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A PRESENCA DO AUTOR EA POS-MODERNIDADE EM ANTROPOLOGIA ‘Teresa Pires do Rio Caldeira Ja vai longe 0 tempo em que o antropslogo, depois de passar al- ‘gum tempo junto a um grupo estranho, escrevia textos em que retratava culturas como um todo e em que tranquilamente afirmava como os ‘Tro- briandeses vivem, 0 que os Nuer pensam, ou no que os Arapeshi acredi- tam. O antropélogo contemporineo tende a rejeitar as descrigdes holisti- cas, s¢ interroga sobre os limites da sua capacidade de conhecer 0 outro, rocura expor no texto as suas diividas, ¢ o eaminho que o levou a inter- pretaglo, sempre parcial. As regras implicitas que regem a relagio entre autor, objeto € litor, ¢ que permitem a produgao, a legibilidade e a lepiti- midade do texto etnogréfico, estio mudando, Esta mudanga estd associada 0 processo de autocritica por que passa a antropologia hoje, em que os ais variados aspectos de sua pratica vem sendo questionados e descons- truidos. Neste texto, pretendo abordar alguns aspectos da mudanga nas con- digdes de produgao do trabalho antropol6gico, ¢ ver a que novas alterna- tivas as erticas estao levando, E vou fazer isso a partir de uma perspectiva especifica: a do papel do autor no texto etnogritico. 133 APRESENCA DO AUTOR E A POS-MODERNIDADE EM ANTROPOLOGIA Presenga ambfgua Analisando a fungao do autor na moderidade, Foucault (1984) mos- {ra que cla nao se da sempre da mesma mancira em diferentes sociedades ccm relacao a distintos discursos. Assim, desde o século XVII, nas socie- dades ocidentais, ‘0s discursos cientificos comecaram a ser recebides por eles mesmos, no anonimato de uma verdade estabelecida ou serapre redemonsird- vel; era a sua pertinéncia a um conjunto sistemético e nda a refere cia ao individuo que os produclu que estabelecia a sua garantia. (..) Da mesma maneira, discursos lrerdrios passaram a ser aceitos apenas quando dotados da fungao de autor. (1984:109)' Se tomarmos essa caracterizagao como a descrigio do que ocorreu 1a definigao do papel do autor nos discursos cientificos, fica evidente a posicao peculiar ocupada pela antropologia. Ao contrério do que aconte- ce em outras ciéncias ¢ mesmo nas outras ciéncias sociais, em que 0 ana- lista € pesquisador procura 0 mais possivel estar ausente da andlise ¢ da exposigio dos dados, como meio de garantir uma posigo neutra e objet ‘va legitimadora da cientificidade. o antropélogo nunca esteve ausente de seu texto e da exposicéo de seus dados. Ao contritio: produtor ele mesmo e seus dados,instrumento privilegiado de pesquisa, a presenca do antro- ‘pologo profissional tanto no trabalho de campo quanto no texto etnogr- fico foi essencial para a constituigao do conhecimento antropoldgico. Ba- seando a sa produgao de conhecimento na experiencia pessoal de uma outra cultura, a antropologia legitimou seus enunciados na formula "et estive la, vie, portanio, posso Falar sobre 0 outro”. Trabalhos como os de Clifford (1983) e Marcus e Cushinan (1982) mostram a importancia dessa formula na construgio da autoridade etnogriica ‘Mas que tipo de presenga € essa? Sepuramente iio & 0 mesmo tipo de presenga do eseritor que cria textos literrios de fego. A fico antro- poligica (Geertz 1973:Cap.) tem algumeas caraceristicas peculiares: ela pre- {ende, de uma maneira objriva(cientiica, diriam alguns) fazer a ponte entre ddois mundos culturais, revelando para um deles uma outra realidad que $6.0 antropélogo, este sujeito que experimentae traduz, conhece. Presen- cca ambigua, portanto, que precisa, ao mesmo tempo, mostrar-se (revelan- do a experigneia pessoal) ¢ esconder-se (garantindo a objetividade). Esta ambigilidade é a marca da presenga do antropologo nos textos" A critica contemporainea desenvolvida nos Estados Unidos ao mo- delo etnogrifico analisa a mancira pela qual os antropélogos tm apareci- do em seus textos desde Malinowski alé os anos 80. Ela vai dizer, por um lado, que se trata de uma presenga excessiva. Na verdad, seria atnica pre- senga real nos textos, ainda que ocullada. Ela apagaria as vozes, a in pretagdes, os enunciados daqueles sobre quem fala. Na melhor das hip6-§ teses, seria uma presenga que subsume tudo & sua prépria voz. O outro s6 existe pela voz do antropélogo que esteve li, viu e reconstruiu a cultu- 13 (1) Tess mages ear eans igen a realaram Sac eee ESngasaee es cae tS Silanes de dts (HA? Gere Cae cesses par Rati ee paucoem oma os. 8 ‘a nativa enquanto totalidade em seu texto. Mas essa presenga excessiva do antropélogo corresponderia a uma auséncia: a do questionamento do antrop6logo sobre a sua insergio no campo, no fexto € no contexto em que escreve. Por isso, a mesma ca vai acrescentar: presenga insuficiente, Na ntemente critica a respeito de si mesma, a res 10 de representagdes, presenga que tende a ignorar que o conhecimento aniropol6gico produz-se, de um kado, em um, processo de comunicago, marcado por relagbes de desigualdade e po- der, ¢, de outro, em relagio a um campo de forgas que define os tipos de enunciados que podem ser aceitos como verdadeiros, A critica americana contemporanea, a0 analisar ¢ criticar o tipo de autoria ¢ de texto que marcaram a antropologia nos tiltimos sessenta anos, {quebra as condigdes que permitiam a producdo de mais etnografias den- tro do mesmo género, ¢ a legibilidade das antigas, a nao ser de modo his- \orico ¢ eritico. Ao mesmo tempo, prope uma série de novas allernativas Antes de analisi-las, contudo, convém esclarecer © contexto em que a eri vem se desenvolvendo, ¢ quais serao em detalhe os seus arguments. A critica americana pés-moderna Embora as anslises elaboradas nos Estados Unidos sobre a etnogr: fia cssica nao esgotem todo 0 universo da crftica — e muito de su ins ragio tedrica ¢ de origem curopéia (Barthes, Foucault, Bakhtin, entre ou- tros) —, vou deter-me aqui na andlse elaborada por antropélogos ameri- ccanos, ou melhor, por “meta-etndprafos” (Rabinow 1986, Geertz 1988), aqueles que tomam como seu “outro” os textos etnogriticos®. Essa enti- ca realiza-se em um momento em que tanto 0 contexto em que se dé a pesquisa de campo, quanto as referencias teéricas mudaram, Comego pelo contexto. O modelo elissico de etnografia — que se estabeleceu a partir dos anos 20 —desenvolveu-se no ambito do que tem sido chamado de enconiro colonial (Asad 1973). Os grupos estudacios pe- lo antropdlogo eram, de um modo geral, poves coloniais. Sobre cles, © aniropélogo eserevia para os membros de sua propria sociedade (a metns- pole), sem colocar em questo o carter da relagdo de poder que se esta- belecia entre essas duas sociedades. Esse macrocontexto em que se dava © trabalho antropoligico obviamente madou. O desmantelamento dos im- périos coloniais, «reestruturaydo das relagdes entre as nagbes dos chama- 4os Primeiro ¢ Tereeiro Mundo, ea atengio para as sociedad complexas — as dos antropélogos — mudram as eondigoes em que se faz0 trabalho de campo € 0 contexto em que se esereve sobre 0 outro. O antropélogo nao defronta mais membros de culturas isoladas ou semi-isoladas, mas ci- dadios de nagées do Terceiro Mundo que se relacionam por complexos caminhos cullurais e politicos com a nacio de onde vem o antropélogo (Ou entao defronta membros de sua prépria sociedade. Bs . Seon Bee ‘Peete roe whee te Comers {tego espectca, com Soa Seamus Sealy ety Sp ende's Snogria oxtipos Ue estaioe de oe Essas transformagdes no macrocontexto tém levado ainda & uma mu- danga nos temas pesquisados e na maneira de encari-los. Os antropélo- ‘20s contempordneos se preocupam com transformagdes, com histéria, com sineretismo e encontros, com praxis ¢ comunicagdo,e prineipalmente com relagbes de poder’. Apesar dessas transformagdes, contudo, ¢ interessan- te observar que os antropdlogos americanos estudam predominanteme te culturas estranhas & sua propria, e que nos artigos criicos de que estou tratando "o outro" continua a ser pensado como alguém do Terceiro Mundo « freqtientemente membro de uma cultura sem tradigao eserita ou que nido produz conhecimentos sobre si mesma. Mas, como ja disse, a mudanga foi também tedrica. As discussdes epistemolbgicas sé modificaram, e essa mudanga nio € apenas resultado da transformagao do contexto em que se dé a pesquisa de campo, mas se sobrepde a cla: as diividas nao sto apenas sobre como representar ex- _povos coloniais, mas sobre representagio em si. As novas discusses teb- ricas se definem no contexto intelectual das culturas de que fazem parte 198 antropdlogos e se expressam nos debates sobre modernidade e pés- ‘modernidade. A “meta-antropologia" nio se explica simplesmente pela der- rocada do colonialismo, mas ¢ a expressdo de um estilo de critica pés- ‘modema em antropologia (Rabinow 1986)". Para entender a critica con- vvém rever rapidamente como ela vem construindo em seus textos a ima- ‘gem do que seria a “etnografia clissica”, ou seja, aquela que se firmou & partir dos anos 20. O historiador James Clifford — para quem o termo meta-cindgrafo {oi cunhado— ¢ seguramente uma das figuras centrais no processo de des- consirugao da etnografia cléssica. Em um de seus mais importantes traba- thos (1983) cle tenta mostrar os dispositivos através dos quais os antrop logos criaram em seus textos uma autoria legitima para falar sobre os ou- tros, uma “autoridade ctnograti Antes de mais nada, segundo cle, foi necesséria @ constituigao da figura do antropélogo-cientista’. Era o profissional em trabalho de cam- ‘po, cuja imagem contrastava com a do antropélogo de gabinete, de um lado, ¢ com a do missionério ¢ agente colonial, de outro. Ele realizava seu trabalho de campo segundo regras especificas, ¢ legitimava seu texto evo- cando a experiéncia que tinha de uma outra cultura, O seu modo predo- ‘minante de autoridade do trabalho de campo modemo esta marcado: "voce esta ld, porque eu estive 1a" (Clifford 1983: 118). ‘A lepitimagao da figura do antrop6logo profissional, consegtida ba sicamente por Malinowski (1976[1922)) vei junto com a leptimagao de umn método para o conhecimento de “outras culturas": a observagao partici- pante. A idéia que lezitima 0 método € a de que apenas através da imersa0 ho cotidiano de uma outra cultura o antropdlogo pode chegar a compreendé-Ia, O antropélogo profissional deve passar por um process de transformagao pelo qual ele, idealmente, torna-se nativo, Mas se essa transformagao € condigo essencial para o conhecimento, ela nao € sufi- 136 (4) pata a FEST) we ‘mom ae (2. cava 4 ear gee fae s cena eon ha iat nae tsi aoa get ec BESET Batra et Hens Pet ier aoe ia So pecs Se nee Sea wae Eee ead Soni Asterpeseriam (anScekie 18 NOVOS ESTUDOS N° 21 - JULHO DE 1988 ciente, A experiencia cotidiana nao é sistemtica,e até que a cultura apare- a retratada coerentemente no texto etnogrsfico, um longo caminho hé {que ser percorrido. Naquele que pode ser considerado como o texto-fundador do mé- todo da observagao participante — a Introdugzio ao Argonawas do Pacifi- co Ocidental —, Malinowski fala Sobre isso a0 se referir & "imensa distin- ia entre a apresentagio final dos resultados da pesquisa e © material bruto das informagies coletadas pelo pesquisador através de suas proprias ob- servagies, das assergdes dos nativas, do caleidoscépio da vida tribal” (1976:23). A experiencia é necesséria para o conhecimento, mas nao deve permanecer em estado bruto. Do mesmo modo que o antropélogo tem {que se transformar ao entrar em uma outra cultura, ele tem que reelaborar sua experiencia ao sair dela, de modo a transformd-la em uma descrigao objetiva (cientifica) da cultura como um todo. Esta reelaboracao é inspira- da por uma teoria da cultura especitica (Como mostra Clifford (1983), a legitimagao do trabalho de campo ‘como o método de pesquisa antropol6gica associa-se & formulagao de uma tworia que concehia as culturas (ou sociedades) como unidades discretas, cexistentes sob forma unitaria e acabada, passiveis de ser observadas e co- nhecidas — desde que olhadas pelos olhos certos, os olhos treinados do antropslogo profissional. Culturas eram totalidades que deveriam ser re- ‘compostas pelo antropélogo e descritas como tais, embora nao se apre- sentassem & experiéncia dessa maneira. Além disso, sendo as culturas to- dos complexos dificeis de serem apreendidos em um perfodo relativamente ccurto de tempo, os antropélogos tenderam a se fixar em temas ou em ins- titwigdes. Assumiu-se, assim — como mostra Clifford (1983) —, que partes ‘erum microcosmos ou analogies do (odo e que, consequentemente, atra- vés do estudo de partes — o kula — chegava-se ao conhecimento do todo —a cultura trobriandesa., Finalmente, a €nfase na observacso participante ‘como 0 méiodo etnogrifico associou-se 2 idéia de que as culturas deve- iam ser estudadas e representadas sineronicamente: consagrouse nos 1eX- os 0 uso do presente etnogrifico”. Os dados obtidos no trabalho de campo feito ¢ reelaborado segun- do a concepgao resumida acima foram expressos em um novo géncro li ririo, o realismo ctnogréfico, "um modo de escrita que pretende repre: sentar a realidade de todo um mundo ou forma de vida" (Marcus ¢ Cush- ‘man 1982.29), Para que esse efeito de realidade holistica fosse obtido, as ctnografias clissicas usaram uma séric de convengdes textual Cushman (1982) apontam nove delas. Primeiro, nas etnograt o texto esta cm geral estruturado seqiencialmente, apresentando as des nas quais considerava-se que as culturas (ou sociedades) estavam divi- didas. Segundo, 0 antropélogo, para garantir a cientificidade e a neutrali- dade de seu texto, retirava-se do texto. Simples observador, nao usa a primei Fa pessoa (et observe’ que eles fazem isso ou aquilo. (Nae er ge ae grew onken sit Sate feeson 18 Par us aie do ‘Sore pea ‘psn dts em idiot Fanon vs [APRESENCA DO AUTOR F A POS-MODERNIDADE EM ANTROPOLOGIA ‘autoridade em uma terceira pessoa coletiva (cles so isso, eles fuzem aqui- 10)". O resultado desse seu afastamento do texto — para o qual eu volta ‘ei adiante — € paradoxal,jé que a legitimag0 da autoridade depende tam- ‘bém da exposigio da experitncia do antropdlogo. Essa exposigao — a ter- ceira convencio — ¢ relegada a posigdes marginais no texto, como apen. ‘dices, preficios, notas de rodapé etc, ¢ ¢ acompanhada da publicagao de fotos, mapas e desenhos, que reafirmam o sentido de realidade e a presen- ‘ca do antrop6logo no lugar pesquisado, Quarto, oindividuo nao tem Iu ‘gar na etnografia realist fala-se do povo em geral, ou de individuos tipi- cos. Quinto, para enfatizar o cardter de realidade das vidas retratadas, ‘acumulam-se detalhes da vida cotidiana. Sexto, pretende-se apresentar no ‘© ponto de vista do antropéloge, mas o ponto de vista nativo. idéia que se assenta no pressuposto de que esse ponto de vista existe pronto Ié para ser representado aqui (no texto). Sétimo, apesar de cada trabalho de cam- ‘po ser muito especffico, nas etnografias tendeu-se a peneralizagdes: 0 que ‘ra particular rapidamente vira tipico, ¢ assim se distancia a experiencia de campo (sempre particular) do texto. Oitavo, usa-se 0 jargao. exigéncia cientifica, Nono, faz-se a exegese de termos © conceitos nativos — € reafirma-se a competéncia lingQistica do antropsloz0. 5 erfticos pos-modemos argumentam que através do uso das con- ‘vengdes mencionadas acima, inspiradas pela teoria que concebia as cultu- ras como totalidades e pelos requisitos de cientificidade que obrigavam a reelaboracao da experitncia de campo, 0 que se acabou produzindo nos textos foi uma visdo deformada tanto das culturas, quanto da experi¢neia do antrop6logo junto a outras culturas. Muito estaria sendo perdido ou sendo substancialmente modificado na transformacao que ocorre entre & pesquisa de campo ¢ 0 texto. O que era uma experiéncia de campo frag- rmentada € diversa acaba sendo retratado como um todo cocrente c inte- grado. O que era um processo de communi entre © antropélogo € seus informantes, campo, graficos de parentesco, mitos etc.) que era um didlogo, vira um monélogo encenado pelo etnégrafo, voz inica que subsume todas 2s ou: tras ¢ sua diversidade 8 sua pripria elaboragao. © que era interagao vira descrigao, como se as culturas fossem algo pronto para ser observado & escrito (@ por iss0 nos textos as imagens sao sobretudo Vistas, em detr- ‘mento de imagens que enfatizem a fala ou a audio (Fabian 1983). Apagam- se as relagdes inter-pessoais © generaiza-se o nativo. Para usar uma expres- sdo de Clifford (1983), 0 que era discursivo vira puramente textual. Em suma, nesse processo de transformagoes 0 cardter da experién- cia cultural & completamente moditicado . Apesar de ela ser usada como re- {rica Iegitimadora do conhecimento do antropslogo, nos textos ela éne- zzada enquanto tal. A experiéncia que aparece mencionada nos textos 56 pode ser uma evocagao lezitimadora: 0 que conta como send a cultura € a descrigdo final, obtida através da reelaboragao da experigncia inspira da pela reflexio tedrica, Assim, a disjungao entre experiéncia e texto, 0 138 Bastogenie ee rete cts cee Bisa NOVOS ESTUDOS N21 roquisito da experiéneia e da transformagio da experineia de campo em dlescrigio da cultura como um todo esto associados 2 ambigttidade da pre- senga do antropélogo nos textos que mencionei anteriormente. A expe- riéncia pessoal ¢ evocads para legitimar os dados, mas é afustada para legi- timar a andl «que separam a experiéncia de campo do texto todas as convengdes usadas para escrever a etnografiarealista scabam tendo um efeito geral: o de estabolecer uma distancia entre oan- tropélogo (¢ sua cultura) e a cultura do grupo estudado"”. Mas esse dis- tanciamento no é conseqiéncia completamente desavisada ou aleatSria do processo de construgio do conhecimento antropolégico. E parte do que Se pretendia conseguir com esse conhecimento a partir dos anos 20. Segundo Marilyn Stathern (19878) separago eo distanciamento entre observador e observado (estas cuuras) marca introduglo do mo- demismo na antropologia A divisdo entre observador e observado foi sempre consciente. O que caracterizou 0 modernismo na antropologia foi a adogdo dessa divi- do como um exercicio tedrico através do fendmeno do rrabatho de campo. Quando ofa) antropélogo(a) "entrava” em wma ouara culu- ra, ele ou ela levava consigo essa consciéncia, Isto € 0 que foi inven- tado pelos pesquisadores de campo da época de Malinowski. Qual- quer que seja a natureza de suas experiéncias de campo, iss foi visi- velmente reinventado na maneira pela qual as suas monografias se organicaram. (Sirathern 1987a:258) © antropstogo no campo tinha que idealmente tornar-se um nati ‘vo, mas essa transformagdo era sempre provisoria, A reelaboracso da ex- periéneia reinitoduzia a distancia entre as cas culturas. Segundo Strathern (1987), esse distanciamento estd na base da criagao de um novo contexto (diferente do do evolucionismo) para a circulagao do conhecimento an- tropoldgico, que se fez pelo estabelecimento de uma relagao especifica nio 6 entre eseritor e objeto, mas também entre estes ¢ leitor. Para explicitar a novidade deste contexto eriado por Malinowski, Strathern (19872) contrasta seus procedimentos com os de Frazer. No texto de Frazer, a linguagem era familiar — e nao cientiica—, 0 contexto a que se referia, 0 mesino de seus leitores. Nao Ihe ocortia representar 0 ponto de vista nativo: as diferengas culturais eram tiradas de seu contexto ori nal e trazidas para dentro do mundo do antropologo e de seus leitores. Nao custa lemibrar: © paradigma de Frazer era 0 evolucionismo; 0s outros, apenas diferentes estigios do eu. A novidade de Malinowski e dos antro- pélogos que Ihe seguram foi justamente a de criar um novo contexto para deserever os outros. Nesse novo contexto, o outro € a sua cultura eram distanciados e definitivamente apresentados como diferentes. A diferenca no era mais ce estos de evolugao, mas de perspectiva. O ponto de vis- 139 (10) Os mecanmcs e ‘is Soo a a ie Fab 983, pr Senn ab oge Simo puringt wk ooh de ‘alee 0 tahatho ge imp. ncs coc ‘sera onli Als cncpaisn, ‘Bech de eps Sia laneocne inugpolage ese be Poco gana Save um ras Bo ‘RISE Sov hana Say d conenpren Se dena eee (een fee seein ds sr ‘Brave ete pen {Cabra dee sone Pemtmpotogics iss APRESENCA DO AUTOR FA POS-MODERNIDADE FM ANTROPOLOGIA 1 nativo, ao se reproduzir 0 seu contexto especffico, nao poderia mais ser incorporado ao da cultura do antropslogo c de scus Ieitores. No maximo, ‘5 pontos de vista poderiam ser justapostos pelo antropélogo, este ser pri- vilegiado que se movimenta entre dois mundos, que conhece o estranho, descobre seu carster corriqueiro, e traduz. essa perspectiva diferente para 1s leitores de sua prépria cultura. A partir de Malinowski, os antropslogos ‘tém que criar em seus textos uma consciéncia sobre a diversidade do mun- do. Eles tém que criar uma "ficgdo persuasiva" (Strathern 1987a:257) so- bre um outro que é radicalmente diverso. relativismo cultural é uma das consequéncias centrais da criagao esse novo contexto e, nesse sentido, marca do moclemnismo em antropo- Jopia, Entretanto, o relativismo cultural, a0 marcara diferenga entre as cul- turas, ao enfatizar a unidade de cada uma delas e a impossibilidade de que uma fosse avaliada em fungio dos valores e da visio da outra, acabou pa- radoxalmente dificultando que os antropélogos trabalhassem com 0 fato dia diferenga de uma manera que nao fosse para acentuar a distancia entre as culturas. As diferengas acabaram sendo 10 marcadas que ficou cada vez ‘mais dificil fazer com que uma cultura falasse a outras em termos eriticos. ‘A dentincia do etnocentrismo que caracterizou a antropologia modernista que veio junto com o relativismo cultural também teve 0 mesmo efeito. Desse modo, a possibilidade de critica cultural, uma das bases em que se assentou a antropologia cléssica e que foi de fato exercida nos seus pi :eiros anos (por exemplo, na critica ao racismo) acabou perdendo inten- sidade. Ela sempre continuou no horizonte da antropologia, mas foi mui- to pouco praticada — a énfase no entendimento das culturas nos scus pr prios termos ¢ o distanciamento dos contextos culturais acabaram brecan- do suas possibilidades. Alternativas pésemodernas Tentando resumir as criticas elaboradas pelos antropélogos pos- ‘modernos amerieanos, podemos dizer que elas incidem basicamente so- bre dois aspectos. De um lado, tentam revelar os dispositivos pelos quais eindgrafos classicos construiram seus textos de modo a eriar uma des crigdo que, se se legitimava no ato de que os antropologos tinha rigneia de uma outra cultura, na verdade negava essa experiencia enquan- to tal nos textos, apresentando apenas sua reclaboracao: as culturas des critas como totalidades auténomas e integradas. De outro lado, apontam a produgao do distanciamento entre as culturas e criticam a auséncia de ‘uma perspectiva critica em relagdo nao apenas as culturas estudadas, mas 2 relagdo dessas culturas com as culturas dos antropslogos, e cultura dos antropélogos em si. As altemativas propostas pelos pés-modernos tenta~ ro reinventar esses dois aspectos: os textos e a critica cultural. Entretanto, esses dois aspectos nio recebem a mesma énfase nos anigos crticos. A maioria das altemativas pds-moseemas 2 antropologia nao se refere a discusses sobre o contexto politico em que ela ocorre, ou as 140 —________NoV0 ESTUD0S N"21 - JULHO DE 1988 possibilidades ertticas da antropologia em relacio 3s culturas das socieda- des do antropélogo ou as culturas do Tereeiro Mundo que ela continua a estudar. As alterativas so basicamente textuas:referem-se a como en- contrar uma nova maneira de eserever sobre culturas, uma maneira que incorpore no texto um pensamento & uma consciéncia sobre seus procedimentos ‘A reflexdo sobre esses procedimentos ¢ sua incorporacio a0s tex- {os nio surgiu obviamente com os pos-modernos, mas esté presente em seus anlecessores, os antropslogos hermeneutas representados por Cli ford Geertz. A antropologia interpretaiva, concebendo as culluras como textos, andlise antropolégica como interpretagio sempre provis6ria, se- ‘uramente contibuiu para estranhamento da autoridade etnogrética clis- sica. No entanto, segundo os eriicos pés-modemnos (Clifford 1983, Mar- cus e Cushman 1982, por exemplo) seu rompimento com 0 modelo ante- ror € parcial: ela questiona o processo da produgaio de interpretagBes, mas iio rompe com a separagdo radical entre observador e observado e suas culturas. A interpretagio sera ainda sobre uma outra cultura entendida co- mo entidade autOnoma e separada do antropdlogo, ¢ uma atividade que reelabora a experigncia e recria a totalidade. Os pés-modernos vo tentar romper tanto o cariter de separacio das culturas, quanto o de recriaca0 4a totalidade, Para eles a etnografia nfo deve ser uma interpretaclo sobre, mas uma negociago com, um didlogo, a expressdo das trocas entre uma rmultiplicidade de vozes. Quem melhor resurniu esta alternativa foi James Clifford. Um modelo discursivo da prética emogréfica dé preeminéncia a in- tersubjetividade de toda fala, ¢ ao seu contexto performative ime- diato...As palavras da escrita emogréfica...ndo podem ser construt das monologicamente, como uma afirmagao de autoridade sobre, ow interpretagtio de uma reatidade abstrava, rextwalizada. A linguagem da emografia & impregnada de outras subjerividades e de ronalidades comtextualmente especificas. Porque toda linguagem, na visto de Bakhuin, € "uma concresa concepedo heterdglora do mundo”. (Clif- ford 1983:133) AA proposta é, enti, escrever etnografias tendo como modelo o did~ logo ou, methor ainda, a polifonia. Ter como modelo nao significa neces- sariamente transcrever dilogos, embora alguns autores tenham interpre: ‘ado isso literalmente (Dwyer 1977, 1982). A ida é representar mui es, muitas perspectivas, produzir no texto uma plurivocalidade, uma *he~ {eroglossa”, e para isso todos os meios podem ser fentados: citaydes de depoimentos, autoria coletiva, "dar vor ao povo” ou 0 que mais se poss imaginar. O objetivo final, no que diz. respeito ao autor, seria fazer com que ele agora se dilusse no texto, minimizando em muito a sua presenga, dando espago aos outros, que antes s6 apareciam através dele. "Autoria dis- M4 [APRESENCA DO AUTOR FA POS-MODERNIDADE EM ANTROPOLOGIA persa (Marcus © Cushman 1982, Clifford 1983) ea expressio que se usa para descrever este processo que corrigiria 0 excesso da presenca do an- Lropélogo nos textos. Esse processo vem junto com uma mudanga no conceito de cultu- rie do que 6 possivel representar nas etnografias. (0 prinetpio da produgdo texmal dialégica) situa as interpreragdes cul- turais em diferentes contextos intercambidveis € obriga os escritores encontrar diversas maneiras de apresentar realidades, que so de fato negociadas, como inter-subjedvas, cheias de poder e incongruen: tes. Nesta visdo, “cultura” é sempre algo relacional, uma inscrigao de processos comunicativos que existem, historicamente, entre sujeitos em relagoes de poder. Assim que 0 dialogismo e a polifonia sao reconhecidos como modos de produedo textual, a autoridade mo- nofonica é questionada, aparecendo como uma caractertstica de wna ciéncia que pretendew representar culturas. (Clifford 1986a:15) A discussdo chega, assim, ao seu limite. O antropdlogo nao se en- ‘contra mais numa situacao privilegiada em relagdo 4 produgao de conhe- cimentos sobre 0 outro, Ele nao é mais aquele que reelabora uma expe- riéncia para explicitar a realidade de uma cultura com uma abrangéncia e uma coeréncia impossivel para aqueles que a vivem no cotidiano. O an- tropdlogo nao é mais um sujeito cognoscente privilegiado. Perdendo o sta- tus de sueito copnoscenteprivlepiado,oantropélogo € igualado ao nali- ¥o e tem que falar sobre o que os igual: suas experiéncias cotidianas. E por isso que se requer que oeindgrafo reproduza o mais possivel em seus textos a sua experiéncia tal qual vivida no campo, endo tal qual foi re- claborada depois dele Essas experiéncias de campo suo basicamente di- versificada, Se os etndgrufos cissicos sabiam diss, areditavam que no processo de relaborugao poderiam ir além dessa diversidade de modo a reconstrur a ttuidade. Os antrop6logos ps-modernos, contudo, J20 valor de objetvidade & dversidade, pressupdem sua irreduibilidadee ne- gm a possbilidade de reconsiruir uma tolalidade que dé sentido a todas as posigdes diversas. A diversidade ietive] de experiéncias 6 cntio, 0 dado com quco antropslogo pés-modemo tem que tabular e achar meios de representar. ‘Nesta sitiacSo, to o que 0 antropSlogo pode fazer em seus tex- tos 6 inscrever processos de comunicagao em que ele € apenas uma das nuts vozes. AS vores sto todas equiparadas: o que se representa slo st jello individuals © nfo papéissociais —dos quais um poderia sero do antrop6logo. Assim, o etndgrafo pode evocar, sugerir, provocar, ironizar, mas nao descrever culturas''. Finalmente chega-se ao lado oposto da et- noprafaclassen autor nao se esconde para afimar sia auoridadecien- tics, mas se mosira para dispersar sua atordade; nao analisa, apenas s- sete provoca. Com isto, aconcep¢zo do leitor mada racicalmente: ele 1 Wy sereone innin Aer Strahan 19872 NOVOS ESTUDOS N° 21 - JULHO DE 1988 nao 6 mais aquele que se informa, mas deve sr agora participant ativo hi construgdo do sentido do texto, que apenas sugere conexdes de sentido. “Antes de mais nada, 6 preciso que se dign que no so dos os er ticos p6s-modernos que reiteram este modelo, Uma critica a ele pode set encontrada em Rahinow (1985 e 1986). Ela € importante porque permite nos trazer de Volta sepunda dimensdo da eitica pés-moderna que men- cionetanterormente a cimensdo poitica ede erties cultural que deveria estar presente na antropologia. uma constante nos textos de autores p6s-modernos a mengio & perspectiva politica, Nao dea de ser sigificativo, neste sentido, o tuo 4a coleined que rene os mais importantes tsricos desta tendéncia Wri ting Culture — The Poetics and Politics of Euhnography (Ciford e Marcus 1986). A impressio que se tem da leitura da maioria dos textos, contudo, 6 ade que poltca no caso & basicamente una polftica do texto. Discte- se sobre o estilo © opetes textuais em detahes, 2s vezes obsessivos, ms as questdespolitcas so apenas sugcridas, Na verdade,talver clas sjam astmidas como dads, c pés-modemisicamenteinvocadas no texto alra- vés de mengdes A erlica 40 colonalismo, ou as relagdes de poder ene pesqulsadore informantss. Mas nfo se vai além de evocapdes ede men- f6es genéricas em que se assume indietamente que uma auforidade era seria melhor poryue mais veradeira e superior politicaments (Rabi now 1985:7). Seguraments a etnografia 6 sempre escriae ¢txtualmente que ela tem que enfrentar seus problemas polis. No entanto, queso 6 saber se 6 alravés da forma que ela pode enfrentar problemas poticos. Mats ain- da, se é através de uma forma que dspersa a auloria €,portanto, 0 peso da visto do ator, que ela pode tanto conseguir formlar uma eta cule tural, quanto expresar uma posigo pofica Poe-se mesmo chegar a per guntar se a mudanga na concepgdo do autor e a produgio de um novo tipo de conhecimento sto apenas ou basicamente um efeito textual, ou se a produsio de um novo tipo de texto em elnografia sera suficiente pa- ra produzir um novo enquadramento do autor ede seu conhecimento, Rabinow (1985) no acha que seja possive passr sem una discus- io espectica da dimensdo poltica. Para ee, "poltica, experimentagdofor- ral eepstemologia podem ser vriveis independents, .(c) a associagao de experiments formas Je vanguarda com uma policu progressistacon- tina questions!” (19856), Experimentostextuas podem bre novas pos- sibildades mas, como diz Rebinow, nfo gare nada (p. 8). Teorcamen- {e, 0s autores podem escolher qualquer estilo, qualquer modo de orga ‘igo de texto, porque em si mesmos "eles nao nos oferecem nenbuma frantia, ado contém nenhur poder secret, no fornecem neluma se nha (password) textual para a verdad ot a potica”(1985:8) Para Rabinow, a discussio textual nunca vai se sustentar por si s6 Ela dover estar alin a uma andlse como aque é fet por Burd (1983), € que tenia localizar autores em iastiigdes ores, textos einstitigde 143 ‘num campo epistemoligico e de poder, com estratégias proprias e marca- do historicamente, Deveria estar também associada a uma anslise inspira- m Foucault, que tentasse analisar as relagdes de poder que definem cenunciados podem ser aceitos como verdadeiros em cada momen- to. A discussZo textual seria ainda insuficiente, da perspectiva de Rabinow, por no incorporar uma anzlise socioldgica que estabelega as mediacdes ‘entre, por exemplo, as erfticas 20 colonialismo realizadas em um nivel ma- ‘cro € 0s experimentos textuais, O que estara faltando, em Suma, seria ques- tionar a academia americana nos anos 80 e seus jogos de poder. Até hoje, contudo, os pés-modernos parecem ni lereri se alrevido a isso, ‘Mas a dimensio politica da critica antropol6gica ngo se limita a uma apreciagiio das condigdes de produgiio do conhecimento, Como ja men- cionei anteriormente, discute-se a possibilidade da antropologia vir a rea- lizar uma eritica cultural das sociedades que estuda ou das sociedades dos antropslogos. Esta perspectiva esteve presente na antropologia modernista de um modo peculiar, se se compara com 0 que aconteceu no modernismo nas aries. O modernismo em antropologia, como foi dito, caracterizou-se lo estabelecimento de uma distincia entre as culturas e pela criaglo de um contexto para se falar sobre a diversidade. © modernismo nas artes tam= bm usava o efeito de distanciamento, ao pretender desfamiliarizar a cul- turae a sociedade do proprio artista, A distincia e 6 estranhamento tinham por objetivo chocar — postura que o surrealismo levou as dltimas conseqliéncias!?. A antropologia, contudo, tinha como um dos seus ob- |jetivos bisicos tomar o distante e estranho ¢ torné-lo familiar — sem aproxim-lo. O que ela buscava era revelar 0 cotidiano no bizarro, desman- char 0 exético revelando seu sentido proprio. Pode-se dizer, no entanto, que a postura modemista do choque ¢ dda ertica & sociedad burguesa também estava no horizonte da antropolo- aia. Ao criar um novo contexto para falar de culturas estranhas e ao insistir «que as culturas fossem entendidas em seus préprios termos, ao revelar © sentido familiar do bizarro, a antropologia criticou o etnocentrismo ¢ 0 racismo. Além disso, através da desfamiliarizagao da sociedade burguesa, conse guida pela justaposigzio de suas caracteristicas com as das socieda- des primitivas, « antropologia poderia realizar uma eritica cultural & socie- dade ocidental — afinal, o mito do bom selvagem estd nas bases da antro- pologia, No entanto, se esta postura foi tentada algumas vezes, ¢ Margaret ‘Mead Ruth Benedict sao exemplos claros nessa diregio, no se pode di- zer que a critica cultural tenha ido além de uma promessa (Marcus ¢ Fisher 1986:caps. $e 6), que provavelmente o relativismo cultural ajudou a frustar. ‘Neste ponto é importante introduzir uma relativizagdo. A frustragao das possibilidades de critica cultural 6 caracteristica sobretudo da antro- pologia realizada nas metrépoles — e que slo objeto de anise dos eri ticos pés-modernos americanos. Antropologias “nativas” como a nossa, que sempre estudaram a sua propria sociedade, sAo claramente um caso ua (2s sins Tals, ver Ciford SiScrners eeren Gite sitolone ‘emer, ver Ko mt NOVOS ESTUDOS N” 21 - JULHO DE 1988 A parte: o proceso de entender um outro que faz parte da nossa propria cultura conduz quase que inevitavelmente a pensar criticamente sobre a nossa relagio com ele e sobre o seu lugar na nossa sociedade"”. Cons {uiram também um caso & parte as antropologias feitas por grupos minori- trios, de que talvez a antropologia feminista seja o melhor exemplo. Ser critica a respeito da situago da mulher era parie constitutiva dos objeti- ‘vos dessa antropologia. Mas excetuando-se esses casos espectficas — e mar- ginais em relacio 8 antropologia produzida nas metr6poles — a critica cule {ural continuou a ser uma promessa no cumprida. A antropologia pos- ‘modema tenta resgatar esta postura, apresentando-a como um dos cami ‘nhos por onde a antropologia contemporinea deveria seguir. ‘Vétrios autores tém insistido nessa perspectiva, mas ainda sto pou- cas as tentativas de levécla a efeito, O pés-modemnismo em antropologia tem se caracterizado mais por um trabalho de desconstrugio de textos et- ogrificos elissicos ¢ de proposigdo de alternativas textuais do que pela produgdio de etnografias que levem em conta as novas regras, no s6 em relaglo ao texto, mas também 2 critica cultural. Algumas experigneias, con- tudo, ja foram feitas. Passo a analisar agora trés delas, selecionadas por se referirem a ambos os aspectos: so experiéncias textuais ¢ enfrentam de diferentes maneiras problemas politicos ¢ de critica cultural. Reinventando a etnografia FirsTime (1983) de Richard Price, Waiting (1985) de Vincent Cra- panzano, e Shamanism, Colonialism and the Wild Man (1987) de Michel ‘Taussig so experincias textuaise, nos ts casos, a posicao do antropalo- _20 como autor do texto ¢ foco de questionamento e redefinicao. Taussig nega explicitamente a possibilidade de o antropslogo dizer © que os ou- tros sao: seu texto é basicamente sua construc, concebia enquanto eri- tica cultural de sua propria sociedade e da cultura que Ihe é especitica. E a sua perspectiva construida a partir da andlise dos outros que aparece no primeiro plano. Ja Price e Crapanzano so, segundo ambos explicitam, Juma voz entre varias no texto; stas autoras se dispersam, como se diliem as suas anzlises, a ponto de desaparecer, no caso de Crapanzano, Ein su- ima, se € através de experidncias textuais que os trés autores se expressam, seus objetivos e seus resultados Sio bastante diferentes. Apesar disso, ne nnhum dos 2s pretende retratar holisticamente uma cultura: © que € pos- sivel mepresentar sio sempre aspectos parciais, Em First-Time Price esti preocupado em estudar 0 conhecimento que os Saramakas, descendentes de escravos que vivem no Stiriname,f@m sobre um perfodo crucial de sua hist6ria, Este € 0 First-Time, ou seja, 0 perfodo que compreende a fuga em massa desses escravos das plantations m que viviam, sua continua resistencia a tentativas de reeseravizacdo, & finalmente a "Grande Paz” que selou a sua libertagdo em 1762, Primeiro 15 Va, sop, Gr ‘hate Fe [APRESENCA DO AUTOR FA POS-MODERNIDADE EM ANTROPOLOGIA problema: meméria oral sobre um evento que ocorreu hé mais de dois, séculos ¢ cujas informagoes $6 se mantém de modo fragmentirio. Mas a maior dificuldade ests em que, no caso dos Saramakas, 0 conhecimento do passado esta explicitamente articulado a questoes de poder. Enure os Saramakas, o conhecimento sobre 0 passado, ¢ especial: mente sobre o First-Time, ¢ privilégio de alguns velhos, ¢ ¢ algo que nao deve ser contado indiscriminadamente. As histGrias mais importantes nao podem ser reveladas porque sio perigosas, Sao hist6rias de fugas e lutas por liberdade e ha sempre o risco de que, ao se contar a histéria, ao entregs- la para outros, cles entreguem também a sua liberdade. Eles acreditam que {tém que proteger o que sabem, ou 0 scu conhecimento vai ser usado por ‘outros, especialmente os brancos, contra eles. A forga principal subjacen- te sua mancira de relembrar 0 passado ¢ uma idéia de "nunca mais", uma preocupagio de impedir que a escravidao possa ocorrer de novo. Além disso, memoria e histéria sobre o First-Time sio importantes em termos, da preservagao da identidade do grupo e de seu senso de auto-respeito: elas contém as raizes do que realmente significa ser Saramaka. Assim sen- do, $6 se contam fragments, ¢ as pessoas interessadas em historia, sobre- ‘tudo na historia do First-Time, tém que juntar tragmentos dispersos ofere- cidos em diferentes momentos pelos velhos. Foi através desta protega0 do conhecimento sobre o passado que as histérias sobre o First-Time foram preservadas com uma consideravel riqueza de detalhes por dois séculos, ‘Ao escrever First-Time Price teve, entao, que enfrentar uma série de questoes impostas pelo proprio objeto de anslise, Ele teve que descobrir a forma cultural especifica — cangbes, lendas, hit6rias, encantamentos ditos eventual ¢ rtualisticamente — pela qual o conhecimento sobre o passado € transmitido. Ele teve que lidar com a memiiria dos Saramakas com do- cumentos sobre a sua hist6ria, com diferentes versdes sobre o passado a impossibilidade de dizer o que cle realmente foi; ¢ teve que enfrentar ‘a questao sobre a melhor mancira de expressar as diferentes verses. Mas ao eserever Price teve que encarar outros problemas, ¢ 0 mais importante deles se refere ao agrupamento de um conhecimento que supostamente deveria ser mantido em fragmentos, c & revclagao de algo que ¢ considera- do perigoso e supostamente deve ser mantido em segredo. Price s6 foi in- formado sobre o First-Time apos nove anos de trabalho de campo e quan- do 0s velhos 0 consideraram pronto para isso. Nessa consideragao inter- vveio 0 fato de que Price por varios anos estudou a histéria dos Saramakas ‘nos arquivos coloniais holandeses e tinha em seu poder aleumas informa- ¢g0es ignoradas pelos velhos para oferecer-Ihes. E ele estava consciente da relagao de poder a ser entao estabelecida, e de quanto ele ia, assim, inter- ferir no proprio cardter do conhecimento sobre o First-Time. De outro Ia- ddo, quando Price obteve as informagies dos Saramakas e foi solicitado pe- Jos velhos para ser uma espécie de cronista, a sociedade dos Saramakas estava Sofrendo, mudangas irreversiveis, a tradigZo estava morrendo & 0s velhos decidiram que 0 pouco de conhecimento que eles tinham deveria 6 NOVOS ESTUDOS N°2 JULHO DI 1988 er preservado, Mas ao deixarem 0 seu conhecimento ser agrupado crito, eles mesmo mudaram irreversivelmente © carter do seu conhecimento. Numa situago como esta, em que o antropélogo se transforma com. toda clareza em um agente de interferéncia na sociedad es quer coisa que faga representa uma opcao ética ¢ poli tranhar que Price tenha refletido sobre o seu proprio poder e papel de seu trabalho enquanto antropélogo. Suas diividas ¢ as decisdes que tomou. fazem parte do livro, A primeira questio era a de identificar ou nao os informantes. Price

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