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CORPO-CASA, ESPAÇO-LUGAR:

DO INDIVÍDUO E DA SACRALIZAÇÃO DO ESPAÇO1

Severiano José dos Santos Jr.


Professor Geografia – IFBA-SSA
Mestre em Engenharia de Produção – COPPE/UFRJ
Doutor em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia do Instituto
de Geociências - UFBA
severianojoseh@gmail.com

(...) senti a presença de Deus. O cheiro da relva e do


rio, os sons noturnos, a sensação de calor no ar –
tudo parecia parte da Unidade de Deus. Tudo estava
imobilizado na eternidade.
Jacob Needleman

Olhando-se para fora e, se parando-se para observar o mundo ao nosso


redor, inclusive o nosso próprio corpo, temos a nítida noção da concretude que
formam todas as coisas. Visualizamos, indubitavelmente, a presença vigorosa e
imediata da objetividade física do mundo, de suas formas, de suas cores,
estruturas, articulações, movimentos, sons, etc.. Inicialmente, o mundo “nos salta
aos olhos” como algo substancialmente palpável, sonoro, digerível, degustável,
odorento, visível – o mundo se apresenta para nós, a princípio, em função de sua
solidez material.
Tais observações se dão em função do caráter imediato e fundamental que
têm os órgãos dos sentidos na apreensão da materialidade do mundo. Eles
funcionam como nossas primeiras portas de entrada e saída para o universo que
conhecemos. É através da visão, do tato, do olfato, da audição e do paladar que
obtemos nossas primeiras percepções e sentimentos deste mundo – percepções
essas que, como colocado, nos chegam primordialmente como algo de cunho
eminentemente físico e objetivo.

1
Texto apresentado no 5º Congresso Brasileiro de Geógrafos, realizado entre os dias 17 a 22 de Julho de
1994, na cidade de Curitiba/PR, promovido pela Associação de Geógrafos Brasileiros (AGB).

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No entanto, a apreensão da realidade física pelos órgãos dos sentidos do
homem é mediada por um mecanismo psíquico altamente desenvolvido.
Estruturada a partir de uma essência simbólica, a psique humana compreende e
se comunica com o espaço por meio da linguagem dos símbolos e signos. É desta
forma, então, que a realidade física do mundo, apreendida pelos órgãos dos
sentidos, ganha significado, podendo ser assim decodificada. Ernst Cassirer, em
seu livro “Linguagem, Mito e Religião”, nos diz que

(...) As formas simbólicas específicas não são imitações, mas


órgãos da realidade, posto que só por meio delas se pode
converter em objeto de captação intelectual, e assim resultar
visível ante os nossos olhos. CASSIRER, p. 13.

E, é justamente este comportamento simbólico que nos distingue de todas


as outras espécies animais (Yi Fu Tuan).
Tendo como base a experiência de interiorização psíquica, a vivência
simbólica no homem possibilita a criação de sistemas de valores e crenças que
funcionarão como os estruturados das subjetividades individuais, bem como dos
tecidos sócio-culturais que as agregam. As maneiras do comportar-se, do pensar,
do saber, do crer dos indivíduos – que são o substrato da formação cultural – para
serem creditadas como socialmente corretas têm que estar de acordo com o
sistema de valores que sustenta a coletividade que compõe esses indivíduos.
Podemos dizer assim, que a história do ser humano no espaço geográfico do
Planeta se dá em função das formas específicas de construção dos sistemas
sociais de crenças e valores. Tuan (1974, p. 15) afirma: “(...) estamos conscientes
de que os povos, em diferentes épocas e lugares, construíram seus mundos de
maneira muito diferente; a multiplicidade de cultura é um tema persistente nas
ciências sociais”.
Os sistemas de crença e valores funcionam, portanto, como mediadores da
relação que o indivíduo em sociedade estabelece com o espaço. Desta forma,
temos o intento de chamar a atenção para a importância que a dimensão interna
do ser humano exerce em suas múltiplas formas de intervenção na geografia

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planetária, fazendo uma clara distinção entre a concepção de construção do
mundo moderno e das sociedades tradicionais e arcaicas.

A Experiência Moderna
Vale ressaltar aqui, que a grande parte dos pensadores contemporâneos,
ao se debruçarem sobre as questões referentes às crises impostas pelos des-
caminhos projetados pelos sistemas sociais de valores criados na modernidade,
são quase que unânimes em colocar a exaltação exagerada do racionalismo e do
materialismo na base dessa crise. Essas duas formas de percepção e apreensão
do real vão encontrar na ciência moderna veiculada através dos sistemas
empíricos de aferição da verdade vai destacar o caráter prático e finalístico do
conhecimento. Segundo Roberto S. Bartholo Jr., o “pragmatismo baconiano
enfatiza a necessidade da Natureza ser inquirida diretamente por uma prática
experimental apta a arrancar-lhe seus segredos” (Bartholo, 1986, pg. 75). A
técnica moderna servirá como base instrumental para essa nova ciência empirista
e utilitarista, bem como as novas descobertas propiciarão as articulações lógico-
formais que farão desenvolver instrumentos tecnológicos cada vez mais
sofisticados e “poderosos”.
Essa profunda ligação entre ciência e tecnologia surgida em função do
racionalismo pragmático redimensionou o poderio de interferência do ser humano
sobre a Natureza, ou seja, aquilo que a ciência “pensa” como correto pelos
princípios lógicos e matemáticos necessita ser testado, comprovado e reavaliado
no campo das leis e dos fenômenos físicos visíveis. A tecnologia oferece os
instrumentos a esta tarefa e em troca as leis científicas – dentro deste espírito
utilitarista e instrumental – servirão como base à preparação de novos avanços no
campo técnico.
O excesso de objetividade e funcionalidade no tratamento com o real
tenciona – além de privar a Natureza de seu status cósmico e sagrado – em criar
um sistema de valores que, através da pretensa neutralidade técnico científica,
redima o ser humano de todo e qualquer compromisso ético com o outro e com o

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mundo. O moderno criou um tipo bem específico de ciência e tecnologia, no
entanto, acredita que as consequências que advierem desses atos não lhe dizem
respeito, pois, como acredita, o conhecimento é algo em mesmo “neutro”. Este
pensamento contradiz, no entanto, aquilo que Francis Bacon afirmou no início do
renascimento: “saber é poder”. Nessa direção Bartholo aponta que

(...) O objetivo último da ampliação do conhecimento científico


pode ser concebido como a elevação progressiva do poder
humano sobre as forças da Natureza, de modo a tornarmo-nos
seus „mestres e possuidores‟. BARTHOLO, Ibid., p. 76/7.

As contrapartes da produção e da política para o racionalismo empirista


serão justamente o sistema produtivo industrial e o capitalismo. O primeiro,
através da produção desenfreada de bens transformados gera a ilusão da
inesgotabilidade dos recursos naturais, como também fortalece ao extremo o peso
que os valores de troca possuem nesta sociedade. O segundo, ao regulamentar a
economia em função do padrão monetário baseado na livre iniciativa, visa
fundamentalmente o crédito de valor ao indivíduo; esses dois sistemas propiciam
o exagero do materialismo: “a liberdade para a construção utilitarista-instrumental
do reino do homem sobre a Natureza e a idéia de uma insaciabilidade das
necessidades econômicas formam para a identidade cultural do sistema industrial
uma síntese legitimadora do crescimento irrestrito da produção material” (Ibid., pg.
88).
Em resumo, a Natureza é tida como um objeto para o uso do sistema e,
dessa forma, perde sua força ontológica e seu poder dentro da abrangência da
ordem cósmica, ela perde o seu lugar, ou seja, se des-sacraliza. Segundo Mircea
Eliade, a profanação ampla da realidade é um fato recente na história humana.
Pela primeira vez foi explicitado e colocado como um acontecimento plenamente
aceito e disseminado a idéia de um mundo (espaço-tempo) destituído de caráter
divino, ordenado apenas em função das leis físicas e naturais que regem a
matéria.
Assim, ao des-sacralizar a Natureza, o ser humano moderno a torna um
alvo fácil para seus projetos de aventura no mundo da volúpia material. Nessa

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lógica, a Natureza é uma coisa, ou melhor, um bem que serve tão e somente para
alimentar os sequiosos sistemas da produção industrial, como também para suprir
o desejo insaciável da ciência em busca de verdades seculares e transitórias. “Ao
perder de vista o transcendente, o homem moderno „esqueceu‟ que ele tem certas
obrigações em relação ao cosmos” (UNGER, 1981, p. 74), compromissos esses
que, se cumpridos, estendem o espaço ao infinito, expõem o tempo ao inaudito e
o próprio ser humano à sua condição de cidadão do Universo.

A Sacralização do Espaço
Aqui, chegamos ao ponto central de nossa reflexão: essa ação
minimizadora da potencialidade cósmica estabelecida pelo projeto civilizatório
moderno encontra uma profunda resistência, ou melhor, um contraponto
claramente limitador, nas experiências religiosas das sociedades tradicionais e
arcaicas. A vivência do universo religioso nessas sociedades exalta tanto a
sacralidade da Natureza original, quanto os espaços culturais criados pelas
dinâmicas sociais humanas. Nela, o sentido do ser humano bem como dos
espaços de sua ação são instituídos por uma realidade transcendente, ou seja,
uma realidade primordial de ordem divina que cria e regulariza toda a existência.
Para o homem religioso dessas sociedades, de acordo com Mircea Eliade,

(...) Todo o mundo é obra dos Deuses. (...) O mundo deixa-se


surpreender como mundo, como Cosmo, na medida em que se
revela como mundo sagrado, pois, (...) a manifestação do sagrado
funda ontologicamente o mundo. (...) E, isto é o mesmo que dizer
que o homem religioso só pode viver num mundo sagrado, porque
somente um tal mundo participa do Ser. ELIADE, p. 38 e 76.

Outrossim, todos os elementos participantes deste mundo sacro vão lhe


falando da realidade transcendente, da realidade do Ser. O mito, enquanto forma
simbólica de apreensão e de decodificação do real servirá como instrumento base
de compreensão dessa realidade.
Através de suas versatilidades expressivas e de suas abrangências
psicológicas, os sistemas mitológicos estabelecem a ponte de ligação entre o

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universo interno do ser humano e o espaço externo de sua convivência, indicando
a essência universal e metafísica de ambos: “... as características
psicologicamente significativas de qualquer ordem social ou ambiente, ou suposta
história locais, podem ser transformadas pelo mito em transparências reveladoras
de transcendência” (CAMPBELL, 1991, p. 51). Essa clareza acontece na medida
em que o sistema mitológico ao contar a história de um deus, deusa, herói ou
demônio, utilizando uma linguagem rica em símbolos e imagens, elucida para o
grupo social de sua origem a posição que cada elemento da Natureza ou da
comunidade terá no espaço geográfico (transmutado em espaço cósmico) de sua
vivência coletiva. Os elementos da vida orgânica ou social têm seus lugares
definidos pelos papéis que desempenham nos contos míticos, os quais vão
sempre estar nos falando de uma “realidade do outro mundo”, de um tempo
quando o mundo era habitado por “seres fantásticos”.
Se é o mito que esclarece e faz as realidades transcendentes transparentes
ao homem, são os ritos que formalizam e dão a possibilidade de continuidade da
vida social em função desse espírito metafísico que paira sobre o mundo. Na
percepção de um Universo (espaço-tempo) ordenado e circular, onde as coisas se
movimentam em função de ciclos periódicos – orientados espacialmente pela idéia
de pontos fixos centrais – os ritos são a garantia da regularidade da ordem
cósmica na Natureza e no organismo social. Ao se estabelecer determinados
jogos e ações ritualísticos, o homem arcaico e Tradicional busca criar
compromissos entre ele e o Universo, onde o primeiro se obriga a reconhecer a
totalidade do mundo criada, enquanto realidade transcendental, criada por Deus
ou por deuses in illo tempore, com a expectativa de troca, na garantia de que
todas as suas necessidades, tanto físicas quanto espirituais, serão satisfeitas. O
compromisso é simples, e, é ele que, no reconhecimento do homem e seu mundo,
faz com que a ordem e a existência física desses grupos se renovem.
O ato ritual, que em muitos momentos é visto como consagração ou
santificação, se processa em todos os aspectos da vida social e espiritual das
comunidades Tradicionais e arcaicas (Eliade). Nesse sentido, tanto os atos
orgânicos ou qualquer simples gesto humano, quanto a construção de uma

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moradia ou confecção de instrumentos para o trabalho ou para os rituais podem
receber uma homologação religiosa. Este fato demonstra um grande hiato entre
essas sociedades e a sociedade moderna: para a consciência moderna um ato
fisiológico - alimentação, a sexualidade, etc. – não é em suma, mais do que um
fenômeno orgânico, qualquer que seja o número de tabus que o embaraça ainda.
Para o primitivo, tal ato nunca é simplesmente fisiológico; é ou pode tornar-se, “um
„sacramento‟, quer dizer, uma comunhão com o sagrado” (ELIADE, Idem, p. 28).
Ampliando o sentido dessa idéia, podemos dizer que o corpo humano,
muito mais do que compreendido em função de sua anatomia física onde cada
orgão, cada membro, cada pedaço do corpo estão ligados entre si por processos
de ordem estritamente orgânico, pode ser visto como símbolo e suas partes como
metáforas de uma realidade superior que se articula por leis precisas de ordem
transcendental. Cada parte do corpo se apresenta com “algo mais” alem de seus
aspectos fisiológicos. A cabeça pode ser vista como uma janela para o céu, o
coração como o centro espiritual do ser humano, os pés podem significar a raiz, o
esqueleto pode ser visto como a estrutura material base de ordenação do ser, a
coluna vertebral como o eixo do mundo, o útero como a gruta geradora da vida, o
falo enquanto poder direcionador do homem, e assim por diante. Todas essas
imagens mais do que ingênuas conjecturas a respeito da realidade humana, a
depender de suas posições nas culturas das quais fazem parte, formam grandes
conjuntos simbólicos, que indicam, por sua vez, uma anatomia espiritual no
homem. Por extensão, essa fisiologia transcendental sustenta sistemas
cosmológicos de cura e educação dentro do organismo social do qual participa.
O corpo e todas as suas implicações, assim, assume uma dimensão
cósmica, já que, mesmo reconhecida sua objetividade orgânica, ele é visto como
instrumento, ou intermediário, de uma realidade transcendental. E mais do que
isto, ele é a própria realidade divina transfigurada em seus aspectos materiais.
Luis Boada, se referindo ao corpo como espaço próprio do homem e comentando
sobre as “leis rigorosíssimas” que definem sua estrutura morfológica, as quais
“estabelecem a ordem cósmica em nós”, diz que “é por isso que o ser humano tem
sido considerado por todas as tradições como um microcosmos” (BOADA, 1991,

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p. 19). E, pensar o ser humano enquanto microcosmos é perceber sua realidade
como um sistema em miniatura do Universo. Dentro desta perspectiva, o espaço-
corpo no homem se amplia na possibilidade de abrigar dentro de si um ser
renovado, recriado e iniciado – ou seja, se transmuta em “corpo cósmico” que,
através de suas formas, estruturas e movimentos, pode nos falar e fazer
experimentar a centelha da realidade divina em nós.
Assim, da mesma forma que o corpo humano recebe esse status cósmico
dentro das sociedades pré-industriais, os espaços sociais construídos – a
habitação, a moradia, os lugares públicos, a própria aldeia, a tribo ou a cidade
também estão aptos a serem homologados em função de uma realidade
metafísica. Como já colocado anteriormente, essa realidade é normalmente
apresentada através dos sistemas locais de crenças, principalmente, através dos
mitos cosmogônicos (aqueles que se referem à criação do mundo). Na origem do
Universo está o sentido de ordenação espacial de todos os seres: na medida em
que cada ato de criação vai sendo concluído, os seres e as coisas vão
encontrando seus lugares na vigência do cosmos. Desta forma, os mitos vão se
tornar “espelhos” por onde os grupos se miram para construir seus espaços
geográficos específicos.
A idéia de círculo, por exemplo, tão difundida nas formas de construções
das aldeias e habitações do mundo arcaico e Tradicional, se baseia numa
concepção circular do Universo, onde todas as coisas encontram suas estruturas
nos ciclos permanentes do tempo: noite, dia; outono, inverno, primavera, verão;
nascimento, morte, renascimento. Assim também é explicada a idéia de centro –
nesse mundo cíclico e circular, o axis mundi, ou seja, o eixo do mundo se concebe
como o ponto em torno do qual todas as coisas se movem. O homem tradicional
está sempre presente no centro do mundo, e, sua moradia e sua aldeia
representam esse núcleo, pois é em torno do centro que o espaço ganha ordem e
é afastado do caos. O centro também é o elo de ligação entre os quatro pontos
cardeais, que irão direcionar a geometria espacial e os sistemas cosmológicos de
muitos povos. Cada um desses pontos – norte, sul, leste, oeste – e seus
derivados, têm um papel muito específico no tecido sócio-cultural desses povos,

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se correspondendo a várias categorias da Natureza, do cosmos, da sociedade e
do próprio homem. Portanto, as construções de uma cidade ou de uma aldeia vão
se comportar em função de uma composição geométrica do espaço baseada nos
significados que vai receber cada lugar dentro de uma cosmografia local. Os
lugares cerimoniais, os centros de poder, os locais de cura vão se localizar de
acordo com as indicações dadas pelas correspondências das funções sócio-
cosmológicas dos mesmos com as essências simbólicas desenhadas em cada um
dos pontos cardeais.
Uma outra forma de se perceber a mesma questão é a de se pensar as
formas e métodos de construção enquanto, lógica e intuitivamente, dirigidos à
realidade mítico-religiosa vigente no grupo. Os conhecimentos matemáticos,
físicos, astronômicos, dentre outros, e os conhecimentos ligados às ciências ditas
esotéricas, como a astrologia e a alquimia vão estar direcionadas a esse objetivo.
As formas geométricas e as estruturas das construções (pilares, bases,
coberturas), fundamentadas nesses conhecimentos, vão carregar em si um ideal,
uma visão de mundo que, quando patrocinada por sentimentos espirituais
representam a intenção de encarnação do logos na matéria. Esta é a única
garantia de manutenção da continuidade cíclica do mundo social – “construir é um
ato religioso, o estabelecimento de um mundo em meio a uma desordem primeva”
(TUAN, 1983, 126/7). A arquitetura tradicional, dentro dessa perspectiva, ao
contrário das formas modernas de construção, não buscava a funcionalidade de
uma edificação, mas antes, ocupava-se em criar espaços (humaniza-los) propícios
a receber a qualidade cósmica, ou melhor, o sentido ontológico da criação. Desta
maneira, como nos diz Tuan, é que o espaço se torna lugar.
Essas experiências com o espaço do corpo, da moradia e da cidade
(colocadas aqui de uma forma extremamente reduzida devido a objetividade
sintética deste trabalho), demonstraram como esses homens e mulheres estão
encerrados em um mundo onde todas as coisas e todos os atos, com suas
significações simbólicas características, são valorizadas em função de suas
realidades divinas.

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Habita-se o corpo da mesma maneira que se habita uma casa ou o
cosmos que o homem criou para si mesmo. Toda situação legal e
permanente implica inserção num cosmos, num universo
perfeitamente organizado, portanto, imitado segundo o modelo
exemplar, a criação. (...) de uma maneira ou de outra, o cosmos
que o homem habita – corpo, casa, território tribal, este mundo na
sua totalidade – comunica pelo alto com outro nível que lhe é
transcendente. ELIADE, p. 184/5.

A resposta encontrada por esse homem ao ato primeiro da existência se


concretiza no mergulho radical da realidade do organismo social no universo da
espiritualidade. Mesmo quando não totalmente compreendidos conscientemente,
todos os aspectos da vida imanente do homem tradicional – cada gesto seu, cada
som, cada forma buscada, toda cor, todo nome – estão imersos no mistério,
participam totalmente, através da santificação mítica e ritualística do mundo, da
essência substancial que cria e ordena o espaço.

Considerações Finais

O resgate da dimensão cósmica na vida do ser humano do planeta – cultura


e Natureza – nos dá dentro da Geografia, a possibilidade de ampliação
espistemológica do conceito de espaço.
Percebendo o estreito vínculo que os atos humanos, compreendidos em
suas dimensões simbólicas, têm com o mundo e com o cosmos, o ato de criar
cultura gera espaço, e vice-versa. Toda ação humana individual se estende e se
atemporiza na criação metafísica da cultura coletiva. O espaço material gerado
através das relações das dinâmicas sociais humanas com os elementos e
fenômenos da Natureza, quando dimensionado cosmicamente, estende-se para o
interior do próprio homem (CAMPBELL, Idem), que, em diálogo incansável com o
Universo, re-cria o espaço que cria. Veredas se abrem para o potencial criador do
homem, não em função de um desmedido desejo pelo material e imediato, mas,
pela sabedoria e reconhecimento do seu lugar no universo da Criação.

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A falácia moderna, ao tentar desligar o espírito do espaço, ao tirar Deus do
mundo, criou a possibilidade da produção de um mundo “puramente humano”,
artificializado, distante – solitário. Resta-nos, com o olhar duplamente assentado
nas experiências sacras da humanidade pré-industrial e nas possibilidades de
futuro dadas pela ampliação da consciência trazida pelos avanços tecnológicos,
tentar compreender os mitos e ritos criados pelo nosso tempo – territorializados na
conquista urbano-industrial – enxergar nas brechas desse espaço turvo, a força da
luz que insiste em/no Ser.

Bibliografia:

BARTHOLO, Roberto S. Labirintos do silêncio. Cosmovisão e tecnologia na


modernidade. Rio de Janeiro: Marco Zero/Ed. COPPE-UFRJ, 1986.
BOADA, Luis. O espaço recriado. São Paulo: Editora Nobel, 1991.
CASSIRER, Ernest. Linguagem, mito e religião. Porto/Portugal: Rés Ed.
CAMPBELL, Joseph. A Extensão interior do espaço exterior. Rio de Janeiro: Ed.
Campus, 1991.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. A essência das religiões. (Coleção "Vida
e Cultura"). Lisboa: Edição Livros do Brasil, *.
TUAN, Yi Fu. Espaço e lugar. A perspectiva da experiência. São Paulo: DIFEL,
1983.
___________. Topofilia. São Paulo: DIFEL, 1974.
UNGER, Nancy Mangabeira. O Encantamento do humano. Ecologia e
espiritualidade. São Paulo: Edições Loyola, 1991.

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