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ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

José carlos dantas

ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA

São Luís

2011
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parte, sem a prévia autorização desta instituição.

Dantas, José Carlos


Antropologia filosófica / José Carlos Dantas. - São
Luís: UemaNet, 2011.
229 p.
ISBN: 978-85-63683-14-4
1. Antropologia filosófica. I. Título.

CDU: 141.319.8
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Orientação para estudo

Ao longo deste fascículo serão encontrados alguns ícones utilizados


para facilitar a comunicação com você.

Saiba o que cada um significa.

ATIVIDADES REFERÊNCIAS SUGESTÃO DE FILME

SAIBA MAIS GLOSSÁRIO ATENÇÃO PENSE


SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO

UNIDADE 1
FENOMENOLOGIA HUMANA ........................................... 23

O QUE É O HOMEM? É PONTO DE PARTIDA DA ANTROPO-


LOGIA FILOSÓFICA ........................................................... 25

Premissa Fundamental: o homem como ser


multidimensional ...................................................... 27

TRAÇOS DA FENOMENOLOGIA HUMANA ...................... 29

O homem como ser material e natural .......................... 29

O homem como ser racional ....................................... 33

O homem como ser sociopolítico ................................. 40

O homem como ser ético-moral .................................. 45

O homem como ser de práxis ...................................... 59

O homem enquanto ser estético ................................... 62

O homem como ser religioso e transcendente ............. 67


A PESSOA E SUAS MARCAS FUNDAMENTAIS ............. 82
UNIDADE 2
CONSTITUIÇÃO CIENTÍFICA DA ANTROPOLOGIA NO
OCIDENTE ............................................................................... 95

O CAMPO DAS CIÊNCIAS HUMANAS E A ANTROPOLOGIA


FILOSÓFICA ............................................................................. 96

O TERMO, A LEGITIMIDADE E BREVES TRAÇOS


HISTÓRICOS DA ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA .. 99

AS QUESTÕES DO ESTATUTO E DA METODOLOGIA


NA ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA ......................... 106

UNIDADE 3
CONCEPÇÕES ANTROPOLÓGICAS À LUZ DA FILOSOFIA
NO OCIDENTE ........................................................................ 111

A CONCEPÇÃO CLÁSSICA DE HOMEM ......................... 114

O homem na Grécia arcaica ...................................... 114

Teológico ou religioso ........................................... 115

Cosmológico ........................................................ 115

Antropológico ....................................................... 115

A antropologia sofística ............................................. 116

A transição socrática .................................................. 117

Antropologia platônica .............................................. 118

Antropologia aristotélica ............................................ 119

CONCEPÇÃO BÍBLICA E PATRÍSTICA DE HOMEM ........ 121

CONCEPÇÃO MEDIEVAL DE HOMEM ............................ 123

CONCEPÇÃO MODERNA DE HOMEM ............................. 124

Concepção humanístico-racionalista de homem ........ 125

A imagem de homem na época da Ilustração ............ 127


Compreensão kantiana de homem ............................. 129

O HOMEM NA FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA ............... 130

Concepção de homem no Idealismo Alemão e em


Rousseau ................................................................... 130

O homem na perspectiva hegeliana ............................ 131

Antropologia pós-hegeliana: Feuerbach e Marx .......... 132

Modelos de Antropologia Contemporânea ................. 134

UNIDADE 4
DIMENSÕES FUNDAMENTAIS DO HOMEM ..................... 149

FENOMENOLOGIA DA LINGUAGEM: conceitualizações e


relevância ........................................................................... 151

Aspectos estruturais da linguagem: divisão, essência e


níveis ......................................................................... 154

A origem e trajetória da linguagem ............................ 155

A CULTURA ........................................................................ 167

Conceitualizações ...................................................... 168

Natureza e Cultura .................................................... 170

Cultura e Sociedade .................................................. 172

Cultura como bem de produção e bem de consumo .. 173

A liberdade: a perspectiva sartreana ........................... 177

UNIDADE 5
DUAS PERSPECTIVAS HUMANISTAS: o marxismo e o
existencialismo ............................................................................ 193

O HOMEM NO MARXISMO ........................................................ 195

O HOMEM NO EXISTENCIALISMO ........................................... 200


CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................ 214

REFERÊNCIAS ................................................................... 217


PLANO DE ENSINO
DISCIPLINA: Antropologia Filosófica
Carga horária: 60 h

EMENTA

Antropologia Filosófica e Filosofia. O homem, o tempo e a história:


o projeto histórico. O homem e os valores: o projeto ético. O
homem e o Estado: o projeto político. O homem e a educação: o
projeto pedagógico. O homem e a libertação: a proposta marxista,
existencialista e a proposta cristã.

OBJETIVOS

Geral

Proporcionar reflexões, conhecimento e entendimento sob o homem à


luz da Antropologia Filosófica.

Específicos

¡ Favorecer reflexões e debates em torno de aspectos básicos do


fenômeno humano;
¡ Destacar conceitos antropológicos básicos;
¡ Identificar elementos fundamentais da constituição científica da
Antropologia;
¡ Compreender criticamente elementos do ser humano:
linguagem, cultura e liberdade;
¡ Abordar sucintamente as propostas humanísticas de Karl Max e
Jean-Paul Sartre.

CONTEÚDO PROGRAMÁTICO

UNIDADE 1
FENOMENOLOGIA HUMANA

UNIDADE 2
CONSTITUIÇÃO CIENTÍFICA DA ANTROPOLOGIA NO
OCIDENTE

UNIDADE 3
CONCEPÇÕES ANTROPOLÓGICAS À LUZ DA FILOSOFIA NO
OCIDENTE


UNIDADE 4
DIMENSÕES FUNDAMENTAIS DO HOMEM

UNIDADE 5
DUAS PERSPECTIVAS HUMANISTAS: o marxismo e o
existencialismo
METODOLOGIA

O desenvolvimento e a avaliação da disciplina serão realizados de


acordo com as diretrizes e orientações para a Educação a Distância.

AVALIAÇÃO

A avaliação se dará em função dos objetivos propostos, levando em


consideração: a leitura dos textos sugeridos; o desenvolvimento das
atividades propostas; as anotações e os questionamentos levantados e
a participação nas discussões nos momentos presenciais.
APRESENTAÇÃO

Caro estudante,

A Antropologia Filosófica, podemos dizer, é uma disciplina fundante,


por isso, de praxe, os cursos de graduação em filosofia a introduzem
entre os primeiros períodos exatamente na intenção fundamental de
favorecer uma reflexão básica sobre o fenômeno humano.

A antropologia é assim fascinante, porque, enquanto “estudo do


homem” sob luzes filosóficas, nos faz imaginar uma espécie de espelho
pelo qual buscamos desvelar ou compreender feições de nós mesmos.
Mas ao mesmo tempo desafiante, porque a imagem revelada é apenas
parte do que somos.

Assim, entre empolgações e limites, convido você a acompanhar


as cinco unidades que compõem o presente curso de Antropologia
Filosófica. A primeira unidade aborda traços da fenomenologia
humana: natureza, razão, política, ética, práxis, estética e religião. A
segunda explicita brevemente a constituição científica e a trajetória
histórica da disciplina. A terceira trata da imagem ocidental de homem
dos gregos arcaicos aos tempos atuais. A quarta unidade reflete
três dimensões humanas fundamentais: a linguagem, a cultura e a
liberdade. A quinta discorre sobre duas perspectivas humanistas: o
marxismo e o existencialismo (sartreano).
No princípio de cada unidade apresentamos motivações, objetivos
e roteiro principal de estudos. No final, sugerimos filmes, textos e
músicas que complementam o conteúdo proposto. Encerramos cada
unidade indicando algumas questões relativas ao assunto estudado.
De sua parte o esforço, o disciplinamento e a ampliação de leituras
caracterizarão sua seriedade e sua responsabilidade acadêmica cujo
reflexo posterior será o nível de sua atuação profissional. Isso não
significa, obviamente, eliminar outros aspectos da vida, apenas orientar
certa prioridade para esta fase acadêmica ora vivenciada.

Oxalá este fascículo dedicado à Antropologia Filosófica mediante


suas leituras, reflexões e debates críticos possa contribuir para um
razoável entendimento sobre o homem e, mais que isso, nos incitar ao
compromisso e responsabilidade histórica de cada um nós na esfera
ou no contexto em que atuarmos.

Por fim, é importante ressaltar que estamos juntos nesta caminhada


antropológica. Saiba que você poderá contar com uma série de
profissionais envolvidos e dispostos a interagir continuamente.

Um grande abraço! Muito sucesso nos estudos!


INTRODUÇÃO

“Em busca do primeiro homem” é uma matéria da jornalista Kate


Wong na Scientific American Brasil (Nº 37 – junho 2010), que trata da
pesquisa do paleontólogo Michel Brunet e sua equipe da Universidade
de Poitiers, o qual apresentou em julho de 2002 o Sahelantropus
tchadensis (Toumai – “esperança de vida”), desenterrado no deserto
de Djurab, no Chade, como sendo “o mais antigo hominídeo”, datando Encontrado no Chade, África,
em 2001, supostamente o
de aproximadamente 7 milhões de anos, tempo em que, segundo o hominídeo mais antigo. Apesar
de ser encontrado apenas
pesquisador, a linhagem dos chimpanzés e a nossa teriam se separado. o crânio e a mandíbula, há
pesquisadores que asseguram
A Era do Vazio é um livro que aborda o individualismo contemporâneo que detalhes do crânio
demarcado conforme o autor, o filósofo francês Gilles Lipovetsky sugerem o bipedismo.

(1993, p. 1-3) pela prevalência da sedução a qual “se tornou um


processo geral com tendências a regrar o consumo, as organizações, a
informação, a educação, os costumes. [...]. De agora em diante, o self-
service e o atendimento à la carte designam o modelo geral da vida
nas sociedades contemporâneas...” as quais caracterizadas conforme
o sociólogo Zygmunt Bauman, pela liquidez, tal como ele afirma em
seu recente livro Vida Líquida (2009, p.7): “‘Líquido-moderna’ é uma
sociedade em que as condições sob as quais agem seus membros
mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para
consolidação, em hábitos e rotinas, da formas de agir.”

Controvérsias à parte envolvendo essas teses, o fato é que no horizonte


do extenso arco do tempo entre homem primitivo o homem hodierno,
permanece o que diz Wong ao encerrar sua reportagem: “Muitos
de nós passamos a melhor parte da vida procurando nós mesmos.”
(WONG, 2010, p. 15). Uma frase como que reverberada do eco da
eterna máxima precípua de Sócrates: “Conhece-te a ti mesmo.” Esta
busca incessante do homem por ele mesmo é, com efeito, a anima, por
excelência, da Antropologia, principalmente quando tomada à luz da
Filosofia tal como bem expressa na assertiva de Cassirer (2001, p. 9):
“Que o conhecimento de si mesmo é a mais alta indagação filosófica
parece ser geralmente reconhecido.”

Consideremos, entretanto, o seguinte: se questionamos a certeza da


verdade afirmada pelo conhecimento de maneira geral, a partir daquela
indagação de se os objetos do mundo efetivamente se manifestam
com clareza, um tanto mais instigante é o desafio da Antropologia:
desvelar o homem. Podemos, com efeito, interpor questões como
estas: O homem realmente se revela? Como e em que nível o homem
se manifesta? Sob quais parâmetros ou critérios aprendê-lo? Haveria
uma autarquia antropológica uma vez que o investigador é também
simultaneamente o objeto investigado? Que validade científica teriam
então as assertivas antropológicas?

Mas estas questões podem ser sintetizadas naquela que é o problema


essencial da Antropologia Filosófica: o que é o homem? Rabuske (2001;
p. 13) lembra a afirmação de Heidegger segundo a qual “nenhuma
época teve noções tão variadas e numerosas sobre o homem como a
atual. [...]. Mas também é verdade que nenhuma época soube menos
que a nossa o que é o homem. Nunca o homem assumiu um aspecto
tão problemático como atualmente.”

De fato, atualmente devemos colocar aquela admirável inquietação


levando em conta a diversidade de paradigmas científicos pelos quais
se espelham as interfaces do homem, convergentes numa dimensão
de totalidade humana, como diz Edgar Morin.

Tendo, pois, em mente esta perspectiva de multidimensionalidade,


nosso curso esquematicamente divide-se, como já dissemos, em cinco
unidades.

Começaremos refletindo alguns traços da fenomenologia humana.


Marx, Arendt, Morin, Buzzi, entre outros pensadores, convergem
na tese fundamental de que o homem primeiramente enraiza-se no
mundo, articula a vida, as experiências e a história junto com seus
semelhantes no contexto do mundo real. “O homem é um campo de
relações [...]. Isso o faz ser-no-mundo e como-o-mundo” (BUZZI, 1987,
p. 246). Todavia, tal como assinala o helenista Vernant, referindo-se
à sobrepujança do logos ao mito, a razão é a referência definitiva da
história da civilização humana, demarcada, por conseguinte, pela
socialidade e pela política como já afirmava Aristóteles. De fato,
apesar de frisar experiências políticas ocidentais frustrantes, Arendt
diz claramente que não existe ação nem “milagres” fora da esfera
política, a rigor, efetivada segundo Habermas, concordando com a
filósofa, num espaço em que se entrelaçam democracia e ética. Sobre
isso Perine afirma que todo homem, em princípio, é portador de um
“um saber ético-moral”; embora tensionado o acerto e o erro, pois
o homem pode e o faz com frequência, trair regras e valores. Não
obstante, Kant fundamenta a moralidade na boa vontade do sujeito
cujas máximas de ação atrelam-se a uma moral universal.

Permanece, entretanto, o problema básico do contentamento. Que


princípios orientariam a satisfação coletiva? Aquilo que é útil como Explica Perine, é relativo à vida
boa, à felicidade (eudaimonia)
afirma Bentham? O que é justo como defende Rawls? É a atribuição como dizia Aristóteles,
localizada, numa confluência
de responsabilidade holística como pensa Jonas? Para Habermas, (muitas vezes conflituosa) entre
o indivíduo e a coletividade.
a adoção de qualquer perspectiva de contentamento requer,
primeiramente, que princípios, normas e axiologias sejam discutidas
e avalizadas livre e racionalmente pelos envolvidos. Significa afirmar,
assim, que o homem reflete, discute e encaminha suas práticas. É um
ser de práxis. A práxis é, assim, um distintivo do homem consciente de
seu lugar no mundo.

Todavia, como nota o teólogo Boff, o homem transcende ao próprio


mundo, por exemplo, pela arte e pela religião. Do ponto de vista da
arte, podemos mencionar a alusão de Cotrim a uma feliz expressão de
Schiller em defesa da estética: “a arte é filha da liberdade e quer ser
legislada pela necessidade do espírito, não pela carência da matéria.”
Quanto à religião, mesmo um ateu assumido como Feuerbach,
assegura que só o homem produz religião. Esta é co-extensiva à cultura.
O historiador das religiões Mircea Eliade, nos mostra que em todas as
sociedades encontramos traços hierofânicos e distinção entre sagrado
e profano. Além disso, a religião une espantosamente os mundos
imanente e transcendente – o “cá em baixo” ao “lá em cima,” afirma
Berger. Porém, para críticos radicais como Marx, Freud e Nietzsche – “
os mestres da suspeita” como os alcunhou Paul Ricoeur, em vez desse
suporte civilizatório, ela é alienante, neurótica e desumanizante e,
portanto, um obstáculo removível enquanto condição de possibilidade
da emancipação humana.

Tratando-se de emancipação, os antropólogos espanhóis Stork e


Echevarría, consideram-na impossível, sem o devido realce à dignidade
e à pessoalidade de cada um de nós. Com efeito, violências incidentes
sobre o indivíduo contradizem qualquer progresso civilizatório

Talvez já tenhamos percebido que o tino da antropologia é seguir o


encalço da humanidade. Neste sentido, a segunda unidade aborda
ainda que brevemente sua constituição científica: natureza, importância
e suas metodologias. Sendo uma disciplina pulsante, a Antropologia é,
obviamente, tecida por muitas mentes e mãos.

Um dos pensadores indispensáveis em torno da trajetória humana,


sobretudo no Ocidente, é o padre Lima Vaz. Na terceira unidade vamos
acompanhar o fluxo de suas reflexões antropológicas desde a Grécia
arcaica à contemporaneidade. Perceberemos que houve um tempo
mítico-cosmogônico, em que o homem submetia-se às prescrições
divinas. Mas a partir da virada cosmológica e mais ainda desde os
sofistas, Sócrates, Platão e Aristóteles, ressalvando-se as importantes
distinções programáticas entre eles, “as coisas humanas” passaram a
pautar as discussões teóricas. Tanto, que Lima Vaz mostra claramente
como a herança clássica incidiu contundente e até dogmaticamente
sobre as interpretações antropológicas posteriores, especialmente
nos tempos patrístico e medieval, mesmo que as revelações bíblicas
e as doutrinas teológico-eclesiásticas relevantes sejam doravante
indispensáveis. Uma célebre expressão desse contexto teocêntrico –
porque Deus é o Alfa e o Ômega – é pronunciada por santo Agostinho:
“o homem é um itinerante para Deus.”

Entretanto, acompanhando Lima Vaz, perceberemos entre os


séculos XV e XVIII, quando ocorrem complexas transformações
e fatos históricos importantes como a Ilustração e o Renascimento,
transitamos, então, para novos tempos onde ideais como humanidade,
civilização, tolerância e revolução passam a interferir nas questões
antropológicas. De Nicolau de Cusa a Sartre, passando por Pico della
Mirandòla, Maquiavel, Descartes, Pascal, Hobbes, Locke, Rousseau,
Hegel, Kant, Feuerbach, Marx, Kierkegaard, o homem é interpretado
além daqueles ideais supracitados, por traços realmente inovadores:
pluralidade cultural, realismo político, racionalismo, materialismo,
alienação etc. Estes e outros caracteres desembocam na antropologia
contemporânea, acalorando mais ainda os debates agora sob um
panorama pluriversal, para dizer, portanto, que o homem é atualmente
considerado em espraiadas direções.

Nos limites do presente curso, vamos abarcar apenas três direções


específicas: a linguagem, a cultura e a liberdade. Estas formam as
reflexões da terceira unidade intitulada Dimensões Fundamentais do
Ser Humano. Claro que poderiam ser outras. Pensamos, porém que
elas traduzem elementos humanos fundamentais. A linguagem, por
exemplo, é a epifania do ser, assevera Heidegger; ou ainda como
diz Cassirer, é um dos meios fundamentais do espírito: é por ela que
transitamos do mundo da sensação ao mundo da representação; é por
ela certamente que entramos no mundo, afirma com razão Gusdorf,
e Rousseau completa acertadamente ao notar que não se sabe de
onde é um homem, antes que ele fale. A Linguagem, portanto, é um
sistema sígnico e abstrato; um fenômeno articulado e universal, que
torna o homem um homo loquens, diferenciado dos demais seres,
ainda mais na esfera da competência pragmático-discursiva, onde se
localizam homens que se preocupam e debatem desafios e propostas
emancipatórias em nosso complexo tempo, tal como veremos na
análise de Habermas.

Ora, a linguagem é, evidentemente, inseparável da cultura. Mas o


que é cultura? O que uma reflexão sobre cultura pode revelar sobre
o homem? Pode-se dizer, em tese, que tal revelação depende do
paradigma pelo qual se pretende enxergar uma cultura. Num teor
nitidamente crítico, discutiremos como o professor Álvaro Vieira Pinto
pensa a cultura no seu livro Ciência e Existência.

Uma das coisas que notaremos bem é que a cultura, assim como a
história, é uma construção humana. O homem é assim o artífice do
mundo e de seu destino. Podemos adiantar que nada nos é dado a
priori, isto é, antes da existência propriamente dita. Considerando
estas afirmações, já estamos no campo de discussão sobre a liberdade
pensada por Sartre no texto O Existencialismo é um Humanismo. E
assim encerramos nossa quarta unidade.

Nossa quinta e última unidade retoma dois autores – Marx e Sartre –,


para nos oportunizar uma discussão mais específica sobre suas leituras
humanísticas, designadas como materialismo e existencialismo. Ambas
razoavelmente tratadas pelo jesuíta francês Auguste Etcheverry em
O Conflito Atual dos Humanismos. Em que pese certa superação de
algumas teses de Marx, não há como negar suas afirmações sobre o
lugar do homem no mundo e na história e muito menos suas radicais
críticas ao capitalismo enquanto sistema contraposto por natureza a
um projeto de mundo melhor para se viver. Sartre, por outro lado,
pensa no homem emancipado como aquele que superou entraves
subjetivos e objetivos que o impediam de traçar as histórias pessoal e
coletiva. Seria então a plenitude do protagonismo humano.

Convenhamos, realmente, que no atual estágio científico-tecnológico


a sensação de determinação humana nos destinos pólis – enquanto
sociedade globalizada – parece muito mais à mão, através dos
poderes conexos das ciências e das tecnologias. Não obstante toda
esta sofisticação desperta críticas e preocupações sérias, fazendo-nos
requerer, consequentemente, cada vez mais os auspícios da ética para
que não entremos numa rota de cientificismos desgovernados.

Munidos dessas motivações iniciais e perspectivas de boas leituras,


reflexões críticas e debates animados, assumamos juntos a expectativa
de podermos no final de nossa jornada visualizar melhor o que vem a
ser o homem ou de forma mais calorosa e íntima, quem, afinal, somos
nós mesmos.
unidade

1
Objetivos dESTA unidade:
FENOMENOLOGIA HUMANA
Compreender o homem
enquanto ser complexo e
pluridimensional;
Analisar criticamente
alguns traços
fundamentais do homem;

PALAVRA INICIAL.... Refletir sobre sentido


fundamental do conceito
Estimado companheiro de reflexão... de pessoa.

Estimada companheira de reflexão...

Primeiramente seja bem-vindo (a) nesta alegre empreitada


ou neste feliz desafio que ora assumimos de abordar, refletir e
tentar compreender criticamente o homem, pelos caminhos da
Antropologia sob a luz da Filosofia.

A intenção básica desta primeira unidade é expor inicialmente


a complexidade e o desafio de responder à pergunta: o que é o
homem? Ora, esta, como você bem sabe, é uma questão sempre
antiga e sempre nova. Quem de nós em algum momento não já
se flagrou indagando-se a si mesmo: quem eu sou? O que me faz
igual e diferente aos outros seres? Aliás, consideremos algumas
situações fenomenais: um crime bárbaro, um assalto ousado
e surpreendente, ações corruptas repugnantes; mas também
relevantes trabalhos científicos, sofisticadas invenções tecnológicas,
fantásticas expressões de artes, emocionantes conquistas esportivas,
superações sensacionais de certos desafios. Pois bem, diante de
situações como estas, quem de nós já não pensou por um momento: o
homem, de fato, é estranho, surpreendente e fabuloso.

De fato, a complexidade humana parece inesgotável. Na esfera


específica da Antropologia Filosófica, nas próximas páginas, tomando
como referência importantes teorias, teremos a oportunidade de
discutir, analisar e criticar, pelo menos, algumas marcas humanas
interessantes: o homem é em primeiro lugar um ser natural e um ser
de corpo, mas, sobrepondo-se à naturalidade o homem é dotado
de complexa racionalidade, que o faz um ser reflexão e ação, isto é,
de práxis, e, enquanto tal, ele articula seus mundos social e político.
Assim, o mundo tem efetivamente a marca humana. Ao mesmo
tempo, porém, o homem transcende sua materialidade por conta das
suas crenças e, por isso, o homem projeta-se e espera um mundo para
além deste e traduz ou exprime essa dimensão, através de simbologias,
rituais e celebrações religiosas.

Considere, ainda, caro estudante, o aspecto da pessoa humana enquanto


tal. Neste caso, você terá oportunidade de refletir sobre essa questão
tomando por base as ideias de dois antropólogos espanhóis. Eles dizem,
por exemplo, que a pessoa humana é fonte de toda dignidade. A partir
deste conceito se pode pensar o nível ou alcance do tratamento dado
às pessoas, inclusive em nosso país e, mais precisamente, aos mais
pobres. Portanto, a Antropologia Filosófica nos incita a tentarmos no
espelho de suas teorias, nos incita tertarmos ou, ao menos, termos uma
compreensão razoável de quem somos nós mesmos.

ITINERÁRIO DE ESTUDOS

Compreensão crítica de alguns caracteres básicos do ser humano:


material/natural, racional, sociopolítico, ético-moral, práxis e religioso;

O conceito antropológico de pessoa humana.

24 filosofia
O que é o homem? É ponto de partida da
Antropologia Filosófica

É interessante que se comece considerando que a Antropologia


Filosófica é a disciplina que, por natureza, assume-se, primordialmente,
com a pergunta “O que é o homem?”, porque esta é, precisamente,
a questão que traduz ou explicita o objeto ou telos principal de sua
pesquisa. Convém advertir, todavia, que a preocupação demarcada
na pergunta reflete muito mais a complexidade deste objeto, isto é, o
próprio homem, do que perspectiva de desvelamento ou definição do
mesmo.

O professor Edvino Rabuske, na sua obra Antropologia Filosófica,


precisamente na Introdução, apresenta algumas célebres expressões
sintéticas sobre o homem.

Houve, por exemplo, quem ressaltasse, efetivamente, num contexto


histórico específico, a relevância do homem tal como o italiano
Giordano Bruno ao afirmar: “o homem se situa no limite entre
eternidade e tempo, participando de ambos.” Esta ideia de “dupla
cidadania”, embora com outra conotação, reaparece em Kant ao Em Kant, de modo geral,
fenômeno é relativo ao
considerar o homem como fenomênico e noumênico. Para Blaise mundo sensível e noumeno
ao mundo inteligível. Em
Pascal, o homem é a implicação da dignidade e do limite de si próprio se tratando do homem,
este pertence ao mundo
ao dizer que “o pensamento é, portanto, a nossa suprema dignidade. O sensível e só pode conhecer,
efetivamente, os fenômenos.
homem transcende infinitamente o homem.” Para outros, entretanto, o Por outro lado, o homem não
sendo preso às sensibilidades
homem circunscreve-se, fundamentalmente, na sua própria realidade, pode fundamentar, por
exemplo, sua moralidade em
parece que é o que Karl Marx quer dizer quando assegura que “o categorias transcendentais.
Consequentemente, é um ser
homem não passa de um conjunto de relações sociais.” Traduzir o livre, isto é, não dependente
de interesses e condições
homem fora da teia de relações seria desenraizá-lo de sua realidade, imediatas.

portanto, conduzi-lo para além de sua própria humanidade.

Observe que justamente a aura, por assim dizer, da Antropologia


Filosófica advém deste paradoxo: fascínio e desafio sintetizados
no próprio homem. Aliás, neste campo específico e apropriado da
antropologia ele é, simultaneamente, sujeito e objeto de estudo.
Portanto, a responsabilidade e o encanto dessa disciplina, consistem,

antropologia filosófica | unidade 1 25


literalmente, em instigar, compreender, descrever o homem à luz da
filosofia. Notemos, a propósito, a seguinte afirmação de Rousseau:

O mais útil e o menos avançado de todos os


conhecimentos humanos parece-me ser o do homem
e ouso afirmar que a simples inscrição do templo de
Delfos continha um preceito mais importante e mais
difícil que todos os grossos livros dos moralistas...”
(ROUSSEAU, 1973, p. 233).

De fato, o homem é a realidade mais profunda e mais complexa que


se conhece no mundo natural. Pico della Mirândola afirma ter lido
que um antigo escritor árabe, Abdala, ao ser questionado sobre o que
considerava mais admirável neste mundo, respondera imediatamente:
o homem. Pico (s/d, p. 37-38) completa afirmando que “o homem,
na verdade, é reconhecido e consagrado, com plenitude de direitos,
por ser, efetivamente, um portentoso milagre.” O homem que somos
parece, pois, fascinante, mas, ao mesmo tempo, nas palavras do
filósofo Jaspers, a mais enigmática dentre as coisas.

No século XX, uma gama de conhecimentos lançou, certamente, mais


luz sobre o ser humano no universo, insuficientes, inclusive, porque
compartimentados ou fracionados para abarcar a complexidade do
homem. Observe, com efeito, o que o pensador francês, Edgar Morin
Edgar Morin - 1921
Fonte: http://www.google.com.br
(2001, p. 47-48), ressalta nas seguintes palavras:

Os progressos concomitantes da cosmologia, das


ciências da Terra, da ecologia, da biologia, da pré-
história, nos anos 60-70, modificaram as ideias sobre o
Universo, a Terra, a Vida e sobre o próprio homem. Mas
estas contribuições permanecem ainda desunidas. O
humano continua esquartejado, partido como pedaços
de um quebra-cabeça ao qual falta uma peça.

E numa crítica aberta às “ilhas” departamentais, logo fragmentárias,


das ciências sobre o homem, continua Morin (2001, p. 48):

Aqui se apresenta um problema epistemológico:


é impossível conceber a unidade complexa do ser
humano pelo pensamento disjuntivo, que concebe
nossa humanidade de maneira insular, fora do cosmos
que a rodeia, da matéria física e do espírito do qual
somos constituídos, bem como o pensamento redutor,
que restringe a unidade humana a um substrato
puramente bio-anatômico. [...]. Paradoxalmente
assiste-se ao agravamento da ignorância do todo,
enquanto avança o conhecimento das partes.

26 filosofia
Destarte, você percebe bem que a marca primordial do homem é
exatamente a complexidade em função da sua multidimensionalidade.
É uma condição sine qua non para um sério enfoque antropológico.

Premissa Fundamental: o homem como ser multidimensional

O homem não pode ser visto perspectivamente de um ou outro ângulo,


exatamente porque nenhum ângulo ou parte exprime a totalidade
do homem. Com efeito, o homem apresenta dimensão somática,
psíquica, racional, individual, social, econômica, política, sapiencial,
erótica, estética, técnica, informacional, ética etc. Ora, estas faces são
interconexas e não excludentes.

É claro que se pode privilegiar ou sublinhar qualquer um destes aspectos Lima Vaz observa, por
exemplo, que o reducionismo
numa determinada análise, desde que se evite o reducionismo economicista que ocorre em
certas interpretações marxistas,
antropológico. A especialidade deixa de ser legítima à medida inviabiliza uma compreensão
globalizante de homem.
que pretenda um teor de totalidade. Ressalte-se que cada dimensão,
exprime não uma fração, mas o homem global. Neste sentido, vejamos
o que o antropólogo Arduini (1989, p. 19) afirma:

A dimensão impregna a globalidade do existir humano


e, consequentemente, do seu agir. É o homem
todo e não só uma parte, que é pensante, efetivo,
temporalizado, dialogal, criador, sexual, imanente
e transcendente. Uma dimensão não contém a
totalidade do ser humano, mas marca-lhe a totalidade
do ser.

Deste modo se vê claramente que a partir deste princípio, se for


possível captar o homem – claro, como observa Cassirer, nunca será
nos moldes das coisas físicas, pois estas podem ser compreendidas em
suas propriedades objetivas, mas o homem só pode ser descrito em
termos de natureza – então isto só será possível em termos dialógicos.
Isto quer dizer que o tema do homem é, por natureza, interdisciplinar
e que, portanto, Antropologia sintoniza-se, ininterruptamente, com as
várias disciplinas – biologia, genética, filosofia, psicologia, sociologia,
economia, política, teologia, entre outras, que abordam ou tomam o
homem como objeto de estudo sob algum aspecto interessante.

antropologia filosófica | unidade 1 27


Aliás, um oportuno contraponto desta multidimensionalidade humana
configura-se na denúncia de Marcuse sobre a razão unidimensional
pela qual geralmente se orienta a moderna sociedade industrial e
seu consequente atrofiamento do homem. Nas palavras do pensador
alemão:
Marcuse nos anos 60
integrou o movimento da
“Contracultura” nos Estados [...] essa sociedade é irracional como um todo. Sua
Unidos e que se espraiou em produtividade é destruidora do livre desenvolvimento
outras partes do mundo, como das necessidades e faculdades humanas; [...]. As
forte manifestação contraposta
aptidões (intelectuais e materiais) da sociedade
à exploração capitalista.
contemporânea são incomensuravelmente maiores
do que nunca dantes – o que significa que o alcance
da dominação da sociedade sobre o indivíduo é
incomensuravelmente maior do que nunca dantes.
A nossa sociedade se distingue por conquistar as
forças sociais centrífugas mais pela Tecnologia do
que pelo Terror, com dúplice base numa eficiência
esmagadora e num padrão de vida crescente. [...].
Quando se percebe em nossos
dias as faculdades, o tempo Quanto mais racional, produtiva, técnica e total se
e mesma a vida do homem torna a administração repressiva da sociedade, tanto
administradas em função da mais inimagináveis se tornam os meios pelos quais os
racionalidade produtiva e a indivíduos administrados poderão romper sua servidão
consequente a perda do livre
desenvolvimento humano, não e conquistar sua própria libertação (MARCUSE, 1978,
é a permanência da servidão p. 14-28).
denunciada por Marcuse?

A Antropologia Filosófica, neste sentido, assume a perspectiva de


que embora se considere os aperfeiçoamentos especializados sobre o
homem, este só pode ser compreendido numa abordagem integrativa,
inclusive quando tomado por algum ramo da Antropologia: biológica,
linguística, social, política, cultural, teológica etc.

Perceba, então, neste sentido, caro estudante, que a própria


Antropologia deve, portanto, precaver-se, como já observamos, dos
estudos fragmentários ou reducionistas. Como ressalva Laplantine,
Movimento Contracultura (2007, p. 16): “só pode ser considerada como antropológica uma
Fonte: http://www.google.com.br
abordagem integrativa que objetive levar em consideração as
múltiplas dimensões do ser humano em sociedade. [...] uma das
maiores vocações de nossa abordagem (antropológica) consiste em
não parcelar o homem...”

De igual modo, Jaspers observa que o homem foi definido como ser de
palavra e pensamento (zoon logon echon), que estabelece legislação
à cidade (zoon politikon), que fabrica e trabalha com utensílios (homo
faber e laborans) e que assegura comunitariamente sua subsistência
(homo laborans). O que essas definições ratificam, afirma Jaspers,

28 filosofia
é que na perspectiva antropológica a imutabilidade é inconcebível.
Ao contrário, “a essência do homem é mutação: o homem não pode
permanecer como é. [...]. Contrariamente aos animais, ele não é um
ser que se repete de geração para geração.” (JASPERS, 2006, p. 47).

É exatamente nesta perspectiva de pluridimensionalidade, portanto,


na encruzilhada da interdisciplinaridade que se pode abordar e, por
conseguinte, compreender, ainda que limitadamente, aspectos do
fenômeno humano.

Traços da fenomenologia humana

O homem como ser material e natural

Conhecer o homem, conforme Edgar Morin, significa, primeiramente,


colocá-lo no universo e separá-lo dele. É uma conclusão básica que se
absorve do moderno progresso científico das ciências naturais, entre elas
a biologia e a ecologia. Com efeito, ressalta Morin (2001, p. 48):

[...] é impossível conceber a unidade complexa do ser


humano pelo pensamento disjuntivo, que concebe
nossa humanidade de maneira insular, fora do cosmos
que a rodeia, da matéria física e do espírito do qual
somos constituídos, bem como pelo pensamento
redutor, que restringe a unidade humana a um
substrato puramente bio-anatômico.

Considere, neste sentido, que o homem não é mais filho de um


Universo perfeitamente constituído, mas encontra-se no Cosmos
complexo e expansivo composto de bilhões de galáxias e estrelas,
como minúsculo passageiro da epopeia cósmica, precisamente, no
restrito espaço da terra, que, por sua vez, organizada na dependência
do Sol, torna-se um sistema biofísico que comporta a biosfera na
qual inclui-se esse diminuto broto de existência denominado homem.
Havemos, portanto, de concordar com Morin, quando realça que o
homem é simultaneamente cósmico e terrestre.

antropologia filosófica | unidade 1 29


Enquanto terreno o homem tal como figura hoje é resultado de
uma desenvoltura hominídea de milhões de anos – australopiteco,
homo habilis, homo erectus, neandertal e homo sapiens, em que
numa dinâmica evolutiva se resgistram bipedização, erguimento do
corpo, manualização, cerebralização, complexificação linguístico-
cultural com seus saberes, fazeres, mitos, crenças, artes etc. Então, a
interconexão entre o bio-físico e psico-cultural é um princípio fundante
da hominização.

Pense, então, na epopeia evolutiva do homem. Sob este ponto de


vista do processo evolutivo, o homem atual representa a passagem
das formas inferiores às mais complexas. Teilhard de Chardain nota o
seguinte: “O homem, não mais o centro estático do Mundo - como por
muito tempo ele se acreditou; mas como eixo e flecha da Evolução -,
o que é muito mais belo (CHARDIN, 2006, p. 28).

De fato, enquanto ser corpóreo o homem é matéria viva e


complexamente organizada, subordinada às mesmas leis que
governam as demais matérias. Lima Vaz observa que em primeiro lugar
considera-se que pelo seu corpo o homem presentifica-se no mundo.
“Ter o corpo próprio (eu corporal) significa transcender as totalidades
física e biológica (como nos animais) mediante a intencionalidade.”
O corpo, diz Arcângelo Buzzi (1987; p. 243), é “extensão em todas
as direções, uma multiplicidade com um único sentido, uma guerra e
No aforisma 40 de Humano
Demasiado Humano uma paz. [...]. O corpo é forma visível, densa resistente, compacta de
(1886), Nietzsche denuncia
o cerceamento moral da poder, toda feita para buscar e procurar, para encontrar e estar junto. É
animalidade humana, quando
afirma o seguinte: “Sem ponte que busca e aproxima. É corda.” Nietzsche tem neste sentido
os erros que se acham nas
suposições da moral, o homem uma arguta asserção:
teria permanecido animal.
[...]. Por isso ele [o homem] O homem é corda estendida entre o animal e o
tem ódio aos estágios que Super-homem: uma corda sobre um abismo; perigosa
ficaram mais próximos da travessia, perigoso caminhar; perigoso olhar para trás,
animalidade...” (NIETZSCHE, perigoso tremer e parar. (NIETZSCHE, 1999, p. 26).
Friedrich, 2000, p. 49).

A dimensão da materialidade humana é marcantemente talhada


por Marx, a partir, entretanto, da perspectiva de expor a realidade
econômico-política do homem. Note, então, que à luz de uma
Efetivamente, não temos sido
“educados” num sistema interpretação marxiana, o homem é primordialmente natural. Precisa
moral que em nome de certos
valores nos têm treinado a da natureza para sobreviver e, ao mesmo tempo, age reflexivamente
sufocar ou a negar nossos
traços mais naturais? sobre ela para sobreviver e, nessa dinâmica, traduz-se como ser de

30 filosofia
práxis, à medida que exerce atividade externamente modificando a
natureza e desenvolvendo faculdades latentes.

Para Marx, a organização corporal é que condiciona a produção


de meios para sua subsistência, e assim o homem distancia-se dos
animais. Esta concepção natural de homem subjaz nos pensamentos Práxis - de maneira elementar
e sucinta, pode-se falar da
de Marx e de seu amigo Engels, os quais inspirados, nas ideias de práxis como a prática da teoria
e a teorização da prática.
Feuerbach, assumem o primado da materialidade. Por exemplo, na À frente do presente texto,
Ideologia Alemã (1845-46), o afirmam explicitamente: abordar-se-á especificamente
sobre a dimensão humana da
práxis.
Podemos distinguir os homens dos animais pela
Atividade - o trabalho faz o
consciência, pela religião, por tudo o que quiser. Mas homem, afirma o pensador
eles começam a distinguir-se dos animais assim que francês Roger Garaudy em
começam a produzir os seus meios de vida, passo A Teoria Materialsita da
este que é condicionado pela sua organização física. Consciência.
Ao produzirem os seus meios de vida, os homens
produzem indiretamente a sua própria vida material
(MARX: ENGELS, 1984, p. 15).

E ainda:

A produção das ideias, as representações, da


consciência está a princípio diretamente entrelaçada
com a atividade material e o intercâmbio material
dos homens, linguagem da vida real. O representar, o
pensar, o intercâmbio espiritual dos homens aparecem
aqui ainda como efluxo direto de seu comportamento
material (MARX: ENGELS, 1984, p.22).
Trabalho escravo
Fonte: http://www.google.
Convém, entretanto, que notemos que em Marx este materialismo com.br

– como se sabe –, é essencialmente dialético, como bem observa


Etcheverry (1975, p. 145):

A evolução, ou melhor, a revolução, está no âmago


da natureza e da história. O mundo revela-se com um Professora em atividade
Fonte: http://www.google.com.br
sistema de contradições superadas.

Está claro, pois, que não há dissociação entre pensamento e ação –


que é luta contra as misérias da vida e as resistências do universo.

Agora observe que esta complexidade humana – ação e pensamento


–, pode-se compreender como aquilo que Hannah Arendt chamou de
vita activa, onde o labor e o trabalho constituem os níveis básicos da
condição humana. Ela assim explicita o que é labor:

antropologia filosófica | unidade 1 31


O labor é a atividade que corresponde ao processo
biológico do corpo humano, cujo crescimento
espontâneo, metabolismo e eventual declínio têm a ver
com as necessidades vitais produzidas e introduzidas
pelo labor no processo da vida. A condição humana
do labor é a própria vida (ARENDT, 2008, p. 15).

Em gradação ascendente, o trabalho refere-se à categoria de


artificialidade da existência humana. De fato, Marx já havia ressaltado a
relevância do trabalho no processo de realização humana. Em Hannah
Arendt (2008, p. 15), “o trabalho produz um mundo ‘artificial’ de
coisas nitidamente diferentes de qualquer ambiente natural. [...]. A
condição humana do trabalho é a mundanidade.”
Hannah Arendt: 1906 - 1975
Fonte: http://www.google.com.br Todavia, a partir desse mundo material, o homem transcende para
outros níveis em função da desenvoltura de outras competências. Com
razão observa a mesma autora:

[...] as condições da existência humana – a própria


vida, a natalidade e a mortalidade, a mundanidade, a
pluralidade e o planeta Terra jamais podem ‘explicar’
o que somos ou responder a pergunta sobre o que
somos, pela simples razão de que jamais somos
condicionados de modo absoluto. [...] embora
vivamos agora, e talvez tenhamos que viver sempre,
sob condições terrenas, não somos meras criaturas
terrenas (ARENDT, 2008, p. 19).

De outra maneira, Erich Fromm ressalta que o animal se adapta


geralmente da mesma forma e caso a sua composição instintivo-
biológica não se adequar a transformações possíveis a espécie tende
ao ocaso. Com efeito, denota-se ausência de luta entre o animal e seu
meio. Ou ele se ajusta ao meio ou perece. A configuração humana no
cosmo é radicalmente diferente. Nas sábias palavras de Fromm:

O aparecimento do homem pode ser definido como


tendo ocorrido no ponto do processo da evolução
O dicionarista Silveira Bueno
explica que Paleontologia
em que a adaptação instintiva atingiu seu mínimo
significa tratado ou ciência (FROMM, 1983, p. 43).
dos animais e vegetais fósseis
e que inclui a Paleozoologia e
a Paleobotânica; além disso,
constitui uma relação entre a Considere agora a respeito desta escalada evolutiva do homem, esta
Biologia (restos orgânicos) e a
Geologia (formações rochosas pertinente observação do paleontólogo e pensador francês, o padre
que podem abrigar esses
restos). Teilhard de Chardain:

32 filosofia
Se queremos resolver essa questão [...] de
‘superioridade’ do homem aos animais, eu não vejo
senão um meio: por decididamente de lado, no feixe
dos comportamentos humanos, todas as manifestações
secundárias e equívocas da atividade interna e encarar
bem de frente o fenômeno central da Reflexão. [...],
por sermos reflexivos, não somos apenas, mas outros.
Não só simples mudança de grau, - mas mudança de
natureza – que resulta de uma mudança de estado
(CHARDAIN, 2006, p. 186-187).

Assim, nos introduzimos num terreno fundamentalmente humano: a


racionalidade que a seguir trataremos.

O homem como ser racional


Etimologicamente a palavra
razão remonta-se ao termo
grego Logos que designa
Em um sentido elementar e superficial pode-se afirmar que o homem cálculo (proporção de grandezas
diferentes); sobretudo, porém, por
sobressai-se em relação a outros seres, fundamentalmente em função um lado significação articulada,
discurso e, por outro, dimensão
da razão, porque parece que só ele está habilitado para refletir, analisar, intelectual expressa em termos
como noûs – intelecto: princípio
ajuizar, criticar, propor, afirmar, negar, manipular, transformar etc. Com de organização e compreensão
do mundo; noésis – exercício
efeito, os atos humanos têm a marca essencial do conhecimento como da razão e dianoia – aplicação
da razão discursiva. No latim, a
exímio reflexo da racionalidade. acepção etimológica refere-se
às ideias de cálculo, ordem e
organização. Ultrapassando a raiz
Rabuske (2001, p. 73) refere-se, neste sentido, à interessante observação etimológica, a contemporânea
teoria do agir comunicativo de
da antropóloga Grace Laguna, que afirma o seguinte: Habermas define racionalidade
enquanto “pretensão de validez”
responsavelmente requerida por
A racionalidade do homem não é uma faculdade mais falantes recíprocos, no interior do
alta acrescentada a ou imposta de cima à natureza discurso.
animal; pelo contrário, pervade todo o seu ser e
manifesta o mesmo em tudo que ele faz como naquilo
que ele crê ou pensa...

Uma compreensão antropológica de razão no ocidente volve-se para os


regos arcaicos. Quando se fala, como diz Husserl, numa razão consciente
de si mesma e de suas exigências peculiares, retorna-se, necessariamente, Expressão adotada,
principalmente, pelo helenista
à mutação intelectual ocorrida no século VI a.C., numa conjuntura em que inglês John Burnet, para quem
a racionalidade filosófica grega
se registrou o denominado “milagre grego”, entendendo-se com esta emergente, precisamente, na
Jônia pelos fins do século VII
expressão não uma irrupção brusca da razão, mas uma cosmologia, como implica uma ruptura radical
com a mitologia; em vez dessa
explica Vernant, que não pretende relatar sequências de nascimentos mas concepção, o helenista francês
estabelecer os princípios das coisas que são. “Uma forma de reflexão Francis M. Cornford defende
a perspectiva de continuidade
entre mito e razão.

antropologia filosófica | unidade 1 33


nova e inteiramente positiva sobre o mundo natural. [...]. Mais do que
uma mudança de atitude intelectual [...], tratar-se-ia de uma revelação
decisiva e definitiva: a descoberta do espírito.” (VERNANT, 1990, p. 441-
442). De fato, Lacroix (2009, p. 26) ressalta que doravante “a natureza é
dessacralizada e se esvazia do divino que a animava; este a impulsiona e
a regula, certamente, mas do exterior.”

O helenista Sir Moses Finley Imaginemos a discussão que certamente na altura daquele século
frisa que na literatura arcaica
grega mitos e logos significam VI a.C., deve ter provocado entre os que viam no logos – na razão
exatamente expressão
oral contrastando com a superação do mito – narrativas (talvez) imaginárias, flutuantes e
ação. Entretanto, Hecateu
(predecessor do historiador aqueles que, inversamente, não renunciavam sua pia confiança nas
grego Heródoto) afirmava
serem suas narrações tradicionais “histórias” divinas. Talvez algo semelhante ao intenso
(mytheitai) verdadeiras
enquanto outros gregos tinham debate entre fé e razão nos tempos primordiais do cristianismo.
narrativas (logoi) falsas. Já em
Píndaro os mythoi são relativos
à falsidade e logos à verdade.
Na verdade, a razão, por um lado, é certa continuação do mito, por
outro, entretanto, ruptura, em função de sua lógica própria. O mito
é uma narrativa e não a solução de um problema; a razão toma a
forma de um problema adequadamente formulado. “O espaço do
questionamento não pode ser liberado senão a partir do processo de
laicização do discurso que envolve o da constituição e desenvolvimento
das cidades.” (LACROIX, 2009, p. 25). O mito confunde os planos
E você, advogaria para quem?
Para a tese de Burnet que divino natural e humano; à luz da razão as questões políticas começam
defendia a ruptura entre mito
e razão ou para Conford que, a ser realmente discutidas. O mito concebe os elementos naturais como
ao contrário, via continuidade
entre mito e logos?
realidades físicas e divinas; desde a cosmologia dos jônicos aqueles
elementos são abstratamente definidos.

Em Parmênides, o Ser, não tendo forma visível e sensível da


multiplicidade das coisas, não pode ser abordado pela opinião (doxa),
mas pelo logos – pensamento e discurso que se fundamentam. Ainda
Lacroix (2009, p. 28) ressalta que “o que o pensável e dizível é apenas
a eterna presença do Ser; em compensação o devir e sua expressão no
discurso sob a forma de contradição são o impensável e o irracional.”
Nos fragmentos II e III Parmênides afirma:

[...] tu porém, auscultando a palavra, cuida que os


caminhos únicos do procurar são dignos de serem
pensados: um que é e que não-ser não é; é o único
caminho da obediência, [...]. O único, que não é, e
que necessariamente não-ser é; este caminho eu te
digo em verdade ser totalmente insondável como
algo inviável; pois não haverias de conhecer o não-
ente [...] ...pois o mesmo é pensar e ser (LEÃO:
WRUBLEWSKI, 1999, p. 45).

34 filosofia
E Heráclito, como compreende o logos? Lacroix (2009, p. 35), explica:

[...] de um lado, a razão de ser, o princípio de explicação


do devir universal da natureza, este princípio não
sendo aquilo que escapa ao devir, mas a necessidade
imanente a este; de outro lado, a capacidade humana
de expressar no discurso essa razão de ser das coisas
da qual ela própria é um elemento ou expressão...

No fragmento 30 o filósofo sublinha este eterno espírito do devir: “


O mundo, o mesmo em todos, nenhum dos deuses em nenhum dos
homens o fez mas sempre foi, fogo sempre vivo, acendendo segundo
a medida e segundo a medida apagando.” (LEÃO; WRUBLEWSKI,
1999, p. 67).

Sócrates, Platão e Aristóteles convergem, segundo Gilles-Gaston


Granger, neste ponto, pois para ambos razão refere-se ao pensamento
correto oposto ao efêmero e ao incorreto; a razão, ao contrário dos
sentidos, é universal e exige justificação. Com efeito, o conhecimento
racional é autêntico e comprovado que ultrapassa as aparências para
atingir a realidade.

Para Platão no Sofista (263e), a razão discursiva é o discurso interior da


alma consigo própria, o pensamento articulado em juízos encadeados,
como uma demonstração matemática. Mas, além da função epistêmica,
a razão tem uma dimensão prática como sabedoria e prudência, tal
como afirma Aristóteles na Ética a Nicômacos. A virtude da prudência
consiste em considerar que o homem pode realizar o melhor, à luz
da razão. Ainda segundo Aristóteles, ninguém será razoável em suas
ações sem ser virtuoso.

A partir da idade média o tema da razão é paralelo ao da fé. Para São


Bernardo, São Boaventura, Duns Escoto, entre outros, o conhecimento
racional – puramente humano – se subordina ao conhecimento
místico. São Tomás de Aquino, como assinala, advoga que a razão
natural exerce uma jurisdição autônoma. “Raciocinar é passar dum
objeto de inteligência a outro, a fim de compreender a verdade
inteligível....”(GRANGER, s/d, p. 17). Ora, esta razão discursiva
pertence não aos anjos mas aos homens.

antropologia filosófica | unidade 1 35


Andemos agora para os tempos modernos. Aqui encontramos o filósofo
René Descartes, que, sobretudo em seu Discurso do Método, demarca
uma nova era da razão. Criticando a matemática Escolástica, ele
afirma que é inútil ocupar-se de números vazios e figuras imaginárias;
por outro lado, entretanto, defende uma matemática mais profunda
como instrumento de análise e pensamento. Ela, a matemática,
oferece verdades bem encadeadas e certas. O processo que vai da
dúvida à intuição perfeita, porque essencialmente certa do “penso,
logo existo”, conduz à convicção de Descartes de que razão é a base
irredutível do conhecimento verdadeiro, cuja garantia é a existência de
Deus enquanto fonte de toda perfeição.

Em resumo, afirma Granger (s/d, p. 19):

Contrariamente à razão tradicional, enredada num


aparelho lógico demasiado verbal, a razão cartesiana
partirá à conquista do mundo. Tratará de elaborar
uma ciência eficiente, suscetível de aplicações; o
conhecimento teórico dos corpos e das funções da
alma prolongar-se-á numa ciência do engenheiro,
numa medicina, na arte moral de controlar as
paixões.

Granger observa que ao contrário do alargamento cartesiano da razão,


Kant pretende impor limites. Diante da teoria das ideias inatas e daí à
crença de verdades absolutas e, com efeito, constituição da metafísica
presentes em Descartes, Leibniz e Wolff, Kant reconhece a advertência
do filósofo empirista inglês David Hume: “[...] me despertou do meu
sono dogmático e incutiu minhas pesquisas no domínio da filosofia
especulativa orientação inteiramente diferente.” (PASCAL, 2005, p.
30). Desde então, é claro no pensamento kantiano que a razão é incapaz
de pensar a priori, e por meio de conceitos uma relação necessária, tal
como é a conexão entre causa e efeito. Por outro lado, entretanto, a
razão não pode limitar-se à experiência e então problemas como a
existência de Deus, da imortalidade da alma, da liberdade do homem
não podem ser indiferentes. “A razão humana tem um destino singular
em certo gênero de seus conhecimentos: sente-se importunada por
questões a que não pode esquivar-se.” (PASCAL, 2005, p. 31). É
por isso que Kant efetivou uma revolução análoga à de Copérnico,
sintetizada por Pascal (2005, p. 36), dessa forma:

36 filosofia
[...] a revolução copernicana de Kant é a substituição,
em teoria do conhecimento, de uma hipótese idealista
à hipótese realista. O realismo admite que uma
realidade nos é dada, que seja de ordem sensível
[...] ou de ordem inteligível [...], e que o nosso
conhecimento deve modelar-se sobre essa realidade.

Ora, observe que conhecer é dar forma a uma matéria dada, esta
é a posteriori e a forma é a priori. A primeira é variável, mas a
segunda imposta pelos sujeitos ao objeto será encontrada em todos os
cognoscentes (sujeitos).

É neste sentido que Kant analisa a racionalidade humana de forma


fundamentalmente crítica. Na Crítica da Razão Pura (1781– 87, 2. ed.),
busca na própria razão as regras e os limites de sua atividade, para que
se saiba até onde se pode confiar na razão; Na Crítica da Razão Prática
(1788) estabelece crítica à razão enquanto fundamento de nossas
ações morais, evidenciando, como se sabe, o protagonismo moral do
indivíduo e, na Crítica do Juízo (1790), centra a crítica racional aos
nossos juízos estéticos e teleológicos.

Enfim, o filósofo, afirmando a Razão como a “faculdade dos


Immanuel Kant: 1724-1804
princípios”, lança sua luz crítica à razão em todos os sentidos, Fonte: http://www.google.com.br

motivado, essencialmente, pela autarquia indispensável ao pensador


como ele exigira na obra de 1784, “Resposta à pergunta: o que é
Esclarecimento?”

Gaston-Granger observa que, de modo geral, a filosofia de Kant


influenciou substancialmente a concepção de razão em Hegel, justamente
numa época em este assistiu o semifracasso das revoluções burguesas e
que decaía também a ideia de um sistema definitivo e universal da razão.
De fato, a grande descoberta hegeliana, segundo Granger, é o caráter
histórico da razão, isto é, seu comportamento de criação contínua, por
isso Hegel afirma que a história universal é apenas a manifestação da
Razão e, assim, tudo que é racional é real e tudo que é real é racional. A
razão subjetiva é a razão objetiva que atingiu a consciência de si.

Mas a realização progressiva da razão se efetiva através da dialética.


A partir de qualquer tese – ideia, fato da cultura, momento histórico
–, o movimento da razão extrai o aspecto negativo; depois a oposição
resolve-se numa síntese.

antropologia filosófica | unidade 1 37


Lembremo-nos que esta perspectiva dialética da razão de Hegel inspira
ou até orienta a compreensão marxiana de razão, tomada, porém, sob
um paradigma radicalmente oposto. Se a dialética hegeliana embasa-
se num caráter idealista, Marx a localiza efetivamente nas estruturas
Dialética em grego
originalmente quer dizer sociais caracterizadas pelas correlações de forças em torno do sistema
“arte do diálogo”. Platão a
compreende primeiramente capitalista de produção. Konder (2007, p. 36) diz que “para a dialética
como ascendência do sensível
ao inteligível e depois como
marxista, o conhecimento é totalizante e a atividade humana, em
dedução racional pela qual
se discriminam as Ideias.
geral, é um processo de totalização, que nunca alcança uma etapa
No sentido hegeliano, definitiva e acabada.” Deste modo, não se conhece o homem pela
grosso modo significa o
movimento racional das ciência, religião ou arte, mas como realmente constitui suas formas de
ideias – tese, antítese e síntese.
Todavia, o sentido dialético vida. Com efeito, não é a razão que produz o mundo, mas este é que
mais recorrente deriva da
concepção de Marx, o qual, ao de fato produz a razão. Os conceitos, as ideologias, as alienações e as
contrário de Hegel, assegura
que as relações de produção transformações são configuradas a partir da realidade material e do
determinam a realidade: as
classes e, consequentemente, trabalho no mundo capitalista.
as formas de pensamento, isto
é, a ideologia.
Dialética é também a perspectiva pela qual pensadores como Polock,
Horkheimer, Adorno, Marcuse, Benjamin, Fromm, Habermas, entre
outros, que fundaram na Alemanha o Instituto de Pesquisa Social,
formando daí a conhecida Escola de Frankfurt ou Teoria Crítica
desde as primeiras décadas do século passado, analisam a razão.
Resumidamente, pode-se se afirmar que, particularmente, Adorno e
Horkheimer têm visão pessimista da racionalidade. Fatos históricos
como as duas guerras mundiais, os totalitarismos italiano e alemão e
suas respectivas crueldades – especialmente os campos de Auschuwitz e
proliferação do consumismo norte-americano – motivaram a decepção
dos frankfurtianos. Em obras como Conceito de Iluminismo e Dialética
do Esclarecimento, expressam toda sua descrença ou desesperança no
contributo da razão para a emancipação civilizatória.

Horkheimer, particularmente, em O Eclipse da Razão exprime sua


frustração em trechos como: “A razão jamais dirigiu verdadeiramente
a realidade social, mas hoje está tão completamente expurgada de
quaisquer tendências ou preferências específicas que renunciou,
por fim, até mesmo à tarefa de julgar as ações e o modo de vida do
homem.”(HORKHEIMER, 2002, p. 18). E mais à frente (p. 29): “Tendo
cedido em sua autonomia, a razão tornou-se um instrumento. [...].A
razão tornou-se algo inteiramente aproveitado no processo social. Seu
valor operacional, seu papel no domínio dos homens e da natureza
tornou-se o único critério para avaliá-la.”

38 filosofia
Rabuske exprime o presságio dessa crise cultural na declaração a
seguir:

A nossa cultura está em crise. Como sintomas desta


crise podemos apontar: a insatisfação psicológica, a
criminalidade, consumo de álcool e drogas, as tensões
sociais [...] ...uma das raízes da crise ou, pelo menos
um dos seus aspectos, reside na desconfiança na razão.
Critica-se a razão, a consciência, as suas pretensões
e também o mundo ‘feito’ a partir da consciência. ”
(RABUSKE, 2001, p. 83).

Entretanto, olhe agora atentamente para a filosofia de Jürgen


Habermas que insere a razão num horizonte otimista. Atualmente
com pouco mais de 80 anos de vida, em sua trajetória este sociólogo
e filósofo alemão, embora tenha assimilado e assumido o teor crítico
dos seus mestres de Frankfurt, inclusive porque dirigiu o Instituto
(1971-1981), afasta-se, porém, deles exatamente por não despedir-se
da razão. Aliás, ele indaga onde estaria a condição de emancipação
fora razão? Para ele, o grande problema é que a consciência solipsista
Jürgen Habermas: 1929
até agora tem orientado, de modo geral, os intelectuais e a filosofia, Fonte: http://www.google.com.br

especialmente e, além disso, o agir humano em vários sentidos. No


Discurso Filosófico da Modernidade de 1985, ele diz claramente que o
paradigma da consciência está esgotado, e então propõe o paradigma
do agir comunicativo, onde o discurso é essencialmente o espaço
democrático em que problemas, desafios e soluções envolvendo
questões simples ou complexas, locais ou universais, sejam discutidos
e encaminhados. Cada um dos concernidos, neste sentido, à luz da
racionalidade discursiva, torna-se protagonista da construção histórica
de uma sociedade emancipada: justa, fraterna, livre e democrática.

Uma das sínteses do conceito habermasiano de razão é bem expresso


nas seguintes palavras:

Uma pessoa se exprime racionalmente na medida em


que se orienta performativamente por pretensões de
validade; dizemos que ela não apenas se comporta
racionalmente, mas que é racional, quando pode prestar
contas de sua orientação por pretensões de validade.
Também chamamos esse tipo de racionalidade de
plena responsabilidade (HABERMAS, 2004, p. 102).

antropologia filosófica | unidade 1 39


Portanto, vejamos que de acordo com o paradigma habermasiano, um
espaço público democrático é lugar apropriado para que os homens
realizem-se como seres racionais especialmente nos campos da
socialidade e da política e, assim, se reconheçam como reais artífices
da história.

O homem como ser sociopolítico

Tratando-se da socialidade e da política, pensemos, inicialmente,


nesta maneira singela, porém bem compreensível, com a qual Batista
Mondin inserta este tema duplo.

O homem é essencialmente sociável. Sozinho não


pode vir a este mundo, não pode crescer, não pode
educar-se; sozinho não pode nem ao menos satisfazer
suas necessidades mais elementares nem realizar as
suas aspirações mais elevadas; ele pode obter tudo
isso apenas em companhia dos outros (MONDIM,
1980, p. 155).

Perceba, estudante, com o que está dito em primeira instância que


o homem associa-se, inclusive, por uma condição de sobrevivência.
Neste mesmo sentido, há uma importante asserção de Eric Weil: “O
indivíduo sabe que é incapaz de resistir à natureza e, mais ainda,
empreender a luta contra ela. A luta é do grupo organizado, e essa
organização é a sociedade.” (WEIL, 1990, p. 79). O antropólogo inglês
Jean Beattie (1980, p. 69) ressalta também que para o funcionalismo
britânico de Radcliffle-Brawn e, sobretudo, de Malinowski, “sociedade
e cultura humana são melhor entendidas como um conjunto de
artifícios para a satisfação das necessidades biológicas e psicológicas
dos organismos humanos que constituem a sociedade.”

Retornemos a Aristóteles. Ele inicia sua célebre obra Política explicando


a premência e a relevância da socialidade humana, nas seguintes
palavras:

40 filosofia
As primeiras uniões entre pessoas, oriundas de uma
necessidade natural, são aquelas entre seres incapazes
de existir um sem o outro...[...]. A comunidade
construída a partir de vários povoados, é a cidade
definitiva; [...] assim, ao mesmo tempo que já tem
condições para assegurar a vida de seus membros, ela
passa a existir também para lhes proporcionar uma
vida melhor. Estas considerações deixam claro que a Na Ética Nicômacos (1097b),
cidade é uma criação natural, e que o homem é por Aristóteles também afirma
natureza um animal social, e um homem que por esta condição do homem, ao
dizer: “Quando falamos em
natureza, e não por mero acidente, não fizesse parte autossuficiente não queremos
de cidade alguma, seria desprezível ou estaria acima aludir àquilo que é suficiente
da humanidade. [...]. É claro, portanto, que a cidade apenas para um homem
tem precedência por natureza sobre o indivíduo. isolado, para alguém que leva
uma vida solitária, mas para
(ARISTÓTELES, 1997, p. 14-15). seus pais, filhos, esposa e,
em geral, para os amigos e
Veja, então, que o homem é inconcebível fora da sociedade. Ampliando concidadãos, pois o homem
é por natureza um animal
o instinto gregário enquanto condição primária de sobrevivência, o social.” (ARISTÓTELES, 2001,
p. 23).
homem estabelece elos cooperativos como fundamento das instituições
sociopolíticas, demarcadas por valores e legislações que orientam e
regulam, cuja finalidade última, em tese, é o bem-estar individual e
coletivo. Portanto, o homem, porque é sociável, é eminentemente
político. Hannah Arendt (2007, p.23) é enfática ao explicar esta
correlação (socialidade-política): “zoon politikon como se no homem
Convém notar que para
houvesse algo político que pertencesse à sua essência [...]. A política Rousseau a associação e os
consensos derivados entre os
surge no entre-os-homens; portanto, totalmente fora dos homens. homens devem fundamentar-
se imprescindivelmente na
[...]. A política surge no intraespaço e se estabelece como relação.” liberdade consciente.
Aliás, a autora já havia ressaltado em A Condição Humana em 1958,
que a vida política é uma ação que por excelência sobrepõe-se ao
labor – dinâmica biológica do corpo e ao trabalho – artificialidade da
existência, dizendo o seguinte:

A ação, única atividade que se exerce diretamente entre


os homens sem a mediação das coisas ou da matéria,
corresponde à condição humana da pluralidade
[...].Todos os aspectos da condição humana tem
relação com a política...[...]. Só a ação é prerrogativa
exclusiva do homem; nem um animal nem um deus A palavra política deriva do
é capaz de ação, e só a ação depende inteiramente termo grego polis – literalmente
“cidade”. No contexto do
da constante presença dos outros.”(ARENDT, 2008, encontro cultural com os
p. 15-31). romanos, “polis” será traduzida
no latim como “civittas” – termo
do qual se aproximaria a palavra
“cidadania”, portanto, também
De fato, entre os gregos a política designava atividade humana exercício da política. Voltando aos
relativa à cidade, ao Estado, à administração pública. Manfredo gregos, é ainda importante frisar
que eles opunham polis (cidade)
observa acertadamente, neste sentido, que: à oikos (casa), numa nítida e
sábia distinção entre o público e
o privado.

antropologia filosófica | unidade 1 41


[...] a polis é a obra fundamental do homem, pois é
através do debate, da legislação da jurisdição, que
se dá sua universalização. A polis é livre, enquanto
[...] comunidade capaz de regras de sua convivência,
através de leis criadas pelos cidadãos, cuja finalidade
é exatamente a vida boa. [...]. O ético é, então, o que
Quando na vida política do pertence ao ‘etos’ ao mundo institucional da polis
nosso país aqueles que no (OIVEIRA, 1996, p. 15).
exercício de algum cargo
público misturam o público e
o privado, não já deveriam ter
aprendido com os gregos que Todavia, esta compreensão antropológica de política, isto é, a
esta é uma prática perniciosa?
Acaso não deveriam ser política como espaço apropriado de realização humano, transfigura-
punidos pela Justiça legal e,
não deveriam estes “políticos” se na modernidade como legado iluminista e, sobretudo, desde os
serem rejeitados pelos eleitores
quando cinicamente se desvelamentos de Maquiavel, seguido de Locke e Hobbes em arena do
recandidatam?
poder. De fato, a política passa a traduzir-se, então, como exercício do
poder do homem sobre outros homens. Para o cientista político Julien
Freund, como salienta Lebrun (2004, p. 11), a política é “atividade
social que se propõe a garantir pela força, fundada geralmente no
direito, a segurança externa e a concórdia interna de uma unidade
O professor Lebrun ressalva política particular.” Na mesma compreensão, Weber define a política
que “força não significa
necessariamente a posse como “conjunto de esforços feitos visando a participar do poder ou a
de meios violentos de
coerção, mas de meios que divisão do poder, seja entre os estados, seja no interior de um único
me permitam influir no
comportamento de outra Estado.” (WEBER, 2001, p. 60). E ainda Libânio num artigo sobre
pessoa.” (LEBRUN, 2004;
p. 12). fé e política esclarece que, “uma ação política é aquela que visa a
obtenção do poder, a conquista do Estado ou a sua manutenção, caso
já o possua.” (PINHEIRO, 2006, p. 256).

Segundo Bobbio, o poder pode apresentar-se em três interfaces:


econômica, ideológica e política. Ele explica que elas “contribuem
conjuntamente para instituir e manter a sociedades de desiguais
divididas em fortes e fracos com base no poder político, em ricos e
pobres com base no poder econômico, em sábios e ignorantes com
base no poder ideológico” (BOBBIO, 1999, p. 83).

Todavia, observe que o poder político é o mais relevante, porque sua


posse espelha em toda sociedade quem é o grupo dominante. Como
explica Dallari (2005, p. 51): “o poder político é em toda sociedade de
desiguais, o poder supremo, ou seja, o poder ao qual todos os demais
estão de algum modo subordinados.”

O poder político encarna-se essencialmente no Estado? Então qual é


a função deste? Para Rousseau, pode-se afirmar que ele, o Estado, é o

42 filosofia
grande mediador, um magno sistema capaz de harmonizar os conflitos
sociais. Entretanto, como se sabe, numa perspectiva marxista o Estado
é uma instituição que interfere nas lutas de classes e, geralmente, em
favor das classes dominantes. De fato, Engels, o amigo de Marx, diz
que o Estado é um organismo que protege os que possuem contra
os que não possuem. O marxista francês Louis Althusser afirma o
seguinte:

O Estado é uma “máquina de repressão que


permite às classes dominantes [...] assegurar a
sua dominação sobre a classe operária, para
submetê-la ao processo de extorsão da mais-valia...
(ALTHUSSER,1985, p. 62).

Decorre então que a política é uma instituição degenerada? Da


compreensão grega de realização humana a política tornou-se o
inferno? Enfim, pode o homem esquivar-se, omitir-se da esfera política?

Não. E com isso de novo retornamos aos gregos, especificamente a


Aristóteles: o homem é essencialmente político. Realiza-se na política.
Maquiavel afirmará depois, num trocadilho contraposto à Igreja, que
não há salvação fora da política. João Ubaldo Ribeiro (1986, p. 22)
quando diz que “queiramos ou não estamos imersos num processo
político que penetra todas as nossas atitudes, toda nossa maneira de
ser e de agir, até mesmo porque a educação, tanto a doméstica quanto
a pública, é também uma formação política.” Ubaldo acaba dizendo
que alguém quando afirma que “não liga para a política”, está sendo, a
rigor, uma espécie de político conservador. Ora, não existe o apolítico,
no máximo a ausência de consciência sobre o papel e o sentido da
política. Não nos parece muito certo o que ele afirma?

Notemos a propósito e atentamente, como Bertolt Brecht – poeta e


Que prejuízos, principalmente
dramaturgo alemão - sublinha lucidamente, a relevância da política nos sociais e políticos, podem ser
gerados a partir do descaso, da
seguintes trechos do seu célebre poema: “O analfabeto político”. alienação, da omissão, frutos
da despolitização do povo?

O pior analfabeto é o analfabeto político.


Ele não ouve, não fala, não participa dos
acontecimentos políticos.
[...].
Não sabe o imbecil que da sua ignorância política
nascem a prostituta, o menor abandonado, o assaltante
e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista,
pilantra, corrupto e lacaio das empresas nacionais e
multinacionais (SOUZA, 1995, p. 154).

antropologia filosófica | unidade 1 43


Como se pode perceber, o protagonismo político dos indivíduos
localiza-se, principalmente, na sociedade civil enquanto campo das
relações sociais onde perpassam problemas políticos, econômicos,
culturais etc. Hoje, diga-se de passagem, em escala planetária, bem
articulados ou não, através de suas organizações e movimentos civis,
que assim, podem legitimamente encaminhar, reivindicar ou até
confrontar-se com o Estado quanto às demandas em geral atreladas a
políticas públicas.

Consideremos, neste sentido, que só se realizam as vocações humanas


de política e cidadania, quando segundo Habermas, se constituam
um espaço público ou democrático em que sejamos otimizados os
discursos intersubjetivos. Mesmo na democracia representativa não
se pode inviabilizar a potencialidade político-discursiva dos indivíduos
associados. Vejamos esta interessante afirmação de Habermas:

Uma soberania popular interligada internamente com


as liberdades subjetivas, entrelaça-se, por seu turno,
com o poder politicamente organizado, de modo que
o princípio ‘todo poder político parte do povo’ vai se
concretizado através dos pressupostos comunicativos
através de uma formação institucionalmente
diferenciada de opinião e vontade. No Estado de
direito delineado pela teoria do discurso, a soberania
do povo não se encarna mais na reunião de cidadãos
autônomos facilmente identificáveis (HABERMAS,
1997, p. 172).

À luz da reflexão habermasiana, como se percebe, a condição de


possibilidade da prática da política é o campo democrático onde
prevaleça a discursividade aberta e compromissada e não mecanismos
de força e violência. Aliás, caro estudante, observe a contundente
defesa que Hannah Arendt faz de política: “se o sentido da política
é a liberdade, então isso significa que nós, nesse espaço, e em nem
um outro, temos de fato de ter expectativa de milagres [...] porque os
homens enquanto puderem agir, são aptos a realizar o improvável e o
imprevisível...” (ARENDT, 1993, p.122).

Com efeito, onde, senão no encontro com seus semelhantes o homem


manifestaria convincentemente princípios e fundamentos éticos?
Ora, a política é essencialmente intersubjetiva e, por isso, ela liga-se
indissoluvelmente à moral e à ética.

44 filosofia
O homem como ser ético-moral

Comecemos esta seção nos reportando novamente a Aristóteles. Ele


na Política (1997, p. 15), afirma que “a característica específica do
homem em comparação com os outros animais é que somente ele
tem o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto e de outras
qualidades morais...”

Assim, é razoável então assegurar que o mundo humano é perpassado


cotidianamente por questões que envolvem problemas e decisões
pessoais, deliberações atitudinais diante da natureza, da sociedade e
das pessoas, posturas intelectuais ou político-religiosas, acatamento
ou não de costumes, valores, regras e leis, problemas da justiça
e da injustiça, enfim, escolha entre o bem e o mal. No bojo destas
situações, é que se encontram perguntas como a que, segundo Kant,
subjaz a todo comportamento prático: “que devo fazer?” ou na forma
inquiridora expressa por Bernard Williams: “Por que eu deveria fazer
alguma coisa?” Simples ou complexas, particulares ou universais, estas
questões vinculam-se à moral ou à ética.

De fato, de acordo com Perine (1988, p. 24):

[...] existe uma dimensão ética no homem [...], que


aparece na banalidade da vida dos grupos humanos,
nos costumes mais triviais como, por exemplo, os
relativos à alimentação e à reprodução, que são os
mais diretamente ligados à própria sobrevivência. O
fato moral é um fato banal e imediato à via de todos
os grupos humanos: não existe comunidade humana,
por primitiva que seja, que não conheça regras e que
não distinga um bem de um mal.

O homem, então, uma vez dotado de senso ético e consciência moral, Convém distinguir juízos de
realidade de juízos de valor.
faz juízos de valor sobre o modo de agir de si mesmo e dos demais. “juízos de realidade, quando
partimos do fato [...], mas
Tugendhat (1996, p. 12) afirma “que não podemos desconsiderar juízos de valor, quando lhes
atribuímos uma qualidade
que tanto no âmbito das relações humanas quanto no político, que mobiliza nossa atração ou
repulsa.” ARANHA, Maria L.
constantemente julgamos de forma moral.” Isto implica dizer que os de Arruda & MARTINS, Maria
H. Pires. Filosofando. São
comportamentos morais aprováveis ou reprováveis são inseparados Paulo: Moderna, 2009, p.213
historicamente, das comunidades humanas. Vázquez (1982, p. 7) tem,

antropologia filosófica | unidade 1 45


portanto, razão ao assegurar que “o comportamento humano prático-
moral, ainda que sujeito a variação de uma época para outra, remonta
até as origens do homem como ser social.”

Importante explicar que os Originalmente o termo moral remete-nos a mos-mores – que em latim
gregos davam dois sentidos
ao termo ethos. Quando significa costume e valores de uma determinada cultura. Ética, por sua
grafado ethos (eta incial – “e
pequeno”) designa moradia vez, é uma palavra derivada de ethos, que no grego também significa
de maneira geral dos
animais ou dos homens. Esta costumes e valores de um povo. Com efeito, explica Perine (1988; p.
metáfora da morada e do
abrigo quer dizer que a partir 25), que “tanto em latim quanto em grego refere-se aos costumes, ao
do ethos o mundo se torna
habitável para o homem.
caráter, às atitudes humanas em geral e, particularmente, às regras de
Quando escrito Ethos (epsilon conduta e à sua justificação.”
incial – “E grande”) refere-se
ao comportamento resultante
da repetição dos mesmos
atos. Nesse nível assinala-se
Considere, entretanto, a ressalva que certos autores,
que o habitual opõe-se ao sublinham quanto à diferença entre os dois termos.
natural. Note-se, contudo,
que ao fundo, os dois sentidos Para Leonardo Boff, por exemplo, dizer que uma
se interligam: quando o
homem constrói sua moradia, pessoa não possui ética significa dizer que essa
estabelece, ao mesmo tempo,
certos costumes. pessoa não possui princípios, age mobilizado pelas
vantagens circunstanciais. Por outro lado, uma
pessoa é imoral porque engana clientes, rouba
Leonardo Boff (1938)
Fonte: http://www.google. o dinheiro público, explora os trabalhadores, é
com.br
agressor onde convive. Isto é, pode até ter ética –
Não seria antiético uma princípios e valores fundamentais, mas age contrariamente a estes.
pessoa que se orienta pelo
princípio de levar vantagem
em tudo (lei dos ditos mais Em um nível mais teórico, Vázquez esclarece da seguinte forma: “a
espertos)? E não seria imoral
porque, apesar de reconhecer moral não é ciência, mas objeto da ciência; e neste sentido, é por ela
o valor da honestidade, da
sinceridade, da verdade etc.,
estudada e investigada. A ciência não é a moral e, portanto, não pode
porém, de modo geral age sem ser reduzida a um conjunto de normas e prescrições; sua missão é
respeito aos outros? Quantas
situações dessas flagramos explicar a moral efetiva e, neste sentido, pode influir na própria moral.”
no cotidiano da família, das
relações sociais, das empresas, (VAZQUEZ, 1982, p. 13-14). Isto quer dizer que os homens não só
da política, da religião, para
citar algumas! agem moralmente, mas refletem sobre esse comportamento prático,
ou seja, tomam-no como objeto de seu pensamento. Nesse sentido,
denota-se a transição da moral efetiva para a moral reflexa.

No contexto de emergência da ética na Grécia, especialmente desde


Sócrates (para Aristóteles o fundador da ética), o Ethos – enquanto
repetição de costumes é a constância do agir oposta ao impulso
(órexis). A forma de ação do indivíduo exprime sua personalidade
ética, reflete, com efeito, a conexão entre ethos como caráter e ethos
como hábito. É importante acrescentar ainda a esta primeira disposição

46 filosofia
de caráter para agir, o termo hexis para indicar o hábito espontâneo
e plenamente assumido pelo agente e, portanto, manifestação da
autarquia (autárkeia) individual, isto é, domínio de si mesmo. Assim, o
ethos, é por excelência, o espaço próprio da práxis humana. Decorre,
então, uma eloquente conclusão de Lima Vaz:

[...] a universalidade abstrata do ethos como costume


inscreve-se na particularidade da práxis da vontade
subjetiva, e é na universalidade concreta [...] no ethos como
hábito ou virtude. O ethos é princípio da ação ética e fim Antígona é a irmã de Ismene,
realizado na forma do existir virtuoso (VAZ, 1993, p. 45). Etéocles e Policinice. Etéocles,
segundo Creonte rei de
Tebas, era digno de honras
funerais por ter sido morto
Ora, quando se dá a passagem do costume para a lei, se estabelece em favor da cidade; quanto
a Polinice, porém, incidia
definitivamente o princípio da universalidade, exprimindo assim, a acusação de haver traído a
pátria e os deuses, por isso
excelência do ethos, porque reflete a práxis humana enquanto ação o rei lhe proibe lágrimas e
realmente livre. Ethos em forma de lei é a expressão da liberdade humana. sepultamento. Antígona paga
com a morte seu repúdio
ao decreto casuístico do
Aristóteles na Ética a Nicômacos explica que enquanto as virtudes rei, precisamente, porque
contradiz a lei tradicional do
intelectuais são adquiridas por ensinamentos, as virtudes morais sepultamento, remontada,
inclusive, aos deuses.
procedem do Ethos como costume e se fortalecem como o desempenho.
O tradutor Donaldo Schuler
Assim, há que se afirmar o enraizamento da ética na tradição, que enfatiza na Apresentação do
presente texto o seguinte:
pode inclusive, preceder ao código do legislador, como bem podemos “Antígona é uma peça de
fortes contrastes. [...]. Sófocles
observar na seguinte da passagem da Antígona de Sófocles: coloca em cena uma mulher
sem partidários, sem exército,
sem nada. Antígona abala
CREONTE – [...] ousaste transgredir minhas leis? a tirania sozinha. E isso
ANTÍGONA – Não foi, com certeza, Zeus que as numa sociedade em que a
proclamou, nem a Justiça com trono entre os deuses vida pública era exclusiva
competência masculina. [...].
dos mortos as estabeleceu para os homens. Nem
O homem é terrível no crime
eu supunha que tuas ordens tivessem o poder de se e na virtude [...], na opressão
superar as leis não-escritas, perenes, dos deuses, visto e na luta pela liberdade.
que és mortal. Pois elas não são nem de ontem nem Antígona é uma aventura de
lealdade, dignidade, linguagem
de hoje, mas sempre são vivas, nem se sabe quando
e vida.”
surgiram. Por isso, não pretendo, por temor às decisões
de algum homem, expor-me à sentença divina. Sei SÓFOCLES. Antígona. Porto
Alegre: LP&M, 1999, p. 35-36
que vou morrer (SÓFOCLES, 1999, 450-460).

Perceba, caro estudante, que a religião se apresenta assim como uma


das mais importantes portadoras do ethos, de modo que ambos – ethos
e religão são homólogas quanto à universalidade. Ora, a sacralização
De acordo com Peter Berger
das normas éticas, pela qual se tornam transcendentais, asseguram- (O Dossel Sagrado), os
precários mundos social e
lhes, pois, eficácia no tempo axiológico do dever-ser histórico. Para humano são sempre guindados
e, portanto, legitimados pelo
Lima Vaz, trata-se de um fenômeno comum em todas as culturas. mundo perfeito do Ser Divino,
intermediado pela religião.
Esta força, observa Rubem
Conforme Lima Vaz, o desengate da conexão passado-presente, Alves (O Enigma da Religião),
é cimentada pela antiguidade
por conta de uma projeção utilitarista de futuro que recusa lições da religiosa específica.

antropologia filosófica | unidade 1 47


tradição, implica como efeito dessa ruptura, crises e niilismos éticos
como atestariam os individualismos modernos.

Todavia, a socialidade enquanto estrutura axiológica e normativa –


exatamente o ethos, significa justamente o espaço onde cada sujeito
adquire sua autarquia e, por essa mesma dimensão, exigente do ethos,
a realidade não é experimentada pelo indivíduo como um destino
cego e oprimente, mas como um campo de possibilidades. Ao aspecto
externo da moral constituída, contrapõe-se à adesão do sujeito, o que
implica dizer que “o ato só é propriamente moral se passar pelo crivo
da aceitação pessoal da norma. A exterioridade da moral pressupõe,
portanto, a necessidade da interioridade, da adesão mais íntima.”
(ARANHA; MARTINS, 2009, p. 215). Trata-se, pois, do conflito entre a
moral constituída – herança educativa e a moral constituinte – atualidade
da experiência vivida. Podemos, a propósito, lembrar de Ney Matogrosso
quando canta: “Eu juro que é melhor não ser um normal....” Ou ainda do
roqueiro Raul Seixas: “Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que
ter aquela velha ideia formada sobre tudo....”

Estamos, pois, diante do paradoxo ético: as regras morais inerentes a


todos os grupos humanos, trazem consigo a possibilidade da recusa às
mesmas. Isto porque, segundo Perine (1983, p. 26), “o homem é um
ser moral-imoral, moral porque imoral, imoral porque pode e deve
ser conduzido à moral..” O homem enquanto natural age movido por
tendências, necessidades e instintos, podendo revelar-se violento. Mas
ele é também razão, e como ser pensante, isto é, dotado de sentido
moral pode pôr a questão do bem no fim de sua ação. “Dizer que o
homem possui uma espécie de sentido moral quer simplesmente dizer
que só um ser que possui a consciência do bem pode possuir a do mal,
e que ele possui uma em relação à outra.” (PERINE, 1983, p. 27).

Esta dupla natureza humana – vontade do lícito e violência do ilícito explicita


que o indivíduo é o cruzamento entre a moral objetiva e a moral subjetiva.
Para Franklin Leopoldo, trata-se não apenas da liberdade, porém do
significado e da força dos valores, e consequentemente da tensão individual
de escolha e repúdio. Assim, explica Leopoldo (2010, p. 48-51):

A diferença entre o bem e o mal, o certo e o errado


não é representado de modo claro e definitivo,
permanecendo sempre um resíduo de incerteza e
obscuridade que, no entanto, não pode impedir ou
mesmo postergar a decisão.

48 filosofia
E o homem porque livre na condição, não pode não agir. Não obstante,
Lima Vaz adverte que o conflito moral não implica uma contraposição
estéril, um “permissismo anômico”, isto é, uma sabotagem arbitrária
e individualista à revelia de regras e valores. Ao contrário, um
Individualista - Lima Vaz
enfrentamento de dogmatismo e determinismo reflete-se numa argumenta que o não-
individualismo é o critério
rearticulação ou reinvenção saudável da moral, verifica-se um no e a medida de toda práxis
humana.
interior de um processo explicado por Henri Bérgson.
Valores - Lima Vaz, discorda
ainda da tese nietzscheana de
Há uma moral estática, que existe em dado momento, em dada que a educação ocidental é
sociedade. Ela fixou-se nos costumes, nas idades, nas instituições; seu caracterizada por uma moral
sistematicamente cerceadora.
caráter de obrigatoriedade reduz-se em última análise, à exigência pela Para o autor brasileiro,
é preferível um sistema
natureza da vida em comum. Há, por outro lado, uma moral dinâmica, orientador de valores a um
niilismo ético.
que é impulso, e que se liga à vida em geral, criadora da natureza
que criou a exigência social. A primeira obrigação, na medida em que
pressão, é infarracional. A segunda, na medida em que aspiração, é
suprarracional.

Conforme Lima Vaz, Jesus, Buda e Ghandi (poderíamos acrescentar


Mandela, Luther King, Che Guevara etc.) são exemplos de homens Nietzsche afirma em
Genealogia da Moral que
que radicalizaram a recusa da moral da “moral de pressão” em favor temos sido educados, isto é,
de uma “moral de aspiração.” pressionados, para sermos
animais prometedores, sob o
preço do sacrifício; exaltado,
Considerando o tortuoso histórico da moralidade, atinge-se o cerne principalmente, pelo discurso
cristão.
do problema histórico de todas as morais: a definição do conteúdo do
contentamento.

Esta foi sempre a cruz de todas as morais históricas, até


que a reflexão sobre a moral e sobre a possibilidade
da moral chegou à consciência de que nenhum sistema
verdadeiramente moral pode impor ou mesmo visar
a uma felicidade materialmente definida, mas que
toda moral só tem sentido na possibilidade da não-
infelicidade que ela oferece, e na esperança da felicidade
que ela pode legitimar (PERINE, 1988, p. 35).

Pela escassez do espaço em função do propósito dos subunidades do


texto, atente, querido estudante, para a abordagem que faremos sobre
algumas marcantes respostas teórico-práticas acerca do que possa ser
a substancialidade do contentamento.

Reportemo-nos à Grécia pré-classica onde encontramos o homem


inserido no cosmos regido inexoravelmente pela Justiça imposta pelas

antropologia filosófica | unidade 1 49


divindades. Num tempo posterior, sobretudo, a partir do século V
a.C., assenta a virtude (arete) na racionalidade humana. Ainda que a
reconhecendo, a vida ética compreendida à luz da racionalidade natural,
como bem concebem Sócrates e Platão numa sofisticada explicação
teórica em que opõe os mundos transcendente e imanente, sendo
No Fédon Platão pela boca
de Sócrates (entre amigo na
este último demarcado pelas contingências, o Bem só pode localizar-
iminência da morte), afirma, se, portanto, no primeiro. Todas as boas virtudes, superando o mundo
por exemplo, que o corpo é
mal e, por isso, um ônus ou terreno, inspiram-se e espelham vínculo à Ideia do Bem. Aristóteles,
mesmo um enguiço em relação
à alma (inclusive imortal). numa perspectiva naturalista afirmou ser a felicidade (eudaimonia) o
mais alto dos bens, visto que todo mundo a aspira “tanto a maioria
dos homens quanto as pessoas mais qualificadas dizem que este bem
supremo é a felicidade, e consideram que viver bem e ir bem equivale
a ser feliz...” (ARISTÓTELES, 1095a, 2001, p. 19). Todavia, Vázquez
ressalta que ele desprezando o trabalho físico considera que a felicidade
está na razão enquanto faculdade essencialmente humana. De fato,
o filósofo grego afirma: “as pessoas mais capazes de exercerem a
atividade contemplativa fruem mais intensamente da felicidade, [...] a
contemplação é preciosa por si mesma. A felicidade, portanto, deve ser
alguma forma de contemplação. [...] O sábio é o homem mais feliz.
(ARISTÓTELES, 1178b/1179a, 2001, p. 205-206)” Enfim, Aristóteles
(2001-1180b, p. 209) ressalta que este caminho da felicidade atravessa
a política quando diz que “certamente uma pessoa que deseja [...]
tornar as outras melhores [...] deve tentar capacitar-se para legislar, na
presunção de que podemos tornar-nos melhores graças às leis.”

Avancemos para o tempo patrístico-medieval, onde o discurso cristão


assegura que o mundo e o homem sendo criações divinas, Deus,
consequentemente, é o Alfa e o Ômega de tudo, exceto do mal, adverte
Santo Anselmo. Assim, há uma lei eterna que suporta toda moral e toda
ética. De fato, Santo Agostinho afirma que o homem é um “peregrino
para Deus,” - razão última do excelente contentamento. O homem,
porém, é responsável pelo mal do mundo. Marcondes (2007, p. 57),
cita uma interessante afirmação agostiniana na obra Livre-Arbítrio:

Todo bem vem de Deus, não há nada que possa ter


outra origem. De onde, portanto, poderia vir aquele
impulso de afastamento que reconhecemos ser a fonte
do pecado? Sendo um defeito, e todo defeito origina-
se do não ser, poderíamos sem dúvida afirmar que não
vem de Deus. Contudo, se este defeito é voluntário,
está sujeito à nossa vontade.

50 filosofia
Na Suma Teológica Tomás de Aquino, por sua vez, afirma:

[...] o que é bom sem ter o mal misturado em si é


melhor. Mas Deus, mais do que a natureza, faz o que
é melhor. Logo, na criação divina não há nenhum
mal. [...]. O livre-arbítrio é causa do movimento, pois
é através dele que o homem se move para agir. [...]. A
escolha está em nós, mas pressupõe o auxílio de Deus.
(MARCONDES, 2007, p. 66).

Em tempos modernos pós-iluministas, marcados pelo giro


antropocêntrico, o homem, consequentemente, é a referência
fundamental da moral e da ética. O filósofo alemão Kant, como um
herdeiro de ideias iluministas sublinha bem o homem como autárquico
e autolegislador. Para ele, um contentamento razoável reside no bom
incondicionado, isto é, imune aos condicionamentos. Mas o que pode
ser bom independentemente das circunstâncias e consequências? Ele
responde:

Neste mundo, e até fora dele nada é possível pensar


que possa ser considerado bom sem a limitação a não
ser uma só coisa: a boa vontade. [...]. A boa vontade
não é boa por aquilo que promove ou realiza, pela
aptidão para alcançar qualquer finalidade proposta,
mas tão-somente pelo querer, isto é, em si mesma...
(KANT, s/d, p. 21-23).

Ora, como a vontade humana naturalmente pode ser coagida pelas Dever - Marcelo Perine,
sublinha que o dever é a
contingências e interesses particulares, Kant enfatiza a necessidade da categoria que contém a
totalidade do problema moral;
coordenação da força do dever sobre a ação. Por isso ele é enfático: é o princípio a partir do qual
“[...] o dever é uma ação por respeito à lei” (KANT s/d, p. 31). Para se determinam historicamente
todos os sistemas morais
Kant (s/d, p. 23) uma lei moral universal, exige ser traduzida no célebre positivos.
Forma - A lei assumida
princípio: “[...] devo proceder de maneira que eu possa querer que enquanto forma é ratificada
na tese básica anunciada no
minha máxima se torne uma lei universal.” Ora, observe que esta lei terceiro teorema da Crítica
objetiva precisa superar as imperfeições subjetivas, por isso em vez de da Razão Prática (1788): “se
um ente deve representar
imperativos hipotéticos – condicionados pela matéria dos interesses, suas máximas como leis
universais práticas, então ele
exige-se um imperativo categórico – princípio e forma que fundamenta somente pode representá-las
como princípios que contêm
uma ação em si mesma necessária. Com efeito, “este imperativo pode o fundamento determinante
da vontade, não segundo a
chamar-se o imperativo da moralidade.”(KANT, s/d, p. 52). matéria, mas simplesmente
segundo a forma.” (KANT,
2002; p. 45).
O princípio categórico da moralidade assenta-se na vontade livre
submissa às leis. “Todo ser que não pode agir senão sob a ideia de
liberdade, é por isso mesmo em sentido prático, verdadeiramente

antropologia filosófica | unidade 1 51


livre...” (KANT, s/d, p. 95). Destarte, o homem é legislador de si
próprio e assim atinge-se o Reino do Fins – relação sistemática entre
seres racionais livres submetidos a leis comuns.

Entre os críticos dessa moral formal de Kant, está Hegel para quem o
caráter puramente formal expresso na força do imperativo categórico
exige que se abstraia os conteúdos particulares das máximas de
condutas e deveres. Para Habermas, o problema central da ética
kantiana é a prioridade individualista.

O utilitarismo é uma outra perspectiva de resposta ao contentamento.


Jeremy Bentham e John Stuart Mill, principais expoentes dessa
concepção, advogam que algo é bom conforme a utilidade. Luiz
Baraúna ressalta que teoria utilitarista é uma contraposição à doutrina
do direito natural.

Para Bentham, a doutrina do direito natural é insatisfatória por duas


razões: primeiro porque não é possível provar historicamente a
Jeremy Bentham (1748-1832)
Fonte: http://www.google.com.br existência de tal contrato; segundo, porque [...] subsiste a pergunta
sobre os homens estão obrigados a cumprir compromissos em geral.
[...] a única resposta possível reside nas vantagens que o contrato
proporciona à sociedade. [...]. A felicidade geral, ou interesse da
comunidade em geral, deve ser entendida como cálculo hedonístico,
isto é, a soma dos prazeres e dores dos indivíduos (BARAÚNA,
1984, p. IX).

Notemos que a afirmação acima dissipa a ideia comum sobre o


egoísmo ético do Utilitarismo. Ao contrário como destaca Vázquez
(1982, p. 146), “de acordo com esta posição, o bem seria o útil para
os outros, ainda que esta utilidade entrasse em contraposição com
meus interesses pessoais. [...] um altruísmo ético. [...] o bom é o útil ou
vantajoso ‘para o maior número de homens’, cujo interesse também
inclui o meu pessoal.” Denota-se, com efeito, não apenas confluência,
mas predominância dos interesses coletivos sobre os individuais,
traduzido concretamente no sentido do dever reflexo enfatizado por
Perine (1988, 31): “O dever de ser feliz, que é dever para consigo
mesmo, é primeiro mas sua captação é reflexa. O homem moral nunca
está isolado porque, isolado, ele não seria moral.”

52 filosofia
O próprio Bentham explica a natureza do princípio da utilidade:

O termo utilidade designa aquela propriedade existente


em qualquer coisa, propriedade em virtude da qual
o objeto tende a produzir ou proporcionar benefício,
vantagem, bem ou felicidade; [...] se esta parte for
a comunidade em geral, tratar-se-á da felicidade da
comunidade, ao passo que em se tratando de um
indivíduo particular, estará em jogo a felicidade do
mencionado indivíduo (BENTHAM, 1984, p. 4).

Mas o modelo utilitarista anglo-saxônico que fundamentou o


pensamento ético-político contemporâneo por muitos anos, foi John Rawls (1921-2002)
Fonte: http://www.google.com.br
interrompido pela alternativa proposta pelo professor de Harvard, o
norte-americano John Rawls, sobretudo em sua obra Uma Teoria
da Justiça, no começo dos anos 70. Sua proposição diversa é
destacada por Pegoraro (2008, p. 124) da seguinte forma:

Cada pessoa tem sua inviolabilidade fundada na


justiça, que mesmo em nome do bem-estar do Pegoraro observa como Rawls
conjunto da sociedade, não pode ser violada. Por destaca o objetivo da obra: o
este motivo, a justiça proíbe que a perda da liberdade estudo limita-se “aos princípios
de alguns possa ser justificada pela obtenção de um da justiça destinados a servir
de regras para uma sociedade
maior bem para todos os outros. bem ordenada na qual se
supõe que cada cidadão age
com justiça e contribui para a
Na perspectiva de Rawls as pessoas nascem numa sociedade já manutenção das instituições
justas”
constituída. Entretanto, há necessidade do que ele chama de sociedade
bem-ordenada regulada por princípios da justiça publicamente
reconhecidos. “Estes princípios seriam autonomamente instituídos
pelos indivíduos que a compõem, que os reconhecem como expressões
da racionalidade e da liberdade de cada um, considerado como uma
pessoa moral” (SILVA, 2003, p. 49), capaz de convergir o justo e o bem
porque capaz de conceber o bem e de propor e aceitar acordos justos.

Os justos acordos derivam de princípios justos e regulamentariam


uma sociedade baseada na cooperação mútua que, porém, pode
ser perturbada por interesses divergentes. Mas o papel da Justiça
seria justamente mostrar a vida boa a partir da participação social
cooperativa.

Para tanto, segundo Rawls, precisa-se primeiramente entender que a


política não é um mecanismo de controle social, mas um processo de
regulagem de co-operação social partindo de princípios equitativos.

antropologia filosófica | unidade 1 53


É neste sentido que ele propõe um roteiro hipotético denominado
posição original. Esta posição ideal supõe que cada participante seja
livre, consciente e isento de influências de instituições grupos e pessoas;
pelo “véu da ignorância” desconheçam as diferenças sociais. Assim,
ninguém proporia acordos baseados em vantagens econômicas,
posição social ou convicções filosófico-políticas nem moral-religiosas.
Silva (2003, p. 61-62) escreve sobre a justificação Rawls, neste sentido:

O fato de ocuparmos uma posição social particular


não é uma boa razão para propor, ou esperar que
os outros aceitem uma concepção de justiça que
favoreça os que se encontram numa posição. O fato
de professarmos uma doutrina religiosa, filosófica
ou moral abrangente, com a concepção de bem,
associada a ela, não é uma boa razão para propor ou
esperar que outros aceitem uma concepção de justiça
que favoreça as pessoas que concordam com essa
doutrina.

Como você percebe, na teoria rawlseana, esta seria, então, a condição


básica para o contrato social projetado essencialmente para a justiça
numa sociedade bem-ordenada (democrática). A justiça, segundo
Rawls, assenta-se sobre dois princípios: o princípio da igualdade, pelo
qual afirmam-se direitos humanos fundamentais: participação nas
esferas política, religiosa, conjecturais etc.; o segundo é o princípio da
desigualdade referente à distribuição equilibrada de encargos públicos,
bens primários, deveres e vantagens sociais, priorizando os mais
desfavorecidos.

Na teoria moral da justiça Para Rawls, enfim, “parece razoável que os participantes optem pelos
rawlseana racional e
razoável são distintos, porém dois princípios da justiça como equidade, que garantem a todos a
interligados, explica Silva. “O
Racional é a faculdade que todos a total liberdade, os bens primários básicos e a posição social
articula os meios eficientes
para atingir os fins. [...].
segundo sua qualificação, formação e capacidade”(PEGORARO,
O Razoável expressaria 2008; p. 129).
a capacidade de aceitar
restrições para a sua própria
concepção e implementação
do seu bem.” (SILVA, 2003, p.
E se pensarmos cada pessoa assumindo-se co-legislador e co-artífice
65-66). de um projeto de mundo melhor? É nessa direção que se orienta o
pensamento de Habermas.

Assim, o problema do contentamento é compreendido de forma


ampliadamente inovadora quando interpretado na moldura da ética
discursiva habermasiana (Diskursethik). O fundamento essencial é a

54 filosofia
racionalidade comunicativa, porque segundo Habermas (2000, p. 414),
“o que está esgotado é o paradigma da consciência. Se procedermos
assim, certamente devem se dissolver os sintomas de esgotamento na
passagem para o paradigma do entendimento recíproco.”

Neste sentido, vejamos o que Habermas afirma seu conceito de


racionalidade: “Uma pessoa se exprime racionalmente na medida em
que se orienta performativamente por pretensões de validade...” John Austin distingue
três tipos de atos de fala:
(HABERMAS, 2004, p. 102). Ou ainda nas palavras de um estudioso locucionários – dizem respeito
propriamente à locução da
de Habermas, David Ingram (1987, p. 40-41): “Para ser plenamente fala; os ilocucionários são
relativos às interlocuções:
racional, uma ação precisa ser moral e legalmente certa; precisa pedido, solicitação, ordem,
comando, desculpas etc. e
exprimir sinceramente os sentimentos e desejos autênticos do agente os perlocucionários são os
que refletem as reações do
e orientar-se pelos valores compartilhados pela comunidade” Como interlocutor diante de falas de
se percebe, em Habermas a Razão traduz-se pela linguagem. De fato, tipo ilocucionárias.

motivado por este paradigma ele faz amplas leituras críticas de grandes
teóricos da linguagem como Frege, Wittgenstein, Austin, Searle,
Chomsky, entre outros, para demonstrar que mais do que parâmetros
semântico, sintático e de sentido a linguagem deve ser considerada
pela sua função pragmática. Assim, é impossível propor uma ética
abstraindo-se da discursividade.

A partir deste paradigma, Habermas, contra o ceticismo moral, acredita No texto “Teorias da Verdade”,
1972, Habermas já definia o
que a mesma pode ser validada desde que fundamentada no discurso. discurso como uma forma de
E por isso à diferença da ética formalista kantiana, a ética discursiva argumentação onde se testam
as pretensões de validade e a
de Habermas tem uma natureza essencialmente intersubjetiva, legitimidade dos argumentos.
Vinte anos depois, 1992,
precisamente, porque “garante a generalidade das normas admissíveis em Direito e Democracia I
ele reafirma seu conceito:
e a autonomia dos sujeitos ativos apenas através da capacidade de “discurso racional é toda
tentativa de entendimento
redenção discursiva....” (HABERMAS, 1980, p. 114). sobre pretensões de validade
problemáticas, na medida
em que ele se realiza sob
Percebamos que normas válidas são aquelas em que os envolvidos condições de comunicação
que permitem o movimento
ou afetados por elas podem dar seu assentimento. Da mesma forma, livre de temas e contribuições,
informações e argumentos
a durabilidade de um corpo de normas depende da possibilidade de no interior de um espaço
público constituído através de
razões que legitimem a pretensão de validez entre os concernidos, obrigações ilocucionárias.”
isto é, a justificação das normas é processo contínuo no âmbito da (HABERMAS, 1997, p. 142).

discussão democrática sobre as mesmas.

Observemos, pois, que a forma do imperativo categórico kantiano


é transfigurado no que Habermas denomina Princípio de
Universalização, pelo qual a justificação e a validade de uma ética

antropologia filosófica | unidade 1 55


dependem da aceitação consensual sem coações, que pode ser
sintetizado no Princípio D (Discurso) pelo qual Habermas (2004,
p. 16) diz claramente que “as únicas normas que têm o direito de
reclamar validade são aquelas que podem obter anuência de todos
os participantes envolvidos num discurso prático,” cuja consistência
exige pelo menos uma regra básica proibitiva: “Não é lícito impedir
falante algum, por uma coerção exercida dentro ou fora do discurso,
valer-se dos seu direitos...” (HABERMAS, 1989; p. 112), que neste
caso incluem participação no discurso, introdução e problematização
de asserção e até manifestação de atitudes, desejos e necessidades. Ou
dito de outra forma em Inclusão do Outro: “A comunicação deve ser
isenta de coações internas ou externas de forma que os posicionamentos
[...] sejam motivados somente pela força de convencimento das
melhores razões” (HABERMAS, 2002, p. 58). Esta condição, segundo
Habermas, aproxima-se da plena liberdade dos sujeitos falantes, daquilo
que ele chama de situação de fala ideal exatamente porque “quando
argumentam os intervenientes tem a partir do princípio de que, em regra,
todos os indivíduos em questão tomam parte, enquanto sujeitos livres e
iguais numa busca cooperante da verdade, na qual apenas interessa a
força do melhor argumento.” (HABERMAS, 1999, p.17).

Portanto, compreende-se, nitidamente, à luz da teoria moral de


Habermas construída junto com seu amigo Karl Otto-Apel, que
nenhuma estilização moral de vida, nenhum sistema ético, nenhum
código legislante, nenhum conteúdo de contentamento pode ser
articulado fora do âmbito do discurso onde cada participante inclui-
se como co-legislador. Consequentemente, todo sistema normativo é
resultado de uma empreitada cooperativa.

Pense agora na relevância desse interesse coletivo em termos


de preservação planetária da vida. Pois bem, em se tratando de
problemas e desafios humanos e ambientais os quais suscitam
debates e participação coletiva em escala global, esta reflexão
sobre a dimensão moral e ética não poderia omitir uma breve
alusão à premente ética da responsabilidade do pensador alemão
contemporâneo, Hans Jonas.

O Princípio da Responsabilidade é uma obra de 1979, na qual


Jonas leva em conta que as sofisticadas tecnologias atuais permitem

56 filosofia
intervenções radicais sobre a natureza exterior e sobre a própria
natureza humana, exigindo, com efeito, proporcional a este poder
de ação tecnológica do homem hodierno, uma normatização
ética embasada numa práxis coletiva cujo princípio essencial é a
responsabilidade.

Giacóia Junior, num livro organizado por Manfredo de Oliveira (2000,


p. 197), escreve que o advento da técnica moderna altera o tipo de
ação humana; por outro lado, provoca consequências perigosas de tal
forma que exige uma nova ética, uma ética global da responsabilidade,
pois segundo ele:

[...] se torna manifesto que não somente a biosfera


do planeta, mas a natureza como um todo passa
a ser implicada nas esferas do agir humano e da
responsabilidade que daí decorre, e isso em razão da
extensão e a periculosidade que dela decorre, e isso
em razão da extensão desmedida do poder que a
tecnologia o investe.

Diante deste novo cenário, há segundo Jonas o perigoso descompasso


entre a previsibilidade e o poder da ação. Este desequilíbrio, sublinha
Giacóia, implica admitir prognósticos ruins entre as concorrências
de ação, configurando o que Jonas chama de heurística do medo e
Biosfera, parte da terra, e de
implica na proposta ética do pensador alemão. sua atmosfera em que pode
existir vida. (Dicionário Barsa
de Língua Portuguesa I. Rio de
Este traço de medo decorre, sem dúvida, ao se considerar que Janeiro, 1981, p. 170).
ação humana atualmente investida de poderes tecnológicos pode
resultar em danos irreparáveis à biosfera, por isso o autor apregoa
a necessidade de inserir a natureza no campo de responsabilidade da
ação. Ora, enfatiza Giacóia (OLIVEIRA, 2000, p. 199), “reconhecer
à natureza o direito próprio de uma significação ética autônoma [...]
significa abandonar a postura tradicional que considerava o homem
como ápice da natureza e coroa da criação.” É um princípio que
praticamente altera, inclusive, o imperativo kantiano “age de maneira
tal que possas também querer que a máxima do teu agir se transforme
em lei universal da natureza”, para o enunciado jonasiano que diz:
“age de maneira tal que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com
a permanência de autêntica vida sobre a terra...” (OLIVEIRA, 2000,
p. 199).

antropologia filosófica | unidade 1 57


Observe que Leonardo Boff (2000, p. 115), comentando a ética da
responsabilidade, frisa que realmente este é um paradigma atualmente
imprescindível. Como realça o teólogo brasileiro:

Trata-se da sobrevivência de todos, seres humanos,


demais seres vivos e da Terra como sistema integrador
de subsistemas. O ser humano faz-se co-responsável,
juntamente com as forças diretivas do universo e da
natureza, pelo destino da humanidade e de sua casa
comum, o planeta Terra.

Ora, quando se fala da intervenção do homo faber em tempos de


civilização tecnológica, não se omite, igualmente, o problema da
relações do homem consigo mesmo, vista sob pelo menos três aspectos:
prolongamento da vida humana, que para Jonas ultrapassa princípios
da éticas tradicionais, porém “há que se discuti-las, eticamente, e
segundo princípios, e não sob a pressão dos interesses.” (OLIVEIRA,
2000, p. 201). Segundo, controle do comportamento que hoje é uma
real possibilidade através do progresso da medicina psicossomática.
Jonas diz que se trata entre outra coisas, “[...] considerar como um
risco abissal o deslocamento de níveis entre as descobertas tecnológicas
da biomedicina e sua utilização sociopolítica para fins de controle e
manipulação social de comportamentos desviantes (OLIVEIRA, 2000,
p. 201). Em terceiro lugar a manipulação genética reflete um poder
superlativo do homem nas áreas de ciências como a biomedicina,
engenharia genética e psicologia que o faz “tomar realmente seu
destino nas próprias mãos, de não apenas garantir a conservação
da espécie, mas de intentar sua modificação e melhoria segundo um
projeto....” (OLIVEIRA, 2000, p. 202).

Enfim, diante do poder do homo faber considerado entre a “ameaça


de catástrofe pelo sucesso excessivo e a dialética de poder sobre a
natureza e a compulsão de exercitá-lo”, Giacóia, referindo-se a Jonas,
assegura que “nossa tragédia contemporânea é a de não poder
ressuscitar nenhuma categoria do sagrado, que pudesse ancorar
e tornar subsistente nossas representações normativas e nossas
estimativas éticas.” (OLIVEIRA, 2000, p. 206). A partir desta situação
é que a ética da responsabilidade acentua a autêntica vida humana
na terra. Trata-se, portanto, de “nova e paradoxal de humildade [...]

58 filosofia
que decorre não da consciência de que o poder humano é ínfimo
e insignificante em relação à incomensurável potência natural, que
produz um excesso, uma desmesura excessiva de nosso poder de agir
sobre o poder de prever, valorar e agir.” (OLIVEIRA, 2000, p. 206).

As éticas do discurso e da responsabilidade juntam-se a outras vertentes


Carta da Terra é o documento
éticas do cuidado, da solidariedade, da compaixão e libertação e da elaborado por uma comissão
internacional de estudiosos nos
holística todas pulsantes e preocupadas com a razoável e universal primeiros anos deste século
(XXI) sob os auspícios da
felicidade planetária, afinal é preciso “reconhecer que todos os seres ONU, considerado um código
ético planetário no qual se
são interligados e cada forma de vida tem valor, independentemente destacam princípios e valores
do uso humano” (BOFF, 2000, p. 151), lembra Leonardo Boff éticos que incluem integridade
ecológica, justiça social e
reportando-se à célebre Carta da Terra. democrática, a democracia e
a paz.

Ora, toda a tarefa ético-moral humana é indissoluvelmente pessoal


e social, isto é, intrinsecamente política. Afinal, a política é a moral
em marcha, lembra Perine, reportando-se a Eric Weil. De fato, Perine
(1988, p. 35), lucidamente adverte: “Quando o descompasso entre a
moral e o curso do mundo é muito acentuado, é preciso temer que a
barbárie já tenha se estabelecido no interior dos muros da cidade.” Não seria razoável que
documentos desta natureza,
fosse introduzido em
A substancialidade do contentamento, isto é, vida boa ou felicidade instituições de educação,
para que se pudesse
(eudaimonia) humana, como dizia Aristóteles, só pode ser concebida motivar racionalmente a
responsabilidade humana pela
a partir dos compromissos éticos e políticos do próprio homem, que preservação da vida?
afinal é um ser de práxis, como veremos a seguir.

Antes, porém, admitamos que esta abordagem pode ser encerrada


afinando-se ao anseio de Boff expresso nas últimas palavras do seu
livro Ethos Mundial. Reflitamos, portanto, nestas palavras do autor:
“que nosso tempo seja lembrado pelo despertar de uma nova
reverência diante da vida, por um compromisso firme de alcançar a
sustentabilidade, pela rápida luta pela justiça, pela paz e pela alegre
celebração da vida.” (BOFF, 2000, p. 164).

O homem como ser de práxis

Sintonizados no que acabamos de abordar, podemos nos perguntar:


De fato, é possível um mundo mais humano e mais justo para se
viver? Sim! Um mundo melhor para se viver tanto para esta geração

antropologia filosófica | unidade 1 59


como para as vindouras como expressa a perspectiva esperançosa do
teólogo Leonardo Boff, é possível porque justamente o homem não
sendo biologicamente determinado, não sendo meramente adaptável
às condições naturais dadas, e nem sendo movido apenas pelos
instintos egocêntricos, é dotado de possibilidades de ação consciente,
teleológica, livre e responsável. Isto significa dizer que o homem é, por
natureza, um ser de práxis.

Há que se ressaltar, inicialmente, que se toda práxis é atividade,


nem toda atividade é práxis. Atividade humana pode ser entendida
como ato ou atos, pelos quais um sujeito modifica algo, uma matéria-
prima. Assim, atividades simplesmente biológicas ou instintivas, isto
é, que não transcendam o nível natural, não são consideradas ações
tipicamente humanas. Ao contrário, ações humanas embasam-se na
consciência refletida em dois tempos: resultado ideal e produto real. É
por isso que a ação do homem é transformadora. De fato, se o homem
se harmonizasse ou se conciliasse absolutamente com sua realidade
presente, não se projetaria conscientemente para uma realidade
utópica, isto é, inexistente.

Com efeito, a atividade humana, enquanto práxis é cognoscitiva,


teleológica e revolucionária. Sánchez Vázquez (1977, p. 194) salienta,
neste sentido, a concepção de Marx.

Marx ressalta o caráter real, objetivo, da práxis na


medida em que transforma o mundo exterior que é
independente de sua consciência e de sua existência.
O objeto da atividade prática é a natureza, a sociedade
ou os homens reais. A finalidade dessa atividade é
a transformação real, objetiva, do mundo natural
ou social para satisfazer determinada necessidade
humana.

Pensemos agora: quais seriam as faces ou representações da práxis?


Sem dúvida multifacetada, ressalte-se pelo menos quatro delas. A
primeira manifestação de práxis está na atividade produtiva, haja
vista que por ela o homem humaniza o mundo, ou seja, os objetos
relevantes às necessidades humanas são demarcados pelas finalidades
humanas. Além disso, enquanto produz, o homem transforma-se a si
mesmo. Marx referindo-se ao trabalho humano transformador afirma:
“Ao mesmo tempo que desse modo atua sobre a natureza exterior a

60 filosofia
ele e transforma [...] transforma sua própria natureza desenvolvendo
as potências que nele dormitam e submetendo o jogo de suas forças a
sua própria disciplina.” (VAZQUEZ, 1977, p. 198).

A segunda forma de práxis é artística, agora, porém, orientada por


uma necessidade de expressão e objetivação. Por esta via, se verifica
a arte como criação de uma nova realidade e, consequentemente,
à medida que amplia e agrega valores à realidade já humanizada é
indispensável ao homem. Enfim, a arte não é mera produção material
ou espiritual, mas realizadora e transformadora.

A práxis social é aquela na qual o homem é simultaneamente sujeito e


objeto porque atua sobre si mesmo. Neste nível de práxis não se toma
um indivíduo isolado, mas uma comunidade, grupos ou a sociedade
inteira como objeto. Dito de outra maneira, com Vazquez (1977, p.
200): “a práxis social é a atividade de grupos ou classes sociais que
leva a transformar a organização e direção da sociedade, ou realizar
certas mudanças mediante a atividade do Estado.” Esta forma de
práxis vincula-se imediatamente à práxis política.

A práxis política inserta-se num contexto social dividido em classes


rivais onde o poder e a respectiva direção e estruturação social,
conformados aos interesses e finalidades correspondentes, demarcam
as lutas políticas internas. Assim, a política é prática porque as lutas
entre grupos caracterizam-se por organizações reais como os partidos;
é prática porque mesmo considerando as influências programático-
ideológicas exigem-se métodos e meios concretos e é prática porque
projeta-se para a conquista, conservação e direção do Estado.

A força transformadora da práxis política é assinalada por Vázquez


(1977, p. 201) da seguinte maneira:

A práxis política, enquanto atividade prática


transformadora, alcança sua forma mais alta na práxis
revolucionária como etapa superior da transformação
prática da sociedade. Na sociedade dividida em
classes antagônicas, a atividade revolucionária permite
mudar radicalmente as bases econômicas e sociais em
que se baseia o poder material e espiritual da classe
dominante, e instaurar assim uma nova sociedade.

antropologia filosófica | unidade 1 61


Percebe-se, então, que nesta perspectiva de práxis advogada por
Vázquez à luz dos escritos de Marx e Engels, atividade teórica em si
mesma não é práxis. A vida contemplativa aristotélica é incompatível
com este conceito de práxis marxiano. Vásquez ressalta a propósito um
trecho da Sagrada Família quando Marx e Engels afirmam: “[...] As
ideias nunca podem executar coisa alguma. Para a execução das ideias
são necessários homens que ponham em ação uma força prática.” E
depois Marx na Tese XI (Sobre Feuerbach) contrapõe a filosofia como
interpretação, ou seja, como teoria desvinculada da prática e a filosofia
conscientemente preocupada com a transformação do mundo. Uma
teoria que não modifica o mundo não é, consequentemente, legítima
práxis.

Todavia, não há práxis quando a atividade reduz-se à materialidade,


ou seja, sem a correlação de conhecimentos e finalidades típicas da
atividade teórica. Com efeito, o sentido da práxis pode ser localizado
entre os campos da teoria e da prática.

Assim, é enquanto ser de práxis que o homem interfere no processo


histórico, renovando e inovando as formas de vida pessoal e coletiva,
à medida que transforma o mundo e a si mesmo através de sua ação
embasada no tripé racionalidade, liberdade e intencionalidade. O
homem alia sua práxis historicamente à arte, como uma dimensão
que lhe é inerente. Refletiremos, pois, a seguir, ainda que brevemente,
sobre esta bela relação: o homem que faz arte é também feito por ela,
enquanto a faz.

O homem enquanto ser estético

Veja você os seguintes versos de Fernando Pessoa: “A beleza é o


nome de qualquer coisa que não existe/ Que dou as coisas em troca
do agrado que me dão.” Agora os de Caetano Veloso em Beleza
Pura: “Não me amarra dinheiro não/ Mas formosura/Dinheiro não/ A
pele escura/Dinheiro não/A carne dura/Dinheiro não/Moça preta do
Curuzu/Beleza pura/Federação/Beleza Pura/Boca do Rio...”

62 filosofia
Estes versos, como podemos ver, enfocam uma questão específica: o
belo. O belo é um tema da arte. Arte é uma dimensão essencialmente
humana. Só o homem, a rigor, produz arte porque sabe que faz, como
faz e porque faz. Susanne Langer (2004, p. 248), ressalta:

Um tema que possua significado emocional para o


artista, pode, destarte, prender-lhe a atenção e induzi-
lo a ver sua forma com olhos ativos, discernidores
e manter a referida forma presente na sua excitada
imaginação, até que seus alcances mais altos de
significação lhe tornem evidentes; então ele terá, e
pintará, uma concepção profunda e original daquele.

É claro que os homens sempre fizeram arte, mas esta só passou a ser
expressa com o termo estética no século XVIII, precisamente por volta
de 1750, quando o alemão Alexander Gottlieb Baumgarten, em sua
obra Aesthética na qual a questão do gosto e de experiências ligadas
à arte. Na verdade, tentou articular uma lógica da imaginação. Mas
como observa Cassirer, a lógica da imaginação nunca se equalizaria à
dignidade lógica do intelecto puro.

O também alemão Immanuel Kant retoma o termo estética, para


designar os juízos de valor sobre a beleza tanto na arte como na
natureza. Aliás, segundo Cassirer (1994, p. 225), o primeiro a apresentar
uma prova clara e convincente da autonomia da arte.” Numa de suas
obras Crítica do Juízo, interpreta o problema do belo e da arte sob
o parâmetro da sensibilidade; além disso, trata dos fundamentos dos
nossos juízos estéticos.

Três problemas envolvem imediatamente a estética. Primeiro as


relações entre natureza e arte, que, por sua vez, geram três concepções
de arte: como imitação, como criação e como construção. No primeiro
caso, trata-se da subordinação da arte à natureza e à realidade
e, ademais, a arte reproduz fielmente o que pertence ao mundo e
ao homem; enquanto criação, arte reflete além da inspiração e da
genialidade do artista, as experiências, os sentimentos e as emoções
vividas. Hegel afirma que tudo que vem do espírito é superior ao que
existe na natureza; a arte como construção desvela a realidade a partir
das relações dialéticas entre o artista e mundo que o cerca. Segundo
problema: relações entre a arte e o homem, que também incluem três
concepções: arte torna-se conhecimento quando facilita o saber sobre

antropologia filosófica | unidade 1 63


o mundo, Deus, verdade etc.; arte enquanto prática pensou Aristóteles,
na medida em que a retidão de raciocínio orienta a fabricação humana
e a arte como sensibilidade pela qual se formam juízos sobre produção
artística, como enfatizou Kant. O terceiro nível de relações é relativo à
função da arte, quando pedagógica, social e politicamente ela se insere
numa determinada conjuntura e a partir desta torna-se instrumento de
crítica, transformação e libertação.

Destas relações depreende-se que, em sentido restrito, podemos afirmar


a estética como um conjunto de caracteres formais que a arte assume
num determinado período ou contexto, isto é, um estilo particular.

Perante esta perspectiva de estilização artística, surge então uma questão


essencial na arte: o belo e o feio. O que é a beleza? O que é o feio? Trata-
se de questões objetivas ou subjetivas? De fato, existem duas vertentes.

Para os filósofos idealistas, cuja tradição remonta-se a Platão, à beleza


subjaz uma forma ideal, isto é, modelo suprassensível, de modo que no
mundo sensível, belo é o que se assemelha à ideia de beleza existente
A beleza da obra de arte
(literatura, pintura, arquitetura,
em nossa alma. Num trecho do Banquete ele diz o seguinte: “Beleza
música, cinema etc.) se orienta
por uma referência ideal ou é
[...] que existe por si mesma e por si mesma, sempre idêntica, da qual
relativa, depende do gosto de participam todas as demais coisas belas.” Por outro lado, os filósofos
cada um?
materialistas-empiristas, entre eles Hume, afirmam que a beleza é
relativa no sentido de que está no gosto de cada um. Cassirer (1994,
p. 245) nota a tese deste filósofo inglês: “A beleza não é uma qualidade
das coisas em si; existe apenas na mente de quem a contempla.” O
valor estético, podemos ver claramente, depende, na verdade, do
sujeito situado numa determinada cultura.
O feio se correlaciona com
o mau gosto. E o que é mau
gosto (kitsch) “artístico”? Trata- A interpretação de Kant orienta-se para um meio termo. O princípio do
se de imposição de efeitos pré-
concebidos. Alguns exemplos juízo estético é um sentimento do sujeito e não o conceito do objeto em
de kitsch: cores (abuso de
cores fortes contrastantes
si mesmo. Porém este juízo pode universalizar-se, isto é, as condições
– pinturas carnavalescas); de juízos são as mesmas em todo ser racional. Para Kant, não há ideia
empilhamento (demasia de
enfeites e adornos desconexos de belo como em Platão, mas aquilo que agrada independentemente
– quadros/desenho, adornos
amontoados e sem inter- do interesse sensível ou racional, cujo critério básico é o prazer que
relação); materiais (disfarces
para simular ou falsear algo desperta. É produto da faculdade subjetiva comum a todos os homens,
original); inadequação (formas,
estilos, funções conforme o que, de fato, assegura a universalidade do belo. E o feio? Existe?
as circunstâncias – imagens
reluzentes); deslocamento Sim. Se compreendido como artes malfeitas e inautênticas. A rigor,
(distanciamento do sentido
original – objetos em forma praticamente uma negação da arte.
humana).

64 filosofia
À luz da interpretação fenomenológica, algo é belo à medida que realiza
sua finalidade e é autêntico, ou seja, conforme sua forma particular de
ser e desse modo seu significado é apreendido conforme a experiência
estética.

Neste sentido, afirma o filósofo austríaco Ernst Fischer (1977, p. 17):

Toda arte é condicionada pelo seu tempo e representa


a humanidade [...] e as esperanças de uma situação
histórica particular. [...]. Mas ao mesmo tempo, a arte
[...] cria também um momento de humanidade que
promete constância no desenvolvimento.

Há que se ressaltar, assim, a fenomenologia social da arte na medida em


que o artista é um ser social e por isso ele busca refletir na sua produção
artística os problemas e as esperanças do seu momento histórico. Com
razão, Lukács afirma que há uma influência recíproca entre o artista e
a sociedade. Dessa maneira compreendemos, por exemplo, as músicas
regionais e as músicas críticas e subversivas de certos momentos
históricos. Por outro lado, há sempre de alguma maneira a repercussão
social de uma obra de arte. De novo, Lukács ressalva que em todos os
tempos a repercussão social é inseparável da arte.

Neste sentido, arte e cultura se interligam. Do ponto de vista A Constituição Federal


(1988, art. 216) afirma que
antropológico, cultura diz respeito ao que o homem faz: pensa, imagina, patrimônio são “os bens de
natureza material e imaterial,
inventa, justamente porque ele é um ser simbólico, cultural. Ampliando tomado individualmente ou
em conjunto, portadores de
este conceito, a cultura reflete ou repercute os anseios, as necessidades referência à identidade, à
e expectativas da sociedade em geral e então, é plural e histórica, com ação, à memória dos diferentes
grupos formadores da
efeito, patrimônio da humanidade. É por isto que o Estado através sociedade brasileira...”

de Ministérios, Institutos, Secretarias e Fundações, precisa implementar O Instituto do Patrimônio


Histórico e Artístico Nacional
políticas de incentivo, proteção e difusão da arte. (Iphan), criado em 1937, deve
assumir a responsabilidade
de zelar pelos bens culturais
Todavia, convém ressaltar pelo menos duas distinções entre cultura e do país, sobretudo, os
tombados, isto é, produções
arte. A cultura é uma necessidade de sobrevivência: língua, costumes, histórico-artísticas de grande
relevância. Entretanto,
valores etc. A arte não é tão necessária assim, alguém pode viver sem até 1967 representações
culturais indígenas, africanas
arte. A cultura tem a finalidade social de estabilizar os indivíduos; a e populares não eram
oficialmente reconhecidas.
arte, ao contrário, pode incomodar, desequilibrar e provocar mudanças E na verdade, só por volta
de 1975, intelectuais ligados
sociais. Como percebemos, a arte tem especificidades, inclusive ao Iphan, “se deram conta”
funções singulares, entre elas: a pragmatista, cujo interesse maior é a que o Instituto não englobava
a pluralidade cultural do
finalidade da obra de arte; a naturalista prioriza o conteúdo em vez da país, desde então abriu-se a
política de mapear, registrar e
forma; a formalista justamente volve-se para a forma e composição da reconhecer expressões culturais
importantes em todo território
obra de arte. nacional.

antropologia filosófica | unidade 1 65


Ainda nessa correlação arte e cultura, enfatizemos agora um problema do
nosso tempo: a massificação. Nesse mundo de imperialismo economicista,
os interesses econômicos incidem destrutivamente sobre o espírito e
a idealidade da obra de arte. Vivemos um mundo em que a demanda
Acaso não vemos e do mercado e o retorno lucrativista, acabam infelizmente, impondo o
consumimos “enxurradas”
de banda de forró, grupos sentido e a função da obra de arte.
de pagodes, os estilos
“bregas”, demais estilos e,
inclusive, tendência religiosa Esse fenômeno contemporâneo da mercantilização da arte foi
com suas letras medíocres,
repetitivas, alienadas sabiamente denominado por Adorno de indústria cultural. Ele alertou
ou descompromissadas
justamente conforme a partir de suas observações, principalmente nos Estados Unidos, que
exigências das agências e
empresários, preocupados artes, como o cinema, acabam sendo telas de propagandas de vários
basicamente em satisfazer
muitas vezes o “simplório”
produtos: carros, roupas, bebidas, máquinas etc. Como uma espécie
gosto da massa, que
reciprocamente é alimentada
de rolo compressor essas “produções culturais-mercadológicas” através
por esta arte pobre? de revistas, shows, modas, ritmos, gírias, cenas, vão superpondo-se
sobre as consciências de forma colonizadora, cujo prejuízo mínimo é o
enfraquecimento da criatividade, da reflexão e da crítica.

Habermas diz claramente que à medida que o dinheiro e o poder


incidem sobre uma grandeza humana como a arte, a tendência é que
perda de sentido e empobrecimento do espírito sejam consequências
naturais.

Paradoxalmente, entretanto, Adorno acredita que o capitalismo não


asfixia totalmente a arte, aliás, ela mesma pode tornar-se uma reação
a este sufocamento e pode tornar-se margem de liberdade, crítica e
transformação, de modo que afinal ela, a arte, signifique tradução da
realização humana. Habermas, por sua vez, especificamente sobre
arte, assegura que apesar do perigo de corrosão, ela conserva uma
condição de possibilidade de resgate da liberdade e de emancipação
humana.

Este sentido sui generis da arte, de modo geral, nos parece bem
realçado nas seguintes palavras de Cassirer:

A arte nos propicia uma imagem mais rica, mais viva e


mais colorida da realidade, e uma compreensão mais
profunda de sua estrutura formal. É característico da
natureza do homem não estar limitado a uma única
forma de abordagem específica da realidade, mas
pode escolher seu próprio ponto de vista e assim passar
de um aspecto das coisas para o outro (CASSIRER,
1994, p. 279).

66 filosofia
Assim, mais que construir o mundo como sua casa, o homem mediante
a arte projeta-se, articula outros horizontes, numa clara manifestação
de anseios ou esperanças e possibilidades, além do seu mundo real,
sem que seja covarde fuga. Ora, essa transcendentalidade humana
explicita-se, mais incisivamente, em suas experiências religiosas (não
necessariamente doutrinárias e/ou eclesiásticas).

O homem como ser religioso e transcendente

Vamos indagar inicialmente, acompanhando a inquietação semelhante Há um recente debate entre


o teólogo Joseph Ratzinger
do professor Rubem Alves, no início do texto O Enigma da Religião: Por (Papa Bento XVI) e o filósofo
ateu Paolo Flores d’Arcais,
que os homens fazem religião? Podemos incorporar outras questões: exatamente intitulado: “Deus
Existe?” (Editora Planeta, São
Deus existe? A vida tem algum sentido? A morte é minha irmã? Paulo: 2009)
Existe um outro lado do cosmos?

Pois bem, estas são perguntas cujas respostas possíveis são captáveis
– se for o caso, pela afeição da alma religiosa. Alves ressalta que as
respostas, diz ele, são variadas e contraditórias. Não obstante “o que
torna a religião mais enigmática ainda é o fato de que, apesar de não
entendermos suas origens – ou talvez precisamente por não entendê-
las – o homem não consegue se desvencilhar do seu fascínio.” (ALVES,
1988, p. 33).

Cassirer, lembrando que Pascal declarou que a obscuridade e


incompreensibilidade integram a religião e que Kierkegaard a
compreendia demarcada essencialmente pela paradoxalidade, ressalta
que:

[...] ela [a religião] é um engima não só no sentido


teórico mas no sentido ético. Está repleta de
antinomias teóricas e contradições éticas. Promete-
nos uma comunhão com a natureza, com os homens,
com os poderes sobrenaturais e com os deuses. [...]
ela se torna fonte das mais profundas dissensões
e lutas fanáticas entre os homens. A religião alega
estar de posse de uma verdade absoluta; mas a sua
história é uma história de erros e heresias. Oferece-
nos a perspectiva de um mundo transcendente [...] e
permanece humana demasiada humana (CASSIRER,
2001, p.122).

antropologia filosófica | unidade 1 67


É por isso que o próprio Cassirer assegura que a religião e o mito são,
entre os fenômenos humanos, os mais resistentes a uma análise lógica.
O mito, por exemplo, observa Cassirer (2001, p. 122), é um desafio às
conceitualizações. “Sua lógica – se é que tem alguma – não pode ser
medida por nenhuma de nossas concepções de verdade empírica ou
científica.”

Por outro lado, tem razão o mitólogo Mircea Eliade quando adverte
que não se pode compreender um fenômeno religioso fora de sua
modalidade, ou seja, da própria categoria de religiosidade. Com
efeito, diz ele: “sendo a religião uma coisa humana, é também de fato,
uma coisa social, linguística e econômica [...]. Mas seria vão querer
explicar a religião por uma dessas funções fundamentais que definem
o homem.” (ELIADE, 2002, p. 1).

Mircea Eliade (1907-1986) Então estejamos certos de um fato: não se pode negar a universalidade
Fonte: http://www.google.com.br
do fenômeno religioso. Batista Mondin assinala que todas as tribos
e todas as populações em qualquer situação cultural estabeleceram
alguma forma de religião. E Rubem Alves (1988, p. 33) diz igualmente
que “não se tem notícia de cultura alguma que não tenha produzido
religião de uma forma ou de outra.” Ambos coadunam-se a Plutarco
que, na Antiguidade, já afirmava não haver povo sem Deus, sem
oração, sem juramentos, sem ritos religiosos, sem sacrifícios.

É neste sentido, que histórico e universalmente, o fenômeno religioso,


explica Eliade, opõe o sagrado e o profano. “Todas as definições do
fenômeno religioso apresentadas até hoje mostram uma característica
comum: à sua maneira, cada uma delas opõe o sagrado e a vida
religiosa ao profano e à vida secular.” (ELIADE, 2002, p. 7). Em
outro lugar ele observa que “a partir da mais elementar hierofania –
por exemplo, a manifestação do sagrado num objeto qualquer, uma
Literalmente do grego: pedra ou uma árvore – e até a hierofania suprema, que é, para um
hieros = sagrado; fania =
manifestação. Modos simples cristão, a encarnação de Deus em Jesus Cristo, não existe solução de
ou complexos pelos quais o
Sagrado pode se manifestar. continuidade. Encontramo-nos diante do mesmo ato misterioso: a
manifestação de algo de ‘ordem diferente’.” (ELIADE, 2001, p. 17).

Lembremo-nos que realmente no decurso de muito tempo, sublinha


Alves (2003, p. 9), “os descrentes, sem amor a Deus e sem religião, eram
raros. Tão raros que eles mesmos se espantavam com sua descrença e

68 filosofia
a escondiam, como se ela fosse uma peste contagiosa.” Ou como diz
Eliade (2001, p. 19), “o mundo profano na sua totalidade, o Cosmos
totalmente dessacralizado, é uma descoberta recente na história do
espírito humano.” Tanto que, de modo geral, a educação orientava-
se, ou inspirava-se no paradigma religioso, ratificado por relatos de
milagres, aparições, experiências divinas ou demoníacas, de modo que
se acreditava que seres, fenômenos e eventos revelavam ou escondiam
um poder espiritual.

Mas adveio um outro tempo em que Deus e as experiências religiosas


perderam a força centrípeta. Atravessou-se de uma época em que
no cenário aromático da fé nada acontecia fora do poder sagrado e
que Deus protegia os crentes e castigava severamente os incrédulos,
para uma época demarcadamente antropocêntrica na qual razão
passa a ser a luz autossuficiente. Habermas (2000, p.3) observa
que Max Weber “descreveu como ‘racional’ aquele processo de
desencantamento na Europa que, ao destruir as imagens religiosas do
mundo, criou uma cultura profana.” Numa palavra, chegamos a um
tempo da modernidade racional. “O homem aprendeu a lidar com Habermas observa que a
descoberta do novo mundo,
todas as questões de importância sem recorrer a Deus como hipótese o renascimento e a reforma
protestante, fatos registrados
explicativa”, escreveu Bonhoeffer em Cartas da Prisão no começo dos no limiar do século XVI,
demarcam a fronteira entre
anos 50. tempos medieval e moderno.

Vejamos como Rubem Alves assinala bem a transição para o cenário


da modernidade:

Onde os homens antes viam poderes miraculosos em


operação, a ciência constatava apenas a presença
de leis fixas e imutáveis. O universo que se abria
para o transcendente e o divino fechou-se sobre si
mesmo, e tudo passou a ser explicado em termos de
leis imanentes à própria natureza. A ciência criou um
problema habitacional para Deus. Na medida em que
ela penetrava em novos domínios, Deus se tornava
supérfluo e obsoleto, e era despojado. A realidade
foi ‘desencatada’: não mais necessitava de hipóteses
teológicas para se explicar (ALVES, 1988, p. 36).

Neste mundo moderno, de acordo com Battista Mondin, o


homem, entre outros caracteres, é antimetafísico, antidogmático,
livre, pragmático, massificado, alienado e, principalmente,
secularizado. A partir da secularização, Deus deixa de ser

antropologia filosófica | unidade 1 69


explicação e intervenção necessária sobre o mundo e sobre o
homem. Tornando-se senhor do passado e do futuro, ele assumiu
a providência de si mesmo.

[...] a partir do início da modernidade, [...] ele [o


homem] excluiu sistematicamente Deus da política,
da ciência, arte, moral, direito e um pouco também
de todas as manifestações da vida social, limitando
a religião quando muito à esfera particular. Lançou-
se a mesmo tempo a descoberta e a conquista do
mundo através da ciência e da técnica (MONDIN,
1986, p. 50).

Considere, então, o fato que desde os meados do século XV, filósofos


cientista e artistas aderem de forma lenta, depois mais explícita e
célere, ao paradigma antropocêntrico. Pico della Mirândola afirma
que “[...] o homem é artífice do próprio destino, a sua natureza é a
articulação ou realização de sua essência.” (CHORÃO, 1989, p. 140).
Nicolau Copérnico inaugura a teoria heliocêntrica. Francis Bacon, em
Novum Organum defendendo a separação entre ciência e religião,
defende a independência e a relevância do método científico. Galileu
radicalizou o heliocentrismo e metodologia científica. Referindo-
se a Galileu, Japiassu (1978, p. 29) é enfático: “sua ciência veio
destruir o esquema de um Cosmos organizado hierarquicamente
no interior de um espaço fechado e impregnado de ressonâncias
mítico-religiosas.” Maquiavel defendera a dicotomia entre os poderes
eclesiástico e político. Hobbes, Locke e Rousseau compartilham a

Rudolf CARNAP, um dos


tese de que a sociedade é uma construção humana e que o poder
expoentes da Escola de emana do povo e não de Deus. Para o materialista Feuerbach, a
Oxford - crítico radical da
Metafísica, advoga em religião resume-se a invenção e projeção de um homem pusilâmine.
favor do que designa como
proposições protocolares, isto Comte, o pai do positivismo, garante que era fruto da ignorância
é, enunciados por natureza e
por princípio experimentáveis. infantil da humanidade. Darwin publica A Origem das Espécies em
Os demais seriam, segundo
Carnap, vazio de sentido, 1859, para deixar claro que o homem em vez de criado, é resultado
tais como: Deus existe/Deus
não existe; alma do homem, de um processo evolutivo. Por outro lado, para o linguista Carnap,
vida transcendente etc. A
professora Ouelbani, ressalta
as afirmações teológico-religiosas são abusos linguísticos.
para o Círculo de Viena, que
a tarefa dos filósofos deveria
ser de esclarecimento e não Diante do que está dito, você certamente já percebeu que entramos
de informação. “A filosofia se
transforma em uma atividade
numa conjuntura ideológica cuja antipatia pela religião é sintomática.
de elucidação e não pode mais Todavia, o teor de ojeriza pela religião se consolida ainda mais
ser um sistema de enunciados
‘de significação duvidosa’” explicitamente nas concepções dos “mestres da suspeita”: Marx,
(OUELBANI, 2009, p. 21).
Freud e Nietzsche. Estes assumem uma postura radicalmente crítica.

70 filosofia
Acompanhemos, então, ainda que brevemente suas linhas de
pensamento.

Para Marx, em princípio inspirado pelo materialismo feurerbchiano,


a totalidade do ser consiste nisto: o homem é um ser real, diante de
objetos reais que formam o mundo das suas relações. Existiria algum
ser fora dessa realidade concreta? Não! Responde Marx. “Um ser não-
objetivo é um não-ser.” (STACONNE, 1989; p. 98).

Quem criou o mundo e o homem? Para Marx, é uma pergunta


tipicamente abstrata que, aliás, desconhece a realidade humana. Ora,
se não há criação, não há criador; logo a afirmação da autonomia
existencial do homem (por si e para si) exclui automaticamente Deus,
no caso, enquanto criador. A propósito, Staconne (1989, p. 109) alude
a Parinetto que, por sua vez, refere-se ao seguinte argumento de Marx:
“Aquilo que eu me represento realmente (realiter) é uma representação
real e ativa sobre mim; neste sentido todos os deuses, tanto pagãos
como cristãos, não têm existência real,” (grifos em Staconne).

Assim, segundo Marx Deus só é real na imaginação humana. Com


efeito, o conteúdo da religião é autoconsciência do homem.

A religião não faz o homem, mas ao contrário, o homem


faz a religião: este é o fundamento da crítica irreligiosa.
A religião é autoconsciência e o autoconsentimento do
homem que ainda não se encontrou ou já se perdeu.
[...]. O homem é o mundo dos homens, o Estado,
a sociedade. [...] A religião é a teoria geral deste
mundo...[...] sua razão geral de consolo e justificação.
É a realização fantástica do homem, porque a essência
humana carece de realidade concreta (MARX, 2005,
p. 85).

Decorre, então, que a religião é essencialmente alienação. Marx (2005,


p. 86) acentua a face alienante da religião nestas célebres palavras:
“a miséria religiosa é, de um lado, a expressão da miséria real, e de
outro, o protesto contra ela. A religião é o soluço da criatura oprimida,
o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação sem
espírito. É o ópio do povo.”

A religião torna-se, pois, um dos maiores obstáculos à realização de uma


nova sociedade, porque, por um lado, é uma invenção da sociedade

antropologia filosófica | unidade 1 71


capitalista e, por outro, evasão da realidade; por isso mesmo a
crítica e a luta radicais contra a religião, são premissas indispensáveis
a qualquer ação emancipadora da humanidade. As palavras de
Marx (2005, p. 86) são incisivas:
O livro de Otto Maduro –
Religião e Lutas de Classes
(Ed. Vozes), explicita bem a A verdadeira felicidade do povo exige que a religião
correlação de religião e luta
seja suprimida, enquanto felicidade ilusória do
de classes. Onde a religião – e
seus elementos, tanto pode povo. A exigência de abandonar as ilusões sobre sua
aliar-se aos opressores como condição é a exigência de abandonar uma condição
pode assumir a luta em favor que necessita de ilusões. Por conseguinte, a crítica da
dos oprimidos. A análise do
religião é o germe da crítica do vale de lágrimas que a
autor dirige-se, sobretudo, à
América Latina. religião envolve numa auréola de santidade.

Convém ressalvar que paradoxalmente no interior do próprio


cristianismo, principalmente na igreja católica há uma vertente
em que textos, teólogos, agentes de pastoral, pastorais (como as
sociais, incluindo aí as Comunidades Eclesiais de Base), atualizam
ou reinterpretam a crítica marxiana (em parte pelo menos) tanto
em relação à estrutura capitalista opressora como à própria forma
alienada de religiosidade. Portanto, “unem” a crítica e a proposta
de Marx ao grito profético bíblico, especialmente na “Boa Nova” de
Excluindo-se a “raiva” entre
Jesus Cristo, em favor da libertação e da emancipação do homem.
marxistas e religiosos, será que Há, inclusive, quem diga que se Marx tivesse conhecido propostas
as críticas severas de Marx
contra a exploração do homem da Teologia da Libertação, ações das pastorais sociais e das Ceb’s
no sistema capitalista, não se
tocaria num certo sentido com e ações similares de outras religiões cristãs, teria certamente uma
semelhantes denúncias de
Jesus Cristo contra semelhantes compreensão diferente daquela que celebrizou sobre a religião.
desumanismos em sua época?
Há um livro de E. Morin, “Jesus
e a estruturas do seu tempo”
(Ed. Paulinas), que aborda
justamente as acusações de
Cristo aos opressores e seus Pois bem, assim como Marx, Sigmund
aliados, inclusive, judeus
ostensivamente religiosos e Freud também relegava a religião ao mundo
austeros.
da realização fantástica principalmente em O
Futuro de uma Ilusão (1927).

Para Freud, toda civilização humana expressa


tudo aquilo em que a vida do homem elevou-
se acima de sua condição animal, em função
da capacidade de controlar as forças naturais
Sigmund Freud (1856-1939)
Fonte: http://www.google.com.br e de regulamentar as relações intersubjetivas.
Entretanto, todo indivíduo é virtualmente inimigo da civilização,
embora esta se constitua objeto de interesse universal. A ciência e a

72 filosofia
tecnologia podem ser utilizadas para aniquilar a mesma civilização. É
por isso que medidas de coerção se destinam a reconciliar os homens
com a civilização e recompensá-los por seus sacrifícios. Incluem-se
entre medidas a frustração – a não satisfação de um instinto; proibição
– regulamento proibitivo e a privação – efeito da proibição. Com efeito,
afirma Freud, a coação externa gradativamente internaliza-se, porque
o superego – agente mental – é assumido como mandamento pelo
homem.

Neste contexto, qual a significação psicológica das ideias religiosas?


Para Freud (1997, p. 40), “são ensinamentos sobre fatos e condições da
realidade externa (ou interna) que nos dizem algo que não descobrimos
por nós mesmos e que reivindicam nossa crença.” E em que se fundam
os ensinamentos religiosos? Segundo Freud em três alegações básicas:
eram acreditados por nossos antepassados; possuímos provas desde
os primevos e é proibido questioná-los. Conclusão:

[...] todas as informações proporcionadas por nosso


patrimônio cultural, as menos autenticadas constituem
precisamente os elementos que nos poderiam ser
da maior importância, ter a missão de solucionar
os enigmas do universo e nos reconciliar com os
sofrimentos (FREUD, 1997, p. 43).

Pensemos agora, com Freud, a seguinte questão: Apesar da


inautencidade, de onde vem a eficácia das ideias religiosas? Para ele,
as ideias religiosas são ilusões. E o que são ilusões? Desejos fortes e
prementes dos seres humanos. Não se confundem com o erro, nem
com a contradição à realidade. Ora, uma crença ilusória implica uma
realização de um desejo como motivo, desprezando-se, por isso,
relações com a realidade e verificabilidade. Além disso, mesmo que se
soubesse que a religião não tem a verdade, dever-se-ia ocultar tal fato
e manter a prescrição filosófica do “como se”.

De qualquer forma, Freud reconhece que a religião ajudou a refrear os


instintos associais, mas não o suficiente. De fato, se houvesse tornado
mais feliz a maioria da humanidade, não se desejaria alterar as
condições existentes. Então o que se vê? Grande número de pessoas
decepcionadas com a civilização.

antropologia filosófica | unidade 1 73


Ora, o espírito científico suscita uma forma inovadora de compreender
os assuntos do mundo. Por isso, Freud (1997, p. 61) diz que:

[...] quanto maior é o número de homens a quem


os tesouros do conhecimento se tornam acessíveis,
mais difundido é o afastamento da crença religiosa,
a princípio somente de seus ornamentos obsoletos e
objetáveis, mas, depois também de seus postulados
fundamentais.

Battista Mondin observa que Convicto das forças decrépitas da religião, ele radicaliza ressaltando
já em Totem e Tabu, Freud
afirmara que no complexo que a “religião seria a neurose obsessiva da humanidade; tal como a
de Édipo acham-se juntos
os princípios da religião, da neurose obsessiva das crianças, ela surgiu do complexo de Édipo, do
moral, da sociedade e da arte.
A religião é, pois, neurose e relacionamento com o pai [...], o afastamento da religião está fadado a
delitos coletivos.
ocorrer com a fatal inevitabilidade de um processo de crescimento...”
(FREUD, 1997, p. 69). Tem-se que dizer, argumenta Freud, que as
verdades religiosas são tão deformadas e disfarçadas que a massa não
pode tomá-las como verdade. A ciência, ao contrário, afirma Freud
(1997; p. 85), “através de seus numerosos e importantes sucessos,
já nos deu provas de não ser uma ilusão” e seus inimigos mais
No livro O Antricisto (1895)
- aforismo 49, Nietsche intransigentes são os que manifestam ou secretamente temem que a
aproximar-se-ia de Freud
neste sentido, ao afirmar: “O fé religiosa seja esclarecida e depois suprimida pelo saber científico.
sacerdote conhece apenas um
grande perigo: a ciência – a
sadia noção de causa e efeito.” Freud encerra o texto sublinhando que se ele e os partidários posteriores
de suas ideias estiverem iludidos as expectativas serão abandonadas.
Ao contrário, as ilusões religiosas não admitem correções. Além disso,
as falhas de sua crítica não implicariam afirmação da religião. Se os
objetivos da razão são históricos, os da religião se esperam em Deus e
depois da morte; porém, a longo prazo, a própria religião não escapará
à sobrepujança científica.

Pensemos, enfim, nesta assertiva com a qual Freud encerra seu livro:
“Não, nossa ciência não é uma ilusão. Ilusão seria imaginar que aquilo
Desde que Freud (em O
Futuro de uma Ilusão, 1927) que a ciência não nos pode dar, podemos conseguir em outro lugar.”
defendeu a superação da
religião pela ciência, se esta (FREUD, 1997, p. 40).
realmente avançou sobre a
religião, em que nível estaria
este avanço em nossos tempos?
Ou ao contrário, a religião Portanto, para Freud a ciência será a única força terapêutica capaz
conserva margem de autarquia
perante evoluções científico- de expurgar essa “neurose obsessiva da humanidade”, a religião, cujos
tecnológicas?
fundamentos são essencialmente psicológicos.

74 filosofia
Friedrich Nietzsche é o terceiro grande ateu do século XIX.
Thrower (s/d, p. 131) frisa que para Nietzsche “a estabilidade política
e o desenvolvimento da época não valiam nada, comparadas com o
único fato que para ele contava, mas que seus contemporâneos se
recusavam a aceitar: Deus tinha morrido.”

Depois de uma década numa solidão montanhosa, Zaratustra decide


descer para o meio dos homens e, entre estes, encontra um velho à
procura de raízes na floresta. Ao velho, Zaratustra pergunta:
E que faz o santo no bosque? O santo respondeu: - Faço Friedrich Nietzsche (1844-1900)
Fonte: http://www.google.com.br
cânticos e canto-os, e quando faço cânticos rio, choro,
murmuro. Assim louvo a Deus. [...]. Zaratustra, porém,
ao ficar sozinho falou assim ao seu coração: Será possível
que este santo ancião ainda não ouviu no seu bosque
que Deus já morreu? (NIETZSCHE, 1999, p. 24-25).

Em A Gaia Ciência (2003, p. 115) Nietzsche afirma que o anúncio da


morte e dos assassinos de Deus é feito por um louco.

Nunca ouviram falar de um louco que em pleno meio


dia acendeu sua lanterna e pôs-se a correr na praça
pública sem cessar: Procuro Deus! Procuro Deus!
Como lá se encontravam muitos que não acreditavam
em Deus, seu grito provocou uma grande hilaridade.
Ter-se-á perdido? perguntou um. [...]. Ou estará
escondido? Terá medo de nós? Terá partido? O louco
saltou em meio a eles e trespassou-os com o olhar.
Para onde Deus foi? – bradou. – Vou lhes dizer: Nós o
matamos, vós e eu! Nós todos somos assassinos!

Com isto, ainda em Gaia Ciência, ele propala que a morte do Deus cristão
é a magna notícia dos últimos tempos e que, portanto, a crença em Deus,
já indefensável, espraia-se pela Europa. A morte de Deus para Nietzsche,
implica o fim de todo idealismo assimilado e apregoado pelo cristianismo.

Na verdade, a crítica cortante de Nietzsche à religião cristã e à moral,


descendente desta, configura-se praticamente em todas as obras do
filósofo. Mas o livro O Anticristo publicado originalmente em 1895,
explicita, particularmente, sua contundente aversão. Aforismo, etimoligicamente,
significa proposição ou
sentença. A genialidade de
Observe, por exemplo, o que ele declara no aforismo 18: Nietzsche lhe faculta escrever
de forma, digamos, seccionada,
aparentemente desconexa aos
O conceito cristão de Deus – Deus como deus dos incautos. A rigor, entretanto, a
doentes, Deus como aranha, Deus como espírito veia do discurso subjaz à forma
– é um dos mais corruptos conceito de Deus que já livre da sistematicidade formal
foi alcançado na Terra; [...] Deus degenerado em ou condensada. Enfim, o que
Nietzsche pronuncia tem certo
contradição da vida, em vez de ser transfiguração teor de sentença! Esta é sua
e eterna afirmação desta! Em Deus a hostilidade forma particular de filosofar,
declarada à vida, à natureza, à vontade de vida! como se diz, com martelo!

antropologia filosófica | unidade 1 75


Na concepção nietzscheana, o cristianismo é detestável porque sempre
esteve implicado na tarefa de tornar homem o prometedor e cumpridor
de promessas, cuja memória foi sempre marcada pelo sacrifício. Vejamos
o que ele assevera na segunda seção de Genealogia da Moral:

Jamais deixou de haver sangue, martírio e sacrifício


quando o homem sentiu a necessidade de criar em
si uma memória; [...]. O castigo teria o valor de
despertar no culpado o sentimento da culpa, nele se
vê o verdadeiro instrumentum dessa reação psíquica
chamada ‘má consciência’ ou ‘remorso’ (NIETZSCHE,
1998, p. 51-70).

É por isso que sobre a doutrina cristã pesa para Nietzsche a acusação
de inversão de valores – “não existem fenômenos morais, apenas uma
interpretação moral dos fenômenos...” (NIETZSCHE, 2000, p. 73)
– logo, o cristianismo articula seu triunfo sobre as falsas promessas,
ao preço do sacrifício da humanidade do homem. É por isso que ele
radicaliza sua crítica quando em O Anticristo (2007, p. 23), Aforismo
5, destaca o seguinte:

Não se deve embelezar nem ataviar o cristianismo:


ele travou uma guerra de morte contra esse tipo mais
elevado de homem, ele proscreveu todos os instintos
fundamentais desse tipo, ele destilou desses instintos o
mal, o homem –mau – ser forte como o tipicamente
reprovável, o ‘réprobo’. O cristianismo tomou partido
de tudo o que é fraco, baixo, malogrado, transformou
em ideal aquilo que contraria os instintos de
conservação da vida forte; corrompeu a própria razão
das naturezas mais fortes de espírito, ensinando-lhes a
perceber como pecaminosos, como enganosos, como
tentações os valores supremos do espírito. [grifos do
tradutor]

Sua abominação prossegue no aforismo seguinte onde


peremptoriamente observa que “o cristianismo é chamado de religião
da compaixão. – A compaixão se opõe aos afetos tônicos que
elevam a energia do sentimento de vida: ele tem efeito depressivo.”
(NIETZSCHE, 2007, p.7).

Notemos que, segundo Nietzsche, nada é mais patético e patológico


do que a piedade cristã, haja vista que esta é deprimente porque
reprime as paixões, as sensações impregnadas na vida, em vez disso
o homem contagiado pela piedade assume e dissemina o sofrimento,

76 filosofia
enfim, sobrepõe o sacrifício à energia vital. No quarto artigo da “Lei
Contra o Cristianismo”, registrado no epílogo de o Anticristo (2007, p.
81), repudia, particularmente, o cânone da castidade, nestes termos:

A pregação da castidade é uma incitação pública à


antinatureza. Todo desprezo da vida sexual, toda
impurificação através da mesma, através do conceito
de ‘impuro’ é o autêntico pecado contra o sagrado
espírito da vida.

Veja esta constatação semelhante em “Para Além do Bem e do Mal”:


“Onde quer que a neurose religiosa tenha aparecido na terra, nós a
encontramos ligada a três prescrições dietéticas perigosas: solidão,
jejum e abstinência sexual...” (NIETZSCHE, 2000, p. 53).

Assim, o cristianismo histórico, mais que deturpação, é sabotagem à


vida através da força sistêmica do moralismo. Na verdade, Nietzsche
afirma que no “fundo houve apenas um cristão, e ele morreu na
cruz. O ‘evangelho’ morreu na cruz. O que desde então se chamou
‘evangelho’, já era o oposto daquilo que ele viveu; uma má nova, um
disangelho (NIETZSCHE, 2007, p. 45). E Paulo de Tarso é o grande
deturpador do evangelho, entre outras coisas, porque inventou um
Deus que reduziu a nada a sabedoria do mundo, para ele, Paulo,
sombra das vaidades. Com efeito, “o pecado, diga-se mais uma vez,
esta forma de autoviolação humana par excellence, foi inventado
para tornar impossível a ciência, a cultura, toda elevação e nobreza
do homem, o sacerdote domina mediante a invenção do pecado.”
(NIETZSCHE, 2007, p. 59).

A partir dessas razões, Nietzsche, em O Anticristo (2007, p. 79-80),


apresenta seu veredicto sobre o cristianismo:

Eu condeno o cristianismo, faço à igreja cristã a mais


terrível das acusações que um promotor já teve nos
lábios. Ela é, para mim, a maior das corrupções
imagináveis... [...]. Quero inscrever essa perene
acusação ao cristianismo em todos os muros, onde
quer que existam muros – eu tenho letras que os cegos
enxergarão... Eu declaro o cristianismo a grande
maldição, o grande corrompimento interior, o grande
instinto de vingança, para o qual meio nenhum é
suficiente venenoso, furtivo, subterrâneo, pequeno –
eu o declaro a perene mácula da humanidade...

antropologia filosófica | unidade 1 77


O que significa a declaração da morte do Deus cristão? O nascimento de
um novo homem – o super-homem. Assim, Nietzsche anuncia solene e
explicitamente o novo homem no Assim Falou Zaratustra (1999, p. 23):

Eu vos apresento o Super-homem! O Super-homem é


o sentido da terra. Diga a vossa vontade: seja o Super-
homem, o sentido da terra. Exorto-vos, meu irmãos, a
permanecer fiéis à terra e em não acreditar em quem
vos fala de esperanças supraterrestres.

E, ainda à frente, ele ratifica a necessária morte de Deus e a consequente


aurora de uma humanidade nova. O princípio de um tempo de liberdade.

[...]. Mas agora esse Deus morreu! Homens superiores,


esse Deus foi o vosso maior perigo. Ressuscitaste desde
que ele jaz na sepultura. Só agora torna o Grande
Meio-Dia; agora torna-se senhor o homem superior.
[...]. Homens superiores! Só agora vai dar à luz a
montanha do futuro humano. Deus morreu: agora nós
queremos que viva o Super-homem (NIETZSCHE,
1999, p. 217).

Denota-se, pois, a invenção e a inversão da existência humana dada


pela tradição religiosa e moral. Como sublinha Bernhard Welte (1981,
p. 71), “...trata-se de o homem pretender eliminar toda forma de
alienação e heteronomia, isto é, de não deixar comandar, de não dobrar
os joelhos diante de ninguém, de não seguir cegamente a ninguém.
O que se quer à autonomia do homem.” Como escreve em recente
artigo “O Jesus sem culpa”, o Professor Renato Bittencourt (Faculdade
de Comunicação CCAA – RJ), sobre as violentas críticas de Nietzsche ao
cristianismo: “não significam necessariamente uma negação do valor da
experiência religiosa, quando esta se pauta em valorações imanentes e
extramorais.” O Reino de Deus, para Nietzsche, ressalta Bittencourt, não
é algo escatológico, apocalíptico, em algum lugar fora do mundo e após
a morte, mas é um “estado de coração” uma experiência interior “um
sentimento de júbilo e de bem-estar íntimo na vida do indivíduo que
compreende intuitivamente a existência de uma unidade que perpassa
todos os seres humanos.”(BITTENCOURT, 2010, p. 15-17.)

Assim, a nova era habitada pelo homem superior é marcada


essencialmente pela transvalorização. Scarlett Marton (2000, p. 62), uma
grande estudiosa no Brasil do pensador alemão, explica: “Transvalorar,

78 filosofia
[...] é criar novos valores. Aqui Nietzsche pretende realizar obra análoga
à dos legisladores: estabelecer novas tábuas de valores”.

O falecido padre Lima Vaz – outro importante pensador brasileiro –,


retomando esta tese de Nietzsche da formação para o ethos como
submissão da animalidade humana e da orientação moral, enquanto
interditos e sanções e seus castigos correspondentes, contrargumenta
o seguinte:

A explicação nietzscheana da origem do ethos deixa,


no entanto, sem resposta a questão decisiva sobre
as razões que impelem a humanidade a trilhar esse
imenso e doloroso caminho e a empreender esse Aceite o desafio de entrar
inenarrável esforço para escalar dolorosamente as nesta polêmica: Por um
lado, se tem visto que para
escarpadas alturas da moralidade. A ideia de uma Nietzsche nossa educação
prioridade dialética do ethos sobre o indivíduo não passa de um sistema
empírico [...] oferece uma resposta infinitamente impostor de regras e valores
mais aceitável à interrogação fundamental em torno conformados a uma tradição
doentia. Por outro, Lima Vaz,
da presença constitutiva do ethos na estrutura da que a educação é o emblema
socialidade humana (VAZ, 1993, p. 28). do esforço de inscrever o
homem e no homem valores e
regras necessárias. Entre estes
lados, qual sua postura?
Não obstante, se concordarmos com as palavras de Marton, Nietzsche
permanece um mensageiro indispensável, porque transvalorar é
demolir valores fixados; permanece um iconoclasta necessário, porque
transvalorar implica demolir ídolos e fundamentos. Numa palavra final,
é neste sentido que se torna ininterrupta a incisiva crítica de Nietzsche
à metafísica, à religião, à moral.

Agora convém perguntar o seguinte: a religião desapareceu? Se você


pensou imediatamente não, sua resposta condiz com a de Rubem Alves.
Ele diz:

A religião não se liquida com abstinência dos atos


sacramentais e a ausência de lugares sagrados.[...]. a
religião fala sobre o sentido da vida. Ela declara que
vale a pena viver.[...]. E o que todas elas propõem é
nada mais que uma série de receitas para a felicidade.
Aqui se encontra a razão por que as pessoas continuam
fascinadas pela religião, a despeito de toda crítica....”
(ALVES, 2003, p.12-119).

De modo semelhante, Durkheim argumenta que as religiões de formas


particulares respondem às condições existenciais do homem.

antropologia filosófica | unidade 1 79


Qual a natureza da vivência ou da experiência religiosa? Segundo
Rubem Alves a experiência religiosa é essencialmente relação. Assim
como na experiência estética, trata-se de um estado de sensibilidade, e
não uma situação em que o sujeito – crente – apreende o objeto sagrado.
A experiência religiosa não se reflete essencialmente no esquema da
institucionalização. Rubem Alves (1988, p. 40), reportando-se Rudolf
Otto, ressalta que:

[...] o erro de se tomarem as formas institucionalizadas,


reificadas de religião, como o objeto religioso, se deve
ao fato de que nada garante ‘a priori’ que as instituições
que se batizaram a si mesmas como religiosas
realmente desempenhem, para a consciência, uma
função religiosa.

Sobre a imaginação, convém


lembrar que Freud em Totem Destarte é notório que a experiência religiosa transcende a toda moldura
e Tabu a vincula à neurose,
portanto, um estado de
sistêmica. E então o que caracteriza a experiência religiosa? Para Alves
anormalidade. À luz da (1988, p. 40), “a consciência religiosa é uma expressão da imaginação”
consciência objetiva da
ciência, a imaginação é um [grifos do autor]. E em que consiste a imaginação? Ele responde
passe de fantasia. Porém,
Rubem Alves pergunta: onde contundentemente: “Através da imaginação o homem transcende a
haveria esta objetividade
“pura”? Não seria um mito? facticidade bruta da realidade que é imediatamente dada e afirma que o
O fato é que se constata que a
imaginação subjaz, inclusive, que é não deveria ser, e o que ainda não é, deverá ser.” (ALVES, 1988,
na consciência do cientista e
na produção científica. p. 40).

A religião, nesta perspectiva, procura tornar o mundo significativo.


Certo dia Albert Einstein (1981, p. 13), escreveu algo intrigante:
“Tem um sentido minha vida? A vida do homem tem um sentido?
Posso responder a tais perguntas se tenho o espírito religioso.”
Entretanto, Riolando Azzi argumenta: “A função da crença, porém,
não se esgota como uma maneira de tornar o mundo significativo.
Em via de regra a religião, ao dar sentido à existência humana,
exige também uma nova postura diante da própria vida.” (AZZI,
1993, p. 22).

Ora, esta é uma atitude peculiar àquela vocação humana da


transcendentalidade. Aliás, um tema lucidamente abordado pelo
teólogo Leonardo Boff em Tempo de Transcendência. O que é a
Transcendência? Boff (2000, p.28) explica: é “essa dimensão de
abertura, de romper barreiras, de superar os interditos, de ir para além
de todos os limites.[...]. Esta é uma estrutura de base do ser humano.”

80 filosofia
A transcendência permite a liberdade criativa, isto é, capacidade de
protestar e transigir toda forma de opressão sistemática: educação,
família, política, religião etc., por isso, Boff (2000, p. 39) alerta: “Não
nos deixemos mediocrizar, mantenhamos nossa grandeza, nossa
capacidade de voo, nossa capacidade de transcendência.”

Entretanto, existem a mídia, o cinema, a arte e a religião que podem


promover as pseudotranscendências à medida que permitem uma
viagem fantástica, isto é, como álibi, como fetichização de modo que
se negue o mundo em que se vive. Ora, estas ultrapassagens artificiais
podem destruir a liberdade e a vida.

Julgo que o critério para saber se a transcendência é


boa, se potencia o ser humano ou diminui, está na
resposta que damos a essa pergunta: em que medida
tal experiência ajuda a enriquecer e a assumir o
cotidiano? (BOFF, 2000, p. 55).

Estas pseudotranscendências podem, dessa forma, manobrar a


dimensão humana do desejo, canalizando-a para algo limitado,
tomado, porém, na totalidade. Como alguém que se imagina
plenamente realizado na conquista de bem de consumo ou como
alguém preso numa sistemática religiosa, pensa ter adquirido como
que uma “senha” para o céu. Sem perder suas raízes – dos desejos,
inclusive –, o homem não pode restringir-se, porém, aos limites.

O ser humano é assim aberto ao infinito, à totalidade e “aquele Deus


ex maquina pregado por religiões ou anunciado por dogmas não
preenche, necessariamente, essa busca humana, porque vem de fora
para dentro e de cima para baixo.” (BOFF, 2000, p.69). Neste sentido,
para Boff não há caminho errante, cada um deles leva à fonte, de
modo que todas as religiões falam de Deus, dos mistérios, da felicidade.

É claro que a integração da transcendência no homem em tempos


hodiernos é atropelada, sedada, deturpada ou encoberta pela nuvem
ou atmosfera do materialismo exacerbado, unilateral e desumano, não
obstante, não é demais lembrar que essa contracorrente não liquida a
capacidade humana de protestar, enfim, de transcendê-la. Boff lembra
que Jesus, por exemplo, morreu na cruz por conta de um processo

antropologia filosófica | unidade 1 81


de insurgência no qual assume o lado dos excluídos. Ou seja, é o
filho de Deus que assume a condição de imanente para anunciar a
possibilidade e a necessidade de transcendência.

A Pessoa e Suas Marcas Fundamentais

A partir da mitologia grega,


entende-se Kaos – desordem, Consideremos em princípio que, quando se reflete sobre sentido
indistinção, confusão,
anomia exatamente oposto essencial de pessoa, afirma-se primordialmente que “a fonte última
ao Kosmos – ordem, nomia,
organização, resultado do da dignidade do homem é sua condição de pessoa.” (STORK:
trabalho do reinado Zeus
após sobrepor-se a todos ECHEVARRÍA, 2005, p 81). E Carl Rogers (1997, p. 122) ratifica
os seus adversários. Edgar
Morin, atualizando o conceito, dizendo: “o que o indivíduo mais pretende alcançar, o fim que ele
afirma, por sua vez, que
delega-se comumente à intencionalmente ou inconscientemente almeja, é o de tornar-se ele
ciência ordenar e simplicar o
que está difuso e confuso. mesmo.” Pela relevância do significado de pessoa, é então correto
ressaltar que o homem é inviolável, ou seja, agressões ao homem são
sempre desordem, portanto, atitudes caóticas.

De acordo com Stork e Echevarría, existem algumas marcas que


definem a pessoa. A primeira delas é a intimidade. A segunda é a
Expansão - Hannah Arendt expansão (manifestação). A terceira é a liberdade. A quarta é a
na já referida obra A Condição
Humana, afirma que a palavra dialogicidade.
e o ato exprimem a inserção
humana no mundo, como um
segundo nascimento. Os dois autores supracitados demonstram como na pessoa essas
Dialogicidade - Carl marcas, caracteres ou elementos se entrelaçam, partindo do conceito
Rogers traça os seguintes
elementos envolvidos no nuclear de intimidade. De fato, eles ilustram que:
processo do tornar-se pessoa:
abertura às experiências
orgânicas; desenvolvimento A intimidade indica um dentro que só a própria
da confiança em seu próprio pessoa conhece. O homem tem um dentro, é para si,
sistema orgânico enquanto e se abre ao seu próprio interior, na medida em que se
instrumento de vida sensível;
admite autoavaliação porque
atreve a conhecer-se, a introduzir-se na profundidade
centra-se em si mesma e de sua alma.[...]. Possuir interioridade, um mundo
assimila a vida como processo interior aberto para mim e oculto para os demais, é
fluído no qual descobre novos intimidade: uma abertura para dentro.” (STORK:
aspectos de si mesmo no fluxo
de suas experiências.
ECHEVARRÍA, 2005, p. 83).

Você talvez se pergunte agora: o que é mesmo o íntimo da intimidade?


Esta é realmente uma área tão nuclear que se busca protegê-la através da
vergonha ou pudor. É o sentimento que surge quando os outros veem
o que não se quer mostrar. “A vergonha surge não por se ter feito algo

82 filosofia
errado, mas, sim, porque se publica algo que por definição não é público.”
(STORK: ECHEVARRÍA, 2005, p. 85). A intimidade é diversificada, pois
“nenhuma intimidade é igual à outra. [...]. A pessoa é única e irrepetível,
porque é um alguém; não é apenas um que, mas sim um quem. [...]. A
pessoa é um absoluto, no sentido de um único, irredutível a qualquer
coisa.” (STORK: ECHEVARRÍA, 2005, p. 86-87) [grifos do tradutor].

O corpo, a linguagem e a ação são manifestações da intimidade. E a


apresentação social da pessoa dá-se através da cultura. Retornando ao
corpo, ressalta-se que ele é condição de possibilidade da manifestação
humana, sobretudo, através do rosto e das ações expressivas. Mas
também o corpo exprime tanto a proteção da intimidade pessoal
através da roupa ou da maquiagem, como, por outro lado, a renúncia
mediante a pornografia ou o sexualismo.

A fala é outro elemento pelo qual o homem se publiciza, manifesta


sua intimidade. Por natureza, o homem é dialógico, portanto, social
e comunitário. É neste sentido que expressa o encontro da expansão
e da reciprocidade. E o diálogo é o campo onde se fertilizam estas
dimensões. Realmente, a formação da personalidade humana exige
a intersubjetividade, porque é por ela que se consolida identidade e
consciência próprias.

A partir dessas marcas, denota-se que a pessoa, pelo que significa, já


atrai sobre si o devido respeito. Por isso Stork e Echevarría (2005, p. 95)
Na Fundamentação da
asseveram que “respeitá-la é a atitude mais digna do homem, porque ao Metafísica dos Costumes, Kant
afirma o princípio racional
fazê-lo respeita a si mesmo; e ao contrário: quando uma pessoa agride do qual decorre seguinte
a pessoa, se prostitui a si própria, se degrada.” Consequentemente, imperativo prático universal:
“Age de tal maneira que
manipular, condicionar, dirigir alguém é profundamente imoral; é o uses a humanidade, tanto na
tua pessoa como na pessoa
não reconhecimento da dignidade inerente em cada indivíduo. de qualquer outro, sempre
e simultaneamente como
fim e nunca simplesmente
O reconhecimento não é uma declaração jurídica abstrata, mas um tipo como meio.” Assim, Kant
adverte, claramente, que
de comportamento prático com os outros. Todas as pessoas devem ser instrumentalizar uma pessoa é
reconhecidas como pessoas concretas, como uma identidade própria não considerá-la livre.

e diferente das outras, nascida de sua biografia, de sua cultura e do


exercício de sua liberdade. (STORK: ECHEVARRÍA, 2005, p. 97).

Há que se ressaltar, ainda, que a pessoa tem sua existência configurada


essencialmente no espaço e no tempo. Viver se expressa no verbo estar no
mundo, instalar-se nas coordenadas da realidade mundana, no mundo
fenomênico, para usar uma expressão kantiana. Todavia, “o homem

antropologia filosófica | unidade 1 83


luta contra o tempo, trata de deixá-lo pra trás, de estar acima dele. Esta
luta não seria possível, se não existisse no homem algo de efetivamente
atemporal, imaterial e imortal.” (STORK: ECHEVARRÍA, 2005, p. 97).
Preservação da memória, retenção de algo significante do presente e
antecipação do futuro seriam mecanismos humanos de superação da
temporalidade. Ademais, a estrutura da vida humana tem um traço
de renovação constante, isto é, a vida é sempre nova porque há nela
a iminência constante (simbolicamente falando, como que sucessão de
gravidezes) de projeções e novidades.

Daquilo que foi dito até aqui e do que já se sabe, entretanto, há que se
repetir, enfim, que o homem é em essência um ser finito e inacabado.
Lembremo-nos de Ferreira Gullar, o que inicia seu famoso poema.
Traduzir-se dizendo eloquentemente: “Uma parte de mim é todo mundo;
outra parte é ninguém: fundo sem fundo.” E superar-se a si mesmo e ao
mundo, projetar-se para além, transcender, é o desafio eterno do homem.

Para o conhecido filósofo alemão Martin Heidegger, o homem é um ser-


para-a-morte. Aliás, ele ratifica essa tese numa frase lapidar na qual afirma
que “assim que o homem começa a viver, tem a ideia suficiente para a
morte.” Peter Berger, afirma que a morte é a máxima situação marginal,
haja vista ser a ruptura definitiva, um desafio implicado e encaminhado
no discurso doutrinário da maioria das religiões, embora na prática,
obviamente, eternamente insolúvel.

José Luis Maranhão sublinha três argumentos célebres sobre a morte.


O primeiro é de Heidegger para quem a morte pertence à estrutura
fundamental da existência. Ela não é acidental. Caminha-se para
ela. A hora da morte é a hora em que acaba-se de morrer. A morte
sendo intransferível, o enfrentamento dessa possibilidade é sinal de
autenticidade e libertação, inclusive da angústia a partir e em torno da
morte. Sartre, em segundo lugar, pensa ao contrário. A morte, para
ele, revela o absurdo da vida humana, porque interrompe projetos
e sentidos da vida. É a destruição de toda possibilidade, sendo ela
puramente externa, aliena o homem. Gabriel Marcel, em oposição
a ambos pensadores, pensa a morte não como princípio destruidor,
um estado de desespero, mas uma passagem de esperança absoluta,
uma transição do tempo para a transcendência (MARANHÃO, José
Luis de Sousa. O que é a Morte. São Paulo: Brasiliense, 1985).

84 filosofia
Mas, apesar da morte, ou justamente por causa dela, o homem está
sempre buscando algo mais enquanto atravessa ou trafega pela
existência. Maranhão (1985, p. 64), argumenta justamente que “à
medida que nos conscientizamos de nossa condição de mortais,
percebemos mais a mais, que não temos o direito de desperdiçar o
pouco tempo da nossa existência.” Neste sentido, é que o homem
aspira ao infinito, pretende alcançá-lo através dos aperfeiçoamentos
ininterruptos.

Entre as formas de perfeição, ainda se verifica, de modo geral nas


culturas a ideia de vida após a morte. De fato, como se disse acima,
uma bandeira comum na maioria das religiões. Por essa razão, o
homem adora, cultua, referencia seres divinos, enfim, nutre uma
espiritualidade na expectativa de uma transcendência ou completude
final.

Pensemos, enfim, neste fato interessante: apenas o homem sabe da


sua finitude, que está situada no arco da existência do começo para
o fim – como se simbolicamente se pudesse dizer: viajante consciente
entre o ventre e o túmulo. Mas a crença e a esperança na “superação”
da morte são diversamente emblemáticas em culturas e religiões
pelo mundo afora, de modo que a epopeia humana se tensiona,
surpreendentemente, entre o imanente e transcendente.

CONCLUSÃO

Ao fim desta primeira unidade, convém reiterar alguns tópicos.


Primeiramente, reafirmar que a questão “o que é o homem?” situa-
se no centro das pesquisas, análises, desafios e proposições da
Antropologia Filosófica. Ao mesmo tempo sujeito e objeto, o homem
não se exprime por unilateralidades, menos ainda numa época
pluriversal e tecnocientífica como a nossa.

Contudo, alguns traços caracterizam o fenômeno humano.


Primordialmente natural e material, enquanto corpo o homem
radicaliza-se no mundo: natureza, cultura, trabalho, relações. Nós o

antropologia filosófica | unidade 1 85


conhecemos através dos meios pelos quais produz a vida, diz Marx.
Mas o homem é também razão e logos; essencialmente humano é
prognóstico, edificante e problemático, refletido, por excelência, nas
articulações políticas. A política é propriamente a ação humana, diz
Arendt. Cerceamento de liberdades, corrupções e protecionismos
do Estado tendem a desvirtuá-la; não obstante, ela é condição de
emancipação social. Embora não expurgue a corruptibilidade, a ética,
resumida na Justiça, permanece sendo referência da política. A partir
desse vínculo, ética e política, é que são possíveis contentamentos
coletivos.

Esta aposta no homem é intrépida porque é um ser de práxis: reflexão


e ação, inclusive, pela política e pela arte. Esta, além de expressão
de sensibilidade e veículo de conhecimento, quando prático-
pedagógica a arte é transcendente e transformadora. Além da estética,
as experiências religiosas, inerentes em todas as culturas, atestam
os sonhos e esperanças humanas. Entretanto, quando induzem a
desumanismos e alienações, são substancialmente falsas.

De fato, por nenhuma ideologia, menos ainda religiosa, se justifica


intolerâncias e desrespeitos aos semelhantes. Manipulações,
impiedades, insensibilidades contrapõem-se à configuração humana:
intimidade, manifestação, liberdade e dialogicidade.

Imagine-se envolvido numa pesquisa em Antropologia


Filosófica. Discuta com seus colegas e comente brevemente
sobre a importância e o desafio de sua pesquisa, levando
em conta o fato singular que você é ao mesmo tempo
pesquisador e objeto de pesquisa.

Considerando a compreensão multidimensional do


homem, reflita e comente sobre a seguinte afirmação
do antropólogo francês, François Laplantine: “só pode
ser considerada como antropológica uma abordagem

86 filosofia
integrativa que objetive levar em consideração as múltiplas
dimensões do ser humano em sociedade. [...] uma das
maiores vocações de nossa abordagem (antropológica)
consiste em não parcelar o homem...” (LAPLANTINE,
François. Aprender Antropologia. São Paulo: Brasiliense,
2007, p. 16).

Tomando como premissa a complexidade humana,


explicite brevemente algumas ideias básicas em torno dos
seguintes caracteres humanos:
a) o homem como ser natural/material e racional;
b) o homem como sociopolítico;
c) o homem enquanto ético-moral
d) o homem com ser de práxis
e) o homem como ser estético

4 Marx, Freud e Nietzsche, como percebemos, são críticos


incisivos da religião, principalmente do cristianismo.
Escolha um deles e destaque tópicos de sua crítica.

Sugestão: discussão em pequenos grupos ou duplas.

5 Em termos ainda de religião ou experiência religiosa, como


Leonardo Boff distingue experiência entre transcendência
verdadeira e pseudo-transcedência? Se possível, apresente
alguns exemplos.

Discuta com um colega seu antes de redigir sua resposta.

6 Pelo fato mesmo da nossa condição de pessoa, a dignidade


está impregnada em cada um de nós. Neste sentido,
comente a seguinte frase pronunciada por Martin Luther
King: “Quero que um dia meus filhos sejam respeitados
pelo seu caráter, não pela cor de sua pele.”

antropologia filosófica | unidade 1 87


7 Comente brevemente os seguintes aspectos sui generis
de cada pessoa: intimidade, manifestação, liberdade e
dialogicidade.

1. Hominização

• A guerra do fogo (França/Canadá, 1981 – direção Jean-Jacques


Annaud).

Filme sobre o processo de hominização e os primeiros tempos da


humanidade

• 2001 – uma odisséia no espaço (Inglaterra, 1968 – direção: Stanley


Kubrick)

Filme que mescla temas como mitologia, hominização e tecnologia.

• O enigma de Kaspar Hauser (Alemanha, 1974 – direção Werner


Herzog)

Um jovem distante da convivência humana inclusive sem domínio de


fala, aparece numa praça, daí começa seu processo de formação

• Blade Runner, o caçador de andróides (EUA, 1982 – direção:


Ridley Scott)

Uma ficção sobre a vida terrestre no século XXI, à medida que questiona
o que é o ser humano, dada a semelhança entre este e os andróides

2. Problema da razão

• Matrix (EUA, 1999 – direção: Lary Wachowski e Andi Wachowski)

Trilogia interessante sobre projeções da em torno da artificialização da


razão.

88 filosofia
3. Problema sociopolítico

• O menino selvagem (França, 1969 – direção François Truffaut).

França século XVIII, encontra-se uma criança selvagem. Um professor


encarrega-se de educação social.

• Fahrenheit 9/11 (EUA, 2004 – direção: Michael Moore).

Documentário sobre a invasão de tropas americanas sobre o Iraque,


motivada por falsas alegações políticas e ideológicas capitaneadas pelo
então Presidente Georg W. Bush.

• O que isso, companheiro? (Brasil, 1997 – direção: Bruno Barreto).

Aborda a organização de movimentos clandestinos durante o regime


militar. Baseado no livro de mesmo título do jornalista e político carioca
Fernando Gabeira.

• O quarto poder (EUA, 1998, direção: Costa-Gravas.

O filme retrata em estilo de suspense o poder e a manipulação da


mídia.

4. Problema ético-moral

• Pulp Fiction (EUA, 1994 – direção: Quentin Tarantino).

O filme retrata a banalidade da violência, colocando em pauta a perda


dos valores morais na sociedade atual.

• Mississipi em chamas (EUA, 1988 – direção: Alan Parker).

O filme narra os problemas do racismo e da intolerância nos EUA.

• Crimes e pecados (EUA, 1989 – Woody Allen).

Reflexão sobre traição, desejo e culpa envolvida na relação conjugal.

• A letra escarlate (EUA, 1995 – direção: Roland Joffé).

O filme apresenta o problema da vergonha, do preconceito e da


exclusão social, por conta do adultério de uma mulher casada (Demi
Moore).

antropologia filosófica | unidade 1 89


• Eternamente Pagú (Brasil, 1987 – direção: Norma Bengell)

Patrícia Galvão, a Pagú, musa dos intelectuais das décadas de 20 e 30


como sua forma de pensar, de ser e de amar, escandalizou a burguesia
de sua época.

• Uma verdade inconveniente (EUA, 2006 – direção: Davis


Guggenhein)

Documentário em que Al Gore ex-presidente dos EUA, alerta sobre as


mudanças climáticas e as ameaças consequentes.

5. O homem como ser estético

• Minha amada imortal (EUA, 1994 - direção: Bernard Rose)

Sobre a biografia de Beethoven, além de realçar a beleza do romantismo.

• Vinte dez (Brasil, 2007 – direção: Francisco César Filho e Tata


Amaral)

Documentário sobre o hip-hop paulista

• Camille Claudel (1988 – direção: Bruno Nuytten)

Filme sobre o envolvimento da escultora Camille com o escultor


Auguste Rodin, suscitando, pois, um debate entre a fragilidade humana
e o poder da arte

6. Religião e transcendência

• Excelente documentário (legendado) “O poder do mito.” O


jornalista Bill Moyers entrevista o historiador das religiões Joseph
Campbell, sobre mitos, religião, mitos, simbologias etc.

Um cd acompanha o livro de Leonardo Boff – Tempo de Transcendência.


Excelente sugestão para ler e ouvir reflexões do teólogo sobre os
sentidos e os tipos de transcendências.

90 filosofia
TEXTO COMPLEMENTAR

A relação homem-mundo

Edvino A. Rabuske

Os seres vivos têm um princípio interno de unidade. É o princípio de


sua identidade que nos faz manterem-se os mesmos através das fases
da vida; e também é princípio de uma totalidade, isto é, origem das
partes, de sua regeneração e de sua solidariedade. O que aqui nos
interessa mais é a relação entre o ser vivo e o outro. Esta relação com
o outro pertence ao ser vivo: trata-se de uma “presença”, em que tanto
ele mesmo (no sentimento), quanto o outro (na percepção) podem ser
para ele.

No animal o fundamento dinâmico desta presença é o instinto, que


se manifesta em necessidades ou carências em energias de excesso.
Pelo instinto o animal está relacionado dinamicamente com elementos
do seu meio-ambiente, que pertencem, como outros, à vida mesma
do animal. A referência ao outro se mostra anatomicamente nos
órgãos sensoriais, sexuais, motores etc. Também o animal é sujeito.
Podemos definir: sujeito é um ente que se relaciona consigo enquanto
se relaciona com outro. [...].

Pode-se falar dum “mundo-fechado” dos animais, fechado e pouco


modificável. Quando se dá um desastre ecológico, muitas espécies
de animais desaparecem, porque não consegue adaptar-se ao novo
ambiente. A especialização pode ser um beco sem saída. Não se deve
esquecer, que cada espécie de animais tem seu ambiente específico,
que corresponde ao seu aparato instintivo. As coisas e os fatos não
entram neste esquema inato não são percebidos; percebido é somente
o que tem relevância biológica. Aqui os pesquisadores apresentam
fenômenos interessantes (Jacob von UEXKULL). [...]. Mais conhecidas
são as incríveis façanhas das abelhas da comunicação entre si e na
construção de favos.

O animal não percebe tudo como os homens. Só percebe o que lhe


é de proveito biológico, que desencadeia uma reação instintiva. [...].

antropologia filosófica | unidade 1 91


Considerada como operação subjetiva, é um funcionamento instintivo,
inato, invariável, que lembra mais o automatismo das máquinas do
que a criatividade humana.

Consideremos a relação do homem com o mundo. Já afirmamos o


sujeito e seu outro são correlativos. Um sujeito como tal não se torna
manifesto, quando indico suas propriedades puramente “coisas”
[...], mas apenas quando conheço algo sobre suas relações, os seus
interesses, o ambiente de sua vida. [...]. Também devo saber o que ele
ama, de que gosta, como se relaciona etc. [...].

Os outros, porém, não aparecem isolados. Aparecem num contexto


que fornece o horizonte para a experiência particular. Este horizonte
se chama mundo. O que concretamente fazemos, suportamos,
planejamos, sentimos etc. nunca é um fato isolado. [...]. A partir
deste mundo com suas múltiplas referências de significação, resulta
a significação do ato correto. O mundo dum professor é diferente do
mundo dum barbeiro ou do mundo dum proprietário de uma empresa
de ônibus. [...].

O homem não é originalmente um sujeito puro, sem mundo e sem


história. [...], nos encontramos no outro: na unidade dialética de
autorrealização e hetero-realização, de autocompreensão e hétero-
compreensão. [...]. A nossa existência está condicionada de diversas
maneiras também no seu desenvolvimento espiritual. O que eu sou,
como me experiencio e compreendo, é o resultado dum permanente
intercâmbio entre mim e o meu mundo.

O termo “mundo” não é tomado aqui no sentido cosmológico como


a totalidade dos entes.... [...]. O conceito transcendental de Kant
procura dar conta do caráter apriórico: o mundo significa para ele o
“conjunto de todas as aparências” [...], isto é, a totalidade projetada
a priori de todos os possíveis objetos da experiência. [...]. Ao invés
desta concepção formal e estática compreendemos o mundo como
a apriori concreto, pois os conteúdos da experiência entram na
nossa concepção do mundo e a modificam continuamente. [...]. O
mundo é a totalidade do nosso espaço de vida e o horizonte de
nossa compreensão. E o homem é “ser-no-mundo” – usando uma
expressão de HEIDEGGER. [...].

92 filosofia
A experiência humana sempre está penetrada pela compreensão
racional, pela avaliação volitiva e emocional, pela recordação do
passado e pela antecipação do futuro. No nosso mundo da experiência
nos encontramos, antes de tudo, como homens entre homens. O ser-
no-mundo é inseparável do ser-com-outros. A compreensão do mundo
é social: somente pela relação com os outros homens participamos
dum mundo histórico-cultural. [...].

O homem é um animal extraordinário. [...]. Por natureza o homem é


um ser cultural. Não consegue viver no imediato, em virtude de não-
especialização dos seus órgãos e dos seus instintos.

RABUSKE, Edvino A. Antropologia Filosófica. Petrópolis: Vozes,


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94 filosofia
unidade

2
ObjetivoS dESTA unidade:
CONSTITUIÇÃO CIENTÍFICA DA Compreender a natureza
ANTROPOLOGIA NO OCIDENTE e a especifidade da
Antropologia Filosófica;
Destacar teorias e
autores fundamentais
para a sistematização
científica da Antropologia
Filosófica;
Sublinhar metodologias e
PALAVRA INICIAL... técnicas mais apropriadas
neste campo de pesquisa.
Caro estudante,

Seguindo a trajetória desse nosso estudo antropológico vamos


agora, neste segundo unidade, tomar como interesse principal de
compreensão a constituição científica da antropologia ocidental. A
intenção fundamental é que, a partir de uma abordagem que se
segue, por sinal, não muito longa possamos acompanhar os fatos
e os passos relevantes que fundaram a antropologia filosófica.
A rigor, um pouco de história da Antropologia Filosófica. Como
todos nós sabemos, ou vamos perceber o estatuto científico da
Antropologia Filosófica de fato é consolidado na modernidade,
mas, é claro, as inquirições, debates e teorias antropológicas
retroagem bastante; remontam-se aos gregos arcaicos.

Neste sentido, vamos situar brevemente a antropologia no quadro


das ciências humanas; em seguida, vamos perceber algumas
divisões internas da antropologia e, em terceiro lugar, destacar a
relevância e a metodologia desta disciplina.
INTINERÁRIO DE ESTUDOS

A particularidade da Antropologia Filosófica entre as ciências


humanas;

Autores importantes na história da Antropologia Filosófica;

Elementos metodológicos apropriados à pesquisa em


antropologia filosófica.

O Campo das Ciências Humanas e a Antropologia


Filosófica

Talvez você se pergunte: Antropologia Filosófica é mesmo ciência?


Sendo considerada ciência, o que lhe assegura legitimidade?

Questões como estas se tornaram prementes em tempos modernos,


principalmente desde que Galileu reivindicou para qualquer produção
científica séria um suporte metodológico. O que ocorre é que por um
lado há os que afirmam que o método das ciências exatas e naturais
é a referência fundamental para qualquer pesquisa científica; por
outro, estão os que dizem que o fenômeno humano é tão singular
que exige um método absolutamente diferente, portanto, específico.
De acordo com Pedro Demo, o que parece razoável é uma postura
intermediária, ou seja, métodos para pesquisa natural podem também
servir para coisas humanas. Regras lógicas do conhecimento, por
exemplo, valem para as duas esferas. Ademais, vejamos que em certas
questões, estas duas áreas científicas entrecruzam-se nitidamente. A
chamada medicina pública ou social leva em conta questões sociais e
as condições psicológicas dos doentes; a psicologia, por sua vez, pode
vincular-se em certos meios às ciências da saúde. Mais ainda: se um
agrônomo, por exemplo, considera informações antropológicas sobre
uma determinada comunidade da baixada ou do sertão maranhense
seu trabalho, além de politicamente correto, tem maior possibilidade

96 FILOSOFIA
de êxito e, reciprocamente, o sucesso da pesquisa ou atuação de
um antropólogo pode ser facilitada se ele levar em conta dados
agronômicos relativos aos regimes de estilos e trabalhos agrícolas de
uma determinada comunidade rural daquelas mesmas regiões tomadas
como exemplo. Em tese, portanto, ciências exatas e naturais e ciências
sociais e humanas não se excluem mutuamente. Pelo contrário, frisamos
acima que o homem é, a rigor, um objeto de pesquisa razoavelmente
inteligível se tomado sob o critério da interdisciplinaridade.

Não obstante, Demo (2006, p. 13) ressalve que “[...] justifica-se uma
metodologia relativamente específica para as ciências humanas,
porque o fenômeno humano possui componentes irredutíveis às
características da realidade exata e natural.”

Assim, existem particularidades que “demarcam” o campo das ciências


humanas e sociais, entre elas, obviamente, a Antropologia Filosófica.
Em primeiro lugar, a historicidade. Os objetos destas ciências são
efetivamente históricos. “A provisoriedade processual é a marca básica
da história, significando que as coisas nunca ‘são’ definitivamente,
mas ‘estão’ em passagem, em transição.” (DEMO, 2006, p. 15). Isto
quer dizer que um antropólogo ou um sociólogo não pode analisar
como objeto estático um movimento social, uma organização sindical
rural ou urbana, festas como bumba-meu-boi, do divino espírito santo,
tambor de crioula: rituais religiosos.

Em segundo lugar, a consciência histórica. Na esfera das ciências


naturais, não se verifica nenhuma consciência nos objetos, ao passo
que no mundo das ciências sociais e humanas nós fazemos história,
mesmo considerando os condicionamentos. A história pode ser “feita”,
isto é, nós a planejamos e a articulamos.

Em terceiro lugar, ressalta-se a identidade sujeito e objeto, no sentido


de quando estudamos objetos sociais e humanos estudamos, a rigor,
nós mesmos. Um estudo sobre psicopatologias, exclusão social,
expressões folclóricas etc. pode suscitar no pesquisador uma projeção
de estar no lugar do outro (objeto de estudo). Uma situação diferente
é o cientista analisando uma pedra ou uma ameba sob o microscópio.
Como afirma Demo (2006, p. 16), “[...] nenhum objeto pode ser
totalmente estranho e exterior, porquanto é possível imaginá-lo como

antropologia filosófica | unidade 2 97


parte nossa em outras circunstâncias. Tal identidade não precisa ser
confusão ou excessivo envolvimento. [...], o que se pode dizer é que tal
envolvimento pode ser maior no caso dos objetos sociais.”

Em quarto lugar a qualidade sobreposta à quantidade, no sentido da


mensuração, não do critério primordial das ciências humanas. Isto não
quer dizer menos rigor metodológico ou cuidado analítico. O que se
afirma é que fenômeno como movimento social ou ritual não pode ser
mensurado à semelhança de processos químicos num laboratório de
Química.

Em quinto lugar, o caráter ideológico está impregnado no interior das


ciências humanas, isto é, no seu objeto. A ideologia pode incidir sobre
as ciências naturais, porém de forma extrínseca. A análise da água em
si não é ideológica. “Enquanto o cientista natural pode abstrair [...] do
uso que pode fazer do conhecimento gerado, o cientista social que se
coloque tal pretensão já é nisto ideológico, porquanto faz parte de suas
ideologias mais baratas a pretensão de não ser ideológico.” (DEMO,
2006, p. 18).

Finalmente, a dimensão da prática. Pedro Demo explica esta


diferença entre ciências naturais e ciências sociais e humanas,
ilustrando que o químico pode interessar-se em analisar uma
molécula somente para acumular informações ou conhecimento.
Ora, na sociologia como na antropologia o distanciamento para
com a prática significa alienação.

Lima Vaz (1993, p. 11) ressalta que na classificação de Jean Ladrière,


“as ciências humanas constituem o grupo das ciências hemenêuticas,
na medida em que nelas o fato (p. ex. o comportamento do indivíduo
ou as aspirações do grupo) traz em si próprio interpretação e nunca se
apresenta como fato neutro.”

Nos parece claro, então, que cientistas naturais e cientistas sociais e


humanistas se assemelham por seguirem procedimentos, critérios e
metodologias exigíveis numa produção científica, mas se distinguem
pelo envolvimento com fatores axiológicos específicos de cada área. O
esclarecimento de Demo não deixa nenhuma dúvida:

98 FILOSOFIA
O cientista natural tem seu desenvolvimento inevitável
como cidadão que é: mas isto não faz parte intrínseca
de seu objeto de estudo, embora faça parte extrínseca.
Políticos somos todos nós, pelo simples fato de
ocuparmos uma posição qualquer na sociedade,
dominante ou dominada. Não precisa ser posição
partidária. O cientista social tem tal imbricação no
próprio objeto de estudo, com o qual em última
instância se identifica (DEMO, 2006, p. 19).

O termo, a legitimidade e breves traços


históricos da Antropologia Filosófica

A pergunta “o que é o homem?” pode se dizer que se origina de um


sentimento, como diz Rabuske, de uma espécie de percepção não clara,
porém abrangente e afetuosa. Podemos dizer que aquela pergunta tem
as matizes da admiração clássica e da inquietação hodierna. Sófocles,
em Antígona, enaltece as habilidades do homem para dominar
os desafios e os inimigos. Para ele, os limites são a morte e as leis
(moralidade) da pólis. Estas últimas, é claro, ele pode recusar. Com
efeito, conclui o poeta: nada é mais terrível que o homem. No contexto
da modernidade prevalece a inquietação, porque a posição do homem
no cosmos é tanto de construir como de destruir, espantosamente de
forma cada vez mais planetária e célere e por estas façanhas, inclusive,
ele se torna objeto de uma pluralidade de ciências.

Do ponto de vista histórico, retornemos, todavia, à Antiguidade,


onde, segundo Lima Vaz, na cultura ocidental, desde seus primórdios
(convencionalmente século VIII a.C. – Grécia), a interrogação
fundamental “o que é o homem?” permanece impregnada nas várias
expressões da cultura: mito, filosofia, ciência, religião, literatura, ethos,
política etc. Da reflexão sobre o fenômeno humano decorre o fato
peculiar de que ao interrogar-se sobre si mesmo o homem torna-se
simultaneamente sujeito e objeto, abrindo-se, com efeito, ao mundo
externo.

A natureza da interrogação, considerada, particularmente, na


perspectiva das tradições filosóficas – greco-romana e bíblico-cristã

antropologia filosófica | unidade 2 99


– compreende o homem como portador de razão universal e de
liberdade de escolha, originando, com efeito, a Metafísica e a Ética
como sublimes saberes humanos. A Antropologia Filosófica absorverá,
então, estas duas expressões da razão: a teorética e a prática.

Em tempos modernos, a interrogação sobre o homem adquire


relevância célebre nas quatro questões de Kant:

• o que posso saber? - teoria do conhecimento;

• o que posso fazer? - teoria da ação ética;

• o que posso esperar? - filosofia da religião;

• o que é o homem? – antropologia filosófica.

Observemos que, desde os fins do século XVIII, as questões sobre o


homem se complexificaram com o advento das ciências do homem
e da biologia humana e de novas disciplinas que abordam sobre o
homem de alguma forma. Por isso, exigiu-se um estatuto próprio para
a Antropologia enquanto disciplina específica e depois sua correlação
com as demais ciências. A questão sobre o homem na modernidade
retesou-se entre a tendência naturalista e a culturalista. A primeira
representada pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss, e o biólogo
compreende que o homem deve ser explicado a partir da sua natureza
material; a segunda assumida, sobretudo, pelo filósofo Wilhelm Dilthey,
assegura a necessidade de separar no homem os aspectos natural e
cultural, daí advém, consequentemente, a separação entre as ciências
da cultura (espírito) e as da natureza. Assim, a compreensão de homem
estende-se entre os polos da cultura e da natureza.

Vejamos então que esta situação problemática do homem aponta pelo


menos duas tarefas básicas para a Antropologia Filosófica:

a) elaboração de uma ideia de homem que considere tanto temas e


questões permanentes ao longo da história da filosofia como as
contribuições recentes fornecidas pelas ciências do homem;

b) sitematização filosófica dessa ideia de homem, na intenção de


constituir uma ontologia humana que possa responder à questão
essencial: “O que é o homem?”

100 FILOSOFIA
A fase atual de conhecimentos, diante da complexidade de saberes
que envolvem o homem-objeto e, consequentemente, suscita uma
variedade de abordagens sobre o homem confluídas naquela pergunta
“o que é o homem”? A Antropologia Filosófica assume o desafio
de sistematizar e sintetizar as diversas explicações sobre o homem,
buscando constituir, enfim, o discurso filosófico sobre o homem ou, de
outro modo, um discurso antropológico de teor ontológico.

De acordo com Lima Vaz, em nossos tempos se ampliaram os


paradigmas, ou melhor, as orientações epistemológicas, à luz das quais
se elaboram, desenham-se ou “formatam-se” as imagens do homem.
Da perspectiva da formas simbólicas, localizam-se as ciências da
cultura; da perspectiva da subjetividade, as ciências do indivíduo e do
agir individual e sócio-histórico, e da perspectiva da natureza as ciências
naturais do homem. A escolha de uma destas perspectivas implica,
consequentemente, a escolha do método científico correspondente:
culturalista e dialético ou fenomenológico – ciências hermenêuticas; e
naturalista – ciências naturais.

Lima Vaz (1993, p. 13) resume da seguinte maneira:

Uma Antropologia integral deve tentar uma articulação


entre esses três polos que não ceda ao reducionismo
e não se contente com simples justaposição, mas
proceda dialeticamente, integrando os três polos
da natureza, do sujeito e da forma na unidade das
categorias fundamentais do discurso filosófico sobre o
homem.

Convém ressaltar, entretanto, que na filosofia existem duas fontes das


quais ela recebe seus problemas: a experiência natural e a ciência cujas
compreensões são, respectivamente, pré-compreensiva e compreensiva.
Mas na Antropologia Filosófica, essas duas fontes confluem no homem
que é ao mesmo tempo sujeito e objeto na interrogação antropológica.

Interessante realçar ainda que na esfera das ciências naturais, incluem-


se os problemas de gênese e estrutura. No primeiro caso, “a questão
fundamental gira em torno da possibilidade de se alcançar uma
compreensão adequada da essência do homem seguindo-se a linha
dessa sua derivação natural.” (VAZ, 1991, p. 14). No segundo, trata-
se do clássico problema da estrutura dupla do homem: alma e corpo.

antropologia filosófica | unidade 2 101


Na esfera das ciências hermenêuticas, lugar das ciências humanas,
localiza-se, obviamente, a Antropologia Filosófica e seus problemas
fundamentais. Pelo menos cinco deles, são os seguintes:

a) cultura. Para Hegel, é o campo do espírito objetivo; para Cassirer


das formas simbólicas. Abre-se o debate entre o entendimento das
formas enquanto expressões humanas do mundo e de si mesmo
ou do sujeito como “genitor” intencional das formas. Tomando
a ótica das formas, relevam-se a origem e a evolução da cultura
como reflexos do homem ou a originalidade da cultura enquanto
oposta ao mundo natural.

b) sociedade. Considerando o desenvolvimento das ciências sociais


e econômicas desde o século XIX e as mudanças na sociedade
ocidental, desde a guinada da modernidade, impõem-se problemas
relativos às estruturas sociais, às inter-relações e ao trabalho,
desembocando, inclusive, em reducionismos como o econômico
em Marx;

c) psiquismo. Entre os séculos XIX e XX formalizaram-se e


desenvolveram-se as ciências psicológicas e a estas somaram-se
as ciências da linguagem, no interior das quais movimenta-se o
debate sobre o conceito de homem dotado de razão e corpo;

d) histórico. Trata-se da historicidade do homem, isto é, sua natureza e


seu destino, sempre presente nas reflexões filosóficas da Antropologia.
Nesta perspectiva, elementos como tempo histórico e tempo físico,
origem e meta da história, história como evento e história como
narração, incrementam a especificidade da discussão.

e) ethos. É a dimensão que abrange ações individual e social,


presentes na normatividade e no dever-ser. “Sendo co-
extensivo à cultura, o ethos é objeto, desde os inícios da
história da filosofia ocidental, de saberes específicos: a Ética,
tendo por objeto o agir individual e o Direito e a Política, o
agir social.” (VAZ, 1991, p. 17).

Assim, o campo ou a esfera das ciências do homem é lugar privilegiado


para a apresentação de antigos e atuais problemas antropológicos,
tematizados, debatidos e sistematizados abertamente à luz da reflexão
filosófica.

102 FILOSOFIA
Battista Mondin (1980, p. 6) retoma uma interessante observação de
Max Scheler, sobre a importância da Antropologia Filosófica que diz
o seguinte:

É uma ciência fundamental acerca da essência e da


estrutura eidética do homem; sua relação com os
reinos da natureza [...] e com o princípio de todas
as coisas; da sua origem essencial metafísica e ao
seu início físico, psíquico e espiritual do mundo; das
forças e potências que agem sobre ele e aquelas sobre
as quais ele age; das direções e das leis fundamentais
do seu desenvolvimento biológico, psíquico, espiritual
e social, consideradas nas suas possibilidades e
realidades essenciais.

Pedro Dalle Nogare chama atenção para uma observação de Jean-


Paul Sartre, na qual este diz que “é humanista, filosoficamente, toda
doutrina que atribui ao homem algo de característico, de específico em
relação aos outros seres do universo.” (NOGARE, 1978, p. 14). Neste
sentido, é que o humanista alemão Otto Casman, em 1596, numa obra
intitulada Psychologia anthopologica propõe um estudo sobre a alma
e corpo do homem. O termo “antropologia” consolidou, entretanto,
somente no final século XVII, precisamente em 1798, quando Kant
entendeu-o como “uma doutrina do conhecimento do homem
ordenada e sistematicamente,” num tempo em que, efetivamente, já se
havia transitado dos paradigmas clássico-medievais para os modernos.

Para o antropólogo brasileiro Mércio Gomes, a Antropologia enquanto


ciência é fruto do contexto fértil do Iluminismo, quando Filosofia
favorece especulações sobre o homem e suas alternativas de ser e agir.
O autor faz, neste sentido, uma importante reflexão:

Apesar de sua etimologia [anthropos = homem; logia/


logos = razão, lógica, estudo; – literalmente, estudo
sobre o homem] não foram os geniais gregos criadores
da filosofia que inventaram a Antropologia. Eles se
consideravam tão superiores aos povos e nações
vizinhos, seus contemporâneos, a quem chamavam
de ‘bárbaros’, que mal tinham olhos para os ver e os
apreciar. Para surgir a Antropologia [...] seria preciso
um tempo de dúvidas e ao mesmo tempo de abertura
ao reconhecimento do valor próprio de outras culturas.
Tal tempo só surgiria depois, quando a Europa [...]
pôde assim olhar e conceber outros povos, ao menos
teoricamente, como variedades da humanidade,
cada qual com seus próprios valores e significados
(GOMES, 2009, p. 11).

antropologia filosófica | unidade 2 103


A partir de então, seguiu-se uma série de autores, sobretudo, desde
o século passado, focados em problemas humanistas ou imagens do
homem. Entre outras pode se destacar as seguintes:

• o homem econômico: Karl Marx

• o homem instintivo: Sigmund Freud

• o homem angustiado: Sören Kierkegaard

• o homem ex-istente: Martin Heidegger

• o homem falível: Paul Ricoeur

• o homem hemenêutico: Georgs Gadamer

• o homem cultural: Arnold Gehlen

• o homem religioso: Thomas Luckmann.

Não obstante as abordagens em torno do homem que se estendem


desde a Grécia arcaica, a estrutura da antropologia enquanto ciência é
recente e, de modo geral, estas imagens do homem ajustam-se em três
segmentos ou orientações antropológicas:

a) antropologia física – estudo físico-somático do homem. Esta


abordagem pretende, inicialmente, apresentar uma tipologia das
raças, para isso lançava mão de procedimentos antropométricos
tais como craniometria e osteometria e métodos fisiológicos,
análise sanguínea, por exemplo. Nesta categoria podemos
localizar também a Antropologia Biológica que para Mércio
pretende entender a ordem escalar da evolução humana e o
quanto de animal (natural, orgânico) permanece no homem
atual.

b) antropologia cultural – estudo sobre o homem numa perspectiva


histórica. “O objeto próprio é a pesquisa particular, com vistas
à conexão interna de suas dimensões (sistema de parentesco,
direito, religião, técnica, forma de economia etc.).”(RABUSKE,
2001, p. 15).

É importante notar que as antropologias supracitadas incluem a


Arqueologia, a Linguística e a Etnologia que, por sua vez, engloba

104 FILOSOFIA
a Etnografia e a Antropologia Social. A Arqueologia, ligada à
Antropologia Física, analisa uma cultura antepassada através de
vestígios deixados em objetos, moradias, artes etc. Escavação é uma
das técnicas mais usadas nesse tipo de pesquisa; a Linguística volta-se
para a compreensão do sistema linguístico de povo e, por extensão,
axiomas, costumes, regras etc., e a Etnologia, como o termo induz,
analisa ou estuda a identidade de um povo em seus vários aspectos,
sobretudo o cultural. O método comparativo é comum neste tipo de
pesquisa.

c) antropologia filosófica – reflexões sobre os princípios essenciais e


últimos do homem. É este enfoque que sem desconsiderar aspectos
particulares toma o homem numa perspectiva globalizante.

Todavia, não seria supérflua uma disciplina filosófica que trata


especificamente do homem? A antropologia experimental e as
disciplinas científicas não são suficientes para conhecer o homem?
Ora, a legitimidade da antropologia filosófica justifica-se porque as
disciplinas científicas apresentam visões parciais e superficiais do
homem.

Por sua vez o filósofo, por que é filósofo, se empenha em


buscar uma resposta total, completa, exaustiva, última,
uma resposta em condições de esclarecer plenamente
o que seja o homem tomado globalmente, em seu
todo, o que ele efetivamente além e sob as aparências,
o que seja em si mesmo afora as diferenças causadas
pelo ambiente, pela idade, pela educação, pelo sexo
(MONDIN, 1980, 14).

Ou na explicação de Rabuske (2001, p. 17):

[...] as ciências particulares pressupõem uma pré-


compreensão do que é o homem. Só assim o
conhecimento empírico-particular pode selecionar
o que é antropologicamente relevante. Portanto,
as ciências particulares não oferecem um ponto de
partida filosoficamente legítimo para a Antropologia
Filosófica.” [grifos do autor].

antropologia filosófica | unidade 2 105


As questões do estatuto e da metodologia na
antropologia filosófica

Dilthey distingue, segundo Mondin, os conceitos de explicar (erklären)


e compreender (versterhen), no interior dos debates filosóficos. Assim,
a compreensão histórica do homem contrapõe-se à explicação física
dos fenômenos. De fato, enquanto a natureza é explicada, a vida é
compreendida; com efeito, antropologia filosófica é fundamentalmente
um saber explicativo e, por isso, o estatuto epistemológico científico
dessa disciplina distancia-se do da ciência e assemelha-se aos da
religião e da história.

Ora, o problema epistemológico da Antropologia conduz imediatamente


à questão do método. Mondin ressalta que o objeto da Antropologia
Filosófica, o homem, pode ser enfocado por paradigmas diferentes, isto
é, por métodos como o empírico-formal, o dialético, fenomenológico
assumido por Husserl; o existencialista por Heidegger e demais autores
existencialistas; o hermenêutico por Ricoeur; o transcendental por
Marcel; o estrutural por Lévi-Strauss;

Entretanto, se concordarmos com Mondin (1980, p. 16), a


antropologia exige, a rigor, um método complexo que incluiu os
estágios fenomenológico e transcendental. “Na fase fenomenológica se
recolhem os dados relativos ao ser do homem, na fase transcendental
se busca revelar o significado desses últimos dados, o significado
profundo que lhes dá um sentido e os torna possíveis.” Rabuske diz a
mesma coisa de outra maneira:

O fenômeno como aquilo que se mostra já que sempre


é interpretado a partir dum horizonte. Por isto uma
fenomenologia que compreende sua própria essência
deve retornar às condições prévias, deve perguntar de
modo transcendental pelas condições de sua própria
possibilidade. A reflexão transcendental exige um
ponto de partida fenomenológico: algo perguntado,
que mostra como condicionado e exige a pergunta por
sua condição (RABUSKE, 2001, p. 17-18).

Destarte da perspectiva da fenomenologia, mesmo quando a


antropologia busca compreender objetivamente o fenômeno humano,
sua objetivação à diferença das ciências experimentais não pretende

106 FILOSOFIA
mensurar, controlar e manipular, mas busca compreender as
interpretações, o pensamento sobre o objeto em pesquisa. Há neste
sentido uma coligação com o método transcendental, haja vista que
este “move-se a partir dos fenômenos e os estuda profundamente
com a finalidade de descobrir as raízes últimas. No caso do homem,
ele busca uma justificação última de todos os seus comportamentos,
inferindo as condições que os tornam possíveis.” (MONDIN, 1980,
p. 17).

CONCLUSÃO

Daquilo que explicitamos nesta unidade, as ciências humanas,


inclusive a Antropologia Filosófica, precisam, por conta da exigência
acadêmica de praxe, orientar suas pesquisas por regras metodológicas,
considerando, obviamente, os limites dos métodos e a especificidade
científica. As ciências humanas, conforme Pedro Demo, se caracterizam
basicamente pela historicidade, consciência histórica, sobreposição
da qualidade sobre a quantidade, ideologia e prática. Ademais, os
cientistas se orientam por axiologias cientificamente particulares, isto
porque todos somos políticos à medida de nossas posturas sociais.

A antropologia Filosófica consolidada desde Kant em 1798, enquanto


conhecimento sistemático sobre o homem, assume hoje o desafio
de considerar simultaneamente a pluriversalidade de saberes sobre
o homem e a escusa aos reducionismos. De fato, a Antropologia
consagrou-se, conforme Mércio Gomes, quando pensadores
reconheceram a diversidade de culturas e, com efeito, interpretações
variadas de homem: econômico (Marx), instintivo (Freud), angustiado
(Kierkegaard), cultural (Gehlen), religioso (Luckman).

Enfim, como percebemos, o objeto da Antropologia Filosófica, o


homem, pode ser visualizado por ângulos diversos, logo utiliza-
se métodos diferentes: fenomenológico (Husserl), existencialista
(Heidegger/Sartre), hermenêutico (Ricoeur), estruturalista (Lévi-
Strauss).

antropologia filosófica | unidade 2 107


Destaque alguns caracteres específicos da esfera das
ciências sociais e humanas.

Seja a interrogação fundamental “o que é o homem?”, ou


a eterna recomendação socrática “conhece-te a ti mesmo”,
constitui compromisso básico da Antropologia Filosófica.

Discuta e discorra brevemente sobre este desafio


antropológico.

Entre os problemas de alçada da Antropologia Filosófica,


estão os da cultura, da sociedade, do psiquismo, da história
e do ethos.

Descreva brevemente o sentido de cada um deles.

4 Que tipos metodológicos são apropriados à pesquisa


antropológica?

108 FILOSOFIA
TEXTO COMPLEMENTAR

Legitimidade da Antropologia Filosófica

Battista Mondin

Até que Kant não pôs em dúvida a possibilidade de uma investigação


metafísica das coisas, não havia aparecido uma suspeita sobre a
legitimidade de um estudo do homem de caráter filosófico. Hoje,
depois do empurrão dado pelo autor da Crítica da Razão Pura, na
especulação sobre a “coisa em si”, esta legitimidade não é mais tida
como dada. Antes muitos se perguntam se a investigação filosófica do
homem não é supérflua; se não bastam as disciplinas científicas, as
várias antropologias experimentais para fazer-nos conhecer quem é o
homem.

A essa pergunta muitos estudiosos responderam que não basta


reivindicar a legitimidade da antropologia filosófica, seja quando a
filosofia venha a ser concebida como disciplina aporética ou como
disciplina teórica. No primeiro caso, a antropologia filosófica se propõe
desmarcar a autossuficiência do saber científico e mostra que a realidade
humana traz problemas que a razão de per si não consegue resolver.
No segundo caso, ela tem por objetivo o levar avante e completar
o conhecimento do homem empreendido mas desenvolvido apenas
setorialmente pelas várias ciências.

Com efeito, cada uma das disciplinas científicas nos oferece só um


conhecimento parcial e superficial do homem. Nenhuma abarca o
quadro completo e nenhuma se propõe responder à pergunta: “Quem
é o homem enquanto tal?” É certo que também o biólogo, o fisiólogo,
o médico, o antropólogo, o historiador interrogam-se a respeito do
homem. Mas nenhum deles tem a pretensão de dar uma resposta
completa. Por sua vez o filósofo, justamente porque é filósofo, se
empenha em buscar uma resposta total, completa, exaustiva, última,
uma resposta em condições de esclarecer plenamente, em seu todo, o
que ele seja efetivamente além e sob as aparências, o que seja em si
mesmo afora as diferenças causadas pelo ambiente, pela idade, pela
educação e pelo sexo.

antropologia filosófica | unidade 2 109


“O homem nos interessa na sua totalidade, não por esse ou aquele
de seus aspectos. As ciências especializadas (antropologia, linguística,
fisiológica, medicina, psicologia, economia, ciências políticas),
malgrado os seus esforços, tendem a limitar a totalidade do indivíduo,
considerando-o do ponto de vista de uma função ou de um impulso
particular. O nosso conhecimento do homem resulta fragmentado:
muito frequentemente tomamos uma parte pelo todo. É esse erro que
nos propomos evitar”

Portanto, existe lugar para uma pesquisa diferente, independente


da científica, de caráter filosófico, que tem por objetivo responder à
questão: “quem é o homem?”.

MONDIN, Battista. O homem, quem é ele? 5. ed. São Paulo:


Paulinas, 1980, 13-14.

DEMO, Pedro. Introdução à Metodologia da Ciência. 2. ed.


São Paulo: Atlas, 2006.

GRECETHUYSEN, Bernad. Antropologia Filosófica. Lisboa:


Presença, s/d.

LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. São Paulo:


Brasiliense, 2007.

MONDIN, Battista. O Homem, quem é ele? São Paulo: Paulinas,


1980.

PELTO, Perti J. Iniciação ao Estudo da Antropologia. Rio de


Janeiro: Zahar, 1975.

RABUSKE, Edvino R. Antropologia Filosófica. Petrópolis/RJ:


Vozes, 2001.

VAZ, H. C. de Lima. Antropologia Filosófica I. São Paulo: Loyola:


1991.

110 FILOSOFIA
unidade

3
ObjetivoS dESTA unidade:
CONCEPÇÕES ANTROPOLÓGICAS À LUZ
DA FILOSOFIA NO OCIDENTE Explicitar as etapas e
os esforços principais
pelos quais perpassou o
processo de construção
científica da Antropologia
Filosófica;
PALAVRA INICIAL...
Destacar contribuições
Caro estudante, decisivas para
compreensão universal
de homem;
Demarcar caracteres
Esta terceira unidade é relevante, porque poderemos acompanhar, que explicam o homem
ainda que com certos limites, compreensões antropológicas em suas diversas fases
históricas;
retesadas entre os gregos arcaicos e os nossos tempos. Seguindo
basicamente as primorosas reflexões do filósofo brasileiro Padre Analisar o permanente
desafio antropológico
Henrique Cláudio de Lima Vaz na sua valiosa obra Antropologia diante da ininterrupta
Filosófica (2 vol.), de 1993, poderemos perceber com nitidez as complexidade humana.
diversas interpretações, por conseguinte, as multifaces pelas quais
o homem vem denotado ao longo dessa trajetória histórica, cerca
de 29 séculos.

No mundo arcaico, Lima Vaz ressalta o homem – esse animal que


fala e é político, tensionado entre a imanência e a transcendência:
distinto essencialmente dos deuses; situado num cosmos que lhe
é superior e paradoxal porque composto de alma e corpo. Ora,
os sofistas em vez dessa compreensão cosmológica, definirão o
homem a partir de suas realidades naturais e sociopolíticas, estas
últimas caracterizadas pelas convencionalidades.
A guinada socrática, demarcada pela crítica aos sofistas, privilegia a
essência íntima do homem (o daimon socrático), cuja preocupação
principal é a alma: sede de toda sabedoria e virtuosidades. A filosofia
de Platão substancializa definitivamente a sobreposição da vida da
alma às demais experiências humanas. Embora mais realista que
o mestre, porque afirma a inerência da natureza, da política e da
paixão, Aristóteles, ratifica, contudo, a superioridade da alma e da
vida contemplativa, como está explicito no Livro X da sua Ética a
Nicômacos. Nos séculos posteriores entre a Patrística e a Idade Média,
encontramos repercussões das teorias dos três mestres gregos, agora,
porém, dialetizadas com a incidência da Revelação. A filosofia e a
Bíblia, a razão e a fé provocam debates e polêmicas acaloradas. A
rigor, entretanto, o significado de homem, dessa época de certo modo
teocêntrica, pode ser resumido, grosso modo, na frase de Agostinho: O
homem é um itinerante para Deus.

Um novo homem se manifesta na modernidade que começa se


esboçar no final do século XII e se consolida finalmente nos século
XVIII e XIX, um tempo assinalado pela antropologia pluralista.
A concepção moderna de homem enraíza-se no humanismo
renascentista dos fins do século XIII até o século XV, quando a ação
em lugar da contemplação, identidade na diferença em lugar da ideia
de igualdade e a concepção mecanicista da realidade. Francisco
Petrasca, Nicolau de Cusa, Giordano Bruno, Bartolomeu de las
Casas, Pico de Mirândola, Maquiavel, entre outros, são intelectuais
envolvidos nessa transição que desembocará no racionalismo de
Descartes onde o homem está traçado entre a subjetividade do
espírito (res cogitans) e a mecânica corpórea (res extensa). Pascal
nessa época compara o cosmo - infinitamente grande e o homem
– o infinitamente pequeno, cuja grandeza está basicamente na
moralidade.

A antropologia moderna adquire contornos indeléveis com a


Ilustração no século XVIII, quando sob as luzes da razão e do progresso
pautam-se em temas como humanismo, civilização, progresso e
revolução. Neste contexto, Hobbes explica a passagem do estado
de natureza ao estado civil. Entretanto, o Idealismo na Alemanha,
numa crítica aberta ao racionalismo, realça as sensibilidades e as
paixões humanas e Rousseau, por sua vez, afirma que a cultura

112 FILOSOFIA
degenera valores humanos e a propriedade privada é a matriz das
injustiças espraiadas na civilização.

Ainda neste cenário moderno, nos fins do século XVIII, Kant escreve
um texto sobre antropologia no qual ressalta as dimensões histórica,
política e pedagógica e no interior destas a educação, a política e
a liberdade civil. Hegel, como perceberemos, afirma que o homem
é matéria, forma e figura, portanto, objeto, respectivamente, da
antropologia, da fenomenologia e da psicologia.

No caminho para a contemporaneidade, vamos nos deparar com


as reflexões dos pós-hegelianos Feuerbach e Marx. Inspirado no
materialismo feuerbachiano – para o qual tudo restringe-se à
materialidade, Marx localiza a dialética de Hegel nas condições
econômico-políticas nas quais o homem produz sua sobrevivência.
Ele é crítico radical do capitalismo, porque é essencialmente
desumanizante, portanto, absolutamente incompatível com a
emancipação humana. Esta depende decisivamente da superação
das alienações social e espiritual e, em seguida, de uma guerra
intensa contra o capitalismo e seus aliados, entre eles, a ciência, o
Estado e a religião.

Este horizonte de pensamentos descortina, obviamente,


interpretações pluridimensionais do homem em tempos
contemporâneos. Várias correntes, teorias e autores o focalizam
pelos mais diversos ângulos, constatando, com efeito, aquilo que
disse Heidegger: nenhuma outra época como a nossa teve tantas
informações sobre o homem, porém, nenhuma outra, igualmente,
soube menos sobre o homem que a atual, realçando, pois, o alto
nível de complexidade humana, justamente porque se raramente
na natureza um dado ou uma ocorrência se evidencia totalmente,
quanto mais o fenômeno humano que, como afirmou Pascal,
transcende infinitamente a si mesmo.

Assim, caro estudante, o que veremos a seguir são pontos de vista


sobre o homem que, para repetir, nunca se revela suficientemente
sob um ponto de vista.

antropologia filosófica | unidade 3 113


ITINERÁRIO DE ESTUDOS

Concepções de homem na Grécia arcaica, na Sofística e na


Grécia clássica de Sócrates, Platão e Aristóteles;

O conceito de homem na Patrística e na Idade Média;

Interpretações e comparações antropológicas na Modernidade,


passando pela Renascença e pela Ilustração;

Reflexões sobre a compreensão pluriversal do homem


contemporâneo.

A Concepção Clássica de Homem

O homem na Grécia arcaica

As bases da compreensão antropológica expressas na filosofia clássica


remontam-nos principalmente à cultura grega arcaica florescida entre
os séculos VIII e VII antes de Cristo.

Conforme Lima Vaz, (1991, p. 27), “a cultura clássica elabora


uma imagem de homem no qual são postos em relevo dois traços
fundamentais: o homem com o animal que fala e discorre (zoôn
logikón) e o homem como animal político (zoôn politikón)”. Enquanto
dotado de logos o homem pode entrar numa relação de consenso com
seu semelhante e instituir a comunidade política. Ora, esta vida política
(bios politikós) – que traduz a excelência da vida humana conforme
a concepção clássica se exerce mediante a livre submissão ao logos
codificado em leis justas (nomoi). Por outro lado, o homem discursivo
e o homem político, traduzem duas específicas atividades humanas:
respectivamente contemplação (theoria), ação moral e político (práxis).

114 FILOSOFIA
A imagem do homem na Grécia Arcaica, tem, pelo menos, três níveis
fundamentais.

Teológico ou religioso

Refere-se à nítida separação entre o mundo dos deuses (theoí) e mundo


dos humanos mortais (thanatoí). Os homens são efêmeros e infelizes, os
deuses imortais e bem-aventurados. Quando eventualmente homens
ousam assemelhar-se aos deuses, estes os respondem com o decreto
do destino implacável (moira). Daí as sentenças sapienciais: “conhece-
te a ti mesmo” e “nada em excesso.”

Cosmológico

Implica a contemplação diante da natureza sistematicamente ordenada.


Assinala-se uma admiração (thauma) pela ordem e beleza que fazem do
universo visível todo bem adornado (kosmos). Além disso, propugna-
se uma homologia entre a ordem da natureza (physis) e a ordem da
cidade (polis) norteada por leis justas. Todavia, esta compreensão
cosmológica de mundo cruza-se com a teológica mediante o conceito
de necessidade (anánke), que submete homens e deuses. Ora, conciliar
esta necessidade cósmica com a necessidade humana será um desafio
permanente para a filosofia.

Antropológico

A condição humana é expressa na oposição entre o apolíneo e o


dionisíaco, como explicitam Ésquilo nas Eunêmidas e Eurípedes nas
Bacantes. O apolíneo é a dimensão ordenadora que orienta para a
claridade o pensar e o agir humanos. O dionisíaco representa o lado

antropologia filosófica | unidade 3 115


turvo ou terreno (ctônico), onde prevalecem as forças do eros, do
desejo e da paixão. Ora, esta concepção desencadeará a “eterna”
discussão ocidental entre alma e corpo e os destinos consequentes na
assunção de uma das posturas.

É interessante ressaltar ainda que do ponto de vista sociopolítico


na visão da Grécia arcaica, a “excelência” – virtude (arete) demarca
primeiramente o homem guerreiro e depois o herói fundador da cidade.
Depois, essa ideia de areté transfere-se para a figura do sábio (sophós),
no momento em que se organizam as formas democrática e participativa
da sociedade. Neste contexto, o conceito de areté estende-se ao conceito
de justiça (dikê), de modo que em vez do herói fundador, celebram-se
os heróis legisladores (nomotéthes), tais como Sólon, Péricles etc.

Enfim, convém dizer que o homem grego arcaico está acima de tudo
submetido ao destino em dois sentidos. Primeiro um pessimismo
radical, pelo qual o homem encontra-se frágil e desamparado, e depois
o moralismo fundado na responsabilidade pessoal, pela qual imputa-
se o mérito ou demérito de sua escolha.

A antropologia sofística

No século V a.C., em Atenas, o pensamento antropológico alcança seu


pleno desenvolvimento, porque os Sofistas tomaram o problema da
cultura (paideia) como mais importante da filosofia. De fato, sophistês
designa saber teórico e habilidades práticas, revelando, pois, o homem
e suas competências como objeto principal da filosofia.

Dentre outras diretrizes da ilustração sofística ateniense, podemos


destacar as seguintes:

• o conceito de natureza humana (anthropinê physis) com seus


atributos e exigências próprias;

• oposição entre convenção (nomos) e a natureza (physis) na


organização da polis e nas normas do agir subjetivo, originando,
assim, teorias do convencionalismo jurídico;

116 FILOSOFIA
• individualismo relativista como reflexo das primeiras articulações
ceticistas em relação à verdade;

• compreensão de homem como de necessidade e carência


e, portanto, responsável pelo suprimento cultural daquelas
deficiências naturais;

• ideia de homem dotado de logos - palavra e discurso, por isso


capaz de demonstrar e convencer.

A transição socrática

Segundo o helenista Werner Jaeger, a concepção filosófica de Sócrates


exerce uma influência decisiva sobre o pensamento antropológico
ocidental, uma vez que, situado no centro da crise ateniense do século
V, ele pensa o homem a partir da essência interior, ou seja, a alma
(psyché).

Na visão socrática, o “humano” só tem sentido e


explicação se referido a um princípio interior ou a uma
dimensão de interioridade presente em cada homem
e que ele designou justamente com o antigo termo
de “alma” (psyché), mas dando-lhe uma significação
essencialmente nova e propriamente socrática (VAZ,
1991, p. 34).

E o que é a alma para Sócrates? É a sede da arete (virtude), pela


qual o homem escolhe o justo ou o injusto; e isto implica a grandeza
humana. Introduz-se a ideia de personalidade moral que irá embasar
concepções da Ética e do Direito de nossa civilização.

Entre outros aspectos antropológicos socráticos, convém destacar,


seguindo Lima Vaz, os seguintes:

• teleologia do bem e do melhor como necessários à compreensão


de homem;

• valorização do indivíduo expressa na fórmula “conhece-te a ti


mesmo”, resultando na cura e zelo pela alma através da ironia,
indução e maiêutica;

antropologia filosófica | unidade 3 117


• primazia da intelectualidade humana ao exaltar o lógos como fonte
da virtude-ciência projetada para o finalismo moral.

Antropologia platônica

A filosofia de Platão é indiscutivelmente marcante na concepção


ou na imagem do homem em nossa civilização. Basta lembrar que,
historicamente, quando se aborda qualquer aspecto ou dimensão
humana, atualiza-se Platão de alguma maneira. Tem razão Lima Vaz
(1991, p. 36) quando afirma:

A antropologia platônica pode ser considerada uma


Platão
síntese na qual se fundem a tradição pré-socrática da
Fonte: http://www.google.com.br relação do homem com o kosmos, a tradição sofística
do homem como ser de cultura (paideia) destinado à
vida política, e a herança dominante de Sócrates do
“homem interior” e da alma (psyché).

O homem platônico tensiona-se, pois, entre a vida da alma e a vida


terrena. Grecethuysen (s/d, p. 38) afirma que em Platão “o problema
humano não se coloca a partir do homem como tal, mas por um lado,
da alma, da experiência que o homem tem da sua alma ao filosofar,
e, por outro, do Estado, dos fins que o legislador tem em vista.” Além
disso, o logos (Apologia, Críton, Menon, Fédon), sob a luz da Teoria
Sócrates das Ideias, reflete o destino, reminiscência e purificação da alma;
Fonte: http://www.google.com.br
noutro polo, pensa-se o eros como representação da pulsão amorosa
a dimensão do corpo e da beleza sensitiva. O Banquete as unifica na
tese da contemplação do Bem absoluto.

Na República (IV), a tese da alma dividida racional, irascível e


concupiscível e respectivamente orientada pelas virtudes sabedoria,
coragem e moderação transpõe-se para o campo da paideia na medida
que a formação do indivíduo para a vida política justa pretende unir
eros e logos através contemplação das ideias do Belo e do Bem. Platão
ressalta, no Timeu, por outro lado, que embora o homem seja duplo
pela conjunção de corpo e alma, prevalece, contudo, o finalismo
inteligível próprio da alma racional.

118 FILOSOFIA
Enfim, ressalta Lima Vaz, em vários dos seus Diálogos célebres, Platão
enfoca temas humanos, influenciando, definitivamente, a imagem de
homem em nossa civilização:

• logos verdadeiro e destino/imortalidade da alma (Críton, Fédon);

• educação e formação política (República);

• desejo amoroso/estética e movimento da alma (Banquete, Fedro);

• lugar do homem no cosmos (Timeu e Leis-X);

• relação do homem com o divino (Fédon, Leis).

Antropologia aristotélica

Não obstante a influência de Sócrates, Platão e Sofistas, a antropologia


aristotélica enquanto “filosofia das coisas humanas”, cujo enfoque
centra-se entre a investigação sobre a natureza à qual o homem se
insere à ciência das coisas primeiras e divinas à qual o homem pode
elevar-se.

Há uma distinção considerável que Grecethuysen (s/d, p. 50-51)


ressalta entre as antropologias de Platão e Aristóteles. Vejamos:

No mundo platônico, o homem não se confina no


seu próprio mundo. Não podia aí permanecer; esse
mundo não lhe oferecia uma pátria; aí só podia
perder-se ou esforçar-se por ultrapassá-lo. No mundo
aristotélico, pelo contrário, o homem sente que habita
em si. As coisas falam aí sua língua, a língua que ele
compreende; as palavras revestem um sentido no
contato com as coisas. [...]. Em Aristóteles, efetiva-se
o retorno do homem a si próprio. O homem torna-se
algo de positivo.

Lima Vaz demarca a antropologia aristotélica assinalando o seguinte:

O centro da concepção aristotélica de homem é, assim,


a physis, mas animada pelo dinamismo teleológico da
forma (entelécheia) que lhe é imanente, e que, como
forma ou eidos, é o seu núcleo inteligível. Aristóteles
transpõe desta sorte para o horizonte da physis o telos

antropologia filosófica | unidade 3 119


ou o fim do ser e do agir do homem, que Platão situara
no horizonte do mundo ideal. [...]. Aristóteles celebra
também no homem a capacidade de passar além das
fronteiras do seu lugar no mundo e elevar-se, pela
theoría, à contemplação das realidades transcendentes
e eternas.” [grifos do autor] (VAZ, 1991, p. 39).

Seguindo Lima Vaz, podem-se destacar os seguintes traços


fundamentais do homem em Aristóteles:

• homem biopsíquico. Como os demais seres, o homem compõe-se


de psyché e soma (alma e corpo), sendo a alma perfeição e, logo,
definição do corpo organizado;

• homem como zôon ligikón, uma vez que distingue-se pela sua
racionalidade; dotado de logos o homem não é, pois, meramente
um “ser natural.” Neste sentido, destacam-se três aspectos:
primeiro, enquanto psyché o homem eleva sua atividade intelectual
(nous) acima dos sentidos; segundo, finalismo explícito no saber
objetivizado seja na contemplação (theoría) – busca da verdade:
Física, Matemática e Teologia; ação (práxis) – busca do bem ou
da virtude: Ética e Política e fabricação (poíesis) – artificialidades
prazerosas como a linguagem na Poética e Retórica; e terceiro, os
processos formais como na ciência lógica em que a codificação
da forma do pensamento implica tradução simbólica do saber
científico. Portanto, ressalta Lima Vaz (1981, p.40), reportando-se
a Eric Weil (L’Anthropologie d’Aristote),“que enquanto ser dotado
de logos (da fala e do discurso), o homem transcende de alguma
maneira a natureza e não pode ser considerado simplesmente um
ser ‘natural’”.

• homem ético-político. Como sistematizador da Ética e da Política


ocidentais, Aristóteles atrela a racionalidade humana à polis, onde
se exercem virtudes herdadas ou adquiridas. Na ética e na política
se manifesta a finalidade do homem. Referindo-se a Aristóteles,
Lima afirma que “o homem tal como ele considerava na sua
expressão acabada, isto é, o homem helênico, é essencialmente
destinado à vida em comum na polis e somente aí se realiza como
ser racional.” (VAZ, 1981, p. 42).

120 FILOSOFIA
• homem passional e desejante. Aspectos incluídos tanto na psyché,
sede das paixões (pathê), e desejo (órexis), como na própria ação
“irracional” que intervém na ética, na política e no fazer humano.

Há que se dizer, enfim, que indiscutivelmente a antropologia


aristotélica é um dos fundamentos da compreensão de homem no
mundo ocidental, uma vez que problemas e categorias humanas,
embora abordadas por ela, ainda que no contexto do mundo grego do
seu tempo, repercutem nas reflexões filosóficas sobre o homem desde
então.

Concepção Bíblica e Patrística de Homem

Convém ressaltar, inicialmente, que duplos temas gregos clássicos como


o homem e o divino, o homem e o universo, o homem e o destino etc.
aparecem também na antropologia bíblica, porém, neste caso, à luz da
linguagem religiosa da revelação, supondo-se, com efeito, uma origem
transcendente ao homem.

No Antigo Testamento, a tese da imago Dei – o homem considerado


como imagem de Deus, é o ponto central da antropologia
veterotestamentária, porque de acordo com Mondin o homem, por
assemelhar-se ao criador, é o ápice da criação e depois é o representante
de Deus no universo e o governante principal do que é criado. Em que
consistiria então a imago Dei?

Segundo a maioria dos intérpretes antigos e modernos,


a semelhança resulta da capacidade de o homem agir
como Deus; como Deus, cria e ordena o mundo, assim
o cultiva e o governa. Por isso a semelhança não está
em nível antológico, mas dinâmico; não está no ser,
mas no agir (MONDIN, 1982, p. 94).

“A concepção cristão-medieval do homem procede, assim, de duas


fontes: a tradição bíblica, vetero e neotestamentária, e a tradição
filosófica grega.” (1982, p. 59). De fato, num importantíssimo texto
sobre este cruzamento, Jaeger afirma:

antropologia filosófica | unidade 3 121


Desde o despertar da consciência histórica moderna,
na segunda metade do século XVIII, que os estudiosos
teológicos estão cientes [...] de que, entre os fatores
que determinaram a forma final da tradição cristã, a
civilização grega exerceu uma profunda influência na
Hellenismos substantivo mente cristã. [...]. Com a língua grega, todo um mundo
do verbo hellenizo (falar de conceitos, categorias de pensamento, metáforas
grego), originalmente o uso
correto da língua grega livre herdadas e sutis conotações de sentido entra no
solecismo e barbarismo. pensamento cristão. [...]. É claro que este processo
O conceito parece ter sido da cristianização do mundo de língua grega dentro do
usado pela primeira vez pelos
professores de retórica. Império Romano não foi de forma alguma unilateral,
pois significou ao mesmo tempo a helenização. [...].
Ao chamar ao Cristianismo a paideia de Cristo, o
imitador acentua a intenção do apóstolo de apresentar
o Cristianismo como a continuação da paideia grega
clássica...” (JAEGER, s/d, p.14-17-26).

A partir dos testamentos bíblicos, qualquer dualismo ontológico


Soteriologia, teologicamente no homem é compreendido não como oposição natural, mas
doutrina relativa à salvação
realizada por Jesus Cristo em confronto entre as vicissitudes humanas e as iniciativas salvíficas
prol da humanidade.
de Deus. Lima Vaz fala de dois traços que unem a teologia bíblica
do homem e a antropologia cristã. O primeiro a unidade radical
do ser do homem, definida pela escuta da palavra de Deus. Esta
unidade soteriológica implica dom de Deus, aceitação ou recusa
do homem.

Assim, no homem entrecruzam-se traços paradoxais: carne (ruah/sarx)


– dimensão frágil e transitória da existência; alma (nefesh/psyché) –
vigor de sua vitalidade e dimensão de transcendentalidade; espírito
(ruah/pneuma) – aspecto superior da vida e via de relação com Deus e
coração (leb/kardía) – intimidade humana de afetos, paixões, pecados
e conversão a Deus.

Enfim, a concepção bíblica de homem não é um discurso demonstrativo


como em filosofia, mas uma história da salvação onde o Antigo
Testamento consuma-se no Novo Testamento – profunda novidade em
relação ao antigo, porque Jesus Cristo, além próprio Deus manifesto
(hierofania máxima no cristianismo), torna-se arquétipo de vínculo do
humano com Deus, por isso mesmo, absoluta referência da concepção
cristã de homem.

122 FILOSOFIA
Concepção Medieval de Homem

As inspirações básicas dos temas medievais remontam-se a três fontes


principais:

a) a Sagrada Escritura, enquanto palavra revelada, é incontestável


autoridade maior;

b) os Padres da Igreja, dentre os quais Santo Agostinho é a referência


principal;

c) os filósofos gregos e latinos, sobretudo Aristóteles, a partir do


século XIII é destacado como o principal filósofo.

Observe-se que não obstante a estereotipa visão de atraso medieval,


este foi um tempo de evoluções complexas e crises estruturais,
destaque-se, no plano intelectual, a célebre querela entre os partidários
do aristotelismo e os do agostinismo, cujo equilíbrio encontra-se na
tradição bíblico-cristã.

Neste contexto, Santo Agostinho ressalta duas questões antropológicas


interessantes: a historicidade onde o destino do homem é definido
pelos acontecimentos salvíficos e a corporalidade, pela qual se
compreende o corpo humano vinculado ao mistério da Encarnação
do Verbo. De fato, segundo Grecethuysen a antropologia agostiniana
pensa um homem marcado pela tensão ao inacessível, ele é desejo de
ultrapassagem, de aspiração a um objetivo transcendente.

Todavia, segundo Lima Vaz (1981, p. 68), “a síntese mais bem-


sucedida da antropologia medieval encontra-se no pensamento de
Santo Tomás de Aquino (1225-1274). Nela convergem as grandes
teses da antropologia clássica e da antropologia bíblico-crsitã,
Hilemorfismo (do grego – hilê
encontrando finalmente seu ponto de equilíbrio.” São Tomás assume = matéria e morphê = forma),
conforme Jolivet, é a “doutrina
com Aristóteles a unidade hilemórfica do homem, considerando, filosófica em virtude da qual
entretanto, que alma criada por Deus transcende, essencialmente, os corpos são o resultado
de dois princípios distintos e
a matéria. Dessa conexão de razão e alma emanam as faculdades complementares, chamados
matéria e forma, que são
humanas de agir e fazer. Lima Vaz (1981, p. 70) observa ainda que “o fontes, respectivamente, das
propriedades quantitativa e
rationale como diferença específica do homem designa primeiramente qualitativa pelas quais o corpo
se impõe à experiência e à
a razão discursiva (ratio), forma do conhecimento intelectual inferior à ciência.” (JOLIVET, 1975, p.
109).

antropologia filosófica | unidade 3 123


inteligência propriamente dita (intellectus) que é própria dos espíritos
puros, mas da qual também o homem participa.” Em segundo lugar,
a partir da racionalidade como especificidade, o homem localiza-se na
natureza e busca seu telos e, por fim, o tema bíblico da imago Dei em
Tomás implica a perfeição relativa do homem partícipe da perfeição
absoluta de Deus. É em torno desse tema que na antropologia tomásica,
“se articulam os três planos da natureza, da graça e da glória, que são
os três estados da existência humana considerada filosoficamente na
sua essência e teologicamente na sua história.” (VAZ, 1981, p. 70-71).

Por fim, convém lembrar que na Idade Média registra-se paulatinamente


o restabelecimento do homem artífice sacrificado pela relevância da
contemplação na tradição clássica. A escola de São Vítor na França
(Paris) é uma referência nessa reconfiguração e, sem dúvida um traço
marcante na transição para a aurora da antropologia moderna.

Concepção Moderna de Homem

Na aurora da antropologia moderna, convém que ressaltemos o


nome de Francisco Petrarca, não que ele tenha sido um subversivo
inovador, entretanto, como acentua Grecethuysen, a partir dele o
homem começa a explicar sua vida a partir da vida, pois “a razão não
se coloca além da vida, mas que pertence ao próprio conjunto da vida.
[...] os valores estáveis do conhecimento tornam-se os valores instáveis
da vida” (GRECETHUYSEN, s/d, p. 131). Para Petrarca, males do
seu tempo como corrupções e impiedades, não poderiam ser curados
por exercícios dialéticos ou abstrações metafísicas, mas através do
conhecimento de si mesmo e o método para tal sabedoria encontra-se
nas artes liberais.

A concepção moderna de homem no contexto da cultura ocidental


emerge, a rigor, por volta do século XII, desenvolvendo-se entre os
séculos XIII e XV, completando seus traços completados no século
XVIII, quando o chamado homem moderno já alcançou considerável
relevância e, portanto, referência para as formulações antropológicas

124 FILOSOFIA
dos séculos XIX e XX. Nessa época, as concepções se complexificam
em decorrência da “pluralidade antropológica” que, por conseguinte,
dissipa aquela unidade cultural (grega) ou religiosa (medieval) em torno
da imagem do homem, a qual doravante “é desfeita pela descoberta
da imensa diversidade das culturas e dos tipos humanos e pelo próprio
avançar das ciências do homem que submetem o seu objeto a uma
análise minuciosa e, aparentemente, desagregadora de sua unidade.”
(VAZ, 1981, 77).

Concepção humanístico-racionalista de homem


Mudanças - A Europa foi
revitalizada nos últimos
séculos da Idade Média, pelo
Entre os séculos XIV e XVI as múltiplas mudanças ocorridas na Europa reaquecimento do comércio e
da vida urbana. [...] o homem
ocidental favorecem o nascimento da Renascença, demarcada pela moderno deixou de olhar tanto
para o alto, em busca de Deus,
relevância da literatura clássico-latina graças às elaborações filológicas passando a prestar mais atenção
e do livro impresso; pela permanência do humanismo cristão num em si mesmo. O homem se
redescobre como centro de
novo cenário sócio-político e religioso. preocupações intelectuais e
sociais, como criatura e criador
do mundo em que vive. Tudo se
Nesse contexto renascentista, se destacam as ideias antropológicas do refletiu nas artes, na filosofia e
nas ciências.” (COTRIM, 1997,
nominalista Cardeal Nicolau de Cusa, que Lima Vaz (1981, p. 79) p. 212).
Renascença - Renascimento
explica desta forma: pode ser definido como o
movimento intelectual e cultural
que marcou a mudança de
O que desaparece sob a crítica nominalista é a posição mentalidade medieval para a
de um mundo ideal, identificado com o Intelecto moderna, no interior da qual
divino e assegurando a inteligibilidade intrínseca humanismo, racionalismo
dos seres que permitia, por sua vez, a aplicação e individualimo sinalizam
revolução axiológica.
do procedimento analógico ao conhecimento da
existência e da transcendência de Deus.

Nicolau, ao contrário da metafísica clássica que privilegiava a


transcendência divina, enfatiza a imanência do divino, embora não o
ponha em questão. A inalcançável infinitude de Deus e do cosmos incita
no homem, segundo Nicolau, uma ansiedade de infinito conhecimento
de ambos. “Nicolau de Cusa, pode ser, assim, considerado um
precursor da concepção moderna e é como tal que ele se situa como
um pensador tipicamente de transição, mas poderosamente original.”
(VAZ, 1981, p. 79).

antropologia filosófica | unidade 3 125


Nesta conjuntura renascentista – solo fértil para o nascimento da
antropologia filosófica – a dignidade é o traço característico do
novo humanismo. Entretanto, não mais a dignidade volvida para a
contemplação (theorein), mas para o agir transformador do homem;
não mais as particularidades (civil, servo, cristão, pagão etc.), mas a
universalidade humana abstrata; não mais igualdade e unidade, mas a
identidade na diferença nas esferas política, jurídica e religiosa. Marsílio
de Ficino, Pico della Mirandola, Bartolomeu de las Casas, Nicolau
Maquiavel, Jean Bodin são exemplos de homens que assumem e
advogam este novo humanismo.

A partir dessa antropologia de ruptura e transição, abre-se o horizonte


do racionalismo predominante entre os séculos XVII e XVIII, cujo teor
é esclarecido lucidamente por Lima Vaz (1981, p. 81): “A antropologia
racionalista prolongará a tradição do zoon logikón, mas dando-lhe
um novo conteúdo, pois nela o esquema mecanicista (ou primazia do
modelo da máquina) se estenderá à explicação da vida e do homem.”

René Descartes é, neste sentido, a referência obrigatória porque parte


do método e suas regras dirigidas ao objeto do saber, considerando
o fundamento da certeza. O Cogito é o fundamento evidente, cuja
verdade e certeza opõe-se à verdade e certeza do mundo externo,
desembocando, assim, na exigência da existência veraz de Deus
explicitada a priori pela imanência da ideia de infinito na mente
humana. Ou seja, a partir da Metafísica erige-se a Física e daí repõe-se
a situação de relação entre alma e corpo. Com efeito, decorrem dois
elementos importantes: a subjetividade do espírito – como res cogitans
e a exterioridade (mecânica corpórea) – como res extensa.

A antropologia dualista cartesiana, explica Lima Vaz, bifurca,


Interessante notar que a consequentemente, a metafísica do espírito e a física do corpo, ambas
res cogitans separa-se da
res extensa, não para a clara e distintamente completas e independentes. “O corpo humano
contemplação como na teoria
platônica, mas para conhecer é integrado no conjunto dos artefatos e das máquinas e só a presença
e controlar o mundo, como
diz Descartes no Discurso do
do ‘espírito’, manifestando-se sobretudo na linguagem, separa o
Método.
homem do ‘animal-máquina’”. (VAZ, 1981, p. 84).

De fato, a revolução cartesiana na filosofia e a galileiana na ciência –,


impregnam uma nova racionalidade, capaz de favorecer um campo
epistemológico apropriado à constituição das ciências humanas.

126 FILOSOFIA
Na segunda metade daquele século XVII, o pensamento de Blaise Pascal
é tensionado, por um lado pela ordem eterna da natureza contemplada
nos abismos do infinitamente grande e do infinitamente pequeno e,
por outro, pela miséria bem expressa na corrupção da natureza e das
faculdades humanas. Para Lima Vaz, o Cogito pascalino também ressalta
a importância do homem; porém à diferença de Descartes, não se volta
para o domínio do mundo, mas para a dimensão moral. O mais importante
em Pascal não é a ciência, mas a situação cósmica do homem: demasiado
pequeno supera pelo pensamento, compreende o universo cuja dimensão
absorve-o. O homem pascalino encontra-se, pois, num dilema trágico:
nem se abriga na ordem cósmico-teológica da compreensão cristã-
medieval, nem se apossa do mundo como em Descartes.

Para Thomas Hobbes, ao contrário de Pascal o homem e a sociedade se


explicam a partir do racionalismo mecanicista. De acordo com Lima Vaz
(1981, p. 86), “seu materialismo é radical e integral. Só o corpo ocupando
o espaço existe, e Deus mesmo é corporal, sendo compreendido no
universo cuja totalidade e unicidade abrangem todas as ordens existentes.”
O homem, especificamente, se realiza, conforme Hobbes, na transição do
estado de natureza para o estado civil e, precisamente, pela instituição
do Estado enquanto força prepotente que ordena, coage, organiza
a vida social. Neste mesmo contexto, o também inglês John Locke
contra Hobbes afirma a socialidade natural, enquanto possibilidade de
convivência pacífica dos indivíduos no estado de natureza. Além disso,
contra as ideias inatas cartesianas, defende as disposições humanas
naturais para conhecer a Deus, a natureza e a si mesmo como ser moral e,
neste sentido, numa crítica às esgrimias religiosas de seu tempo, defende
fervorosamente a tolerância religiosa. Enfim, apesar de seu naturalismo
otimista Locke também admite que o indivíduo, embora soberano, delega
ao Estado e à lei a coordenação da vida social. Logo, sociedade política e
estado de natureza recaem em situação paradoxal.

A imagem de homem na época da Ilustração

De forma geral, pode-se dizer que a Ilustração na Europa do século


XVIII, foi um movimento ideológico ou um “espírito de saber” em

antropologia filosófica | unidade 3 127


várias esferas: política, religião, filosofia, ciência, literatura e artes.
Assim:

[...] o próprio conceito de Ilustração, expresso por uma


metáfora luminosa (Lumières, Aufklärung) encontra
na ideia de progresso assim definida o espaço de
irradiação. [...], algumas características fundamentais
[...] se desenvolve no interior de duas coordenadas
que definem esse espaço: as luzes da Razão e do
progresso (VAZ, 1981, p. 93).

Deste mundo animado pelo espírito da Ilustração, decorrem algumas


ideias referenciais para nossos tempos:

a) humanidade: “o sentido que esse termo assume já é nitidamente


secularizado e seu matiz é marcadamente axiológico, em
contraposição à humanidade objeto do universalismo salvífico
cristão.” (VAZ, 1981, p. 93). A primazia das relações humanas
supera as relações com Deus ressaltada nas antropologias
precedentes;

b) civilização: sendo um fato e um valor designa essencialmente ideal


de progresso e de otimismo na vida futura é, portanto, o signo da
passagem do estado de natureza ao estado de cultura, ao estado
de civilização propriamente dito;

c) tolerância: defendida no contexto dos conflitos religiosos XV por


Nicolau de Cusa, tornar-se-á um estandarte da Ilustração em favor
dos discriminados: mulheres, crianças, judeus, negros e índios das
colônias americanas. Além disso, Locke defendeu a tolerância civil
e César Becarria traça fundamentos do Direito moderno em Dos
Direitos e das Penas, em 1764.

d) revolução: da origem astronômica, sobretudo, relativo a Copérnico,


o termo indicará desde então transformações sociais e políticas
que anunciam um mundo melhor.

Portanto, humanidade, civilização, tolerância e revolução são ideias


impregnadas nas motivações fundamentais de luzes e progresso no
contexto da Ilustração, onde o homem, efetivamente, é o centro da
inteligibilidade.

128 FILOSOFIA
Compreensão kantiana de homem

A Antropologia, fundamentada nos ideais da Ilustração é criticamente


acolhida por Immanuel Kant. Como Lima Vaz observa, entre 1772
e 1773 ele leciona Antropologia como disciplina independente,
resultando, então, no texto Antropologia desde o Ponto de Vista
Pragmático de 1798, onde afirma a praticidade da filosofia, como a
que ajuda ao homem tomar atitudes razoáveis diante das situações
que se apresentem. “A Antropologia... corresponde, assim, a uma
intenção [...] de tornar a filosofia útil, para a vida, [...] sem dúvida um
dos aspectos fundamentais da concepção kantiana de homem, aquele
pelo qual ele participa do movimento pedagógico da Aufklärung.”
(VAZ, 1981, p. 97).

Neste sentido, alguns tópicos presentes na ideia de homem em Kant,


são os seguintes:

a) sensitivo-racional. No homem enquanto cognoscente convergem


dois polos: ser de natureza, porque situado no tempo e no espaço
e ser racional porque capaz de articular o ideal de razão pura e de
ideias transcendentais como mundo, alma e Deus;

b) físico-pragmático. Implica dizer que o homem é primeiramente


mundano, natural e depois que sendo livre o homem, pelo “fato
da Razão”, assume ou não a moral internalizada;

c) histórico. O destino assumido pelo homem, Kant o compreende


pela perspectiva religiosa onde explica que o mal radical é superável
pelo princípio do bem, aliás, segundo ele, sinal do reino de Deus
e em segundo lugar, pela perspectiva pedagógico-política pela
qual cruzam-se questões como educação, experiências políticas e
liberdade civil.

As ideias de Kant, com efeito, fornecem, sem dúvida, uma orientação


indelével para o tratamento filosófico sobre o homem em tempos
hodiernos.

antropologia filosófica | unidade 3 129


O homem na Filosofia Contemporânea

O pensamento de Kant demarca, justamente, a fronteira do debate


filosófico que se desenvolveu entre os séculos XIX e XX designado
geralmente como filosofia contemporânea da deriva dos contornos
antropológicos hodiernos.

Concepção de homem no Idealismo Alemão e em Rousseau

O século XVIII é marcado pelo Idealismo Alemão designado, em geral,


como a corrente que inicia a filosofia contemporânea e, vinculado
ao Idealismo, destaca-se o Pré-Romantismo como movimento que
contrapõe o sentimento à razão; o eu sensível sobre o Cogito racional.
E no fim daquele século passa-se, como nota Lima Vaz (1981, p. 113)
para o Romantismo “como projeto global de cultura e, mesmo, de
civilização, que caracteriza-se pela sua rejeição do Classicismo, do qual
a Ilustração se mostra uma exacerbação racionalista.”

A antropologia no estilo romântico, ao contrário da clássica, destaca as


sensibilidades, as paixões e as emoções humanas. Ressalta Lima Vaz
(1981, p. 113):

O individualismo romântico é, assim, profundamente


diferente do individualismo racionalista: neste o
indivíduo se define pelo seu Cogito que o une à
razão universal; naquele o indivíduo se define pelo
sentimento do Eu que o leva a comungar como o
Todo orgânico ou com o uno que é, ao mesmo tempo,
o todo: o ‘uno e o todo’ [...] será um dos lemas do
pensamento romântico.
Paulinho da Viola canta
um samba “Chico Brito”
(de Wilson Batista e Afonso Convém sublinhar brevemente, ainda neste contexto, reflexões
Teixeira), que reflete o
pensamento de Rousseau: antropológicas de Rousseau. Para este pensador francês, por um lado,
“Quando menino esteve na
escola/ era aplicado, tinha a consciência moral implicada no sentimento, e por outro, a estrutura
religião/ quando jogava bola/
era escolhido capitão/ mas a racional e axiomático-dedutiva são imprescindíveis para a compreensão
vida tem os seu reveses/ diz
sempre Chico defendendo
de homem. No Discurso sobre as ciências e as artes ele assinala que
teses/ se o homem nasceu as corrupções do indivíduo e da sociedade decorrem da
bom/ e bom não se conservou/
a culpa é da sociedade/ que o cultura. Esta é a sobreposição humana à natureza, mas também pelo
transformou”.

130 FILOSOFIA
distanciamento da vida natural, caminho de vida infeliz. No Discurso
sobre a Origem da Desigualdade estabelece as razões da desigualdade
e da injustiça social. Com efeito, homem natural e sociedade integram-
se, essencialmente.

Enfim, Vaz observa que a antropologia de Rousseau é marcada pela


“rejeição de toda transcendência, seja ideonômica como no platonismo
seja teonômica como Cristianismo, imanência absoluta da Natureza
como fonte de todo bem e de todo valor, enfim crítica da cultura
existente e da sua moral, fonte do mal e da corrupção do homem.”
(VAZ, 1981, p.115).

O homem na perspectiva hegeliana

O pensamento hegeliano é entrelaçado por aspectos como da natureza,


do espírito subjetivo, espírito objetivo e Absoluto. Nessa dialética
denotam-se influências do racionalismo, romantismo, herança clássica
e herança cristã.

Estas influências repercutiram na concepção de homem em Hegel, de


modo que ele destaca os seguintes traços antropológicos:

a) dialética fundamental entre o mundo natural e o mundo humano;

b) a relação do homem com a cultura, pela qual a humanização


propriamente ocorre à medida que o homem integra o movimento
constitutivo da história;

c) relação entre homem e história, na qual se pensa não o tempo


físico, mas tempo dialético, onde na cadência histórica se revelam
o sentido da vida humana e do Absoluto;

d) o Absoluto é ápice do Espírito Objetivo traduzido na Arte, na


Religião e na Filosofia e que o homem através da intuição (Arte),
da representação (Religião) e do conceito (Filosofia) manifesta o
Espírito como absoluto.

antropologia filosófica | unidade 3 131


Vaz (1981, p. 123), resume lucidamente compreensão de Hegel da
seguinte maneira:

A concepção hegeliana do homem abrange,


efetivamente, estes três momentos, pois o Espírito
subjetivo – o indivíduo – passa necessariamente pra
o Espírito objetivo – a cultura ou a história – no qual
tem a sua verdade, e este passa necessariamente para
o Espírito absoluto – a Ideia, exprimindo-se como
Arte, Religião e Filosofia – no qual tem sua verdade
absoluta.

Portanto, a pergunta “o que é o homem?” desde Hegel se desdobra


entre os constitutivos do ser do homem e o tornar-se homem, mediante
três níveis: o da matéria (em si, como alma – Espírito natural) objeto da
Antropologia; o da forma (para si – particularidade como consciência)
objeto da Fenomenologia e o da figura (determinando em si e para
si – subjetividade) objeto da Psicologia.

Antropologia pós-hegeliana: Feuerbach e Marx

Depois da morte de Hegel, em 1831, seus seguidores separaram-


se entre “hegelianos de direita” – que primavam pela fidelidade ao
pensamento do mestre –, e “hegelianos de esquerda” – voltados para
uma crítica sociopolítico, sua filosofia contrapunha-se, com efeito,
à filosofia do próprio Hegel. Entre estes últimos, pode-se destacar
Ludwig Feuerbach e Karl Marx.

Pode-se afirmar, sucintamente, que em Feuerbach apresenta-se um

Ludwig Feuerbach (1804-1872)


antropocentrismo radical, pois rejeitando-se a homologia microcosmo-
Fonte: http://www.google.com.br
macrocosmo afirma-se um materialismo que define o homem como
ser sensível, desembocando, consequentemente, num antropoteísmo,
porque o homem é o único deus para o homem e atributos de Deus
relevados na teologia convertem-se me discurso antropológico. Enfim,
os caracteres divinos nada mais são que projeções humanas. Deus
seria, pois, uma invenção humana.

Inspirado mas ao mesmo crítico de Feuerbach, Marx concebe o


homem em princípio a partir de sua relação com a natureza por meio

132 FILOSOFIA
da qual produz sua vida, empregando-se neste processo elementos
como: intencionalidade, linguagem, instrumentos e cooperação
intersubjetiva.

As necessidades pluriformes (biológicas, psicossociais, culturais etc.)


e as buscas respectivas de satisfação, constituem, segundo Vaz, um Intencionalidade - Marx diz
que o homem mais estúpido
problema essencial na antropologia marxiana. Por outro lado, há o sobrepõe-se à eximia abelha,
porque aquele premedita, isto é,
problema da alienação em dois sentidos: espiritual e social. A primeira intencionaliza sua ação.
reflete-se, sobretudo, na coisificação, isto é, à proporção que os Intersubjetiva - A cooperação
se dá fundamentalmente pelo
objetos (coisas) predominam sobre o indivíduo que, portanto, não se trabalho que para Marx é um
meio de humanizar o homem
autorrealiza, e a segunda implica o domínio do produto sobre aquele à medida que ele humaniza a
natureza. Mas o trabalho no
que produz. mundo capitalista é a explícita
manifestação da expropriação e
da alienação humana.
É importante ainda ressaltar dois elementos interrelacionados na
compreensão de homem em Marx, bem assinalados por Lima Vaz
(1981, p.124):

Natureza humana definida pelas suas carências ou


necessidades e pela dialética da satisfação dessas
necessidades, desdobrando-se seja na relação do
homem com a natureza exterior pelo trabalho, seja na
sua relação com os outros homens pela sociedade.

E em segundo lugar,

[...] a situação histórica definido pelo estágio das forças


e relações de produção e pelo fenômeno da alienação
social que resulta da inadequação deste estágio
às exigências de realização da natureza humana.
Tal fenômeno se verifica de maneira exemplar no
capitalismo, onde se pode identificar explicitamente
o fenômeno da fetichização das relações sociais
alienadas que aparecem como propriedades naturais
das coisas (VAZ, 1981, p. 131).

Como se sabe, o fetichismo se configura como alienação efetivamente


detectada na estrutura do capitalismo, onde pode representar-se
em várias situações: econômica, política, cultural, religiosa. Nelas o
homem produz entidades reais ou imaginárias que passam a dominá-
los e, desta forma, inviabiliza sua vocação emancipatória.

Ora, parece que o pensamento de Marx tem um horizonte escatológico


no sentido em que afirma uma plena emancipação humana no reinado
comunista, em que não mais se verifica homens oprimidos e alienados.

antropologia filosófica | unidade 3 133


O caminho para esta civilização feliz exige uma revolução capaz de
destruir o monstro do capitalismo e seus aliados: principalmente o
Estado e a religião.

Modelos de Antropologia Contemporânea

Reflexões antropológicas desde a segunda metade do século XX


remontam-se, necessariamente, ao pensamento de alguns importantes
filósofos, sobre os quais é oportuno breves alusões.

Um destes autores é o dinarmaquês Sören Kierkegaard (1813-


1855), que para Lima Vaz é mais um pensador solitário, um teólogo
de profissão, que propriamente um filósofo. Não obstante, seu
pensamento é situado nos primórdios do existencialismo concebido
como uma crítica direta ao sistema hegeliano, uma vez que para ele a
existência humana e suas implicações não pode ser emoldurada num
sistema lógico. Os tradutores de Kierkegaard: Carlos Marinho, Maria
José Monteiro e Adolfo Casais (1979, p. VIII), ressaltam a seguinte
observação de Sartre: “A vida subjetiva, na própria medida em que é
vivida, não pode jamais ser objeto de saber [...] Essa interioridade que
pretende afirmar-se contra toda filosofia [...] para além da linguagem,
face aos outros e de Deus, eis o que Kierkegaard chamou de existência.”
Isto porque para Kierkegaard, os sistema filosóficos e seus conceitos,
particularmente os de Hegel, esvaziam a existência humana de todo
caráter efetivo da existência humana, cuja ação depende não do que
se compreende mas do que se quer. A escolha é, assim, o núcleo
existencial.

Ainda no pensamento kierkegaardiano, há que ressaltar que a vida


humana fundada na escolha é atravessada por absurdos estéticos,
éticos e religiosos e, consequentemente, com experiências pessoais
como o tédio, a angústia, o desespero, o medo etc. No nível estético
predomina o hedonismo romântico e sofisticado; o campo ético situa
o homem no campo das regras universais e tarefas incondicionais, que
podem ser contrariadas na passagem para o campo religioso, onde a fé
significa um salto para o absurdo. Kierkegaard toma como exemplo o

134 FILOSOFIA
caso de Abraão, cuja prova de obediência a Deus para matar o próprio
filho Isaac ultrapassa os códigos éticos.

Numa palavra final, em Kiekegaard o homem é uma espécie de resumo


de finito e infinito, de tempo e eternidade, de necessidade e liberdade.

A presença de Friedrich Nietzsche (1844-1900) é sem dúvida


indispensável quando se pensa o homem atual. À pergunta o que é o
homem? Nietzsche a desdobra em três segmentos: o que foi o homem
– como ele aparece na natureza e na vida; o que o homem não é –
sua descaracterização derivada da doença cultural-religiosa e o que o
homem pode e deve ser – tematizado na passagem do homem para o
super-homem.

No estágio da crítica radical à cultura, Nietzsche ressalta que os


sistemas morais e religiosos erigidos no ocidente, isto é, de Sócrates ao
cristianismo europeu do seu tempo, passando pelos tempos patrístico-
medievais, são fundamentalmente perversos, hipócritas, desumanos,
retrógados e, como tais, incidentes em todas as esferas da civilização,
por isso, essencialmente, se opõem à vida e ao advento do super-
homem.

O incisivo espírito crítico de Nietzsche – como um profeta que


simultaneamente denuncia e anuncia – aparece em todos os seus
escritos. Assim Falou Zaratustra, Para Além do Bem e do Mal, Humano
Demasiado Humano, Genealogia da Moral, Gaia Ciência, O Anticristo,
Crepúsculo dos Ídolos, Vontade de Potência são algumas das célebres
obras caracterizadas comumente pela ojeriza de seu autor aos sistemas
e esquemas – religiosos, morais e racionalistas – articulados para domar,
controlar, educar, enfim, reprimir o homem, ao preço de sacrifícios
desde os físicos aos da própria alienação de consciência.

Portanto, para Nietzsche no mundo ocidental instituições e doutrinas


convergem na missão comum de inviabilizar a humanidade do
próprio homem à medida que estabelecem e impõem valores e regras
puramente convencionais e tendenciosas. Ele apregoa diante desta
tradição a necessidade de demolição dos fundamentos envolvidos na
formação humana até então, como condição sine qua naon para o
aparecimento consequente do homem novo: o super-homem.

antropologia filosófica | unidade 3 135


Jean-Paul Sartre (1905-1979) é outro autor que trata em seus
textos romanescos, teatrais, políticos e filosóficos problemas éticos e
políticos, tomados a partir do enfoque existencialista. Textos como O
Existencialismo é um Humanismo e O Ser e o Nada, centram-se nas
estruturas fundamentais da existência humana.

Em Sartre, é importante dizer brevemente, o homem não se define


como ser-em-si porque não é um objeto maciçamente acabado, mas
com ser-para-si, enquanto consciência de si próprio, sobretudo no
sentido da autoconstrução. De fato, quando ele enfatiza que a existência
precede a essência, pretende negar qualquer determinação a priori ao
homem, haja vista que este é projeto de si mesmo; o homem é, sendo.
Não há, pois, força alguma externa que o prescreva, de maneira que,
para ele, se Deus existisse – e para ele não existe (Sartre assume seu
ateísmo), nada mudaria quanto à responsabilidade humana sobre sua
história e da humanidade. Assim, na inesquecível frase de Sartre, o
homem é condenado à liberdade.

Ainda neste contexto contemporâneo, substancialmente antropocêntrico,


são importantes dois enfoques da ciência antropológica: o personalismo
e o materialismo. Na primeira corrente, sobressai-se o conceito de
pessoa nos diversos níveis: ontológico, ético, político, pedagógico. Há,
inclusive, o personalismo de inspiração cristã cuja característica comum
“é a afirmação de Deus pessoal transcendente como paradigma e fim
último da pessoa.” (VAZ, 1981, p. 139). Nesta categoria destacam-se
Jacques Maritain (1882-1973) – onde se conexam a inspiração tomista
e os temas humanos atuais e Emmanuel Mounier (1905-1950) que
juntou o personalismo ao movimento político-cultural sob orientação
de sua vivência católica em meados do século XX.

O segundo enfoque materialista prioriza a Natureza como polo de


explicação básica sobre o homem, de modo que fatores naturais
superam os fatores simbólicos. Neste sentido, além da tradição marxista,
alinham-se ciências como Psicanálise, Linguística, Biologia Humana,
Ecologia, Paleontologia etc., estas últimas geralmente inspiradas na
teoria da Evolução.

Estas diversas faces da antropologia ocidental inteligível à luz da tradição


filosófica, por um lado, afluem para a ideia invariante do homem como

136 FILOSOFIA
espelho convergente de intencionalidade de toda a realidade e, por
outro, abrem a polêmica sobre essa centralidade humana em função
da diversidade das ciências da natureza e do próprio homem.

De fato, Lima Vaz (1981, p.141), observa o seguinte:

As antropologias contemporâneas preferem reco-


nhecer a pluridimensionalidade dos sentidos que
a experiência do seu próprio ser revela ao homem
e procuram situar-se numa perspectiva que lhes
pareça privilegiada, para, a partir dela, construir um
discurso englobante e coerente sobre a totalidade da
experiência humana.

A rigor, portanto, à perene pergunta o que é o homem? se descortina no


cenário contemporâneo a versão antropológica da pluriversalidade: o
homem é o ser que inquire-se a si mesmo e daí expande as interrogações
em todas as dimensões. Três delas serão tratadas a seguir: a linguagem,
a cultura e a liberdade.

CONCLUSÃO

Ao final desta unidade, em que fizemos um ligeiro percurso


pelas linhas antropológicas no ocidente, alguns tópicos merecem
destaque. Vimos que na chamada Grécia arcaica entre os séculos
VII e VIII a. C. prevalece uma imagem de homem marcada por
três caracteres: religioso – consciência da separação entre imortais
(deuses) e mortais (humanos); cosmológico - onde há leis supremas
que regem a natureza e os homens e conceito de homem traçado
pelo apolíneo (correto/bom/celeste) e o dionisíaco (desorientado/
pervertido/terreno). Mas os sofistas, interessados pelo homem
situado no contexto social defendem o relativismo e as convenções
das regras, leis e axiomas. Ora, para Sócrates esta postura banaliza
a humanidade do homem por isso, contrariamente, defende com
força a dimensão interior (daimon) do homem – o “conhece-te a
ti mesmo” alcançado pelo processo da ironia, indução e maiêutica.
Esta teoria é definitivamente sistematizada por Platão, para quem,

antropologia filosófica | unidade 3 137


como sabemos, a alma enraizada no mundo superior das ideias
é adversária do corpo – “essa coisa má”, como ele diz no Fédon.
Assim, política, arte, educação, religião e filosofia devem servir para
qualificá-la e, com efeito, restituí-la ao Olimpo. A antropologia de
Aristóteles é mais realista e discorda, inclusive, dessa rivalidade entre
corpo e alma; não obstante, ele ratifica a excelência da alma, tal
como na vida do contemplador (filósofo).

Durante a Patrística e a Idade Média, vimos que essa dualidade é


reconfigurada entre as iniciativas salvíficas de Deus e a recusa possível
do homem. Em Santo Agostinho a historicidade humana tem como
referência a Encarnação do Verbo e a Salvação Final. Em Tomás de
Aquino, a alma superando o corpo, é acolhimento e reflexo da graça
e da glória divinas. Para ambos, podemos afirmar, o homem é um
peregrino para Deus.

A partir da modernidade fundamentalmente antropocêntrica,


acompanhamos de maneira geral a sobrepujança da racionalidade.
Rupturas e fatos históricos roturantes tais como Renascença,
Ilustração, Revoluções Protestante e Industrial motivam ou são
motivados pelo espírito humanista da época. Pluralidade cultural,
tolerância, criticidade, laicização, progresso, liberdade, revolução,
pragmatismo, são conceitos consequentes e, doravante comuns
entre os humanistas, filósofos, cientistas e, de modo geral, quando se
pensa o mundo sócio-humano.

Esse progresso histórico desaguou na fase atual polemicamente


designada como “pós-moderna” e até “pós-humana”, parece-nos,
contudo, demarcada por uma situação paradoxal: ramificações e
especializações científicas agregam ininterruptamente informações
sobre o homem; entretanto, ele, ao mesmo tempo, permanece,
surpreendentemente, objeto instigante, motivador desafiante para
quem por alguma perspectiva pretende responder à perene questão:
o que é o homem?

138 FILOSOFIA
Que tipo de mudança conceitual sobre o homem se
verifica na sofística em relação à conceitos antropológicos
da Grécia arcaica?

Assinale alguns traços semelhantes e divergentes entre as


antropologias de Sócrates, Platão e Aristóteles?

O homem ocidental, depois da herança grega é fortemente


influenciado pelo cristianismo patrístico-medieval.
Destaque algumas dessas marcas que resistem ao tempo
apesar da chamada era moderna “dessacralizado”.

4 Que mudança de paradigma antropológico verificamos a


partir da Ilustração?

5 Como Hobbes e Rousseau compreendem o homem?

6 Depois de ver o filme Tempos Modernos de Charles


Chaplin e ler o tópico sobre a crítica de Marx ao capitalismo
opressor, discuta com seus colegas e aponte brevemente
até que ponto a crítica marxista pode ser atualizada.

7 Discuta com seus colegas e discorra brevemente a


complexidade e o consequente desafio de representar o
homem contemporâneo.

antropologia filosófica | unidade 3 139


• Odisseia

Interessante filme sobre a mitologia grega, retratando, precisamente, a


relação entre o homem e os deuses na dramática volta de Ulisses para
Ítaca, após ter vencido a guerra de Troia.

• A marvada carne (Brasil, 1984 – direção: André Koltzel).

Abordagem sobre mitos atuais.

• Sócrates (Itália/França/Espanha, 1971 – direção: Roberto


Rossellini).

O filme trata do processo, defesa, condenação e morte o filósofo grego.

• Agostinho (Alemanha/França, 1986 – direção: Roberto Rosselini.

O filme destaca a importância do filósofo durante a decadência do


Império Romano, perpassam temas como teologia, ética, estética etc.

• Giordano Bruno (Itália/França, 1973 – direção: Giuliano Montaldo).

O filme aborda a condenação de G. Bruno à fogueira, por haver


defendido ideias sobre universo contrárias às doutrinas eclesiásticas.

• O Nome da Rosa (Alemanha/França, 1986 – direção: Jean-Jacques


Arnaud).

O filme ocorre num mosteiro medieval, retratando questões éticas,


religiosas e, sobretudo, científicas emergentes.

140 FILOSOFIA
TEXTO COMPLEMENTAR

A crise do conhecimento de si do homem

Ernst Cassirer

Que o conhecimento de si mesmo é a mais alta indagação filosófica


parece ser geralmente reconhecido. [...]. Nem os pensadores mais
céticos negam a possibilidade e a necessidade de autoconhecimento.
[...] O autoconhecimento – declara – é o requisito da autorrealização.
Devemos tentar romper as cadeias que nos ligam ao mundo exterior
para podermos desfrutar nossa verdadeira liberdade.[...]

A filosofia moderna teve início com o princípio de que a evidência


de nosso próprio ser impregnável e inatacável. [...] Poucos psicólogos
modernos admitiriam ou recomendariam um simples método de
instrospecção. [...]. Estão convencidos de que uma atitude behaviorista
estritamente objetiva é a única abordagem possível para uma psicologia
científica. Sem a introspecção, sem uma consciência imediata dos
sentimentos, não poderíamos sequer definir o campo da psicologia
humana. No entanto, [...] a introspecção revela-nos aquele pequeno
segmento da vida humana acessível à nossa experiência individual.

[...] Aristóteles declara que todo conhecimento humano tem origem


em uma tendência básica da natureza humana que se manifesta
nas ações e reações mais elementares do homem. [...]. Em Platão, a
vida dos sentidos está separada da vida do intelecto por uma brecha
ampla e insuperável. O conhecimento e a verdade pertencem a uma
ordem transcendental – ao reino das ideias puras e eternas. O próprio
Aristóteles estava convencido de que o conhecimento científico não
é possível unicamente através do ato da percepção. Mas fala como
um biólogo ao negar a separação platônica entre o mundo ideal e o
empírico. [...].

Nas primeiras explicações mitológicas do universo encontramos


sempre uma antropologia primitiva lado a lado com uma cosmologia
primitiva. A questão da origem do mundo está inextrincavelmente
entrelaçada com a questão da origem do homem. A religião não

antropologia filosófica | unidade 3 141


destrói essas primeiras explicações mitológicas. [...]. A partir de
então, o autoconhecimento não é mais concebido como um interesse
meramente teórico. Deixa de ser apenas um tema de curiosidade ou
explicação; é declarado como obrigação fundamental do homem.
Os grandes pensadores religiosos foram os primeiros a afirmar essa
exigência moral. [...]. “Conhece-te a ti mesmo” é vista como um
imperativo categórico, como uma lei religiosa e moral suprema.[...]

Em seus primeiros estágios, a filosofia grega parece ocupar-se


exclusivamente do universo físico. [...]. Para além da filosofia física da
escola de Mileto, os pitagóricos descobrem uma filosofia matemática,
enquanto os pensadores eleáticos são os primeiros a conceber uma
filosofia lógica. Heráclito posta-se na fronteira entre o pensamento
cosmológico e o antropológico. [...]

É no problema do homem que se encontra o marco que separa o


pensamento socrático do pré-socrático. [...]. Sócrates sustenta e
defende sempre o ideal de uma verdade objetiva, absoluta e universal.
Mas o único universo que ele conhece e ao qual se referem todas
as suas indagações, é o universo do homem. [...] Sócrates oferece-
nos uma análise detalhada e meticulosa das qualidades e virtudes
humanas. Procura determinar a natureza dessas qualidades e defini-
las: bondade, justiça, temperança, coragem e assim por diante. Mas
nunca arrisca uma definição de homem.

[...] A filosofia que fora até então concebida como um monólogo


intelectual é transformada em um diálogo. Só por meio do pensamento
dialógico ou dialético podemos abordar o conhecimento da natureza
humana. [...]. É impossível – diz Platão na República – implantar a
verdade na alma de um homem [...]. Por natureza, a verdade é fruto
do pensamento dialético. Logo, só pode ser obtida mediante constante
cooperação dos sujeitos em mútua interrogação e resposta. [...].
Podemos otimizar o pensamento de Sócrates dizendo que o homem
é definido por ele como o ser que, quando lhe fazem uma pergunta
racional, ele dar uma resposta racional. [...]

Sócrates e Marco Aurélio [imperador romano] têm em comum a


convicção de que para encontrar a verdadeira natureza ou essência
do homem, devemos primeiro remover dele os traços externos ou

142 FILOSOFIA
incidentais. Não chamai do homem nenhuma daquelas coisas que
não lhe cabem como homem... [Marco Aurélio]. [...]. Riquezas,
posição, distinção social, até mesmo a saúde e os dotes individuais –
tudo isso torna-se indiferente. Tudo o que interessa é a tendência, a
atitude interior da alma; e tal princípio não pode ser perturbado. [...]
Aquele que vive em harmonia consigo mesmo, com seu demônio, vive
em harmonia com o universo; [...]. A própria vida está mudando e
flutuando, mas o verdadeiro valor da vida deve ser buscado em uma
ordem eterna que não admite qualquer mudança. [...]

A declarada independência absoluta do homem, que na teoria estoica


era considerada como virtude fundamental do homem, na teoria cristã
torna-se o seu vício e erro fundamentais. [...]. A luta entre essas duas
visões conflitantes durou muitos séculos e no início da era moderna
– na época da Renascença e no século XVII – sentimos ainda a sua
força. Aqui podemos apreender um dos traços característicos da
filosofia antropológica.

[...]. Segundo Agostinho, toda a filosofia anterior ao aparecimento de


Cristo padecia do mesmo erro fundamental e estava infectada por uma
única e mesma heresia. [...] o que o homem jamais poderia ter sabido,
até ser iluminado por uma revelação divina especial, é que a própria
razão é uma das coisas mais questionáveis e ambíguas do mundo.
[...]. Para Agostinho, a razão não tem uma natureza simples e única,
mas antes dupla e dividida. [...] Assim é a nova antropologia, tal como
é entendida por Agostinho, e mantida em todos os grandes sistemas
de pensamento medieval. Até Tomás de Aquino [...] não aventura a
desviar-se desse dogma. Ele concede à razão humana um poder muito
mais alto que o concedido por Agostinho; mas está convencido de
que a razão não pode usar corretamente esses poderes a menos que
seja guiada e iluminada pela graça de Deus. O que outrora parecia
ser o mais alto privilégio do homem revela-se como seu perigo e sua
tentação; o que surgia como seu orgulho torna-se sua mais profunda
humilhação. [...]

Nos tempos modernos apareceu um pensador que deu a essa


antropologia um novo vigor e um novo esplendor. [...]. Pascal parece
aceitar os pressupostos do cartesianismo e da ciência moderna. Não
há na natureza nada que possa resistir ao esforço da razão científica,

antropologia filosófica | unidade 3 143


pois não existe nada que possa resistir à geometria. [...] Mas nem
todos os objetos são passíveis de serem tratados desse modo. [...].
O que caracteriza o homem é a riqueza e sutileza, a variedade e a
versatilidade de sua natureza. [...]. É ridículo falar do homem como se
fosse uma proposição geométrica. [...]. Todas as chamadas descrições
do homem não são mais que especulações visionárias se não forem
baseadas em nossa experiência de homem, e por ela confirmadas.
[...]. A contradição é próprio da existência humana. [...].

Existe, portanto, apenas uma abordagem para o segredo da natureza


humana: a da religião. A religião mostra-nos que há um homem duplo
– o homem antes e depois da queda. [...]. A religião não pode ser clara
e racional. A religião, portanto, nunca pretende esclarecer o mistério
do homem. [...]. A religião não é nenhuma “teoria” do Deus e do
homem e de sua relação mútua. [...], a religião que não diga que Deus
é oculto não é verdadeira. [...]. Portanto, por assim dizer, a religião é
uma lógica do absurdo, pois só assim pode apreender o absurdo, a
contradição interna, o ser quimérico do homem. [...].

Ao mesmo tempo, porém, tem início um lento desenvolvimento


intelectual pelo qual a questão “O que é o homem?” é transformada
e, por assim dizer, elevada a um nível superior. [...] A busca agora é
por uma teoria geral do homem baseada em observações empíricas
e em princípios lógicos gerais. [...] A nova cosmologia, o sistema
heliocêntrico introduzido na obra de Copérnico, é a única base
sólida e científica para uma nova antropologia. [...]. A pretensão
do homem a ser o centro do universo perdeu o seu fundamento.
[...]. É compreensível, e foi necessário que a primeira reação a essa
nova concepção de mundo só pudesse ser negativa – uma reação
de dúvida e medo. [...]. A filosofia e a ciência [...] tiveram o que a
nova cosmologia, longe de enfraquecer ou obstruir o poder da razão
humana, estabelece e confirma este poder. [...] Giordano Bruno foi o
primeiro pensador a enveredar por esse caminho, que, de certo modo,
tornou o caminho de toda metafísica moderna. [...]. No pensamento
grego clássico, a infinidade é um conceito negativo. O infinito é o sem
limites ou indeterminado. [...]. Na doutrina de Bruno [...] significa a
imensurável e inesgotável abundância da realidade e o poder irrestrito
do intelecto humano. É neste sentido que Bruno entende e interpreta
a doutrina copernicana. [...]

144 FILOSOFIA
Foram necessários os esforços combinados de todos os metafísicos do
século XVII para superar a crise intelectual provocada pela descoberta
do sistema copernicano. [...]. Galileu afirma que, no campo da
matemática, alcança o ápice de todo conhecimento – conhecimento
que não é inferior ao do intelecto divino. [...]. Descartes começa sua
dúvida universal que parece encerrar o homem nos limites de sua
própria consciência. [...]. Mas mesmo neste caso, porém, a ideia do
infinito acaba sendo o único instrumento para a derrubada da dúvida
universal. Só por meio desse conceito podemos demonstrar a realidade
de Deus e, de maneira indireta, a realidade do mundo material. Leibniz
combina essa prova metafísica a uma nova prova científica. Pelas regras
desse cálculo [infinitesimal] o universo físico torna-se inteligível. [...]. É
Spinoza quem se aventura a dar o último passo, decisivo, nessa teoria
matemática do mundo e da mente humana. [...], concebe uma nova
ética, uma nova teoria das paixões e afetos, uma teoria matemática do
mundo moral. [...]. A razão matemática é a chave para uma verdadeira
compreensão das ordens cósmica e moral. [...].

Em 1754 Denis Diderot [...] declarou que a superioridade da


matemática no domínio da ciência não é mais inconteste. [...] Diderot
é um dos grandes representantes da filosofia do Iluminismo. [...]. De
acordo com Diderot, superestimamos demais nossos métodos lógicos
e racionais. [...]. Na ciência do século XIX, deparamos com a marcha
triunfal de novas ideias e novos conceitos matemáticos. Não obstante, a
previsão de Diderot continha um elemento de verdade. [...] Uma nova
força começa a surgir. O pensamento biológico toma a precedência
sobre o pensamento matemático. [...], após a publicação da obra de
Darwin A Origem das Espécies [...] o verdadeiro caráter da filosofia
antropológica parece ter fixado de uma vez por todas. [...]. O nosso
problema é simplesmente colher as evidências empíricas que a teoria
geral da evolução colocou à nossa disposição em uma medida rica e
abundante. [...]. Um dos principais objetivos da obra de Darwin foi
livrar o pensamento moderno dessa ilusão de causas finais. Devemos
procurar entender as estrutura da natureza orgânica unicamente por
causas materiais, ou não podemos entendê-la. [...].

A teoria da evolução havia destruído os limites arbitrários entre as


diferentes formas de vida orgânica. [...]; há apenas uma contínua e
ininterrupta corrente de vida. [...]. Será o mundo cultural, tal como o

antropologia filosófica | unidade 3 145


mundo orgânico, formado por mudanças acidentais? [...] Hippolyte
Taine em sua Filosofia da Arte disse não temos mais que um problema
mecânico... [...]. É o mesmo círculo de ferro de necessidade que
encerra tanto a nossa vida física como a cultural. [...] Mas neste
ponto surge outra questão. Poderemos contentar-nos em contar de
modo meramente empírico os diferentes impulsos que encontramos
na natureza humana? [...] A meta principal de todas as teorias era
provar a unidade e a homogeneidade da natureza humana. Mas, se
examinarmos as explicações que tais teorias foram concebidas para
dar, a unidade da natureza humana parece extremamente duvidosa.
[...] Cada pensador individual nos oferece a sua própria imagem da
natureza humana. [...]. Nietzsche proclama a vontade de potência,
Freud analisa o instinto sexual, Marx entroniza o instinto econômico.
[...]. Em virtude desse desenvolvimento, nossa teoria moderna perdeu
seu centro intelectual. [...]. O fator pessoal tornou-se cada vez mais
prevalecente, e o temperamento do escritor tendia a ter um papel
decisivo. [...]

No pensamento filosófico recente, Max Scheler foi um dos primeiros


a perceber e assinalar esse perigo. “Em nenhum outro período
do conhecimento humano”, declara ele, o homem tornou-se mais
problemático para si mesmo que em nossos dias. [...]. A multiplicidade
cada vez maior das ciências particulares que se dedicam ao estudo
do homem confundiu e obscureceu muito mais que elucidou o nosso
conceito de homem. [...]. Comparado à nossa própria abundância, o
passado deve parecer muito pobre. Nossa riqueza de fatos, contudo,
não é necessariamente uma riqueza de pensamentos. A menos que
consigamos achar um fio de Ariadne que nos conduza para fora deste
labirinto, não teremos qualquer compreensão real do caráter geral da
cultura humana; continuaremos perdidos em uma massa de dados
desconexos e desintegrados que parecem carecer de toda unidade
conceitual.

CASSIRER, Ernst. Ensaio Sobre o Homem: introdução a uma


filosofia da cultura humana. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 9-43.

146 FILOSOFIA
GRECETHUYSEN, Bernard. Antropologia Filosófica. Lisboa:
Presença, s/d.

JAEGER, Werner. Paideia. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

NOGARE, Pedro Dalle. Humanismos e Anti-Humanismos.


Petrópolis/RJ: Vozes, 1978.

RABUSKE, Edvino A. Antropologia Filosófica. Petrópolis/RJ:


2001.

VAZ, H. C. de Lima. Antropologia Filosófica I. São Paulo: Loyola,


1991.

antropologia filosófica | unidade 3 147


unidade

4
DIMENSÕES FUNDAMENTAIS DO ObjetivoS dESTA unidade:

HOMEM Possibilitar compreensões


básicas sobre o fenômeno
humano da linguagem:
sua estrutura, trajetória
e, principalmente, suas
funções, destacando
neste caso a teoria
habermasiana do
PALAVRA INICIAL...
discurso;

Caro estudante, Explicitar de maneira


clara o conceito de
Nesta quarta unidade descortinam-se para nossas leituras, cultura, especialmente no
sentido abordado pelo
reflexões e discussões três dimensões fundamentais do ser
professor Álvaro Vieira
humano: a linguagem, a cultura e a liberdade. Poderiam Pinto;
ser outras como o conhecimento, a socialidade, a religião,
Contribuir para reflexões
a estética etc. Elegemos estas três porque as consideramos críticas em torno do
radicalmente inerentes à condição humana e ao mesmo conceito satreano de
tempo acompanham indiscutivelmente a desenvoltura da liberdade responsável e
engajada.
humanidade do homem.

A linguagem, disse muito bem Ernest Cassirer, é um dos


recursos do espírito graças ao qual transitamos da sensação
para a representação. O homem é o que é pela linguagem,
disse Humboldt. De fato, a linguagem manifesta o homem
ao mundo. É ela que o identifica: sua cultura, sua língua,
sua religião, sua arte, seu conhecimento, suas habilidades e
criatividades, sua postura política diante da história e diante
do mundo. Como está na epígrafe abaixo, Rousseau teve
muita lucidez ao afirmar que quando um homem fala se sabe a
que mundo ele pertence.

Partindo, pois, desta premissa de que a linguagem é o produto mais


importante da mente humana, como afirma Susanne Langer, neste
tópico vamos nos volver para a fenomenologia, os aspectos estruturais
e a trajetória histórica da linguagem, na intenção fundamental de
ressaltar que as diversas perspectivas teóricas - do estruturalismo
de Saussure à pragmática transcendental de Habermas, discutem e
teorizam sobre um sentido básico: a função comunicativa da linguagem.

A linguagem entrelaça-se intimamente com a cultura. Esta como


Herskovits, é o mundo feito pelo homem, engloba todas as suas
criações. Neste sentido, vamos perceber com Rabuske que a
cultura é inerente ao homem, é produção e produto e é teleológica.
Estudaremos mais detidamente a propósito o conceito de cultura
situado por Álvaro Vieira Pinto dentro da estrutura de produção, para
demonstrar que juízos, interpretações, distorções, preconceitos, numa
palavra: ideologias, em torno da cultura vinculam-se necessariamente
ao sistema de produção e manutenção da existência.

Ao mesmo tempo que o homem culturalmente é “condicionado” pelo


sistema de produção no qual se insere, é também capaz de ultrapassar
ou romper estruturas porque pode articular e efetivamente negar
uma situação. A liberdade exprime o sentido de homem. O homem
é o autor de si próprio. Nenhuma vontade, nenhum projeto a prori
determina sua direção. O homem é, enquanto se faz. Vamos assim
pautar nossas reflexões sobre a liberdade conforme a orientação das
ideias de Sartre escritas principalmente no texto “O Existencialismo
é um Humanismo” de 1946, como objetivo de expor as correlações
entre liberdade e responsabilidade, escolha e engajamento social.
Neste sentido, cruzaremos em certo momento o conceito de liberdade
do sujeito em Sartre como o de liberdade política em Hannah Arendt.

Destarte, vamos perceber que a linguagem é a condição fundante


de qualquer realização humana, destacadamente a cultura
enquanto marca distinta da artificialidade humana, esta tornada
possível porque a liberdade é a recusa expressa da tese de qualquer
determinismo.

150 FILOSOFIA
ROTEIROS PARA ESTUDOS

Leituras sobre a fenomenologia da linguagem;

Teorias básicas sobre a origem e aspectos estruturais da


linguagem;

A teoria da linguagem no paradigma discursivo de Habermas;

Aspectos da cultura: natureza e sociedade;

Cultura e sistema de produção;

A liberdade na teoria de Sartre.

Fenomenologia da linguagem: conceitualizações


e relevância

Não se sabe de onde um homem é, antes que ele tenha falado.

(Rousseau)

A importância da linguagem aparece sublinhada logo nas primeiras


páginas da célebre obra Política de Aristóteles, quando o filósofo
grego enfatiza que o homem é um animal político (zoon politikón),
porque, por propósito natural, ele é o único entre os animais que tem
o dom da fala (zoon echón); para além da voz que indique a dor e o
prazer, a fala do homem tem a finalidade de indicar o conveniente e
o nocivo e, portanto, também o justo e o injusto; somente o homem
tem o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto e de outras
qualidades morais. Ora, exprimir e possuir em comum esses valores é
o que possibilita a vida social e política, para qual só os homens são
capazes.

De fato, hoje se admite que o homem como ser falante – homo loquens,
é uma definição bem apropriada porque realmente a categoria da fala
estabelece nitidamente a fronteira entre o homem e os outros animais,
acentuando, assim, a particularidade daquele sobre estes últimos.

antropologia filosófica | unidade 4 151


Mondin retoma alguns juízos interessantes a respeito da linguagem.
Huxley à pergunta sobre o que faz do homem o que ele é, responde
que a linguagem é a resposta por excelência. O que senão o poder
da linguagem dá a capacidade de registrar a experiência humana e
tornar, assim, cada geração mais sábia do que a precedeu? Cassirer
(2001, p. 180), observa que “a linguagem é dos meios fundamentais
do espírito, graças ao qual se realiza nossa passagem do mundo da
sensação ao mundo da representação.” Por sua vez, como ressalta
Mondin (1980, p. 136), Gusdorf diz: “A invenção da linguagem é a
primeira das grandes invenções, a que contém em estado embrionário
todas as outras, talvez menos sensacional que a domesticação do
fogo, mas mais decisiva.” Heidegger, lembra Mondin (1980, p. 137),
assegura que “falamos de um jeito ou de outro. Falamos porque falar
nos é natural. Falar não provém de uma vontade especial. Costuma-se
dizer que por natureza o homem possui linguagem. Falamos porque o
falar nos é inato. O falar não nasce de um particular ato de vontade.”
Convém lembrar, ainda, o destaque de Marilena Chaui sobre o que
disse Hjelmslev acerca da linguagem: o instrumento graças ao qual
o homem modela seu pensamento, seus sentimentos, suas emoções,
seus esforças, sua vontade e seus atos, o instrumento graças ao qual
ele influencia e é influenciado, a base mais profunda da sociedade
humana.

A força da linguagem se manifesta contundentemente quando


correlacionada com os mitos e a religião. Cassirer (2001, p. 181)
afirma que “a linguagem e os mitos são parentes muito próximos.
Nos primeiros estágios da cultura humana, sua relação é tão íntima
e sua cooperação tão óbvia que é quase impossível separar um do
outro.” A palavra mythos, significando narrativa, portanto, linguagem,
narra a origem dos deuses, do mundo, dos homens, das técnicas, da
vida social e comunitária. Mais que isso “os mitos são a maneira pela
qual, através das palavras, os seres humanos organizam a realidade e
a interpretam.” (CHAUI, 1994, p. 138).

A força realizadora da linguagem aparece nas liturgias mítico-religiosas


enquanto capacidade para reunir o sagrado e o profano, de “seduzir”
e trazer os deuses à terra, integra o homem ao mundo cósmico
transcendental. Cassirer (2001, p. 183) explica que “para mente
primitiva o poder social da palavra, experimentado em inúmeras

152 FILOSOFIA
ocasiões, torna-se uma força natural, e até sobrenatural.” Não obstante
acreditarmos ou não em palavras mágicas e místicas atribuídas à
linguagem,

[...] este poder decorre de que as palavras são núcleos,


sínteses ou feixes de significações, símbolos e valores
que determinam o modo como interpretamos as forças
divinas, naturais, sociais e políticas e suas relações
conosco (CHAUI, 1994, p. 139).

É por isso que Heidegger (2003, p. 7), sabiamente, afirma que “a


linguagem se encontra em toda parte. [...], tão logo o homem faça uma
ideia do que acha ao seu redor, ele encontra imediatamente também
a linguagem, de maneira a determiná-la numa perspectiva condizente
como que a partir dela se mostra.”

Assim, pode-se dizer, fundamentalmente, que o homem ingressa ou


integra propriamente seu mundo pela mediania da linguagem. É
pela linguagem, por outro lado, que o mundo passa propriamente a
existir, porque é restritamente por ela que toda coisa, qualquer coisa, é
identificada, portanto, por assim dizer, presentificada ou pelo menos é
explicitada pelo homem.

Esta magnitude da linguagem é realçada por Susanne Langer, quando


lucidamente ela diz:

A linguagem é, sem dúvida, o produto mais


momentoso e ao mesmo tempo mais misterioso da
mente humana. Entre o mais claro grito de amor, ou de
advertência, ou ira, e a mínima e mais trivial palavra
de um homem, permeia um dia inteiro da Criação –
ou numa frase moderna, um unidade da evolução.
Na linguagem, temos o uso livre e consumado
do simbolismo, o registro do pensar conceitual e
articulado; sem a linguagem parece não existir nada
semelhante ao pensamento explícito. Todas as raças
de homens [...] dispõem de sua linguagem completa e
articulada (LANGER, 2004, p. 111).

Com efeito, percebe-se que a linguagem e o homem inseparam-se de


tal forma que a personalidade, o espaço natural, os objetos, o país, a
humanidade, enfim, a vida, se traduz efetivamente por ela, a linguagem.
Neste sentido, a professora Sonia Souza (1995, p. 107) frisa o que
Hjelmslev observa: “possível indagar-se se ela não passa de um simples

antropologia filosófica | unidade 4 153


reflexo ou se ela não é tudo isso: a própria fonte do desenvolvimento
dessas coisas.” Torna-se, então, conveniente penetrar, ou melhor,
abordar ao menos nocionalmente alguns elementos implicados na
estrutura da linguagem.

Aspectos estruturais da linguagem: divisão, essência e níveis

Os autores Cleverson e Kleber sublinham que a linguagem é sistêmica,


é estrutural, independe, assim, da situação cultural ou manifestação
individual. Eles lembram que Saussure assinalou a linguagem como
capacidade humana de se comunicar com seus semelhantes através de
signos, por isso ela é tanto matéria do pensamento – nível do conteúdo,
como realidade do pensamento – nível da expressão. Portanto, é
ao mesmo tempo física, fisiológica, psíquica e de domínio social. A
língua é a manifestação cultural da linguagem, tanto que é um código
Signo “sentido mais geral,
designa, assim como o sígnico articulado e utilizado por uma comunidade humana particular
símbolo, o índice, ou o sinal,
um elemento A – de natureza (franceses, chineses, africanos, brasileiros, etc). Neste sentido, dizem os
diversa, substituto de um
elemento .” (DUBOIS 2004, autores que “a língua pressupõe um grupo social e esse não é concebível
p. 541). Signo refere-se, pois,
a índice, sinal e símbolo. sem aquela. [...]. A língua é ao mesmo tempo, um produto social da
Indica, portanto, algo diverso
de si mesmo como a pomba linguagem e um conjunto de convenções normativas, necessárias,
que remete à ideia de paz ou
o punho erguido e fechado
arbitrárias adotadas pelo corpo social que regula o exercício dessa
indicando luta.
faculdade pelos indivíduos.” (BASTOS: CANDIOTTO, 2007, p.15-
16). É importante ressaltar que a língua é dinâmica, isto é, está aberta
às alterações ou reconfigurações decorrentes do processo sociocultural
e histórico. A fala, tal como diz Mondin, é forma concreta e individual
do sistema, conforme os significados pessoais. É a execução psicofísica
da linguagem. Ademais, “é uma práxis individual, manifesta em
um ato momentâneo, fruto e função de necessidades psicológicas,
comunicação e expressão.” (BASTOS: CANDIOTTO, 2007, 16).

Estes elementos – linguagem, língua e fala refletem alguns níveis


importantes. Em primeiro lugar o referente, enquanto situações do
mundo correspondentes, por sua vez, ao conteúdo sinalizado que
determinam as condições de significação e verdade; ou ainda é

154 FILOSOFIA
o designado por uma expressão quando a linguagem se refere aos
estados de mundo. A sintaxe refere-se à análise da estrutura interna
dos signos em níveis de conteúdo e expressão. Todavia, convém
ressalvar que normatividade, hierarquização e prescrição de uma
língua dependem de fatores (ideologias, poderes, juízos de valores
etc.) externos à sintaxe. A semântica, terceiro lugar, representa o signo
linguístico em relação aquilo que ele se refere. Trata-se, portanto, de
uma mediação homem-mundo e homem-homem e, neste sentido,
a semântica não sendo neutra pode, consequentemente, reproduzir
traços ideológicos. Por fim, no aspecto pragmático considera-se a
dinamicidade do signo linguístico, isto é, uma cadeia de interpretantes
põe em ação ou exercitam a complexidade sígnica.

É conveniente que, a partir destes elementos, se indague: em que


consiste propriamente a essência da linguagem? Rabuske responde
reportando-se a Eugenio Coseriu que em sua obra Homem e sua
Linguagem afirma a linguagem primeiramente como atividade
cognoscitiva efetivada mediante símbolos. E enquanto atividade ela é
repetida e repetível diversamente, por isso, liga-se ao produto (língua),
porém vai além dele; além disso, a linguagem é uma atividade criadora
a partir da herança linguística. Em segundo lugar, a linguagem é
expressão com significado objetivo.

Battista Mondin explica a distinção entre o significante, que se refere


a uma realidade tal qual denotada e estruturada pela linguagem, e o
significado, que diz respeito ao modo parcial e histórico pelo qual a
língua falada atualiza o significante. (Exemplo: a palavra terra é um
significante que tem sentido aferido por uma estrutura de linguagem
particular onde o significado tem conotação sociopolítico, cultural e
religiosa).

A origem e trajetória da linguagem

Uma questão inicial é a seguinte: como se originou a linguagem?


Existem pelo menos quatro teorias básicas, a rigor, não excludentes:
a primeira diz que a linguagem foi recebida de Deus ou da Natureza.

antropologia filosófica | unidade 4 155


Defensor desta tese, Humboldt argumenta que se o homem é o
que é pela linguagem, logo ele não pode ser o autor da mesma. A
segunda, atualmente mais comum, é que ela se origina da evolução,
sendo esta, para alguns, determinada pela onomatopeia e, para
Onomatopeia é uma unidade
léxica criada a partir de outros, pela convenção. No primeiro caso, as palavras possuiriam
um som natural, como o
cocoricó que imita o canto sentido necessário; no segundo o sentido das palavras seria
do galo. Jean Dubois et.all
observa já Saussure tratava
arbitrário. Desta discussão, conforme Marilena Chauí, chegou-se à
a onomatopeia como
situação marginal. Os autores
conclusão de que enquanto a linguagem é natural, em função da
ressalvam ainda o seguinte: predisposição físico - anatômica e nervosa – do homem para a
“A teoria da arbitrariedade do
signo opõe-se radicalmente a palavra a língua é cultural em decorrência das condições histórico-
uma concepção onomatopaica
da origem das línguas.” geográficas e econômico-políticas, portanto, é convencional. A
(DUBOIS, 2004, p. 441).
terceira teoria argumenta que a linguagem surge da necessidade:
fome, sede, abrigo, segurança, afeto etc. A partir de um vocabulário
rudimentar a linguagem tornou-se complexa, transformando-se em
língua. Enfim, a quarta afirma que a linguagem surgiu das emoções:
grito (medo, surpresa, alegria), choro (dor, medo) e do riso (bem-
Cleverson Bastos e Kleber
Candiotto, em seu livro
estar felicidade). Chauí refere-se, neste caso, a Rousseau que no
Filosofia da Linguagem seu Ensaio sobre a Origem das Línguas, diz: “[...] as primeiras
(Ed. Vozes, 2007), tem uma
unidade que trata exatamente línguas foram cantantes e apaixonantes antes de serem simples e
das bases genética,
anatômica e evolutiva da metódicas.”
linguagem, especialmente da
sistematização cerebral.
Historicamente, a reflexão mais remota da cultura ocidental é a crítica
da linguagem desenvolvida por Platão no Crátilo, onde, segundo
Manfredo Oliveira, o filósofo imprime uma “discussão entre o
naturalismo e o convencionalismo linguístico.” Embora admitindo que
haja razões nos segmentos, não adota, contudo, nenhum deles. Sua
tese básica é de que pela linguagem não se atinge a verdade, o real é
conhecido sem a mediação da linguagem. A contemplação das ideias
– diálogo da alma consigo mesma independe das palavras. Com efeito,
a linguagem tem função posterior, ou seja, enquanto instrumento,
ela é designativa: designa em sons o que o intelecto percebeu sem
Escola Estoica ou Estoicismo
(as lições eram dadas sob os ela. Os estoicos no século I a.C. elaboraram uma importante teoria
pórticos - stoá, de Atenas)
foi um movimento filosófico da linguagem quando afirmavam que as sensações, a memória e a
registrado entre os séculos IV
a.C e III d.C, representado
experiência formam as ideias racionais. Deste processo surgem os
por Zenão, Epícteto, Sêneca e conceitos. “A representação, sendo intelecção pela qual se reconhece
Marco Aurélio. Uma afirmação
básica desta escola é que a a verdade das coisas, permite que haja assentimento, compreensão
felicidade humana depende
da prática da virtude e, e pensamento.” (LACERDA, 2004, p. 20). Mais tarde em Agostinho,
consequentemente, da recusa
radical aos sentimentos e a linguagem serve para ensinar ou recordar; além disso, serve à fala
paixões.

156 FILOSOFIA
interior, ou seja, ao pensamento de palavras aderidas à memória, o
que implica absorção das coisas pela mente. As palavras são sinais das
coisas.

Ainda no tempo medieval, o problema dos universais impõe o debate


sobre a relação entre os conceitos e as coisas. Para nominalistas como Certos linguistas como Chomsky
e Pinker, advogando em favor
Guilherme de Ockam reais são os entes particulares, os universais dos universais linguísticos, têm
em comum entre outras teses,
estão na mente apenas como formas e não como substâncias. a seguinte: “Todos os idiomas
possuem elementos estruturais
básicos comuns: assim como
Na aurora dos tempos modernos, René Descartes assegurou que o cada idioma possui suas regras
de geração (gerativas), também
pensamento independe das línguas; aliás, a linguagem à medida que existem regras gramaticais
gerais, que se aplicam a todos
intermedeia a relação entre o ser e o pensamento pode ofuscar o os idiomas, como sujeito, verbo,
objeto direto. Fenômeno que só
conhecimento claro e distinto do seres. Esta tese cartesiana influenciou pode ser explicado se houver
componente inato significativo
a teoria de Lancelot e Arnauld e sua Gramática de Port-Royal, onde a para o desenvolvimento
da linguagem.” (BASTOS;
língua é um sistema de signos e as palavras um “envoltório” das ideias. CANDIOTTO, 2007, p. 114).
Pinker, particularmente, assegura
Subjacente aos signos, há um sistema lógico de ideias e juízos. Ora, como que a linguagem surgiu por
uma reestruturação e adição de
estes se relacionam com a realidade, é o que demonstra a Gramática. circuitos vocais nos cérebros dos
primatas. A propósito, observam
O inglês John Locke, com seu empirismo, atribui à linguagem um papel Cleverson e Kleber, que esta é
uma tese inerente à unidade
mais relevante e complexo, de modo que ela transmite pensamentos da chamada virada biológica
da linguagem no estudo do
mediante sinais que são, a rigor, marcas externas de ideias internas. desenvolvimento da linguagem.
Ora, o significado traduz uma ideia que advém da experiência, sem a
qual a mente é apenas uma folha em branco. Também Hobbes nota
que a linguagem é a mais nobre e útil invenção humana, tanto que
por ela é que existem homens, Estado, sociedades e contratos. Com
efeito, sinais servem para registrar, aconselhar, expressar vontades.
Além disso, seguindo princípios nominalistas, ele afirma que verdade
e falsidade são atributos não das coisas, mas da linguagem.

Entremos agora em tempos contemporâneos, onde a diversidade


de perspectivas analíticas sobre a linguagem atesta a relevância e a
complexidade do assunto. Tem razão Ghiraldelli quando afirma:
“Assumindo que o século XVIII foi o século da razão e o século XIX, o
século da história, então podemos dizer que o século XX foi o século da
linguagem.” (JUNIOR, 2008, p. 7). Manfredo (1996, p. 11), reporta-
se a uma afirmação de Karl-Otto Apel, segundo a qual “a linguagem
se transformou em interesse comum em todas as escolas e disciplinas
filosóficas da atualidade.”

antropologia filosófica | unidade 4 157


Contudo, pouco antes da metade do século XIX, o grande linguista e
filósofo alemão, Wilhelm von Humboldt, interessando-se por traços
fundamentais dos fenômenos linguísticos, já observava que a fala
humana não poderia reduzir-se uma coleção de palavras. “A verdadeira
De acordo com Bárbara
Weedwood, o termo linguística diferença entre as línguas não é de sons ou sinais, mas de perspectivas
a partir de meados do século
XIX designa um novo estudo de mundo. Uma língua não é um simples agregado mecânico de
da língua em relação à
filologia tradicional.
termos. [...]. A linguagem não é uma coisa pronta, mas um processo
contínuo; é o esforça reiterado da mente humana no sentido de usar
sons para expressar pensamentos.” (CASSIRER, 2001, p. 200). Aliás,
é neste século que surge a linguística, enquanto estudo científico da
linguagem.

A análise da linguagem contemporânea necessariamente pelo


estruturalismo nas primeiras décadas do século XX na Europa, é
Estruturalismo - Cleverson
e Kleber observam que pertinente a nota de Cassirer quando frisa: “Para o estruturalismo [...]
Estrutura é um conjunto de
elementos entre os quais cada linguagem não é um simples agregado de sons e palavras; é um
existem relações de forma
que toda modificação de um
sistema. [...]. Cada idioma tem sua estrutura própria, tanto no sentido
elemento ou de uma relação material como no formal.”(CASSIRER, 2001, p. 205). Neste sentido
acarreta modificação dos
outros elementos e relações. estrutural, Ferdinand Saussure, um dos pioneiros, assegura que o
Especificamente, no campo
da linguagem, estruturalismo objeto da linguística é a análise do signo que é arbitrário, isto é, a
é a tentativa de descobrir
atrás das aparências, além relação entre significante e significado. Para ele, “o signo linguístico
da organização aparente do
objeto, estruturas inteligíveis é uma entidade psíquica de duas faces: uma imagem acústica
que expliquem certo
funcionamento, e isso num (significante) de um conceito (significado). Esquematicamente:
campo que se relaciona com a
atividade humana, individual
ou coletiva. A referência ao SIGNO = CONCEITO + IMAGEM ACÚSTICA VINCULADA
estruturalismo é a publicação
em 1916 do Curso de
Linguística Geral de Sausurre,
obra póstuma fruto das
anotações de seus alunos.
SIGNIFICADO SIGNIFICANTE

Outra relevante distinção saussuriana, é a seguinte: linguagem é a


soma da língua e da fala; enquanto instrumento tem um lado social.
A língua é o conjunto de regras: fonológicas sons; morfológicas
Imagem acústica, correlato
psíquico do som material formação, estrutura e classificação; sintáticas palavras, orações,
que evoca um conceito.”
(Cleverson e Kleber). período, discurso e semântica evolução e significado e fala é a
parcela concreta , individual, da língua que é posta em ação por um
falante é uma situação real de comunicação.

A teoria de Saussure influenciou o estruturalismo posterior de teor


funcionalista, refletido principalmente em dois movimentos: o Círculo

158 FILOSOFIA
de Praga e o Círculo de Copenhague. Da primeira Escola,
destacam-se Trubetzkoy e Jakobson. O primeiro, distingue fonética
como ciência dos sons da fala de fonologia – ciência dos sons da
língua. Esta última só considera um som que tem determinada
função numa língua. “O fonema é a soma das particularidades
fonológicas pertinentes que uma imagem fônica comporta” e
“os sons concretos que figuram na linguagem são antes simples
símbolos materiais dos fonemas.” O segundo, Jakobson, destacou,
entre suas contribuições, que os signos enquanto elementos
distintivos de uma língua possuem doze oposições binárias. Nove
delas quanto à sonoridade: vocálico/não vocálico, consonantal/
não-consonantal, compacto/difuso, tenso/frouxo, sonoro/surdo,
nasal/oral/descontínuo/contínuo, estridente/doce e brusco/fluente
e três quanto à tonalidade: grave/agudo, rebaixado/sustentado
e incisivo/raso. E ainda: que a comunicação linguística envolve
fatores fundamentais: remetente (emotivo), contexto (referência),
contato (fato), destinatário (conato), código (metalinguagem) e
mensagem (poética). À segunda Escola pertence Hjelmslev, o qual
afirma, basicamente, que a língua é um sistema a partir do qual
se elaboram textos que possibilitam outros. E neste contexto, o
signo é fundamental porque funciona, designa, significa.

O linguista norte-americano Noam Chomsky, por sua vez, critica


tanto o behaviorismo de Bloomfield (para quem o significado
implicaria relação entre estímulo e reação verbal), como o
estruturalismo vigente. Em contrapartida, assegura a tese da
distinção fundamental entre o conhecimento que um indivíduo
tem de uma língua (competência) e o uso ou desempenho
Noam Chomsly (1928)
concreto da mesma (performance). Neste sentido, comenta Fonte: http://www.google.com.br

Weedwood (2002, p. 133): “os falantes usam sua competência


para ir muito além de suas limitações de qualquer corpus, sendo
capazes de criar e reconhecer enunciados inéditos, e de identificar
erros de desempenho.” A competência é vista, com efeito, como
a capacidade psicológica do homem. Portanto, lembra a autora
De fato, a fala de cada pessoa
que, para Chomsky, o estudo da linguagem não deveria se limitar não implica um desempenho
ou nuance particular de
à descrição da competência. expressão, no interior de sua
própria língua?

ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA | UNIDADE 4 159


Consideremos, agora, uma outra relevante perspectiva de abordagem
que adveio com o Pragmatismo e seu paradigma Semântico. Neste
vertente, a semiótica de Peirce acentua as referências sígnicas. Um
signo é um símbolo se aquilo que ele apresenta lhe é convencionalmente
Pragmatismo - Amengaud,
sublinha duas definições de associado. Um signo é um índice quando a(s) ocorrência(s), liga(m)-se
Pragmática: Charles Morris
que afirma que é a parte da àquilo que ele é índice (fumaça-fogo; sintoma-doença) e o signo é ícone
semiótica que trata da relação
entre signos e os usuários dos
quando em parte remonta-se àquilo de que é signo (signo icônico das
signos.” E Anne-Marie Diller
e François Récanati dizem
maquetes dos arquitetos, as fotografias), por isso é um tipo “degenerado”.
que ela “estuda a utilização
da linguagem no discurso
e as marcas específicas
Frege, em sua teoria da significação, atribui à semântica, duplo sentido:
que, na língua, atestam denotação e sentido. Todo nome designa algo e possui um sentido. Para
sua vocação discursiva.” A
pragmática, neste sentido, ele, observa Manfredo, a linguagem possui três dimensões: signativa
frisa a relevância do signo
linguístico no seus aspectos (sinais linguísticos), objetiva (objeto designado) e significativa (sentido).
semântico – enquanto relação
entre signos, palavras e Frege introduz, assim, a capital distinção entre sentido e referência. “A
frases e sintático – estudo das
relações entre signos entre referência é o próprio objeto de que se fala por meio de uma expressão
si, das palavras nas frases ou
das frases nas sequências de linguística. A referência é algo extralinguístico. É nada menos que o
frases (ARMENGAUD, 2006,
p. 11-12). mundo exterior, ao qual, em última instância, concerne a linguagem.
(ARMENGAUD, 2006, p. 33).” O clássico exemplo, “estrela da manhã”
Semiótica - De acordo com
Lúcia Santaella (PUC-SP), e “estrela da tarde” tem a mesma referência – Vênus, porém, tem
Semiótica vem do termo grego
semeion, que literalmente sentidos diferentes. “Para Frege, o pensamento que a frase expressa é
significa signo. Semiótica
é ciência dos signos. “A o que se modifica. ‘A Estrela da Tarde é Vênus’, é um enunciado que
Semiótica é ciência que tem
por objeto a investigação de expressa uma ideia que é diferente daquela mostrada pelo enunciado ‘A
todas as línguas possíveis
[...], o exame dos modos estrela da Manhã é Vênus’.” (JÚNIOR, 2008, p. 91). Entretanto, Russel
de constituição de todo e
qualquer fenômeno como
desconsidera a distinção fregueana entre sentido e referência. Para ele
fenômeno de produção, de
significação e de sentido.”
as descrições que não possuem referências são símbolos incompletos.
(SANTAELLA, 1994, p. 13.) Russel ensinava que “a forma lógica da proposição se mostraria como
é o fato, sem que se ficasse perdido e embaraçado nos problemas
gramaticais dos enunciados, exatamente aqueles que gerariam
problemas filosóficos.” (JÚNIOR, 2008, p. 93).

Rudolf Carnap é outro importante semanticista, pertencente ao Círculo


de Viena. Assumindo o paradigma comum nesta corrente, admitia a ideia
de que a reabilitação da filosofia consistia em torná-la rigorosamente
atividade científica, rechaçando, com efeito, a metafísica que, para ele,
não conduzia a nenhum conhecimento verdadeiro. Daí a articulação
de uma linguagem artificial capaz de suprir qualquer falta de sentido, o
que ele a designou de sintaxe lógica. Por outro lado, Manfredo Oliveira
(1996, p. 84), ressalta que, para Carnap:

160 FILOSOFIA
[...] uma semântica se apresenta quando as regras
sintáticas são completadas por regras de designação
que especificam as coisas à quais as expressões
linguísticas se relacionam e as regras de linguagem
explicitam as condições de verdade. Além disso, para
Carnap numa frase a intensão é a proposição e a
extensão é o objeto designado.

Convém ainda mencionar o Wittgenstein do Tratactus Lógico


Philosophicus, onde o autor assegura que os pensamentos não são
processos mentais, mas sentenças e proposições projetadas no
mundo real. Assim, “o pensamento poderia ser totalmente expresso
em linguagem, e então a tarefa da filosofia seria a de estabelecer os
limites das expressões linguísticas do pensamento.” (JÚNIOR, 2008, p.
97). Nesta dimensão, preocupado com os problemas da relação entre
linguagem e mundo, ele desenvolveu sua teoria do significado que
a denominou “teoria da figuração”, cuja tese básica é resumida por
Ghiraldelli (2008, p. 101), da seguinte forma:

[...] a linguagem consiste de proposições que figuram


ou representam o mundo. As proposições expressam
pensamentos, e estes nada são senão quadros (figuras)
lógicos dos fatos. As proposições e pensamentos
espelham o mundo na medida em que compartilham
algo em comum, que uma ‘forma lógica.

A chamada Reviravolta Pragmática do século vinte, de acordo com


Manfredo descortina um novo horizonte e uma imagem da linguagem
a partir do problema do critério do sentido. Inês Lacerda observa o
seguinte sobre a pragmática:

Considerada como inabordável tanto científica como


epistemologicamente pelos linguistas mais ‘puristas’,
- aqueles cujos métodos se tornaram prática corrente
tanto para a sintaxe, cujo limite é a frase gramaticalmente
bem construída, como para a semântica, cujo limite é
uma leitura da sentença que a traduz em termos de
verdade enquanto função exclusiva dos componentes
frasais - , a pragmática teve que fundar e explorar
seu próprio território. [...] A virada pragmática traz
como novidade o fator hermenêutico (interpretação e
leitura em situação), sem o qual os papéis tão óbvios
e enaltecidos do contexto e do falante ficam soltos,
vagos, são chamados para resolver todas as questões
e, com isso, perdem em força explicativa (LACERDA,
2004, p. 202-203).

antropologia filosófica | unidade 4 161


Certamente, esta versão do pragmatismo ou neopragmatismo tem uma
referência primordial no segundo Wittgenstein, o das Investigações
Filosóficas, cujo propósito único, sublinha Inês Araújo (2004, p. 105),
é “mostrar que a linguagem deve ser vista com um comportamento,
A propósito, Guiraldelli
exemplifica que a palavra como uma forma de vida, que falar é uma entre as formas possíveis
“dor” não depende de
uma definição solitária da de agir sobre o meio.” Ora, a linguagem enquanto ferramenta pública,
sensação, mas integra-se,
essencialmente, num jogo de
é um jogo que implica uma variedade de usos: prometer, ordenar,
linguagem comunitário.
descrever, sugerir, ironizar etc., numa palavra, “formas de vida.” A
propósito deste jogo linguístico em Wittgenstein, Guiraldelli Júnior
(2008, p. 106) frisa o seguinte: “Para se nomear algo não bastaria
confrontar esse algo com a emissão de um som, porque solicitar e dar
nomes são atividades que só podem se realizar no contexto de um
jogo de linguagem.”

Ademais, dado que os jogos ou usos linguísticos são públicos e não


podem ser amarrados num fio único, Wittgenstein ataca o que seria
uma “linguagem privada.” A língua não se restringe a um conjunto
de regras da mente de um falante. Com efeito, a conclusão é clara:
“não pode haver uma linguagem cujas palavras se refiram àquilo que
só pode ser conhecido pelo falante da linguagem.” (JÚNIOR, 2008,
p. 106).

Tal como este argumento wittgensteiniano, Willard V. O. Quine,


situando-se entre a analítica e o pragmatismo, com sua tese da
indeterminabilidade do significado, entende “a linguagem como
interação social que pressupõe um grupo organizado em que
os falantes adquirem seus hábitos linguísticos. Desse modo, o
significado não é uma entidade psíquica. É, sim, uma propriedade
do comportamento – do comportamento social linguístico, social.”
(JÚNIOR, 2008, p. 107). Para Quine, não se deve admitir as
traduções na perspectiva de correlações de termos, como se se
constatasse o significado universal dos termos na mente humana
capaz de mediar a linguagem, aceitando-se, com efeito, a ideia de
“semânticas acríticas”.

A fluidez histórica das articulações teóricas da pragmática atingiram


um estágio diferenciado com teria dos atos de fala, cujo primórdio é
a seguinte convicção: “a unidade mínima de comunicação humana
não é nem a frase nem qualquer outra expressão. É a realização

162 FILOSOFIA
(performance) de alguns tipos de ato.” (ARMENGAUD, 2006, p.99).
O pioneiro dessa concepção é o filósofo de Oxford, John Langshaw
Austin.

Compreendamos que, partindo do princípio de que a teoria dos atos De fato, a obra capital de
Austin sobre o assunto tem o
de fala é um estudo sistemático entre os signos e seus intérpretes, apropriado título: “Quando
Dizer é Fazer”.
Austin distingue os enunciados constatativos (os de pura constatação)
dos performativos (dos inglês to perform) que a rigor executam uma
ação. Neste caso, uma fala implica alguma ação: afirmar, perguntar,
ordenar, prometer, descrever, felicitar, sugerir, culpar-se, suplicar,
desafiar, autorizar etc. É por isso que Manfredo (1996, p. 157), ressalta
que, para Austin, cada ato de fala é uma realidade complexa e, por
isso, “para tentarmos captar a ação linguística em sua totalidade,
faz-se necessário, em primeiro lugar, tentar analisar suas diferentes
dimensões.”

Austin distingue, então, os atos de fala em: locucionários – “totalidade


da ação linguística em todas as suas dimensões, [...] cada procedimento
linguístico é, pois, um tipo de ação humana, isto é, um ato locucionário.”
(OLIVEIRA, 1996, p. 157). Quem diz: “este cachorro é perigoso”,
diz algo analisável foneticamente; exprime uma frase num idioma
particular (comunidade linguística) e afirma algo sobre um animal.
Ilocucionários quando a fala implica ação, “é aquele que se executa
na medida em que se diz algo. [...]. Trata-se da determinação não
do significado, mas do papel exercido pela expressão na linguagem.”
(OLIVEIRA, 1996, p. 159). Quem disse: “este cachorro é perigoso”,
quis informar? Fazer um juízo? Advertir? Perlocucionários quando
expressões provocam sentimentos, pensamentos e ações de outras
pessoas. Quem disse “este cachorro é perigoso” teve a intenção de
afastar as pessoas do animal. Mas também ficar convencido, irritado,
intimidado, emocionado etc. são também efeitos perlocionários.
Poderíamos dizer que nossa
Enfim, convém destacar que em sua teoria dos atos de fala e, formação institucional
ocidental (família, igreja,
chamando atenção, particularmente, para os atos ilocucionários, escola), nossa vivência social
(Estado, Justiça, Entidades,
Austin destaca cinco categorias e seus respectivos verbos: veriditivos Igreja) e as nossas relações
sociais, teriam uma prática
– pronunciam veredictos oficiais e não-oficiais (avaliar, estimar); exaustiva de verbos de
comando e obediência,
exercitivos – proferem decisões favoráveis ou não (ordenar, suplicar, refletindo, com efeito, uma
aconselhar); compromissivos – comprometem o falante com uma ação tradição de moralismos
e poderes do centro às
(aderir, prometer, jurar); expositivos – explanam concepções (afirmar, terminações sociais, como diz
Michel Foucault?

antropologia filosófica | unidade 4 163


objetar, aceitar) e comportativos – incluem reações/atitudes antes os
outros (aplaudir, contestar).

Filiado também a essa teoria dos atos de fala, o filósofo norte-americano


John Searle, ressalta Manfredo (1996, p. 172), entende que uma
filosofia da linguagem “pretende chegar a descrições esclarecedoras
de determinadas características universais da linguagem, como por
exemplo: referência, verdade, significação etc.” Por isso, ele também
é um autor situado nesta área da pragmática voltada para os atos
de fala. De fato, Searle (2000, p. 127), afirma: “[...] sempre que eu
emitir uma dessas rajadas acústicas em situação de linguagem normal,
pode-se dizer que realizei um ato de fala. [...]. Faço uma afirmação,
uma pergunta, dou uma ordem ou faço um pedido, explico algum
problema científico ou prevejo um evento.” Assim, Manfredo (1996, p.
173) frisa que para Searle, “aprender uma língua e dominá-la significa
aprender a dominar as regras desse tipo de comportamento.” Com
efeito, a linguagem é um comportamento intencional regrado.

Embora reconheça a relevância do estudo de Austin, Searle (1995, p.


18) destaca certos limites na teoria desse autor, na seguinte crítica:

A taxionomia de Austin depara-se como (no


mínimo) seis dificuldades inter-relacionadas; em
ordem crescente de importância: há uma confusão
constante entre verbos e atos, nem todos os verbos
são verbos ilocucionários, há sobreposição demais
entre as categorias, muitos dos verbos catalogados
nas categorias não satisfazem a definição dada para a
categoria, e, o que é mais importante, não há princípio
consistente de classificação.

Searle propõe então a seguinte taxionomia alternativa: assertivos –


comprometem o falante com a proposição expressa (reclamar, concluir,
deduzir); diretivos – induzir o ouvinte a fazer algo (pedir, permitir,
desafiar); compromissivos – Searle assume a definição austiniana;
expressivos – expressam situação psicológica de sinceridade (agradecer,
condoer) e declarativos – exitosa correspondência proposições-
realidade (palavra-mundo).

As perspectivas abertas desde Wittgenstein II até Searle, como


se percebe, impuseram à Pragmática como telos principal, os
entendimentos subjetivos.

164 FILOSOFIA
Ora, este paradigma contraiu atualmente maior notabilidade e,
consequentemente, amplos debates por conta de Habermas, o
herdeiro vivo da Escola de Frankfurt. Ele redimensiona a linguagem,
sobretudo teoria dos atos de fala no sentido da Pragmática Universal.
Realmente a guinada pragmática habermasiana situa-se num
programa que reconfigura, inclusive, o conceito de racionalidade. No
princípio da década de 80, Habermas (1987, p. 16) já assinalava que
por “racionalidade antes de tudo, a disposição de sujeitos capazes de
falar e agir para adquirir e aplicar um saber falível.” Recentemente ele
o ratifica da seguinte forma: Uma pessoa se exprime racionalmente
na medida em que se orienta performativamente por pretensões de
validade...” ( HABERMAS, 2004a, p. 102).

Entretanto, a partir de sua compreensão de Pragmática, Habermas


ressalva que as teorias da semântica formal (Frege, Russel, Wittgenstein
I e Carnap), do significado (Wittgenstein II e Quine) e dos atos de
fala (Austin e Searle) à medida que se embasam no empirismo e
priorizam as estruturas lógicas da linguagem, localizam-se numa
tradição analítica que “se interessam antes de tudo pela função
representativa da linguagem e pela estrutura propositiva de sentenças
afirmativas simples, enfocando assim a relação entre a sentença e o
fato.” (HABERMAS, 2004b, p. 51-52).

Observe esta afirmação de Habermas: muito mais do que traduzir


o mundo, a linguagem tem uma vocação intersubjetiva. E é neste
sentido que ele situa conceito e função Pragmática Universal: [...]
pleiteia a pretensão de reconstruir a capacidade dos falantes de insertar Flávio Beno Siebeneichler (um
dos tradutores de Habermas
de tal sorte orações em referência a realidade, que essas orações no Brasil), explica que com
a Pragmática Universal,
podem assumir as funções pragmáticas de exposição, autoexposição Habermas pretende “reconstruir
sistematicamente as estruturas
e estabelecimento de relações interpessoais (HABERMAS, 1989, p. presentes em toda e qualquer
332). De modo mais explícito ele argumenta que quando um falante situação de fala possível...”
(SIEBENEICHLER, 1989, p.
pela pretensão de validez aduz razões em prol da validade do ato 90). Ou seja, a Pragmática trata
de expressões específicas que
de fala, “o ouvinte que reconhece as condições de aceitabilidade e situam os falantes em realidades
igualmente específicas de fala.
compreende o que é dito, é desafiado a tomar uma posição, baseado Assim, ordenar, pedir, concordar,
reagir, indagar, negar, afirmar
em motivos racionais..” (HABERMAS, 1990, p. 82). etc. situam-se em interlocuções
específicas.

Então, é assim na possibilidade do entendimento universal, que


Habermas acentua pelo menos quatro pretensões básicas de validez
incluídas nos atos de fala: compreensibilidade (mensagem), verdade

antropologia filosófica | unidade 4 165


(conteúdo), correção e justeza (conteúdo normativo) e sinceridade
(subjetividade/expressividade). O local privilegiado de exercício,
legitimidade e aferição dessas pretensões, é exatamente o discurso ao
qual Habermas (1997, p. 42) dá a seguinte definição:

‘Discurso racional’ é toda tentativa de entendimento


sobre pretensões de validade problemáticas, na
medida em que ele se realiza sob condições de
comunicação que permite o movimento livre de
temas e contribuições, informações e argumentos no
interior de um espaço público constituído através de
obrigações ilocucionárias.

Compreendamos então que, para Habermas, o discurso se


constitui, assim, na teoria habermasiana, o espaço legítimo onde
a linguagem sob a égide da liberdade e da democracia envolve
os sujeitos e seus processos discursivos. É neste campo que se
pode operacionalizar os consensos racionais e, ao mesmo tempo,
detectar os pseudo-consensos. Para tanto, Habermas propõe o que
ele chamou de situação de fala ideal, onde “as comunicações não
somente não vêm impedidas por influxos externos e contingentes,
senão tampouco pelas coações que se seguem da própria estrutura
da comunicação. A situação de fala ideal exclui as distorções
sistemáticas de comunicação.” (HABERMAS, 1979, p. 153). Embora
contrafáticas, por isso ideais, seus quatro postulados são: igualdade
comunicativa; igualdade de fala; igualdade de expressão subjetiva;
e igualdade de correções regulativas.

Podemos encerrar este tópico sobre a linguagem reforçando


que com Habermas, à luz da sua racionalidade comunicativa o
paradigma da linguagem traduzido numa Pragmática Universal em
que se elege o discurso e neste, precisamente, as condições ideais
de fala, constituiu-se, efetivamente, uma possibilidade legítima,
científica e politicamente correta de propor, analisar, avaliar, criticar
e reconstruir questões que envolvam os diversos mundos. Desta
forma, portanto, não há como negar que a linguagem cumpre
sua magnânima natureza de comunicabilidade e, principalmente,
suportar a atuação do homem no processo emancipatório da
civilização.

166 FILOSOFIA
A Cultura

A cultura é como uma lente através da qual o homem vê o mundo.

(Ruth Benedict)

Diante desta epígrafe, a princípio, podemos levantar algumas questões:

a) Poderia ter existido por acaso algum povo desprovido da lente


dessa cultura pela qual enxerga-se o mundo?

b) Um tipo de lente (pense numa orientação ideológica) pela qual


determinado povo interpreta o mundo, não poderia gerar exata-
mente uma visão distorcida do mundo?

c) No mundo hodierno, chamado pós-moderno, que categorias ou ti-


pos de lentes fornecem ou alimentam, sobretudo ideologicamente,
nossa compreensão de mundo?

A rigor compreendamos que todo homem nasce numa estrutura


complexa de formas, práticas, linguagens, simbologias e instituições;
numa palavra: num ethos específico. Ora, a essa herança do recém- Quando escreviam com E
(Ethos) os gregos diziam
nascido dá-se nome de cultura. E neste sentido, é procedente o que literalmente “costume”.

Ullmann (1990; p.85), afirma:

As gerações humanas surgentes são plasmadas e


moldadas pelas gerações que as antecederam ou
com elas convivem. [...]. Assim, forma-se um elo de
continuidade, não invariável e rígido, mas mutável, de
acordo com as circunstâncias do momento histórico,
dentro do princípio já aludido, de que o homem
aprende a viver e pode aprender a viver melhor.

Na verdade, como afirma o antropólogo brasileiro, José Luís, o


desenvolvimento da humanidade é demarcado por contatos e conflitos
impregnados nas diferentes maneiras de constituir a socialidade, de
apoderar-se dos recursos da natureza e transformá-los em prol da
manutenção da vida e de compreender e traduzir de alguma forma a
realidade circundante. “A cultura diz respeito à humanidade como um
todo e ao mesmo tempo a cada um dos povos, nações e sociedades e

antropologia filosófica | unidade 4 167


grupos humanos.” (SANTOS, 1984, p. 8). E é neste sentido, que estudos
sobre a cultura devem ajudar a compreender o complexo universo da
cultura e, com efeito, a combater os preconceitos e, ao mesmo tempo,
estabelecer uma orientação para respeito e dignidade das relações
humanas. Evitando, assim, comportamentos etnocêntricos e daí as
Etnocentrismo, para o
antropólogo Everardo Rocha,
xenofobias.
“é uma visão do mundo
onde nosso próprio grupo
é tomado como centro de
tudo e de todos os outros são
pensados e sentidos através
dos nossos valores, nossos
modelos, nossas definições do
Conceitualizações
que é existência.” (ROCHA,
Everardo, P. G. O que é
Etnocentrismo. 5ª ed. São
Paulo: Brasiliense, 1984).
Enquanto realidade complexa, a cultura pode ser sublinhada por
diversos conceitos.

Mércio Gomes observa que em 1950 Alfred Kroeber catalogou


Preconceitos, desrespeitos,
conflitos, violências, guerras, mais de 250 definições de cultura.
não são geradas justamente
de pensamentos e atitudes
etnocêntricas?

Edward Tylor por volta de 1871 teria elaborado o primeiro conceito


científico de Culture - cultura, compreendendo-a “como complexo
que inclui conhecimento, fé, arte, moral, lei, costume e outras
Xenofobia – aversão a
capacidades e hábitos, adquiridos pelo homem enquanto membro
coisas e pessoas estrangeiras”
(Dicionário Ilustrado Barsa),
duma sociedade.” (RABUSKE, 2001, p. 46).
portanto, ao que é diferente
do meu grupo da minha
sociedade, da minha cultura.
Régis de Morais (1992, p. 23) destaca que para Herskovits, “a cultura
é a parte do ambiente feito. Vele dizer, tudo, absolutamente tudo que
Culture - Roque Laraia frisa
que “no final do século XVIII em nosso mundo nasceu da inteligência, da intencionalidade e da
[...] o termo germânico Kultur
era utilizado para simbolizar habilidade do ser humano se objetiva em algo que é cultura.”
todos os aspectos espirituais
de uma comunidade,
enquanto a palavra francesa Jean Ladrière, por sua vez, admitindo à luz da antropologia cultural a
Civilzation referia-se
principalmente às realizações cultura como conjunto de instituições funcionais e normativas que, por
materiais de um povo. Ambos
os termos foram sintetizados conseguinte, impõem modelos de personalidade e esquemas de vida,
por Edward Tylor (1832-
1917) no vocábulo Culture.” afirma precisamente, o seguinte:
(LARAIA, 1992, p. 25).

A cultura, desse ponto de vista, não é outra coisa


senão a sociedade mesma, tomada em sua realidade
objetiva, enquanto impõe aos indivíduos que dela
fazem parte certo estilo de existência. [...] como a

168 FILOSOFIA
ciência e a tecnologia, e os valores que encerram,
podem situar-se, em definitivo, em relação aos
sistemas culturais? [...]. Por um lado, deve permitir ao
ser humano encontrar-se no mundo e interpretar-se
a si mesmo como ser humano. [...]. Por outro, dever
permitir-lhe orientar-se tanto em sua vida individual
quanto em sua vida coletiva, congregar suas atividades
numa visada unificadora capaz de conferir um sentido
aceitável em seus empreendimentos (LADRIÈRE,
1979, p. 77 e 2002).

Este sentido de cultura como construção sintoniza-se com aquele


proposto pelo antropólogo brasileiro Mércio Gomes (2009, p. 36): a
“cultura é o modo próprio do ser humano em coletividade, que se
realiza em parte consciente, em parte inconsciente, constituindo um
sistema mais ou menos coerente de pensar, agir, fazer, relacionar-se,
posicionar-se perante o Absoluto, e enfim, reproduzir-se.”

Ademais, conforme José Luís dos Santos, duas concepções de cultura


devem ser consideradas. A primeira compreende cultura como tudo
que caracteriza a existência social de um povo ou ainda grupos dentro
de uma sociedade. Quando falamos de cultura chinesa ou cultura
guajajara estamos nesse conceito. A segunda refere-se às ideias, às
crenças e ao conhecimento bem como às formas de existência social.
Neste caso, ao falarmos da cultura guajajara, estamos falando da
língua, da política, das relações de gênero, da religião, das festas,
das táticas de caça etc. Enfim, de aspectos que compõem o nível de
conhecimento desse povo indígena.

Ora, quando ajuizamos a cultura alheia a partir dos paradigmas da


nossa, tendemos a considerar exótico o que nos é diferente e partir
disso, num eventual encontro de culturas, achamos que o outro
precisa adequar-se ao nosso sistema cultural - aculturar-se, porque nos
julgamos superiores. Este fenômeno antropológico inadmissível, como
já vimos, é a típica postura etnocêntrica, isto é, “julgar a cultura do
‘outro’ nos termos da cultura do grupo do ‘eu’” (ROCHA, 1984, p. 13).

A partir dessas ideias, nós agora podemos admitir as orientações de


Rabuske, sobre alguns caracteres gerais inerentes à cultura:

a) Todos os homens tiveram e têm cultura. Nenhum povo pode ser


considerado desprovido de cultura;

antropologia filosófica | unidade 4 169


b) A cultura é produção e produto. É atividade de cultivar e o resultado
desta atividade;

c) O sujeito da cultura é o homem, mas também é objeto. A rigor,


entenda-se sujeito como o universo dos membros de uma
sociedade;

d) A cultura é uma estrutura. Há uma diversidade de segmentos


culturais que não podem ser menosprezados;

e) A cultura é teleológica. Conforme diferentes perspectivas a cultura


tem diferentes finalidades

f) A cultura é plural. Há tantas culturas tanto quanto são os povos.

Natureza e Cultura

Régis de Morais (1992, p. 29) acentua a seguinte ideia de natureza do


pensador russo V. Mezhúiev: “natureza é tudo que surgiu e existe por si
mesmo, por via natural, independentemente da vontade e dos desejos
dos homens; cultura é aquilo que foi criado, elaborado e aperfeiçoado
pelo homem, acomodado a ele por suas necessidades e exigências.”

De inspiração marxista, este pensador realça que a cultura se diferencia


da natureza, porém, simultaneamente, a pressupõe, de modo que a
fronteira entre ambas não é absoluta, mas relativa.

De fato, em Marx encontramos a ideia dessa correlação natureza-


cultura através, obviamente, do homem, como bem explicita, a partir
de Marx, o pensador francês Auguste Etcheverry (1975, p. 145), nas
seguintes palavras:

O homem encontra a natureza não só em si próprio,


mas também no exterior. A sua dependência em
relação a ela é radical, no ato de conhecimento e para
a satisfação das suas tendências e necessidades. [...]
Uma análise profunda da práxis revela um diálogo
contínuo entre o homem e a natureza. A natureza
enriquece evidentemente o homem e forma-o;
contudo, o homem, por sua vez, domina a natureza
e transforma-a.

170 FILOSOFIA
Na sua Ideologia Alemã, Marx (1984, p. 15), diz que “[...] os homens se
distinguem dos animais assim que começam a produzir os seus meios
de vida, passo este que é condicionado pela sua organização física.” É
neste sentido, que também Marx afirma que o homem à medida que
humaniza a natureza, humaniza-se também, indicando com isso que
a partir e sobre o mundo natural, o homem ergue o próprio mundo
humano.

Saindo um pouco dessa linha mais próxima de Marx, Rabuske retoma


a relação natureza-cultura, isto é, impulso natural e tendência cultural,
a partir da vida sexual e da nutrição. No primeiro caso, ele toma como
referência a proibição do incesto e afirma que a causa da proibição
não se embasa no pavor de que crianças de pais consanguíneos sejam
defeituosas, porém que a aversão por relações sexuais em tais situações
já reflete internalização de regras ou valores culturais. Do ponto de
vista da alimentação, o autor frisa que a nutrição não se restringe a
uma satisfação simplesmente biológica. Neste sentido, vejamos então
que rituais, proibições, seletividades, hábitos, etiquetas, gastronomias,
culinárias particulares e sofisticadas etc. em torno do alimento
demonstram bem que “a cozinha é um lugar de manifestação da
passagem da natureza à cultura.” (RABUSKE, 2001, p. 52). Ademais,
o autor cita oportunamente as palavras de Levi-Strauss, as quais
concluem bem esta parte: “Todas as tentativas que empreendemos para
reduzir explicativamente fenômenos culturais a fenômenos naturais de
modo causal ou mecânico, se mostraram como más soluções, que não
levaram avante a Etnologia.” (RABUSKE, 2001, p. 53).

Batistta Mondin observa que as relações entre natureza e cultura


foram interpretadas em algumas épocas em termos de exclusões
recíprocas. Nos períodos clássico, medieval, renascentista e romântico,
considerava-se a natureza como centro e a cultura como sua extensão
mediada pelo homem. Inversamente, o racionalismo posterior passa a
considerar natureza como campo caótico ou confuso de possibilidades,
a partir do qual o homem opera autonomamente para artificializar a
cultura.

Podemos admitir estas perspectivas unilaterais? Não parece coerente


admiti-las. Aliás, Rabuske afirma que a superação desta unilateralização
possível entre natureza e cultura parece, efetivamente, mais razoável.

antropologia filosófica | unidade 4 171


Em semelhante conclusão, convergem os autores Morais e Mondin.
Para o primeiro, “ao mesmo tempo em que há uma visível separação
entre o mundo da natureza e o da cultura, há uma tal interdependência
entre ambos que acaba por evidenciar sua unidade essencial.”
(MORAIS, 1992, p. 31). Por sua vez, Mondin (1980, p. 172), ressalta
que “hoje prevalece a tendência de interpretar as relações entre cultura
e natureza como uma espécie de diálogo, o qual comporta um recíproco
dar e receber: por meio da cultura o homem humaniza a natureza; e
vice-versa: mediante os seus recursos, o mundo naturaliza o homem.”

Cultura e Sociedade

Você sabe que a sociedade, obviamente, diz respeito a um conjunto


de indivíduos que vivem em grupos e em geral partilham de situações
comuns de existência. Estas situações se representam como instituições
e categorias sociais. Família, local de vivência – zona rural ou urbana,
trabalho, educação, etc. – são exemplos evidentes de que as atitudes
dos indivíduos são influenciadas pelas expectativas que se tem em
relação a eles conforme se integrem nelas. Ora, quando se fala em
visões de mundo e atitudes, já se fala de cultura, porque esta é o
espelho do modo de ser partilhado por seus membros. A cultura é
assim uma dimensão da sociedade, diz Mércio Gomes.

Este autor ressalva que na grande maioria das sociedades hodiernas


a participação dos indivíduos nos bens materiais e simbólicos não é
equitativa, logo tem-se uma situação óbvia de desigualdade social,
evidenciando no mundo capitalista, principalmente, a categoria
classe social que, por sua vez, sobrepõe-se instituições e dimensões
sociais. Com efeito, um dos caracteres básicos das classes sociais é
o conflito, este motivado pela diversidade de participação qualitativa
dos indivíduos, definida, por sua vez, conforme nível ou situações
econômicas.

A cultura, na verdade, observa Gomes, é um modo de ser da sociedade


e que uma de suas funções é estabelecer a coesão ao que está dividido.
Especificamente, numa sociedade de classes desiguais, apesar do

172 FILOSOFIA
desequilíbrio haveria uma cultura com força agregadora, que favoreça,
dessa forma, uma identidade comum.

Conclui, então, o autor: “A cultura seria uma vivência que mantém


o todo, que produz a unidade daquilo que é desigual. Seria uma
categoria de conservação.” (GOMES, 2009, p. 46).

Cultura como bem de produção e bem de consumo

Para começarmos nossas reflexões sobre este tópico, façamos


inicialmente a seguinte questão: as expressões culturais humanas só
são compreendidas no interior da estrutura socioeconômica, ou ao
contrário, a cultura independe da conjuntura econômica?

O cientista social brasileiro Álvaro Vieira Pinto, à luz de uma leitura de


inspiração notadamente marxista teoriza a cultura sob a compreensão
de que esta é simultaneamente produzida e consumida pelo homem,
no interior da conjuntura socioeconômica capitalista, demarcada, por
natureza, pela divisão de classes. Portanto, seu conceito de cultura
sendo essencialmente realista é levar em conta a inserção conjuntural
e, consequentemente, os limites da conceitualização.

Vamos tomar doravante como referência para o conceito de cultura o


que escreve Vieira Pinto, em sua importante obra, Ciência e Existência
de 1979.

Ele começa dizendo que a cultura é uma criação humana, decorrente Hominização é um termo de
cunho antropológico para
da complexidade das operações que ascendentemente este animal designar, de modo geral, o
processo de evolução humana
precisa desenvolver para assegurar a própria existência. Deste modo, em todas dimensões.
a cultura está intimamente vinculada ao processo de hominização,
no sentido de que a partir do contato inventivo com o mundo natural
o homem processualmente vai inserindo contornos mais definidos de
seu pensamento, consequentemente, destacando o mundo cultural do
mundo natural.

antropologia filosófica | unidade 4 173


Vieira Pinto (1979, p. 123), neste sentido, afirma:

Desde os primórdios a cultura tem esses dois


componentes: os instrumentos artificiais, fabricados
para prolongar e reforçar a ação dos instrumentos
orgânicos de que o corpo é dotado a fim de opor-se
à hostilidade do meio; e as ideias que correspondem
à preparação intencional, sempre social, e à antevisão
dos resultados de tal ação.

Neste contexto de relação produtiva do homem sobre o mundo natural,


a cultura na dupla situação bem de consumo e bem de produção,
como bem explica o autor nestes termos:

[...] bem de consumo enquanto resultado,


simultaneamente materializado em coisas e artefatos
e subjetivado em ideias gerais, da ação produtiva
eficaz do homem na natureza; e de bem de produção
no sentido em que a capacidade, crescentemente
adquirida, de subjugação da realidade pelas ideias
que a representam, constitui a origem de nova
capacidade humana, a de realizar em prospecção
os possíveis efeitos de atos a realizar, de conceber
novos instrumentos e novas técnicas de exploração do
mundo, e criar ideias que significam finalidades para
as ações a empreender (PINTO, 1979, p. 124).

O conceito de massa para o


filósofo espanhol Ortega y Entretanto, em sociedades desiguais estes dois bens são, por
Gasset é o seguinte: “A massa
é o conjunto de pessoas não conseguinte, desequilibradamente distribuídos, de maneira tal que
especialmente qualificadas.
[...] é o monstrengo social, é apenas uma parte minoritária enquanto detentora dos bens culturais,
o homem enquanto não se
diferencia de outros homens, formando assim a classe dos privilegiados – os “cultos”, enquanto as
mas que repete em si um tipo
genérico. [...] é todo aquele massas que somente manejam os bens de produção e só raramente
que não se valoriza a si
mesmo – no bem ou no mal – consomem os bens de consumo, por isso adquirem, ideologicamente,
por razões especiais, mais que
se sente ‘como todo mundo’, a aparência de parte “inculta” da sociedade.
e, entretanto, não se angustia,
sente-se a vontade ao sentir-
se idêntico aos demais.” Ora, quando se toma o conceito de cultura exclusivamente como
(GASSET, 1971, p. 51-2).
complexo de conhecimentos científicos, criações artísticas, operações
técnicas, enfim, como infinitas produções da inteligência humana,
descuida-se intencionalmente ou não do paradigma da lógica dialética,
pela qual se pode apreender a cultura fundamento-a no processo de
produção. De fato, diz Vieira Pinto (1979, p 126): “o homem produz a
cultura por uma necessidade existencial, para se apropriar dela, pois é
por meio dela que chega a postular as finalidades da sua ação.”

174 FILOSOFIA
Num trecho seguinte de forma eloquente o autor explica a dialética em
que se entrelaçam homem, produção, cultura e alienação.

Quando dizemos que o homem é um bem de


produção queremos entender com isso que deve ser
um bem de produção de si mesmo, para si mesmo,
ou seja, que sua ação sobre a realidade deve ser
utilizada apenas em benefício de cada homem, para
torná-lo mais humanizado na sua compreensão de
mundo e nas relações com seus semelhantes. Se,
porém, como de fato acontecerá, o homem se torna
um bem de produção não para si exclusivamente, mas
para o outro, e portanto se converte em instrumento
de utilização alheia, desaparece a dignidade que
o caracterizava como produtor de si mesmo pela
mediação da cultura que fora criando e acumulando,
e se estabelece um regime de convivência injusto e
desumano.” (PINTO, 1979, p. 126).

Como se percebe, a cultura não se explica em termos idealistas como


um mundo abstrato de ideias e produções artísticas afluídas de um
espírito especulador e reflexivo. Ao contrário, é a realização do homem
por si mesmo mediante a ação produtiva localizada numa estrutura
social concreta. Realmente a base da separação de classes, em
decorrência da posição do sujeito no sistema de produção de bens,
enraíza-se na dualidade da cultura que em suas formas materiais e
objetivas são ao mesmo tempo bem de consumo e bem de produção.
À medida que o saber aumenta a produção, ocorrem as especializações
na criação e apropriação da cultura, resultando, então, na divisão
social do trabalho. Assim, “o processo de distribuição da cultura [...]
se vê corrompido pela introdução da desigualdade na apropriação
do conhecimento e dos bens materiais dele resultantes entre grupos
sociais, que se destacam, divergem e a seguir se contrapõem uns aos
outros.” (PINTO, 1979, p. 127).

Observemos, então, que neste cenário, como salienta Vieira Pinto, por
um lado verificamos um grupo minoritário e dominante, que apropria-
se da parte ideal de criação cultural, enquanto a imensa maioria se vê
forçada a apenas operacionalizar os produtos materiais da cultura; por
outro, percebemos que o mesmo grupo dominante além de absorver os
produtos de fabricação mas o próprio homem enquanto instrumento
produtivo. Chega-se, portanto, à extrema forma de apropriação
distorcida da cultura.

antropologia filosófica | unidade 4 175


Ora, percebamos que esta distorção reforça uma suposta aura sobre os
homens de “conhecimento puro” porque produzem, por exemplo, as
teorias científicas. Realmente, a classe trabalhadora, nesta compreensão
é considerada incapacitada, porque é privada da capacidade de
conhecer as propriedades dos corpos que manuseiam e de definir a
finalidade das coisas que produz. Este tipo de interpretação conduz a
constatação a seguir:

O trabalho manual [...] fica votado a um plano inferior


de dignidade. Se os produtos que a classe trabalhadora
elabora são consumidos pela outra, torna-se
compreensível que esta valorize soberanamente sua
qualidade de consumidora, depreciando as massas,
que permanecem estigmatizadas pela obrigação de
produzir. A classe superior [...] não se julga ociosa;
muito ao contrário, acredita que se entrega à mais
valiosa de todas as formas de produção, a mental, a
das ideias (PINTO, 1979, p. 131).

Historicamente, observa o autor, o trabalho intelectual sempre


prevaleceu sobre o manual ou prático, pelo menos até a Renascença
(séculos XV e XVI) e a Revolução Industrial (século XVIII), quando
então, embora continuasse a desvalia do trabalho produtor de bens
começou-se a perceber que “não havia outra forma de arrancar da
natureza o segredo de suas forças, para serem postas a serviço dos
grupos sociais poderosos, senão manipulando-a diretamente, tal como
milenarmente o faziam os escravos e os artesãos.” (PINTO, 1979, p.
133).

Não é que se eliminou aquela divisão das categorias de trabalho e no


campo especificamente da cultura sobressaiu-se a chamada “cultura
tecnológica”. De fato, quando os operários, por exigências técnicas
adquirem competências e habilidades para manusear as máquinas
menos ou mais sofisticadas, partem sempre de baixo para cima e
geralmente monitorados pelos guardiões do saber abstrato. Não
obstante, acompanha-se nos tempos modernos o fortalecimento
inovador de uma dialética pela qual passa-se a compreender a cultura
como mediadora de toda realização. Com efeito, nesta perspectiva de
aproximação do pensador teórico e do trabalhador prático, ressalta
Vieira Pinto (1979, p. 134), o seguinte:

176 FILOSOFIA
A cultura é simultaneamente operação inteligente
exercida no mundo material e ideação operatória na
esfera do pensamento.[...]. A cultura é um produto do
existir do homem, resulta de vida concreta do mundo
que habita e das condições, principalmente sociais,
em que é obrigado a passar sua existência.

Destarte, à medida que o homem atua sobre a realidade mediando


as relações entre ele mesmo e o mundo, possibilitando sua existência,
então ele, o homem, encorpa ou realiza sua vocação de artifex, de
construtor. Pela sua práxis, portanto, como diz Lima Vaz, é efetivamente
um fazedor de obras (ergon/opus), sobrepondo-se, em certo sentido,
sobre o mundo natural (physis). Nas sábias palavras de Vieira Pinto
(1979, p.136):

Só o homem na sua atividade construtiva cria cultura,


porque só ele, ao mesmo tempo em que opera sobre
a natureza e obtém produtos do engenho, cria no
pensamento ideias que representarão a realidade, a
ação que pratica, e que por isso podem tornar-se guias
e princípios para a organização dessa atividade.

Enfim, a cultura, enquanto ideia, axiologias, conceitos e teorias


científicas, gera-se a si mesma através de operações práticas, da
descoberta de propriedades fenomênicas e da produção econômica
dos bens indispensáveis para a vida social.

A liberdade: a perspectiva sartreana

Consideremos inicialmente o seguinte trecho da canção “Viagem”


(disco “Vê Luz”) interpretada pelo cantor maranhense Carlinhos Veloz:

Não há nada que me impeça de sempre seguir


Cruzar a estrada não deixar ninguém me confundir
Falando sério eu não me importo como que vão
pensar
Eu sei meu rumo só não sei que dia vou chegar.
[...]
Não me disfarço das vontades que estou afim,
A carne é fraca e eu sou assim;
Por isso eu me perdoo antes de você.
Por que me necessito pra sobreviver.
[...]
Deixa eu viajar....Deixa eu viajar..

antropologia filosófica | unidade 4 177


A poesia da música não estaria de certa forma afinada como esta
expressão célebre de Sartre: o homem é condenado a ser livre [...],
porque uma vez lançado no mundo, é responsável por tudo quanto
fizer?

Pode o homem ser É agora no campo da liberdade que vamos nos permitir pensar e
absolutamente livre ou a
liberdade sem a presença de discutir criticamente o que seja o homem livre. Inicialmente é importante
determinações é impossível?
acentuarmos que o problema da liberdade põe imediatamente duas
perspectivas opostas: há os que não acreditam na possibilidade de
escolha e há que os que a identificam com a ausência de qualquer
constrangimento.

Segundo o biblista P. Grelot (1986; p. 9), o homem real, imerso


no processo histórico, experimenta inevitavelmente três tipos de
dependências. A dependência cósmica “porque estamos imersos no
cosmos e dele dependemos.” Dependência sexual, “porque ninguém
pode escolher entre ser homem e ser mulher, entre nascer e não nascer,
e, no entanto, isso pode condicionar toda nossa experiência concreta”.
Dependência histórica “porque pertencemos ao gênero humano e
somos condicionados pelos que nos precederam e por aqueles com os
quais convivemos.”

Entretanto, tomando como premissa o fato de que a liberdade é


uma condição essencialmente humana tal com aparece à luz da
compreensão de Sartre, não há determinismos a priori incidindo sobre
o homem.

Na Grécia, a eleutéria De fato, o homem livre (eleuteria) para os gregos é o não escravizado,
opunha-se à douléia (servidão
do escravo). Trata-se da que possui o espírito de liberdade. Conforme esta compreensão,
liberdade social e política que
gozava o cidadão ateniense. liberdade significa decisão e ação sem nenhuma determinação causal,
Por exemplo: direitos à palavra
em assembleia, a pedir contas seja externa (ambiente em que se vive), seja interior (motivações
ao magistrado, de ser julgado
por um tribunal sem temer psicológicas ou emotivas). Ser livre é, portanto, ser incausado.
pressões. A rigor, “o ateniense
era livre a vida cotidiana como
bem entendesse, educar seus Não obstante, Ferrater Mora diz que, de modo geral a liberdade pode
filhos [...] trabalhar ou ser
ocioso, viajar, etc.” (MOSSÉ, ser considerada em três sentidos: liberdade natural, entendida como
2004, p. 117).
a “possibilidade de furtar-se (pelo menos parcialmente) a uma ordem
cósmica predeterminada e invariável, a qual se apresenta como uma
‘forçosidade.’” (MORA, 1994, p. 407). Em segundo lugar, na esfera
social ou política a liberdade fundamentalmente como autonomia ou
independência. Claro, fala-se aqui de uma noção de relação muito

178 FILOSOFIA
superficial entre liberdade e política. De passagem, é conveniente notar
que para Hannah Arendt, por exemplo, a razão de ser da política é a
liberdade. As experiências totalitárias a levaram a questionar, porém, se
política e liberdade não se excluiriam: “[...] com as formas de governo
totalitárias [...], surge a questão de saber se política e liberdade são,
de algum modo, conciliáveis, [...] se a liberdade, de certa maneira,
não começa apenas lá onde a política termina...” (ARENDT, 1993, p.
118). Apesar dessa explícita frustração, relembremos que, para ela, a
liberdade e a política condicionam-se simultaneamente. Em terceiro
lugar, Ferrater Mora destaca que a liberdade pode chamar-se pessoal ou
autônoma, neste caso, entretanto, como “independência das pressões
ou coações procedentes da comunidade, quer como sociedade, quer
como Estado.” (MORA, 1994, p. 408).

Neste sentido, do conceito de liberdade do sujeito é que se pretende


acentuar exatamente como Jean-Paul Sartre o propõe no texto “O
Existencialismo é um Humanismo”, de 1946.

A célebre frase sartreana, “o homem está condenado à liberdade”,


significa justamente que o homem não é dado por natureza, mas é o
que se faz no processo da existência.

“[...] quando declaro que a liberdade, através de cada


circunstância concreta, não pode ter outro objetivo
senão o querer-se a si própria, quero dizer que, se
algum homem reconhecer-se que está estabelecendo
valores [...] ele não poderá mais desejar outra coisa
a não ser a liberdade como fundamento de todos os
valores...” (SARTRE, 1978, p. 19).

O homem não efetiva nenhum conceito predeterminado pela


inteligência divina. A liberdade proposta por Sartre exclui a existência
de Deus, pois “não há natureza humana visto que não há Deus para
a conceber. [...]; o homem não é mais que o que ele faz.” (SARTRE,
1978, p. 6). O homem livre apropria-se de sua vida e, por isso, é
responsável pelo que lhe aconteça. Para Sartre, a existência precede
a essência. Ele aparece no mundo e depois é que se define. Como
bem observa Borheim (2007, p. 32), “a liberdade não tem essência,
instaura-se desprovida de qualquer necessidade lógica. [...], pois a
liberdade se explica como fundamento de todas as essências.”

antropologia filosófica | unidade 4 179


Observemos esta afirmação encontrada em Sartre: Nada é dado a priori
ao homem. Logo, não há nenhuma projeção prévia sobre o homem,
como do artífice sobre sua obra. Reagindo aos que o acusavam de
existencialista pessimista, ele responde: “Não existe nenhuma doutrina
mais otimista, tendo em vista que o destino do homem está em suas
próprias mãos, [...]; o existencialismo diz-lhe que a única esperança
está em sua ação e que só o ato permite ao homem viver.” (SARTRE,
1978, p. 15). Assim, mesmo em situações mais adversas possíveis o
homem está ininterruptamente em ação de escolha. É neste sentido,
pois, a condenação à liberdade. [...]. Condenado porque não se criou
a si mesmo, e como, no entanto, é lançado ao mundo, é responsável
por tudo que faz.” (SARTRE, 1978, p. 9).

Ora, sendo a liberdade um fazer-se, Sartre afirma que em sua natureza


é criativa. Nessa atualização da escolha, o homem engaja-se.

Gilles (1975, p. 33), comentando esta afirmação sartreana, diz o


seguinte:

[...] a primeira condição da ação é a liberdade, que


permite à consciência tomar distância face ao mundo
do qual é consciência e face a seu próprio passado,
[...]. E sabemos que o homem é livre porque não é a
não ser presença a-si, e que a liberdade é precisamente
esse nada no cerne da realidade humana, que o obriga
a se fazer, em vez de ser.

De fato, para Sartre, o homem é, sendo projeto de si próprio durante


sua vida no mundo e isso o engaja na responsabilidade. “[...] é em face
dos outros que escolhemos e nos escolhemos a nós.” (SARTRE, 1978,
p. 19). Entretanto, à medida que o homem foge à liberdade, adota
uma conduta de má-fé, que Sartre (1978, p. 19) explica claramente:

Se definimos a situação do homem como uma


escolha livre, [...] quem inventa um determinismo é
um homem de má-fé. [...] A má-fé é evidentemente
uma mentira, porque dissimula a total liberdade do
compromisso. [...] direi também que há má-fé, escolho
declarar certos valores existentes antes de mim...

Mas o homem que assume sua condição de escolha, assume-se


como livre e, consequentemente, tendo que decidir e por isso vive
constantemente um estado de angústia que, para Sartre, não mais

180 FILOSOFIA
significa senão “o homem ligado por um compromisso e que se dá
conta que não é apenas aquele que escolhe ser, mas de que é também
um legislador pronto a escolher, ao mesmo tempo que a si próprio, a
humanidade inteira...” (SARTRE, 1978, p. 7).
Parafraseando Sartre, um
individuo que decida fumar
Para quem imagina que a liberdade como Sartre a prega seja diante de um tanque inflamável
não é livre, mas um insensato
individualista, equivoca-se totalmente. Como ele mesmo frisa, a ou aloprado.

liberdade responsável implica engajamento que reconhece a


consciência do semelhante. Ele é, portanto, enfático quando diz o
seguinte:

Ao querermos a liberdade, descobrimos que ela


depende inteiramente da liberdade dos outros, e que a
liberdade depende da nossa. Sem dúvida, a liberdade Alguém que decida aleatória
e futilmente depredar bens
como definição do homem não depende de outrem, públicos (escolas, praças,
mas uma vez que há ligação de um compromisso, [...] prédios, hospitais, telefones
só posso tomar a minha liberdade como um fim se etc); passar trotes na polícia
tomo igualmente a liberdade dos outros como fim. ou serviços de saúde
(ambulâncias) ou atitudes do
(1978; p. 19) genêro, pode ser considerada
um pessoa livre? Ou antes,
é um permissivo cujas ações
Neste aspecto o conceito satreano aproximaria-se do pensamento de negam o sentido real da
liberdade?
Arendt quando ela escreve em Entre o Passado e o Futuro (1954),
a unidade “Que é Liberdade?” para afirmar que a liberdade só
existe na esfera da política. Sem esta, aquela fica impossibilitada de
se manifestar. Com efeito, há uma inequívoca reciprocidade entre
liberdade e política. “Sem ela [a liberdade], a vida política como tal seria
destituída de significado. A raison d´être da política é a liberdade, e seu
domínio de experiência é a ação”, diz Arendt (2001, p. 192). Assim,
para ela nem o conceito antigo de liberdade como fuga do mundo
(vida contemplativa), nem conceito cristão de livre-arbítrio enquanto
cruel dialética entre equívocos e impotências do coração presentes em
São Paulo e Santo Agostinho expressam, essencialmente, a liberdade.
Porque a liberdade se faz representar pela ação do homem na polis,
realizam-se ao mesmo tempo: “A liberdade como fato demonstrável
e a política coincidem e são correlacionadas uma à outra como dois
lados de uma mesma matéria.” (ARENDT, 2001, p. 195).

Portanto, a liberdade compreendida sob a luz do pensamento sartreano,


e também em Arendt, como acabamos de ver, nos conduz a uma
conclusão clara: o homem é basicamente protagonista de seus projetos
assumidos na perspectiva da humanidade. E mesmo que haja uma

antropologia filosófica | unidade 4 181


prova da existência de Deus, em nada se altera esta sua angustiante
responsabilidade, que apenas em condição de má-fé poderia recusá-
la, entretanto, já não seria um ser condenado à liberdade.

CONCLUSÃO

As reflexões que acabamos de tratar sobre a linguagem, a cultura e


a liberdade intentaram basicamente explicitá-las como dimensões
fundantes da natureza humana.

Ressaltamos com Susanne Langer, que a linguagem é a invenção


mais importante e misteriosa da mente humana. De fato, dos tempos
arcaicos mitológicos aos “pós-modernos” cibernéticos, a linguagem
revela-se como um “médium” entre o homem, o mundo e o tempo. A
fala identifica o homem, disse Rousseau, e é também, para Gusdorf, a
senha para o mundo, que é campo de cultura e espaço de liberdade.

Historicamente o fenômeno da linguagem envolvendo, principalmente,


sua origem, estrutura e funções suscitam importantes teorias e
debates. Já em Platão a encontramos como instrumento designativo
do intelecto; Para Agostinho ela é, sobretudo, um sinal das coisas
e um diálogo interior. Entre Descartes e Hobbes é assumida como
intermediária, portanto, funcional, seja entre o ser e o pensamento ou
entre as relações e contratos sociais. Todavia, a partir do advento da
Linguística – “ciência que estuda a língua com métodos próprios”, com
Ferdinand de Sausurre, behavioristas, estruturalistas, semanticistas,
pragmatistas, entre outras correntes, são travados complexos e
frutuosos debates resultando em mais informações e questões em torno
dos elementos fenomenológicos da linguagem. Especialmente desde
a virada pragmática, autores como Wittgenstein (II), Austin, Searle,
Apel e Habermas, entre outros, tomando-a na perspectiva do discurso,
estimulam os debates. Em Habermas, como frisamos, a discursividade
racional condiciona qualquer proposta emancipatória.

Ora, a linguagem é co-extensiva ao mundo cultural. Este, afirma


Herkovitz, é “a parte do ambiente feito”, ou como diz José Luis Santos,

182 FILOSOFIA
é tanto a existência social como o conhecimento complexo de um
povo. Com efeito, universalidade, estrutura, teleologia e pluralidade
culturais são subconceitos agregados e, portanto, inerentes às culturas;
importantes, inclusive, para precaver ou advertir atitudes etnocêntricas.
Todavia, além dessa compreensão, é importante perceber a cultura
inserida num contexto de relações de produção como nos mostrou
Vieira Pinto, onde podemos apreendê-la em níveis de produção,
distribuição, equalização, fragmentação, hierarquização, alienação no
interior de uma comunidade específica.

A autarquia dos indivíduos no interior de um mundo cultural se exprime


na condição de liberdade. Sartre nos mostrou que não há mundo
a priori, nem qualquer força externa determinante. Cada indivíduo
apropria-se de sua vida assumindo escolhas que incluem os outros
e, por conseguinte, angústias e abandonos. Omitir-se ou subjugar-
se é vergonhosa atitude de má-fé. Ora, um sujeito livre é também
responsável. Enfim, política e liberdade são categorias recíprocas,
aprendemos com Hannah Arendt.

Para Susanne Langer a linguagem é o produto mais


importante da mente humana. A partir desta ideia, realce
o papel decisivo da linguagem para civilização humana.
Antes de responder, veja, se puder, o filme nacional
“Narradores de Javé.”

Em que os pragmatistas diferem dos estruturalistas em


termos de função da linguagem?

Discuta com seus amigos e comente a importância e os


limites da teoria do discurso de Habermas envolvendo
questões locais ou universais. Se possível, aponte alguns
exemplos de êxito ou fracasso do discurso.

antropologia filosófica | unidade 4 183


4 Invertendo a frase de Ruth Benedict, estaria certo dizer
que o mundo vê (ou conhece) o homem pela lente de sua
cultura?

5 É comum percebermos associação do termo cultura a


produções artísticas e conhecimentos. Para além destas
restrições, Vieira Pinto relaciona o conceito de cultura às
condições de trabalho e sobrevivência, logo à divisão de
classes.

Converse com seus amigos e exponha seu ponto de vista


sobre esta correlação.

6 Discuta com alguém e interprete a famosa frase de Sartre


“a existência precede da essência.”

7 Após ter estudado a tese sartreana da liberdade, que


aspectos você considera importantes e que outros (se for o
caso) você considera inconvenientes ou críticos?

8 Se você conseguiu algum dos filmes sugeridos, explicite


brevemente a relação com o respectivo assunto ao qual se
refere.

184 FILOSOFIA
1. Dimensão da linguagem

• Narradores de Javé. (Brasil, 2003 – direção: Eliana Café)

Filme relata de forma humorística o desafio de uma comunidade


(Javé) narrar sua história para registro de um funcionário dos correios

2. Cultura

• A encantadora de baleias (Nova Zelândia, 2003 – direção: Niki


Caro)

Excelente reflexão sobre cultura, questão de gênero, diversidade e


preconceito

• A marvada carne (Brasil, 1985 – direção: André Klotzel)

Filme pode ser visto da perspectiva da cultura popular e globalizada

• A caminho de Kandahar (Irã, 2001 – direção: Mohsen Makhmalbaf)

Filme retrata questões como a diversidade cultural e de gênero e


política.

3. Liberdade

• Um grito de liberdade (Inglaterra, 1987 – direção: Richard


Attenborough)

Excelente abordagem sobre os temas da liberdade e da discriminação

• Um sonho de liberdade (EUA direção: Tim Hobbes)

Excelente filme sobre o problema e o desafio da liberdade humana.

antropologia filosófica | unidade 4 185


TEXTOS COMPLEMENTARES

Estudo da linguagem e teoria da linguagem

Louis Trolle Hjelmslev

A Linguagem – a fala – é uma inesgotável riqueza de múltiplos valores.


A linguagem é inseparável do homem e segue-o em todos os seus
atos. A linguagem é o instrumento graças ao qual o homem modela
seu pensamento, seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua
vontade e seus atos, o instrumento graças ao qual ele influência e é
influenciado, a base última e mais profunda da sociedade humana. Mas
é também o recurso último e indispensável do homem, seu refúgio nas
horas solitárias em que o espírito luta com a experiência, é quando o
conflito se resolve no monólogo do poeta e na meditação do pensador.
Antes mesmo do primeiro despertar de nossa consciência, as palavras
já ressoavam à nossa volta, prontas para envolver os primeiros germes
frágeis de nosso pensamento e a nos acompanhar inseparavelmente
através da vida, desde as mais humildes ocupações da vida cotidiana
até os momentos mais sublimes e mais íntimos dos quais a vida de todos
os dias retira, graças as lembranças encarnadas pela linguagem, força
e calor. A linguagem não é um simples acompanhante, mas sim um fio
profundamente tecido na trama do pensamento; para o indivíduo, é o
tesouro da memória e a consciência vigilante transmitida de pai para
filho. Para o bem e para o mal, a fala é a marca da personalidade,
da terra natal e da nação, o título de nobreza da humanidade. O
desenvolvimento da linguagem está tão inextricavelmente ligado ao
da personalidade de cada indivíduo, da terra natal, da nação, da
humanidade, da própria vida, que é possível indagar-se se ela não
passa de um simples reflexo ou se ela não é tudo isso: a própria fonte
do desenvolvimento dessas coisas.

HJELMSLEV, Louis Trolle. Prolegômenos a uma Teoria da


Linguagem. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978 p.
179.

186 FILOSOFIA
Agir Comunicativo versus Agir Estratégico

Jurgen Habermas

O entendimento através da linguagem funciona da seguinte maneira:


os participantes da interação unem-se através da validade pretendida
de suas ações de fala ou tomam em consideração os dissensos
constatados. Através de ações de fala são levantadas as pretensões
de validade criticáveis, as quais apontam para um reconhecimento
intersubjetivo. A oferta contida num ato de fala adquire força
obrigatória quando o falante garante, através de sua pretensão de
validez, que está em condições de resgatar essa pretensão, caso seja
exigido, empregando o tipo correto de argumento. O agir comunicativo
distingue-se do agir estratégico, uma vez que a coordenação bem
sucedida da ação não está apoiada na racionalidade teleológica dos
planos individuais de ação, mas na força racionalmente motivadora de
atos de entendimento, portanto, numa racionalidade que se manifesta
nas condições requeridas para um acordo obtido comunicativamente.

HABERMAS, Jurgen. Pensamento Pós-Metafísico. Rio de Janeiro:


Tempo Brasileiro, 2002, p. 71

Teoria da Cultura

Álvaro Vieira Pinto

A cultura é uma criação do homem, resultante da complexidade


crescente das operações que esse animal se mostra capaz no trato com
a natureza material, e da luta que se vê obrigado para manter-se em
vida. Os animais, mesmo os de complexidade orgânica relativamente
alta, não produzem a própria existência [...]. No homem esta situação
se alterou; a capacidade de resposta à realidade cresceu de intensidade
e qualidade.

[...] A cultura é, por conseguinte, coetânea do processo de hominização


[...]. A cultura é, pois, o processo pelo qual o homem vive as
experiências que vai sendo capaz de realizar, discerne entre elas, fixa

antropologia filosófica | unidade 4 187


as de efeito favorável e, como resultado da ação, converte em ideias
as imagens e lembranças, a princípio coladas às realidades sensíveis, e
depois generalizadas, desse contato inventivo com o mundo natural. O
mundo da cultura destaca-se, assim, aos poucos do mundo material e
começa tomar contornos definidos no pensamento humano. [...] Desde
os primórdios a cultura tem esses dois componentes: os instrumentos
artificiais fabricados para prolongar e reforçar a ação dos instrumentos
orgânicos de que o corpo é dotado afim de opor-se à hostilidade do
meio; e as idades, que correspondem à preparação intencional, sempre
social, e à antevisão dos resultados da ação. [...].

Interpretada a cultura como produto do processo produtivo a noção


decisiva é a de dupla natureza de bem de consumo, enquanto
resultado materializado em coisas e artefatos [...]; e de bem de
produção, no sentido em que a capacidade, crescentemente adquirida
de subjugação da realidade pelas ideias que a representam constituem
a origem de nova capacidade humana, a de idealizar, conceber novos
instrumentos [...] e criar ideias que significam finalidades para as ações
a empreender. [...].

Quando dizemos que o homem é um bem de produção queremos


entender com isso que deve ser um bem de produção de si mesmo para si
mesmo. [...]. Se, porém, [...] o homem se torna um bem de produção não
para si mesmo exclusivamente mas para outro, e portando se converte
em instrumento de utilização alheia, desaparece a dignidade [...] e se
estabelece uma regime de convivência injustos e desumano. [...].

A raiz da separação de classes, como consequência da posição do


individuo no processo social da produção de bens, está na natureza
dual da cultura, que em sua manifestações, materiais e objetivas, é
simultaneamente bem de consumo e bem de produção. [...]. Os que
detêm a exclusividade dos bens ideais da cultura, porque já possuem
a propriedade, também exclusiva dos instrumentos materiais de
produção, apropriam-se do poder de ditar a destinação do concebido,
de definir a finalidade das ideias. Chega-se assim à cisão de dois
grupos desiguais, que ambos manejam os produtos da cultura [...] o
minoritário e dominante, se reserva a parte ideal da criação cultural,
enquanto a imensa maioria se vê forçada a apenas operar com os
produtos materiais da cultura. [...].

188 FILOSOFIA
Com efeito, se a cultura é simultaneamente ação e ideia, enquanto ação
significa a mediação entre duas ideias e enquanto ideia, a mediação
entre duas ações. [...]. A cultura de cada momento representa a
mediação histórica que possibilita a aquisição de outros dados culturais,
que condiciona a expansão do conhecimento, sendo possível dizer-se
que a cultura, enquanto ideia, imagem, valores, conceitos e teorias
científicas, se cria a si mesma por intermédio das operações práticas de
descobertas das propriedades dos corpos e da produção econômica
dos bens necessários à vida social.

PINTO, Álvaro Vieira. Ciência e Existência. 2. ed. São Paulo: Paz e


Terra, 1979, p. 121-137.

O Existencialismo é um humanismo – a condenação do


homem à liberdade engajada.

Jean-Paul Sartre

Dostoïevsky escrevera: “Se Deus não existisse tudo seria permitido.” [...].
Com efeito, tudo é permitido se Deus não existe, consequentemente, o
homem encontra-se desamparado, pois não encontra nem dentro nem
fora de si mesmo uma possibilidade de agarrar-se a algo. [...]. Se, com
efeito, a essência precede a essência nunca se poderá recorrer a uma
natureza humana dada e definida para explicar alguma coisa; dizendo
de outro modo, não existe determinismo, o homem é livre o homem é
liberdade. Por outro lado, se Deus não existe, não encontraremos valores
ou ordens que legitimem nosso comportamento. Assim, nem atrás de nós,
nem à nossa frente, ou no domínio numinoso dos valores, dispomos de
justificativas ou escusas. É o que exprimirei dizendo que o homem está
condenado a ser livre. [...]. O existencialista não crer no poder da paixão.
Ele nunca pensará que uma bela paixão é uma torrente devastadora que
leva fatalmente o homem a certos atos que, consequentemente, representa
uma escusa. Acredita que o homem é responsável por sua paixão. [...].
Assim, pensa o homem, sem nenhum tipo de apoio nem auxílio, está
condenado a inventar a cada instante o homem. [...]. E querendo a
liberdade, descobrimos que ela depende inteiramente da liberdade dos

antropologia filosófica | unidade 4 189


outros, e que a liberdade dos outros depende da nossa. Obviamente, a
liberdade como definição do homem não depende de outrem, mas desde
que existe o engajamento, eu sou obrigado a querer, ao mesmo tempo
que a minha liberdade, a liberdade do outro; e não posso ter como fim a
minha liberdade sem a dos outros como fim.

SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é um Humanismo.


Coleção Textos Filosóficos. Petrópolis/RJ: Vozes, 2010. p. 32-55.

Tem a política ainda algum sentido? (liberdade e política)

Hannah Arendt

[...] o sentido da política é a liberdade. [...], a experiência com as formas


totalitárias de Estado nas quais toda a vida dos homens foi politizada
por completo, tendo como resultado o fato da realidade não mais
existir mais nelas. Visto a partir daí, sob condições especificamente
modernas, surge a pergunta se política e liberdade são compatíveis
entre si, se a liberdade não começa apenas onde cessa a política, de
modo a não existir mais liberdade onde a coisa política não encontra
seu fim e seu limite em parte alguma. [...]. O que está em jogo aqui não
é apenas a liberdade. [...]. Em segundo lugar, a pergunta é formulada
forçosamente em vista do monstruoso desenvolvimento das modernas
possibilidades de destruição – cujo monopólio os Estados detêm; sem
esse monopólio, jamais teria chegado a se desenvolver – que só pode
ser empregada dentro do âmbito político. O que está em jogo aqui não
é apenas a liberdade, mas sim a vida, a continuidade da existência da
Humanidade e talvez toda a vida orgânica da Terra. [...]. O milagre
da liberdade está contido nesse poder-começar que, por seu lado, está
contido no fato de que cada homem é em si um novo começo, uma
vez que, por meio do nascimento, veio ao mundo que existia antes
dele e vai continuar existindo depois dele. [...]. Se o sentido da política
é a liberdade, isso significa que nesse espaço – e em nenhum outro –
temos de fato o direito de esperar milagres.

ARENDT, Hannah. O que é Política? Rio de Janeiro: Bertrand do


Brasil, 2007, p. 38-44.

190 FILOSOFIA
ARAÚJO, Inês Lacerda. Do Signo ao Discurso. São Paulo: Parábola,
2004.

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SARTRE, Jean-Paul. O Existencialismo é um Humanismo. São


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antropologia filosófica | unidade 4 191


unidade

5
ObjetivoS dESTA unidade:
DUAS PERSPECTIVAS HUMANISTAS:
Motivar reflexões críticas
o marxismo e o existencialismo sobre o homem à luz
do marxismo e do
existencialismo;
Favorecer discussões
em torno da relevância
e limites dessas duas
teorias;
PALAVRA INICIAL...
Assinalar caracteres
Caro estudante, humanos distintos tanto
no marxismo como no
existencialismo;
O percurso antropológico que temos feito nos conduziu agora
para a seguinte bifurcação humanista: o homem interpretado Destacar porque Marx
por Marx e o homem pensado pelo existencialismo de Jean- e Sartre são referências
indispensáveis para
Paul Sartre. estudos moderno-
contemporâneos de
Vamos perceber na breve exposição a seguir, que em Marx antropologia.
o ponto de partida é o primado da matéria sobre o espírito.
Motivado por esta tese primordial de Feuerbach, ele rechaça
transparentemente paradigmas metafísicos tomados como
parâmetro de leituras sobre o mundo e sobre o homem. Ambos,
o mundo e o homem, são, portanto, analisados exclusivamente
no contexto da realidade concreta: correlações de forças
entre classes opostas, resultantes do sistema capitalista de
produção. Veremos que, para Marx, qualquer possibilidade
de emancipação humana exige, condicionalmente, a negação
do capitalismo, cujo processo de luta incluiu expurgos
das ideologias alienantes, impregnadas principalmente
na religião. Uma nova humanidade é essencialmente livre de
opressões trabalhistas, religiosas ou políticas. Poder-se-ia dizer
que o capitalismo, contrariando a profecia de Marx, permanece
muito vivo ou talvez pelo fato mesmo de se apresentar ainda
mais vicejante, sobretudo, em esquemas mais sofisticados e sutis
de exploração e em escala global, a crítica marxista permanece
necessária.

O existencialismo, como o próprio termo explicita, prioriza reflexões


em torno da realidade humana: sentimentos, paixões, decisões,
atitudes, medos, frustrações, projetos, responsabilidades etc.
Neste sentido, através de Kierkegaard, esta filosofia nasce como
um protesto contra o rígido racionalismo hegeliano. Todavia, é
com Sartre, principalmente num contexto de escombros humanos
deixados pela Segunda Grande Guerra, que o existencialismo
adquire fama, enquanto resposta às angústias e desnorteamentos.
A teoria existencialista no pensamento sartreano exclui a ideia
de um Deus resgatador, porque definições e projeções são
estabelecidas pelo homem, inegavelmente um ser-por-si, isto é,
consciência. Fatos históricos são produtos humanos. Por isso,
Sartre insiste peremptoriamente na condenação do homem à
liberdade, frisando, assim, que nada precede à existência humana.
O homem é absolutamente projeto de si mesmo, não havendo
Deus ou qualquer outra força estranha que possa concebê-lo e
encaminhá-lo. Questões como escolha, alteridade, angústia, má-
fé, responsabilidade, engajamento, são inseparáveis deste conceito
plena liberdade, como defende Sartre.

Destarte, se essas perspectivas antropológicas, a rigor, não


excludentes mas complementares, subsidiarem razoavelmente
nossa visualização de homem, teremos, portanto, alcançado o
sentido básico de nosso esforço.

ITINERÁRIO DE ESTUDOS

A compreensão de homem à luz do marxismo

A leitura antropológica do existencialismo

194 FILOSOFIA
O homem no marxismo

A doutrina de Marx sobre o homem não pode ser compreendida senão


à luz da história, recorrendo, justamente, nas doutrinas de Hegel e
Feuerbach. Do primeiro ele aprecia o papel universal da dialética, mas
o considera demasiado conservador. Quanto ao segundo, Feuerbach
considera-o relevante porque substitui o idealismo pelo primado da
matéria, de modo que a dialética transpõe-se do campo das ideias
para o domínio dos fatos. De fato, para Feuerbach, um ser espiritual
é pura ficção, pois a existência espiritual é algo do pensamento ou
da fé. Realismo é sinônimo de materialismo. Inspirado nesta tese
feuerbachiana, Marx “pretende substituir a fria discussão das ideias
pela violenta polêmica dos acontecimentos e das instituições. Aspira
a entregar-se inteiramente à ação política e social. [...]. A ideia deve
tornar-se ativa, até mesmo militante. Ação e especulação articulam-se
uma na outra.” (1975, p. 135).

Sendo o homem essencialmente natural, Marx não admite a fuga


do mundo e da história, insiste, portanto, que é preciso agir sobre
ambos em vez de contemplá-los. É preciso superar a especulação
pela revolução. Nesta perspectiva, o homem, de acordo com Marx,
depende da natureza exterior que, por sinal, se ergue diante dele
como realidade objetiva, aparecendo, então, em princípio como força
estranha, onipotente e independente. Mas, à medida em que o mesmo
homem é enriquecido por ela, também a domina e transforma-a.
Ora, observa Etcheverry (1975, p. 145): “esta teoria da práxis está
estreitamente ligada a uma concepção do trabalho e da produção;
concepção fundada num ideal de conquista e de melhoramento do
universo que leva a uma promoção do homem.”

Note que, caro estudante, à luz do pensamento marxiano, o homem


não só resolve suas necessidades prementes, mas à proporção que
modifica a natureza desenvolve suas faculdades latentes. Ele embeleza
os objetos materiais incutindo-lhes sua força, seu pensamento e sua arte.
A tecnicidade humana supera a adversidade da natureza, adaptando-a
aos seus gostos e modelando-a à sua imagem. Desta forma, o mundo
natural é artificializado e organizado pela capacidade humana

antropologia filosófica | unidade 5 195


reflexiva. Portanto, o homem, exclusivamente, tem a competência
para humanizar uma natureza primordialmente desumana.

A definição marxiana de homem estabelece, assim, ininterruptas


correlações entre a humanidade e o universo. Os objetos utilizados
pelo homem não tem realidade independentemente do homem. Eles
incorporam, por assim dizer, uma significação humana. Além disso,
as técnicas impregnadas na produtividade e nos fatores econômicos
condicionam, por sua vez, as ideias, a política, o direito, a moral, a
religião etc. O homem acaba, portanto, sendo criador e criatura da
natureza e da história.

Etcheverry (1975, p. 149) cita, então, uma importante conclusão de


Marx na Ideologia Alemã:

Esta soma de forças de produção, de capitais e de


formas sociais de comércio, que todos os indivíduos e
todas as gerações encontraram já feitas, é o verdadeiro
fundamento daquilo que os filósofos imaginaram
como substância ou essência do homem.

Portanto, se concordarmos com Marx, é impossível dissociar espírito e


matéria, alma e corpo, liberdade e determinismo, ideologia e economia
política, enfim, homem e natureza. As evoluções da natureza e do
homem coincidem, haja vista que o ser natural do homem e o ser
humano da natureza convergem, pois, radicalmente.

Acompanhando estas reflexões, façamos agora a seguinte questão:


Qual a postura do homem diante da moral e da religião? Pois bem,
se todas as ideologias são reflexos dos fenômenos econômicos na
consciência humana, então elas são consequentemente instáveis. O que
se considera bem, verdadeiro e sagrado perde, com efeito, o caráter de
necessário e se torna efêmero porque refletem as condições de vida.
O ininterrupto devir exclui qualquer verdade absoluta. Esta é sempre
histórica e circunstancial.

De fato, se admitimos que as categorias mentais nada mais são do que


expressões das relações sociais naturalmente limitadas, como haveriam
verdades absolutas? A conclusão do Manifesto Comunista é clara: as
ideias correntes de uma época são as ideias da classe dominante.

196 FILOSOFIA
Etcheverry (1975, p. 168) destaca uma apropriada observação de
Engels a este respeito: “nos nossos dias, a razão considerada pelos
filósofos como testemunhas de verdades universais e eco de princípios
absolutos, não representa na realidade senão a mentalidade idealizada
da burguesia.”

Destarte, o homem, como pensam Marx e Engels, deveria rechaçar


a perspectiva e a crença de paradigmas de verdades inabaláveis e
universais, pois a verdade é sempre verdade de uma classe; é sempre
reflexo do mundo das relações econômico-sociais no qual ela é
constituída ou forjada.

Tenhamos, pois, em mente, que assim como a verdade, a moral


repercute a classe dominante, não há, pois, uma lei que seja
absoluta e que se imponha às consciências. Para Marx, a ideia de
valores substanciais como caridade, dedicação, desprendimento, são
resquícios inoperantes do cristianismo. Entretanto, ascese, energia de
caráter, iniciativa e vivacidade no trabalho, amor ao risco, disciplina,
organicidade e perseverança são valores importantes desde que
vinculados ao interesse ansioso pela cidade futura.

Leiamos reflexivamente o que Marx e Engels, num discurso de 2 de


outubro de 1920 para o terceiro congresso pan-russo das juventudes
socialistas, proclamaram:

Repudiamos toda moral que provenha de uma


inspiração estranha à humanidade, estranha às classes
sociais. Não é, afirmamos, senão mentira, logro e
poeira aos olhos dos operários e dos camponeses
no interesse proprietários de terras e dos capitalistas.
Afirmamos que nossa moralidade está inteiramente
subordinada aos interesses da luta de classe e do
proletariado (ETCHEVERRY, 1975, p. 175).

Como se percebe, as medidas da justiça, da licititude ou da injustiça


e proibição se situam no contexto de favorecimento ou prejuízo de
uma classe dominante. Por exemplo, várias espécies de violências,
desequilíbrio econômico, agravamento de conflitos entre povos são
justos e legítimos se necessárias para aniquilar o capitalismo. “Seja
como for, o marxismo estabelece o princípio de que uma moral de classe
está submetida às flutuações do tempo e do espaço, em função dos
interesses em jogo.” (ETCHEVERRY, 1975, p. 173). Ainda a propósito,

antropologia filosófica | unidade 5 197


Etcheverry frisa um trecho em que Lenin assinala que é preciso fazer
sacrifícios, adotar ilegalidades, calar-se ou violar a verdade, a fim de
infiltrar-se nos sindicatos para então realizar a tarefa comunista.

Destarte, podemos bem denotar, atitudes morais são consideradas a


partir da conjuntura em jogo onde ocorre a colisão de interesses. Ora,
a título de alusão a um contraponto axiológico, aquelas seriam atitudes
totalmente inadimissíveis para alguém de espírito kantiano.

Quanto à religião, a postura é a mesma. O que é a religião? Na


verdade, é um sistema capaz de despojar o homem de suas admiráveis
qualidades em favor de Deus. Esta tese da alienação religiosa, Marx
apreende, sobretudo, em Feurbach.

O problema mais sério da religião é que ela não se restringe a simples


ideologia, senão desapareceria junto com a burguesia que a inventou.
Mais que isso, ela é um mecanismo que à medida que justifica a miséria
do proletariado reforça a exploração capitalista e, pior que isso, paralisa
qualquer anseio revolucionário e admite as injustiças presentes em
nome de futura justiça e felicidade. Em nome da recompensa celeste, a
religião apregoa ao miserável paciência e resignação. Veja o que Lênin
disse certa vez: “A religião é uma espécie de grosseira aguardente
espiritual, na qual os escravos do capital afogam o seu ser humano
e as suas reivindicações de uma existência um pouco mais digna
do homem.” (ETCHEVERRY, 1975, p. 178). Conclusão: a crença é
uma anestesia aos proletários, amortecendo, consequentemente, sua
resistência e combatividade.

Assim, se a religião, como todas as superestruturas, está ligada às


condições sociais, portanto, originada no sistema capitalista, logo é
razoavelmente procedente que se lute contra o mundo do qual ela é
o aroma. A transformação das relações sociais aniquila, com efeito, a
religião, sentencia Marx.

E se você perguntasse a Marx: Qual seria o caminho para esta


transformação? Ele responderia imediatamente: Aquele que vai da
alienação à liberdade. Realmente, para ele o homem moderno encontra-
se degradado e rebaixado. Mais que isso, encontra-se impotente para
realizar-se porque encontra-se apartado de si próprio. Esta alienação
profunda tem duas raízes básicas: a religião e o trabalho. “Traço de

198 FILOSOFIA
união entre o homem e o universo, órgão de ligação entre as pessoas,
[...] destinado a promover a plenitude e a felicidade do homem
[...] o regime capitalista tornou-o um instrumento de alienação.”
(ETCHEVERRY, 1975, p. 182).

De acordo com Marx, à medida que a vida do homem se traduz


pela produtividade, o trabalho já não lhe pertence mais e o capital
transforma-se em força autônoma, de modo que quanto mais o
operário produz mais ele empobrece e agiganta a força do capitalista.
A alienação do trabalho produtivo provoca a alienação da pessoa. O
proletário sendo apenas um apêndice da máquina submetido ao ritmo
dos automatismos “perde sua qualidade de homem e passa ao nível
de coisa, de objeto de troca. [...] Vender sua atividade é vender-se a si
mesmo.”(ETCHEVERRY, 1975, p. 182).

As mercadorias e os homens são igualmente absorvidos pelo dinheiro Quando vemos


cotidianamente a indústria
que, para Marx, se tornou o laço universal e necessário que amarra e o comércio, de maneira
a natureza, a sociedade e os homens. É pelo dinheiro que os homens geral, priorizando sempre o
lucro em vez das pessoas,
substituem os vínculos humanos pelos vínculos monetários. Quando principalmente, seus operários,
não é a flagrante permanência
as coisas de modo geral passam a ser regidas e medidas pelo dinheiro, do que Lênin chamou de
imperialismo do capital?
ocorre o que Lênin chamou de imperialismo do capital. Diante dessa
realidade Marx descreve o proletário como desprovido de propriedade,
de família e de pátria; encontra-se subjugado à tirania internacional
do capital. Sua recompensa salarial garante apenas a manutenção da
sobrevivência a serviço do interesse unilateral da burguesia.

Vejamos que é por isso que para Marx a luta de classes é a profunda
mola da história e o proletariado, mediante seu sofrimento e consciência
infeliz, encarna a inquietação do mundo. Por outro lado, o proletário
é o sal da história, ele é a negação ativa de sua negação, isto é, o
capitalismo. Este produz seus próprios coveiros, isto quer dizer que
há uma revolução em marcha. O proletariado triunfará ainda que se
considere uma longa guerra. Uma intensa luta que para Marx tem
caracteres duplos: sangrenta e não sangrenta, violenta e pacífica,
militar e econômica, pedagógica e administrativa.

Contudo, a batalha valerá a pena porque na outra margem se viverá


o trabalho livre, a solidariedade orgânica, a liberdade e a igualdade
social, uma vez que melhorias em todos os sentidos da vida serão
consequências verificáveis. Era o sonho de Marx.

antropologia filosófica | unidade 5 199


Como ressalta Etchverry a liberdade perfeita para o marxismo ergue
como o termo supremo da história e só o homem da sociedade
comunista é realmente livre. Ou seja, a liberdade é resultado
construído na evolução histórica. “O homem tornar-se-á livre quando
‘se apropriar’ do mundo pelo domínio de si, da natureza e da evolução
social. Nesse dia a liberdade será absoluta, sem limites nem entraves.
Trata-se de certo modo de uma forma ‘escatológica’ de liberdade.”
(ETCHEVERRY, 1975, p. 194).

Ao encerrarmos essa breve abordagem sob a luz do pensamento


de Marx e seus companheiros, é possível que tenhamos apreendido
alguns pontos relevantes: primeiro, o homem é essencialmente filho
do mundo: da natureza e das relações produtivas que trava para
garantir sua vida; segundo, as ideias da religião, da arte, da política
etc. são derivadas da conjuntura econômica; terceiro, as ideologias,
sobretudo as religiosas, retardam ou desmobilizam o poder de luta dos
oprimidos por conta das prometidas recompensas posteriores; quarto,
o capitalismo é injusto e cruel, principalmente porque degenera o
homem, e enfim, superando as forças alienantes os oprimidos, terão
forças para operacionalizarem a revolução e, assim, construírem o reino
da emancipação e da liberdade. À luz do marxismo, como percebemos,
a liberdade não se traduz em caracteres psicológicos ou metafísicos.
Ela é, portanto, resultante do domínio que o homem exerce sobre as
condições econômicas. De fato, a liberdade está condicionalmente
ligada a uma estrutura social. E ninguém pode ser livre nas condições
impostas pelo capitalismo. Enfim, a superação deste é condição sine
qua non para felicidade.

O homem no existencialismo

O pensamento existencialista entra na história como contraponto ao


racionalismo. Marleau-Ponty afirma que Kierkegaard foi o primeiro a
empregar o termo existência, no sentido moderno em que se opõe
a Hegel. Admirador de Hegel, tornou-se seu incisivo adversário,
exatamente porque a dialética hegeliana desconsiderou a existência.

200 FILOSOFIA
O fato é que o idealismo prioriza suas investigações em torno do
conhecimento, desinteressando-se ao mesmo tempo pelo homem
concreto: vivo e responsável.

Em nome da existência real, Kierkegaard emblema um protesto contra


o espírito preso num sistema. O existencialismo surge, assim, como
um manifesto preocupado essencialmente com a situação da vida
humana, arrasada pela força de bárbaros conflitos.

“Durante as décadas de 1930-1950, o existencialismo


parece designar um clima de pensamento, uma
corrente literária vinda da Europa do Norte, dos países
eslavos ou germânicos. Um de seus traços principais
seria a percepção no sentido do absurdo juntamente
com a do sentido trágico da vida. A experiência de
uma humanidade entregue às violências mortíferas,
às monstruosidades de uma guerra particularmente
bárbara teria exigido dos artistas, dos escritores e dos
filósofos novas inflexões, capazes de repor em questão
o exercício de uma liberdade ainda a conquistar
(COLETTE, 2009, p. 7).

Ademais, o existencialismo também significa uma perspectiva concreta


e pessoal pela qual a vida é interpretada e compreendida. Em vez
de uma filosofia sistemática, advoga-se uma filosofia sintonizada
imediatamente com a vida objetiva em seus vários segmentos.
Etcheverry (1975, p. 62) sublinha a particularidade existencialista, do
seguinte modo:

A razão propende a demonstrar, explicar, classificar


todas as coisas; [...] o existencialismo, pelo contrário,
sendo hostil ao mundo e à vida, a realidade mais
profunda revela-se inefável: é um acontecimento
fechado e privado. O interior, com efeito, nunca pode
ser totalmente descoberto; o segredo se caracteriza na
intimidade. [...] é preciso substituir os caracteres gerais
que constituem a essência, pela situação própria de
um que define a existência.

Copleston (1983, p. 272) observa que em Kierkegaard

[...] o homem que se contenta com o papel de


espectador do mundo e da vida e tudo transforma em
uma dialética de conceitos abstratos, existe, porém,
não pode dizer-se que existe em sentido próprio. [...]
O ‘indivíduo existente’ é ator, não espectador. Se
compromete a si mesmo e, deste modo, dá sentido e
direção à sua vida.

antropologia filosófica | unidade 5 201


Todavia, enquanto luterano sincero Kierkegaard afirma que levando
em conta a falência da inteligência para resolver seus próprios desafios,
o homem tem a necessidade de procurar a salvação na fé e na
entrega total a Deus. Para o filósofo dinamarquês, o estágio religioso é
superior aos estágios estético e ético. Portanto, o pessimismo da razão
desemboca no ousado salto para o absurdo: a profunda confiança
religiosa em Deus.

A rigor, entretanto, como se sabe, o existencialismo celebrizou-se


mundialmente a partir do pensamento do francês Jean-Paul Sartre. À
medida que procurou situar o existencialismo numa concepção mais
ampla, constituindo-o, assim, numa filosofia aberta e por vinculá-lo
ao engajamento político e filosófico - como ele próprio o fez – esta
teoria adquire, consequentemente, contorno sartriano. Além disso, o
existencialismo, como Sartre o concebe, situa-se no próprio terreno
marxista, simultaneamente o engendra e o recusa. É uma ideologia de
linguagem própria que não rejeita o saber marxista.

Do ponto de vista propriamente antropológico, embora o existencialismo


comumente admita que a existência precede a essência, isto é, que o
ponto de partida é a subjetividade, Sartre demarca sua diferença em
relação aos seus colegas existencialistas cristãos como Kierkegaard,
Jaspers e Marcel, como ele mesmo frisa: “O existencialismo ateu, que
eu represento, é mais coerente. Declara ele que se Deus não existe, há
pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que
existe antes de poder ser definido por qualquer conceito, e que este ser
é o homem ou, como diz Heidegger, a realidade humana.” (SARTRE,
1978, p.6).

Então consideremos que existir é, a rigor, um atributo humano. As


coisas (este livro, aquele rio, esta árvore) existem pelo homem. Aliás,
o homem mesmo é um poder ser. Observa Mário Giordani (1976, p.
22): “Todo o Existencialismo é efetivamente um esforço para mostrar
isso: a transitividade do ser, o ser como possível.”

De fato, para Sartre, o homem primeiramente é definido pela sua


situação na natureza. Mas o homem supera o determinismo material
porque sua consciência o distingue do ser-em-si (fenômenos) pela
nobreza do ser-por-si (consciência). “Trata-se verdadeiramente de

202 FILOSOFIA
duas dimensões diferentes do ser. Mais exatamente, a existência não
designa o fato banal de ser, comum a todas as realidades. É o privilégio
do homem, a interioridade que só ele sente (ser para si), ao passo que
as coisas simplesmente a ser (em si).” (ETCHEVERRY, 1975; p. 67).
O primeiro designa uma realidade bruta, cheia, compacta, maciça;
coincide consigo próprio, não tem avanço nem recuo. Sua existência é
exclusivamente fenomenal. O ser-por-si, enquanto consciência, Sartre
(1997, p. 235) diz que “um ser para o qual, em seu próprio ser, está em
questão o seu ser, enquanto este ser é essencialmente um certo modo
de não ser um ser que, ao mesmo tempo, ele posiciona como outro
que não si mesmo...” Este ser, porque é consciência, é radicalmente
diferente: define-se como sendo aquilo que não é e não sendo aquilo
que é.

Ora, o homem pela sua constituição material é também um ser-em-


si, mas também com poder de apreender-se a si próprio desde suas
qualidades originais. Por esta experiência interior, o homem torna-
se um ser-por-si. Um é plenitude e opacidade o outro é desejo e
transparência. O homem é, portanto, duplo: “existe no mundo como
consciência (por-si) e, simultaneamente, como corpo (em-si). O
homem, é pois, ‘consciência encarnada.’” (GIORDANI, 1976, p. 100).

Na concepção sartreana a consciência concebe o não-ser presença


constante, o nada habita o ser. Qualquer interrogação que o homem
dirige ao mundo ou a si mesmo encontra a presença do nada – “isso
não é’. Sartre dá exemplo da ausência de alguém que se espera ou
esperava em algum lugar. Tudo ao redor é ausência, é nada.

Neste sentido Etcheverry (1975, p. 75) observa:

O homem é, por natureza, uma fuga do ser; uma


demanda também. É perpetuamente visitado por um
desejo de completa expansão que é não obstante,
irrealizável. A consciência procura conquistar-se,
possuir-se absolutamente, [...] eliminar o nada que
a constitui. [...]. Ora, esta totalidade realizada sob
forma de transcendência é precisamente Deus: ‘o
homem é um ser que projeta ser Deus... o homem é
fundamentalmente desejo de ser Deus. [...] O ser por-si
e o em-si, excluindo-se mutuamente, são insuscetíveis
de fusão ‘a ideia de Deus é contraditória’.

antropologia filosófica | unidade 5 203


Nesta perspectiva Deus torna-se inútil e as realidades contingentes que
experimentamos dispensam um ser necessário. O homem cria-se a si
próprio; é, pois, impossível atribuir outra consciência à consciência
que se motiva a si própria.

De fato, enquanto os objetos materiais constituem um tecido denso e


ininterrupto, a vida humana manifesta necessidade de preenchimentos.
A vida humana escapa aos determinados motivos. Há um nada que se
insinua e é precisamente a liberdade. “O homem é tal como se quer
e como projetou ser no futuro; nada mais do que o que de si faz.”
(ETCHEVERRY, 1975, p. 83).

De fato, no conceito de liberdade humana justamente na perspectiva


de Sartre, já percebemos, é uma dimensão fundamental do ser
humano. Agora talvez seja importante ressaltar que esta liberdade
humana é primordialmente criadora quando se assume como
autêntica: independente do meio, das circunstâncias, das fatalidades,
das perseguições. Com efeito, torna-se criadora de valores de verdade
e justiça, norteadora suficiente do universo e do destino humano.

Entretanto, a mesma liberdade criadora gera em torno do homem uma


situação de aventura e risco, porque o homem é um ser arremessado
no mundo, centro das forças conflitivas. É deste contexto que nasce o
sentimento de angústia segundo Kierkegaard; uma experiência trágica
de abandono para Heidegger e uma impressão de náusea conforme
Sartre.

Quando realmente nos conscientizamos de nós mesmos,


experimentamos, conforme Sartre, uma escala de sentimentos
perturbantes ou turbulentos: ansiedade, angústia e náusea.

Ora, pela ansiedade somos apreendidos por um perigo iminente ainda


que implícito. Metaforicamente, o outro lado da curva; o tempo após a
noite. Ou pior ainda: um mal-estar indefinido diante de um mal ainda
confuso que dá a sensação ofegante do pior.

A angústia incomoda muito mais que o medo. Este decorre de um motivo


definível e calculável. Aquela é vaga, indefinida e não mensurável. “O
que vou fazer”? “Aguentarei”? São questões angustiantes. Resumem-se
numa certa vertigem que atingem minha segurança e liquidam minhas

204 FILOSOFIA
certezas. Kierkegaard afirma que a angústia é simultaneamente uma
atração e um temor do futuro a escolher. É uma antipatia simpática
e uma simpatia antipática. É, pois, ambivalente. Heidegger, por sua
vez, a descreve com a indecisão. O homem vaga no vazio, refém do
abandono. Mas desta queda no nada ou no abismo é que brotam
a autêntica condição humana e a revelação do mundo. Para Sartre,
a angústia enquanto mal-estar é uma aversão instintiva e conflui na
náusea.

A presença da angústia reflete-se em nós na repugnância que o homem


apreende e vivencia mediante as insuficiências das realizações de si
mesmo. Ora, quando a consciência se dá conta de que não há valores
nem regras, nem ideias fixas, incide, com efeito, a nuvem da angústia.
Somos capturados por um incômodo maçante.

A angústia substancializa-se mais ainda perante intersubjetividade.


O ego e alter, assevera Sartre, se ligam sintética e ativamente,
paradoxalmente, entretanto, um afirma-se excluindo o outro. “O
conflito define pela relação de consciências”, diz o filósofo francês. O
outro confisca minha liberdade. É por isso que Heidegger nota que há
uma tendência humana de união, servidão e degradação mútua.

Com efeito, Etcheverry assinala nossa sensação de vergonha brotada


deste entrecruzamento de sujeitos: “a vergonha é um sentimento de
queda original [...] simplesmente pelo fato ‘ ter caído no mundo, no
meio das coisas, e por necessidade da mediação dos outros para ser o
que sou.” (ETCHEVERRY, 1975, p. 108).

Mas como o indivíduo pode escapar deste mal-estar e resgatar sua


liberdade? Basicamente, recuperando a independência e reduzindo os
outros a objetos. Uma espécie de desforra do escravo sobre o senhor.
Assim, a hostilidade é o cerne das relações humanas. Os homens,
entretanto, ressalva Sartre, coabitam e prejudicam-se mutuamente.
Etcheverry (1975; p. 110) realça, neste caso, uma observação de
Mounier: “A solidariedade objetiva que reina entre nós não é senão
a experiência de um atolamento coletivo, o encontro de cúmplices
inimigos. Solidariedade de malditos, em cada um permanece estranho
aos outros, tal como a si próprio.”

antropologia filosófica | unidade 5 205


Mas assim como os homens, o mundo também se configura como
angustiante para cada um, porque, precisamente, é indecifrável.
O homem é intruso. Camus, no Mito de Sísifo diz que o homem é
absurdo. O absurdo é, para ele, ponto de partida, como a dúvida
metódica cartesiana. “o sentimento do absurdo universal invade a
consciência sob uma forma ou outra: cansaço de uma vida monótona,
experiência da fuga do tempo, descoberta de universo mudo e cego.”
(ETCHEVERRY, 1975; p. 111). Não é um simples fato, mas um
confronto entre o apelo humano e o silêncio cósmico.

À perturbação da absurdidade, a morte acrescenta um estigma


definitivo. Tem-se consciência do envelhecimento. O tempo é medido
e o amanhã é revoltante, e esse fluxo cronológico deságua no túmulo.
E o que é a morte? A tradução do fracasso da mentira da vida, afirma
Sartre. Conclusão: a condição humana é uma absurda aventura.

Entretanto, vejamos bem, é preciso aceitarmos nossa condição


humana dominada pela náusea, por olhares hostis, sem promessas
e sem conselhos. É nessa trágica experiência do vazio e do nada que
nos abrimos para experiência da liberdade. Somos condenados à
liberdade.

A verdade é que a doutrina existencialista permanece repercutindo


de algum modo em nossos tempos: poetas, romancistas, moralistas,
teólogos, filósofos e cientista acolhem sob alguma perspectiva a condição
humana precária. Inclusive porque o progresso científico-tecnológico
que multiplica certo grau de felicidade favorece, adversamente,
novos perigos, relevando, consequentemente, a impotencialidade
humana. Ora, uma tal situação facilita a presença da ansiedade e,
por conseguinte, a tendência à proclamação do absurdo como feição
do mundo: fora dos trilhos, injusto e atroz. A realidade universal não
é assim, como acentua o pensamento existencialista, um mundo de
puras necessidades lógicas.

Há que se ressaltar, enfim, que o existencialismo “personalizado” por


Sartre proclama sempre a liberdade humana criadora como a seiva da
existência. É tipo de liberdade que cria valores. Simone de Beauvoir
destaca três deles: a justiça, o direito e a verdade. Tem-se que dizer que
viver é agir: escolher entre vários o alvo a atingir e os meios para fazer.

206 FILOSOFIA
Na condição de “embarcado” o homem tem que agir, compromissar-
se. É claro que quando escolhemos e nos deixamos determinar apenas
pelos objetos deste mundo escolhemos a existência falsa; mas quando
tomamos caminhos diferentes destes, fazemos de nossa sua vida uma
obra nossa e, sobretudo, existimos autenticamente. Marcel afirma,
ressaltando Giordani (1976, p. 128), que “ato livre é aquele em que
me reconheço a mim mesmo e me expresso autenticamente diante dos
meus próprios olhos.”

Para os críticos pessimismo, subjetivismo e antropocentrismo seriam


alguns dos problemas acoplados, ou mais que isso, disseminados pela
doutrina existencialista, aprofundando mais ainda as contingências e as
frustrações humanas, resultando, portanto, numa espécie de apologia
ao desespero à desesperança.

Entretanto, do que abordamos brevemente sobre o existencialismo,


nos parece muito claro, reportando-nos, principalmente, às reflexões
sartrianas, que orientam como mais importante a necessidade de
reconhecer a liberdade criadora. Como fundamento relevante, e se não
a recusarmos, preferindo ofuscar-nos na má-fé, isto é, no rechaçamento
da liberdade responsável, então nos tornamos, verdadeiramente,
protagonistas de nossa própria história, cuja realização possível tem
caráter horizontal, portanto, universal.

Podemos finalizar nossa reflexão sobre a compreensão existencialista


de pessoa humana, volvendo-nos para uma reflexão de Karl Jaspers
que explicita bem essa nossa liberdade expressa em escala humanitária:
“Seja de onde for que tenhamos vindo, estamos aqui. Encontramo-nos
no mundo, em meio a outros homens.” (JASPERS, 2006, p. 46).

CONCLUSÃO

Nesta última unidade em que refletimos sobre as concepções humanistas


do marxismo e do existencialismo, é importante realçarmos algumas
ideias advindas de seus principais mentores: Karl Marx e Jean-Paul
Sartre.

antropologia filosófica | unidade 5 207


Pela influência materialista de Feuerbach, Marx redimensiona a dialética
hegeliana, situando-a no mundo objetivo – natural e socioeconômico,
nos quais se produz a sobrevivência; por isso, ao contrário de Hegel,
ele afirma que a realidade é que produz as ideias predominantes, de
modo geral forjadas pela classe dominante capitalista. Denunciando
o capitalismo como promotor de opressão, coisificação e alienação,
Marx vaticina a necessidade de superá-lo enquanto condição de
emancipação e felicidade humanas. Neste sentido, portanto, o espírito
da crítica marxista permanece instigante às ciências e movimentos
incomodados com o desumanismo capitalista.

Por outro lado, o existencialismo iniciado por Kierkegaard é também


um protesto contra o sistema racionalista de Hegel que suprime a
subjetividade. A filosofia existencialista adquire reputação com Sartre,
quando, numa Europa devastada pela Segunda Guerra, apregoava a
dignidade à liberdade das pessoas. Refutando às acusações de corrente
pessimista, Sartre afirmava que, ao contrário, o existencialismo ateu
que ele defendia insistia no protagonismo do homem - ser-por-si,
em função da liberdade responsável, que atrai, simultaneamente,
adversidades, desamparos, medos; contundo, furtar-se às escolhas e
buscar suportes é negar-se a si mesmo.

Portanto, um possível ponto de encontro entre marxistas e existencialistas


seria este: a história da humanidade e a história do mundo são, a rigor,
artificialidades humanas, embora certamente divergentes acerca dos
processos e procedimentos dessas construções.

Apresente alguns traços do homem interpretado pela teoria


marxista.

Discuta com seus colegas se na atual fase do capitalismo,


as críticas de Marx ainda são pertinentes.

208 FILOSOFIA
Explicite brevemente o sentido de homem pensado no
existencialismo de Kierkegaard e de Sartre.

4 Converse com seus colegas sobre as seguintes frases de


Sartre: “o homem é condenado à liberdade” e “quando
escolho, escolho também os outros”.

5 Leia, compare e destaque algumas diferenças no conceito


de homem entre as teorias marxista e existencialista.

6 Veja um dos filmes sugeridos, correlacionando-o com


algum tópico estudado neste unidade (em uma das teorias).

1. O homem no marxismo

• A classe operária vai ao paraíso (Itália, 1971 – direção: Elio Petri)

O filme motiva reflexão e discussão sobre trabalho e ideologia

• Tempos Modernos (EUA, 1936 – Charles Chaplin)

Famoso filme apresenta com a genialidade humorística de C.Chaplin


(Carlitos), crítica ao trabalho e alienação em moldes capitalistas.

• Eles não usam black-tie (Brasil, 1981 – direção: Leon Hirszman).

A questão social implicada na desagregação da família, precisamente,


desde que um filho de sindicalista se recusa a participar de uma greve.

2. O homem no existencialismo

• A criança (Bélgica/França, 2005 – direção: Jean-Pierre Dardenne


e Luc Dardenne)

Drama em torno da responsabilidade de assumir um filho. Neste


sentido, o filme motiva reflexão sobre a correlação entre escolha e
responsabilidade.

• Sociedade dos poetas mortos (EUA, 1989 – direção: Peter Weir)

Um professor de literatura através de poetas clássicos tenta estimular


autarquia de pensamento em seus alunos.

antropologia filosófica | unidade 5 209


TEXTOS COMPLEMENTARES

Premissas da concepção materialista da história

Karl Marx e Friedrich Engels

As premissas com que começamos não são arbitrárias, não são dogmas,
são premissas reais, e delas só na imaginação se pode abstrair, são os
indivíduos reais, a sua ação e as suas condições materiais de vida, tanto
as que encontraram como as que produziram pela sua própria ação.
Estas premissas são, portanto, constatáveis de um modo puramente
empírico.

A primeira premissa de toda a história humana é, naturalmente, a


existência de indivíduos humanos vivos. O primeiro fato a constatar
é, portanto, a organização física destes indivíduos e a relação que
por isso existe com o resto da natureza. Não podemos entrar aqui,
naturalmente, nem na constituição física dos próprios homens, sem as
condições naturais que os homens encontram as condições geológicas,
oridrográficas, climáticas e outras. Toda a historiografia tem de partir
destas bases naturais e da sua modificação ao logo da História pela
ação dos homens.

Podemos distinguir os homens dos animais, pela religião, por tudo o


que se quiser. Mas eles começam a distinguir-se dos animais assim
que começam a produzir os seus meios de vida, passo este que é
condicionado pela sua organização física. Ao produzirem os seus
meios de vida, os homens produzem indiretamente a sua própria vida
material.

O modo como os homens produzem seus meios de vida depende, em


primeiro lugar, da natureza dos próprios meios de vida encontrados
e a produzir. Este modo de produção não deve ser considerado no
seu mero aspecto de reprodução da existência física dos indivíduos.
Trata-se já, isso sim, de uma forma determinada da atividade destes
indivíduos, de uma forma determinada de exprimirem a sua vida,
de um determinado modo de vida dos mesmos. Como exprimem
a sua vida, assim os indivíduos são. Aquilo que eles são, coincide,

210 FILOSOFIA
portanto, com a sua produção com o que produzem e também com
o como produzem. Aquilo que os indivíduos são, depende, portanto,
das condições materiais da sua produção.

Esta produção só surge com o aumento da população. Ela própria


pressupõe, por seu turno, um intercambio (Verkehr) dos indivíduos
entre si. A forma deste intercambio é, por sua vez condicionada pela
produção.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo:


Centauro Editora, s/d, p. 14.

O humanismo existencialista

Auguste Etcheverry

A corrente existencialista entrou pela primeira vez na história como


reação contra o racionalismo. Grande admirador de Hegel a princípio
não tardou que se não tornasse seu decidido adversário. [...]. Em da
existência concreta ergue-se um protesto contra o espírito sistemático.
[...]

O idealismo concentrou as suas investigações em especial sobre o


problema do conhecimento, tentando reduzir a metafísica à crítica. Ao
mesmo tempo fez desaparecer todo o interesse pela situação concreta
do homem vivo e responsável. Foi neste ambiente que o existencialismo
atual nasceu. [...].Substituindo a metafísica pela fenomenologia,
agarra-se à descrição de sentimentos vividos que prefere à definição
de ideias concebidas. A análise das situações particulares atrai-o mais
do que a busca de leis universais. [...]

A razão pretende demonstrar, explicar, classificar todas as coisas;


a seus olhos o universo é um campo aberto e público. Segundo o
existencialismo, pelo contrário, sendo a lógica hostil ao mundo e à
vida, a realidade mais profunda revela-se inefável: é um acontecimento
fechado e privado. [...]. Em resumo, é preciso substituir os caracteres
gerais que constituem a essência, pela situação própria de cada um
que define a existência. [...].

antropologia filosófica | unidade 5 211


Antes de ser uma metafísica da natureza, o existencialismo afirma-se
como filosofia do homem, centro de suas meditações. Não se trata do
homem em geral considerado em suas propriedades específicas, que
a tradicional psicologia ou antropologia descrevem, mas antes do ser
concreto que eu sou. [...]

Para quem se sente mergulhado no concreto, construir um edifício de


ideias puras equivale a um a invasão. Cada um de nós representa
livremente o drama de sua vida. Um sentimento de inquietude e
risco invade a alma; de abandono e de exílio, no meio de um mundo
estranho. O homem vive, no temor, na angústia, quando não no
desespero.[...]

J.-P. Sartre censura ao materialismo a assimilação do homem a uma


coisa.Queremos, escreve ele, um conjunto de valores distintos dos do
reino animal.

A seus olhos, o homem é uma consciência, de caráter original, no


meio das “coisas”, que preenchem o universo. Não aparece como elas
voltado a uma inexorável fatalidade. Todavia, a salvação não pode
vir senão de si próprio, porque a existência de Deus é uma enganosa
miragem.

Por meio da sua liberdade soberana o homem domina o universo e


dirige a história. Cria-se a si próprio e ao mundo por acréscimo. Por
suas próprias mãos tem que forjar o seu destino a cada instante e as
suas razões de vida.

Sozinho no mundo e sem amparo, como não sentirá a náusea a invadi-


lo? Em face de uma natureza absurda, uma vida absurda, tem por
epílogo uma morte absurda. Esta é a condição humana

ETCHEVERRY, Auguste. O conflito atual dos humanismos. Porto:


Tavares Martins, 1975, p. 61-65.

212 FILOSOFIA
ETCHEVERRY, Auguste. O Conflito Atual dos Humanismos.
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antropologia filosófica | unidade 5 213


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Realmente Buzzi (1987, p. 240) parece ter razão quando diz que “procurar
e encontrar é próprio do homem e isso o torna capaz de experiência. A
experiência, supõe, procura e encontro.” Nos orientamos exatamente por
esta expectativa de compreender melhor o homem, através dos temas
que estudamos, refletimos e discutimos. É verdade que nos conduzimos
sob advertência de que não há uma linearidade antropológica que possa
obedecer a uma espécie de “maquete arquétipa.” “Tudo que sabemos do
homem, tudo que cada um de nós sabe sobre si mesmo não corresponde
ao homem”, sabiamente diz Jaspers (2006, p. 48). Aliás, basta ressaltar que
as silhuetas movidas pelas relatividades culturais já alteram uma suposta
idealidade de apreensão definitiva do homem. Este, como sabemos, não
se permite fotografar assim. Por outro lado, nenhum sistema o aprisiona
por muito tempo, críticos radicais da estirpe de Jesus, Buda, Marx,
Nietzsche e mesmo movimentos “contraculturais” como nos anos 60 nos
Estados Unidos ou revolucionários latino-americanos, manifestam bem o
poder de transformação que o homem pode assumir. Mas esta labilidade
não impede que a antropologia demarque certos vestígios que explicitem
o fenômeno humano.

Assim, a antropologia, escapando aos critérios positivistas e


experimentalistas, permanece uma disciplina atraente porque seu
objeto, o próprio homem, é por natureza surpreendente e inesgotável,
tanto mais quando avançamos para a contemporaneidade.

De fato, a preposição pós é um designativo comum na sociedade


hodierna. Fala-se frequentemente em pós-metafísica, em pós-moderno
e até em pós-humano, para demarcar um mundo caracterizado pela
tecnociência, noutros termos, sofisticadas tecnologias espraiadas em
todas as dimensões. Uma revolução que no dizer de Adauto Novaes,
não é um acidente da civilização ocidental, mas sua própria essência.

Talvez estejamos vivendo aquilo que os iluministas preconizavam


como sendo os tempos em que, sob o reinado da razão autárquica,
desenvolvimentos científicos superariam desafios e resolveriam
problemas humanos. Efetivamente, podemos até assegurar que, de

214 FILOSOFIA
modo geral, a funcionalidade do mundo suporta-se no instrumental
tecnocientífico, tornando-se, com efeito, uma condição de possibilidade
de realizações e contentamentos humanos. Tecnologias ascendentes
nos surpreendem com inovações cada vez mais céleres e fabulosas e,
com isso, têm estreitado, proporcionalmente, o intervalo entre a ficção
e o real e excitado o homem ao que se chama tecnognosticismo - crença
numa força hiper-poderosa da tecnologia, provocada principalmente
em função da combinação por vezes híbrida entre o homem e a
máquina. O matemático norte-americano Vernon Vinge, por exemplo,
assegura que há possibilidades exequíveis de computadores de
inteligência sobre-humana e da biotecnologia expandir nosso intelecto
humano, de maneira que já estaríamos ingressando numa condição
pós-humana, que, segundo o ficcionista e ensaista Jair Ferreira, “o
que vivemos agora é a revolução artificial do homem, que deriva do
impacto das tecnologias da informação sobre a natureza humana.”
A informação é o elo entre o homem e a máquina. A sensação,
portanto, é que doravante a dinâmica do mundo e da vida dependerá
da intimidade entre ambos, homem e máquina. Com efeito, reflexões
sobre “o que é o homem?” envolvem, atualmente, a tecnociência.

Ressalve, entretanto, que este complexo cenário incita questões éticas


em torno de produções biotecnológicas como clonagens e transgenia,
panoptismo telemáticos, descartabilidades eletrônicas, impérios
cibernéticos, robótica etc., justamente porque podem resultar em Exclusão Social
Fonte: http://www.google.com.br
estilos de vida preocupantes: perda de privacidade, individualismo,
compulsões, ameaças, terrorismos etc. Além destes “males pós-
modernos,” ainda convivemos ironicamente com problemas históricos:
intolerância, desemprego estrutural, exclusão social, devastação
ambiental etc. Afinal, para onde estaríamos indo?

Os intelectuais da Escola de Frankfurt como Horkheimer e Adorno, no


começo do século passado, retomavam o signo do otimismo Iluminista Exclusão Social
Fonte: http://www.google.com.br
e se perguntavam: onde estaria a felicidade então profetizada pelos
iluministas? Diante das frustrações civilizatórias que testemunhavam,
rechaçaram veementemente a racionalidade cientificista. A ciência
tornou-se, com efeito, um fetiche, um mito, diziam eles. Mais
recentemente, Apel e Jean Ladrière asseveram que nunca a ética se
tornou tão urgente como em nosso tempo. De fato, quando convivemos
como uma situação em que dinheiro e poder através de diversos
mecanismos incidem corrosivamente sobre o mundo da vida (pessoa, Exclusão Social
Fonte: http://www.google.com.br

antropologia filosófica | unidade 5 215


cultura e sociedade) prevalece uma racionalidade instrumental, logo
patologias sociais são inevitáveis, adverte Habermas. Ainda convém
uma afirmação de Jean Baudrillard (reportando-se a Marx), frisada
por Novaes (2007, p. 6): “[...] hoje não basta transformar o mundo.
[...]. O que é preciso, urgentemente, é interpretar essa transformação –
para que o mundo não se transforme sem nós, e para que não se torne
finalmente um mundo sem nós”

Destarte, é neste complexo cenário que a Antropologia atualiza suas


inquirições, particularmente, aquela primordial, “o que é o homem?”,
que liga-se indissoluvelmente a outra: qual é o sentido da vida? Talvez
não se consiga responder satisfatoriamente questões como estas;
entretanto, parece que o parâmetro da transcendência sugerido por
Leonardo Boff nos suscita ao menos uma perspectiva razoável para
pensá-las e avaliá-las. Anseios e possibilidades transcendem ao mundo
e atestam, em tese, vocação e soberania humanas. Porém, é preciso
que se avalie ininterruptamente a qualidade de qualquer tipo de
transcendência. Quando esta orienta para alienações, desumanismos,
compulsões, individualismos, corrupções, usuras ou atitudes do
gênero, trata-se, a rigor, de pseudo-transcendência.

Portanto, caros amigos e amigas, encerrando este nosso curso,


esperamos ter esclarecido pelo menos em parte certos aspectos que
envolvem o fenômeno humano e, mais do que isso, despertado
reflexões, questões e senso crítico em torno do assunto, sobretudo o
homem situado na conjuntura atual.

Agradecemos, por fim, a todos os eficientes profissionais que


viabilizaram este material de estudo e, principalmente, a vocês que
enquanto acadêmicos assumiram com responsabilidade os estudos
propostos. Antes de tudo lembremo-nos sempre que originalmente
a filosofia significa a amizade, a ansiedade, o amor pela sabedoria.
Isto nos anima a estudá-la cotidianamente, a encará-la com seriedade
e amabilidade ao mesmo tempo, isto nos torna pessoas, cidadãos e
profissionais e intelectuais conscientes, honestos, críticos, rebeldes e
envolvidos em processos de transformações sociais necessárias.

Muito obrigado!
Professor Msc. José Carlos Dantas

216 FILOSOFIA
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