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Natal/2012
Marinalva Nicácio de Moura
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte,
como requisito parcial à obtenção
de título de Mestre em Educação,
sob a orientação da Profª Drª
Terezinha Petrucia da Nóbrega.
Natal/2012
Seção de Informação e Referência
BANCA EXAMINADORA
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MERLEAU-PONTY
RESUMO
Imagem 5 – Ornitorrinco.............................................................................. 61
Guardiões de histórias................................................................................... 20
REFERÊNCIAS.............................................................................................. 98
INTRODUÇÃO: AVANÇAR PARA O COMEÇO
Manoel de Barros
12
1
O pensamento de MORIN (2008) afirma que a cultura “é organizada/organizadora via veículo
cognitivo da linguagem, a partir do capital cognitivo coletivo dos conhecimentos adquiridos, das
competências aprendidas, das experiências vividas, da memória histórica, das crenças míticas de
uma sociedade” (MORIN, 2008, p. 19). Nesse sentido, o entendimento de cultura a que nos
referimos situa-se na condição de fenômeno, fenômeno que fala de si próprio, e que é organizado
pelo veículo da linguagem, linguagem que é expressa pela experiência vivida, pela memória e pelas
referências míticas. Assim podemos dizer que sem linguagem não tem cultura. No entanto, a cultura
é sempre um enigma indecifrável, incerto e evolutivo, que marca uma sociedade.
13
2
O termo “jogo teatral” é usado aqui na acepção da própria atividade teatral, não no sentido de uma
técnica específica, mas de todas as técnicas que estabelece a situação teatral. (PAVIS, 1999, p.
219).
3
A noção de estesia do corpo que nos pautamos encontra-se na perspectiva do corpo como sensível
exemplar encontrada nas reflexões de NÓBREGA (2010). Nesse sentido, a estesia é uma
15
comunicação sensível, na qual a expressão gestual é linguagem e pode nos levar a compreender a
experiência vivida e suas múltiplas significações (NÓBREGA, 2010, p. 95).
4
Husserl é um filósofo alemão que no início do século XX deu o nome de fenomenologia a uma nova
abordagem de conhecimento que privilegia a consciência reflexiva, ao sujeito do conhecimento.
Segundo CHAUÍ (2003) para Husserl “a consciência não é uma coisa entre as coisas, não é um fato
observável, nem é, como imaginava a metafísica, uma substância pensante ou uma alma, entidade
espiritual. A consciência é uma pura atividade, o ato de constituir essências ou significações, dando
sentido ao mundo das coisas” (CHAUÍ, 2003, p. 202). A esse ato de ser consciência de Hursserl
chama de intencionalidade.
5
O racionalismo do qual falamos é o princípio postulado da modernidade, no qual há um predomínio
da razão excludente.
6
O mundo vivido é uma expressão que busca traduzir a expressão alemã Lebenswelt anunciada
como tema primeiro da Fenomenologia por Hursserl, que diz respeito ao mundo pré-expressivo. Na
Fenomenologia da percepção Merleau-Ponty diz que: “O mundo é não aquilo que eu penso, mas
aquilo que vivo; eu estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o
possuo, ele é inesgotável” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 14). Nas conversas proferidas por Merleau-
Ponty em 1948 ele anuncia que esse mundo é o mundo que conhecemos, basta nos deixarmos viver,
é “o mundo que nos é revelado por nossos sentidos e pela experiência de vida” (MERLEAU-PONTY,
2004, p. 01).
16
que existem inúmeras questões e reflexões sobre o corpo no teatro que podem ser
pensadas de novo e me proponho a pensá-las tendo como pano de fundo o método
fenomenológico.
A atitude fenomenológica é, antes de tudo, uma descrição do fenômeno e não
uma explicação ou uma análise. Nessa atitude, a reflexão é uma verdadeira criação,
na qual o real é descrito e não constituído, isso significa que “a cada momento meu
campo perceptivo é preenchido de reflexos, estalidos, de impressões táteis fugazes
que não posso ligar de maneira precisa ao contexto percebido e que, todavia, eu
situo imediatamente no mundo, sem confundi-los nunca com minhas divagações”
(MERLEAU-PONTY, 1999, 06). Para que a descrição do fenômeno ocorra faz-se
necessária a redução do meu campo perceptivo.
Na Fenomenologia da Percepção, Merleau-Ponty apresenta uma reflexão na
qual a redução fenomenológica é compreendida como uma admiração sobre o
mundo, um recurso indispensável à reflexão filosófica, mas é também um modo de
não nos acostumarmos com o mundo. A redução rastreia a experiência do
conhecimento na busca do irrefletido, visando à situação inicial, constante e final da
reflexão.
7
Instituto Federal de Educação de Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte.
8
Os momentos significativos é a nossa intencionalidade, é o que nos oferece a transição da reflexão
da experiência vivida com os objetivos da pesquisa e as questões de estudo.
19
9
Para Merleau-Ponty (2004) a visão depende do movimento dos olhos de modo que: “Basta que eu
veja alguma coisa para juntar-me a ela e atingi-la, mesmo se não sei como isso se produz na
máquina nervosa. Meu corpo móvel conta com um mundo visível, faz parte dele, e por isso posso
dirigi-lo no invisível. Por outro lado, também é verdade que a visão depende do movimento”
(MERLEAU-PONTY, 2004, p. 16).
20
Guardiões de histórias
10
Esse estudo intitulava-se “O processo de construção do trabalho do ator na montagem do
espetáculo “O doente imaginário”, realizado em 2004, para obtenção do título de especialista em
ensino de teatro, o curso foi oferecido pelo Departamento de Arte da UFRN. O processo de
21
montagem estudado foi realizado com o Grupo Estandarte de Teatro. O estudo tinha como objetivo
principal identificar os procedimentos desencadeadores de conhecimento para os atores procurava
também compreender a pedagogia teatral realizada pelos grupos de teatro, entendendo o espaço do
grupo, como espaço de formação de seus participantes.
11
As referências principais do jogo teatral do trabalho do grupo é o de Spolin (2000), Boal (2005) e
Ryngaert (2009). No entanto, outras formas de jogos também são exploradas na criação do
espetáculo.
22
tal forma que eles se tornaram incapazes de falar e movimentar-se. Foi nesse
momento que o deus Indra, erguendo seu estandarte, lançou-se em cena,
destruindo os “obstáculos” e a maioria dos demônios ali presentes, alguns
conseguiram sobreviver. Para homenagear esse acontecimento, criou-se um edifício
que se tornou o teatro, e para continuar a proteger os atores da confusão dos
demônios sobreviventes, as divindades repartiram entre si as incumbências de
proteger as diversas partes do teatro. E o Estandarte tornou-se o símbolo da
proteção dos atores.
Em 1986, um grupo de atores da cidade do Natal/RN desejava pesquisar a
cultura dita “popular” e juntaram-se e, ao ler essa lenda, decidiram nomear essa
convivência em coletivo de Grupo Estandarte de Teatro. Desde seu início, o grupo
tem como proposta ideológica levar o teatro a comunidades que não têm acesso às
casas de espetáculo oficiais.
Nestes vinte e cinco anos, o Grupo se propôs a “trabalhar o teatro como um
fazer teórico-prático através de estudos e pesquisas dos múltiplos aspectos que
envolvem o fazer teatral". Com esses estudos e pesquisas, montou nove (09)
espetáculos, sendo eles: A greve (1987); Não se paga, Não paga (1989); Dom
Chicote mula manca (1995); Oropa, França e Bahia e três dramas sem entremeios
(1997); Bocas de Lobo (1998 a 2000); e A ilha desconhecida (2002); Uma coisa que
não tem nome (2005); A palavra é gesto (2006); Matrióchka: uma história dentro da
história.
A imagem da lenda hindu representa a ligação do grupo e simboliza o próprio
nascimento do grupo de teatro. Vejamos a figura a seguir, que representa essa
ligação.
23
Acorda Dona Maria / Vem depressa seu José / O Estandarte está chegando
/ Alegrando a quem quiser / Diz uma lenda lá na Índia que o deus Indra / Em
suas mãos o estandarte segurou / Tomando a frente da batalha pela arte /
Em toda parte ele lutou / Acorda Dona Maria / Vem depressa seu José / O
Estandarte está chegando / Alegrando a quem quiser / Ouvir história,
remexer sua memória / Olhar pro tempo e ver a vida caminha / O que era
12
ontem se confunde com agora / E se transforma no que ainda vai chegar
12
Essa música foi composta por José Sávio Oliveira de Araújo, ex-integrante do grupo. Atualmente é
professor do quadro efetivo - Adjunto II do Departamento de Artes da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Desenvolve pesquisas na área de Educação e Artes, com ênfase em Teatro,
atuando principalmente nos seguintes temas: ensino de teatro, cenografia, tecnologia cênica,
iluminação cênica, encenação teatral e pedagogia. Sávio também é membro permanente dos
seguintes espaços e grupos de pesquisa da UFRN: Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas -
PPGArC/UFRN CENOTEC - Laboratório de Estudos Cenográficos e Tecnologias da Cena. GEPEM -
Grupos de Estudos de Práticas Educativas em Movimento Atualmente é o coordenador do curso de
teatro da UFRN.
13
Sendo eles: Barbara Brenda, David Emanuel, Danilo Vieira, Dinha Vitor, Edna Paiva, Jefferson
Fernandes, Lenilton Teixeira, Marinalva Moura e Thémis Suerda.
25
14
Entre eles estão: O Professor Carlos Nereu; A professora Vera Rocha; O diretor teatral João
Marcelino; A professora Petrucia Nóbrega.
15
Integrante do Grupo Estandarte de Teatro desde 1987. É também professor da rede municipal e
estadual de educação. Durante três anos assumiu o cargo diretor da Escola Municipal de Teatro
Carlos Nereu...
16
Jefferson Fernandes Alves possui graduação em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (1991), mestrado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (1997) e doutorado em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2004).
26
Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Orienta e pesquisa
na área de Artes, com ênfase em Fotografia e Deficiência Visual.
27
17
O termo matrióchka, vem do entendimento de que uma história, assim como as bonecas russas
matriochka ou babuskas, sempre contém outra, assim como a história de Calvino.
29
18
Este trecho encontra-se no texto “Projeto Político-Pedagógico do IFRN: uma construção coletiva
Capítulo 01 – Organização Institucional IFRN, fevereiro de 2010” acessível no link:
http://www2.ifrn.edu.br/ppi/lib/exe/fetch.php?media=cap01:cap01_reescrita.pdf.
19
Atualmente os cursos técnicos integrados do IFRN – Campus Natal Central são: Controle
Ambiental; Edificações; Eletrotécnica; Geologia; Mineração; Informática; Mecânica; e Turismo.
20
Os cursos de licenciatura que ministro a disciplina são: Física, Geografia e Espanhol.
33
21
Atualmente esse grupo é composto pelos seguintes professores: Ana Judite Oliveira, Elane Simões,
Isabel Dantas, Marinalva Moura e Roderick Fonseca.
1. LANÇAR MUNDOS NO MUNDO: A ESTESIA DO CORPO E A
COMUNICAÇÃO SENSÍVEL NO ACONTECIMENTO TEATRAL
carne do mundo, mundo esse que é anterior a qualquer teorização, pois é o próprio
logos estético. Aprendo na dobra, no entrelaçamento e dele não saio nem para
atuar.
Em Pavis (1999), encontro que a principal dificuldade no estudo do gesto
estético no teatro é determinar, ao mesmo tempo, sua fonte produtiva e sua
descrição adequada. Esse autor analisa os espetáculos e chama a atenção para a
“semiotização do gesto” em relação ao trabalho do ator, pois, nesse caso, tudo
passa a ser considerado significante na expressão do corpo, nada é deixado ao
acaso, tudo assume um valor de signo e significante (PAVIS, 1999). No entanto, o
autor alerta que a tentativa de semiotização do gesto cênico sempre encontra
resistência, pois: “[...] o corpo do ator nunca é totalmente redutível a um conjunto de
signos, ele resiste à semiotização como se o gesto, no teatro, conservasse sempre a
marca da pessoa que o produziu” (PAVIS, 1999, p.185, grifo do autor).
O corpo resiste à semiotização e o gesto cênico conserva sempre a marca de
quem o produz, nesse sentido faz-se necessária uma reflexão sobre o corpo que
produz esse gesto. Acredito que essa reflexão é para além da observação e da
análise dos signos produzidos através dos gestos do ator, mas considerando-o
como linguagem que se expressam na estesia do corpo, na qual a magia da
percepção na expressão dramática ocorre no acontecimento teatral.
O próprio Pavis (2003), ao tratar da análise dos espetáculos, oferece-nos
pista para essa reflexão do corpo fenomenal, quando diz: “Essa atitude da
fenomenologia é um convite precioso para passeios interativos pelos caminhos do
espetáculo e do sentido” (PAVIS, 2003, p. 24).
Aceito o convite de Pavis (2003) e começo dizendo que não é de hoje que as
questões sobre o corpo cênico me acompanham e me fazem interrogar o corpo que
sou. Na experiência com o teatro, encontro um encantamento do corpo no
acontecimento teatral, esse encantamento de que falo não é uma absolvição, um
arrebatamento, mas sim uma atitude do Ser. Nesse sentido, na experiência que
tenho do acontecimento teatral, identifico uma relação perceptiva dos corpos, uma
reversibilidade, seja ela, de artistas e de espectadores: um é espelho do outro.
Dessa forma, é na relação do meu corpo com o de outrem que nos percebemos,
pois o corpo tem todos os poderes perceptivos para realizar essa reversibilidade.
38
Penso que essa relação perceptiva devolve ao corpo um valor ontológico. Para
compreender o valor ontológico dessa relação, é importante partir da compreensão
de corpo.
A noção de corpo é questão fundamental nos estudos de Merleau-Ponty. Uma
das obras mais significativas do pensamento desse autor é a Fenomenologia da
percepção. Nela encontramos uma recusa ao movimento reflexivo que destaca o
corpo como objeto de um sujeito que o sobrevoa, em detrimento do reencontro
ingênuo com o mundo, no sentido de dar-lhe um estatuto filosófico. Para o autor, a
consciência que tenho do corpo não é um pensamento de uma terceira pessoa, pois
assim teríamos apenas um pensamento do corpo, deixando de lado a experiência, e,
portanto, a realidade corpórea. Contrário a esse pensamento, o autor apresenta uma
reflexão na qual a experiência do corpo próprio revela um esboço de um ser total, do
qual “sou meu corpo, exatamente na medida em que tenho um saber adquirido e,
reciprocamente, meu corpo é como um sujeito natural, como um esboço de meu ser
total” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 269).
Recorro ao pensamento de Merleau-Ponty para compreender o corpo
fenomenal, convido-os a escutar a noção de corpo próprio.
O corpo é nosso meio geral de ter no mundo. Ora ele se limita aos gestos
necessários à observação da vida e correlativamente, põe em torno de nós
um mundo biológico; ora, brincando com seus primeiros gestos e passando
de seu sentido próprio a um sentido figurado, ele manifesta através deles
um novo núcleo de significação: é o caso dos hábitos motores como a
dança. Ora enfim a significação visada não pode ser alcançada pelos meios
naturais do corpo; é preciso então que ele se construa um instrumento, e
ele projeta em torno de si um mundo cultural. (MERLEAU-PONTY, 1999, p.
203).
Diante de tal escuta, entendo que a atitude como instrumento não é uma
atitude de um intelecto sobre uma massa inerte, mas é o próprio corpo, criando
significações na sua relação primordial com o mundo. Encontro, pois, o esquema
corporal nas condutas motoras de um ser atado as coisas do mundo, ouçamos o
autor.
No teatro kabuki, há um gesto que indica ‘olhar para a lua’, quando o ator
aponta o dedo indicador para o céu. Certa vez, um ator, que era muito
talentoso, interpretou tal gesto com graça e elegância. O público pensou:
‘Oh, ele fez um belo movimento!’ apreciaram a beleza que sua interpretação
e a exibição de seu virtuosismo técnico. Um outro ator fez o mesmo gesto;
apontou para a lua. O público não percebeu se ele tinha ou não realizado
um movimento elegante; simplesmente viu a lua. Eu prefiro este tipo de
ator: o que mostra a lua ao público. O ator capaz de se tornar invisível
(OIDA, 2001, p.21).
Eu também prefiro o ator que é capaz de tornar-se invisível, prefiro ver a lua.
A experiência de Oida (2001) nos ensina que o invisível é expresso pela estesia do
corpo, um acontecimento sensível, no qual o ator que mostra a lua com um gesto
visível cria significações de um mundo invisível, a significação do gesto é
inseparável da ação do ator. É nesse sentido que Merleau-Ponty nos diz que:
criam um novo ser cultural, aqui não é mais o mundo da fala constituída, mas sim o
mundo do silêncio, do qual a fala é gesto e sua significação é um mundo.
Narrarei para vocês um episódio que me ocorreu ao assistir o espetáculo O
caminho para Meca. Em cena, estava uma atriz de 85 anos, representando uma
personagem de idade equivalente a sua, eis que me chama atenção sua mão
fechada em situação da personagem e me pus a interrogar, se era uma conduta da
vida real atribuída por algum acidente vascular cerebral ou da personagem que
havia queimado a mão com água quente... Esse questionamento durou até o último
instante do espetáculo, ou seja, após duas horas de espetáculo, então as luzes se
apagaram como sinal de que o fim do espetáculo chegara... Minha febre só
aumentava como se, dentro de instantes, a cólera que invadia todo meu ser fosse
ser resolvida... Eis que numa fração de segundo se acenderam as luzes novamente
e, nesse momento, sabia que a atriz se comportaria como ela mesma e não como o
personagem que há pouco interpretara, foi aí que olhei para a sua mão...
Então a magia da percepção se fez presente, nesse momento em que o
personagem deixava de existir, aquele gesto também se desfazia e a mão da atriz
estava normal, sem nenhuma deformação. É dessa experiência que crio
significações para compreender o hábito motor do teatro, a capacidade do ator de
torna-se invisível, para realizar-se no personagem.
Dessa forma, o sentido do gesto não estava dado, mas compreendido e
retomado por um ato de significação do espectador. Posso dizer que a atriz não
estava preocupada com as minhas cóleras de espectadora, nem dava conta das
minhas preocupações, então me questiono: Houve uma comunicação? Visto que
não me preocupava mais em saber da história ali contada, mas sim em saber se
aquele gesto era da atriz ou do personagem? E me respondo que a reversibilidade
do corpo oferece uma reciprocidade estabelecendo a intencionalidade e a
comunicação, de modo que se não fosse aquele gesto não teria elaborado essa
reflexão. O gesto estava ali como uma questão que não cessava, indicando-me
pontos sensíveis, e eu o retomo, o gesto do outro agora também é meu, e nos
comunicamos pelos sentidos, pela expressão, e, assim, meu corpo compreende o
corpo do outro.
41
É nesse sentido que Merleau-Ponty diz ser possível a comunicação, visto que
“o pensamento e a expressão constituem-se simultaneamente, quando nossa
aquisição cultural se mobiliza a serviço dessa lei desconhecida, assim como nosso
corpo repentinamente se presta a um gesto novo na aquisição do hábito”
(MERLEAU-PONTY, 1999, p. 249).
É bom que se repita que o corpo e a fala não se separam, nem os gestos do
pensamento, não há distância entre pensamento e gesto, pois quem fala não pensa
antes de falar, nem mesmo enquanto fala, como também não deixa de pensar para
falar, ou de falar para pensar, minha fala é meu pensamento, ou seja, é sempre algo
novo, no mesmo sentido em que diria Manoel de Barros “a palavra oral não dá
rascunho”, é sempre o novo.
Da mesma forma, quem escuta não elabora signo do pensamento, as
palavras ocupam toda a nossa relação, ele que me escuta está envolvido no meu
discurso, de forma que “o fim do discurso ou de um texto será também o fim do
encantamento” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 245).
A reversibilidade corpórea pode nos oferecer um teatro do corpo, uma
experiência de passar-me por outro na comunicação sensível, na qual, com meu
corpo, compreendo o outro e compreendo o mundo. Essa conduta de passar-se por
outro é sempre possível para mim. Aqui mesmo, nessa cadeira do computador,
posso imaginar que estou em outro lugar ou que sou outra pessoa.
Sobre o teatro do corpo, encontramos em Merleau-Ponty referência como
teatro do imaginário e as minhas imaginações estão no mundo:
22
O Ser selvagem em Merleau-Ponty é o ser que não está determinado, é indeterminado, marcado
pela experiência sinestésica do corpo. A ontologia aqui ocorre num estado de contato, na experiência,
de modo que “o paradoxo do corpo não cessará de produzir outro, uma vez que o mundo é feito do
mesmo estofo do corpo” (NÓBREGA, 2008, p.396).
23
Esse estudo da natureza encontra-se na publicação A Natureza (200) que traz os resumos dos
cursos desenvolvidos durante três anos no Collège de France, sobre “o conceito de natureza”.
24
A noção de gradiente e diferenciação nas anotações de Merleau-Ponty aparece a partir do estudo
sobre o conceito de natureza, em Goghill e Gesell. Goghill emprega a noção de gradiente no estudo
do lagarto axolotl “para designar toda série de cores ordenadas segundo as potências crescente e
decrescentes de suscetibilidade” (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 232). Nesses estudos importa a
Merleau-Ponty compreender o corpo como o lugar do comportamento e o comportamento como
linguagem, de modo que essas noções de comportamento suscitam um problema filosófico, assim: “o
comportamento manifesta-se como princípio imanente ao próprio organismo, como um princípio que
surgia de imediato como totalidade” (MERLEAU-PONTY, 2000, p. 236).
44
Enquanto o espectador sente tristeza pela cena que vê, o ator dominou a
capacidade de expressão do sensível no seu corpo, estudou minuciosamente os
modelos, explorou a produção da emoção, e a usou, mas ele não está triste, está
apenas cansado: “[...] é que ele [o ator] se agitou sem nada sentir, e vós [o
espectador] sentistes sem vos agitar [...]” (DIDEROT, 2005, p.225). Pois que, o ator
não é o personagem, ele apenas o representa, e o faz tão bem que confunde o
espectador, levando-o a pensar por alguns instantes que ele seria tal personagem.
Dessa forma, o ator controla a magia teatral, que fazendo uso do sensível em seu
corpo e em seus gestos convence a plateia fazendo-a chorar, sorrir, temer...
Essa psicofisiologia somática se expressa na sociedade como um exercício
dramático do pensamento, como podemos ver nesse trecho:
25
A Comédie-Française é o único teatro estatal de França, e um dos poucos que têm uma companhia
permanente de atores. Foi fundado em 1680 por decreto de Luís XIV para fundir numa só as duas
únicas companhias parisienses, a companhia do Hôtel Guénégaud e a do Hôtel de Bourgogne. O
repertório incluía peças de Molière e de Jean Racine, além de outras de Pierre Corneille, Paul
Scarron e Jean de Rotrou. Atualmente a Comédie-Française dispõe de um repertório de cerca de
3.000 peças e de três salas de teatro, a sala Richelieu, o Théâtre du Vieux-Colombier e o Studio-
Théâtre.
49
sentar-se, dar três passos à frente, para proferir uma fala diante do ponto” (ASLAN,
1994, p. 03).
Nesse ensino tradicional, estudava-se a cena e criava-se o personagem a
partir do texto. O primeiro passo era sempre estudar o texto, tudo o que era
necessário “tirava-se” do texto, das indicações oferecidas pelo autor. No entanto, era
de competência do ator passar o texto da linguagem escrita para a linguagem
falada, indo além, encontrando um jorro que antecedeu a escrita, deveria exprimir e
respeitar a personalidade do personagem.
Para tanto, os ensaios resumiam-se à declamação do texto; um bom ator era
um bom declamador, de tal modo que Louis Jouvet, um dos professores do
Conservatório, chegou a dizer a seus alunos no conservatório: “O teatro é,
sobretudo, exercício de dicção que equivale ao amassamento do pão. Se durante
cinco anos você se submeter todas as manhãs a exercícios mecânicos, você verá
que começará a chegar a um resultado” (JOUVET apud ASLAN, 1994, p. 07).
Eram realizados exercícios mecânicos de dicção como técnica necessária
para aprender a pronunciar: “O comediante deve ter a cortesia de fazer se ouvir até
a última fileira da plateia” (ASLAN, 1994, p. 20). Ensinava-se também o ator a
ocupar lugares no palco, a partir dos quais sua voz deveria se difundir no espaço
sem esforço: “O importante era fazer se ouvir, sem levar em conta se o aspecto
visual do espetáculo era negligenciado” (ASLAN, 1994, p. 16). Aliás, na formação
tradicional também se dava grande importância à respiração, de tal forma que Louis
Jouvet chega a dizer: “Um texto é antes de mais nada uma respiração” (JOUVET
apud ASLAN, 1994, p. 07).
Até então, a educação corporal dava conta apenas da aprendizagem da voz,
de modo que para Aslan (1994) as questões sobre o gesto foram aparecer com as
pesquisas de François Delsarte: “Ele observou como se exprime os sentimentos na
vida real, interessou-se pela estatuária antiga, assistiu a aulas de anatomia”
(ASLAN, 1994, p. 37).
Nas pesquisas e ensinamentos de Delsarte, a sensibilidade ganha qualidade
indispensável para o trabalho do ator numa perspectiva que entende o gesto para
além da representação da palavra. Dessa forma, o gesto é evidenciado como
potencialidade expressiva do corpo. Essa compreensão da expressão corpórea junta
50
26
Constantin Stanislávski (1863-1938). Foi um grande homem do teatro russo, no qual atuou como
ator, diretor, professor de atores e escritor. Em 1888, criou com os amigos a Sociedade de Arte e
Literatura; Em 1897 fundou o Teatro de Arte de Moscou, onde montou as peças de Tchékhov: A
Gaivota (1898), Tio Vânia, As Três Irmãs (1901), O Jardim das Cerejeiras (1904). Ao longo de anos,
desenvolveu suas teorias sobre a atuação, registradas nos livros: A Preparação do Ator, A
Construção da Personagem e A Criação do Papel. Escreveu também uma autobiografia intitulada
Minha Vida na Arte, onde discorre sobre sua experiência no teatro. Para Stanislávsk, a movimentação
que é encontrada na vida é natural, flexível e orgânica, já a do palco não.
53
Pela ação da cultura, instalo-me em vidas que não são a minha, confronto-
as, relevo uma para outra, torno-as copossíveis numa ordem de verdade,
torno-me responsável por todas suscito uma vida universal, assim como me
instalo de uma só vez no espaço pela presença viva e espessa do meu
corpo. (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 109).
27
Na tradução do livro A construção do Personagem em português que dispomos essa frase está
escrita da seguinte forma: “Ele é todo um tipo de vida, vocês terão de crescer com ele, de se
educarem por ele, durante anos” (STANISLÁVSK, 1976, p. 306). Optamos por usar a tradução feita
por Aslan(1994) da versão francesa:STANISLÁVSK, Constantin. La Constrution du personnage.
Tradução Charles Antontti. Paris: Olivier Perrin, 1966, p.299-302.
55
28
Vsevolod Emilevich Meyerhold, conhecido apenas por Meyerhold ou Meierhold, um grande ator de
teatro e um dos mais importantes diretores e teóricos de teatro da primeira metade do século vinte.
Fez parte do Teatro de Arte de Moscou. Entre 1898 e 1902 participa do Teatro de Arte de Moscou,
como um dos principais atores da companhia de Stanislavski e Vladimir Nemirovich-Danchenko. Em
1905 dirige por um ano o Estúdio de Teatro, um anexo do Teatro de Arte de Moscou (TAM), a convite
do próprio Stanislavski. Durante sua vida artística, experimenta várias formas de teatro, sendo mais
conhecido pelos exercícios de intepretação da sua biomecânica e por seu trabalho de
experimentação teatral, influenciando os principais encenadores do século XX.
56
A palavra oral
não dá
rascunho.
Manoel de Barros
58
29
Essa entrevista Manoel de Barros proferiu para Pedro Cezar no filme “Só dez por cento é mentira:
a discografia oficial de Manuel de Barros”. Manoel de Barros não gosta de ter sua voz registrada e
prefere dar entrevistas por escrito.
30
Em anexo nessa pesquisa encontra-se um vídeo em formata de DVD, para apreciação do
espetáculo “Matrióchka: uma história dentro da história”, do Grupo Estandarte de Teatro.
59
Esse aspecto físico de Gurdulu parece-me que tem semelhança com a figura
do ornitorrinco. O ornitorrinco é um mamífero semiaquático que se alimenta de
insetos, vermes e crustáceos de água doce, sobrevive na água e na terra. É ovíparo,
mas, quando pequeno, alimenta-se de leite extraído dos poros e sulcos abdominais
da fêmea, o que faz dele um mamífero. Como podemos ver, na imagem abaixo, o
ornitorrinco tem um focinho como um bico que lembra o do pato, tem corpo alongado
e tem cauda, possui pelos no corpo, rasteja na terra e nada na água32. Essa dupla
pertença do ornitorrinco também ecoa na criação do personagem Gurdulu.
Imagem 5 - Ornitorrinco
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A fonte de pesquisa dessas informações foi o site: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ornitorrinco.
Acessado em 23/04/2011.
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próprias sensações, suas próprias emoções reais, sua experiência pessoal vivida”
(STANISLÁVSKI, 1990, p. 40).
Para ele, esse momento de criação do personagem exige do ator uma criação
ativa e “é o ponto em que começo a me sentir dentro dos acontecimentos, começo a
mesclar-me com todas as circunstâncias sugeridas” (STANISLÁVSKI, 1990, p. 41)
pelo texto dramático. Dessa forma, a estesia do corpo permite uma comunicação
entre mundos, o da literatura, o do teatro e o da atriz. Na imagem abaixo, busco
trazer para a cena as significações encontradas no mundo literário, nela há uma
presença originária de Gurdulu, de Bernardo e do ornitorrinco.
indicava, ou copiava os gestos da primeira atriz que representou esse papel. Mas o
problema estava ali presente o tempo todo, eu não conseguia escapar dele. Em
todas as situações e acontecimentos, o problema de criação do personagem se
manifestava.
Até que um dia, nas brincadeiras cotidianas com meu sobrinho de quatro (04)
anos, aprendi como poderia estar criando essa existência sem ter consciência
expressa por Calvino (2005) e retomada pelo texto dramático “Matrióchka: uma
história dentro da história”. Observei o modo como ele falava e percebi que no uso
das palavras a coerência da criação era de outra natureza, se dava pela
aproximação de uma palavra à outra, e não pela construção da frase nos modos da
gramática pura. A lógica de seu pensamento operacionalizava por outro modo de
comunicar, havia ali uma ordem nascente, que era expressa pela estesia do corpo, e
a proximidade das palavras criavam um sentido. É nesse sentido que Merleau-Ponty
(2000, p. 36) diz: “A linguagem nos conduz às coisas mesmas na exata medida que,
antes de ter uma significação, ela é significação”.
Resolvi que essa situação podia me dar um modo de expressar Gurdulu
diferente do que vinha representando até então, criando novas significações para a
expressão.
Comecei a fazer presente as ações desse personagem e parti para
modificação de falas do texto dramático. O texto original era:
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Majin Boo possui inúmeras habilidades na série, mas as mais marcantes são a de absorver, a de
transformar pessoas na comida que quiser (especialmente chocolate) e a de regeneração. Quando
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utiliza a técnica de absorção ele solta uma parte do seu corpo que se transforma em uma gosma,
assim vai atrás do indivíduo e o envolve. Logo depois disso o inimigo envolto pela gosma é sugado
pelo corpo de Boo, terminando em uma transformação. Boo adquire todos os ataques do ser
absorvido e ainda pode usar suas capacidades próprias como inteligência, velocidade e força. A sua
capacidade de regenerar qualquer parte do seu corpo só pode ser executada desde que exista no
mínimo uma partícula do mesmo. Também possui a técnica de transformar seus inimigos doces para
depois devorá-los. Esses e outros fatores tornam Majin Boo praticamente indestrutível e o único meio
de derrotá-lo seria eliminando todas as moléculas de seu corpo, descoberto por Goku, ao destruir o
"rabinho" da cabeça de Boo.
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Esse jogo inspirou a criação das ações de Gurdulu e está como indicação
cênica no texto dramático Matrióchka: uma história dentro da história: “Desde que
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No livro Improvisação para o teatro de Viola Spolin (200) encontram-se três (03) exercícios
destinados ao jogo do espelho. Descreverei um desses exercícios: Dois jogadores. O jogador B olha
para o jogador A. A é o espelho, e B indica todos os movimentos. O jogador A reflete todas as
atividades e expressões faciais de B, olhando para o espelho, B realiza uma atividade simples como
lavar-se, vestir-se etc.. depois de um certo tempo, troque os papéis, sendo que B é o espelho e A, o
iniciador dos movimentos. (SPOLIN, 2000, p. 55).
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como Gurdulu, ouço o que ocorre, a cena que está acontecendo, o ator trocando a
voz dos paladinos enquanto muda de painel... Ali mesmo, na coxia, começo a me
comportar como Gurdulu, retomando sua mania de passar-se por tudo. O que
encontro ao meu redor é motivo para imitar, um buraco na parede, uma colher de
pau, um ventilador... Estou fora de cena me divertindo em ser Gurdulu... - Enquanto
isso, continuo a dar conta do material que preciso na encenação: tomo água, confiro
se tudo está no lugar, dobro alguma roupa que estava bagunçada. Quero dizer que
não deixo de fazer o que tenho que fazer ali em cena e ainda assim crio minhas
condutas como Gurdulu... Até o momento em que entro em cena como Gurdulu.
Merleau-Ponty (2004) meditando sobre o motivo de criação na pintura de
Cézanne afirma que:
Para entrar em cena como um ser humano e não como um ator, você tinha
de descobrir quem é, o que lhe aconteceu, em que circunstâncias você está
vivendo aqui, como passou o seu dia, de onde veio, e muitas outras
circunstâncias supostas, que você ainda não inventou, mas que influenciam
suas ações. Em outras palavras, só para entrar em cena já é necessário ter
noção da vida da peça e da relação que você tem com ela (STANISLÁVSKI,
1990, p. 231).
Eis que me lanço no espaço cênico como se fosse jogada por alguém, agora
me divirto em ser Gurdulu, minha boca dobra-se, minhas pernas curvam-se, procuro
andar como um pato, imito os animais citados pelo outro ator que diz a seguinte fala:
“Parece que os nomes deslizam nele sem jamais fixar-se. De qualquer modo, ele
não liga para o jeito como o chamam. Chamem-no e ele pensa que estão falando
com uma cabra. Cavalo. Ô cavalo!”
Na imagem abaixo, vemos a construção de Gurdulu ao passar-se por cavalo.
A imitação não é uma reprodução de um cavalo, mas uma criação de atitude como
cavalo.
vazia perseguiu minhas ideias me fazendo juntar os cacos e os pedaços da sua não
existência, assim como a da narradora do texto dramático: “De fio a pavio, conto e
reconto as aventuras de um tempo muito para trás que aconteceu agorinha mesmo,
num lugar muito distante daqui, mas que está aqui do lado. Uma história de uma
armadura vazia que teimava em perseguir minhas ideias e que me forçava a juntar
os pedaços e os cacos das histórias que orbitavam em torno de sua não
existência”35.
Esses cacos e pedaços sempre me levam a pensar e questionar as situações
expostas por Calvino (2005), nesse romance. De início, o que me trazia questões
era a consciência fora do corpo, representada pelo personagem Agilulfo. Depois veio
a contadora de história na figura da Freira que é também a Bradamante, mulher que
se traveste de homem e luta na guerra. Impressionava-me esse ser que parece uma
coisa, mas é outra, uma mulher realizando tarefas masculinas, mas que faz questão
de manter sua feminilidade.
Por último, vem a animalidade de Gurdulu, homem que existe e não tem
consciência, que se confunde com tudo e com todos, seus vários nomes são
atribuídos de acordo com a cultura em que ele está inserido. O que percebo é que
Gurdulu tem um ser de animal tão grande que se confunde com eles, não sabe se
diferenciar entre patos, mas também não se diferencia entre árvores, por sua
mimese corpórea, pode ser qualquer coisa.
Posso dizer que, como atriz/narradora, transformei os momentos significativos
da criação desse personagem em matrióchkas, retirando-as de um caixa e
solicitando a sua presença na narração da história, de forma que elas vão sendo
retiradas à medida que narramos a história. Uma puxava outra, no intuito de
significarem no diálogo entre a fenomenologia de Merleau-Ponty e o estilo de
criação de personagem de Stanislávski.
Na medida em que essas matrióchkas são solicitadas elas respondem às
nossas perguntas, elas nos ensinam sobre a importância de contar história, sobre a
necessidade humana de manter viva a memória, a corrigir os erros na solução de
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Fragmento do texto dramático “Matrióchka: uma história dentro da história” de espetáculo de
mesmo nome, montado pelo Grupo Estandarte de Teatro.
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importante compreender que ela está rodeada de silêncio, pois não se sabe o que
se diz antes de ter dito. “A primeira fala não se estabelece num vazio de
comunicação porque ela emergia das condutas que já eram comuns e enraizavam
num mundo sensível que já tinha cessado de ser mundo privado [...] A primeira fala
encontrava seu sentido no contexto de condutas já comuns... Esse mundo é
sensível é o logos do mundo estético.” (MERLEAU-PONTY, 2002, p. 65-66).
Para tanto, questiono-me: Como o conhecimento sensível da narrativa de
histórias pode contribuir com o ensino de teatro?
A arte de narrar é uma experiência do corpo, e quem narra retira da sua
própria experiência o que conta, incorporando a história que conta à experiência dos
seus ouvintes. Assim, narrar é uma experiência que passa de pessoa para pessoa,
ocorrendo um entrelaçamento nas tramas da história. Narrar é um trabalho de
artesão, de fiador que é passado de geração para geração.
Benjamin (1994) nos diz que narrar histórias é uma forma artesanal de
comunicação. E a narrativa é a arte de contar de novo uma história, porque se as
histórias não fossem mais contadas, ficariam perdidas, como um fio que se perde do
tecido que é fiado.
O conhecimento é o fio que é tecido enquanto se ouve a história.
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O educador francês Philippe Meirieu, interessado em investigar mais profundamente a questão da
arte e educação, realizou em 1992 uma pesquisa com crianças de 6 a 12 anos, habitantes da
periferia da cidade de Lyon. Meirieu, analisando as entrevistas com essas crianças ressalta que
“aquelas habituadas a freqüentar salas de teatro, de cinema e a ouvir histórias demonstram maior
facilidade de conceber um discurso narrativo, de criar histórias e de organizar e apresentar os
acontecimentos da própria vida” (MEIRIEU apud DESGRANGES, 2006, p 22-23).
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O teatro é uma obra de arte social e comunal; nunca isso foi mais
verdadeiro do que na Grécia antiga. [...] A multidão reunida no theatron não
era mera espectadora, mas participante, no sentido mais literal. O público
participava ativamente do ritual teatral, religioso, inserido na esfera dos
deuses e compartilhava o conhecimento das grandes conexões mitológicas
(BERTHOLD, 2004, p.103, grifos do autor).
Recorro a vozes que ecoam no corpo e dou vida a esse modo de viver teatro,
convido Téspis com sua carroça de quatro rodas, para se colocar a parte como
solista de um coro e recriar ali, naquela sala, o papel do respondedor (mais tarde
seria o ator). Agora o diálogo pode ser realizado e pode se desenvolver como
tragédia. Téspis não sabia que sua voz ecoaria por tanto tempo, e nem do que sua
inovação ao rito traria para a história da civilização ocidental. O teatro que vivemos
hoje ainda é eco desse tempo.
O corpo é fóssil da história humana. No acontecimento teatral, em sala de
aula, retomo vozes que ecoam do passado dando significações a situações vividas.
As histórias gregas ainda significam nos dias atuais.
Começo mais uma história. Essa história se passa numa cidade da Grécia
antiga, lá existia um rei chamado Laios... Em sala de aula, a professora/narradora
assume a figura da esfinge e pergunta a Édipo: - Decifra-me ou te devoro?
Aproxima-se do aluno/ouvinte e o convida a responder como se fosse Édipo,
indicando a sua fala: “Decifro-te”. A professora/narrador/esfinge pergunta: “Qual o
animal que pela manhã anda de quatro patas, à tarde com duas e a noite com três?”
E prontamente outros alunos/ouvintes/Édipo procuram responder, ouve-se um coro
de vozes gritando: “É o homem”.
Percorro o tempo, contando história e chegamos à Grécia antiga, cerca de
400 a.C. nos tempos em que o conhecimento era transmitido pela oralidade, e o
grande público se reunia no theatron para ouvir histórias. As histórias que eram lá
contadas são aqui retomadas e ganham novas formas de acontecimentos.
Narro histórias usando pequenos objetos espalhados pela sala para significar
como personagem, como espaço... Faço relações entre o passado e os tempos
atuais, aproximo os modos de vida. Para Merleau-Ponty, há no corpo uma memória
passada, na qual a expressão recria e metamorfoseia-se, pois que toda produção é
uma recriação, é uma retrospectiva dos tempos passados. Nesse sentido diz:
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Para Benjamin (1994), “o narrador retira da experiência o que ele conta: sua
própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à
experiência de seus ouvintes” (1994, p. 201).
Em Merleau-Ponty, as artes são operações expressivas do corpo, portanto, o
teatro, como acontecimento do corpo, é um gesto simbólico que abre um campo de
significações, iniciada pela menor das percepções. Ao assistir a um espetáculo de
teatro, podemos dizer que:
qualquer momento, basta que ali seja invocada a necessidade do corpo de narrar
suas histórias.
Para Benjamin (1994), as ações da experiência estão em baixa e a
faculdade de intercambiar histórias poderá desaparecer de modo que a arte de
narrar está em vias de extinção. No intuito de recontar uma história, para finalizar,
gostaria de destacar no pensamento de Nóbrega (2008, p. 402 – 403) o relato de
Cação Fontana (2001, p.48-50)
Retorno à professora de nossa história, e digo que, o que ela deseja é estar
ardendo para inflamar os seus alunos. A experiência como professora narradora de
história aponta para a experiência teatral com acontecimento do corpo, não trata
mais de um dualismo que separa o corpo do pensamento, aqui a apalavra é gesto e
sua significação um mundo.
Nos movimentos realizados pelo corpo, no acontecimento teatral, ocorre
uma comunicação estesiológica do corpo com mundo, que é o próprio logos. O
corpo é reversível e sua a reversibilidade é sempre conhecimento, a mão que toca e
é tocada, o olho que olha e é olhado, é uma comunhão do ser no mundo, nela já não
se sabe o que é um ou outro, são um entre, vivenciamos o tempo todo uma
experiência do ser atado as coisas do mundo.
O teatro é um gesto coletivo expresso pela estesia do corpo no acontecimento
teatral. A estesia do corpo de que falamos encontra-se na arte do narrador de
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Eu tenho tido sorte. Minha vida se arranjou sozinha. Fui instrumento nas
mãos dela. Mas essa sorte obriga-me a transmitir antes de morrer o que a
vida tem me dado. Mesmo que seja difícil comunicar a própria experiência
para outras pessoas em um processo tão complexo como o da arte do ator.
Mas, quando pego a caneta falta-me palavras para definir as emoções... Um
livro como esse é excessivamente necessário, se for apenas para silenciar
todas as idéias erradas com relação ao assim chamado “sistema”, que, da
maneira como ensinado agora, só deforma jovens atores. É preciso colocar
ordem no assunto. (STANISLÁVSK apud TAKEDA, 2003, p. 361).
Pela ação da cultura, instalo-me em vidas que não são a minha, confronto-
as, relevo uma para outra, torno-as compossíveis numa ordem de verdade,
torno-me responsável por todas suscito uma vida universal, assim como me
instalo de uma só vez no espaço pela presença viva e espessa do meu
corpo. (MERLEAU-PONTY, 2004, p. 109).
REFERÊNCIAS
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CALVINO, Ítalo. O cavaleiro inexistente. São Paulo: Companhia das letras, 2005.
ESTÉS, Clarissa Pinkola. O dom da história: uma fábula sobre o que é suficiente.
Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
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HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elementos da cultura. Trad. João
Paulo Monteiro. São Paulo: Perspectiva, 2005.
_____. O Visível e o Invisível. 3a ed. Trad. Artur Gianotti e Armando Mora. São
Paulo: Editora Perspectiva, 2005.
_____. A Natureza. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
_____. O olho e o espírito. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
NÓBREGA, Terezinha Petrucia. Escritos sobre o corpo: diálogos entre arte, ciência,
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SERRES, Michel. Variações sobre o corpo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.