um marco na história da proteção e do desenvolvi-
mento de direitos para as minorias, podendo ser facilmente apontada como um dos maiores
marcos de progresso civilizatório do país no século XX. Entretanto, apesar de significar um
grande passo para a jovem democracia brasileira, a proteção dada pelo texto constitucional
no campo das relações inter-raciais ainda é, seja em seu texto literal, ou no seu arcabouço
valorativo e principiológico cotidianamente invocado nos tribunais e na labuta jurídica di-
1 *
Graduado em Direito pela UFMG.
2 **
Graduada em Direito pela UFMG. Especialista em Processo Civil e em Direito de Família e Sucessões pelo CAD.
ANAIS DE CONGRESSO 99
ária, incompleta. Percebe-se, que os constituintes, embora possuídos dos mais republicanos
desejos ao escrever a Carta Magna e a despeito de suas divergências e da pluralidade de suas
opiniões, eram seres humanos e, portanto, naturalmente fadados aos limites de seu próprio
tempo e sociedade, vítimas de difusos preconceitos e pré-cognições que assombram mesmo
hoje os praticantes do Direito, assim como toda a sociedade em que esses estão imersos.
Dessa forma, apesar da abrangência de tratamento o texto constitucional foi levado a não
ser tão preciso como deveria no tema.
Em parte, isso ocorre porque embora a moderna Carta tenha estabelecido a proi-
bição de distinções e discriminações injustas ou mesmo tenha avançado significativamente
naquilo que Carbonell chamou de igualdade substancial,3 a compreensão do fenômeno da
discriminação pelo texto constitucional ainda engatinha. Além disso, aspectos culturais da
identidade brasileira contemporânea limitam o debate e evolução do princípio constitucio-
nal, limitando-o, seja na esfera jurídica, seja na esfera legislativa, à sua camada mais superfi-
cial. A discussão quanto às discriminações justas, aquelas que não violam direitos ou garan-
tias fundamentais, e injustas, as que são abusivas e violam direitos e garantias fundamentais,
não avançam e existe uma enorme resistência a acolher quaisquer teorias ou práticas novas
quanto ao assunto, além disso, políticas públicas destinadas a minorar as desigualdade e
ações afirmativas acabam sendo restritas e tímidas em sua atuação e efeitos.
3 La igualdad sustancial. El estadio más reciente en el recorrido de la igualdad a través del texto de las consti-
tuciones más modernas se encuentra en el principio de igualdad sustancial, es decir, en el mandato para los poderes
públicos de remover los obstáculos a la igualdad en los hechos, lo que puede llegar a suponer, o incluso a exigir, la
implementación de medidas de acción positiva o de discriminación inversa. Hay dentro de esta cuarta modalidad, al
menos, dos distintos tipos de preceptos, unos que se podrían llamar de “primera generación” y otros que tal vez puedan
ser calificados como de “segunda generación”. Entre los primeros se encuentran, por ejemplo, los artículos 9.2 de la
Constitución española o 3.2 de la Constitución italiana. Entre los segundos está el importante y polémico agregado
de 1999 al artículo 3 de la Constitución francesa, que ha dado lugar a importantes cambios en la legislación electoral
de ese país (al respecto, véase Carrillo, 2002; Pizzorusso y Rossi, 1999); el texto en cuestión dispone que “La ley fa-
vorece el igual acceso de las mujeres y de los hombres a los mandatos electorales y funciones electivas”. Este precepto
se complementa con un añadido al artículo 4 de la misma Constitución, de acuerdo con el cual los partidos políticos
deben contribuir a la puesta en acción del mandato del artículo 3 dentro de las condiciones que establezca la ley. Son
mandatos de este tipo los que permiten el establecimiento, entre otras medidas, de las llamadas cuotas electorales de
género, cuyo estudio se emprende en párrafos posteriores. (CARBONELL, 2013, p. 13-14.)
100 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
Tendo isso em conta, o presente texto se presta a desenvolver uma análise quanto
às limitações e tensões do moderno princípio da igualdade postulado pela Constituição da
República de 1988 no tratamento dos temas relativos às relações inter-raciais. Para isso, o
presente estudo realizará uma revisão de literatura, se utilizando de obras de renomados
doutrinadores nacionais e internacionais, além de também analisar brevemente decisões ju-
diciais relevantes para o Judiciário brasileiro hodierno e mesmo, quando necessário, realizar
ocasionais esforços de Direito Comparado.
Inicialmente, o trabalho se preocupará em traçar um panorama histórico sobre o
desenvolvimento do princípio da igualdade nas relações inter-raciais nas diferentes Consti-
tuições brasileiras anteriores à Carta Republicana de 1988. No entanto, entendendo que o
Direito não é um monólito impermeável à cultura de sua época e período histórico, se de-
senvolverá uma pequena análise sobre o pensamento que baseou, em cada diferente período
da história, o tratamento jurídico do tema. Obviamente, tratando-se de um trabalho cujo
foco é compreender o instituto da igualdade no presente, mais precisamente nos últimos 30
anos da Constituição, e não seu passado histórico remoto, o tópico dará especial atenção à
formação do mito da democracia racial, cujo valor cultural para a compreensão das relações
inter-raciais no Brasil (e de como são tratadas juridicamente) é essencial.
Posteriormente, o texto se preocupará em delinear com mais cuidado o conceito e
fronteiras mais modernas do princípio da igualdade. Também discorrerá sobre como esse
impede discriminações injustas e abusivas, esforçando-se, claro, para também conceituar
as diferentes modalidades de discriminação. Também se intentará em criticar a moderna
compreensão do princípio constitucional da igualdade no campo das relações inter-ra-
ciais, assim como se apontará os avanços quanto à compreensão do princípio nessas últi-
mas três décadas.
Por fim, o texto apresentará suas conclusões, comentando sobre as tensões existen-
tes no tratamento constitucional do princípio da igualdade e apresentando possíveis solu-
ções aos problemas apresentados ao longo do estudo.
ANAIS DE CONGRESSO 101
Atribuía-se aos escravos uma cidadania totalmente restrita, e aos libertos uma ci-
dadania um pouco mais ativa, pois tinham alijada a sua participação no processo político,
não podendo se candidatar a cargos públicos ou mesmo votar nas eleições provinciais (art.
94, II da Constituição do Império/1824)4. Perceba-se que havia na época um grande medo
de que os escravos se revoltassem, como ocorreu nas Antilhas, ao mesmo tempo que o co-
mércio de escravos se tornava cada vez maior e mais importante para a economia da época.
No entanto, não se deve pensar que o texto era tão liberal quanto poderia parecer à primeira
vista, uma vez que apesar da “cidadania” ter sido estendida até algum ponto para negros e
indígenas, havia um relativo consenso quanto à inferioridade de ambos.
Comentando sobre a tensão entre os membros da constituinte durante os trabalhos
para a elaboração da carta magna de 1824, Wolkmer (2003) faz um interessante relato:
4 Art. 94. Podem ser Eleitores, e votar na eleição dos Deputados, Senadores, e Membros dos Conselhos de Pro-
vincia todos, os que podem votar na Assembléa Parochial. Exceptuam-se(...)II. Os Libertos.
102 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
6 “O elemento estrangeiro que aponta às nossas plagas é portador de uma outra educação [...], traz na bagagem
outras energias, que nós os brasileiros brancos, pardos e pretos não temos atualmente [...]. O Brasileiro branco deixou-
-se vencer pelo elemento estrangeiro, devido à sua indolência característica [...], devido à péssima educação do passado,
onde ele apenas aprendeu a receber e gastar o fruto do trabalho escravo [...]. O Brasileiro negro, esse é naturalmente
inimigo do trabalho, é indolente e preguiçoso, mas não por sua culpa. O nosso negro é atavicamente uma vítima do
passado e do viciado cativeiro de quatrocentos anos”. AZEVEDO, 1987, p. 251.
104 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
desafios quanto ao tema e, se por um lado narrativas eugenistas ou que afirmavam a infe-
rioridade das raças não brancas perderam força no Brasil, por outro, o discurso negacionista
quanto à existência de discriminação racial no processo histórico brasileiro vêm se tornando
cada vez mais relevante.
Qualquer discussão sobre o campo das relações inter-raciais no Direito deve passar
por uma seara inescapável, um verdadeiro ovo da serpente que, em grande parte, é o culpado
pelo tratamento legislativo (e jurídico) inadequado do tema, o mito da democracia racial.
Toda a sociedade possui um conjunto de mitos fundadores, narrativas ligadas a um remoto
e fabuloso passado histórico onde um evento ou fenômeno social específico deu partida ao
processo de construção de sua moderna identidade nacional. A hodierna nação norte-ame-
ricana, por exemplo, identifica seu nascedouro no suposto espírito de liberdade e justiça dos
pais fundadores, o contemporâneo Estado chinês, por outro lado, funda sua atual identidade
no período Maoísta, assim como o a hodierna Rússia crê que sua presente identidade nasceu
sob o som dos canhões da segunda guerra, já o Brasil identifica o seu nascimento na con-
vergência e miscigenação das mais variadas raças em seu território. Segundo a crença desse
último, o desenrolar de sua história teria sido uma narrativa de harmonia inter-racial, que
teria convergido na criação de uma nação fundamentalmente mestiça e acolhedora, reunin-
do as melhores características de cada um dos povos que participaram na miscigenação, um
verdadeiro homo-brasiliensis. Um ser naturalmente cordial e pacífico. Conforme mostrado
por Azevedo (1987), entretanto, tal visão idealizada esconde um esforço de encobrimento
do real, transcendendo, inclusive, em um anacronismo essencial.
Dessa forma, duas das grandes funções do mito da democracia racial em seu nas-
cedouro foram tanto a justificação e a preservação das estruturas escravistas, assim como o
106 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
apaziguamento das massas migrantes da Europa, trazidas para o país com o objetivo de em-
branquecer a população. A despeito disso, tal discurso negacionista quanto à possibilidade
da existência de quaisquer preconceitos de ordem estrutural entre a população se tornou
cada vez mais popular.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natu-
reza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País
a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à seguran-
ça e à propriedade, nos termos seguintes:
É importante perceber que o tratamento desigual não importa sempre em uma viola-
ção do princípio da igualdade. Na verdade, existem discriminações legais e ilegais, sendo que
as primeiras são absolutamente essenciais para a concretização dos direitos e garantias constitu-
cionais aos grupos minoritários, alijados de oportunidades justamente por causa das segundas.
Torna-se importante, por conseguinte, diferenciar uma da outra. Celso Antônio Bandeira de
Mello apresenta quatro elementos identificadores de lesões ao princípio da igualdade:
Em que pese a razoabilidade da distinção proposta por Mello, a distinção entre dis-
criminações legais e ilegais, ou lícitas e ilícitas, é um pouco vaga tendo em conta as nuances e
problemáticas das relações raciais. Cruz (2009), discorrendo sobre o assunto propõem duas
modalidades básicas de discriminação ilícita em situações no trato com grupos minoritários,
particularmente raciais. A primeira, seria a discriminação direta ou intencional, correspon-
dendo ao conjunto de condutas às quais o animus discriminatório, o dolo/desejo consciente
de ofender a integridade física e moral do outro, seria facilmente visível. Já a segunda for-
ma de discriminação seria a discriminação de fato, essa modalidade “culposa” que Gomes
(2001) denomina de “racismo inconsciente” seria a mais comum no Brasil, a despeito de
apenas a primeira ser contemplada pelo nosso ordenamento.
108 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
Ainda quanto ao tema, CRUZ(2009, p.34-37) discute que essa compreensão li-
mitada quanto ao fenômeno discriminatório, castraria qualquer hipótese real de combate à
discriminação racial no país. Para o autor, seria vital exportar institutos do direito norte-a-
mericano como a teoria dos motivos mistos (Mixed Motive Theory) ou a teoria do impacto
desproporcional (disparate impact doctrine) cujo foco se destinaria exatamente a tornar mais
perceptíveis ao julgador casos da modalidade “inconsciente” da discriminação racial. Tais
sofisticações hermenêuticas, entretanto, ainda estão longe de serem adotadas pelo judiciário
nacional, que se debate ainda entre a comum interpretação majoritariamente econômica do
fenômeno discriminatório9 e uma compreensão do princípio da igualdade muito tangencia-
da pela ideia do limite do possível.
Entretanto, é inegável que houveram avanços no tema, em 2003, por exemplo, du-
rante o julgamento do Habeas Corpus 82424/RS o Supremo Tribunal Federal reconheceu
que raça é um conceito cultural/antropológico/sociológico, e não biológico, não havendo
sentido em negar a existência dessa “desigualdade” fundamental sob argumentos da inexis-
tência de diferenças gênicas entre as “raças”.
9 “Acreditar que a questão racial do negro, por exemplo, se reduza a um problema de classe social, é simplificá-la
demasiadamente com o risco de obscurecer a inteligibilidade das relações entre negros e brancos e a cair no truísmo,
segundo o qual a estrutura das classes condiciona de algum modo o estígmaétnico ou racial. Achar, por outro lado que
a especificidade da situação do negro – ou de uma minoria qualquer – seja de tal ordem que dispense a consideração
comparativa de outros casos de relações interétnicas, é empobrecer injustificadamente o campo de referência empírica
e, por suposto, as possibilidades de construção de modelos mais abrangentes e da elaboração de teorias de maior alcan-
ce (...) A maior colaboração entre aqueles que investigam as relações interétnicas no Brasil, seja entre indios e brancos,
brancos e negros, nacionais e imigrantes que desfrutem da situação de minorias, parece-nos ser altamente desejável
para se atingir um estado mais satisfatório sobre a dinâmica das relações interétnicas no Brasil, e além disso, alcançar-
mos uma explicação melhor para nós mesmos – membros da sociedade nacional – revelados nos outros, muitas vezes
desmascarados como homens cordiais, portadores de ideologias mistificadoras da realidade interétnica – ou como se
queira racial – entre nós.” (OLIVEIRA, 1976 apud MOURA,1994, p.155-156)
ANAIS DE CONGRESSO 109
CONCLUSÃO
Fica evidenciado, portanto, que nessas últimas três décadas de vigência da Carta
Magna, houve uma grande sofisticação da compreensão do princípio da igualdade. De uma
igualdade majoritariamente entendida meramente em seu sentido formal como era nos tex-
tos constitucionais anteriores, a Constituição Cidadã evoluiu o princípio da igualdade para
uma norma cada vez mais entendida em seu caráter material, progressivamente se tornando
menos uma mera tecnicidade de qualquer Estado liberal moderno e mais um guia, senão
mesmo marco, de otimização social e divisão de renda.
Obviamente, entretanto, existem ainda problemas e tensões quanto à hodierna in-
terpretação do sentido em hard cases envolvendo questões étnico-raciais. O racismo, aqui em
seu sentido lato, é ainda um tabu na sociedade brasileira, e mesmo seu tratamento jurídico
sofre por causa do acanhamento legislativo e social que inevitavelmente acaba por lhe per-
mear. Ainda é necessário se avançar nas políticas públicas retributivas para além das meras
cotas, que em sua natureza paliativa e localizada ainda está distante de poder ser considera-
da uma real solução para a desigualdade étnico-racial brasileira e remanesce mais um mero
instrumento de interesse político do que efetivamente uma política pública. Além disso, é
importante expandir a compreensão do princípio importando do direito norte-americano
técnicas mais sofisticadas para entender a presença de discriminações ilícitas em suas formas
mais difusas.
No entanto, a despeito das limitações e obstáculos, é inegável que a Carta Consti-
tucional de 1988, um marco civilizatório fundamental da sociedade brasileira, trouxe uma
relevante evolução para o princípio da igualdade, sendo de esperar, inclusive, que tal evo-
lução continue pelas próximas décadas, enquanto que cada vez mais o caráter material do
princípio se aprofunde em nossas práticas cotidianas.
ANAIS DE CONGRESSO 113
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ANAIS DE CONGRESSO 115
RESUMO
O presente paper almeja proceder a uma releitura das teses dworkinianas à luz da
obra de Menelick de Carvalho Netto, de modo a melhor compreender a exata dimensão das
transformações que Dworkin opera no campo da teoria do direito (e, sobretudo, da teoria da
Constituição) e assim lançar as bases teoréticas para que se possa proceder a uma apreciação
crítica da recepção da obra de Dworkin, à luz da obra de Menelick de Carvalho Netto. Após
uma breve introdução, a divergência entre Dworkin e os autores ditos neopositivistas acerca
da discricionariedade judicial será utilizada de mote para apresentar a particular leitura que
faz Menelick de Carvalho Netto da obra de Dworkin, concluindo-se com a demonstração
de como Dworkin opera, no campo do Direito, o chamado giro linguístico-pragmático.
Palavras-chave: Filosofia do Direito; Teoria do Direito; Ronald Dworkin; Meneli-
ck de Carvalho Netto; discricionariedade judicial; giro linguístico-pragmático.
INTRODUÇÃO
Em 1991, por ocasião de colóquio organizado pela Sociedade de História da Psi-
quiatria e da Psicanálise a propósito do aniversário de 30 anos da obra “História da Loucura”,
o filósofo Jacques Derrida proferiu notória conferência, sugestivamente intitulada “Fazer
Justiça a Freud”, por meio da qual retomava seu debate com Michel Foucault, travado al-
1 Mestre em Direito, Estado e Constituição e Bacharel pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília
(FD-UnB, sob a orientação do professor Menelick de Carvalho Netto. marcusfbastos@gmail.com
2 Professor voluntário de Sociologia Jurídica da Faculdade de Direito da UnB. Mestre em Direito, Estado e
Constituição e Bacharel pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (FD-UnB), sob a orientação do profes-
sor Menelick de Carvalho Netto. mateusrochatomaz@gmail.com
116 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
gumas décadas antes3, buscando redimensionar alguns pontos da obra freudiana. Tomando
como mote a referida exposição, o trabalho ora proposto almeja proceder a uma apreciação
crítica da recepção da obra de Ronald Dworkin por alguns de seus leitores (e mais ferrenhos
críticos), sobretudo no Brasil.
Mais especificamente, propõe-se uma releitura das teses dworkinianas à luz da obra
de Menelick de Carvalho Netto, de modo a melhor compreender a exata dimensão das
transformações que Dworkin opera no campo da teoria do direito (e, sobretudo, da teoria
da Constituição), bem como para lançar as bases de uma eventual inquirição acerca de como
um irrefletido e inconsistente uso de seu instrumental teórico pode explicar muitos dos obs-
táculos que temos enfrentado, nos últimos 30 anos, na consecução do Estado Democrático
de Direito instituído pela Constituição de 1988.
1. O PROBLEMA
Ronald Dworkin é, indubitavelmente, um dos mais relevantes teóricos a pensar
sobre o direito no contexto do último quartel do século XX. Amplamente citado, Dworkin
teve sua contundente crítica à discricionariedade judicial do neopositivismo jurídico de
Hart (DWORKIN, 1978) adotada mundo afora, tendo a sua postura em relação à dimen-
são principiológica do direito, e mesmo o seu conceito de integridade do direito, servido de
base para grande parte dos desenvolvimentos teóricos que o sucederam. Jürgen Habermas,
por exemplo, toma de empréstimo praticamente toda a teoria do direito como integridade
para fundamentar a sua teoria discursiva do direito, ainda que faça questão de consignar
suas divergências em face do autor estadunidense (HABERMAS, 1997a, pp. 241-296).
Robert Alexy, por outro lado, apropria-se dos desenvolvimentos de Dworkin para construir
a sua própria interpretação da dimensão principiológica do direito, buscando igualmente o
controle do arbítrio, por meio da proposição de um rigoroso método, por meio do qual a
incidência principiológica se efetivaria (ALEXY, 2015) – em que pesem as inerentes com-
plicações deste projeto em face dos próprios pressupostos teóricos próprios da concepção do
direito como integridade.
Também no Brasil, a obra de Dworkin tem encontrado grande recepção. Segundo
aponta Lênio Streck, é inequívoca a importância da teoria de Dworkin enquanto alicerce
para a tentativa de superação dos históricos poderes de livre convencimento ou livre aprecia-
ção que ao Judiciário eram expressamente conferidos pelo ordenamento jurídico processual
brasileiro. O art. 926 do CPC/2015, ao dispor que “os tribunais devem uniformizar sua
jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”, valeu-se, segundo pontua Streck, da
teoria do direito como integridade de Dworkin (STRECK, 2016, p. 62).
Com efeito, não é de todo incomum encontrar, em decisões judiciais Brasil afora,
3 DERRIDA, Jacques. “Fazer justiça a Freud: a história da loucura na era da psicanálise”. In: ROUDINESCO,
Elisabeth et. al. Foucault: leituras da História da loucura. Trad. Maria Ignes Duque Estrada. Rio de Janeiro: Relume-
-Dumará, 1994.
ANAIS DE CONGRESSO 117
citações e evocações do constructo teórico do direito como integridade – ainda que, em mui-
tos casos, sem o devido rigor metodológico ou a título de mero argumento de autoridade ou
erudição. O fenômeno é tal que alguns autores chegarão inclusive a falar na existência de um
“fascínio doutrinário” com a questão dos princípios no Brasil (NEVES, 2013, pp. 171-220) –
debate este em muito decorrente da apropriação (adequada ou não) da obra de Dworkin.
Ao mesmo tempo, para além de adoções e apropriações, a obra de Dworkin é tam-
bém objeto de duras críticas. Sua tese da única decisão correta é por vezes tida como inadequa-
da por supostamente não dar conta da impossibilidade até mesmo filosófica de se conceber,
no contexto de uma prática social hipercomplexa, uma resposta que, aprioristicamente, possa
solucionar os problemas que são postos ao direito. Nessa linha, também o modelo de juiz por
ele proposto, aquele que segue a teoria do direito como integridade (juiz Hércules), é por vezes
caracterizado como um tipo ideal “monológico”, “abstrato”, “sobre-humano” e, portanto, uma
mera construção mental abstrata, de capacidade explicativa duvidosa em face da realidade con-
creta da prática jurídica. São essas, em maior ou menor grau, as objeções que lhe vão formular
autores como José Rodrigo Rodriguez (RODRIGUEZ, 2013, pp. 16-17), Marcelo Neves
(NEVES, 2013, p. 59-60) e Habermas (HABERMAS, 1997, v. I. p. 276-278).
A essas leituras, contrapõe-se a obra de Menelick de Carvalho Netto, avançada
também por Guilherme Scotti, que, a partir de Hans Georg Gadamer e do próprio Haber-
mas, empreenderá uma original leitura do arcabouço teorético de Ronald Dworkin, tendo
sempre como pano de fundo o Estado Democrático de Direito, instituído com o advento
da Constituição de 1988.
Sob essa ótica, a obra de Dworkin funda-se numa rejeição da tese neopositivista de
redução da legitimidade do direito à simples textualidade legal, sem contudo abrir mão da
distinção entre direito, política e moral, na medida em que essa distinção se concretiza jus-
tamente na “tradução dos princípios morais e dos objetivos políticos na linguagem propria-
mente jurídica, internalizando e ressignificando assim seus conteúdos no direito positivo”
(CARVALHO NETTO; SCOTTI, 2011, p. 57-58).
Dworkin concebe o direito, então, como uma prática interpretativa indubitavel-
mente imersa no contexto passado de história institucional em que se inscreve, mas que, ao
mesmo tempo, deve se abrir à tarefa de resolver cada caso concreto que lhe submetido em
sua unicidade. E é nesse contexto que se inscreve a tese da única resposta correta, tida não
como a antecipação apriorística do conteúdo de uma dada decisão judicial (muito menos
como um método a ser seguido pelo intérprete a lhe garantir a retidão de suas conclusões),
mas antes como uma postura contrafactual do intérprete, que deve levar os direitos a sério,
interpretando reconstrutivamente e em sua melhor luz os princípios jurídicos eleitos por
uma determinada comunidade para reger sua vida em comum.
Dworkin opera, no campo da teoria do direito, o chamado giro linguístico (por ele
chamado de “aguilhão semântico”), retrabalhando suas consequências epistemológicas para a
prática jurídica (DWORKIN, 2014, p. 55-56) – exercício que se efetiva pelo deslocamento
118 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
da questão acerca do que é uma Constituição para o questionamento acerca do que uma
Constituição constitui. Nessa linha, a Constituição constitui “uma comunidade fundada
sobre princípios” alicerçada no “reconhecimento recíproco da liberdade de todos e cada um
de seus membros” (CARVALHO NETTO; SCOTTI, 2011. p. 158).
Tais princípios consistem justamente nos compromissos mais essenciais de igual-
dade e liberdade (direitos fundamentais) reciprocamente reconhecidos pelos membros de
uma dada comunidade enquanto coautores desses mesmos compromissos. Trata-se de uma
noção, portanto, intimamente ligada à prática cotidiana da democracia, o que é particular-
mente verdadeiro sobre o processo que resultou na instituição da Constituição de 1988, em
que, salienta Menelick de Carvalho Netto, uma “crescente organização da sociedade civil”,
verificada e intensificada ao longo dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, “não
apenas forçou a transição para o regime democrático, mas, sobretudo, emprestou ao pro-
cesso nacional constituinte, muito embora a Assembleia não fosse exclusiva, legitimidade
jamais alcançada em nossa história constitucional, em razão da participação ativa e direta do
cidadão” (CARVALHO NETTO, 1992, p. 293).4
É a democracia, tomada em sua dimensão procedimental de elaboração do texto
constitucional, a grande novidade do processo constituinte de 1987/1988, e é essa circuns-
tância, que, por uma via até então inesperada, efetivamente rompe com a ordem autocrática
e confere o caráter originário e genuinamente instituinte aos trabalhos da Assembleia Nacio-
nal Constituinte (REZENDE, 2017).
A integridade do direito significa justamente “a densificação vivencial do ideal da comu-
nidade de princípio [...], bem como, em uma dimensão diacrônica, a leitura à melhor luz da sua
histórica institucional como um processo de aprendizado em que cada geração busca, da melhor
forma que pode, vivenciar esse ideal” (CARVALHO NETTO; SCOTTI, 2011. p. 67).
Em meio a esse debate, o trabalho ora realizado almeja proceder a uma apreciação
crítica da recepção da obra de Dworkin à luz da obra de Menelick de Carvalho Netto. Mais
especificamente, em virtude do escopo delimitado da obra coletiva em que este esforço se
insere e em face dos próprios limites de tempo e espaço do Congresso em que esta exposição
foi originalmente apresentada, o presente paper se debruçará sobre as bases teoréticas da lei-
tura que Menelick de Carvalho Netto faz de parte da obra de Ronald Dworkin.
teórico travado entre ele, expoente maior do neopositivismo jurídico anglo-saxão, e Ronald
Dworkin, seu principal crítico e sucessor na cátedra de Teoria do Direito da Universidade de
Oxford, se deu em torno da discricionariedade judicial (HART, 1994, p. 272).
Partindo da reconstrução dessa importante divergência, um bom mote para apre-
sentar a particular leitura que faz Menelick de Carvalho Netto da obra de Dworkin reside
em elucidar o que a teoria do direito como integridade tem a dizer sobre a fundamentação
das decisões judiciais, enquanto instrumento de resguardo da validade do Direito contra
casuísmos e preferências dos juízes quando da aplicação concreta da Lei.
Para Kelsen, o juiz, ao apreciar um caso concreto, deve ter em mente que qualquer
decisão que se atenha aos limites da moldura, ou seja, qualquer sentido decisório possível ex-
traído dentro desse quadro, é Direito (KELSEN, 1987, p. 366). E a quem incumbiria então
a fixação dos limites da moldura de sentidos possíveis? Segundo Kelsen, esse seria o papel da
interpretação, isto é, “[...] a fixação por via cognoscitiva do sentido do objeto a interpretar”,
tendo por resultado “[...] o conhecimento das várias possibilidades que dentro desta moldu-
ra existem” (KELSEN, 1987, p. 366).
De acordo com Dworkin, o esqueleto do (neo) positivismo, comum a suas diversas
vertentes5, pode ser assim sinteticamente descrito: (a) por Direito deve-se entender o conjun-
to de regras que regem a vida em sociedade, as quais podem ser identificadas não de acordo
com o seu conteúdo propriamente, mas de acordo com seu pedigree, ou seja, de acordo com
a maneira como foram inseridas no ordenamento jurídico e de como ganharam autoridade;
(b) sendo o Direito o conjunto de regras da comunidade, na hipótese de uma pretensão não
estar albergada pela aplicação clara de uma determinada regra, haverá discricionariedade
do aplicador, que deve decidir o caso; e, (c) direitos e obrigações jurídicos derivam único e
exclusivamente das regras, não havendo que se falar em direitos e obrigações preexistentes e
predeterminados ao ordenamento jurídico positivo (DWORKIN, 2002, p. 27-28).
Como se vê, apesar de suas particularidades, as teorias neopositivistas de H.L.A.
Hart e de Hans Kelsen, no que interessa ao objeto do presente trabalho, são convergentes
quanto à abertura semântica dos enunciados normativos e quanto à discricionariedade dos
aplicadores no momento da escolha de um dos sentidos possíveis a serem aplicados em casos
sem solução imediata pela técnica de subsunção de problemas concretos a normas legais em
abstrato. Nessa linha, ambos os autores rechaçam a ideia, que será posteriormente ressigni-
ficada pela teoria de Dworkin, de que há uma única decisão correta para um determinado
caso concreto (HART, 2009, p. 171; KELSEN, 1987, p. 371).
Dworkin, em sua contundente crítica a Hart, vai apontar que tanto o neopositi-
vismo quanto o antinormativismo realista não conseguiram responder à questão subjacente
ao problema central da Teoria do Direito: “[...] existem controvérsias relativas a princípios
morais que subjazem a um problema aparentemente linguístico” quando da análise factual
de decisões de tribunais em casos ditos fáceis ou difíceis (DWORKIN, 2002, p. 9). Segundo
aponta Dworkin, “a teoria do direito deveria responder a essa preocupação explorando a na-
5 Segundo aponta Dworkin, “[...] as diferentes versões diferem sobretudo na sua descrição do teste fundamental
de pedigree que uma regra deve satisfazer para ser considerada uma regra jurídica” (DWORKIN, 2002, p. 29).
ANAIS DE CONGRESSO 121
pelas partes (a serem apreciadas pelo juiz), e o conjunto de princípios de equidade, justiça e
devido processo legal necessários à sua justificação enquanto mecanismo institucional atri-
buidor de direitos, deveres e obrigações às pessoas (DWORKIN, 2014, p. 273-274).
Importante pontuar o que significa coerência para ele. Dworkin critica uma “[...]
forma cega de coerência” (DWORKIN, 2014, p. 266), segundo a qual os papeis do legislador,
ao propor e deliberar sobre um projeto de lei, e do juiz, ao se debruçar sobre uma lide, não
podem ser vistos como a mera repetição irrefletida das decisões pretéritas. Segundo aponta, a
coerência exigida pela integridade é mais profunda, pois “[...] exige que as normas públicas da
comunidade sejam criadas e vistas, na medida do possível, de modo a expressar um sistema
único e coerente de justiça e equidade na correta proporção” (DWORKIN, 2014, p. 264).
É dessa forma que sua teoria, reconhecendo a condição permanentemente inter-
pretativa do Direito, vai defender a perfeita compatibilidade entre inovações e novas inter-
pretações das práticas jurídicas com o conceito de coerência que suscita. Isso porque “[...]
uma instituição que aceite esse ideal às vezes irá, por esta razão, afastar-se da estreita linha
das decisões anteriores, em busca de fidelidade aos princípios concebidos como mais funda-
mentais a esse sistema como um todo” (DWORKIN, 2014, p. 264).
E acrescenta: “[...] A integridade é uma norma mais dinâmica e radical do que pa-
recia de início, pois incentiva um juiz a ser mais abrangente e imaginativo em busca de coe-
rência com o princípio fundamental” (DWORKIN, 2014, p. 265). Nesse contexto, emerge
o conceito de interpretação criativa inerente ao direito como integridade, a qual prescreve
que interpretar o material jurídico da comunidade, à semelhança da interpretação artística,
não é simplesmente descrever, mas sim “[...] impor um propósito, ao texto, aos dados ou
às tradições que está interpretando” (DWORKIN, 2014, p. 275). Trata-se do aspecto nor-
mativo da interpretação, que se mostra mais evidente ainda para o Direito, o qual é, para
Dworkin, um sistema de ação coerentemente organizado e precipuamente voltado para a
solução de conflitos de acordo com o postulado do igual respeito e consideração, inclusive
pelas diferentes concepções morais da comunidade política (DWORKIN, 2014, p. 202).
Tendo esse modelo de interpretação em perspectiva, Dworkin propõe uma com-
paração entre o papel do juiz e o do crítico literário que analisa um complexo poema, com
a peculiaridade de que os juízes são, ao mesmo tempo, autores e críticos do Direito inter-
pretado (DWORKIN, 2014, p. 275). Como consequência, Dworkin cria a metáfora do
romance em cadeia para explicar a prática jurídica6: imagine-se um ousado projeto literário
6 Sobre o romance em cadeia: “Ao levarmos em conta a história constitucional, podemos ver o que esse duro
processo de aprendizado institucional nos ensinou a respeito dos direitos fundamentais à igualdade e à liberdade. A
produtiva tensão constitutiva inerente a esses princípios encontra-se presente em todas as dicotomias clássicas típicas
da modernidade, como público e privado, soberania popular constitucionalismo, republicanismo e liberalismo, etc.,
pois apenas aparentemente apresentam uma natureza paradoxal. Também aqui esses polos efetivamente opostos, são
também, a um só tempo, constitutivos um do outro, de tal sorte que instauram uma rica, produtiva e permanente
tensão, capaz de dotar a doutrina constitucional da complexidade necessária para enfrentar problemas que ela antes
nem era capaz de ver” (CARVALHO NETTO; SCOTTI, 2011, p. 67-68).
ANAIS DE CONGRESSO 125
Dworkin, ao avançar em sua teoria, propõe como arquétipo do direito como inte-
gridade e do seu caráter holístico e permanentemente interpretativo, a metáfora de um juiz
sobre-humano chamado Hércules:
jurídico de Hart e de Kelsen, Dworkin sugere que, ainda nesses casos sem solução pré-defi-
nida por qualquer regra – tendo em vista que cada caso é único e irrepetível –, há um direito
pré-estabelecido de se ter sua pretensão jurídica assegurada (SCOTTI, 2008, p. 18).
Há de se dizer, contudo, que esse argumento da única decisão correta não represen-
ta, em absoluto, um método7 capaz de determinar, a priori, a solução de uma determinada
lide. Ao contrário, trata-se de “[...] uma postura a ser adotada pelo aplicador diante da situ-
ação concreta e com base nos princípios jurídicos, entendidos em sua integridade” (SCOT-
TI, 2008, p. 18-19, grifos no original). Nas próprias palavras do autor, “[...] o direito como
integridade consiste numa abordagem, em perguntas mais do que em respostas, e outros
juristas e juízes que o aceitam dariam respostas diferentes das dele às perguntas colocadas
por essa concepção de direito” (DWORKIN, 2014, p. 287).
7 Com efeito, “[...] o ponto de partida de Dworkin aqui, portanto, é o da crítica ao excesso de racionalidade
inconsciente que marcava a visão anterior não só do conceito de ciência mas do próprio conceito de direito, de norma
e de ordenamento jurídico, é saber que uma norma geral e abstrata nunca regulará por si só as situações de aplicação
individuais e concretas, até mesmo pela incorporação de maior complexidade ao ordenamento de princípios que a sua
adoção necessariamente significa, ao dar uma maior densidade aos princípios constitucionais básicos e ao, simultane-
amente, abrir novas possibilidades de pretensões abusivas” (CARVALHO NETTO; SCOTTI, 2011, p. 65-66)..
ANAIS DE CONGRESSO 127
8 De acordo com Dworkin, “[...] somente regras ditam resultados. Quando se obtém um resultado contrário, a
regra é abandonada ou mudada. Os princípios não funcionam dessa maneira; eles inclinam a decisão em uma direção,
embora de maneira não conclusiva. E sobrevivem intactos quando não prevalecem” (DWORKIN, 2002, p. 57).
128 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
Dworkin, é claro, sabe tão bem quanto Kelsen, que qualquer texto
possibilita várias leituras, o problema da decisão judicial, no entanto,
é que a mesma se dá como solução de um conflito concreto e envolve
igualmente a interpretação dos fatos que configuram uma situação de
aplicação única e irrepetível. Esses fatos, como revelam a própria ci-
ência e sua teoria, por exemplo, através do conceito de ‘paradigma’ de
Thomas Khun, são, na verdade, equivalentes a texto, ou seja, somente
apreensíveis por meio da atividade de interpretação, mediante uma
atividade de reconstrução da situação fática profundamente marcada
pelo ponto de vista de cada um dos envolvidos. Por isso mesmo, aqui,
no domínio dos discursos de aplicação normativa, faz-se justiça não
somente na medida em que o julgador seja capaz de tomar uma deci-
são consistente com o Direito vigente, mas para isso ele tem que ser
igualmente capaz de se colocar no lugar de cada um desses envolvidos,
de buscar ver a questão de todos os ângulos possíveis e, assim, proceder
racional ou fundamentadamente à escolha da única norma plenamen-
te adequada à complexidade e à unicidade da situação de aplicação que
se apresenta (CARVALHO NETTO, 2004).
ANAIS DE CONGRESSO 129
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ANAIS DE CONGRESSO 131
RESUMO
Este trabalho tem por escopo elucidar os rumos da educação de excelência poste-
riormente à Constituição da República de 1988 e verificar de qual maneira a atual Carta
Constitucional auxilia na concretização deste direito. Dito isto, se faz necessário analisar a
previsão que faz a Constituição acerca da educação, observando a diferença entre a disposi-
ção no Texto Constitucional de 1967 e a atual, buscando assentar sobre a evolução e atual
condição da educação no Brasil.
Palavras-chave: Educação; Constituições; Direto Fundamental e Social; Aplica-
ção; Ações Coletivas.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho busca analisar como o direito fundamental à educação é trata-
do após a Constituição da República de 1988 e como esta vem auxiliando para a efetivação
deste direito. Sabe-se que a educação é prerrogativa máxima no Estado de Democrático de
Direito, que tem por finalidade a justiça social.
Para tanto, buscar-se-á realizar um exame comparativo da educação sob a luz da
Constituição de 1967, anterior à Carta Constitucional de 1988, e a atual Constituição
Federal, observando a previsão constitucional no tocante à educação e verificando como o
hodierno Texto Constitucional vem contribuindo para realização deste direito.
Nessa esteira, o objetivo deste artigo é verificar como o direito fundamental social
1 Mestranda em Direito pelo programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG). Advogada. micaelalamounieradv@gmail.com.
134 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
à educação vem sendo visto após a promulgação da Constituinte de 1988 e como ela tem
contribuído para a efetivação deste direito no Brasil. Para isto, imprescindível perpassar pe-
los dizeres constitucionais sobre a matéria e elucidar acerca do status do direito à educação
após a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
A metodologia usada será constituída por pesquisa bibliográfica em livros que propor-
cionarão o esclarecimento da relevância da CRFB/88 para a realização do direito à educação.
Desta feita, diante do trintenário da Lex Mater de 1988, aduzir a respeito da cons-
titucionalidade da educação parece fundamental para esclarecer os avanços da concretização
do ensino de qualidade nesse ínterim.
Para o Prof. José Luiz Borges Horta, em sua obra Direito Constitucional da Edu-
cação, as Emendas Constitucionais nº 9 de 1964, nº 18 de 1965 e nº 20 de 1966, todas
concernentes à educação, davam sinais que viria um texto constitucional antidemocrático:
ANAIS DE CONGRESSO 135
Destarte, a educação estava prevista nos artigos 8º, inciso XVII, “q” e § 2º, e artigo
168 e seguintes da Ordem Constitucional de 1967. No artigo 168, posteriormente predito
no art. 176 em razão da Emenda Constitucional nº 1 de 1969, a educação era vista como
direito universal de todos, todavia, era baseada no principio da unidade nacional, na liber-
dade e na solidariedade humana:
2 Também conhecido por sua denominação em inglês como Welfare State. Sobre o tema, explica Paulo Bonavides
(2013, p. 380): “O constitucionalismo dessa terceira época fez brotar no Brasil desde 1934 o modelo fascinante de
um Estado social de inspiração alemã, atado politicamente a formas democráticas, em que a Sociedade e o homem-
-pessoa-não o homem-indivíduo-são os valores supremos. Tudo porém indissoluvelmente vinculado a uma concepção
reabilitadora legitimante do papel do Estado com referência à democracia, à liberdade e à igualdade”.
138 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
Todavia, tal modelo de Estado não foi suficiente para suprir os anseios sociais,
sendo necessário, portanto, um novo modelo de Estado: o Estado Democrático de Direito.
Nesse novo paradigma, o cerne não está apenas em concretizar os direitos de primeira e se-
gunda geração, o objetivo vai além.
A preocupação também está em universalizar os direitos para todos sem se conter
diante de limites sociais, financeiros e/ou geográficos, o que se corrobora através da criação
da Organizações das Nações Unidas (ONU).
Ante tais premissas, possível inferir que a Constituição da República, nesses últimos
30 anos, vem se empenhando para a concretização do direito em questão, seja dedicando
exaustivamente previsões no tocante à matéria ou, ainda, constitucionalizando o direito à
educação, dando caráter fundamental e social.
fundamentais nos mostra que não é, sendo que, uma vez desprezadas tais normas, cabe ao
Poder Judiciário o cumprimento (BARROSO, 2006).
Apesar da disposição contida no art. 5º, §1º, da CF, raras não são as vezes em que
os operadores do direito, especialmente os advogados na defesa dos direitos de seus clientes,
demandam ao Judiciário a resolução de lides que atentam contra normas e garantias funda-
mentais. Aqui está o verdadeiro espírito da norma: impedir a violação de direito, mas uma
vez transgredida, que o Judiciário possua meios concretos de solucionar a questão em bene-
fício dos direitos fundamentais.
Ademais, há outros mecanismos importantes para aplicação dos direitos funda-
mentais, buscando a materialização da educação por todos os indivíduos, a saber, a menção
que os direitos e garantias dispostos na CRFB/88 não suprimem os demais oriundos do re-
gime e princípios por ela adotados e dos tratados internacionais que o Brasil tenha aderido
(art. 5º, parágrafo segundo, da CF/1988).
Insta salientar que a Carta Constitucional de 1988 foi a primeira Constituição bra-
sileira a prever explicitamente a possibilidade de novos direitos receberem a proteção consti-
tucional, embora estando previstos em tratados internacionais. Assim, os direitos e garantias
fundamentais não decorrem apenas do enunciado do art. 5ª da CF, já que o rol ali presente
é meramente exemplificativo, devendo incluir outros direitos (BULOS, 2009).
Nesse sentido, explica Uadi Lammêgo Bulos (2009, p. 596):
Lado outro, outra relevante medida é dispor que os direitos e garantias individuais
não poderão ser extintos ou reduzidos por proposta de emenda constitucional (art. 60, inc.
IV, da CF/1988). Insta salientar, que a vedação diz respeito à diminuição ou eliminação dos
referidos direitos, mas jamais a sua ampliação. (HORTA, 2007).
É nesse sentido que defende José Luiz Borges Horta (2007, p. 186): “Nestes ter-
mos, não temos nenhuma dúvida em afirmar: O Direito à Educação, como todos os direitos
dele decorrentes, constitui cláusula pétrea da Constituição Federal de 1988” (Grifo do autor).
Destarte, a natureza pétrea dos direitos individuais e, por consequência, do direito
140 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
à educação não presume a sua imutabilidade, pois se a mudança for em prol da expansão dos
direitos que já estão inseridos no acervo de direitos ou pela criação de novas prerrogativas
que necessitam estar consagradas em nossa Constituição, não recai qualquer tipo de impe-
dimento na elaboração das emendas.
nos ser noticiados situações de desvio de verbas destinadas à educação para outras finalida-
des, onde membros do poder executivo são responsabilizados e condenados no pleito pela
prática de Ação Civil Pública por Ato de Improbidade Administrativa.
Já a Ação Popular, também mandamento constitucional contido no art. 5º, inc.
LXXIII, é uma garantia fundamental do cidadão, no gozo de seus direitos políticos, que
pode ser usada quando o direito ameaçado é a educação. Embora o supracitado artigo cite
apenas como objeto desta ação coletiva o dano ao erário público, à moralidade administra-
tiva, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, referida ação é utilizada ainda a
outros direitos conexos a esses objetos.
Prevista também na Constituição de 1967, mesmo após a Emenda nº 1 de 1969,
a Ação Popular ganhou maiores proporções com a Constituição de 1988, inclusive com a
proteção à moralidade administrativa e ao meio ambiente, estabelecendo, ainda, a isenção
de custas e do ônus de sucumbência à parte autora, exceto em casos de má-fé.
Compete dizer que a educação não é uma benesse dada pelo “benevolente” Poder
Público no sentido de ter do Estado uma postura quase que paternal em relação ao seu povo.
Não, a educação não é benefício, é direito! Se o indivíduo, desde o início de seu desenvol-
vimento, tivesse acesso à educação de qualidade sem ter que, para tanto, pagar por ela, não
haveria a necessidade de demandar em juízo pela a efetivação do direito à educação através
das ações coletivas ou individuais.
Insta salientar que todas as ações coletivas nesta oportunidade abordadas vêm sido
aceitas de forma pacífica pela jurisprudência brasileira na proteção ao direito fundamental
social à educação, o que torna essencial para que os jurisdicionados envolvidos nas lides co-
letivas possam ter provimento jurisdicional eficiente e em tempo razoável, agindo a justiça
em proveito de um dos mais basilares direitos, a educação.
CONCLUSÃO
Expostas as considerações acerca do tema ora tratado, permite-se concluir que a
Constituição Cidadã cumpriu seu dever quanto à previsão concernente ao direito à educa-
ção de excelência, eis que assegurou meios eficazes para a execução desta prerrogativa.
Decerto, a educação tem evoluído quanto à sua aplicação e previsão constitucional,
tanto é que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 progrediu no que
tange aos mandamentos normativos acerca da matéria, definindo princípios norteadores,
recursos orçamentários e demais garantias imprescindíveis para aplicação do direito funda-
mental social à educação.
A análise das Constituições de 1967 e 1988 no que toca à educação é ponto rele-
vante para a reflexão sobre a efetivação do ensino de excelência. O Texto Constitucional é o
142 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
norte que orientará a sociedade, auxiliando na criação de preceitos para a concretização dos
direitos fundamentais.
Nesse sentido, ressaltam-se como forma de efetivação do direito à educação a previsão
de aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais (art. 5º,
§1º, da CF/88), a possibilidade de incluir no rol de direitos fundamentais os direitos provenien-
tes de tratados internacionais que o Brasil tenha aderido (art. 5º, §2º, da CF/88), a natureza de
cláusula pétrea dos direitos fundamentais (art. 60, inc. IV, da CF/1988) e ações coletivas.
Necessário agora é a atuação incisiva dos Poderes Executivo, Judiciário e Legislativo
para que os dizeres constitucionais deixem o plano teórico a fim de alcançar o aspecto práti-
co tão sonhado pela CRFB/88 que é promover a todos os sujeitos de direito a educação de
qualidade, essencial ao Estado Democrático de Direito.
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ANAIS DE CONGRESSO 143
RESUMO
O artigo discorre sobre o direito das pessoas com deficiência a uma educação efe-
tivamente inclusiva, conforme determina a Constituição de 1988, a legislação infraconsti-
tucional e os Tratados e Convenções das quais o Brasil é signatário. Faz também uma bre-
ve retrospectiva, analisando como Constituições brasileiras anteriores trataram dos direitos
fundamentais das pessoas com deficiência. Em seguida, procurará fazer uma leitura da situ-
ação do ensino inclusivo e das pessoas com deficiência no Brasil a partir da filosofia política
de John Rawls, analisando se as teorias desenvolvidas pelo filósofo se aplicam à realidade
brasileira. Destacará também as conquistas alcançadas e os desafios que devem ser enfrenta-
dos para uma verdadeira e eficiente educação inclusiva no Brasil.
Palavras-chave: John Rawls; filosofia política; constituição de 1988; educação in-
clusiva; pessoas com deficiência.
INTRODUÇÃO
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 tutelou os direitos fun-
damentais das pessoas com deficiência como nenhuma outra Constituição brasileira havia
feito até então.
Consagrou constitucionalmente as obrigações que o poder público e a sociedade
têm para com as pessoas com deficiência, destacando entre essas obrigações o direito a uma
educação verdadeiramente inclusiva.
Nestes trinta anos de vigência, a Constituição de 1988 e os princípios por ela res-
1 Mestranda em Teoria Constitucional pelo programa de pós-graduação da UFMG.
144 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
guardados (e que também a resguardam) iluminaram a produção de leis que objetivam pro-
mover o direito à educação das pessoas com deficiência e que pretendem também coibir a
discriminação praticada por instituições de ensino públicas e particulares.
Como exemplo recente, temos o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº
13.146/15), que ao tratar da educação inclusiva, veda que escolas particulares façam cobran-
ças adicionais para a matrícula e manutenção do aluno com deficiência nos bancos escolares.
Além disso, o Estatuto elenca uma série de obrigações que as instituições de ensino públicas
e privadas precisam cumprir.
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal decidiu pela constitucionalidade dos
dispositivos do Estatuto da Pessoa com Deficiência que reafirmavam o dever das escolas
particulares em promover a educação inclusiva para alunos com deficiência, fornecendo as
ferramentas necessárias para que essas pessoas tenham acesso ao conhecimento dividido em
sala de aula.2
Saliente-se que o ensino inclusivo de qualidade garante que, mais tarde, pessoas
com deficiência consigam acesso ao mercado de trabalho, senão em condições idênticas a
das pessoas sem deficiência, ao menos mais justas.
A educação inclusiva não tem como objetivo apenas qualificar pessoas com defici-
ência para que estas mais tarde ocupem vagas de emprego, mas principalmente para que os
indivíduos com deficiência construam o seu autorrespeito (ZANITELLI, 2015), tenham
as mesmas oportunidades oferecidas aos indivíduos sem deficiência para desenvolver seus
talentos e aptidões, convivam com a diversidade - e não segregados em escolas e classes es-
peciais, limitando a sua convivência a outras pessoas com deficiência - e para que possam
usufruir integralmente de seus direitos e sejam capazes de cumprir seus deveres. Enfim, para
que exerçam a cidadania com plenitude.
Rawls, em seus estudos sobre filosofia política, reconhece a importância do acesso à
educação para a ideia de sociedade cooperativa, pois indivíduos educados poderão ter uma
participação política mais efetiva e qualificada na sociedade.
Nesse artigo, além de tratar da realidade da educação inclusiva no Brasil, procura-
remos fazer uma leitura do panorama a partir da teoria da justiça desenvolvida por Rawls.
As ideias de Rawls sobre uma sociedade bem ordenada e sobre os princípios da justiça
(e sua aplicação) se encaixam na situação atual de vida das pessoas com deficiência no Brasil?
A evolução da tutela constitucional e infraconstitucional do direito ao ensino inclu-
sivo para a pessoa com deficiência no país refletiu como deveria na realidade dessas pessoas,
ajudando-as no acesso às mesmas oportunidades dadas às pessoas sem deficiências? O que
pode ser feito para a efetiva concretização do ensino inclusivo de qualidade no Brasil? São
essas as perguntas que procuraremos responder por meio desse artigo.
Houve sim um avanço quando pensamos em políticas públicas para pessoas com
deficiência, mas pouca evolução quanto às ideias de inserção e inclusão.
A Carta de 1937 não trouxe avanços significativos quanto aos direitos sociais.
Quanto aos direitos das pessoas com deficiência, houve na verdade retrocesso. Em seu texto
não havia qualquer referência expressa a essa minoria (FERREIRA; SOUZA, 2016, p.37).
A Constituição de 1946, promulgada após Segunda Guerra Mundial, instituiu a
aposentadoria por invalidez ao trabalhador acidentado (artigo 157, inciso XVI) (FERREI-
RA; SOUZA, 2016, p.37).
A Constituição Brasileira de 1967 garantiu a igualdade no parágrafo primeiro do
artigo 150 e a emenda nº 12 de outubro de 1978 trouxe um dispositivo que previa o direito
à educação para pessoas com deficiência (ARAUJO, 2003).
A Constituição Cidadã de 1988 significou o início da tutela constitucional efetiva
dos direitos das pessoas com deficiência (ARAUJO, 2003) tutela essa iluminada pelo prin-
cípio da Dignidade da Pessoa Humana (art. 1º, III, da Constituição da República) pelo
princípio da não discriminação (art. 3º, IV da Constituição da República), pelo princípio
da igualdade, dentre outros. A minoria composta pelas pessoas com deficiência finalmente
conquistou um catálogo de direitos constitucionalmente previstos, e entre eles encontramos
o direito não apenas à educação, mas o direito a uma educação não excludente ou estigma-
tizante, mas inclusiva.
dade (inclusive das instituições de ensino particulares, que não devem apresentar embaraços
para que pessoas com deficiência integrem os seus bancos).
Antes da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, tivemos a im-
portante “Declaração de Salamanca”. A Declaração é fruto da Conferência Mundial sobre
Necessidades Educacionais Especiais, que ocorreu na cidade espanhola de Salamanca, em
1994. Proclama a convenção que aqueles com necessidades especiais devem ter acesso à es-
cola regular, que deve acomodá-los dentro de uma pedagogia centrada na criança, capaz de
satisfazer as suas necessidades.5
O Brasil foi um dos signatários da Declaração de Salamanca, comprometendo-se
em promover a educação inclusiva. Reflexo das determinações da Constituição de 1988,
dos Tratados e Convenções internacionais com os quais o Brasil se comprometeu e princi-
palmente da luta das pessoas com deficiência e também de outros cientes da necessidade da
verdadeira inclusão dessa minoria na sociedade, em 2015 foi promulgada a Lei nº 13.146,
que instituiu a Lei Brasileira da Pessoa com Deficiência, ou o Estatuto da Pessoa com Defi-
ciência (PEREIRA e MORAIS, 2018, p.95).
Busca o Estatuto da Pessoa com Deficiência auxiliar na concretização da inclusão
social. Tutela (entre outros direitos fundamentais das pessoas com deficiência), o direito ao
ensino inclusivo, instrumento imprescindível para que essas pessoas desfrutem de uma ci-
dadania plena:
6 Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br /ccivil_03/_
ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm.> Acesso em: 08 dez. 2018.
148 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
Escolas particulares e públicas regulares, por mais que estejam inseridas em realida-
des diferentes, falham quando a questão é oferecer educação de qualidade para pessoas com
deficiência. Isso porque o ensino inclusivo passa por oferecer ferramentas para que crianças
e adolescentes com deficiência possam tirar o máximo proveito possível do que é ensinado
durante as atividades escolares.
8 Segundo o art. 27, §1º do Estatuto das Pessoas com Deficiência: “às instituições privadas, de qualquer nível e
modalidade de ensino, aplica-se obrigatoriamente o disposto nos incisos I, II, III, V, VII, VIII, IX, X, XI, XII, XIII,
XIV, XV, XVI, XVII e XVIII do caput deste artigo, sendo vedada a cobrança de valores adicionais de qualquer natureza
em suas mensalidades, anuidades e matrículas no cumprimento dessas determinações.”
ANAIS DE CONGRESSO 149
Assim, nesse ponto, é importante destacar que neste artigo, quando falamos de
“educação inclusiva”, não estamos nos referindo a apenas “inserir” o aluno com deficiência
em classes regulares9. O que realmente importa é se este aluno terá todo apoio necessário
para desenvolver as suas potencialidades, podendo mais tarde usá-las para buscar o que
deseja da vida, para que tenha acesso as mesmas oportunidades garantidas às pessoas sem
deficiências e principalmente, para que possa exercer plenamente a cidadania.
No próximo tópico, veremos se as teorias sobre o liberalismo igualitário do filósofo
político de John Rawls se subsumem à realidade das pessoas com deficiência no Brasil, base-
ando-nos principalmente na interpretação dos “princípios da justiça”, que tratam justamen-
te da igual liberdade e da equidade na diferença.
9 Seguindo o entendimento de Maria Thereza Mantoan: a inclusão prevê a inserção de forma radical, completa
e sistemática do aluno com deficiência nas escolas comuns. Quer-se dizer com isso que o objetivo é incluir o sujeito
com deficiência em instituições de ensino regulares desde o início da vida escolar, nas mesmas salas dos alunos sem
deficiências. As escolas inclusivas levam em conta as necessidades de todos os alunos para estruturar o seu sistema de
ensino, e por isso mesmo a inclusão implica uma mudança de perspectiva educacional, pois “não se limita aos alunos
com deficiência e aos que apresentam dificuldade de aprender, mas envolve todos os demais, para que obtenham su-
cesso na corrente educativa gera”.
150 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
10 Uma advertência: Rawls fala em dar as mesmas oportunidades para quem tem o mesmo nível de talento e ha-
bilidade, o que a princípio poderia significar uma restrição aos indivíduos que tem deficiência intelectual. No entanto,
com a variabilidade que encontramos no universo das pessoas com deficiência, é difícil definir de antemão que estas
pessoas não poderão apreender a mesma matéria ministrada às pessoas sem deficiência. Com as adaptações necessárias,
ANAIS DE CONGRESSO 151
A inclusão das pessoas com deficiência como é feita em muitas das instituições de ensi-
no no Brasil ainda está distante do ideal que buscamos pela linha de raciocínio aqui defendida.
A igualdade de oportunidades é na verdade perversa quando garante o acesso à es-
cola comum por pessoas com alguma deficiência de nascimento ou de indivíduos que não
têm possibilidades das demais de passar pelo processo educacional em toda a sua extensão,
por problemas alheios aos seus esforços, mas não lhes assegura a permanência e o prossegui-
mento da escolaridade em todos os níveis de ensino (MANTOAN, 2008, p. 32).
Pode-se comprovar isso por números. Um grande avanço se deu com o aumento de
estudantes com deficiência matriculados em escolas regulares:
11 Os tipos de deficiência referidos na pesquisa são as deficiências física, auditiva, visual, intelectual e múltipla.
154 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
CONCLUSÃO
A Constituição de 1988 significou um notável avanço quando nos referimos à tu-
tela dos direitos fundamentais das pessoas com deficiência, e nesse artigo cuidamos de uma
questão crucial: o direito à educação inclusiva.
Sob a luz da Carta de 1988 e dos princípios por ela proclamados, como o princípio
da isonomia, da não discriminação, da dignidade da pessoa humana, o Legislativo produziu
uma série de leis que visam promover a inclusão das pessoas com deficiência na sociedade,
principalmente por meio do ensino inclusivo. Citamos como exemplo mais recente o Esta-
tuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015).
Baseando-se nos mesmos mandamentos constitucionais, o Poder Judiciário tam-
bém atuou diretamente na defesa do direito à educação inclusiva. O Supremo Tribunal Fe-
deral, em 2016, decidiu que escolas particulares regulares têm sim o dever de incluir pessoas
com deficiência em seus bancos, sem cobrar para isso valores adicionais em matrículas e ou-
tras taxas, além de possuírem a obrigação de oferecer todo uma estrutura para que os alunos
com deficiência possam desenvolver integralmente as suas potencialidades, lado a lado aos
alunos sem deficiências.
Entretanto, apesar de todo aparato constitucional e infraconstitucional, o Brasil
ainda encontra-se faticamente distante do ideal na promoção do ensino inclusivo. Isso se
torna ainda mais evidente quando fazemos uma leitura da realidade a partir da filosofia polí-
tica, dos princípios da justiça de John Rawls. O Brasil encontra dificuldades para seguir um
modelo de reparação das desigualdades e da busca da equidade mesmo na diferença para as
pessoas com deficiência.
O panorama dificilmente mudará enquanto as instituições de ensino públicas e
particulares continuarem julgando como sendo o “problema” as “limitações” das pessoas
com deficiência. O problema não é a pessoa com deficiência, como querem fazer parecer.
Na verdade, o “problema” é a ausência de estrutura, de treinamento do corpo docente, de
práticas pedagógicas apropriadas e sensíveis às diferenças, de equipes especializadas que faci-
litem a interação dos alunos com deficiência com o ambiente escolar. Essas são as questões
a serem resolvidas para termos a verdadeira inclusão.
ANAIS DE CONGRESSO 155
A leitura deveria mudar: temos escolas e espaços limitados para a inclusão, e não
simplesmente pessoas limitadas por suas deficiências. Como bem diz Maria Thereza Manto-
an, é a escola que deve se adaptar ao aluno com deficiência, e não o contrário.
Somente com a promoção de uma educação efetivamente inclusiva (e não apenas
não excludente ou integradora) teremos avanços significativos e faremos cumprir o que de-
termina a Constituição de 1988.
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ANAIS DE CONGRESSO 157
RESUMO
Lançar um olhar crítico para a experiência constitucional brasileira referente ao perí-
odo de 1990 até 2017 auxilia na tarefa de compreender a atuação dos amici curiae no controle
concentrado de constitucionalidade. O objetivo central consiste em demonstrar como é a
atuação deste instituto jurídico-político, que traz consigo a promessa de democratização da ju-
risdição constitucional. Compete, portanto, investigar a conformidade das hipóteses tanto de
pluralidade, quanto de participação social, realizadas pelas intervenções dos amici. A partir da
análise dos materiais e dos julgados prolatados pelo Supremo Tribunal Federal busca-se confir-
mar, teórica e empiricamente, na experiência constitucional brasileira as sobreditas hipóteses
ao longo dos últimos vinte e sete anos. Para tanto, utiliza-se o método de análise bibliográfica
e documental com o propósito de fornecer elementos adequados e atualizados para a com-
preensão dos fenômenos investigados. Finalmente, confirma-se parcialmente as hipóteses pes-
quisadas; isto porque, quantitativamente os amici pluralizam os debates no ambiente testado,
sem, contudo, representar um autêntico veículo de participação social, que, de maneira geral,
se revela pouco expressiva na jurisdição constitucional brasileira.
Palavras-chave: controle concentrado de constitucionalidade; democracia partici-
pativa; efetividade; Estado democrático de direito; intervenção de terceiros.
INTRODUÇÃO
O presente artigo destaca o tema-problema da participação social, no qual se inves-
tiga a realização da pluralidade interpretativa e da participação social mediante a atuação dos
amici curiae na experiência constitucional brasileira. Especificamente, procura-se demons-
2 Cabe ressaltar que referente a Lei n. 9.868/1999 recaem contundentes críticas, sobre o tema, entre outros,
conferir Oliveira (2001, p. 77; 2003 p. 166 e seg. Especialmente o item 6. A inconstitucionalidade da Lei Federal n.
9.868 em face de uma interpretação constitucionalmente adequada do modelo constitucional brasileiro do controle de cons-
titucionalidade, p. 200-209).
ANAIS DE CONGRESSO 159
3 Os procedimentos para a coleta dos dados no sítio eletrônico do STF foram acessados na aba “Processos”,
“ADI, ADC, ADO e ADPF” a base selecionada foi a “ADI” o “Termo de busca” foram as palavras “amicus” e “amici”.
4 Cf. “ANEXO A - População dos julgados analisados (ação direta de inconstitucionalidade - ADI)” Disponível
em: <https://drive.google.com/file/d/1qk1Y_RARbZuU2l6I7b9XCfukoO48Z6If/view?usp=sharing>.
5 Cf. OLIVEIRA, Wagner Vinicius de. A promessa constitucional de participação social: Constituição da Repú-
blica de 1988 e amici curiae sob debate. In: SILVA, Paulo Roberto Coimbra; SOUSA, Simone Letícia Severo e. (Orgs.).
A Constituição trinta anos depois: teoria constitucional, direitos humanos e instituições democráticas. Belo Horizonte:
D`Plácido, 2018. No prelo; OLIVEIRA, Wagner Vinicius de. Os amici curiae na experiência constitucional brasileira:
da pluralidade à participação social. Comunicação oral apresentada no Grupo de Trabalho 3 do “Congresso 1988-2018
O quê constituímos? Homenagem a Menelick de Carvalho Netto nos trinta anos da Constituição de 1988” realizado no dia
04/10/2018 na Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, Belo Horizonte/MG; OLIVEIRA, Wagner Vinicius
de. Os amici curiae na experiência constitucional brasileira: da pluralidade à participação social. In: GOMES, David
Francisco Lopes; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de; RIBEIRO, Deivide Júlio. (Orgs.). 1988-2018: O que
constituímos? Homenagem a Menelick de Carvalho Netto nos 30 anos da Constituição de 1988. Belo Horizonte:
Initia Via, 2018, p. 117-127.
160 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
no processo decisório do STF,6 nos termos do art. 7º, § 2º, Lei n. 9.868/1999, compete ao
relator ou a relatora do processo acolher a “manifestação de outros órgãos ou entidades, con-
siderando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes” (BRASIL, 1999).
Considerando a amplitude e o expressivo número de ajuizamento de ação direta de
inconstitucionalidade (ADI), aumentam-se as possibilidades de identificar as intervenções
dos amici e deste modo verificar sua procedência enquanto participação social no controle
abstrato de constitucionalidade. Já é possível adiantar o crescimento dessas intervenções nas
ADI’s, resta, portanto, a tarefa de confirmar (ou não) se os amici ostentam adequada repre-
sentatividade social nesse ambiente.
Ademais, pretende-se trazer para o debate dados contextualizados e atualizados que
permitam compreender a temática das participações no controle concentrado de consti-
tucionalidade brasileiro, bem como verificar o suposto comportamento institucional em
relação a temática abordada. A necessidade das participações sociais, são também para fazer
frente a centralidade estatal constatada no rol de legitimados ativos para a deflagração do
controle concentrado de constitucionalidade (art. 103, CRFB/1988), compostos em sua
ampla maioria pelas “autoridades políticas” (MARIANO, 2009, p. 114).
Frise-se que o desenho institucional adotado em 1988 privilegiou a restrição do
acesso popular à jurisdição constitucional, no sentido acima indicado, contudo, em contra-
partida, reforça-se a necessidade das participações sociais, a partir das possibilidades infra-
constitucionais de intervenções acima indicadas. Por isso, admitir e levar em consideração as
participações sociais cumpre o objetivo de, para além de pluralizar, democratizar os debates
acerca das disputas sobre os sentidos e o alcance da Constituição na República Federativa
do Brasil a partir de uma sociedade aberta, pluralista e inclusiva em conformidade com a
perspectiva democrática do Estado de direito.
6 Também cabe ressaltar que repousam dúvidas sobre essa atribuição em relação as audiências públicas, sobre o
tema, entre outros, conferir: HERDY, Rachel; LEAL, Fernando; MASSADAS, Júlia. Uma década de audiências pú-
blicas no Supremo Tribunal Federal (2007-2017). Revista de investigações constitucionais, Curitiba, v. 05, n. 01, jan./
abr. 2018, p. 331-372.
162 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
Quer dizer então que a pluralidade apenas do ponto de vista numérico não se
harmoniza com os propósitos constitucionais erigidos a partir do Texto Constitucional de
1988, sem, antes, democratizar, de fato, o acesso aos debates do controle concentrado de
constitucionalidade realizados no STF. Em última avaliação, consiste na hipótese de, a um
só tempo, considerar o espaço público institucional deste Tribunal, mediado pelas interven-
ções dos amici curiae, como uma possível chave para pluralizar e democratizar o controle
concentrado de constitucionalidade.
Trata-se de uma tarefa sujeita a avanços e retrocessos, conquistas e dificuldades in-
compatível, portanto, com a linearidade, no sentido cronológico do termo. Igualmente, é
uma realidade que não poderá ser alterada simplesmente pela edição de enunciados positi-
vos (constitucional e infraconstitucional), exige-se, pois, a efetiva inserção das participações
sociais na experiência prática brasileira.
Os desafios não são apenas das capacidades das instituições que arrogam para si a
pecha de democráticas, são, em igual medida, das ditas instituições sociais ou da socieda-
de civil. Convém explicitar os principais argumentos referentes à sociedade civil, segundo
Habermas (1997b, p. 99, 2 v), existe um “núcleo institucional formado por associações e
organizações livres, não estatais e não econômicas, as quais ancoram as estruturas de comu-
nicação da esfera pública nos componentes sociais do mundo da vida.”
De forma exemplificativa, prossegue o citado autor, “A sociedade civil compõe-se
de movimentos, organizações e associações, os quais captam os ecos dos problemas sociais
que ressoam nas esferas privadas, condensam-nos e os transmitem, a seguir, para a esfera
pública política” (HABERMAS, 1997b, p. 99, 2 v).
Destarte, um amicus poderá ser agrupado na categoria social quando apresente
cumulativamente os seguintes elementos: a) personalidade jurídica privada; b) ausência de
pertencimento, direto ou indireto, aos quadros estatais; c) sem finalidade lucrativa; d) indi-
cação do contexto de atuação social. Tais características formam um esboço para delimitação
do objeto de pesquisa não constituem, portanto, a descrição exaustiva e peremptória sobre
as participações sociais (OLIVEIRA, 2018).
Antes de indicar os possíveis impactos das atuações no posicionamento dos Minis-
tros e Ministras do STF cabe delinear aquilo que se entende por impacto das participações
no processo decisório com o fim de analisar como o instituto jurídico-político do amicus
vem sendo utilizado. Em síntese, impactar consiste na efetiva repercussão provocada nas
manifestações do STF pelos dados e argumentos apresentados pelos amici. Vale registrar que
impactar não significa, necessariamente, acolher os argumentos oferecidos, mas, em alguma
medida, influenciar ou conduzir os debates entre os(as) intérpretes oficiais e não-oficias da
Constituição (HÄBERLE, 2013).
De fato, a “participação é uma questão de sopesamento e não uma questão de
tudo ou nada” (ANDRADE, 2018, p. 119), embora a ausência de menção aos critérios
ANAIS DE CONGRESSO 163
que norteiam as dimensões de sopesamento evidencia uma das circunstâncias que dificul-
tam sobremaneira a aplicabilidade prática dessa sugestão teórica, tem-se, portanto, que o
exercício do direito humano e fundamental à participação sujeita-se a variações, avanços
e retrocessos. No mesmo sentido, as participações poderão se manifestar de forma proces-
sual ou extraprocessual.
No momento, cuida-se da forma de participação processual representada pelas in-
tervenções dos amici. Sabe-se que para analisar uma decisão judicial é preciso relacioná-la
com as demais decisões, posicionando-a em face das disposições normativas (constitucionais
e infraconstitucionais) e teóricas, pois, definitivamente não se decide em abstrato. Nessa
tônica, análises pontuais ou desprovidas de qualquer parâmetro de racionalidade deixam de
reconstruir ou de recontar a própria história do controle de constitucionalidade e não res-
tauram o contexto no qual se inserem dentro da experiência constitucional brasileira.
De outra sorte, objetiva-se, mediante a análise jurisprudencial recuperar a “cadeia
da integridade do direito” ou o “DNA do direito” (STRECK, 2012, p. 14) no tocante as
intervenções dos amici. Portanto, pretende-se compreender seus possíveis impactos a par-
tir de uma estratégia que combine “o ‘como?’ com o ‘por que?’” (AARNIO, 1991, p. 14),
mesmo porque, à luz do Estado democrático de direito “os Tribunais devem comportar-se
de maneira tal que os cidadãos possam planejar sua própria atividade sobre bases racionais”
(AARNIO, 1991, p. 26).
Ao tocar no ponto específico da atuação dos amici, permite-se reconstruir a história
institucional das ADI’s, para tanto, casos isolados não se prestam para firmar qualquer posi-
cionamento sobre o tema examinado. De outra sorte, é devido que essa “história institucio-
nal” - entendida como a demonstração do comportamento institucional do STF referente
às participações sociais no controle concentrado de constitucionalidade - esteja presente
nos julgados analisados. Logo, no tópico seguinte será traçado o panorama desse contexto
seguindo os contornos acima delineados.
7 Parte das reflexões apresentadas nesse tópico foram trabalhadas de modo introdutório no item 5 A consoli-
dação do compromisso público de participação social: um diagnóstico em variados momentos. OLIVEIRA, Wagner
Vinicius de. A promessa constitucional de participação social: Constituição da República de 1988 e amici curiae sob
debate. In: SILVA, Paulo Roberto Coimbra; SOUSA, Simone Letícia Severo e. (Orgs.). A Constituição trinta anos de-
pois: teoria constitucional, direitos humanos e instituições democráticas. Belo Horizonte: D`Plácido, 2018. No prelo.
164 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
De tal modo, (i) qual a origem da lei ou ato normativo impugnado? Para situar o STF
em seu contexto de atuação, foram identificadas precisamente 70 (50,72%) ações propostas
em face de leis ou atos normativos de origem estadual; ao passo que 68 (49,28%) das ações
analisadas possuem objeto de matriz federal.
Percebe, portanto, o equilíbrio, no que toca a origem das leis e atos normativos
impugnados perante o STF, ou seja, a partir do recorte proposto, as participações dos amici
estão praticamente em condições de igualdade nas ações que versaram sobre leis e atos nor-
mativos federais e estaduais.
Todavia, quando se desloca o foco para a propositura da ação judicial, (ii) quem são
os legitimados ativos?, o quadro se modifica substancialmente, isto porque, a PGR iniciou 34
(24,63%) ações. Ao passo que as participações sociais não acompanham, nem de longe, a
deflagração do processo por sindicato (ADI n. 5.450), confederações (ADI’s n. 5.357; 4.762;
4.697; 3.937; 3.470; 3.406; 3.357), associações (ADI’s n. 5.062; 5.035; 4.756; 4.747) e
pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (ADI’s n. 4.772; 4.650; 4.414;
3.880; 3.614; 3.154), que totalizaram 18 (13,04%) ações nesse contexto.
No entanto, conforme já se disse, a julgar pelo desenho institucional adotado pela
Constituição da República de 1988 esse cenário já era até certo ponto previsível. Outro pon-
to de análise consiste em compreender (iii) qual a relação de admissão dos amici por relator
ou relatora?
Ressalte-se que a compreensão dos dados acima apresentados devem ser realizada
de forma articulada com os demais dados e contexto de incidência, sob pena de incorrer no
equívoco interpretativo de considerar que a pluralidade numérica é numericamente propor-
cional à pluralidade de ideias.
De agora em diante, o foco recai sobre (iv) quantos e quem são os amici admitidos?
A partir dos 483 (quatrocentos e oitenta e três) amici, que participaram das 138 (cento e
trinta e oito) ADI’s analisadas, precisamente 177 (36,65%) destes possuem origem social;
pelo menos 306 (63,35%) “não possuem origem social”.
Alguns pontos sobre os critérios utilizados para a classificação da origem social
precisam ser minimamente explicitados. Assim, existem alguns paradoxos. Em princípio
os sindicatos e confederações possuem origem social, salvo o patronal ou de determinados
servidores públicos, a exemplo do Sindicato dos Delegados de Polícia Civil (ADI n. 1.470)
ou do Sindicato dos Notários e Registradores (ADI n. 3.773).
No mesmo sentido, as associações privadas possuem origem social, excetuadas a As-
sociação do Ministério Público de Contas (ADI n. 3.736), das Companhias de Energia Elé-
trica (ADI n. 4.902), dos Shopping Centers (ADI n. 4.862), dos Defensores Públicos (ADI
n. 4.163), dos Magistrados Brasileiros (ADI n. 3.889), entre outros exemplos possíveis.
Não se cogita afirmar que essas participações sejam todas a priori ilegítimas, mas,
para fazer avançar e democratizar o controle concentrado de constitucionalidade é necessário
incluir outros agentes e as perspectivas sociais. Idênticas considerações, se fosse o caso, pode-
riam ser replicadas as participações majoritariamente sociais que fossem capaz de neutralizar
ou esvaziar o conteúdo e a atuação de outros seguimentos nesse ambiente judicial. De fato,
nessas duas hipóteses constrói-se a pluralidade de agentes, sem, contudo, aproximar-se da
participação democrática efetiva.
De toda sorte, (v) quais foram as decisões apresentadas? Das ações analisadas, 42 (30%)
foram julgadas improcedentes, 37 (27%) procedentes, 36 (26%) encontram-se aguardando
julgamento, 23 (17%) foram julgadas parcialmente procedentes. Mais uma vez, se percebe
um relativo equilíbrio numérico no resultado dos julgamentos em abstrato; condição que
poderá ser alterada quando da análise de conteúdo das decisões judiciais prolatadas.
Quantitativamente não é de todo questionável atribuir aos amici a função de plu-
ralização dos debates no STF, ou seja, diretamente ligada ao número de participantes e a
frequência das participações admitidas; todavia, se controverte acerca da construção de um
espaço público nesse ambiente especialmente, porque se deve levar em consideração as efe-
tivas contribuições e impactos dos amici.
Toma-se como exemplo as participações que decorrem de categorias ligadas aos
servidores públicos, principalmente do Judiciário, ou de atividade econômica, tais parti-
cipações estão em conformidade com os fenômenos identificados em trabalhos anteriores
166 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
8 Uma objeção precisa ser levantada. Isto porque as possibilidades de declaração por inconstitucionalidade for-
mal (subjetiva ou objetiva) são mais recorrentes, inclusive no próprio Texto Constitucional de 1988, que, por sua vez,
reflete na experiência constitucional brasileira.
9 Essa afirmação deve ser atribuída a Gilmar Ferreira Mendes, Presidente da Comissão encarregada de elaborar a
primeira Edição do Manual de Redação da Presidência da República.
ANAIS DE CONGRESSO 167
153, tradução nossa),10 ao sustentar que “Um tribunal plural, muito mais do que simples-
mente numeroso, simboliza o reconhecimento de que a interpretação e aplicação do direito
é um empreendimento que inclui diferentes tipos de vozes.”
Em termos de democracia participativa a questão crucial a ser enfrentada nessa
parte derradeira do artigo será compreender, ainda que minimamente, em que consiste os
sentidos e alcances desta locução demasiadamente ampla. Caso seja utilizada de forma des-
contextualizada perderá seu potencial significativo, caindo, portanto, em um chavão vazio.
Contíguo a isso desvelar o interesse jurídico para fins de intervenção de terceiros, em geral,
e do amicus curiae, em especial, no sentido das implicações no âmbito do controle concen-
trado de constitucionalidade.
Na atual prática constitucional brasileira, os procedimentos anteriores as tomadas
de decisão judicial (fase pré-decisional) não permanecem democraticamente abertos, pois,
em sua maioria, permanecem despidos das participações sociais conforme visto no terceiro
tópico. As pré-compreensões ou aquilo que subjaz, implicitamente velado, torna-se rele-
vante à medida que é capaz de atribuir sentidos para um tribunal que paradoxalmente se
encontra aberto as participações e fechado para o social.
Ainda mais, quando o recorrente argumento de que os amici conferem um “colo-
rido diferenciado” ao processo, conforme encontrado na população de julgados analisados
(ADI’s n. 3.998; 3.660; 3.614; 3.599; 3.538 e 2.548), não foi identificado no espectro ana-
lisado. Caso o suposto colorido esteja presente, torna-se imprescindível acrescentar “outras
cores” ou a efetiva utilização das cores já existentes para que se possa imprimir decisões ju-
dicias compostas pelo colorido social e democrático.
Esta questão é ainda mais aguda do que a “condução de uma educação/correção
ética” da coletividade (sociedade) pela jurisdição constitucional preponderante em face de
uma “cidadania imatura” (OLIVEIRA, 2001, p. 70). Por outra ótica, parece acertado que
apenas alguns seguimentos específicos são considerados “imaturos” ao ponto de o controle
de constitucionalidade prescindir de suas participações.
A ideia central repousa na distinção ou sobreposição de determinados seguimentos
em relação a outros (sociais) que, via de regra, não são suficientemente justificados na decisão
irrecorrível do relator ou relatora do processo. Imprescindível consignar que essa dupla con-
dição: necessidade de deferimento e irrecorribilidade, foi a posição legislativa manifestada
em 1999 (art. 7º, § 2º, Lei n. 9.868/1999) e em 2015 (art. 138, caput, Lei n. 13.105/2015,
Código de Processo Civil), bem como no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal
(art. 13, XVIII. Atualizado com a introdução da Emenda Regimental n. 29/2009).
Embora a impossibilidade recursal “não seja algo consolidado (visto que ainda há
conflito entre os Ministros do STF sobre o tema, ora permitindo, ora negando tal possibi-
10 No original: “A plural court, even more than a simply numerous one, can symbolize the recognition that in-
terpreting and applying the law is an enterprise that includes different kinds of voices.” (MENDES, 2013, p. 153).
170 1988-2018: O QUE CONSTITUÍMOS?
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo do artigo foi questionado o papel desempenhado pelas participações dos
amici curiae no controle concentrado de constitucionalidade ao longo dos últimos vinte e
sete anos da experiência constitucional brasileira. Uma das respostas encontradas, pela aná-
lise dos dados, indica o crescimento das participações sociais nesse ambiente, porém, majo-
ritariamente desempenhados por agentes estatais e corporativos.
Como consequência, parece ser possível afirmar uma representação majoritária dos
ramos estatais-corporativos, as pautas sociais não aparecem ou, quando muito, de forma de-
ficitária. A participação efetivamente social, de origem e pauta reivindicatória, geralmente se
revela coadjuvante ou episódica no controle concentrado de constitucionalidade brasileiro,
mas, a bem da verdade, vem crescendo nos últimos tempos. Os dados apresentados na tabela
02 sustentam essa afirmação.
Por isso, até certo ponto, o STF é deferente as participações dos amici, mas, quando
se pergunta sobre quais são os agentes que participaram ou participam das ADI’s chega-se a
outras conclusões. Das hipóteses inicialmente testadas, apenas uma subsiste, ou seja, os amici
a partir dos recortes propostos pela pesquisa, de fato, pluralizam quantitativamente a cognição
judicial, proporcionando uma relativa “abertura” da jurisdição constitucional brasileira.
Todavia, o método de análise quantitativa empregada na produção deste artigo é
adequado para constatar uma visão abrangente (global) da atuação dos amici, revela-se insu-
ficiente para afirmar que a o STF, como um todo, ou que seus Ministros e Ministras atuem
para que a cognição constitucional seja democrática e participativa. Mas, para se chegar até
as razões é preciso ir além dos números, sob pena de acolher como “verdade peremptória” a
fotografia de um momento da história constitucional brasileira.
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