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A PRÉ-IMAGEM: ENTRE O IMAGINÁRIO E A MATERIALIDADE DA CENA

Consuelo Maldonado T.
10 de maio de 2019

Quando iniciei meu percurso no teatro, por alguma razão interessei-me em acompanhar trabalhos de
criação. Esta predisposição a observar, constituiu minha escola de formação. Quando comecei a
ministrar aulas de teatro na universidade, meu domínio não era técnico mas dentro da pesquisa de
procedimentos de criação. Meu olhar treinou-se em perceber as variações que cada artista mostrava
dentro de parâmetros e contextos dados para desenvolver seu próprio processo. Este percurso como
observadora de processos alheios é um caminho silencioso mas muito rico em experiências.
Este trabalho é o resultado da cátedra de Genética Teatral ministrada por Ana Clara Santos que faz
parte do Doutoramento em Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e da
minha participação como observadora dentro do Projeto Argos 1. Entre os meses de fevereiro e abril de
2019, acompanhei o processo de criação de O Purgatório do Grupo de Teatro O Bando em duas
ocasiões.
O primeiro encontro com O Bando aconteceu nos dias 12, 13 e 14 de fevereiro, consistiu da
apresentação do projeto para a totalidade dos artistas envolvidos. Isto incluía os atores e assistentes de
outras áreas. Cabe assinalar que O Bando tem uma dinâmica de trabalho na base duma equipa criativa
que constrói um projeto base que guia o processo criativo. Neste momento a direção artística do Teatro
O Bando, segundo ficha técnica (Anexo 1) está constituída por: Clara Bento (figurinos e adereços),
João Brites (encenação e dramatografia), Jorge Salgueiro (dramatofonia, música e direção musical),
Miguel Jesus (dramaturgia e dramatogenia) e Rui Francisco (cenografia).
O segundo momento, aconteceu na semana compreendida entre os dias 22 e 27 de abril e estava
inserida dentro da semana de observação do Projeto Argos. No Bando, este momento visava um
trabalho diretamente com os atores sobre o palco e iniciava uma etapa de dois meses de trabalho para a
preparação do espetáculo a estrear em junho de 2019. Por outro lado, a presença dentro do processo de
criação dos observadores do Projeto Argos gerou novas dinâmicas para o próprio grupo. Éramos mais
de vinte pessoas e estas miradas reorganizaram o contexto.
Devido a estas dinâmicas de criação e observação do processo, neste trabalho procuro estabelecer as
características da etapa inicial e seu desenvolvimento até o segundo momento do processo de criação
de O Purgatório do Teatro O Bando. Para analisar esta etapa inicial vou convocar a noção de primeiro

1 ARGOS is a collaborative project of partners having diverse but complementary backgrounds. The aim of the project is
to investigate the space of dynamic encounters between academics and artists while focusing on the study of the
endeavours and the artistic creation using new technical means such as virtual reality. The project is intended to create
innovative conditions with the aim of disseminating knowledge related to the creative process in the performing arts. In
this context, five experimental activities will take place in five countries (Italy, Belgium, France, Portugal, andLebanon)
so that all involved in the project may establish ways of identifying and creating links among the bodies, the academics,
the employees in the field of culture, the wider audience and the students. (Argos, 2018, p.1).
sonho que Sophie Lucet (2104a) denomina como pré-imagem. Particularmente, no caso de O
Purgatório do Teatro O Bando, esta pré-imagem tem duas materializações concretas: um texto de
trabalho e um dispositivo cênico. Estes elementos não constituem determinantes da criação mas
propulsores na procura de respostas criativas, constituindo assim linhas de força para o processo.
1. A pré-imagem
Minha participação como observadora do processo de criação O Purgatório do Teatro O Bando
começou numa etapa inicial. Para Sophie Lucet esta etapa merece atenção:
Si la répétition sur le plateau est depuis les années 90 devenue un sujet d’étude privilégié par la
perspective de la génétique théâtrale, il reste une dimension encore peu observée par les chercheurs, celle
du rêve initial ou de la pré-image du spectacle. Comment travaillent les metteurs en scène et/ou les
équipes de création avant que ne commencent les répétitions sur le plateau ? Qui forme le rêve initial?
Comment ce rêve se partage-t-il (ou non) avec le reste de l’équipe ? En quoi ce désir initial est-il
révélateur des lignes de force de la création à venir ? Si le metteur en scène se forme une pré-image du
spectacle, n’est-ce pas le cas pour l’ensemble de l’équipe ? Comment se conjuguent ces rêves et visions
premières ? Comment se construit alors le lieu du commun et du partage ? (2014a, p.1) 2
A problematização que Lucet apresenta sobre esta etapa é considerável. Neste trabalho, suas perguntas
transformaram-se em lugares desde onde olhar e perceber como o processo de criação opera e gera
relações de criação entre os artista. Esta etapa é o momento do sonho, do que poderá ser ou poderia vir
a ser. Aquela instância onde o imaginário transforma-se em pivô do processo e que provoca toda uma
série de relações entre matéria, ideia e desejo. Neste momento, todo encontra-se em potência e
inclusive as dúvidas ou as perguntas intensificam este imaginário colectivo gerando novas relações que
densificam as linhas de força da criação (Lucet, 2014a).
O primeiro encontro aconteceu no palco da sala de espetáculos da Casa do Bando. Nele, além duma
estrutura de rampas de metal, que mais tarde entenderemos para quê, havia uma mesa grande com
cadeiras. Os doce participantes3 sentamos-nos à mesa e os trabalhos começaram com uma pergunta do
encenador João Brites: “O que significa o purgatório?” A conversação durou quase toda a parte da
manhã e terminou com uma breve leitura da Cena I do texto por parte do atores. Todos contribuímos
com nossas próprias metáforas e concepções. As palavras, sensações, e imagens construíram uma
experiência encarnada do desejo de cada um dos integrantes. Uso a expressão de experiência encarnada
para definir este processo de conceitualização que não é instaurado em proposições mas encarnado na
inter-relação dos seres humanos com o mundo ou dos artistas com a obra. (Miall, 2011, p.289). Em
cada descoberta, dúvida ou afirmação edificava-se o sonho comum do Bando, construindo um
imaginário complexo e colectivo. O Purgatório cresceu entre as variadas imagens e ideias que
costuravam uma espécie de tecido denso.

2 Se a repetição no teatro é, desde os anos 90, objeto de estudo privilegiado pela perspectiva da genética teatral,
permanece uma dimensão ainda pouco observada pelos pesquisadores, a do sonho inicial ou da pré-imagem do
espetáculo. Como diretores e / ou equipes criativas trabalham antes dos ensaios começarem no palco? Quem forma o
sonho inicial? Como esse sonho é compartilhado (ou não) com o resto da equipa? De que maneira esse desejo inicial
revela as linhas de força da criação vindoura? Se o diretor está formando uma pré-imagem do show, esse não é o caso
de toda a equipa? Como esses sonhos e visões são combinados? Como o lugar do comum e do compartilhamento é
construído?
3 No dia 12 de fevereiro de 2019 estávamos presentes no ensaio: João Brites, Miguel Jesus, Juliana Pinho da equipa
criativa, Hirton Fernandes o investigador geneticista, a assistente Dora Sales, os atores Sara Belo, Nélson Monforte,
Rita Brito, Fernando Luis, e as observadoras Ana Clara Santos, Luana Proença e a autora deste texto.
Reprodução da imagem do meu caderno de trabalho no primeiro dia de trabalho.

Mas do que um quadro sinóptico, esta reprodução procura tornar presente a produção de ideias que essa
pergunta inicial provocou nos participantes. Este trabalho no procura estudar todas elas, mas sim
organizá-las na noção de linhas de força (Lucet, 2014) que movimentou o processo e desenhar sua
dinâmica de criação.
2. Linha de força I: texto de trabalho
Durante esta primeira sessão, as ideias pareciam ser jogadas na mesa, mas na verdade consolidavam-se
noutro elemento concreto que foi entregado a todos os participantes no início da sessão: o texto de
trabalho. Trata-se de um material complexo pois nele encontramos a materialização da pré-imagem
(Lucet, 2014a) do processo de criação. Neste caso, a pré-imagem está construída desde as diversas
áreas da direção artística de O Bando. Encontramo-nos com uma visão conceitual, temporal, textual,
sonora e imagética da cena. Nele descobrimos que o espaço físico de O Purgatorio estava construído
por uma estrutura de rampas, que este lugar ia ser povoado por um coro ou coral e que além das
composições musicais de Jorge Salgueiro, o palco contaria com imagens projetadas. Contudo, esta pré-
imagem não era uma finalidade, ao contrário, mostrava as possibilidades de um processo em
andamento.
Esta espécie de script além de apresentar a adaptação do texto, as anotações para a cena junto com o
vídeo e a música e o tempo de duração, mostra também certas perguntas ou dúvidas com respeito ao
palco. Na direita superior, podemos encontrar a pergunta sobre como o coro vai entrar em cena: “coral
no meio do público: na rua? no hall? na plateia?”, assim como a imagem ou síntese imagética do
dispositivo cénico.
Indicações de Som e Duração: tempo real
Texto cena vídeo

Dúvidas sobre o
coral

Imagem sobre dispositivo


cénico: rampas

Relação da cenas com processos


políticos-sociais, hábitos de
animais e tempo ficional

Primeira página do texto de trabalho da peça O


Purgatório do Teatro o Bando entregado à autora
08/02/2019

Sobre a concepção da cena, este documento está construído em base a quatro colunas que descrevem os
elementos da cena: o texto, as indicações da cena, o vídeo e o som, e finalmente, uma última coluna
que apresenta o tempo de duração real. Por outro lado, existe uma divisão horizontal que mostra a
separação por cenas e quadros em relação com uma concepção do espetáculo. Neste sentido, O
Purgatório é um percurso político das sociedades desde uma perspectiva evolutiva aliada a uma visão
antropomórfica dos hábitos e condutas de animais. Paralelamente, evidencia uma noção de tempo
ficcional: três dias que são divididos nos seus três períodos: manha, tarde e noite. De tal forma que, esta
concepção divide a peça em nove cenas e sete delas, da segunda à oitava, estão em relação com os sete
pecados capitais: preguiça, inveja, ira, gula, avareza, luxúria, orgulho; deixando as duas cenas restantes,
a primeira e a nona, a maneira de prólogo e epílogo. Mantendo assim uma certa equivalência com a
estrutura de sete giros que constitui a obra original de Dante Alighieri.
Voltando ao trabalho de mesa inicial, os diversos olhares construíam um purgatório complexo. Algumas
ideias eram recorrentes, por exemplo, o encenador João Brites insistiu no paradoxo da solidão do ser
humano dentro da multidão e, por outro lado, Miguel Jesus esclareceu que O Purgatório procurava ser
uma viagem pelas organizações políticas dos seres humanos. (Maldonado, 2019a, p.1-7). Nesta
concepção que entretece o político e o artístico encontramos um dos princípios constitutivos do Bando.
Na sua página, o Grupo: “assume-se como um colectivo que elege a transfiguração estética enquanto
modo de participação cívica e comunitária.” (Teatro O Bando, s/a, p.1). Esta postura do Grupo fica
sintetizada de uma forma esquemática e criativa na última página do texto de trabalho de O Purgatório
que descreve as cenas, seus objetivos em relação ao universo simbólico, sem deixar, claro está, de lado
a ironia e a criatividade.

cenas e atitude de tempo ficcional / org. política /


quadros personagems pecado /tipo de animal
olhar

Cena II da sinopse do texto de trabalho

A maneira de exemplo, amplio a Cena II: primeiro descreve os objetivos de Dante em termos de
personagem: “precisa de se confessar […] observar a multidão […] não quer seguir seu caminho”;
assim como a atitude do coral: “gente assustada venera deus.” Aponta também a qualidade do tempo
ficcional dessa primeira manhã da “preguiça”, onde os olhos são vagos porque “acreditam na fé de
Deus.” E, finalmente, a concepção do criacionismo está em relação com o hábito animal do rebanho de
ovelhas. Constroem-se as relação entre o percurso político-social da humanidade, o comportamento
animal e a postura do olhar do ser humano nesta situação fictícia.
Agora bem, este tipo de síntese apresenta uma complexidade que não só diz do funcionamento das
cenas, mas também aponta a ações pontuais das personagens. Quer dizer, trata-se de um documento
que propõe um especificidade do fazer do ator dentro de uma situação que procura dizer ou expor duma
maneira dada o acontecimento. Segundo Brites, estas proposições são pre-textos para intuir uma
possível forma. (Maldonado, 2009b, p.19). Ou seja, não determina o como concretamente resolver, mas
aponta caminhos a serem pesquisados tanto na construção de personagem quanto da cena, provocando
assim respostas individuais e diferenciadas de cada um dos artistas envolvidos.
3. Linhas de força II: dispositivo cênico
Desta forma, este primeiro sonho é construído como uma polifonia, ou seja, de variadas vozes. O
próprio Bando assume esta postura quando explica que suas criações “[…] são resultado duma
metodologia colectivista onde uma direcção artística alargada procura a diferença, a interferência, a
ruptura, a colisão dos pontos de vista, até que essa intersecção revele o seu potencial ao exprimir-se
para além do controlo e da capacidade de previsão dos criadores envolvidos.” (Teatro O Bando, s/a,
p.1). O texto de trabalho transforma-se em âncora das diversas propostas que resultam dos
questionamentos levantados.
Neste sentido, a observação do processo deixou claro à procura de O Bando por uma dramaturgia
polifónica e que dá prioridade à diferença. Como assinala Josette Féral:
[…] a observação dos múltiplos colaboradores de uma estrutura que se constrói e se desconstrói ao longo
da criação, deixando o trabalho de análise certamente mais difícil, mas permitindo a observação da cena
sob um ângulo variável, não polarizado pela personalidade de um diretor que centraliza a atenção. (2013,
p.11)
Outro elemento que materializou a pré-imagem do primeiro sonho de O Bando foi a estrutura de
rampas. Este dispositivo cênico, concretamente, determinava o espaço e constituía a geografia de O
Purgatório. Assim como as concepções do texto de trabalho gerava questionamentos, este dispositivo
apresentava perguntas: “Como iluminar as rampas? O purgatório um lugar de trânsito, talvez eterno?
Como caminhar… a experiência do andar? Como trabalhar com o próprio som que a estrutura de metal
apresenta?” Trata-se de perguntas que provocam proposições e ganham sua materialidade ou sua
resposta durante o processo. A maneira de exemplo, vou mostrar a evolução das rampas dois meses
depois do nosso primeiro encontro, durante a semana que participei como parte dos observadores do
Projeto Argos. Podemos reparar que, a altura das rampas ficou pronunciada, mas também que as
mudanças no desenho trouxeram uma sensação de maior densidade.

Fotografia das rampas e o ator Nélson


Monforte, 13 de fevereiro de 2019, Sala Fotografia das rampas e os atores
de espetáculos, Casa O Bando, Palmela. Nélson Monforte, Rita Brito e Fernando
Luis junto a Juliana Pinho. No primeiro
plano, observadoras do Projeto Argos,
23 de abril de 2019, Sala de espetáculos,
Casa O Bando, Palmela.
Por outro lado, no último dia dessa semana de trabalho, este dispositivo ganhou profundidade e se
adentrou na paisagem de Palmela.

Fotografia das rampas


Fotografia das rampas desde uma perspectiva exteriores desde uma
frontal-interior, 27 de abril de 2019, Sala de perspectiva lateral-exterior,
espetáculos, Casa O Bando, Palmela. com Rui Francisco e Dora
Sales, 27 de abril de 2019,
Jardim, Casa O Bando,
Palmela.

Esta transformação respondia à necessidade de acolher o coral de Setúbal num primeiro ensaio com o
dispositivo cênico. As quarenta pessoas que conformam o coro, outra definição inicial dentro do texto
de trabalho, habitaram junto às personagem de Dante, Vergílio, Beatriz e Matilde as rampas que
constroem O Purgatório.

Fotografia da ocupação do coral nas


rampas a espera de indicações da Fotografia de parte do coral usando as
direção artística, 27 de abril de 2019, rampas exteriores e os atores Nélson
Sala de espetáculos, Casa O Bando, Monforte e Fernando Luis, 27 de abril
Palmela. de 2019, Sala de espetáculos, Casa O
Bando, Palmela.
O coral é um elemento forte não só pela quantidade de pessoas, mas pela sua disposição e potência
musical. Por esta razão, transforma-se em linha de força porque marca uma série de questionamentos e
decisões durante o processo: Como trabalhar com o coro (uso de microfones)? Quais são outros
recursos dos atores para dialogar com o coro? Como trabalhar com quarenta pessoas que não são atores
e vão estar 1h50m em cena?” Neste sentido, o coral assim como o texto de trabalho e o dispositivo
cênico são linhas de força (Lucet, 2014a) que operam dentro do processo como um detonador criativo
porque problematiza e provoca procurar soluções.
Durante este tempo inicial do sonho, o discurso elaborado pela
direção artística do projeto foi compartilhado com o resto dos
participantes na tentativa de construir uma cena com uma
multiplicidade de vozes. E, esta dinâmica está em relação com os
tempos dados tanto às conversações e trabalho de mesa quanto aos
tempos fora do ensaio e de socialização que no Bando tem seu
eixo na comida.
O almoço convívio ou comunitário é uma prática que tem
constituído uma forma de socializar com as diversas comunidades
de pessoas que visitam a Casa. Esta prática é realizada os
primeiros sábado do mês. E, no processo de observação constituiu
um espaço de socialização. Durante estes momentos, as
conversações eram habituais. Mas este tempo distendido dentro
de um território contemplado para a criação, permitiu expandir a Fotografia do almoço convívio
sensação da criação para além da mesa de trabalho ou o palco. no comedor da Casa do Teatro
O Bando, dia 27 de abril de
Por outro lado, voltando aos três primeiros dias compartilhados 2019, Palmela.
em fevereiro, existiu uma afluência de pessoas que faziam parte
do processo e variava a cada dia. Talvez esta sensação foi menos clara na semana de abril porque
éramos muitas pessoas entre os artistas e os observadores. De qualquer forma, este ir e vir de pessoas
mostrou uma dinâmica flexível própria a um grupo que tem mais de quarenta e cinco anos de trabalho,
mostrando uma forma de fazer que não precisa de uma presença constante dos seus integrantes mas de
que cada um aporte com seu trabalho no momento necessário.
3. Sonho comum
Teatro O Bando tem mais de quarenta anos de trabalho, estamos diante duma cultura de grupo e
criação, que dentro dos seus processos de trabalho “[…] procurar o singularismo das suas criações.” (s/
a, p.1). Cada processo é diferente, mas dentro destes processos aparecem concepções artísticas e
filosóficas sobre a relação de arte e vida que como observadores também começamos a analisar e
experimentar. Como menciona Lucet:
S’intéresser à l’archivage du geste créateur est donc une façon de relier le théâtre au monde, et de le
revendiquer. Dès lors, l’œuvre d’art ne revoie plus au durable ou à l’éternel [...] mais à une vision
délibérément historicisée du regard selon des codes de perception admis à une époque donnée; à un face à
face, à des rencontres; à un dialogue entre regardeur et regardé, entre scène et monde. (2014b, p.1). 4

4 Estar interessado no arquivamento do gesto criativo é, portanto, uma maneira de conectar o teatro ao mundo e
reivindicá-lo. A partir da qual, a obra de arte não mais se refere ao eterno [...] mas a uma visão deliberadamente
Neste sentido, uma das preocupações recorrentes nas criações de O Bando é a relação entre realidade e
ficção. A pergunta está na base da concepção da própria arte cênica. Especificamente, no século XX, o
teatro do encenador e a performance trouxeram contundentes propostas como Verfremdungseffekt –
efeito de distanciamento brechtiano ou novas formas de relacionamento entre o espectador e o artista.
No processo de O Bando, este questionamento opera dentro da criação.
A ficção e a realidade parecem invadir a poética de O Bando. Não existe uma divisão entre um “aqui”
que é real e um “palco” que é ficcional. Ao contrário, procura-se uma forma onde as duas operam
dentro da cena. A relação entre o real e a ficção atravessa a poética do trabalho de O Bando em diversas
áreas. Para iniciar esta analise, vou entrar na área que é mais próxima ao meu trabalho como atriz.
A metodologia do ator do Teatro O Bando chamada Consciência do ator em cena, propõe uma
percepção do ator baseada na sensorialidade concreta, quer dizer, uma percepção a partir da descrição
física e não da interpretação psicológica. Como mencionei na análise do texto de trabalho, as
indicações para os atores são propostas a serem resolvidas na prática. Neste sentido, a dinâmica de
trabalho do grupo, desde o primeiro dia, oscilava entre as conversações, as leituras do texto e a
improvisação por parte do atores. E, aqui um dos seus procedimentos sobre a formação do ator, foi
colocado na prática.
Esta ferramenta permite ao ator ser consciente do que lhe acontece como pessoa e como personagem na
cena. A partir de este estado particular, o ator em cena comunica aquilo que está a lhe acontecer tanto
como ator quanto como personagem. Agora, a linguagem a usar diferencia um discurso de outro,
desassocia uma voz de outra. O ator usa a primeira pessoa quando se trata de sucessos que lhe
acontecem à personagem e a terceira pessoa quando se trata dele mesmo. Trata-se de uma consciência
concreta que permite que o ator e a atriz deambulem entre estes dois polos e descubram todos seus
matizes possíveis. Esta aproximação esquizofrénica revela uma realidade que ocorre no ator dentro do
palco que, geralmente, as técnicas tentam escondê-la ou, inclusive, negá-la. Neste sentido, este
procedimento radicaliza a dicotomia aparente e revela relações de várias linhas de força dentro do ator.
O jogo de vozes e intenções entre realidade e ficção constroem uma existência múltipla e intrincada
para o ator.
Agora bem, para continuar esta análise sobre a relação entre ficção e realidade, é necessário apresentar
a noção de João Brites sobre a arte cênica: “O teatro é uma representação do tempo que materializamos
insistentemente. A materialização de uma ideia? Não. Nossa prática contamina nosso pensamento e
vice-versa. Não se trata de uma tradução directa nem linear.” (Maldonado, 2019a, p.22). Esta ideia
apresenta uma relação outra à da causa-efeito. Entre a concepção e a sua materialização, O Bando
procura uma dinâmica mas processual que Brites denominou de saltos: “entre a materialidade e o
abstrato.” (Maldonado, 2019a, p.15). Neste sentido, a criação trata-se de um percurso de errância, quer
dizer, vacilante e incerto que viaja entre a materialização e a abstração, o real e a ficção.
A perspectiva processual dentro da observação geneticista procura encontrar estas dinâmicas criativas
que por vezes aparecem ambíguas diante da concreção da obra acabada. Os geneticistas Frederik Le
Roy, Edith Cassiers, Thomas Crombez e Luk Van den Dries assinalam que:

historicizada do olhar de acordo com códigos de percepção aceitos numa época dada; às reuniões cara a cara; aos
reencontros, a um diálogo entre espectador e espectador, entre palco e mundo.
[…] the relationship bet5ween the creative process and the final performance is complex, often elliptical,
and without a predetermined, linear path that leads from inception to result. Gaining access to, and
understanding this relationship, especially in theatre forms that rely more on performative and visual
rather than textual elements can pose significant methodological challenges. (2016, p. 468).
Dentro deste processo complexo, existem certas materialidades e realidades que denominei como
linhas de força que começam a mostrar caminhos ou formas possíveis, ou seja, mostram as dinâmicas
elípticas próprias à criação. Segundo Miguel Jesus e João Brites, depois deste primeiro momento mais
aberto às diversas vozes, o processo entrará pouco a pouco numa dinâmica de afunilamento.
(Maldonado, 2019b, p.37). Mas, por enquanto é um tempo de experimentação onde novas ideias e
articulações aparecem.
Durante os encontros em fevereiro, as conversações entre os diversos integrantes alimentavam e
construíam um imaginário mais complexo que tecia as diversas percepções não só da construção da
cena mas também das personagens. No terceiro dia, depois de uma improvisação, Miguel Jesus
percebeu um novo olhar sobre a personagem de Dante paralelo à de Shakespeare no relato do escritor
argentino Jose Luis Borges que inicia com a frase: “Nadie hubo en él” 6. (2007, p.189). E, Miguel
mencionou: “Dante é todos porque não sabe quem é.” Para poder imaginar com Miguel, a seguir as
palavras de Borges no conto Everything and Nothing do livro El Hacedor:
La historia agrega que, antes o después de morir, se supo frente a Dios y le dijo: “Yo, que tantos hombres
he sido en vano, quiero ser uno y yo”. La voz de Dios le contestó desde un torbellino: “Yo tampoco soy;
yo soñé el mundo como tú soñaste tu obra, mi Shakespeare, y entre las formas de mi sueño estabas tú, que
como yo eres muchos y nadie.”7 (Borges, 2007, p.193)
A noção de travessia interior ou o purgatório como trânsito começou a desenhar certas possibilidades
para o ator Nelson Montforte que apareceram da sua forma de enfrentar o texto, seja nas leituras ou nas
improvisações. Paralelamente, a direção criativa tinha preparado um exercício que permitisse ao ator
Nelson entrar na dinâmica de realidade/ficção. No dia 25 de abril, o ator assistiu à manifestação numa
cadeira de rodas. Para sintetizar sua experiência, no dia a seguir, apresentou uma improvisação sobre
sua vivência onde mostrou uma edição da gravação que realizou com seu telefone e trabalhou com o
elemento da cadeira de rodas.

5 […] a relação entre o processo criativo e a apresentação final é complexa, por vezes elíptica, e sem um caminho linear
ou predeterminado que leva desde o início ao resultado. Obter acesso e compreender essa relação, especialmente em
formas de teatro que dependem mais de elementos performáticos e visuais do que textuais, pode representar desafios
metodológicos significativos.
6 Ninguém existia nele.
7 A história acrescenta que, antes ou depois de morrer, se colocou diante de Deus e disse: Eu, que tantos homens tenho
sido em vão, queria ser um só, eu. A voz de Deus, trovejante, lhe respondeu: Nem mesmo eu sou eu; sonhei o mundo
como tu sonhaste tua obra meu Shakespeare, e entre as formas do meu sonho estavas tu que como eu era muitos e
ninguém.
Apresentação de Nélson Montforte, Sala
N.2, dia 26 de abril de 2019, Casa de
Teatro de O Bando, Palmela

Este tipo de exercícios, mas do que apresentar soluções cénicas, procuram gerar uma espécie de
património simbólico comum no grupo (Maldonado, 2019b, p.41) que fica no pano de fundo e
acompanha aos integrantes. Lembremos que Nelson M., é um dos atores convidados e ainda que
participou da formação de ator que O Bando dirige, não faz parte da equipa permanente.
Outro elemento que manifesta a passagem entre realidade e ficção é o dispositivo cênico das rampas.
Agora bem, é necessário esclarecer que o questionamento de O Bando não pretende ser compartilhado
com o espectador, mas se encontra na etapa de manufactura, de construção da peça de teatro. Brites
aponta que: “Quando estamos no palco, somos personagens. É uma convenção. O teatro é uma
representação.” (Maldonado, 2019b, p.2) Mas dentro desta convenção trabalhamos entre a realidade e a
ficção. Mas dentro do processo de criação de O Bando esta relação é trazida à tona, quase que lembrada
de forma consciente.
Finalmente, o investigador geneticista, Hirton Fernandes está a pesquisar o processo de O Purgatório a
partir da hipótese que as gravações em vídeo podem constituir uma forma de anotação. Sua presença
era constante não só pela câmera, mas por um artefacto criado para reafirmar este trânsito constante
entre realidade e ficção. Este tipo de filtro foi concebido por Brites e Fernandes para evidenciar esta
passagem entre ficção e realidade.
Por um lado, sua presença lembrava-me o fato de ser observadora e também me colocava na
possibilidade de ser a observada. Este jogo entre o dentro e o fora, a obra e o público, o real ou a
ficção, a materialidade e a abstração começou a invadir minha própria lógica. E estas concepções
geraram questionamentos próprios sobre minha visão da arte e o mundo.
Hirton Fernandes atrás do filtro e da
câmera gravando um ensaio com os
atores Luis Fernando e rRita Brito, e o Hirton Fernandes atrás da
diretor João Brites, dia 22 de abril de câmera gravando uma
2019, Sala de espetáculos, Casa do conversação dos artistas,
Teatro O Bando, Palmela. dia 23 de abril de 2019,
Sala de Espetáculos, Casa
do Teatro O Bando,
Palmela.

As relações entre ficção e realidade, ideia e materialidade estão presentes no processo criativo de O
Bando. Assim, como a sua metodologia do ator procura trazer à consciência certos processos
cognitivos, sua metodologia de criação evidencia estas dualidades e trabalha com elas. Talvez por esta
razão, O Bando problematiza as funções dentro do teatro ao nomear as áreas de: dramatogenia,
dramatografia e dramatofonia (Anexo 1). Segundo Brites, a dramatogenia é a forma que o ator
transforma a dramaturgia, a dramatofonia aponta para o espaço entre a dramaturgia e a música e a
dramatografia é a passagem para o espaço. (Maldonado, 2019b, p.7). Neste sentido Brites assinala:
“Para pensar em dramaturgia precisamos duma espacialidade. (Maldonado, 2019 a , p19). A noção de
dispositivo cénico é um das maiores pesquisas de O Bando. Neste processo, o encenador caracterizou
as rampas como transposição. (Maldonado, 2019b, p24). Encontramos assim, outra forma de lembrar
que a arte é um processo de passagem entre domínios. Como Cecília A. Salles aponta, o artista na
criação realiza este movimento traduttrrio, na medida em qute elementos são transorormados de utma
lingutagem para outtra, out seja, existe utma transmuttação de crdigos. (2004, p.115). Ou seja, a noção de
construção está presente durante a criação e esta acontece dentro da realidade e a ficção e a ideia e a
materialidade.
Estes são alguns princípios criativos do grupo que operam também a maneira de propulsores e
problematizadores, ou seja, linhas de força da criação. (Lucet, 2014a). Mas também, observar o
processo de criação significou entrar dentro dum campo de perspectivas, posturas e formas de ver e
experimentar a criação e o mundo. Agora, resta a pergunta sobre como o processo de afunilamento que
está a acontecer agora no processo criativo vai desenhar o produto final de O Purgatório do Teatro O
Bando.
Bibliografia

ARGOS: Actes de Création et Dynamiques de Collaborations Croisées - Arts de la Scène | Creative


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ANEXO 1:
Primeira página do texto de trabalho entregado à autora no dia 23 de abril de 2019 onde consta a
relação dos integrantes do processo de criação O Purgatório do Teatro O Bando

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