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A GÊNESE: UMA HISTÓRIA DA


BÍBLIA

Professor (a) :

Dr. Anderson de Oliveira Lima

Objetivos de aprendizagem
Introduzir os alunos ao estudo da Bíblia como literatura e tratar de maneira introdutória sobre o processo de escrita que deu origem aos livros bíblicos.
Conhecer alguns fatos relevantes sobre a formação das coleções canônicas (Antigo e Novo Testamento).
Discorrer sobre o papel mediador desempenhado pelas instituições religiosas e seus agentes na maneira como a Bíblia é usada e disponibilizada ao leitores de modo geral.

Plano de estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
Sobre as origens
A formação da Bíblia
Os mediadores religiosos da leitura bíblica

Introdução
Seja bem-vindo(a) caro(a) aluno(a)! Nossa disciplina, Bíblia, Literatura e Linguagem , está dividida em quatro unidades nas quais distribuem um conteúdo progressivo que visa
proporcionar aos seus estudantes um aprendizado gradual sobre os aspectos literários dos textos bíblicos e sobre os tratamentos que esses mesmos aspectos têm recebido nas
últimas décadas por parte de críticos literários. Em nosso primeiro estudo, que possui caráter mais historiográfico e informativo que os posteriores, abordaremos alguns tópicos que
julgamos relevantes quanto à história da literatura bíblica. Trataremos nessas primeiras páginas, ainda que com brevidade, das origens dos textos bíblicos, de sua materialidade, de
sua escrita, de sua preservação, de sua transmissão e de sua reconstrução por meio da Crítica Textual moderna. Assim, o curso que lhes propomos começa demonstrando como o
tratamento dado à Bíblia (tratamento adequado a críticos literários, cientistas da religião, filólogos, historiadores etc.) não difere significativamente daquele que daríamos a
qualquer outro livro, o que de certa maneira desmistifica as relações entre os leitores e esse patrimônio cultural que quase sempre nos é apresentado como um livro à parte, um
livro sagrado , diferente ou mesmo superior a todos os demais livros existentes.

A compreensão dos processos complexos que nos legaram a antologia de livros antigos que hoje chamamos de Bíblia é um meio de nos conscientizar como leitor de que,
independentemente das escolhas religiosas de cada um (que não pretendemos discutir), os aspectos humanos, técnicos e literários envolvidos na própria existência de uma Bíblia
não precisam ser ignorados ou negligenciados. Este é nosso primeiro desafio, para o qual convidamos todos aqueles que pretendem saber como a Bíblia é, de fato, abordada desde
um ponto de vista científico.

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SOBRE AS ORIGENS
Uma Inspiração

Bíblia, literatura e linguagem é o título de um livro que foi publicado no Brasil, no ano de 2011, pela editora Paulus. O livro foi escrito por dois estudiosos brasileiros cuja formação e
produção intelectual dizem muito sobre o tipo de abordagem bíblica que este curso também propõe. Os autores são João Leonel e Júlio Zabatiero (2011), pesquisadores brasileiros
que têm exercido atividades tanto no campo religioso protestante quanto no mundo acadêmico, atuando de maneira interdisciplinar para fazer a Teologia dialogar com as Ciências
da Religião, com os Estudos Literários, a Linguística e com a História da Leitura.

Figura 1: Capa de Bíblia, Literatura e Linguagem

Fonte: O autor.

E de que trata o livro? Ele experimenta a aplicação de pressupostos teóricos e metodológicos próprios dos estudos literários os livros bíblicos. Os autores afirmam que a Bíblia é
reconhecida como uma obra importante dentro da literatura lida no Ocidente, mas que apesar disso, “não tem recebido, salvo poucas exceções, o tratamento ‘literário’ a que tem
direito” (ZABATIERO; LEONEL, 2011, p. 19). Sem exigir o abandono das convicções religiosas de cada leitor, os autores defenderam que é preciso reconhecer que a Bíblia é um livro,
um produto da atividade humana que possui uma literariedade que a assemelha a todos os outros livros e que, portanto, autoriza a aplicação dos mesmos métodos analíticos.

Se o livro acima mencionado emprestou seu nome a este curso, não surpreenderá o fato de que ele também nos tenha fornecido alguns dos pressupostos que guiaram a composição
desse conteúdo. Sem negar o direito que todo leitor possui de ler sua Bíblia a partir de convicções religiosas particulares, o que estamos propondo é que rompamos com as falsas
fronteiras que separam a Bíblia das demais grandes obras da história da literatura ocidental. Procuramos tirar a Bíblia de seu confinamento religioso propondo um olhar para
características que lhe justifiquem um posto entre as grandes produções literárias, um ponto de vista que a torne alvo de atenção e admiração também dos leitores não-religiosos.

O público brasileiro certamente está pouco habituado ao escrutínio dos críticos literários ao texto bíblico. Embora não estejamos propondo nada inédito, ainda se faz notar por aqui
alguma resistência por parte de leitores mais conservadores que preferem fazer da Bíblia um patrimônio exclusivo do cristianismo, pessoas que se sujeitaram não apenas aos livros
canônicos, mas também aos métodos, às traduções e às interpretações que suas denominações religiosas elegeram e tacitamente sacralizaram. No entanto, a despeito do
conservadorismo religioso, em diferentes partes do mundo a Bíblia tem saído dos domínios eclesiásticos para ser lida, estudada e usada por pessoas de interesses diversos,
tornando-se de fato um patrimônio cultural da humanidade ao lado de clássicos como a Ilíada e a Divina Comédia. O fato de a Bíblia ter transcendido os usos e os limites cristãos
não deveria ser considerado bem-vindo, principalmente pelos cristãos, que tanto trabalharam pela preservação e divulgação de suas Escrituras ao redor do mundo?

Frederico Lourenço, linguista português, professor de literatura clássica em Coimbra e que atualmente está envolvido com um importante projeto de tradução da Bíblia do grego
para o português, escreveu algumas linhas sobre o crescente interesse literário que os textos bíblicos têm suscitado nos círculos acadêmicos. Julgamos que a leitura valeria a pena,
por isso as transcrevemos:

Trata-se de uma tendência crescente em nível internacional: nas grandes universidades do mundo (Harvard, Yale, Princeton, Oxford, Cambridge
etc.), a Bíblia está cada vez mais presente, nos cursos de graduação e pós-graduação em humanidades, como matéria de estudo universitário
entendido sob uma forma não religiosa. (LOURENÇO, 2017, p. 18)

É seguindo essa tendência que oferecemos aos alunos da Pós-Graduação em Estudos Bíblicos da Unicesumar um curso que, em quatro unidades, pretende informá-los, oferecer
instrumentos para que desenvolvam também um olhar crítico e literário sobre os textos bíblicos e atualizá-los quanto aos procedimentos metodológicos de análise que estão sendo
praticados na contemporaneidade em ambientes acadêmicos e também religiosos.

Escrevendo a Bíblia

A Bíblia é, para sermos bem diretos, uma coleção de textos antigos que em sua maioria possui autoria e datação indeterminadas. São livros antigos cuja transmissão até nossos dias
só foi possível por meio de uma longa história de usos religiosos e cópias manuais. Depois da Idade Média a Bíblia se tornou alvo do trabalho de eruditos especializados, críticos
textuais que se debruçaram sobre milhares de manuscritos antigos que aos poucos foram procurados, catalogados e decifrados a fim de produzir edições críticas que fossem tão
próximas dos autógrafos perdidos quanto possível, versões a partir das quais tradutores de todas as partes do mundo poderiam produzir versões vernáculas de maior confiabilidade
histórica.

Hoje nós sabemos bastante sobre os modos de produção desses textos e podemos afirmar que temos nessa coleção sinais de práticas literárias bastante rudimentares que refletem
as origens da escrita no antigo Mundo Mediterrâneo. Por exemplo, podemos notar que a grande maioria dos textos bíblicos são compilações de textos menores e de origens
diversas; são coleções de fragmentos de tradição oral e escrita, unidos em dado momento por um processo redacional que transformou em livros vários antigos mitos, provérbios,
cânticos, contratos, contos, ditos... (DURÃO, 2016, p. 48-50).
Alguns desses livros parecem mesmo sugerir uma herança cultural antiquíssima, refletindo, por meio de suas brevíssimas unidades textuais, tempos em que a escrita mais comum
devia ser a cuneiforme, feita em tabuletas de materiais simples como argila, pedra ou madeira.

Na própria Bíblia há algumas passagens que refletem o modo como se escrevia, gravando caracteres em baixo relevo sobre superfícies planas. Leia-
se, por exemplo, em Josué 8.32, que Josué copia textos da Lei sobre a pedra.

Também em Isaías 8.1 temos uma referência à escrita, pois o Senhor manda o profeta escrever algo sobre uma placa. Em Apocalipse, capítulo 5, um
livro mais recente, já ouvimos falar em um rolo que, selado, para ser aberto e lido, deveria ter seus sete selos rompidos.

Fonte: elaborado pelo autor.

Estes conhecimentos nos permitem vislumbrar algumas práticas de leitura e escrita dos tempos bíblicos e nos ajudam a evitar anacronismos, como o de supor que os personagens
bíblicos liam e escreviam como hoje fazemos, e ainda nos auxiliam na compreensão do caráter pericopal dessa literatura. Por “caráter pericopal” nos referimos ao fato de a maior
parte dos livros bíblicos serem compilações de breves unidades textuais que podem ter surgido de maneira independente. Essas passagens (perícopes) são textos cuja extensão era
adequada aos limites da tecnologia disponível aos poucos letrados da antiguidade, pequenas orações, canções ou micronarrativas que haviam sido preservadas na memória e que,
quando escritas, cabiam em cacos de cerâmica, folhas soltas ou paredes.

A Bíblia que hoje temos é prova de que nalgum momento as pessoas que recitavam seus versos de memória, que usavam aqueles textos breves em leituras públicas e manejavam as
tradições de seu povo de maneira fragmentária passaram a novos interesses e recursos. A evolução da Bíblia coincide com a criação de novas tecnologias ligadas à escrita: primeiro
os homens do antigo Mundo Mediterrâneo contaram a popularização do papiro egípcio como material de escrita que, embora fosse pouco durável (como o nosso papel), era fácil de
usar, guardar e transportar. O papiro foi popular até que o couro o superasse já pelo quarto ou quinto século da Era Cristã, ganhando a preferência pela maior durabilidade e
facilidade de acesso em qualquer região.

O rolo foi um passo seguinte e permitiu a união das folhas (fossem elas de papiro ou de couro) e a compilação de tradições literárias independentes em textos mais longos. Depois a
invenção do códice, do livro encadernado como até hoje os usamos, permitiu a união de fascículos com conteúdo ainda mais extenso, além de facilitar a consulta às diferentes partes
do livro e incentivar a leitura pontual e as análises comparativas.

Nos primeiros séculos da Era Cristã o cristianismo antigo desempenhou um papel importante relativo à história do livro ao adotar mais cedo que qualquer outro grupo social o
códice (ou códex) em lugar dos rolos (SARAIVA, 2011, p. 27-31). Segundo o pesquisador do cristianismo primitivo, John Dominic Crossan, “nos anos 200, a proporção cristã de rolo
para códice era de um para treze. Essa vitória do códice para o rolo aconteceu só devagar e tarde para a literatura grega, mas quase instantaneamente e logo para a literatura cristã”
(CROSSAN, 2004, p. 170). É difícil explicar porque os manuscritos cristãos, desde os mais antigos que hoje dispomos, já eram códices.

Pode-se supor que a popularidade desse novo suporte aumentava por ser menos dispendioso, mais acessível à manufatura não profissional.

Do ponto de vista da recepção, a adoção do códice ainda trazia outras importantes consequências: os tradicionais rolos tinham limites, não costumavam ser maiores que dez metros
e, assim, mantinham os livros fisicamente separados. Foi o códice como suporte para a escrita que permitiu que os muitos rolos já tradicionais fossem reunidos e editados para
formar a Bíblia (hebraica ou cristã), uma antologia da literatura e da cultura judaicas onde poderiam ser guardados e apreciados conjuntamente.

O leitor da Bíblia de hoje lida com edições tão aprimoradas que raramente nota quão arcaica era a escrita e os livros dos dias em que essa antologia nascia não precisando superar
por si mesmo as dificuldades impostas pelos antigos manuscritos, que não apenas foram escritos em idiomas extintos como não traziam sequer divisões entre as palavras, sinais de
pontuação ou mesmo parágrafos.

A FORMAÇÃO DA BÍBLIA
Figura 2: Manuscrito do Mar Morto

Fonte: Wikimedia (on-line).

Embora nos tempos bíblicos o acesso à palavra escrita ainda fosse bastante limitado, os textos mais lidos, mais celebrados, eleitos pelas comunidades foram ouvidos e copiados com
frequência cada vez maior, até que suas ideologias se solidificaram na cultura popular. Nos dias de Jesus e em meados do primeiro século, boa parte das tradições literárias das
religiosidades judaicas já havia se consolidado e formavam coleções de textos que a princípio eram úteis, e depois sagrados.

O Antigo Testamento, embora não houvesse uma instituição de autoridade nacionalmente reconhecida que o pudesse declarar canônico, já existia sob a forma de coleções textuais
de maior ou menor aceitação há alguns séculos. Eram conhecidos principalmente três grandes blocos: primeiro a Torá, que é formada pelos primeiros cinco livros bíblicos, os quais
narram as origens mitológicas do mundo, da espécie humana e do povo de Israel. Tradicionalmente esta coleção está vinculada à memória de Moisés. Em segundo lugar
encontramos os Profetas, coleção que reúne vários rolos maiores e menores de histórias e oráculos de profetas ou videntes que viveram em torno dos séculos VIII e V AEC.

Mas haviam muitos outros textos importantes que, num agrupamento mais heterogêneo, formaram um terceiro bloco de redação mais recente chamado de Escritos. Essa coleção
trazia as canções e orações dos famosos salmos, os provérbios dos sábios e outros textos mais recentes de caráter sapiencial e até apocalíptico. O nível de aceitação de cada um
desses conjuntos literários não era unânime, e há evidências de que o terceiro bloco, o dos Escritos, demorou para conquistar o status dos demais.

No Evangelho de Mateus 5,17, por exemplo, quando Jesus fala dos textos sagrados, só fala da Lei (Torá) e dos Profetas. Porém, judeus de Alexandria
já haviam reunido esses três grandes blocos textuais e os traduzido do hebraico para o grego entre os séculos III e II AEC, formando a chamada
Septuaginta (LXX), que seria a Bíblia mais lida na parte oriental do Império Romano que falava grego, até que o latim fosse imposto como idioma
oficial pelo império cristianizado no período bizantino.

Fonte: elaborado pelo autor.

Na segunda metade do primeiro século as legiões romanas invadiram Jerusalém e destruíram o Templo religioso local, fazendo ruir com ele a tradicional religiosidade judaica que
em boa medida ainda se apoiava nos ritos sacrificiais. Não demoraria muito até que judeus letrados formassem novas coalizões para a manutenção de suas tradições e
estabelecessem um cânone literário-religioso.

A eleição dos textos que compõem o Antigo Testamento se deu gradativamente ao longo de séculos. Já comentamos que a primeira porção a receber um status canônico foi a de
Torá, seguida dos Profetas e depois dos Escritos. Há, a respeito da formação do cânone da Bíblia Hebraica, uma lenda fundacional sobre judeus que teriam se reunido em Jâmnia, um
vilarejo a oeste de Jerusalém, após a destruição do Templo em 70 EC. Eles teriam estabelecido ali o cânone e as bases para o novo judaísmo, o rabínico, que se desenvolveria pelos
próximos séculos (GABEL; WHEELER, 2003, p. 155-156). Por sua vez, o cristianismo nasceu como uma vertente do judaísmo e herdou grande parte dos textos que aqueles já
haviam sacralizado. Mas o cristianismo também produziu um bom número de textos inéditos que foram lidos e copiados por séculos, até que a aceitação deles por parte das
comunidades cristãs e suas lideranças culminaria na definição de um corpus canônico cristão. Momento marcante nessa história é a catalogação feita por Atanásio em 367 EC, que
listava os 27 livros do Novo Testamento e já os denominava canônicos.

Daí por diante a identidade religiosa nacional se voltou definitivamente para a tradição escrita, para a recitação dos textos sagrados e sua interpretação, produzindo hábitos
religiosos letrados que caracterizariam as grandes religiões do mundo ocidental.

O Novo Testamento, que unido à Bíblia Hebraica forma a Bíblia dos cristãos, é também uma coletânea textual que foi produzida no interior do(s) judaísmo(s). Ele nasce a partir de
um sistema de circulação literária preexistente e, justamente por isso, apresenta grande dependência intertextual em relação ao Antigo Testamento e aos princípios interpretativos
que já haviam sido estabelecidos na cultura judaica. O Novo Testamento foi escrito entre os séculos I e II por judeus-cristãos que falavam grego e conheciam a tradição literária
judaica, principalmente por meio da Septuaginta. Ela se forma quando seguidores e discípulos de Jesus estabeleciam, por meio de suas memórias narrativas, as fronteiras
identitárias que, enfim, distinguiriam os cristãos dos judeus.

Nessa história da Bíblia é preciso sempre levar em conta que naqueles dias esses textos que hoje compramos em qualquer livraria e podemos ter em casa em inúmeras versões não
costumavam ser encontrados nas casas das famílias comuns, apenas nos templos, nas sinagogas, nas mãos de escribas que também estavam envolvidos com serviços
administrativos do Império Romano, ou entre ricos patronos que aderiam ao judaísmo ou cristianismo e podiam desfrutar da literatura judaica enquanto cultivavam suas preciosas
horas de ócio.

Figura 3: Escriba ou copista medieval

Fonte: Wikimedia (on-line).


Além de não existir ainda a padronização de uma coleção canônica desses textos, há vários outros motivos que explicam a escassez de cópias dos textos bíblicos entre as massas:
devemos nos lembrar que a alfabetização não era uma característica comum a qualquer parte do chamado mundo antigo, e os estudiosos estimam que o nível de alfabetização da
terra judaica nos primeiros séculos estava abaixo dos 3% (CROSSAN, 2004, p. 274). Além disso, mesmo para os letrados a posse de uma grande coleção de textos que tinha que ser
copiada manualmente por profissionais e em folhas de papiros importadas era algo economicamente inviável (FISCHER, 2006, p.63-65). E mais importante ainda é que a posse de
livros e a atividade da leitura individual eram simplesmente inconcebíveis naquela cultura que quase sempre transmitia seus conhecimentos por meio da oralidade. Os textos
bíblicos não eram copiados para serem comprados, levados para casa e lidos; eles existiam principalmente para ser ouvidos. De fato, mesmo nos rituais religiosos a memória era o
principal instrumento, e os textos, quando entravam em cena, eram lidos por algum escriba para que os demais ouvissem. As memórias e tradições orais eram escritas e copiadas de
geração em geração tanto para sua preservação quanto para o uso comunitário, ou seja, para serem realizadas pela prática da leitura coletiva.

OS MEDIADORES RELIGIOSOS DA LEITURA BÍBLICA


É comum lermos que durante a Idade Média a Bíblia se tornou um documento misterioso e que seus aspectos literários foram colocados em segundo plano, sufocados pelos acentos
místicos que em geral confirmavam a ortodoxia católica. O acesso ao texto e a capacitação para sua leitura estavam limitados a poucos privilegiados, membros do clero e homens
capazes de lidar com a Vulgata latina a partir dos métodos consagrados e da tradição de leitura já estabelecida. Mas a história da leitura bíblica, na realidade, possui configurações
mais complexas.

Por exemplo, o catolicismo também proporcionou, com o estabelecimento da vidamonástica, um ambiente de leitura onde o contato do leitor com o texto bíblico era mais
prolongado, silencioso e repetido que em qualquer outro (CAVALLO; CHARTIER, 1998, p. 19-21). Fora dos monastérios a reverência à Bíblia também cresceu gradativamente; ela
se tornaria um objeto sagrado independentemente de seus enunciados; um amuleto cuja posse seria desejável mesmo por aqueles que não a sabiam ler.

Avançando no tempo, importantes inovações na educação e nos modos de ler, iniciadas entre os séculos XI e XIII, resultaram em novas e valiosas conquistas da humanidade, das
quais o símbolo mais renomado é a criação da prensa de tipos móveis na metade do século XV. A tradição legou sua invenção ao alemão Gutenberg e preservou a memória de que o
primeiro livro impresso a partir da nova tecnologia foi a Bíblia, em meados do século XV (embora hoje se saiba que a imprensa já existia antes dele e que Gutenberg e seus auxiliares
imprimiram outros livros religiosos antes da Bíblia).

Figura 4: Bíblia de Gutenberg

Fonte: Wikimedia (on-line).

Aqueles foram anos de mudanças significativas: os pensadores humanistas negavam o controle religioso sobre a sociedade e os centros educacionais se desenvolviam como nunca,
suscitando novo interesse pela cultura clássica e por edições mais fiéis dos textos gregos e latinos. Graças à tipografia, os livros ficavam cada vez mais baratos, incentivando a
educação e proporcionando as condições para o desenvolvimento de um verdadeiro mercado livreiro formado por profissionais como autores, tradutores, impressores, tipógrafos,
revisores, encadernadores, vendedores, transportadores etc. Tudo isso foi determinante para que, no século XVI, o mundo testemunhasse a grande revolução da religiosidade
ocidental que chamamos de Reforma Protestante.

Já se defendeu que a Reforma transformou o cristianismo ao destronar o catolicismo do posto de único mediador da leitura bíblica, instaurando um acesso direto do cristão com o
texto que ele tem como sagrado (FISCHER, 2006, p. 207-208). Realmente, houve um interesse crescente pelos textos bíblicos tanto em seus idiomas originais quanto nas línguas
vernáculas, mas convém não superestimar os efeitos dessas transições. Ávidos por reformar o cristianismo, homens como o célebre Martinho Lutero (1483-1546) defenderam o
direito ao livre exame das Escrituras para os leigos e, aproximando-se dos textos, deram passos interessantes no exame das características literárias da Bíblia ao desenvolver
abordagens que alguns chamam de histórico-gramaticais. Os reformadores desenvolveram ou incentivaram a produção de novas traduções bíblicas e de muitas literaturas
relacionadas, sempre com a finalidade de aproximar o cristão do texto sagrado que, finalmente, deveria assumir o posto de único valor normativo para a cristandade.

Ninguém pode negar que naquele momento o protestantismo contribuía significativamente com o desenvolvimento de uma cultura letrada onde quer que se estabelecesse e que,
nesse processo, também estimulava a criação de novos hábitos de leitura bíblica. Porém, o ideal protestante do livre exame das Sagradas Escrituras não passou de utopia.
Depois da Reforma as instituições cristãs continuaram fazendo a principal mediação entre os textos bíblicos e seus leitores em todo o mundo ocidental, embora essas mediações
tenham assumido novas formas. Mesmo tendo acesso à Bíblia em boa edição, com preço mais acessível e em seu próprio idioma, o leitor comum continuou lendo sob a mediação das
instituições religiosas. Se por um lado as igrejas faziam leitores melhores, por outro, os introduzia à Bíblia por meio de suas próprias publicações, de livros didáticos, doutrinários ou
de aprovada confissão religiosa.

Sobre isso, vale a pena lermos as linhas de Rubem Alves que, escrevendo sobre uma expressão recente do cristianismo reformado, afirmou que o protestantismo deu ao povo o
acesso ao texto em seu idioma, mas não o direito de interpretar o texto livremente (ALVES, 2005, p. 101-154). A força da intermediação institucional na leitura protestante é
desnudada por suas palavras:

Cada um pode ler as Escrituras, diretamente. Mas este é nada mais que o direito ao ato mecânico da leitura. Não há direito de interpretação, porque
a interpretação correta já foi cristalizada num documento autoritativo [...]. A fim de preservar o caráter absoluto do conhecimento, acima de toda a
dúvida, interdita-se o exercício da consciência interpretativa e da razão crítica por meio de uma confissão que se torna o critério final para a leitura
do texto sagrado. (ALVES, 2005, p. 136)

O leitor brasileiro da Bíblia impressa começou a ser verdadeiramente formado a partir das primeiras décadas do século XIX pela atuação de colportores, missionários e instituições
protestantes estrangeiras que aqui difundiram clandestinamente suas Bíblias e seus próprios modos de lê-las. Como consequência da duradoura atuação desses grupos o uso da
Bíblia ficou, no imaginário religioso popular, vinculado ao cristianismo protestante e as práticas de leituras mantiveram esse caráter leigo, minoritário e de pouca instrução, quadro
que pouco se alterou até nossos dias.

Olhando para nossa realidade, vale a pena notar que todo cristão que leva uma Bíblia sob os braços não conhece apenas os textos bíblicos, mas
também os modos de uso aprovados pela instituição religiosa a que pertence. Ele lê as versões e traduções mais tradicionais, aquelas que sua igreja
aprovou independentemente de serem as melhores ou mais atualizadas. Ele conhece as leituras canonizadas, as interpretações convencionais que
ele memoriza na prática litúrgica e reproduz quando a oportunidade se apresenta. Ele também se dedica à bibliografia de apoio, aos livros que a
editora de sua denominação pública ou àqueles que as mídias cristãs indicam. Tudo isso limita a autonomia do leitor, concede um espaço reduzido
para a reflexão independente, para a leitura intuitiva, para a livre expressão.

Fonte: elaborado pelo autor.

Enfim, não restam dúvidas de que atualmente temos condições privilegiadas de acesso e de leitura dos textos bíblicos. Nunca uma geração de leitores pôde desfrutar de tantas e tão
boas cópias, de tantas diferentes traduções, de tantos métodos de leitura e de tamanha liberdade para lê-la como bem entende. Todavia, a história fez com que a Bíblia se
mantivesse estreitamente ligada às instituições religiosas que a preservaram, transmitiram, divulgaram... Agora, chegamos a um ponto em que nos perguntamos se a existência e a
apreciação da Bíblia não são possíveis fora dos templos, se não podemos nos dedicar a traduções e métodos interpretativos que não tenham por objetivo a defesa e a manutenção
de dogmas religiosos, se uma abordagem literária não nos revelaria sentidos que nunca qualquer membro do clero usou revelar.

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ATIVIDADES
1. Qual dos suportes abaixo indicados foi logo cedo adotado pelos cristãos primitivos para a produção de seus textos?

a) O rolo com folhas de couro.

b) O livro digital.

c) O códice.

d) O livro impresso.

e) O pergaminho com folhas de papiro.

2. Como é chamada a ciência dedicada à análise dos manuscritos bíblicos que tem por finalidade comparar todas as cópias conhecidas a fim de reconstruir uma versão que
hipoteticamente é a mais próxima dos autógrafos perdidos?

a) Crítica textual.

b) Análise do discurso.

c) Arqueologia bíblica.

d) Crítica literária.

e) Crítica da historicidade dos textos.

3. Por que nos dias de Jesus era inviável a posse de uma cópia particular da Bíblia?

a) Porque as cópias da Bíblia não haviam sido traduzidas para o latim, o que só ocorreria após o trabalho de São Jerônimo, no século VI.

b) Porque o cânone não estava plenamente formado, a maioria das pessoas eram iletradas e os custos da produção das cópias manuais eram muito elevados.

c) Porque o clero já impedia o acesso do livro aos leigos, limitando a Bíblia aos iniciados.

d) Porque os papiros eram raros e muito caros. Só com a criação dos rolos formados em couro isso seria possível.

e) Porque o cânone estava incompleto; os Escritos ainda não haviam sido produzidos nem canonizados. Jesus, por exemplo, só conhecia a Torá e os Profetas.

Resolução das atividades

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RESUMO
Agora estamos mais capacitados para saber de que trata o curso Bíblia, literatura e linguagem , uma disciplina que se propõe a tratar da literatura bíblica a partir de um viés literário,
relevante para todo pesquisador que pretende inserir-se nos estudos bíblicos seriamente e produzir conhecimento com legitimidade acadêmica.

Até aqui nos concentramos na exposição de alguns tópicos referentes à história da Bíblia, falando de sua formação, dos recursos empregados para sua escrita, do trabalho
empreendido para sua preservação por meio de sucessivas cópias manuais e para sua reconstrução na idade moderna. Já dissemos que um dos objetivos de tudo isso é acostumar
nosso leitor ao tratamento objetivo que daremos aos livros bíblicos ao longo do curso, evitando toda forma de argumentação que se apoie em elementos religiosos.

De especial interesse para a sequência de nossos estudos é o que foi exposto na terceira aula, a qual tratou dos mediadores religiosos da leitura bíblica . Gostaríamos que todos
refletissem bastante sobre o assunto, que considerassem não apenas o trabalho de autores, redatores e copistas do passado, mas também às Bíblias que já possuem. Gostaríamos
que observassem os paratextos nelas incluídos e avaliassem a influência que estes paratextos exercem sobre os leitores que as manuseiam. Por exemplo, que título dão à Bíblia? Não
aproveitam os editores (que em sua maioria são cristãos) para declará-la sagrada desde a capa? O que diz a introdução feita a cada livro? E os títulos dos capítulos, as subdivisões
acrescidas, a paragrafação, as notas de rodapé, os anexos? Para terminar, quem traduziu essa Bíblia? Por acaso os tradutores e revisores não pertencem a instituições religiosas?

A conclusão é que as instituições religiosas se apoderaram da Bíblia e até agora têm determinado seus usos. Claro que elas podem seguir lendo-a como quiserem, mas a Bíblia não é
patrimônio exclusivo de qualquer religião, é patrimônio cultural da humanidade e fazer essa reivindicação já nos introduz no debate que dá origem às abordagens literárias da
Bíblia.

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Material Complementar

Leitura
A Bíblia como literatura

Autor: John B. Gabel e Charles B. Wheeler

Editora: Loyola, 2003

Sinopse : A Bíblia como literatura trata a Bíblia como um livro comum e busca demonstrar como
muitas concepções errôneas a respeito da Bíblia e seus usos partem de falsos pressupostos
religiosamente sustentados sobre suas origens, sobre sua inerrância, sua unidade, sua autoria divina
etc. Contra esses tipos de ideias que transformam a Bíblia num livro sobrenatural, cuja boa
compreensão só seria possível a certos iniciados ou iluminados, os autores oferecem excelentes
argumentos.

Comentário : Uma excelente leitura para reafirmar alguns dos pontos já estudados nesta primeira
unidade de nosso curso. Observe que o livro foi publicado por uma editora católica, a mais atuante no
mercado editorial brasileiro na publicação de obras que lidam com a Bíblia como literatura.

Na Web
O conteúdo desta primeira unidade pode ser enriquecido por meio de algumas consultas à internet.
Indicamos dois vídeos sobre a produção de papiros e rolos compostos por folhas de couro. Consulte o
recurso de legendas, se necessário:

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Há também dois sites de qualidade para a visualização de antigos manuscritos:

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REFERÊNCIAS
ALVES, R. Religião e repressão . São Paulo: Teológica/Loyola, 2005.

DURÃO, Fabio Akcelrud. O que é crítica literária? São Paulo: Nankin Editorial/Parábola Editorial, 2016.

LOURENÇO, Frederico. Apresentação da Bíblia grega. In. BÍBLIA, volume 1 : Novo Testamento: os quatro Evangelhos. Tradução do grego, apresentação e notas por Frederico
Lourenço. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

CAVALLO, G.; CHARTIER, R. (orgs.). História da leitura no mundo ocidental (vol. 1). São Paulo: Ática, 1998.

CROSSAN, J. D. O nascimento do cristianismo : o que aconteceu nos anos que se seguiram à execução de Jesus. São Paulo: Paulinas, 2004.

FISCHER, S. R. História da leitura . São Paulo: Editora UNESP, 2006.

GABEL, J. B.; WHEELER, C. B. A Bíblia como literatura . São Paulo: Loyola, 2003.

SARAIVA, M. O. Q. O Evangelho de Lucas no manuscrito grego da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (cód. 2437) : edição e glossário. Tese (Doutorado em Linguística Teórica e
Descritiva) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2011.

ZABATIERO, J.; LEONEL, J. Bíblia, literatura e linguagem . São Paulo: Paulus, 2011.

TEMPLE Scroll. Wikimedia . Disponível em: < https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Temple_Scroll.png >. Acesso em: 13 set. 2017.

A Scribe or Copyist. Wikimedia . Disponível em: < https://commons.wikimedia.org/wiki/File:A_Scribe_or_Copyist.jpg >. Acesso em: 13 set. 2017.

GUTENBERG Bible. Wikimedia . Disponível em: < https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Gutenberg_Bible.jpg >. Acesso em: 13. set. 2017.

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APROFUNDANDO

Manuscrito grego dos quatro evangelhos

Agora nos concentraremos num objeto específico, um códice que os pesquisadores têm datado do século XII ou XIII, cujo texto foi escrito em grego e que contém os quatro
evangelhos.

O manuscrito é parte do acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Foi doado à biblioteca em 1912 (PINHEIRO, 2002, p. 10), mas não se sabia muito sobre ele até que em
1952 Bruce Metzger visitou o Brasil e empregou sua experiência em análises, cujos resultados foram divulgados num artigo intitulado Um Manuscrito Grego dos Quatro
Evangelhos na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. O parecer de Metzger permitiu que o códice fosse repertoriado entre os manuscritos gregos do Novo Testamento sob o
número 2.437. Além de ganhar um número, o códice foi classificado a partir das características de seu texto e logo foi enquadrado entre as cópias da categoria V (ALAND; ALAND,
2009, p. 257), o que significa que o texto grego que ele traz é predominantemente do tipo bizantino, o tipo de texto bíblico mais copiado na Idade Média.

Quando algum objeto assim é encontrado, ele é estudado e os primeiros pareceres são essencialmente descritivos. É preciso identificar o documento, mensurar seu conteúdo, datá-
lo, classificá-lo. Depois os pesquisadores partem à decifração, à transcrição e, tratando-se de um manuscrito que contém textos bíblicos, costuma-se seguir à comparação entre este
e outros manuscritos, depois à identificação e avaliação de suas variantes textuais etc. De acordo com a datação, com a qualidade do texto copiado, com a matriz textual que ele
reproduz, o novo manuscrito (ou fragmento de manuscrito) será considerado mais ou menos importante para a crítica textual, que compara todos os manuscritos existentes a fim de
produzir edições críticas dos textos do Antigo e Novo Testamentos, os quais poderão servir para as traduções ou estudos bíblicos em geral.

Nossos objetivos aqui são modestos: exibiremos uma imagem do códice e chamaremos a atenção para alguns detalhes nele. No fólio 151 (verso), atentem primeiro para o texto
grego, escrito apenas com tinta preta, em letras sempre minúsculas, sem qualquer tipo de paragrafação, com praticamente nenhum espaço entre as palavras e contando com uma
pontuação mínima.

Figura 5: Códice 2437 — Fólio 151 verso

Fonte: Imagem cedida pelo acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil

Observemos agora a presença de alguns recursos que não faziam parte do texto bíblico original, mas que foram acrescidos ao longo do tempo pelos copistas para facilitar a
utilização constante dos livros bíblicos. Neste caso ainda não temos capítulos ou versículos, mas já contamos com uma espécie de título na parte de cima da página. Traduzindo-o,
ele diz: “Sobre o Fariseu e o Publicano”. Também se pode atentar para duas letras maiúsculas postas à margem, à esquerda do texto bíblico. As maiúsculas são: um alfa (A) antes da
linha 5 e um ýpsilon (Y) antes da linha 22.

Se o leitor, depois do título, avançar com os olhos diretamente para a primeira maiúscula, ao alfa (A) da linha 5, encontrará exatamente o começo de Lucas 18.10, texto em que o
narrador do evangelho dá voz a Jesus, que ali passa a ensinar seus discípulos por meio de uma parábola que é desenvolvida em torno dos dois personagens que o título anunciou. A
segunda maiúscula aparece precisamente à frente da linha 22, depois da parábola e das sentenças conclusivas de Jesus.

Conclui-se que as maiúsculas marcam os limites da parábola, segmentando o texto e auxiliando o leitor.

É fácil distinguir na página as anotações que foram feitas por uma outra mão. Trata-se da caligrafia de um segundo agente que usou tinta vermelha para fazer, com a própria pena,
anotações às margens e no corpo do texto. Esse anotador foi um leitor, um usuário do códice; o estudo das marcas por ele deixadas podem nos dizer ainda mais sobre o modo como
antigos cristãos lidavam com seus livros, como os liam, como os entendiam, corrigiam....

A escrita marginal foi feita à esquerda e no alto da página, planejada para coincidir com o início do texto que deveria ser lido na cerimônia religiosa indicada como o décimo sétimo
domingo. Escrita em grego ela traz duas partes: na superior lê-se “do publicano e do fariseu”. Na segunda parte da inscrição podemos ler o seguinte: “o senhor disse esta parábola:
dois homens...”. Aqui o que temos é uma nova introdução para a parábola.

E ainda podemos observar um outro tipo de anotação feita pelo mesmo leitor. Ele escreveu, em grego, “tel” no meio do texto na linha 22, a mesma que já era marcada pela presença
da segunda maiúscula da página (o ýpsilon). Trata-se de uma abreviação de télos, que significa algo como completo, terminado .

PARABÉNS!

Você aprofundou ainda mais seus estudos!

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EDITORIAL

DIREÇÃO

Reitor Wilson de Matos Silva

Vice-Reitor Wilson de Matos Silva Filho

Pró-Reitor de Administração Wilson de Matos Silva Filho

Pró-Reitor de EAD William Victor Kendrick de Matos Silva

Presidente da Mantenedora Cláudio Ferdinandi

C397 CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ . Núcleo de Educação

a Distância; LIMA . Anderson de Oliveira;

Bíblia, Literatura e Linguagem. Anderson de Oliveira Lima;

Maringá-Pr.: UniCesumar, 2017.

27 p.

“Pós-graduação Universo - EaD”.

1. Bíblia. 2. Literatura. 3. Linguagem EaD. I. Título..

CDD - 22 ed. 230

CIP - NBR 12899 - AACR/2

Pró Reitoria de Ensino EAD Unicesumar

Diretoria de Design Educacional

Equipe Produção de Materiais

Fotos : Shutterstock

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A BÍBLIA COMO LITERATURA

Professor (a) :

Dr. Anderson de Oliveira Lima

Objetivos de aprendizagem
Discutir o processo político-cultural que destaca determinadas produções literárias formando uma classe de obras que são chamadas de clássicos ou canônicos.
Apresentar algumas das conclusões alcançadas por Erich Auerbach sobre as particularidades das narrativas bíblicas e demonstrar a importância do autor no estabelecimento de
novos paradigmas para a interpretação da Bíblia.
Conhecer os principais pressupostos que caracterizam os trabalhos dos proponentes à abordagem literária da Bíblia na atualidade.

Plano de estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
Como nascem os livros clássicos e canônicos
Uma obra basilar
Para ler a Bíblia como literatura

Introdução
O que até agora vimos em nossa disciplina foi um conteúdo que se concentrou na história da Bíblia. Este conteúdo foi considerado importante porque, sendo a Bíblia um livro que
quase sempre desperta o interesse dos leitores que estão vinculados a instituições religiosas (e que nelas aprendem a tomar a Bíblia como um objeto único, até envolvido por
poderes mágicos), julgamos que não seria possível se empenhar numa abordagem literária que desconsiderará a factualidade dos eventos narrados, que tratará Deus como
personagem e tomará a onisciência dos narradores como recursos retóricos, sem que fizéssemos uma introdução capaz de demonstrar quão diferente é a análise que estamos
propondo em relação aos conhecidos estudos bíblicos evangelizantes.

A partir de agora nossos estudos tomarão novos caminhos, mais diretamente relacionados com o tema de nossa disciplina. Noutras palavras, passaremos direto às questões teóricas
que nalguma medida definem o que é, hoje em dia, ler a Bíblia como literatura . Primeiro falaremos da Bíblia e do cânone como resultados de políticas culturais, tema que deverá nos
ajudar a ver a Bíblia como um livro importante a partir de fatores literários, e não religiosos. Depois faremos contato com a importante contribuição dada pelo crítico literário
alemão Erich Auerbach por meio da primeira parte de seu livro Mimesis , de 1946, para as abordagens literárias da Bíblia que desde então têm-se desenvolvido. A análise de
Auerbach das peculiaridade narrativas de Gênesis 22 (comparando o texto bíblico à Odisseia de Homero) continua influenciando as pesquisas da área e pode ser considerada um
marco na história da leitura bíblica recente. Na terceira parte desta unidade discutiremos alguns dos pressupostos que são defendidos de maneira recorrente pelos proponentes
das abordagens literárias da Bíblia e que, ainda que de maneira imprecisa, definem essa prática de leitura, delineiam sua identidade, caracterizam-na.

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COMO NASCEM OS LIVROS CLÁSSICOS E


CANÔNICOS
A expressão a Bíblia como literatura não é nova, mas nas últimas décadas ganhou especial notoriedade. De um ponto de vista global, ela apareceu cada vez com maior frequência a
partir da década de 1970, dando nome a livros e supostamente identificando um novo paradigma para a interpretação bíblica. Essa forma de ler a Bíblia só chegou ao cenário
brasileiro a partir da década de 1990 e, devido à variedade das leituras bíblicas que se denominam literárias , ainda é difícil determinar o que é ler a Bíblia como literatura no Brasil.

Para aqueles que não são iniciados na disciplina a ideia de que alguns estudiosos contemporâneos leem a Bíblia como literatura pode provocar questionamentos. Por exemplo: será
que só mediante essas novas abordagens a Bíblia se tornou literatura? Ou ainda: ler a Bíblia como literatura é muito diferente de lê-la como livro sagrado? Partindo desse primeiro
estranhamento julgamos necessário discutir rapidamente o próprio conceito de literatura , nos envolvendo numa discussão que não é nova nem tampouco simples, mas cuja
execução nos dará melhores condições de entender como a Bíblia é considerada e lida quando tomada como objeto dos estudos literários contemporâneos.

Para começar, sempre houve quem afirmasse que a Bíblia, a despeito de seu prestígio como obra religiosa, tem valor literário. Se avaliada a partir de suas virtudes estéticas, ela
também se mostra digna de nossa atenção. Para defender essa posição vários críticos tentaram, especialmente a partir de fins do século XIX, demonstrar a adequação dos textos
bíblicos aos valores que a crítica literária moderna havia estabelecido para a avaliação e rotulação das obras literárias. Sublinhava-se a qualidade estética de sua prosa, seu modo
peculiar de lidar com questões profundas da existência humana, seu valor moralizante e o poder inspirador de suas histórias e personagens. Esses argumentos, todavia, não são
aceitos de maneira tão pacífica hoje em dia; tornaram-se insuficiente para qualificar, valorizar a Bíblia ou qualquer outra obra literária. Dá-se cada vez menos importância aos
rótulos tradicionais dados aos livros por instituições especializadas a fim de apontar aqueles que são literatura e os diferenciar dos textos não-literários. Os rígidos limiares que
diferenciavam alguns textos de outros se tornaram bem mais maleáveis, embora ninguém negue a existência de muitas diferenças entre textos e textos.

A complexidade da discussão sobre o que é literatura se baseia no fato de que os juízos emitidos a esse respeito se mostram, não poucas vezes, permeados de um modo elitista e
preconceituoso de classificar as produções literárias. A partir dos valores assumidos por quem avalia se faz distinção entre a alta e a baixa literatura, entre literatura erudita e
literatura popular ou de massa, entre literatura de proposta e literatura de entretenimento etc. A aclamação de determinados títulos e gêneros e a rejeição a outros não depende,
como poderíamos imaginar, de questões meramente estéticas, mas sim do olhar, dos gostos e do lugar de quem lê e opina, assim como das expectativas das comunidades leitoras.
Em geral, certa elite cultural (cuja autoridade os leigos respeitam) toma para si o direito de eleger seus títulos e autores e trabalha para transmitir esse mesmo gosto aos demais
leitores por meio das instituições que controlam, tentando manter algum domínio sobre a produção literária nacional e, com ele, os próprios privilégios.

Curiosamente, aquela elite que se julga apta para avaliar a literatura se encontra na contramão do mercado editorial que, por sua vez, é quase sempre movido por leis capitalistas
que não respeitam qualquer valor além do lucro. O mercado livreiro elege seus próprios clássicos, constrói e valoriza seus best-sellers , e os livros ganham publicidade e múltiplas
edições de acordo com os resultados de suas vendas. Isso já demonstra que nem sempre o gosto popular concorda ou deixa-se levar pela crítica especializada, e nos leva a supor que
talvez não existam posições inquestionáveis quando o assunto é o gosto literário.

Nosso objetivo não é tomar partido a favor daqueles que querem derrubar as fronteiras que distinguem a grande literatura das demais produções.
Nosso real interesse é compreender como se produz essa distinção entre tipos de literatura para depois, voltando-nos para o caso dos estudos
bíblicos, nos perguntar o que muda ou se alguma coisa muda a partir do momento em que se diz que a Bíblia é literatura.

Fonte: elaborado pelo autor.

Após discutir os critérios tradicionalmente empregados para que sejam justificadas as escolhas de certos títulos ao privilegiado rol dos livros clássicos e demonstrar a subjetividade
desses critérios, o crítico literário Terry Eagleton chegou à seguinte conclusão:

O que importa pode não ser a origem do texto, mas o modo pelo qual as pessoas o consideram. Se elas decidirem que se trata de literatura, então, ao
que parece, o texto será literatura, a despeito do que o seu autor tenha pensado (EAGLETON, 2006, p. 13).

Noutras palavras, qualquer característica implícita que se possa encontrar em textos considerados literários é insuficiente para que a definição tenha aplicabilidade geral. Eagleton
opta por uma explicação de caráter social, em que a eleição de uma obra ao status de literatura depende, principalmente, das relações entre os homens e suas instituições
(EAGLETON, 2006, p. 13-18).

Figura 1: Clássicos da literatura

Fonte: Pixabay (on-line).

Outra autora, Márcia Abreu, expõe a mesma posição com especial clareza:

Para que uma obra seja considerada Grande Literatura ela precisa ser declarada literária pelas chamadas “instâncias de legitimação”. Essas instâncias
são várias: a universidade, os suplementos culturais dos grandes jornais, as revistas especializadas, os livros didáticos, as histórias literárias etc. Uma
obra fará parte do seleto grupo da Literatura quando for declarada literária por uma (ou, de preferência, várias) dessas instâncias de legitimação.
Assim, o que torna um texto literário não são suas características internas, e sim o espaço que lhe é destinado pela crítica e, sobretudo, pela escola no
conjunto dos bens simbólicos (ABREU, 2006, p. 40).

Para alguns, o rótulo literatura pode não parecer tão enobrecedor, pelo que preferem destacar os principais títulos de toda a produção literária humana chamando-os de clássicos , o
que não foge à discussão que temos feito. O escritor Ítalo Calvino, por exemplo, ofereceu suas definições de clássicos dizendo, entre outras coisas, que eles são “[...] aqueles livros
que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado

livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis [...]”, “[...] livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que
[...]”, “[...]

precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura [...]”, “[...] obra que provoca incessantemente uma nuvem de discursos críticos sobre si [...]” (CALVINO, 2007, p. 9-
16). É fácil notar que várias das características empregadas por Calvino em sua definição de clássicos dependem mais do leitor, individual e coletivo, do que das virtudes das obras
em si. O que faremos quando lermos Kafka e não nos sentirmos envolvidos, quando nossa memória, desinteressada, se recusar a guardar seus enredos, quando concluirmos que
esses autores não nos deixaram nenhuma marca? Alguns leitores irão supor que o problema está como eles, que lhes falta competência para compreender tão grande narrativa.
Outros dirão que leram numa tradução que os prejudicou, que viviam um momento impróprio para algo tão profundo... Todavia, é possível que simplesmente não tenhamos
encontrado em O processo todas as virtudes que determinado crítico afirmou ter nele encontrado; e é provável que, subestimando nossos próprios juízos, nossas próprias
impressões, prefiramos ignorar a leitura feita para seguir determinada autoridade no assunto. Assim são os clássicos e os canônicos livros difíceis de ler de maneira autônoma,
difíceis de criticar por si mesmo, difíceis de rejeitar.

Os leitores, portanto, não atuam como críticos imparciais, não tomam em mãos livros desconhecidos e ao final da leitura oferecem seu parecer sobre a qualidade literária dos
mesmos. Ao contrário, sob influência de convenções culturais e preferências institucionais, antes mesmo de abrir uma obra já carregam expectativas em relação à leitura que farão.
Lendo novamente Márcia Abreu, temos:

a avaliação que se faz de uma obra depende de um conjunto de critérios e não unicamente da percepção da excelência do texto. Ler um livro não é
[...]

apenas decifrar letra após letra, palavra após palavra. Ler um livro é cotejá-lo com nossas convicções sobre tendências literárias, sobre paradigmas
estéticos e sobre valores culturais. É sentir o peso da posição do autor no campo literário [...]. É verificar o quanto ele se aproxima da imagem que
fazemos do que seja literatura (ABREU, 2006, p. 99).

Por conta disso, ler algo que uma parte da sociedade definiu como literatura ou como clássico pode ser um ato bem diferente de ler textos desconhecidos, de autores de quem
nunca o leitor ouviu falar, em uma edição barata que se encontra aparentemente perdida numa prateleira qualquer da biblioteca.

Esse processo de seleção e rotulação convencionais não é exclusivo da literatura, mas se repete em diferentes áreas como, por exemplo, na literatura religiosa, que distingue os
textos comuns dos inspirados, os profanos dos sagrados. O estabelecimento de um cânone religioso, quando se oferece a certos textos o status de livros sagrados , depende em
grande parte das preferências, dos usos, dos gostos de determinada elite eclesiástica e de tácitos acordos. Até onde é possível observar, trata-se de política cultura, não de eleição
divina. Obviamente não demora para que os juízos dessa elite sejam apoiados por argumentos religiosos, apresentados como decisões divinas e, quanto mais distante estamos
cronologicamente desse evento definidor, mais difícil é identificá-lo e questioná-lo. Assim, o leitor de uma nova geração é instigado para que leia e reverencie as antigas obras
literárias, os clássicos, os textos sagrados; e para cada novo leitor, será difícil desvencilhar a obra lida dos juízos pré-concebidos.

Alguém certamente se pergunta: mas não podemos crer que a Bíblia é tão célebre por ação divina? Aqui, não estamos atuando como inimigos das religiões, mas quando alguém
afirma que a Bíblia é a palavra de Deus, que é inspirada pelo Espírito Santo ou que é sagrada, fugimos ao escopo daquilo que é passível de discussão. Todo pressuposto que se apoia
na fé não pode ser avaliado, testado, comprovado; depende exclusivamente de uma escolha pessoal do crente em acordo com sua cultura e, se não for visto como um fenômeno de
política cultural, foge do campo de interesse acadêmico. É nosso papel, como críticos e acadêmicos, questionar essas antigas asserções, não porque queremos simplesmente refutá-
las, mas porque cabe a nós a tarefa de encontrar razões imanentes para explicar fenômenos como o prestígio destacado e duradouro de um livro antigo. Deveras,

tem havido a tendência, cada vez maior, de derrubar barreiras divisórias, em uma perspectiva pragmática, considerando que o próprio cânon é
[...]

estabelecido acima de tudo pela sociedade. A diluição cada vez maior dos gêneros literários clássicos igualmente contribui para esse estado de
coisas. Qualquer produção cultural: um romance, um texto histórico, um diário, sermões, ou mesmo a letra de uma música funk, é considerada
literatura (FERREIRA, 2008, p. 9).

UMA OBRA BASILAR


Os aspectos literários dos textos bíblicos sempre foram estudados, embora tenham ficado em segundo plano enquanto o interesse da maioria dos leitores se voltava para seus
elementos religiosos ou históricos. Os tratamentos dados à Bíblia até meados do século XX não se encaixam no tipo de abordagem literária que estamos buscando, mesmo quando
suas análises se apresentam como literárias ou gramaticais. Nosso interesse se concentra numa nova onda de abordagens que não só dedicou atenção especial às peculiaridades
literárias da Bíblia em ambientes acadêmicos, como recebeu a influência dos desenvolvimentos recentes das teorias literárias.

Figura 2: Capa de Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental

Fonte: o autor.
Tem-se apontado o trabalho do crítico alemão Erich Auerbach como um marco inicial dessa nova fase. Em 1946 Auerbach publicou uma obra chamada Mimesis: a representação da
realidade na literatura ocidental , a qual trazia, no seu primeiro capítulo, uma admirável análise da narrativa de Gênesis 22,1-13, que narra a história do (quase) sacrifício do filho de
Abraão. Pelo olhar de Auerbach o texto bíblico foi comparado à Odisseia homérica, e suas particularidades estilísticas são estudadas cuidadosamente, de um modo que não se tem a
impressão de que a Bíblia seja um livro pobre em comparação ao clássico grego. Ele escreveu, por exemplo:

Não é fácil, portanto, imaginar contrastes de estilo mais marcantes do que estes, que pertencem a textos igualmente antigos e épicos. De um lado
(Odisseia), fenômenos acabados uniformemente iluminados, definidos temporal e espacialmente, ligados entre si, sem interstícios, num primeiro
plano; pensamentos e sentimentos expressos; acontecimentos que se desenvolvem com muito vagar e pouca tensão. Do outro lado (Gênesis), só é
acabado formalmente aquilo que nas manifestações interessa à meta da ação; o restante fica na escuridão (AUERBACH, 2011, p. 9).

Auerbach entendeu o laconismo da narrativa bíblica como um estilo que a caracteriza e não como uma carência descritiva, sinal de pobreza literária que a faria inferior ao clássico
homérico. Ademais, ele sugeriu que os textos bíblicos, com suas alusões inconclusivas sobre Deus e os homens, incentivavam o leitor à contínua interpretação, a empreender novas
leituras cujos resultados sempre variavam, a usar mais sua imaginação no processo de produzir sentidos. Noutras palavras, o laconismo bíblico abria mais espaço para o diálogo
entre o texto e leitor e promovia, assim, a longevidade da obra:

o crente se vê motivado a se aprofundar uma e outra vez no texto e a procurar em todos os seus pormenores a luz que possa estar oculta. E como,
[...]

de fato, há no texto tanta coisa obscura e inacabada, e como ele sabe que Deus é um Deus oculto, o seu afã interpretativo encontra sempre novo
alimento (AUERBACH, 2011, p. 12).

O autor fez ainda várias outras valiosas considerações quanto às características das narrativas bíblicas que, sem apelar para motivações religiosas, contrariavam aqueles que a
julgavam um tipo de literatura menor. Se alguns desdenhavam do trabalho dos redatores bíblicos que quase sempre compunham seus textos pela justaposição de fragmentos de
origens diversas, Auerbach via que o resultado dessa união de fontes promovia a composição de personagens extremamente complexos, imprevisíveis e, consequentemente, mais
humanizados (AUERBACH, 2011, p. 14-17, 19). Ele escreveu: “[...] os próprios seres humanos dos relatos bíblicos são mais ricos em segundos planos do que os homéricos; eles têm
mais profundidade quanto ao tempo, ao destino e à consciência” (AUERBACH, 2011, p. 9).

O crítico alemão também abordou rapidamente questões relativas à retórica bíblica, abrindo um caminho para análises futuras no campo da recepção. Ele explicou que as narrativas
bíblicas não foram escritas para entreter. Antes, de um modo particularmente radical, procuram influenciar o leitor em sua própria visão de mundo, para lhe impor seus valores e
exigir obediência a seus contratos:

A pretensão de verdade da Bíblia é não só muito mais urgente que a de Homero, mas chega a ser tirânica; exclui qualquer outra pretensão. O mundo
dos relatos das Sagradas Escrituras não se contenta com a pretensão de ser uma realidade historicamente verdadeira – pretende ser o único mundo
verdadeiro, destinado ao domínio exclusivo [...]. Os relatos das Sagradas Escrituras não procuram nosso favor, como os de Homero, não nos
lisonjeiam para nos agradar e encantar – o que querem é nos dominar (AUERBACH, 2011, p. 11-12).

Assim, a Bíblia e Homero, postos lado a lado, foram escolhidos como pontos de partida para que Auerbach discorresse sobre toda a “representação literária da cultura europeia”
(AUERBACH, 2011, p. 19-20):

Os dois estilos representam, na sua oposição, tipos básicos: por um lado, descrição modeladora, iluminação uniforme, ligação sem interstícios,
locução livre, predominância do primeiro plano, univocidade, limitação quanto ao desenvolvimento histórico e quanto ao humanamente
problemático; por outro lado, realce de certas partes e escurecimento de outras, falta de conexão, efeito sugestivo do tácito, multiplicidade de
planos, multivocidade e necessidade de interpretação, pretensão à universalidade histórica, desenvolvimento da apresentação do devir histórico e
aprofundamento do problemático [...] esses estilos exerceram sua influência constitutiva sobre a representação europeia (AUERBACH, 2011, p. 20).

Na mesma obra, em seu segundo capítulo, o Novo Testamento foi tratado por Auerbach de modo mais modesto (AUERBACH, 2011, p. 21-42). Nele, o crítico também comenta e
compara passagens de diferentes obras clássicas: primeiro fala da “comédia” latina de Petrônio, o Satíricon ; depois da “Historiografia antiga” dos Anais de Tácito; por fim, passa por
trechos da narrativa da negação de Pedro a Jesus segundo o Evangelho de Marcos. Atentando para Pedro, o personagem bíblico, Auerbach se admira do sujeito socialmente
marginal e das circunstâncias constrangedoras que o narrador bíblico põe em cena. Ele escreveu que “Uma figura trágica de tal procedência, um herói de tal debilidade, mas que
ganha de sua própria fraqueza a maior das forças, um tal vaivém do pêndulo, tudo isto é incompatível com o estilo elevado da literatura clássica antiga” (AUERBACH, 2011, p. 36). O
personagem bíblico, segundo Auerbach, seria considerado indigno entre os grandes e elitizados autores gregos e latinos; sua história é “demasiado séria para a comédia, demasiado
quotidiano-contemporânea para a tragédia, demasiado insignificante politicamente para a Historiografia” (AUERBACH, 2011, p. 39). Mas as narrativas neotestamentárias, mesmo
tratando de ambientes e sujeitos tão periféricos e quotidianos, se revestem de uma “imediatez sem igual na literatura antiga”, coloca seus frágeis heróis em contato com a aparição
de Jesus, evento singular, e os conduz junto com toda a humanidade a um futuro escatológico que é apresentado como realidade. Novamente Auerbach viu o texto bíblico
convidando o leitor a uma tomada de decisão e colocando esse objetivo acima de tudo mais. Os autores do Novo Testamento não se atentavam para os padrões estéticos da
literatura clássica, não conheciam os gêneros canônicos nem possuíam quaisquer pretensões artísticas; só lhes importavam a transmissão da mensagem e a conversão dos
ouvintes/leitores.

A obra de Erich Auerbach foi decisiva para que se reconhecer a importância da Bíblia na formação de uma tradição que originou o cânone literário
ocidental. Quando George Steiner publicou Depois de Babel, em 1975, estava claro que Auerbach havia estabelecido um novo modo de olhar para a
literatura ocidental a partir da Bíblia e de Homero como obras basilares. Na obra de Steiner lemos palavras que indiretamente remetiam o leitor a
Auerbach e, naturalmente, à Bíblia como literatura, tais como: “São inegáveis a dimensão de genialidade na expressão grega e hebraica das
possibilidades humanas e o fato de que nenhuma subsequente articulação da vida experienciada foi tão completa e formalmente inventiva na
tradição ocidental”; e ainda: “Foi tal o alcance entesourador da expressão grega e hebraica que genuínas adições e novos achados têm sido raros”.

Fonte: adaptado de STEINER (2005, p. 47-49).

Assim, a Bíblia finalmente descia do pedestal religioso e se tornava um dos clássicos que os pesquisadores da literatura, em número cada vez maior, estudavam. A abordagem
literária da Bíblia nas gerações posteriores tinha em Auerbach um grande e competente incentivo. Outros renomados estudiosos seguiriam seu exemplo ao tomar a Bíblia como
campo de experimentação dos estudos literários e parte das ideias esboçadas por Auerbach na obra de 1946 ainda continuam impulsionando novas pesquisas sobre a Bíblia.

PARA LER A BÍBLIA COMO LITERATURA


Concluímos, em 2015, em nossa tese doutoral, uma pesquisa sobre a produção bibliográfica brasileira a respeito do tratamento literário da Bíblia (LIMA, 2015). Avaliamos certo
número de livros publicados no Brasil a partir da década de 1990, por editoras religiosas e seculares, que propõem diferentes maneiras de lidar com a Bíblia desde uma perspectiva
literária. Dos resultados dessa pesquisa comparativa e analíticas três pontos serão apresentados a seguir e, em resumo, afirmam que ler a Bíblia como literatura é, essencialmente,
abandonar alguns paradigmas antiquados que são comuns às antigas escolas de leitura.

Segundo a maior parte das obras consultadas, ler a Bíblia como literatura é 1) abandonar certo número de pressupostos religiosos que condicionaram os usos da Bíblia desde seus
primórdios; 2) colocar em segundo plano as considerações sobre a historicidade dos eventos narrados, o que caracterizou a erudição bíblica moderna e a exegese; e 3) aprender a ler
a Bíblia como ficção. Esperamos que a partir da leitura possamos conceber de forma mais nítida o que os autores atualmente compreendem por ler a Bíblia como literatura.

A Bíblia não precisa ser lida religiosamente

Figura 3: Leitura religiosa

Fonte: Pixabay (on-line).

Os proponentes da abordagem literária da Bíblia costumam defender que, para ler a Bíblia como literatura, o leitor ou crítico não precisa tê-la como texto sagrado. Não se exige do
leitor a negação de sua fé, mas, como tal abordagem é um produto de sistemas literários seculares, acadêmicos e contemporâneos, as novas formas de ler a Bíblia acabam se
revelando incompatível com posturas religiosas mais conservadoras.

Todavia, estes críticos sabem que, ao trabalhar com textos bíblicos, lidam com as tradições religiosas judaico-cristãs e, ainda que não considerem necessária qualquer relação de fé
com os textos e seus conteúdos, não podem negar que os temas religiosos são inseparáveis dos textos bíblicos e não devem ser negligenciados.

Antônio Magalhães publicou em 2012 um artigo intitulado A Bíblia na Crítica Literária Recente , no qual escreveu que a Bíblia representa um incômodo tanto aos teólogos quanto aos
críticos da literatura:

Aos primeiros por conta da impossibilidade da Bíblia se prestar a um uso infindável de teologia sistemática que tudo harmoniza e conceitua. Sim, a
Bíblia só fragilmente serve a estes usos sistemáticos, justamente por conta da força, intensidade e possibilidade de suas narrativas. Por outro lado, a
Bíblia tampouco se presta a uma crítica literária que se mostre incompetente para lidar com a religião (MAGALHÃES, 2012, p. 135).

O autor, como lemos, é contra a manipulação do texto bíblico para a defesa de dogmas religiosos, como se faz, segundo ele, na Teologia Sistemática. Mas ele vai além e fala de
excessos opostos, praticados pelos críticos seculares da Bíblia que parecem dispostos a ignorar a temática religiosa. Ao cabo, Magalhães expõe, de maneira transparente, a
abordagem bíblica que lhe parece ideal:

Para o meu âmbito de interesse e de investigação, a Bíblia é um livro, é literatura, não literatura religiosa em primeiro lugar, mas literatura, tão
somente texto literário, constituída de literariedade, de liberdade de imaginação, de fantasia, de narratividade com tramas, personagens, biografias
inebriantes e viciantes. Com esta premissa, me pergunto sobre como se constitui essa literatura, essa textualidade literária? Então aí, vejo o sagrado,
o religioso, como constitutivo, assim como constitutiva é a forma, a literariedade [...] Sem barricadas dos teólogos, sem a obsessão pela forma dos
críticos e dos estetas, é assim que me aproximo atualmente da Bíblia, como literatura escrita em dilemas e experiências religiosas, mantendo uma
relação intrínseca e indivisível entre o literato e o religioso (MAGALHÃES, 2012, p. 136).

Em resumo, parece que o lugar da religião nos estudos bíblicos literários é uma problemática que ainda não foi plenamente resolvida. A dicotomia entre o religioso e o secular
permanece e com isso os leitores da Bíblia como literatura pagam um preço indevido, seja sofrendo a rejeição dos religiosos que em várias ocasiões consideram suas leituras
desrespeitosas, ou carregando a desconfiança dos intelectuais que, por vezes, ainda suspeitam da objetividade científica de todo tipo de estudo bíblico.

Por que é tão difícil ler a Bíblia como fazemos com Homero? Na Ilíada, por exemplo, os deuses estão em cena constantemente e influenciam os resultados das batalhas humanas de
diferentes maneiras, mas não nos sentimos obrigados a crer em suas divindades ou a assumir seus heróis como exemplos de vida. A resposta a essa pergunta, na realidade, já foi
dada nas páginas anteriores: aprendemos a ler a Bíblia a partir de uma forte mediação religiosa e por isso temos sérias dificuldades em falar das ênfases teológicas de seus textos
sem que nos sintamos impelidos à aceitação ou rejeição absoluta de seus valores. O convite dos críticos literários é que, desvinculando o texto da religião, façamos leituras mais
imparciais e desfrutemos das narrativas sem a necessidade de conversão ou de combate à religião.

A Bíblia não precisa ser lida como fonte Histórica

Outra característica marcante das abordagens literárias da Bíblia é que, em geral, os críticos rejeitam a leitura da Bíblia como fonte histórica, seja aquela praticada ingenuamente
por leitores fundamentalistas, para os quais as mais fantásticas narrativas bíblicas são consideradas descrições precisas de fatos reais do passado histórico, seja aquela praticada
pela crítica bíblica mais tradicional que, mantendo os hábitos da crítica literária do século XIX, costuma procurar pelos fatos que supostamente estão na origem dos textos.

Num artigo intitulado O que significa ler a Bíblia como literatura? Leandro Thomaz de Almeida voltou sua atenção para a leitura religiosa e fundamentalista da Bíblia e destacou
exatamente como ela esteve (e ainda está) marcada por esta postura (considerada ingênua) que, diante do texto sagrado, não questiona suficientemente o suposto caráter factual
do que é narrado. Almeida é um dos que veem a abordagem literária da Bíblia como uma reação a essa forma religiosa e antiquada de ler, como evidenciam as palavras a seguir:

a leitura da Bíblia por muito tempo desconsiderou a característica literária de seus textos, o que fez com que fossem tomados, em sua maioria,
[...]

como descrições literais de fatos do mundo, sejam estes relacionados à criação do universo, ao dilúvio, à ascensão do Cristo etc. Essa leitura –
praticada, por exemplo, pelo puritanismo inglês do século XVII – continua viva hoje em dia, ao menos em círculos teológicos muito conservadores.
Atualmente, no entanto, cada vez mais se fortalece a compreensão de que a leitura da Bíblia tem muito a ganhar se levar em consideração o caráter
literário dos textos que a compõem (ALMEIDA, 2011, p. 13-14).

Claro que os historiadores farão um uso crítico da Bíblia para suas reconstruções historiográficas do passado, mas para Almeida o objetivo é outro, é ler a Bíblia literariamente, uma
prática de leitura que começa por tomar o texto bíblico como faríamos diante de qualquer romance, deixando de lado o potencial que esses textos possam ter como fontes para a
pesquisa histórica.

Um dos proponentes mais célebres dessa prática de leitura bíblica foi o crítico literário canadense Northrop Frye. Ele sugeriu, em O código dos
códigos, que a leitura da Bíblia deve abdicar da busca pela “verdade” verificável a partir de um critério de observação indutiva. Para ele, a Bíblia podia
ser lida como poesia, que por fazer uso de uma linguagem essencialmente metafórica não se submete a tal critério de “verdade”.

Fonte: Frye (2004, p. 87).


Também vemos o mesmo pressuposto regendo as leituras de José Pedro Tosaus Abadía, autor de A Bíblia como Literatura , que escreveu:

A teoria literária contemporânea nega que a literatura faça referência à realidade objetiva [...] A conclusão aplicada à Bíblia será que, como texto
literário, esta não faria referência a nada fora de si mesma e, concretamente, não faria referência à história (ABADÍA, 2000, p. 23).

Jack Miles, outro representante importante dessa forma de ler a Bíblia, de maneira mais ponderada, escreveu: “Mito, lenda e história misturam-se infindavelmente na Bíblia, e os
historiadores da Bíblia empenham-se infindavelmente em separar uma coisa da outra. A crítica literária, porém, não só pode como deve deixar essas coisas misturadas” (MILES,
2009, p. 22).

É importante salientar que a insistência dos pesquisadores neste tema se deve à história da leitura bíblica que, como dissemos, nos últimos séculos foi dominada pela crítica
historicista. No momento em que as abordagens literárias se desenvolviam na Europa e América do Norte esses estudiosos julgaram imprescindível defender suas abordagens pela
demonstração da insuficiência ou superação dos antigos paradigmas interpretativos. Hoje talvez identifiquemos certos excessos em suas argumentações, e um deles se dá quando
alguém julga erroneamente que ler a Bíblia como literatura exige a negação de qualquer relação entre o texto e o mundo que a originou, como fez Tosaus Abadía na passagem que
lemos há pouco. Esse extremo deve ser evitado, assim como aquele que, por conta do status especial dos textos bíblicos, julgava ser a Bíblia um livro historicamente mais confiável
que qualquer outro texto antigo como representação do passado. Em busca de uma posição mais equilibrada, o que se recomenda é uma compreensão aprimorada do que vem a ser
ficção , e isso nos conduz ao próximo tópico.

A Bíblia como ficção

Wolfgang Iser nos lembra que, de modo geral, os textos literários são considerados ficcionais, mas que há um “saber tácito” que nos leva a entender ficção de modo simplista, como
um polo oposto à realidade. Iser nega esse modo binário de compreender ficção e propõe um modelo triádico formado por real, fictício e imaginário (ISER, 2013, p. 31-34).

Ele explica as relações entre essas três instâncias primeiro dizendo que o texto literário, descrito como a combinação de “atos de fingir”, produz recriações da realidade. A vida não
pode ser transportada para o texto, cada escritor, por mais descritivo que seja, expressa apenas um ponto de vista que é pessoal e limitado da realidade. Assim sendo, a obra literária
excede o real que quer representar, e transgride-a em direção ao imaginário.

O autor afirma que: “Quando a realidade repetida no fingir se transforma em signo, ocorre forçosamente uma transgressão de sua determinação. O ato de fingir é, portanto, uma
transgressão de limites. Nisso se expressa sua aliança com o imaginário” (ISER, 2013, p. 33).

Iser ainda propõe um olhar diferente para as mesmas relações, dizendo que o imaginário humano (que é difuso, informe, fluido, arbitrário...) também é transgredido ao ser
ficcionalizados. Ou seja, a imaginação é engessada, ganha forma ao entrar em contato com a realidade fingida do texto literário: “No ato de fingir, o imaginário ganha uma
determinação que não lhe é própria e adquire, desse modo, um atributo de realidade; pois a determinação é uma definição mínima do real” (ISER, 2013, p. 33). Assim, Iser define o
texto literário como um evento linguístico que transgride os limites do real e do imaginário sendo, de uma só vez, “a irrealização do real e a realização do imaginário” (ISER, 2013, p.
34). Desse modo ele define o fictício.

Mas isso pode ser dito de outras formas, como por exemplo, nas linhas que adotamos de João Leonel sobre o caráter representativo (mimético) e criativo (poiético) do texto
literário:

pode-se dizer que a literatura: a) é caracterizada por uma determinada relação com a realidade e b) que ela apresenta certas propriedades de
[...]

linguagem. Os dois aspectos estão interligados. No primeiro caso, são úteis o conceito de [...] mimesis e de poiesis apresentados por Aristóteles em
seu livro Poética. Mimesis e poiesis significam imitação/representação e criação, respectivamente. Com eles quer-se afirmar que uma obra literária
não é uma “cópia” ou “descrição” da realidade, mas que, em uma instância preliminar, por usar a linguagem que se constitui em “signos” gráficos e
sonoros, ela é uma reconstrução do mundo a partir da percepção do artista, de modo a transmitir aos leitores uma visão particular da realidade
(FERREIRA, 2008, p. 9-10).

Empregando as definições de Wolfgang Iser (ou de João Leonel, a partir de Aristóteles) chegamos mais perto do que se quer dizer quando se afirma que a literatura bíblica deve,
neste momento histórico, ser lida como ficção. Assim como procedemos diante de outras produções literárias, conceberemos os lugares mencionados nas narrativas como cenários,
elementos que juntos constituem um mundo do texto , um lugar que só existe nas páginas e cujas regras de funcionamento talvez não se apliquem fora delas, mesmo quando o cenário
cita endereços reais como Jerusalém, por exemplo.

Os personagens bíblicos também precisarão deixar de ser vistos como representações fidedignas de pessoas de carne e osso que viveram no passado. As personagens bíblicas,
mesmo quando foram compostas a partir da memória que se tinha de pessoas reais, no texto só existem, falam e atuam com a permissão de um autor. Isso se aplica, inclusive, a Deus,
que dessa perspectiva será tomado como um personagem, alguém representado ficcionalmente, uma figura que é composta por elementos extraídos do mundo real (de onde
procedem seus traços antropomórficos) adicionados de elementos imaginários que o fazem exceder as limitações humanas (imortalidade, não limitação física e temporal, plena
sapiência, perfeição). As descrições diversas que os autores bíblicos fazem de Deus não precisam ser recebidas teologicamente, como elementos a constituir um imaginário
religioso extra-bíblico. Ou seja, ao ler a Bíblia como literatura faz-se uma leitura que não dogmatiza, que não pretende extrair verdades das antigas páginas.

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ATIVIDADES
1. A partir da análise literária de Erich Auerbach concluiu-se que os personagens bíblicos são:

a) Personagens redondos, descritos com clareza singular.

b) Artificiais, estereotipados.

c) Mais humanizados que os personagens homéricos.

d) Espiritualmente ricos, exemplos a serem seguidos incondicionalmente.

e) Historicamente confiáveis.

2. Como, nas lições estudadas, foram chamados os livros que foram eleitos, por força de uma política cultural, para ocupar posição de destaque dentre as produções literárias de seu
tempo?

a) Clássicos ou canônicos

b) Literatura ou romances

c) Best-Sellers

d) Literary Top trends

e) Obras intocáveis

3. Qual das opções abaixo NÃO expressa corretamente as reivindicações dos proponentes às abordagens literárias da Bíblia?

a) A Bíblia deve ser lida como ficção

b) A Bíblia não precisa ser lida como texto sagrado

c) A Bíblia não precisa ser lida como fonte histórica

d) A Bíblia deve ser lida como texto sagrado e historicamente confiável

e) A Bíblia não precisa ser lida como obra de inspiração divina

Resolução das atividades

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RESUMO
A perspectiva sugerida por nosso curso e pelos proponentes de diferentes tipos de abordagens literárias da Bíblia está ficando cada vez mais clara. Embora a Bíblia seja um
fenômeno incomparável na história da literatura sendo o livro mais lido, o mais vendido, o mais traduzido e influente do mundo ocidental, vimos que, de um ponto de vista
estritamente literário, esse suposto sucesso não se justifica nem a partir de argumentos religiosos nem estéticos.

Ou seja, não é por ser um livro supostamente inspirado por Deus nem um livro de qualidades literárias superiores que a Bíblia tem subsistido e conquistado leitores por tantos
séculos. Dir-se-á, isto sim, que desde sua origem a Bíblia foi conduzida por meio de uma série de escolhas humanas, de ações que foram explicadas como políticas culturais. Desde a
eleição dos livros que comporiam o cânone até os modos considerados adequados de seus usos, tudo foi conduzido por instituições legitimadoras que não só contribuíram com o
prestígio dos textos bíblicos como também os utilizaram para elevar a própria legitimidade.

A importância que foi dada a Erich Auerbach se explica pelo fato de ter sido este crítico literário alemão o responsável por uma análise de Gênesis 22 destituída de preconceitos
religiosos que, desde 1946, tem influenciado os críticos literários e impulsionado inumeráveis leituras da Bíblia. Auerbach não afirmou que a Bíblia é melhor ou pior que Homero,
mas defendeu que, por muitos motivos, se tornou indispensável para a compreensão das grandes obras literárias produzidas pelo Ocidente. Seguindo seu exemplo muitos têm
desenvolvido leituras que, do mesmo modo, não se ocupam dos aspectos religiosos ligados à história da Bíblia, não dão demasiada importância à historicidade dos relatos narrados
em suas páginas, não fazem distinção entre as histórias de Jesus e a de outros célebres personagens conhecidos através da ficcionalidade literária.

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Material Complementar

Leitura
A arte da narrativa bíblica

Autor: Robert Alter

Editora: Companhia das Letras, 2007

Sinopse : este livro, publicado no começo da década de 1980, é sem dúvida a obra mais influente de
todas aquelas que propõem a abordagem literária da Bíblia. O livro de Alter, que demorou muito a
chegar ao cenário brasileiro, se pergunta sobre as estratégias bíblicas de narração, sobre as funções
dos diálogos, destaca a importância das repetições em textos lacônicos como os da Bíblia Hebraica,
dentre outras preocupações de caráter estritamente literário.

Comentário : Nas páginas anteriores tratamos principalmente de Erich Auerbach, cujas sugestões
analíticas foram depois retomadas e ampliadas por Robert Alter, mas não há dúvidas de que foi Alter
quem tornou esse modo de estudar a Bíblia mais popular no mundo todo. A arte da narrativa bíblica é
uma obra de suma importância para todos aqueles que desejam desenvolver suas próprias
abordagens literárias dos textos bíblicos.

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REFERÊNCIAS
ABADÍA J. P. T. A Bíblia como literatura . Petrópolis: Vozes, 2000.

ABREU, M. Cultura letrada : literatura e leitura. São Paulo: Editora UNESP, 2006.

ALMEIDA, L. T. O que significa ler a Bíblia literariamente? Cadernos de Pós-Graduação em Letras . v. 11, n. 1, p. 7-22, 2011.

ALTER, R. A arte da narrativa bíblica . São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

AUERBACH, Er. Mimesis : a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2011.

CALVINO, I. P or que ler os clássicos . São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

EAGLETON, T. Teoria da literatura : uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

FERREIRA, J. C. L. A Bíblia como literatura: lendo as narrativas bíblicas. Correlatio . n. 13, p. 4-22, 2008.

FRYE, N. O código dos códigos : a Bíblia e a literatura. São Paulo: Boitempo, 2004.

ISER, W. O ficcional e o imaginário : perspectivas de uma antropologia literária. 2a ed. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013.

LIMA, A. O. A Bíblia como literatura no Brasil: história e análise de novas práticas de leitura bíblica. São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie (Tese de doutorado), 2015.

MAGALHÃES, A. C. M. A Bíblia na crítica literária recente. Teoliterária , v. 2, n. 4, p. 133-143, 2012.

MILES, J. Deus, uma biografia . São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

PIXABAY. Disponível em: < https://pixabay.com/en/books-bookshelf-classic-collection-1866844/ >. Acesso em: 24 set. 2017.

_________. Disponível em: < https://pixabay.com/pt/ora%C3%A7%C3%A3o-b%C3%ADblia-cris-t%C3%A3-m%C3%A3os-postas-1308663/ >. Acesso em: 24 set. 2017.

STEINER, G. Depois de Babel : questões de linguagem e tradução. Curitiba: Editora da UFPR, 2005.

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APROFUNDANDO

A Bíblia como fonte para o reconhecimento de Deus

Agora vamos conhecer a abordagem literária da Bíblia desenvolvida por Jack Miles, um norte-americano e “ex-jesuíta” que estudou na Pontifícia Universidade Gregoriana em Roma
e na Universidade Hebraica de Jerusalém, tendo se tornado um especialista em línguas do Oriente Médio (MILES, 2009, p. 557).

Essas informações biográficas contam pouco para a leitura de seu livro: Deus, uma Biografia. O livro começa dizendo que Bíblia e a ideia sobre Deus que ela incutiu na mente do
homem ocidental são basilares para que os não-ocidentais entendam este homem e para que o próprio ocidental moderno visite suas origens e melhor se conheça. A fé é colocada
como um elemento secundário, uma opção do leitor que não precisa interferir na tarefa que o autor propõe (MILES, 2009, p. 11-12). Ou seja, Miles adota o princípio de que a Bíblia
não precisa ser lida religiosamente.

O objetivo do livro é estudar a Bíblia como a principal fonte para o reconhecimento de Deus, esse influente personagem:

“Escreverei aqui sobre a vida do Senhor Deus como o protagonista – e apenas isso – de um clássico da literatura mundial”. E ele avisa: “Não escreverei sobre (embora certamente
não escreva contra) o Senhor Deus como objeto de crença religiosa” (MILES, 2009, p. 18). Trata-se, portanto, de uma leitura que dá ênfase aos perfis e desenvolvimentos do
personagem Deus, um trabalho de análise literária que o autor chama de biografia (ou teografia) pelo caráter cronológico que assume (MILES, 2009, p. 18-20). Já se nota que ele
também assume que a Bíblia não precisa ser lida como fonte histórica, e lida com o personagem como quem lida com qualquer obra de ficção. Por tudo isso o trabalho de Miles é um
exemplo de inquestionável valor para que aqui aprofundemos nossos conhecimentos.

Como a pesquisa de Jack Miles se pauta na sucessão de ações, descrições e discursos de Deus e sobre Deus conforme estão encadeados pela sequência narrativa da Bíblia Hebraica,
a escolha da Bíblia Hebraica (Tanach) também se revela um fator decisivo por conta de noutro aspecto.

O autor estava consciente de que há uma espécie de enredo que é criado pela sequencialidade dada aos livros bíblicos, e que os resultados de sua leitura da Tanach não se
repetiriam na leitura do Antigo Testamento cristão, em que os livros são apresentados noutra ordem. Miles diz que o leitor da Bíblia pode escolher entre as versões judaicas e
cristãs, tendo à disposição dois finais possíveis para a mesma história (MILES, 2009, p. 124).

Nisso são expostos alguns dos princípios interpretativos mais importantes na obra de Miles e que resultam na grande novidade dessa abordagem: Miles não considera essencial a
história da Bíblia Hebraica, nem sua formação; ele só toca eventualmente os dados que nos foram oferecidos pela crítica histórica e sempre leva seu leitor a conclusões que dizem
respeito à obra final.

Dizendo isso de outro modo, sua leitura considera o cânone e busca os significados produzidos pela coleção do modo como ela se apresenta hoje, mesmo que esses sentidos não
tenham sido previstos por nenhum dos autores que escreveram os livros bíblicos individualmente.

Ao ler a Bíblia Hebraica como narrativa única e sequencial, levando em conta a sucessão dos eventos, Miles pôde identificar um desenvolvimento gradual na personalidade da
personagem que estudava, dando origem a uma interpretação bastante incomum na história da leitura bíblica em que o Senhor Deus se mostra muito inconstante e atravessa, como
qualquer humano, fases diferentes em sua existência.

Já temos o suficiente. Deixamos a leitura de Miles dizendo que essa talvez seja a obra que melhor represente na prática o tipo de abordagem literária que desde o começo estamos
estudando, a que lê a Bíblia como literatura. Este não é um livro que expõe um método, é um livro que executa, que lê a Bíblia literariamente e obtém resultados nada convencionais
que, embora não sejam nem um pouco confortáveis de um ponto de vista religioso, instigam nossa imaginação e intuição exegéticas.

PARABÉNS!

Você aprofundou ainda mais seus estudos!

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EDITORIAL

DIREÇÃO

Reitor Wilson de Matos Silva

Vice-Reitor Wilson de Matos Silva Filho

Pró-Reitor de Administração Wilson de Matos Silva Filho

Pró-Reitor de EAD William Victor Kendrick de Matos Silva

Presidente da Mantenedora Cláudio Ferdinandi

C397 CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ . Núcleo de Educação

a Distância; LIMA . Anderson de Oliveira;

Bíblia, Literatura e Linguagem. Anderson de Oliveira Lima;

Maringá-Pr.: UniCesumar, 2017.

30 p.

“Pós-graduação Universo - EaD”.

1. Bíblia. 2. Literatura. 3. Linguagem EaD. I. Título.

CDD - 22 ed. 230

CIP - NBR 12899 - AACR/2

Pró Reitoria de Ensino EAD Unicesumar

Diretoria de Design Educacional

Equipe Produção de Materiais

Fotos : Shutterstock

NEAD - Núcleo de Educação a Distância

Av. Guedner, 1610, Bloco 4 - Jardim Aclimação - Cep 87050-900

Maringá - Paraná | unicesumar.edu.br | 0800 600 6360

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COMO LER A BÍBLIA COMO


LITERATURA

Professor (a) :

Dr. Anderson de Oliveira Lima

Objetivos de aprendizagem
Apresentar alguns importantes tópicos da teoria literária e sua aplicabilidade ao estudos da literatura bíblica.
Apresentar uma perspectiva literária para a análise das estratégias narrativas empregadas nos textos bíblicos e abordar a análise dos personagens bíblicos a partir da crítica
narrativa.
Tratar de maneira introdutória sobre os métodos de análise literária dos cenários e dos códigos temporais nas narrativas bíblicas.
Compreender os métodos empregados para a análise dos encadeamentos dos eventos nas narrativas bíblicas e introduzir o estudo do “esquema narrativo canônico” como
modelo interpretativo.

Plano de estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
As instâncias narrativas
Os narradores bíblicos e a análise dos personagens
Análise dos lugares e do tempo narrativo
Análise dos enredos

Introdução
Caro (a) aluno (a)! Nesta altura os principais pressupostos que guiam as abordagens literárias da Bíblia já foram expostos. Você já deve ter compreendido como os adeptos dessa
prática de leitura trabalharam para superar os milenares hábitos religiosos no tratamento da Bíblia e pode ter percebido que, por essa simples mudança de paradigmas, obtiveram
resultados valiosos na interpretação dos textos.

Agora pode parecer fácil dizer que ninguém precisa abandonar sua fé para ler a Bíblia como literatura, mas em dado momento na vida de um leitor esse passo pode ser desafiador.
Exige uma reformulação sobre todos os pressupostos que antes nos diziam como a Bíblia nasceu e chegou até nós. Pede que deixemos de ver a ampla coleção de livros como uma
obra única, de autor único, de linguagem única. A Bíblia se transforma num livro multifacetado, fragmentário, uma obra de autoria coletiva que traz em si inúmeras maneiras de usar
a linguagem para narrar histórias, convidar à conversão, produzir teologias etc.

É preciso seguir com esses estudos para que você, leitor(a), também possa começar a praticar uma nova maneira de ler a Bíblia. Por isso essa terceira unidade vai se dedicar à
exposição resumida de um método de análise literária da Bíblia. É importante avisar de antemão que há muitas maneiras de ler a Bíblia, mesmo quando restringimos nosso olhar às
abordagens literárias. Como nosso objetivo aqui é oferecer uma introdução metodológica que seja útil, didática e condizente com o espaço que temos, faremos uma apresentação
de diferentes procedimentos analíticos dispostos segundo nossas próprias preferências. O método que gostaríamos de apresentar conteria alguns procedimentos introdutórios, de
análise estrutural e extratextual, mas limitar-nos-emos aos passos analíticos que esboçam de maneira mais clara o tipo de abordagem literária que desde o começo estamos a
apresentar.

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AS INSTÂNCIAS NARRATIVAS
Vimos que os antigos exegetas tinham por objetivo recuperar a chamada intenção do autor . Hoje há consenso sobre a impossibilidade de que um texto revele com esta transparência
quem realmente estava por trás das palavras e, ainda mais, o que ele pensava enquanto escrevia. A linguística nos ensinou a fazer distinção entre a pessoa real que se comunica e a
comunicação que ganhou existência e passa a ter independência em relação a seu produtor, criando assim duas instâncias enunciativas básicas.

Sabemos que há um autor real por trás de todo texto. Porém, no caso dos textos bíblicos, essa figura é quase sempre anônima e não poderá ser objeto de nossas investigações.
Preferimos nos voltar para o enunciador, que chamaremos nestas páginas de autor implícito . Este é a pessoa com a qual realmente temos contato quando fazemos contato. O autor
implícito pode ser analisado, estudado, mas sempre tendo em mente que ele só existe no texto. Atentemos para um exemplo que nos ajuda a diferenciar o autor real do implícito:

Podemos contar às crianças uma história sobre fadas sem que na realidade acreditemos na existência de fadas. A criança que nos ouve pode não saber muito sobre nossas
convicções pessoais, já que ela só tem acesso ao enunciador ou autor implícito, que demonstra acreditar nas fadas. Pelas palavras do adulto, portanto, não é possível afirmar se ele
crê ou não na existência das fadas. Na análise literária da Bíblia acontece o mesmo; temos acesso às histórias contadas, não às convicções subjetivas dos autores reais. Alguém pode
dizer ter ouvido algo de Jesus ressuscitado, mas nunca saberemos se é verdade; outro diz ter sido arrebatado aos céus, mas para nós isso não prova nada sobre a existência do céu
que ele descreve. Por isso textos não são provas definitivas para afirmarmos a existência histórica de coisa alguma, ou teríamos que acreditar não somente em Jesus, mas também
em Zeus, outro ser divino que textos antigos afirmam existir.

Também devemos ter em mente que não há comunicação que não seja socialmente constituída, dialógica, que não tenha uma origem e um destino imaginado, um autor e um leitor
idealizado. Do lado da recepção, também temos leitores reais e implícitos, leitores como nós, que tomam textos bíblicos milênios depois de sua criação e num contexto
completamente diferente, e temos leitores implícitos, leitores ideais ou leitores modelo que foram imaginados pelo autor enquanto escrevia (MARGUERAT; BOURQUIN, 2009, p. 21-
28). Sempre escrevemos para esse destinatário que temos em mente, o leitor implícito, mas não sabemos se nosso texto chegará no leitor real e nem mesmo como ele entenderia o
texto.

Nos dois lados da comunicação há sujeitos reais e imaginários, autores e leitores que existem dentro e fora do texto. Há pesquisas dedicadas à busca pelos autores históricos e
pesquisas sobre os leitores reais e suas interpretações. Em nosso caso, o primeiro objeto de interesse da análise literária são as instâncias implícitas, as que estão contidas no
próprio texto. O autor e os destinatários que encontraremos durante a leitura dos textos bíblicos devem ser entendidos como fictícios, como personagens, e eles são
compreendidos por meio da interpretação.

Consideremos Mateus 6, 9, texto em que nós encontramos o começo da famosa Oração do Pai Nosso . No texto podemos ler: “Pai nosso que estás no céu...”. Parece que Jesus está
falando com Deus e que é fácil dizer quem é o emissor e quem é o receptor da mensagem. No entanto, olhando para o contexto literário descobrimos que a Oração do Pai Nosso é
apenas parte de um longo discurso (o Sermão da Montanha ) de Jesus destinado a seus discípulos e a uma multidão de ouvintes, o que ocupa os capítulos 5, 6 e 7 do evangelho. No
interior desse grande discurso Jesus coloca sua oração, porém, não para que Deus a ouça, e sim os discípulos. Lendo o texto com cuidado vemos que ele, antes oração, diz: “Vós,
portanto, orai assim:”. Só então Jesus profere sua oração que é um modelo, um exemplo de oração e não uma oração real. Poderíamos dizer agora que a comunicação parte de Jesus
para o grupo de ouvintes (discípulos e multidão), e que a oração, que cria um falso ato comunicativo entre Jesus e o Pai é o conteúdo dessa comunicação.

Figura 1: “O sermão do monte” de Carl Heinrich Bloch

Fonte: Wikipedia (on-line).

Entretanto, ainda temos que ir mais longe. A história nos chega por meio de um narrador, a voz que nos conta a história e abre aspas para atribuir certas porções de seu enunciado a
Jesus. O discurso de Jesus em primeira pessoa é, na realidade, uma estratégia narrativa. Embora tenhamos a impressão de ouvir palavras de Jesus, não devemos nos esquecer que
esse Jesus continua sendo controlado pelo narrador, é um personagem em sua história. Portanto, não há como avaliar a plausibilidade histórica do que está sendo narrado sobre
Jesus e a multidão.

Até aqui vemos que o narrador (cuja voz, neste caso, não pode ser distinguida do autor implícito) do Evangelho de Mateus está se comunicando com seu destinatário imaginário,
contando-lhe histórias sobre Jesus e, por meio delas, transmitindo suas ideologias e buscando convencer. Pela leitura poderemos até fazer suposições sobre esses autores e leitores
implícitos, supondo que sejam judeu-cristãos, que se localizam temporalmente nas últimas décadas do século I em Antioquia, que enfrentavam desafios sociais e religiosos em
conflito com os fariseus etc. Mesmo tendo encontrado indícios sobre isso no texto, ainda não saberemos, de fato, se tudo não é pura imaginação. Afinal, um autor pode facilmente
escrever um texto com personagens que viveram no passado, pode situar sua história num tempo e num lugar históricos que não é o seu, pode tentar nos enganar ao usar a
linguagem daquelas épocas... Como a análise literária não é capaz de sanar as incertezas com relação à história contada e mundo empírico, ela se contenta a fazer conjeturas que se
pautam no texto.

Vale a pena reforçar: sabemos que existiu algum autor de carne e osso que em algum momento usou sua pena para escrever aquelas páginas que hoje
conhecemos como Evangelho de Mateus. Mas esse sujeito histórico não deixou assinaturas, não aparece no texto que escreveu e mesmo que
aparecesse não teríamos elementos seguros para afirmar a veracidade daquilo que ele diz a seu próprio respeito. Por isso ele não é objeto de análise
literária. Contentamo-nos, por isso, com aquilo que a interpretação nos permite saber sobre os autores e leitores implícitos, criados e preservados
nas próprias histórias, ainda que indiretamente.

Fonte: elaborado pelo autor.


Para finalizar, vale a pena lembrar que do lado da recepção as coisas são diferentes, pois os leitores reais são inumeráveis e até observáveis. Ainda não poderemos saber quem
realmente leu o Evangelho de Mateus nos primeiros dias de sua existência; não sabemos em que medida os primeiros leitores reais se assemelhavam aos leitores implícitos, mas
poderemos investigar melhor os leitores de outras gerações, que leram Mateus e também escreveram sobre ele. Nós, aliás, estamos nos inserindo nessa história da leitura,
respondendo aos textos a nosso modo, adequando os conteúdos evangélicos às necessidades da nossa geração. Isso, todavia, é assunto para páginas futuras.

OS NARRADORES BÍBLICOS E A ANÁLISE DOS


PERSONAGENS

Os Narradores Bíblicos

É de especial interesse para a análise literária o estudo dos modos de narração na Bíblia. O narrador é aquele que fala explicitamente no texto, cuja voz pode se confundir com a do
autor implícito . O narrador pode se situar na narrativa, assumir o papel de um personagem e demonstrar possuir os conhecimentos limitados a este personagem, ou pode estar fora
da história, contando fatos sobre a vida de outros que ele observa à distância. Neste segundo caso, ele pode se mostrar onisciente, conhecedor de todos os eventos e até mesmo dos
pensamentos e intenções dos personagens (MARGUERAT; BOURQUIN, 2009, p. 39-40). A história que um narrador nos conta pode ser de seu tempo, do passado ou até do futuro.
Ele pode deixar que seus personagens falem mais ou dizer tudo com suas próprias palavras, mantendo a narração em terceira pessoa.

Os narradores bíblicos não são apenas contadores de histórias, antes são os principais pregadores da história do cristianismo. Enquanto parecem
apenas nos informar, eles procuram nos conduzir na interpretação, nos oferecem dicas, avaliam os personagens antes que tenhamos opinião sobre
eles, nos revelam segredos importantes que nos influenciarão... Ou seja, não basta descrever como eles narram, mas como as histórias que contam
nos tocam e por quê.

Fonte: elaborado pelo autor.

As observações que acima fizemos livremente das estratégias narrativas podem ser encaixadas numa metodologia desenvolvida pela Crítica Narrativa que propõe uma
classificação dos pontos de vista que o narrador pode assumir em relação à história que conta (RESSEGUIE, 2005, p. 167-196). Neste caso, pode-se observar os seguintes
elementos:

Ponto de vista fraseológico : Aqui se observa as características da linguagem do narrador, os traços que o caracterizam e tornam seu enunciado um ato particular de comunicação. Nos
referimos, por exemplo, a seu estilo, seu vocabulário e seus vícios de linguagem. O narrador do Evangelho de Mateus, geralmente descrito como judeus por conta dos hebraísmos de
sua linguagem, substitui praticamente todos os “Reino de Deus” de sua fonte marcada por “Reino dos Céus”, uma peculiaridade que os estudiosos ainda não explicam
satisfatoriamente.
Ponto de vista espaço-temporal : Sabemos que a narração pode ser feita em primeira ou em terceira pessoa. As histórias bíblicas, na maioria das vezes, são contadas por narradores em
terceira pessoa, que estão fora das histórias, e isso é uma característica espacial dessa narração. Esses narradores contam a história como se vivessem depois dos acontecimentos
narrados, por isso usam com muita frequência os tempos verbais gregos que expressam ações já realizadas. Portanto, nos evangelhos os narradores contam eventos antigos que
dizem respeito a terceiros. Nas narrações em primeira pessoa o narrador fala diretamente, assume uma personalidade e se insere no cenário e tempo da história.
Consequentemente, ele estará limitado ao tempo e ao espaço e deverá expressar um conhecimento parcial dos acontecimentos.

Ponto de vista ideológico : Outra peculiaridade dos narradores bíblicos é que eles nunca são imparciais, mas contam suas histórias para defender suas crenças, seus valores, e isso
costuma ser feito de modo bem explícito. Eles quase sempre permanecem anônimos e se mostram oniscientes e onipresentes, conhecem a vontade de Deus e revelam as intenções
ocultas dos corações, características empregadas para tomar partido, defender certos personagens e eleger vilões. A ausência de personalidade nos narradores bíblicos, a facilidade
com que eles intervêm na história oferecendo juízos de valor sobre os personagens e as demonstrações de onisciência que dão a todo momento fazem com que leitores confundam
a voz inequívoca dos narradores com a voz do próprio Deus, mas quando os narradores bíblicos são nomeados, como o Paulo que fala nas cartas, esse personagem exerce um poder
de manipulação ainda maior sobre os leitores, pois, por sua autoridade e prestígio, pode fazer afirmações sem que seja facilmente confrontado com discordâncias.

Análise dos Personagens

Já vimos que a maioria das narrativas bíblicas foram compostas a partir da justaposição de fontes diversas, e não é raro o leitor notar que esse processo composicional dá origem a
personagens contraditórios que nem sempre satisfazem nossos padrões de coerência textual. Mas, apesar das confusões imediatas, a colagem de textos diversos que falam sobre
um mesmo personagem oferece uma visão multifocal que pode ser considerada enriquecedora se não julgarmos os autores bíblicos a partir de nossos próprios gostos literários.
Como aprendemos com Erich Auerbach, no fim das contas o processo redacional empregado pelos autores bíblicos tornou os protagonistas bíblicos bastante complexos, mutáveis,
imprevisíveis e, por isso mesmo, mais próximos dos seres humanos reais do que a maioria dos personagens que conhecemos por meio dos textos míticos da antiguidade.

Personagens literários existem para exercer papéis específicos que são considerados importantes para a construção dos enredos. No caso dos textos bíblicos não é difícil perceber
que há personagens que desempenham papéis positivos, pelo que, em termos tradicionais, poderíamos chamá-los de heróis . A eles se opõem os vilões , sujeitos que são imbuídos de
uma carga de valores negativos e se fazem adversários dos heróis em suas missões. Os mocinhos e os bandidos das narrativas bíblicas são reconhecíveis pelo modo com são
descritos, pelas coisas que falam e fazem e pelas intervenções dos narradores que, procurando guiar a leitura, oferecem seus próprios pontos de vista avaliadores (MARGUERAT;
BOURQUIN, 2009, p. 77-85).

Podemos também analisar os personagens que atuam em determinado texto a partir de uma hierarquização . O texto vai nos mostrar, principalmente pelo grau de presença de cada
personagem em cena, qual a hierarquia que ele constrói entre os personagens, permitindo que identifiquemos quais são mais importantes e quais são secundários. Podemos chamar
de protagonistas os personagens centrais, aqueles que executam as ações mais importantes; por outro lado, há personagens que são passivos, que se limitam a sofrer as ações de
outros ou as testemunham. Há também personagens que não falam ou que falam muito pouco em relação aos protagonistas, e personagens que nem sequer possuem nomes, assim
como os personagens que são coletivos (como as “multidões”, ou “todo o povo”, ou “os discípulos”). Essas características, ou melhor, essa falta de detalhamento na caracterização
destes personagens, podem ser indicações de que eles são secundários, ou melhor dizendo, figurantes. Ao entender esta hierarquia construída pelo texto o crítico saberá melhor
que perguntas fazer ao texto, não irá se confundir dando demasiada importância a quem é mero figurante e não duvidará tão facilmente das ações e opiniões dos protagonistas, com
os quais o texto quer que seu leitor se identifique, simpatize e, quiçá, imite.

ANÁLISE DOS LUGARES E DO TEMPO NARRATIVO

Análise dos Lugares

Quando falamos de analisar os lugares é óbvio que não estamos nos referindo aos lugares reais, à geografia ou à arquitetura do mundo bíblico. Nosso assunto continua sendo o
texto com suas figuras, ou, mais precisamente, as referências topográficas que aparecem no texto que estamos estudando. Vamos trabalhar sobre as viagens dos personagens, as
fugas ou perseguições, as mudanças de endereço e sobre as consequências temáticas que essas transições nos trazem (MARGUERAT; BOURQUIN, 2009, p. 97-103).

É muito comum as narrativas bíblicas apresentarem referências topográficas e, assim como fizemos na análise dos personagens, não temos que olhar para estas referências como se
fossem informações precisas, dados reais que ali estão apenas para nos manter bem informados sobre como as coisas aconteceram. Na maioria das vezes, a investigação para
descobrir quão verídica é uma narrativa não contribui muito para o nosso entendimento do texto, pois ali os dados históricos e fictícios se entrelaçam para compor o que realmente
importa a esta forma de literatura, que é seu conteúdo. O que nos interessa na análise literária é entender porque tais figuras foram incluídas no texto e que importância
desempenham para o entendimento da mensagem.

Não é preciso argumentar quanto ao valor simbólico que há na referência a Belém como lugar do nascimento de Jesus. Nunca saberemos se ele realmente nasceu aí ou em Nazaré,
como acreditam os historiadores (e com bons motivos). Para a análise literária só importa que, quando o autor do Evangelho de Mateus situa em Belém o nascimento de Jesus isso
possui implicações importantes. Sabe-se que na tradição bíblica Belém é o lugar onde nasceu o rei Davi (1Sm 17, 12), e havia uma profecia que supostamente relacionava o local ao
nascimento de um novo líder ungido (Messias) para a nação (Mq 5, 2). Se alguém conhece essas tradições e lê o Evangelho de Mateus, obviamente entenderá que o texto está dando
a entender que Jesus cumpre as exigências para aqueles que tinham essas expectativas quanto ao nascimento do Messias. Ou seja, não se trata apenas de oferecer um dado
biográfico sobre a vida de Jesus, mas de apresentar uma referência intertextual que possui grande importância teológica para determinada comunidade de leitores.

Ainda aproveitando o Evangelho de Mateus, em seu segundo capítulo encontramos outro endereço: o Egito. Diz o texto que José foge para o Egito levando Jesus e assim salva o
menino da fúria de Herodes (Mt 2,13-18). Mas o texto não quer simplesmente nos contar sobre uma fuga, e é pela observação do lugar, o Egito, que somos conduzidos a novos
temas que estão sendo evocados implicitamente. O Egito, como todo bom leitor da Bíblia sabe, nos remete a temas do Antigo Testamento como o Êxodo e a liderança de Moisés, o
libertador e legislador de Israel. O tema que emerge dessas relações intertextuais é o de que Jesus se assemelha a Moisés, que também passa por momentos difíceis no Egito e que
de lá surge como um novo libertador e legislador para Israel. Novamente, não há coincidências nesse caminho figurativo; uma fuga real provavelmente conduziria José e sua família
a outro lugar, mas no texto eles tinham que ir ao Egito, uma escolha que, embora seja historicamente questionável, enriquece o texto em sua tentativa de anunciar ao leitor que
Jesus é o Messias.

Os exemplos dados ainda não dizem tudo. Não são apenas os nomes de cidades e povoados que nos interessam nessa parte da análise, mas também os deslocamentos. Podemos
observar cada deslocamento que faz o personagem e dizer se são deslocamentos horizontais , ascensionais ou descensionais , sempre levando em conta o simbolismo dessas referências.
Para citar um exemplo diferente, pensemos na narrativa (Mt 8, 1-5) em que Jesus sai de um lugar elevado e especial como o monte (lembremos que é no alto de montanhas que Jesus
faz seu principal discurso e é transfigurado) e tem que descer a partes menos puras de Israel. Antes de atingir a aldeia de Cafarnaum (local de onde vieram seus principais discípulos,
onde parecem morar seus familiares, aldeia que sedia a missão itinerante de Jesus em Mateus e que, portanto, é sua casa) lida com um personagem impuro pelo caminho , isto é, fora
da aldeia, longe do convívio social. Aí temos primeiramente um deslocamento geográfico descendente, ou um deslocamento descensional , e entre os dois planos há uma óbvia
relação entre as oposições de alto e baixo com puro e impuro . A seguir o deslocamento é horizontal , quando Jesus deixa o caminho e entra em Cafarnaum, passa de fora para dentro .

Para falar de maneira mais completa dessa significação temática que subjaz aos deslocamentos que são figurativos, podemos dizer que há deslocamentos conjuntivos ou disjuntivos , os
quais se caracterizam pelos tipos de contatos que se quebram ou que se dão na narrativa por meio da mudança geográfica. No último exemplo, o primeiro deslocamento de Jesus, o
descencional , o colocou em conjunção com a impureza, mas esse contato que para os religiosos era impróprio se mostra de suma importância ao revelar que Jesus é capaz de
transformar pessoas impuras, colocando-as milagrosamente em disjunção com a impureza. Nos evangelhos, os puros são exortados a se deslocarem até os impuros, pois ao contrário
do que defendia a religiosidade tradicional, acredita-se que são os puros que purificam os impuros, e não o contrário. Como consequência do deslocamento de Jesus em direção à
impureza do caminho essas pessoas impuras que eram marginalizadas poderiam finalmente se deslocar às cidades, ao Templo, e tais deslocamentos significam para elas uma nova
conjunção com a sociedade, com a religião e com a própria felicidade.

O que é preciso guardar deste item é que na Bíblia dificilmente estas referências topográficas aparecem sem que haja um motivo especial, uma razão teológica, uma mensagem
implícita. Caberá ao crítico não subestimar figuras desse tipo, mas perguntar-se pelas possibilidades interpretativas e empreender a pesquisa necessária para sua decifração.
Observe na imagem a seguir uma pintura de Sandro Botticelli, de 1481-82, como o artista trabalhou para representar a narrativa das tentações de
Jesus. Ele representa Jesus e seu tentador em três diferentes lugares (no alto da imagem à esquerda, ao centro e à direita), tentando dar conta dos
três momentos de tentação que são narrados no texto bíblico (Mateus 4, 1-11). O autor, portanto, não usa a imagem como um registro fotográfico
capaz de representar imageticamente um único momento, mas expande as possibilidades de representação ao reunir na simultaneidade da tela três
diferentes cenas, quebrando com isso a sequencialidade que é necessária à temporalidade narrativa. Ele procura sobrepor os diferentes cenários,
representar os três diferentes lugares e os personagens em ação. É possível notar que, segundo sua leitura, Jesus é tentado num plano singular, numa
dimensão espacial que o faz existir como o Diabo e todos os anjos, invisível aos olhos dos homens que, como se vê na parte de baixo da tela, seguem
vivendo suas vidas sem saber o que se passa sobre suas cabeças. Ou seja, o pintor possuía um olhar atento às questões de lugar e tempo nas
narrativas bíblicas e manipula-os criativamente para contar, por meio de sua linguagem visual, aquela mesma história.

Figura 2: As três tentações do Cristo de Sandro Botticelli

Fonte: Web Gallery of art (1996, on-line)1.

Fonte: Do autor, exercício a partir da pintura de Sandro Botticelli.

Análise do Tempo Narrativo

Quando falamos em analisar o tempo narrativo novamente estamos falando de propriedades literárias e não de cronologias reais. Poderíamos nos dedicar à análise das figuras de
tempo, às datas, às descrições climáticas etc. Tudo isso deverá ser levado em conta como fizemos na análise dos lugares. Mas nessa seção vamos dar atenção especial a outro
aspecto que é peculiar ao tempo narrativo, que é o controle do seu andamento (MARGUERAT; BOURQUIN, 2009, p. 107-112).

No texto, é o narrador quem controla o tempo, quem escolhe quais eventos narrar e em que ordem encadea-los; é o narrador quem comanda o andamento dos eventos, quem faz
passar depressa o que lhe parece secundário e desacelera o tempo para dar destaque ao que mais lhe importa.

Suponhamos que você queira contar a outra pessoa sobre um fato importante que lhe aconteceu no dia de ontem, durante o seu expediente de trabalho. Para isso,
inconscientemente você faz escolhas, coleta lembranças e cria junções, descreve detalhes que lhe parecem importantes e cria uma cronologia fictícia para fazer sua história
progredir. Por exemplo, você precisa decidir como vai começar sua história e a partir de que ponto. Se você é uma pessoa detalhista, talvez fale que já tinha acordado atrasado e que
enfrentara um grande congestionamento para chegar ao trabalho. Talvez considere isso desinteressante e comece sua narração do momento em que chegou ao trabalho. Ou seja,
quem conta uma história faz recortes, não é capaz de dizer tudo sobre todos os segundos do dia. Agora, ao contar sua história, você pode dizer que estava em sua mesa trabalhando
quando, sem avisar, seu chefe entrou na sala já demonstrando certa impaciência por meio dos gestos rápidos e desnecessariamente violentos. O modo como vai dizer isso, quantas
palavras usará, quanto tempo dedicará a esta descrição, são decisões que novamente dependem de você, que é o narrador. Há quem gaste muito tempo com detalhes descrevendo o
ambiente, a aparência física do chefe, os seus próprios sentimentos diante do ocorrido... E há quem prefira dizer tudo rapidamente, fazendo o tempo passar depressa e só relatando
o essencial. Finalmente você chega ao evento que pretendia contar e é natural que faça o tempo desacelerar, quem sabe até narrando de maneira tão lenta que ao ouvinte os fatos
pareçam se passar em tempo real. Então você, como se abrisse aspas no texto oral, começa a reproduzir as palavras do seu chefe e suas respostas, narra um diálogo; mas faz isso de
acordo com aquilo que sua memória lhe permitir, e também a partir daquilo que sua criatividade lhe sugerir. Não superestimemos a fidedignidade de nossos relatos; sem dúvida
aquele chefe contaria tudo de outro modo. No meio do diálogo que você supostamente reproduz a seu interlocutor, talvez faça novamente o tempo narrativo parar algumas vezes
para incluir comentários particulares entre parênteses, como quando informamos o que nós estávamos sentindo naquele momento específico.

Assim, a condução do tempo narrativo é espontânea, inconsciente, mas fornece indicações importantes sobre quais são os pontos da história que o próprio narrador considerou
mais relevantes. Geralmente, quando o narrador dá voz aos personagens e temos o tempo narrativo desenrolando-se mais devagar, é muito provável que estejamos diante de um
momento importante da história. Da mesma forma sabemos que há ocasiões em que o tempo narrativo acelera, e mil anos passam em uma única linha, dando-nos um sinal de que a
falta de detalhamento corresponde à importância secundária dada pelo narrador aos eventos aí resumidos.

Há outros recursos como esses a serem estudados dentro da análise do tempo narrativo, como as pausas que o narrador faz no tempo para incluir, entre parênteses, conteúdos
explicativos; há também as elipses , aqueles silêncios ou lacunas deixadas pelo narrador, os espaços em branco que talvez estejam convidando o leitor a preenchê-los com sua
imaginação. Dá para notar que iríamos longe para exemplificar cada recurso desses, mas não o faremos crendo que as informações compartilhadas até aqui são suficientes para uma
introdução ao tema.
ANÁLISE DOS ENREDOS

O Esquema Quinário

A análise das ações de um personagem, ou melhor dizendo, da sequencialidade dessas ações, é o que vamos estudar nesta seção. O surgimento de novas situações, a superação de
problemas, o avanço do personagem em direção a um objetivo, formam um enredo cuja construção é mais natural do que podemos imaginar. Claro que há enredos complexos, cuja
elaboração exige técnica e muito empenho por parte de um autor, mas criar sequencialidades para as ações e gerar tensões e repousos neste percurso é algo natural quando
narrativizamos a vida. Assim como nós aprendemos no mundo ocidental a cantar sempre dentro de campos harmônicos limitados a doze sons, também não sabemos contar uma
história sem criar para ela uma sequencialidade, um encadeamento causal dos eventos que formam um enredo coerente. Talvez até soubéssemos fazê-lo se tentássemos, mas essa
narrativa sem enredo nos pareceria tão desinteressante quanto uma canção sem a tensão de uma dominante para os ouvidos de um músico.

Para a análise narrativa, é hora de avaliar o desenrolar da história que o texto nos conta, dedicando especial atenção às partes que compõem uma mesma micronarrativa. Trata-se
de averiguar o texto como um todo, seus principais desvios ou novidades, identificando a estrutura unificadora, o fio narrativo que liga as subunidades para formar um conteúdo,
afinal, conforme a definição de Jaldemir Vitório: “Narrar é produzir um mundo repleto de personagens e ações, com um claro ponto de partida e de chegada, cujo percurso - enredo
- se faz pelos múltiplos entrelaçamentos dos personagens e das ações, num jogo de causa e efeito, num preciso quadro temporal” (VITÓRIO, 2016, p. 22).

Entendendo que uma narrativa não apenas enumera fatos, mas os encadeia criando uma sequência lógica e causal, procuramos analisar este percurso identificando e classificando
os segmentos do enredo, fazendo associações sequenciais como a que vemos, por exemplo, nesta classificação tradicional que é conhecida como esquema quinário : a) Apresentação;
b) Crise; c) Reviravolta/Ação Transformadora; d) Resolução e e) Conclusão (MARGUERAT; BOURQUIN, 2009, p. 55-63).

Esse esquema quinário é apenas um instrumento didático a partir do qual podemos começar nossa análise. Ele não deve nos prender, mas é muito útil
para que compreendamos como um texto narrativo organiza eventos logicamente, apresentando personagens, cenário, tempo, depois criando
tensões, apresentando eventos transformadores na situação e retornando ao repouso após a crise ser resolvida.

Fonte: elaborado pelo autor.

Onde utilizamos crise e resolução , dois estágios essenciais para que um enredo nos cause interesse, pode haver muitos tipos diferentes de ações. Ou seja, a crise pode aparecer no
texto por meio de uma descrição de um estado de ignorância de um personagem, e a resolução por meio de um estágio de conhecimento. Neste caso, talvez a ação transformadora
seja o encontro do personagem com um mestre, ou a descoberta de um livro de instruções, de um mapa do tesouro ou coisas desse tipo. Noutros casos, a crise pode se instalar no
enredo por meio de uma doença e a resolução pode vir mediante a cura ou morte. Tudo depende da ação transformadora, que pode ser a descoberta de uma poção mágica, o
encontro com um curandeiro ou com o filho que ouve emocionado as últimas instruções do pai, dando-lhe assim a permissão para morrer tranquilo. Importa, acima de tudo,
identificar onde nascem essas tensões, de que tipo são, e quando e como elas são resolvidas. Isso por si só destaca aos nossos olhos o papel decisivo que a “ação transformadora”
desempenhou.

O Esquema Narrativo Canônico

Outro modo de analisar o enredo é empregando a Semiótica discursiva (também conhecida como Análise do discurso, S emiótica francesa ou Semiótica greimasiana ), que faz uso de um
modelo metodológico muito útil para a análise de narrativas e outras formas de discurso. Chamam esse modelo de Esquema narrativo canônico , o qual afirma que qualquer narrativa
pode ser compreendida a partir de três estágios consecutivos (BARROS, 2011, p. 26-36):

Destinação

O primeiro estágio pode ser chamado de destinação . Numa narrativa simples, esse é o momento em que o herói, o protagonista, é convencido por um destinador a partir nalguma
aventura. O destinador procura estabelecer para ele uma missão, um valor a ser buscado, e precisa convencê-lo a aceitar esse desafio ou destino.

Toda a história se desenrolará como o desenvolvimento dessa busca, a solução dessa crise que foi criada no começo. Mas para isso o destinador deve, primeiro, convencer o sujeito
da ação a aceitar sua missão, o que ele faz por meio de uma manipulação, prometendo recompensas ou fazendo ameaças, por exemplo. Neste momento o herói desempenha um
fazer interpretativo, julgando a confiabilidade do destinador e sua capacidade para cumprir suas promessas. Se ele se deixar manipular, estabelece-se um contrato , e é a partir desse
contrato que toda a narrativa irá se desenvolver. Este processo de manipulação que leva o sujeito a agir é muito importante para os estudos dos discursos religiosos, por isso, o
estudaremos com mais detalhes.

Há basicamente quatro tipos de manipulações , identificadas e definidas nos manuais de semiótica. A primeira maneira de se manipular um destinatário de um ato qualquer de
comunicação é chamada de tentação . Na tentação, o produtor do discurso tenta convencer o destinatário a fazer algo por meio de uma espécie de suborno, pela oferta de valores
que este destinatário deseja. Assim, para que a manipulação seja eficaz, é preciso que a oferta seja interessante, desejável. O sujeito é levado a fazer o que o outro quer, ou a crer no
manipulador para que venha a adquirir o que deseja. A tentação, portanto, é ineficaz quando a oferta que se faz não é desejável aos olhos do destinatário.

A segunda forma de manipulação é a intimidação . Ao contrário da primeira, em vez de oferecer valores interessantes o manipulador ameaça retirar do seu destinatário algum(s)
valor(es) que ele possui, ou acrescentá-lo valores que ele não deseja. Uma típica intimidação religiosa é a ameaça do inferno, que pode ser compreendida como a ameaça de se
perder a paz, a saúde, a vida, a família etc, dependendo do contexto. O religioso é, neste caso, induzido a praticar atos que talvez não deseje por medo de sofrer consequências.

A terceira forma de manipulação é a sedução . Agora já não se trata de promessas e ameaças, mas de exaltações sinceras ou não que o manipulador faz em relação às características
do destinatário. O sedutor é aquele que tenta convencer o outro elogiando-o, notando ou até destacando com exagero as suas virtudes. Esse ato aparentemente benévolo
indiretamente leva o destinatário a agir para confirmar os elogios feitos. Por exemplo, alguém pode, seduzindo o outro, dizer: “Eu esperei para que você mesmo falasse como ele,
afinal, você é tão bom com as palavras”. Diante da declaração feita sobre seu talento com as palavras, o destinatário é incentivado a agir para confirmar o elogio, para que o conceito
que o destinador supostamente tem dele não seja alterado negativamente.

Enfim, também pode-se manipular alguém por meio da provocação . Neste caso, em vez de exaltar as características do outro, o manipulador as deprecia, e da mesma forma o
destinatário se sente forçado a agir, desta vez para alterar a ideia negativa que o outro faz dele. Aproveitando o exemplo anterior, poderíamos imaginar que o destinador diz, na
mesma situação: “Eu nem sei porque te esperei, você não saberia como falar com ele”. Como vemos, o sujeito pode se sentir desafiado a agir para mostrar ao destinador que o juízo
que se fez dele é equivocado.

Em resumo, podemos pensar que a tentação e a intimidação se assemelham porque atuam num nível pragmático, oferecendo valores positivos e negativos respectivamente. Do
mesmo modo, a sedução e a provocação se assemelham porque atuam num nível cognitivo, já que suas ofertas são abstratas como a honra ou a vergonha.
Percurso da ação

O segundo estágio é o percurso do sujeito ou da ação , que é onde o protagonista age sobre si e sobre o mundo até cumprir o contrato, obter (ou não) o valor que buscava. A
destinação delimita a missão do herói, regida por um contrato; o percurso da ação narra o que daí decorre até que os alvos tenham sido alcançados. A semiótica analisa esta segunda
etapa identificando os enunciados de estado (que são descritivos) e de transformação (que contam a alteração de estados), os quais, de modo bem simples, explicam as relações do
protagonista e de outros personagens com objetos.

Por exemplo, se um personagem aparece como alguém que busca a salvação, além de supormos que ele passou pela destinação, quando foi convencido de que há um objeto
chamado salvação (e consequentemente um objeto chamado perdição) e de que este objeto é alcançável e desejável, poderemos começar a análise do percurso da ação por meio de
um enunciado de estado, que caracteriza o personagem como alguém que inicialmente está em disjunção com o objeto salvação, isto é, separado dele. Quando este mesmo
personagem adquirir a salvação temos que identificar por um enunciado de transformação que nos levará a um novo estado, o de um sujeito em conjunção com o objeto salvação.

Indo além nesse mesmo exemplo, suponhamos que o mesmo personagem, antes de adquirir a salvação, precise adquirir um objeto específico, por exemplo, um livro onde encontrará
o caminho para depois chegar à salvação. Neste caso, antes de realizar a performance, atingir seu objetivo, o sujeito deverá buscar uma competência, deverá transformar a si
mesmo. Este novo objeto, figurativizado pelo uso do substantivo livro, é na verdade um saber considerado necessário para que o sujeito possa realizar a missão principal.
Novamente temos que descrever o sujeito como alguém que está separado do objeto e buscarmos o ponto em que se dá sua transformação, levando-o à conjunção com o objeto.

Para complicar um pouco mais, consideremos que o livro pertence a outro sujeito, que por não querer cedê-lo tornar-se-á um oponente, um adversário. O livro então poderá ser
adquirido de modo pacífico, por meio de uma doação ou troca; ou pode ser adquirido após confronto, por uma expropriação. Em todo caso, para que o herói adquira o livro seu
opositor também terá que passar por uma transformação que o deixará em disjunção com o objeto livro. Assim, na análise procuraremos demonstrar que o herói impõe uma
transformação sobre o status do vilão.

Como já se pode notar, as possibilidades desse jogo entre sujeitos e objetos são inúmeras, mas esperamos que o exemplo seja suficiente para demonstrar como as narrativas,
independente das figuras com que são vestidas, funcionam a partir de uma estrutura razoavelmente previsível cuja compreensão é o objetivo dessa análise semiótica.

Percurso da sanção

No final de uma narrativa que segue este esquema sempre devemos esperar pelo percurso da sanção , onde geralmente o sujeito é avaliado, julgado por suas ações a partir do
contrato feito no primeiro estágio do enredo. Neste ponto o protagonista poderá ser recompensado ou punido (sanções pragmáticas), reconhecido ou desmascarado (sanções
cognitivas).

Quando falamos de discursos religiosos, este esquema canônico revela-se um instrumento eficaz de análise mesmo quando nem todas as três fases do percurso narrativo estão
explícitas. Os textos bíblicos empregam narrativas para nos manipular, procuram criar afinidade entre nós e os personagens para que também aceitemos os mesmos contratos e
desejemos os mesmos valores. Quando identificamos um discurso diretamente voltado para o leitor (numa carta paulina, por exemplo), formulado com imperativos, estamos diante
daquele mesmo percurso do destinador. O texto e a voz do narrador agem sobre o leitor como um destinador age sobre o sujeito da ação, empregam-se os mesmos instrumentos de
manipulação. O leitor assume inevitavelmente o papel de protagonista, deve decidir se aceita ou não os contratos propostos e agir fazendo de sua vida o percurso da ação. Se o
contrato é assinado, se o leitor se converte, ele procurará cumprir as exigências tendo em mente que um dia será julgado, sancionado.

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ATIVIDADES
Para proporcionar uma maneira nova de retomar e exercitar o método de análise exposto nas páginas anteriores propomos a leitura atenta de uma passagem bíblica com o objetivo
de identificar no texto seus personagens, os elementos que nos permitem classificá-los, as referências topográficas, temporais, as subdivisões do enredo etc. Leia, portanto, o texto
bíblico abaixo (Mateus 18, 23-35) e a seguir tente responder às perguntas:

Por isso, o Reino dos céus é como um rei que desejava acertar contas com seus servos.

Quando começou o acerto, foi trazido à sua presença um que lhe devia uma enorme quantidade de prata. Como não tinha condições de pagar, o senhor ordenou que ele, sua mulher,
seus filhos e tudo o que ele possuía fossem vendidos para pagar a dívida.

“O servo prostrou-se diante dele e lhe implorou: ‘Tem paciência comigo, e eu te pagarei tudo’.

O senhor daquele servo teve compaixão dele, cancelou a dívida e o deixou ir.

“Mas quando aquele servo saiu, encontrou um de seus conservos, que lhe devia cem denários. Agarrou-o e começou a sufocá-lo, dizendo: ‘Pague-me o que me deve! ’

“Então o seu conservo caiu de joelhos e implorou-lhe: ‘Tenha paciência comigo, e eu lhe pagarei’.

“Mas ele não quis. Antes, saiu e mandou lançá-lo na prisão, até que pagasse a dívida.

Quando os outros servos, companheiros dele, viram o que havia acontecido, ficaram muito tristes e foram contar ao seu senhor tudo o que havia acontecido.

“Então o senhor chamou o servo e disse: ‘Servo mau, cancelei toda a sua dívida porque você me implorou. Você não devia ter tido misericórdia do seu conservo como eu tive de
você? ’

Irado, seu senhor entregou-o aos torturadores, até que pagasse tudo o que devia.

“Assim também lhes fará meu Pai celestial, se cada um de vocês não perdoar de coração a seu irmão”. (Mt 18, 23-35)

1. Sobre os personagens : Além dos personagens principais, há outros de menor importância, personagens coletivos que atuam como figurantes. Você consegue identificar grupos
desses personagens no texto?

a) São os conservos e os pecadores

b) São os escribas e os fariseus

c) São os outros servos e os torturadores

d) São os escravos e os libertos

e) São os discípulos e a multidão

2. Sobre os lugares : O texto parece girar espacialmente em torno do senhor emprestador. Em dado momento o servo devedor está diante dele, provavelmente em sua casa, na
cidade; depois está distante, talvez na propriedade rural, longe de sua vista. Como o servo devedor age quando varia a distância que o separa do senhor?

a) Perto do senhor ele é apenas servo, longe age como alguém que tem autoridade sobre outros escravos.

b) Longe do senhor ele é fiel, perto age de maneira autônoma.

c) Quando está longe da vista do senhor ele se esquece de sua dívida, quando está

perto lembra que alguém lhe deve 100 denários.

d) Longe do senhor ele é compassivo, de perto é violento.

e) Perto do senhor ele parece humilde, mas de longe nega que deve 10000 talentos.

3. Sobre as instâncias narrativas : Se Jesus é o narrador da parábola, quem é o narratário? A quem Jesus dirige essa parábola na história?

a) A parábola foi contada para alcançar cristãos de todas as épocas e lugares.

b) O narratário da parábola é Teófilo.

c) A parábola é dirigida diretamente a Pedro (o narratário), conforme atestam os

versículos anteriores.

d) A parábola foi escrita para os leitores implícitos.

e) Os destinatários da parábola eram os cristãos primitivos.

4. Sobre o enredo: Observe como a narrativa cria uma tensão crescente, uma curiosidade que cresce sobre o modo como o senhor agirá na última parte. O leitor testemunha a
injustiça, acompanha os conservos que denunciam o primeiro devedor, clama com eles pela intervenção do senhor. Na sua opinião, onde se encontra o clímax da narrativa?

a) O clímax da narrativa se dá no momento da tortura eterna, quando nosso anseio por vingança e violência é satisfeito.

b) O clímax é a conclusão de Jesus que aplica o conteúdo à vida de seus seguidores.

c) O clímax dessa narrativa se encontra no discurso do senhor, quando ele declara aquele homem um “servo mau” sancionando-o negativamente.

d) O clímax dessa narrativa se encontra no longo discurso do senhor que, misericordioso, perdoa uma dívida imensa.

e) O clímax da narrativa está no ponto em que os conservos denunciam o servo mau. Aí nossa curiosidade é levada ao máximo.

Resolução das atividades

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RESUMO
A análise literária dos textos bíblicos não tem a intenção de romper com toda a tradição de leitura bíblica desenvolvida por dois milênios de história. Não esperamos que os antigos
modos de ler, os antigos métodos e as interpretações clássicas sejam esquecidos. Na verdade, o que se quer é sugerir novos olhares, guiar o leitor por novos caminhos que possam
conduzi-lo a resultados diferentes. A leitura que temos feito deixa em segundo plano a teologia do texto, não se interessa pela historicidade dos fatos narrados, mas coloca toda a
atenção no modo como o texto bíblico é construído, em que estratégias seu autor está empregando e com que objetivos.

Em resumo, o método proposto se concentra no texto, nos elementos que são encontrados no livro, nos efeitos de sentido produzidos por uma narrativa e nas reações esperadas de
seus leitores. Ou seja, o importante já não é se Jesus realmente falou no alto de um monte ou se proferiu seu discurso numa planície, mas que no mundo ficcional construído nas
páginas do Evangelho de Mateus ele falou no monte, enquanto que no mundo construído pelo Evangelho de Lucas falou numa planície. Esses lugares possuem importância
simbólica, produzem sentido e funcionam como dispositivos implicados nos textos com a finalidade de conduzir os leitores a determinadas reações. É assim que encaramos as
personagens, os cenários, os enredos etc.

Certamente outras leituras se fazem necessárias, novos exercícios de aplicação, e é por isso que nas páginas anteriores só pudemos tratar nossa apresentação metodológico como
uma introdução. Mas daremos seguimento a nossos estudos nessa área nas atividades seguintes e esperamos que nossos leitores façam bom uso das referências bibliográficas
oferecidas para obterem formação mais sólida.

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Material Complementar

Leitura
Para ler as narrativas bíblicas: iniciação à análise narrativa

Autor: Daniel Marguerat e Yvan Bouquin

Editora: Loyola, 2009

Sinopse : Quando pensamos numa obra de referência sobre o conteúdo desta unidade sempre nos
vem à mente o livro Para ler as narrativas bíblicas. Os autores são Daniel Marguerat e Yvan Bourquin,
ambos da Universidade de Lausanne, onde lidam com teologia e com a interpretação dos textos
bíblicos. O livro se apresenta como um manual metodológico, um guia para a interpretação bíblica que
emprega de forma gradual os passos analíticos desenvolvidos pela Crítica Narrativa. Sua leitura
tornará mais compreensível o conteúdo desta unidade, aprofundará seus conhecimentos e permitirá a
continuidade dos estudos.

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REFERÊNCIAS
BARROS, D. L. P. Teoria semiótica do texto . São Paulo: Ática, 2011.

BOTTICELLI, Sandro. Three Temptations of Christ . Disponível em: < https://www.wga.hu/html_m/b/botticel/4sistina/temptati/temptat.html >. Acesso em: 26 set. 2017.

LIMA, A. O. Semiótica discursiva: uma introdução metodológica para biblistas. Ancora , vol. VIII, ano 7, p. 1-21, 2012.

MARGUERAT, D.; BOURQUIN, Y. Para ler as narrativas bíblicas : iniciação à análise narrativa. São Paulo: Loyola, 2009.

BLOCK, Carl Henrich. O sermão do monte . Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/Pai_Nosso >. Acesso em: 13 set. 2017.

RESSEGUIE, J. L. Narrative Criticism of the New Testament : an introduction. Michigan: Baker Academic, 2005.

VITÓRIO, Jaldemir. Análise narrativa da Bíblia : primeiros passos de um método. São Paulo: Paulinas, 2016.

REFERÊNCIAS ON-LINE

1 Em: < https://www.wga.hu/html_m/b/botticel/4sistina/temptati/temptat.html >. Acesso em: 26 set. 2017.

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APROFUNDANDO

Princípios metodológicos

Antes de fecharmos a unidade vamos ler partes de uma obra recente que analisa um texto bíblico fazendo uso de princípios metodológicos muito similares àqueles apresentados
anteriormente.

Consideraremos a leitura que João Leonel faz de uma passagem do Evangelho de Mateus no último capítulo de Mateus, o Evangelho (LEONEL, 2013, p. 117-147). No livro de Leonel
a análise de Mateus 14.22-33 é o conteúdo do sexto capítulo de uma obra que já vinha discorrendo sobre aspectos literários do Evangelho de Mateus e emprega um roteiro de
crítica narrativa (LEONEL, 2013, p. 117-118). O texto analisado é aquele que narra um episódio em que Jesus anda sobre a água do Mar da Galileia e convida o apóstolo Pedro a
fazer o mesmo.

O autor dedica uma seção inteira às observações sobre o contexto literário em que sua perícope se enquadra, aos questionamentos relativos às subdivisões sugeridas pelas edições
brasileiras da Bíblia, e averigua a continuidade entre os textos a partir de elementos narrativos como “tempo”, “cenário”, “personagens” e “assunto”. Tudo é feito para que se possa
trabalhar sobre um recorte legítimo (LEONEL, 2013, p. 119-121).

Depois das considerações sobre delimitação e contexto literário, o autor passa à “Análise Narrativa”. Subdividida em diferentes itens, essa seção traz praticamente toda a análise do
texto que foi escolhido e selecionado. O autor vai cumprir o cronograma apresentado lidando, primeiramente, com o narrador do texto de Mateus (LEONEL, 2013, p. 124-126), e o
que ganha destaque é que o narrador deste evangelho, sempre anônimo e onisciente, quando comparado com os narradores dos demais evangelhos, prefere utilizar a voz de seus
personagens por meio de diálogos ou discursos diretos do que usar sua própria voz em terceira pessoa.

O ponto em que o autor se demora mais é na análise do enredo. Ele expõe a estrutura paradigmática de um enredo básico formado por “exposição”, “tensão”, “resolução” e “desfecho”
(LEONEL, 2013, p. 129-130), e dedica toda a parte final do capítulo à identificação e análise desses elementos (LEONEL, 2013, p. 130-147). Em sua análise da “exposição” (Mt 14,
22-23), Leonel trabalha com a intertextualidade bíblica, isto é, emprega seus conhecimentos de outros livros bíblicos ou do próprio Evangelho de Mateus como um todo para
compreender o papel que o “monte” desempenha como cenário na narrativa.

Depois o autor identifica a primeira “tensão” do enredo no verso 24, quando os discípulos estão longe de Jesus e são ameaçados pelo mar bravio. Uma segunda tensão aparece nos
versos 25- 26, que narram o modo inusitado como se dá o reencontro de Jesus com seus discípulos, quando o Mestre vai até eles andando sobre a água e os amedronta. A resolução
desta tensão está na identificação de Jesus, que diz: “Sou eu” (v. 27), expressão que, segundo Leonel, pode ser compreendida num nível narrativo e também num nível teológico, a
partir de uma possível ligação intertextual com Êxodo 3.14 (LEONEL, 2013, p. 136).

Segundo o autor, mesmo depois da resolução que põe fim às grandes crises como a separação e o medo dos discípulos, a narrativa se estende apresentando novas tensões e
resoluções. O autor encontrou um desses ciclos entre os versículos 28 e 29, nos quais Pedro pede para também andar sobre a água com Jesus, e outro entre 30 e 31, em que Pedro
começa a afundar e é auxiliado por Jesus (LEONEL, 2013, p. 139-141). Nesse ponto o autor lança seu olhar literário sobre o texto para sugerir algumas leituras interessantes:
primeiro sugere uma possível ironia quando Pedro, que em grego significa pedra, começa a afundar; depois ele aceita a ambiguidade do texto como algo planejado, dizendo:

"Esse é o propósito do texto, no meu entender. Gerar ambiguidade nas ações, não permitindo conclusões rápidas e apressadas. Pedro está certo? Pedro está errado? Não é tão fácil
responder [...]. A questão não é se Pedro estava certo ou errado no que fez [...]. O fato é que ele clamou, princípio elementar para o relacionamento com Deus (LEONEL, 2013, p.
140-141).

Essa leitura que aceita a possibilidade de que um texto não tenha um significado único é algo que certamente se deve à experiência do autor com a Teoria Literária.

O autor ainda aponta mais um ciclo de tensão e resolução entre os versículos 31b e 32. Jesus, ao estender a mão para Pedro que estava afundando, chama-o de “homem de pequena
fé”. Apesar do auxílio prestado, temos uma sanção negativa, uma derrota momentânea de Pedro; depois a história termina com Jesus e seus discípulos juntos no barco e com o fim
do vento que os ameaçava. Apesar dos conflitos internos envolvendo Jesus e os discípulos, a grande crise que era externa é resolvida quando o mar (identificado por Leonel como
personagem antagonista) se acalma e deixa de ameaçá-los (LEONEL, 2013, p. 141-143). O desfecho interno está, segundo o autor, na adoração dos discípulos a Jesus e na
declaração de que ele é o “Filho de Deus” (v. 33) (LEONEL, 2013, p. 143-145).

Na parte final de sua leitura João Leonel excede mais uma vez às expectativas de uma exegese tradicional, que se contentaria em explicar o texto, ao se perguntar pela possível
recepção deste texto por parte dos leitores (LEONEL, 2013, p. 145-147). Esse é um avanço de grande importância, pois reconhece que o texto é parte de um processo comunicativo,
que é um intermediário entre autor e leitor (implícitos) e que, portanto, sua crítica não deve se limitar ao conteúdo. Mais do que preservar a memória do Jesus histórico, o texto é
destinado a um leitor para que este reaja ao discurso de maneira apropriada; a pergunta que se faz, então, é esta: que reação o autor esperava de seu leitor?

PARABÉNS!

Você aprofundou ainda mais seus estudos!

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EDITORIAL

DIREÇÃO

Reitor Wilson de Matos Silva

Vice-Reitor Wilson de Matos Silva Filho

Pró-Reitor de Administração Wilson de Matos Silva Filho

Pró-Reitor de EAD William Victor Kendrick de Matos Silva

Presidente da Mantenedora Cláudio Ferdinandi

C397 CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ . Núcleo de Educação

a Distância; LIMA . Anderson de Oliveira;

Bíblia, Literatura e Linguagem. Anderson de Oliveira Lima;

Maringá-Pr.: UniCesumar, 2017.

36 p.

“Pós-graduação Universo - EaD”.


Bíblia. 2. Literatura. 3. Linguagem EaD. I. Título.

CDD - 22 ed. 230

CIP - NBR 12899 - AACR/2

Pró Reitoria de Ensino EAD Unicesumar

Diretoria de Design Educacional

Equipe Produção de Materiais

Fotos : Shutterstock

NEAD - Núcleo de Educação a Distância

Av. Guedner, 1610, Bloco 4 - Jardim Aclimação - Cep 87050-900

Maringá - Paraná | unicesumar.edu.br | 0800 600 6360

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A NARRATIVIDADE BÍBLICA E
O IMAGINÁRIO RELIGIOSO

Professor (a) :

Dr. Anderson de Oliveira Lima

Objetivos de aprendizagem
Discutir, a partir da leitura de um texto de Umberto Eco, como temos a tendência a dar sentido às nossas vidas a partir de padrões narrativos que conhecemos a partir da
literatura.
Abordar as práticas de leitura bíblica fundamentalista de maneira introdutória e discutir o papel da Bíblia no modo como tais leitores criam sentido para o mundo.
Tratar dos personagens e dos padrões narrativos dos autores bíblicos na apropriação fundamentalistas dessas tradições literárias.
Discutir a influência dos cenários e enredos bíblicos no imaginário religioso dos leitores fundamentalistas da Bíblia.

Plano de estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
Narrativizando a vida
A leitura cristã fundamentalista: o mundo do texto no mundo do leitor
Padrões da narratividade bíblica na leitura fundamentalista (parte 1)
Padrões da narratividade bíblica na leitura fundamentalista (parte 2)

Introdução
Em nossa quarta e última unidade, a discussão tomará novos rumos: reforçaremos o estudo do método analítico apresentado na unidade anterior e passaremos aos estudos da
recepção, ao modo como as narrativas bíblicas são recebidas e influenciam os imaginários religiosos de seus leitores. Sendo assim, a análise narrativa mostrará outra funcionalidade:
nos permitirá estudar a narrativização da vida. Veremos que boa parte dos cristãos constroem um modo literário de ver o mundo pautando-se, obviamente, nas características
literárias da Bíblia.

Assim, suas vidas passam a possuir um enredo, um começo e um fim que Deus está a escrever; eles tornam-se personagens, protagonistas, elegem seus vilões e supõe a existência
de um mundo fantástico como o dos textos no real, ou seja, terminaremos nossos estudos sobre a Bíblia discutindo como a literatura é determinante no modo como vivem os
adeptos da religião do livro .

Um alerta: pedimos que o leitor cristão que fará contato com essas páginas assuma, para benefício próprio, uma postura sóbria e madura, digna de um pós-graduando, para que não
se ofenda com as colocações que aqui serão feitas. Quando dizemos que os leitores leem a Bíblia literalmente e aplicam o mundo ficcional do texto às suas vidas, isso não quer dizer,
necessariamente, que estejam certos ou errados; nossa função não é julgar, mas tentar explicar as regras que regem o funcionamento do imaginário cristão a partir da análise
literária, e isso seguindo as normas de um discurso acadêmico, científico. Se porventura alguém vier a esse texto supondo que estamos procurando apenas atacar o cristianismo,
além de se equivocar e perder de vista o que há para se aprender, talvez se sinta forçado a assumir a posição de um defensor do cristianismo que é, sem dúvida, imprópria para
aquele que quer se envolver com o debate acadêmico a respeito da religião.

Sigamos, pois, à quarta parte deste curso que dará um passo ainda mais ousado nos estudos religiosos a partir da análise literária.

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NARRATIVIZANDO A VIDA
Não tenha pressa para deixar o texto de Umberto Eco, transcrito anteriormente, um excerto de Seis passeios pelos bosques da ficção , que é o ponto de partida para esta aula.

Na primeira frase o autor faz uma oposição entre o “mundo real”, no qual vivemos, e o “mundo de Chapeuzinho Vermelho”. Obviamente o mundo do conto infantil é empregado
apenas como um exemplo de um mundo ficcional, um mundo que foi construído no texto para que nele se desenrolasse a história da personagem. Como sempre, este mundo
ficcional corresponde apenas em parte ao mundo em que vivemos. Nós já vimos que toda narrativa se desenrola num mundo ficcional que, por definição, é composto a partir de
elementos extraídos do mundo real acrescidos de elementos do imaginário (ISER, 2013, p. 31-34). O mundo do texto sempre será um recorte da realidade, uma redução dela e,
dependendo das intenções do autor, este mundo transgredirá mais ou menos os limites da realidade. No caso do Chapeuzinho Vermelho a realidade é transgredida, por exemplo,
quando descobrimos que ali os animais podem falar. Esse fenômeno não é surpreendente para os habitantes daquele mundo literário, mas é fantasioso para nós, que estamos do
lado de fora. O mundo literário, portanto, possui suas próprias leis e o leitor deverá compreender esses limites para entrar e sair da história de um modo competente, caso contrário,
ou ele rejeitará o texto por não tolerar seus elementos ficcionais, ou confundirá a realidade com a fantasia esperando erroneamente que as mesmas regras do mundo do texto
funcionem no mundo real.

“Vivemos no grande labirinto do mundo real, que é maior e mais complexo que o mundo da Chapeuzinho Vermelho. É um mundo cujos caminhos
ainda não mapeamos inteiramente e cuja estrutura total não conseguimos descrever. Na esperança de que existam regras do jogo, ao longo dos
séculos a humanidade vem se perguntando se esse labirinto tem um autor ou talvez mais de um [...] procuraram Deus como Autor-Modelo — quer
dizer, Deus como a Regra do Jogo, como a Lei que torna ou um dia tornará compreensível o labirinto do mundo. A Divindade nesse caso é algo que
precisamos descobrir ao mesmo tempo que descobrimos por que estamos no labirinto e qual é o caminho que nos cabe percorrer.”

Fonte: Eco (1994, p. 121).

Umberto Eco então afirma que nós todos vivemos no “grande labirinto do mundo real”, um mundo muito mais complexo do que qualquer livro poderia descrever. Em outras
palavras, Eco sugeriu que o ser humano experimenta o mundo e a própria vida sem poder compreendê-los plenamente. Por mais que crie metas, realize sonhos e estude a natureza,
persiste para grande parte dos homens a sensação de que habitamos um universo caótico, onde aparentemente não passamos de peças transitórias de pouca significância dentro de
um sistema natural que só busca manter seu ciclo vital. Quando tomamos consciência de que estamos diante desse labirinto não mapeado experimentamos sensações de ignorância
e pequenez diante do caos incômodo que é a existência. E é aí que as religiões e a Teologia exercem seus principais papéis, oferecendo aos que creem modelos explicativos que
amenizam as angústias advindas das incertezas. Ilustraremos isso com as palavras dos teólogos João Batista Libanio e Afonso Murad:

A vida humana intercala-se, como curto lapso diurno, entre duas gigantescas noites. A noite da não-existência. Ontem não éramos. Esse ontem recua
bilhões de anos até o big-bang. E antes dele paira o silêncio do nada. Após a morte, abre-se nova noite escura sem término. Entre essas duas ameaças
do caos inicial e final, o ser humano caminha solitário, sem luz. A teologia, ao fazer-se companheira, quer contar-lhe as estórias de Deus que lhe
permitem encontrar sentido para esta aventura tão breve entre os infinitos do ontem e do amanhã (LIBANIO; MURAD, 2005, p. 36).

Nestas observações nada há de inédito. O que nos chama a atenção é que Eco faz tais observações a partir de uma perspectiva literária. Ele escreveu: “Na esperança de que existam
regras do jogo, ao longo dos séculos a humanidade vem se perguntando se esse labirinto tem um autor ou talvez mais de um”.

Ao afirmar que a humanidade se pergunta por um autor, Eco nos leva de volta às histórias escritas e seus mundos ficcionais. Nas narrativas, os cenários são desenhados por um
autor e os personagens que ele cria fazem desenrolar um enredo preconcebido; o escritor controla as regras do jogo. Na vida real, seguindo Eco, os homens também empregam seus
instintos narrativos e supõem a existência de um Deus que atuaria como um autor ao criar um mundo concreto e ordenado, concebido para que nele vivêssemos segundo as linhas
que a divindade nos escreve.

Hipoteticamente, se Deus existe e é um autor inteligente que projetou nossa existência, é de se esperar que o universo possua uma estrutura minimamente compreensível, que a
vida de cada um seja uma sucessão de cenas de um enredo em que os eventos o conduzam a um final (provavelmente feliz). Assim crendo, cada um pode se considerar um
protagonista no palco da própria vida, contracenando em cenários bem desenhados ao lado de vilões e figurantes pelo tempo que a este divino autor agradar escrever.

Assim encontramos Umberto Eco discutindo tópicos comuns aos estudos das religiões de um ponto de vista literário. Desse parágrafo tiramos inspiração para essa unidade que
pretende tratar, de um modo mais específico, do imaginário religioso cristão a partir de um estudo da narratividade bíblica.

Figura 1: Capa de Seis passeios pelos bosques da ficção

Fonte: o autor.

A seguir procuraremos, de modo breve, limitar a discussão ao imaginário religioso fundamentalista, e é aí que a narratividade bíblica ganha destaque como elemento normativo que
é determinante para o desenvolvimento desse imaginário. Por fim, procuraremos demonstrar sucintamente algumas das características da narratividade bíblica que mais estão
presentes no imaginário religioso fundamentalista, já fazendo a ligação entre tais peculiaridades literárias e a religiosidade cristã em suas manifestações concretas.
A LEITURA CRISTÃ FUNDAMENTALISTA: O MUNDO
DO TEXTO NO MUNDO DO LEITOR
A leitura cristã fundamentalista, do ponto de vista da História da Leitura, se caracteriza pela ênfase que dá ao sentido literal dos textos bíblicos, o que, neste caso, é uma herança
direta das ideologias da Reforma Protestante.

No século XVI, os chamados reformadores insistiram na negação do modelo de leitura cristã medieval, conhecido como um método alegórico que buscava nas escrituras não apenas
o sentido literal, mas também outros de caráter mais místico.

O método alegórico, conforme a exposição de Dante Alighieri, no século XIII, começa pela busca pelo sentido literal, histórico, em que o texto é lido e
compreendido a partir de seu contexto original. Então o intérprete procura o sentido alegórico propriamente dito, sentido que, ao cabo, busca por
um significado doutrinário, cuja questão é: em que se deve crer? Depois parte-se ao sentido moral ou tropológico, que aplica tais elementos
doutrinários à vida do cristão que lê o texto fazendo a Bíblia servir-lhe de guia pessoal.

Por fim, supõe a existência de um sentido anagógico que possui uma dimensão escatológica que se ocupa das coisas que supostamente virão.

Fonte: Kugel (2012, p. 42-43).

Porém, a ênfase no sentido literal não se restringiu àquelas gerações, mas continuou se manifestando (de maneira anacrônica) em diferentes momentos da história do cristianismo e
dando forma ao discurso de variados grupos religiosos conservadores. Enquanto o mundo via emergir a modernidade, o gradual surgimento de uma consciência racional e
autônoma que reagia às estruturas medievais, o fundamentalismo religioso tomava forma como uma contrapartida, uma iniciativa de resistência a essa racionalidade moderna que
se caracterizava tanto por seu aspecto crítico quanto pela redução da importância da religião (PANASIEWICZ, 2008, p. 2). O fundamentalismo (que aqui é abordado apenas a partir
de suas práticas de leitura bíblica) assume uma antiga prática de leitura religiosa que, não sendo exclusiva de um ou outro grupo, é sustentada dogmaticamente e dá legitimidade a
ideologias religiosas fora de época.

Assim, a leitura fundamentalista tem suas raízes no protestantismo e está marcada por uma ênfase no sentido literal dos textos bíblicos e pela afirmação de que a Bíblia deve ser o
instrumento absoluto da mediação entre Deus e os homens (tópicos de especial significação no discurso reformado em sua oposição à tradição católica medieval). No começo do
século XX e em território norte-americano esses mesmos princípios foram empregados como instrumento de resistência à crítica moderna da Bíblia que, especialmente no século
XIX, acumulou conhecimentos a respeito da literatura bíblica expondo a fragilidade de muitas afirmações religiosas que sustentaram a devoção cristã ao texto por muitos séculos
(ARMSTRONG, 2001, p. 9-10).

Joseph A. Fitzmyer definiu a leitura fundamentalista com essas palavras:

A leitura fundamentalista da Bíblia é um entendimento literalista do texto bíblico, que considera sua forma final como a expressão verbatim da
Palavra de Deus e a vê como clara, simples e sem ambiguidade. Normalmente recusa-se a usar o método histórico-crítico ou qualquer outro suposto
método científico de interpretação e não leva em conta as origens históricas da Bíblia, nem o desenvolvimento de seu texto ou suas diversas formas
literárias (FITZMYER, 1997, p. 66).

Apesar da superação evidente de vários dos pilares epistemológicos da leitura literalista que depois foi chamada de fundamentalista, ela surpreendentemente continua seduzindo
boa parte dos leitores da Bíblia. Hoje, excedendo as pretensões de um método interpretativo para os textos sagrados, o fundamentalismo funciona como modelo a partir do qual a
existência humana é explicada e ordenada, e é isso o que faz com que as práticas de leitura dos grupos fundamentalistas sejam tão determinantes para sua linguagem e,
consequentemente, para seu modo de viver.

Estamos partindo do pressuposto de que os grupos cristãos fundamentalistas, pelo menos boa parte deles, empreendem uma leitura desse tipo: literalista, que toma cada dado
exposto nos textos como fato histórico e como verdade divinamente revelada, que desconsidera as ambiguidades das traduções, as dúvidas advindas das variantes textuais
presentes nos manuscritos antigos, as mediações ideológicas que as tradições religiosas e a materialidade do livro impõem sobre suas leituras, e ignoram a maior parte das
conclusões alcançadas pelos estudos bíblicos modernos. E se o texto que eles leem, entendido como objeto de máxima autoridade para as construções dogmáticas, é aplicado ou
imposto ao contexto vivencial dos leitores sem grandes preocupações de ordem hermenêutica, é de se esperar que a narratividade bíblica exerça uma grande influência no próprio
jeito fundamentalista de ser cristão. Ou seja, esse tipo de apropriação de textos antigos força o leitor a tentar encaixar sobre a própria vida as leis que regem os mundos ficcionais
construídos pelas narrativas bíblicas, leis que nem mesmo nos dias dos primeiros leitores/ouvintes se aplicariam plenamente.

Passaremos, a partir do próximo item, à exposição de alguns elementos característicos já estudados das narrativas bíblicas apontando, sempre que possível, o modo como os
cristãos fundamentalistas de hoje se apropriam desses padrões narrativos.
PARTE 1: PADRÕES DA NARRATIVIDADE BÍBLICA NA
LEITURA FUNDAMENTALISTA

Os Fundamentalistas e os personagens Bíblicos

Nunca é demais repetirmos, para fins didáticos, que a maioria das narrativas bíblicas foram compostas a partir da justaposição de fontes diversas, e não é raro o leitor notar que esse
processo composicional dá origens a personagens contraditórios que nem sempre satisfazem nossos padrões de coerência textual. Mas, apesar das confusões imediatas, a colagem
de textos diversos que falam sobre um mesmo personagem oferece uma visão multifocal que pode ser considerada enriquecedora (ALTER, 2007, p. 204-205). No fim das contas, o
processo redacional empregado pelos autores bíblicos tornou os protagonistas bíblicos bastante complexos, mutáveis, imprevisíveis e, por isso mesmo, mais próximos dos seres
humanos reais do que a maioria dos personagens que conhecemos por meio dos textos míticos da antiguidade (AUERBACH, 2011, p. 14-17, 19).

Se por um lado a crítica moderna da Bíblia desconfiava da fidedignidade histórica dos eventos narrados na Bíblia ao demonstrar como os livros foram formados por unidades
textuais de origens distintas, por outro, o fato de os personagens bíblicos serem construídos desse modo favoreceu a leitura fundamentalista que, como já vimos, é essencialmente
literalista e nega veementemente que qualquer personagem bíblico possa ser uma mera construção literária. E essa discussão se complica bastante quando o que está em jogo é a
valorização dos personagens, a carga ideológica depositada de maneira estereotipada sobre eles e a aplicação desses padrões à vida não literária.

Vimos que os personagens bíblicos trazem em si uma carga valorativa de fácil distinção. Quem, por exemplo, se enganaria ao ler os evangelhos sobre o papel negativo que
desempenham os fariseus? Apesar dos atos moralmente vergonhosos de Davi, ainda é inegável que ele é um herói; Deus o perdoa, o narrador o exalta, o leitor o admira. Isso é assim
por causa do interesse explícito dos autores bíblicos de levarem seus destinatários à mudança (AUERBACH, 2011, p. 11-12). A Bíblia não procura apenas entreter seus leitores,
quer mesmo convertê-los a suas crenças e valores e, para que isso produza resultados eficazes, é preciso que o leitor reconheça facilmente o quadro de valores ideal, que se
identifique com os bons personagens e queira até imitar suas ações:

O personagem oferece ao leitor uma forma de vida possível, uma possibilidade de existência; concretiza uma das muitas vias que se abrem diante
dele. Daí a atração que pode exercer sobre ele, na medida exatamente em que permite ao leitor viver, pelo imaginário, um destino semelhante ao seu.
A leitura se torna uma viagem na qual me é dado explorar diversos “eu” possíveis (MARGUERAT; BOURQUIN, 2009, p. 84).

Considerando os evangelhos, está claro que Jesus é o grande protagonista sobre o qual todos os ideais defendidos pelos autores estão depositados. Tudo nos evangelhos do Novo
Testamento leva o leitor a encarar Jesus como um sujeito perfeito, e mesmo quando alguma palavra ou ação dele nos parece equivocada, duvidamos de nossa própria percepção e
supomos que nós é que não entendemos o texto corretamente.

Todavia, Jesus não é um personagem comum; ele é filho de Deus, um semideus em termos gregos, um ungido do Senhor do ponto de vista judaico e um deus no ponto de vista
cristão. Por conta disso, o leitor da Bíblia, por mais que o admire, saberá que não poderá alcançar sua perfeição. Quer dizer que Jesus é um ideal elevado demais, é um horizonte
utópico. A verdadeira empatia do leitor dos evangelhos se dá para com os discípulos que seguem Jesus de modo titubeante, pois a empatia se dá mais facilmente frente a
personagens que se nos assemelham. Se os evangelhos foram escritos para serem lidos ou ouvidos por audiências cristãs primitivas, era natural que os discípulos de Jesus fossem
apresentados nos textos como exemplos de pessoas que nalgum momento decidiram mudar de vida, escolheram seguir Jesus e que, no caminho, encontraram dificuldades sem que
tenham desistido de andar ao seu lado, servindo de exemplos literários para a vida cristã de leitores/ouvintes reais.

Falando um pouco mais sobre os evangelhos, podemos considerar a presença constante dos fariseus que, na maioria das vezes, são vilões incorrigíveis. Mais uma vez a construção
dos personagens é claramente ficcional, exagera os atributos negativos tais como a hipocrisia, a incredulidade, a animosidade etc. Neste caso o leitor é induzido à completa antipatia
e o quadro de valores depositados nos fariseus deverá ser plenamente rejeitado.

Se nos perguntarmos sobre a relação dos leitores fundamentalistas da atualidade com os personagens bíblicos concluiremos que eles estão próximos do leitor implícito no que diz
respeito à apropriação dos valores implicados nos personagens pelos autores bíblicos. Mas esse leitor só é um modelo ideal do ponto de vista do próprio texto. A fragilidade dessa
leitura literalista se revela quando o leitor procura lidar com os vilões bíblicos e, seguro de que a Bíblia é um texto atemporal, cujos conteúdos devem se aplicar a todo ser humano
de todos os tempos e lugares indistintamente, os conflitos de ordem religiosa entre os primeiros seguidores de Jesus e os fariseus são recebidos como ensinamentos que devem se
aplicar a conflitos religiosos contemporâneos. Não obstante, tais leituras descontextualizadas podem incentivar guerras santas , dificultar os diálogos de caráter ecumênico, tornar os
cristãos reticentes quanto a projetos sociais e políticos de ordem laica e, em casos mais extremos, provocar divisões, estigmatizações ou demonizações dos diferentes, além de
impulsionar antissemitismos e outras expressões de violência que assim são religiosamente legitimáveis.

Problemas na recepção das palavras de Deus

Outra dificuldade da leitura fundamentalista está em sua apropriação de Deus como personagem bíblico. Leitores da Bíblia, em geral, estão conscientes de que, desde a Torá, suas
páginas insistem na proibição de que se façam representações de Deus. Entretanto, os mandamentos bíblicos parecem lidar apenas com o que hoje nós chamamos de signos icônicos ,

que se definem “por sua relação de semelhança com a ‘realidade’ no mundo exterior” (GREIMAS; COURTÉS, 2012, p. 250).

“Se a relação entre significante e significado é caracterizada por uma semelhança objetiva, ou até mesmo reconhecida como tal no grupo social que
usa o signo, temos uma relação icônica. Um signo icônico deve a sua capacidade de significar ao fato de que a expressão é sob certo aspecto
semelhante ao próprio conteúdo. As ilustrações, os retratos, as caricaturas, os esquemas de um aparelho elétrico, os mapas geográficos e até os sons
onomatopaicos e as metáforas compartilham essa característica”.

Fonte: Volli (2012, p. 40).

Noutras palavras, a idolatria que é tão temida e condenada nas páginas da Bíblia é apenas uma forma de representação de Deus. De fato, a própria Bíblia traz muitas outras
representações de Deus, mas o faz preferencialmente por meio de símbolos, de signos linguísticos como os da própria escrita humana (MALANGA, 2005, p. 159-163). Por mais
ambígua que possa ser essa representação de Deus, por mais metafórica que seja, ela é também uma forma de redução radical e inevitavelmente insuficiente do imaginário
religioso.

Chamamos a atenção de maneira especial para as falas de Deus, os discursos em primeira pessoa que este personagem pronuncia ao longo da Bíblia. A verdade é que os autores
bíblicos não encontram modos dignos de expressar a voz divina; tentam fazê-la diferente por meio de eventos paralelos como trovões, terremotos e procuram colocar na boca de
Deus apenas aquilo que lhes parece perfeito. Mesmo assim, não há como fazer o Deus bíblico dizer coisas que excedem os limites da linguagem humana; um leitor atento vai notar
que esse Deus fala apenas aquilo que cada autor deseja expor com mais autoridade.
Neste caso, o leitor fundamentalista não faz distinção entre o uso de Deus como personagem e a voz do verdadeiro Deus em que ele acredita. Como dá pouca importância à
participação humana e seus respectivos contextos existenciais na produção dos textos bíblicos, tal leitor irá se deparar com dificuldades quando Deus se contradizer, se arrepender
ou estiver simplesmente errado. Com efeito, sem a devida contextualização é difícil conciliar o Deus que anseia por justiça social e planeja a destruição dos templos religiosos de
Oséias e Amós com o Deus ditador do Salmo 2 ou o apoiador da religiosidade sacrificial de Ageu ou Malaquias. No fundamentalismo cristão esse problema costuma ser resolvido
pela já estudada mediação religiosa na leitura, pela imposição de dogmas pré-estabelecidos e legitimados por instituições religiosas que servem de parâmetros à interpretação, e
também por meio de uma recontextualização alegórica que é facilitada pela leitura seletiva em ambientes litúrgicos.

Mas devemos lembrar que o cristão fundamentalista não julga ouvir a voz de Deus apenas nos casos em que os narradores bíblicos se utilizam de discursos diretos. Algumas
peculiaridades bíblicas contribuem com a ideia de que toda a Bíblia é Palavra de Deus ; dentre elas, a mais importante é a já comentada participação dos narradores em terceira
pessoa. As histórias bíblicas, na maioria das vezes, são contadas por narradores que estão fora das histórias, que são anônimos, oniscientes e onipresentes:

Um narrador em terceira pessoa onisciente conta a história de fora e se refere aos personagens por nome ou por “ele”, “ela” ou “eles”. Similar a uma
câmera em movimento, este narrador é livre para vagar de personagem em personagem, fornecendo close-ups de alguns, vislumbres de outros, e é
livre para mover-se de um evento a outro como desejar. Os escritores dos evangelhos são narradores em terceira pessoa oniscientes que vão de
personagem em personagem, evento em evento, se aprofundando no pensamento de alguns personagens, elaborando as motivações de outros,
comentando a respeito de outros e assim por diante (RESSEGUIE, 2005, p. 168, tradução nossa).

Consideremos ainda a tradição religiosa de leitura bíblica que sempre aponta para Deus como autor da obra final. A ausência de personalidade nos narradores bíblicos, a facilidade
com que eles intervêm na história oferecendo juízos de valor sobre os personagens e as demonstrações de onisciência que dão a todo momento, fazem com que muitos leitores
confundam a voz inequívoca dos narradores com a voz do próprio Deus.

Sem dúvida o cristão fundamentalista aplica de modo quase sempre inconsciente essas categorias narrativas a seu imaginário religioso. Suas práticas de leitura bíblica criam, no
mundo real, expectativas ficcionais em relação à atuação de Deus; ele espera que Deus lhe apareça ou fale do mesmo modo como atua nas páginas bíblicas. Indo mais longe, hoje em
dia não deve ser difícil encontrar cristãos fundamentalistas defendendo a decadência da igreja cristã contemporânea com base na observação da clara ausência de experiências
religiosas de caráter bíblico em seus encontros dominicais. De seu ponto de vista eles têm razão quando afirmam que os cristãos de nossos dias não são tão sensíveis à voz de Deus
quanto os antigos seguidores de Jesus Cristo.

O problema para o qual estamos chamando a atenção é que esses cristãos antigos tomados como exemplos são personagens que, do modo como os conhecemos, nunca existiram
fora dos textos. Os personagens bíblicos, incluindo Deus, ainda estão presos no mundo ficcional, um mundo limitado ao texto que, como vimos, opera segundo suas próprias leis que
sempre excedem às do nosso mundo real nalguma medida.

PARTE 2: PADRÕES DA NARRATIVIDADE BÍBLICA NA


LEITURA FUNDAMENTALISTA

O mundo real como Cenário Bíblico

Para falar das apropriações dos cenários bíblicos na leitura fundamentalista, podemos começar recordando o fato de que este tipo de leitor da Bíblia desconsidera os elementos
ficcionais das narrativas ou, pior ainda, os toma como realidades de um passado histórico utópico, não conseguindo distinguir devidamente o que pertence ao mundo do texto , que é
um mundo inverossímil, do que há no mundo da vida . Para fins didáticos, leiamos algumas linhas de Hugo Volli sobre os mundos ficcionais e o modo como os recebemos enquanto
leitores:

Esses mundos só são concebíveis sob a condição de que o leitor seja: a) bastante flexível para aceitar modificar temporariamente (pela duração da
leitura) algumas das leis que geralmente considera previsíveis, ou b) suficientemente superficial para não querer, a qualquer custo, encontrar uma
explicação exaustiva e cientificamente aceitável para os fenômenos que lhe são apresentados (VOLLI, 2012, p. 108).

O que geralmente se espera de todo leitor de literatura é que ele saiba suspender suas ideias sobre a realidade para entrar e desfrutar temporariamente da aventura que o texto lhe
propõe. Ao fechar o livro o leitor deve saber voltar à realidade, ciente de que já não estão em vigor as leis do mundo ficcional que conheceu.

Mas não é raro que o passeio pelo mundo ficcional faça o leitor voltar à realidade transformado. Pensadores do chamado Formalismo (escola de estudos da linguagem desenvolvida
na Europa nas primeiras décadas do século XX) sugeriram que a arte em geral, e a literatura de modo especial, são instrumentos capazes de nos fazer repensar a realidade, de alterar
nosso ponto de vista habitual para que possamos sentir a vida de maneira renovada. A esse potencial transformador da literatura chamaram de desfamiliarização (RESSEGUIE, 2005,
p. 38).

Entretanto, o fundamentalista cristão não usa o ponto de vista proposto pela literatura bíblica para repensar o mundo real, antes, por conta de seu modo literalista de ler,
eventualmente tenta impor a ficção sobre a realidade. Quer dizer que ele costuma, de modo ingênuo, tomar os dados ficcionais como possíveis fora do texto e tenta encontrar no
mundo real aquilo que só existe no mundo das narrativas bíblicas. Consequentemente, o leitor fundamentalista pensa viver num mundo bíblico, imagina estar num lugar encantado,
repleto de seres invisíveis onde as leis da física podem facilmente ser suspensas por meio de palavras mágicas. Não é por mero acaso que os fundamentalistas esperam testemunhar
mais milagres que os demais, que creem de maneira mais devotada em apóstolos que se dizem ungidos, que temem mais que qualquer um o risco de pronunciarem qualquer
blasfêmia.

Nesse aspecto o imaginário religioso do leitor fundamentalista da Bíblia o faz parecido com os homens da antiguidade que não distinguiam as instâncias religiosas das instâncias
seculares. Nesse tipo peculiar de recepção das narrativas bíblicas o mundo real deve ter, como o mundo do livro, um começo e um fim bem estabelecidos, e é aí que as categorias
bíblicas de tempo também se aplicam ao imaginário religioso fundamentalista. O passado dos personagens bíblicos é encarado como se fosse o passado histórico dos cristãos de
hoje; os textos sobre as origens das tribos mesopotâmicas são tomados como os primórdios da humanidade e de toda a criação; as histórias sobre as origens de Israel são
transformadas em mitos fundantes para todo cristão, no sentido em que são formadores de identidade e memória social.

Seguindo por esse caminho de análise, o da aplicação das categorias temporais das narrativas bíblicas à leitura fundamentalista, também vemos que o Novo Testamento, conjunto
de livros que dá testemunho limitado sobre as origens do(s) cristianismo(s), é o documentos que inaugura o tempo presente, a era cristã em que o leitor se situa, o meio da história
humana que Deus está escrevendo. E nem é preciso usar muitas palavras para dizer que as categorias mais conhecidas da apocalíptica bíblica que descrevem esperançosamente o
repentino fim dos tempos (e o prometem para breve) são aplicadas à realidade do leitor do modo mais literal possível, pelo que o cristianismo sempre insistiu, século após século, em
interpretar os eventos históricos como sinais escatológicos, anúncios de um fim iminente.

A Vida como um Enredo Bíblico


Finalizando e já retomando alguns temas anteriores, o cristão fundamentalista leitor da Bíblia se entende como um personagem que vive
rigorosamente conforme as linhas escritas pelo autor divino. É claro que como personagem ele quer ser um protagonista, quer ser um herói capaz de
grandes realizações e digno de grandes honrarias, semelhante aos mais celebrados personagens bíblicos. Contudo, para que tais categorias
narrativas e ficcionais tenham valor e possam se aplicar devidamente à vida, é importante que outros sujeitos, de ordem humana ou demoníaca,
sejam interpretados como vilões, antagonistas ou figurantes. Dizendo isso de outro modo, é preciso hierarquizar os homens como personagens,
forçar todos a contracenar no mesmo palco, criar as próprias crises religiosas entre o bem e o mal, estabelecer os conflitos ou tensões que são
necessários a qualquer bom enredo.

Buscando se enquadrar nos padrões bíblicos, mais uma vez o fundamentalista fará uma apropriação literalista dos textos e poderá se imaginar
envolvido numa batalha cósmica em que poderá ser um combatente importante, convocado para conter os avanços das invisíveis hostes demoníacas.
Note-se que os temas militares e as batalhas espirituais são comuns nos discursos fundamentalistas e é recorrente em suas canções e produções
literárias. Novamente vem à tona o risco de que os ataques desses pretensos heróis, supostamente voltados contras forças demoníacas que avançam
contra os bons e devem ser contidas, se voltem equivocadamente contra pessoas reais, contra pagãos que nem sabiam estar no tal campo de
batalhas, contra endemoninhados em geral que são identificados pelos olhos treinados dos homens espirituais. Há também o perigo de que o mesmo
olhar se reflita em desapreço pelo mundo natural, que pode ser considerado maligno e irrecuperável, o que, por sua vez, pode resultar na inércia
diante dos desajustes de ordem social e política.

Como em qualquer narrativa, o protagonista cristão não age espontaneamente, não escolhe a própria missão; mas age a partir de contratos firmados
com um destinador, como explica a semiótica discursiva (BARROS, 2003, p. 197; BARROS, 2011, p. 28-29). De modo explícito ou implícito, a história
deste sujeito sempre começa quando um destinador o manipula, o leva a crer e/ou agir a partir das promessas feitas. No caso do fundamentalismo
cristão, Deus é o único destinador legítimo, mas sabemos que os contratos firmados pelos cristãos também são propostos pela Bíblia e pelas
instituições religiosas que, como já dissemos, atuam como mediadores nessas relações entre homens e Deus.

Figura 2: Imagem original de Charlotte Reihlen da imagem pietista conhecida como Dois Caminhos

Fonte: Wikipoedia (on-line).

Entendido desse modo, o enredo da vida humana se resume, no imaginário religioso fundamentalista, a uma escolha religiosa simples: ou o cristão
acredita no seu destinador, obedece-o e espera pelas intangíveis recompensas da salvação, ou o nega e se encaminha à danação. São lhe oferecidos
apenas dois caminhos, como o protestantismo ilustrou por meio de uma famosa imagem de Charlotte Reihlen, conhecida como Dois caminhos.

Fonte: elaborado pelo autor.

Portanto, o cristão é um personagem de carne e osso, alguém que busca cumprir as exigências estabelecidas por Deus, embora elas geralmente lhe tenham sido transmitidas em
forma escrita e nem sempre unívoca nas páginas da Bíblia, e tenham passado por um processo de tradução ou interpretação que, no interior das tradições religiosas, é parcialmente
condicionado por autoridades e antigos dogmas.

Esperamos ter demonstrado a importância do tema e sugerido um modelo interpretativo a partir do qual o imaginário religioso fundamentalista possa ser abordado hoje e melhor
compreendido no futuro. Propusemos que o aparente desajuste dos valores e ações de determinados indivíduos ou grupos religiosos fundamentalistas em relação à sociedade atual
(e suas consequências) pode ser melhor compreendido por meio de um estudo mais apurado da narratividade bíblica e das práticas de leituras desses mesmos fundamentalistas.

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ATIVIDADES
Como nesta última unidade falamos sobre o modo como a Bíblia é recebida por boa parte dos cristãos leitores, decidimos propor aqui uma breve reflexão que parte de uma
mensagem cristã divulgada em rede social.

A postagem que iremos discutir foi divulgada por meio do Twitter, pelo bispo Edir Macedo, em 4 de Julho de 2017, e traz, com letras maiúsculas, apenas as palavras: “A FÉ FAZ
VOCÊ ATRAVESSAR O ABISMO ENTRE O MUNDO E O REINO DE DEUS”. Além delas, havia ainda uma espécie de propaganda que anunciava o site do autor:
www.bispomacedo.com.br.

Levando em conta essas poucas informações, acompanhe a seguir nossas reflexões e veja se consegue responder corretamente a algumas perguntas:

1. Ao escolhermos como objeto de estudo um texto que foi postado na internet por meio de uma rede social estamos nos inserindo de maneira imprevista num diálogo que não
previa nossa participação. Com isso, de antemão podemos afirmar que o “você” a quem o enunciador se dirige não é nenhum de nós, estudantes dos discursos religiosos que talvez
nem tenham a “fé” que no texto é um pressuposto. Então, a quem o texto é destinado?

a) A todos os usuários da internet.

b) Aos destinatários ideais (leitores implícitos), seguidores do bispo Macedo que, se não são membros, são ao menos simpáticos à instituição religiosa que ele dirige

e à sua teologia.

c) Apenas aos membros da Igreja Universal do Reino de Deus.

d) Apenas aos leitores simpáticos à Teologia da Prosperidade que usam redes sociais.

e) A todos os cristãos alfabetizados na língua portuguesa que possam compreender sua mensagem.

2. Volte ao texto da postagem para observar que ele fala de três lugares. Quais são eles?

a) Há o mundo, que supomos ser o nosso mundo real, lugar concreto em que nos encontramos, e há um Reino de Deus , que neste caso é difícil definir com precisão. Sem dificuldades
os dois lugares podem ser compreendidos pela oposição entre bom e mau. E há ainda um abismo , um espaço que parece ser naturalmente intransponível e que separa os dois lugares
anteriores..

b) O texto menciona o Reino de Deus, o Reino das trevas e a igreja.

c) No texto há dois mundos, um físico e um metafísico, um concreto, imanente e outro espiritual, transcendente, ideal. O terceiro lugar é o próprio texto.

d) Implicitamente o texto nos fala do céu e do inferno, assim como do mundo em que vivemos e decidimos para qual daqueles dois destinos queremos ir.

e) O texto fala do mundo, do monte e do abismo.

3. Ao tratar do “Reino de Deus”, o texto nos faz um convite indireto para ir à Bíblia. Neste caso, seria correto falar...

a) de um reino que é exatamente como um estado monárquico, um território politicamente delimitável que está sob o controle de um único soberano que o rede de maneira tirânica.

b) apenas do céu, de um extra-mundo em que Deus já é soberano, o destino de todos os humanos depois do fim dos tempos.

c) que, de uma perspectiva apocalíptica, isso significa que Deus logo viria para estender seu domínio também sobre este nosso mundo, que atualmente é disputado por diferentes
forças.

d) de uma ficção religiosa que não precisa ser levada em conta na análise literária contemporânea.

e) de um lugar físico que está localizado acima do nosso mundo e que será visível quando Deus se manifestar de fato.

4. Que papel assume o autor (Edir Macedo) no texto e na vida de seu destinatário por meio desse texto verbal?

a) O autor é claramente um oponente que revela diante do leitor o enorme abismo, o desafio que ele terá que enfrentar. Quer assim desanimar o leitor, fazê-lo desistir.

b) O autor é apenas um conselheiro sem autoridade legítima que espera ser um auxílio a mais na missão em que o leitor está envolvido.

c) O autor é um ministro de Deus que, como um anjo, oferece a saída, a solução dos problemas. Ele permanece anônimo e espera que sua voz seja ouvida como a de uma autoridade
divina.

d) O autor é apenas o transmissor de uma mensagem alheia. Ele extrai da Bíblia o conteúdo verdadeiro e reproduz em rede social para que o texto sagrado alcance o maior número
de pessoas possível.

e) O autor age como um adjuvante, como alguém que surge no meio de uma missão e reforça o valor da fé como um instrumento mágico, capaz de auxiliar o cristão a superar
eventuais desafios que podem impedi-lo de cumprir sua missão.

Resolução das atividades

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RESUMO
A análise literária estudada nas últimas aulas primeiro nos ajudaram a interpretar a Bíblia, a desenvolver nossas intuições, a aguçar nosso olhar hermenêutico atentando aos
detalhes dos textos lidos. Aprendemos que, apesar da originalidade de determinada narrativa, um bom número de padrões literários conhecidos podem ser identificados,
estudados, aplicados em novas histórias. Vimos assim como trabalham os narradores bíblicos que por tantas vezes nos levam a ouvir (por meio da ficcionalidade literária) a voz do
próprio Deus; vimos como os personagens bíblicos são caracterizados, hierarquizados, como são complexos e humanizados, como nos seduzem ou causam repulsa; vimos como as
histórias são contadas a partir de certos padrões, como seguem roteiros razoavelmente previsíveis etc. A aquisição desses novos modos de olhar para aqueles mesmos antigos
textos já seriam recompensas suficientes para todos os nossos esforços, mas nesta última unidade o instrumental metodológico apreendido foi aplicado ao estudo dos imaginários
religiosos cristãos e mostrou-se útil para pesquisas mais contemporâneas.

Vimos como a adesão de alguém ao cristianismo exige que se faça contato continuado com a narrativização da vida que dá forma ao imaginário religioso cristão. Seja pela leitura dos
textos bíblicos, pela audição dos sermões dominicais, pela passagem por cursos bíblicos, catequéticos, teológicos ou pelo simples convívio com outros cristãos, logo se aprende a dar
sentido à vida por meio de padrões narrativos que são fortemente dependentes das páginas bíblicas. Assim, cheios de fé e impregnados pelos padrões narrativos da Bíblia
domesticamos o caos, o destino, o imprevisível; assim controlamos nossos medos, caminhos firmemente em direção a um futuro que supomos nos reservar alegrias, prazeres,
recompensas. Isso só torna os estudos literários da Bíblia mais relevantes, mais decisivos para todos os interessados nos fenômenos religiosos.

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Material Complementar

Leitura
Guia literário da Bíblia

Autor: Robert Alter e Frank Kermode

Editora: Editora Unesp, 1997

Sinopse : O Guia literário da Bíblia é uma espécie de comentário que aborda os livros bíblicos a partir
de um olhar mais literário. Robert Alter é um dos organizadores, autor cuja importância para a leitura
da Bíblia como literatura nas últimas décadas é inquestionável e de quem já indicamos a leitura de A
arte da narrativa bíblica. Este Guia literário da Bíblia ganhou recentemente uma nova edição e serve
como obra de consulta para que, daqui por diante, vocês possam ler a Bíblia e encontrar apoio numa
obra de referência cujo olhar literário se aproxima daquilo que neste curso estudamos.

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REFERÊNCIAS
ALTER, R. A arte da narrativa bíblica . São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

ALTER, R.; KERMODE, F. (orgs.). Guia literário da Bíblia . São Paulo: Fundação Editora UNESP, 1997.

AUERBACH, E. Mimesis : a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva,2011.

ARMSTRONG, K. Em nome de Deus : o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.

BARROS, D. L. P. Estudos do discurso. In. FIORIN, José Luiz (org.). Introdução à linguística (Vol. 2) : princípios de análise. São Paulo: Contexto, 2003, p. 187-219.

__________. Teoria semiótica do texto . São Paulo: Ática, 2011.

DER breite und der schmale Weg. Wikipedia. Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Der_breite_und_der_schmale_Weg_2008.jpg >. Acesso em: 13 set. 2017.

ECO, U. Seis passeios pelos bosques da ficção . São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

FITZMYER, J. A. A Bíblia na igreja . São Paulo: Loyola, 1997.

GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica . São Paulo: Contexto, 2012.

ISER, W. O ficcional e o imaginário : perspectivas de uma antropologia literária. 2a ed. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013.

KUGEL, J. L. Como ler a Bíblia : um guia para a escritura ontem e hoje (vol. 1). São Paulo: Via Lettera (Povo do Livro), 2012.

LIBANIO, J. B.; MURAD, A. Introdução à teologia : perfil, enfoques, tarefas. São Paulo: Loyola, 2005.

MALANGA, E. B. A Bíblia Hebraica como obra aberta : uma proposta interdisciplinar para uma semiologia bíblica. São Paulo: Humanitas/Fapesp, 2005.

MARGUERAT, D.; BOURQUIN, Y. Para ler as narrativas bíblicas : iniciação à análise narrativa. São Paulo: Loyola, 2009.

PANASIEWICZ, R. Olhar hermético ou hermenêutico: fundamentalismo religioso, origens e desafios. Atualidade Teológica (PUCRJ), v. 29, p. 1-11, 2008.

RESSEGUIE, J. L. Narrative criticism of the New Testament : an introduction. Michigan: Baker Academic, 2005.

VOLLI, U. Manual de semiótica . São Paulo: Loyola, 2012.

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APROFUNDANDO
Agora abordaremos um texto chamado Pentecostes para todos: sua necessidade. Faremos observações de caráter literário aplicando especialmente a análise do esquema narrativo
canônico, estudado na Unidade 3. Veremos também que o leitor cristão tem por hábito ler os textos bíblicos de maneira literal e por isso aplica elementos extraídos das narrativas à
vida real.

O texto foi publicado em 1931 no periódico Mensageiro de Paz, da Assembleia de Deus brasileira. O autor é Emilio Conde, nome que costuma vir acompanhando de títulos
honoríficos como “Pai da Imprensa Evangélica” ou “O Apóstolo da Imprensa Evangélica Pentecostal no Brasil” (COSTA, 1985, p. 149). Nascido em 1901, Conde esteve envolvido
com os primórdios do movimento pentecostal em São Paulo, até que se mudou para o Rio de Janeiro e se tornou frequentador da Assembleia de Deus em São Cristóvão. No começo
da década de 30 ele já atuava no periódico, que seria publicado por décadas consecutivas pela Casa Publicadora da mesma denominação (CPAD). Em 1940, Emilio Conde passou de
colaborador a redator do periódico. Conde também compôs hinos cristãos dos quais 25 (alguns em parceria com outros compositores) se tornaram parte da Harpa Cristã e ainda
são cantados hoje em dia (COSTA, 1985, p. 149-160).

Quando o apóstolo São Paulo chegou a Epheso, a sua primeira pergunta não foi no sentido de saber se elles possuíam muito dinheiro para um templo, ou se mantinham bôas
organisações. Propoz-se apenas a perguntar:

“Recebestes vós já o Espirito Santo quando crêstes?” Estas palavras nos mostram, como o baptismo do Espírito Santo merecia um cuidado especial por parte dos apostolos e da
igreja primitiva, pois, consideravam elles, de summa importancia, receber essa dádiva preciosa [...] Muitos, contentam-se em dizer que são christãos. Mas, isto não basta. O homem,
sem um poder sobrenatural não póde vender o mundo e Satanas.

O christão, sem o Espírito Santo, terá derrotas successivas. Nós precisamos receber o Espirito Santo e toda a sua plenitude, para não sermos vencidos. Jesus disse aos seus
discípulos, que depois que o Espirito Santo descesse sobre elles, seriam Suas testemunhas.

Antes o eram, mas timidos e sem poder. Depois, é que seriam testemunhas reaes, cheios de ousadia e poder [...]

A experiencia nos tem mostrado, que os christãos que não receberam nem esperam receber esse baptismo, passado o momento da conversão, quando tudo parecia goso, começam
a enfraquecer: A paz dos primeiros momentos desapparece: a luz que parecia tão clara, não mais brilha; o ouro resplandecente transforma-se em ouro sem resplendor; a oração é
fraca; o dever converte-se em carga, e a adoração devida a Deus, em tarefa. (CONDE, 1931, p. 2)

Fazendo uma análise rápida das peculiaridades discursivas, diríamos que o autor age como um destinador que quer convencer seu leitor a experimentar um modo específico de vida
religiosa, um modo que, aproveitando o que acima defendemos, se caracteriza pela adequação aos elementos narrativos extraídos da tradição bíblica. Há três elementos que ele
pretende transmitir-lhe: 1) que na Bíblia há um batismo com o Espírito Santo, 2) que esse batismo não se limita às páginas, mas está disponível para os cristãos de hoje e que 3) este
é um elemento indispensável para que todos os cristãos alcancem seus objetivos, ou seja, é uma competência que se deve buscar para obter a vitória, conquistar o objeto de valor,
obter a sanção positiva de Deus, o grande destinador.

Para que o texto seja bem-sucedido, Conde age segundo a tradição religiosa e emprega a Bíblia como documento de autoridade inquestionável para fazer a apresentação do tema.
Da Bíblia Emilio Conde seleciona uma passagem em que o célebre apóstolo Paulo se preocupa com o batismo com o Espírito Santo de discípulos de Jesus que ele não conhecia até
então. Depois o autor defende rapidamente que o tal batismo não é um elemento de ficção literária, que pode se manifestar na vida de cristãos concretos e que tal fenômeno não
estava limitado aos dias em que o apóstolo viveu. Ou seja, Conde defende que tal fenômeno fornecedor de competência segue se manifestando na atualidade.

Transferindo elementos do mundo do texto para o do leitor, o autor age como um destinador e intimida seu leitor para leva-lo à aceitação de sua mensagem. Ele diz que “O homem,
sem um poder sobrenatural não póde vender o mundo e Satanas”, que “sem o Espírito Santo, terá derrotas sucessivas”, que “Nós precisamos receber o Espirito Santo e toda a sua
plenitude, para não sermos vencidos”, que “christãos que não receberam nem esperam receber esse baptismo, passado o momento da conversão, quando tudo parecia goso,
começam a enfraquecer” etc. É fácil notar que o autor simplesmente não faz nenhuma separação entre o mundo do texto e o real; ele supõe que tudo o que no texto é possível pode
ser experimentado fora dele; isto é o que, conforme vimos anteriormente, o que caracteriza a leitura fundamentalista. Assim, ele nos insere num mundo literário onde Satanás e
seus demônios atuam como opositores de Deus e seus anjos; um mundo em que todos devemos assumir um contrato com Deus e obedecê-lo fielmente até o último dia, um mundo
ameaçador que, para ser vencido, é preciso contar com a ajuda divina por meio de seus poderes mágicos.

PARABÉNS!

Você aprofundou ainda mais seus estudos!

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EDITORIAL

DIREÇÃO

Reitor Wilson de Matos Silva

Vice-Reitor Wilson de Matos Silva Filho

Pró-Reitor de Administração Wilson de Matos Silva Filho

Pró-Reitor de EAD William Victor Kendrick de Matos Silva

Presidente da Mantenedora Cláudio Ferdinandi

C397 CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ . Núcleo de Educação

a Distância; LIMA . Anderson de Oliveira;

Bíblia, Literatura e Linguagem. Anderson de Oliveira Lima;

Maringá-Pr.: UniCesumar, 2017.

31 p.

“Pós-graduação Universo - EaD”.

1. Bíblia. 2. Literatura. 3. Linguagem EaD. I. Título.

CDD - 22 ed. 230

CIP - NBR 12899 - AACR/2

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Diretoria de Design Educacional

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Fotos : Shutterstock

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