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Literaturas Africanas em Língua Portuguesa

Autores clássicos das literaturas africanas em língua portuguesa

Objetivos de aprendizagem

• Reconhecer os autores clássicos das literaturas africanas em língua


portuguesa.
• Analisar os principais aspectos da obra de cada um desses autores.
• Contrastar semelhanças e diferenças nessas obras.

Introdução
Você já deve ter ouvido falar de autores como José Craveirinha, Agostinho Neto,
Orlanda Amarílis, Luandino Vieira, Paulina Chiziane e Mia Couto. Mas você conhece a
obra desses autores e sabe sobre importância que eles exercem na literatura de seus
países? Neste texto, você irá conhecer alguns autores que podem ser considerados
clássicos das literaturas africanas em língua portuguesa.

Autores clássicos

Quando nos deparamos com os autores clássicos das literaturas de diferentes


países, geralmente eles são escritores distantes, no que diz respeito ao tempo, da
contemporaneidade. Contudo, nas literaturas africanas em língua portuguesa essa
situação é um pouco diferente devido ao fato de considerarmos o início dessas
literaturas a partir do século XX, momento em que se inicia o processo de afirmação
dos sujeitos locais frente ao colonialismo. Durante o período de colonização, também
foram produzidos textos literários, no entanto, eles apresentavam o ponto de vista do
colonizador português. Por isso, entendemos as literaturas como angolanas,
moçambicanas e cabo-verdianas a partir do momento em que os escritores adotam
uma perspectiva local. Nesse sentido, são considerados clássicos autores
fundamentais para a consolidação de uma estética própria nas literaturas desses
países. Você vai conhecer a seguir alguns desses autores.

José Craveirinha
O poeta José Craveirinha, que você pode ver na foto da Figura 1, nasceu na
cidade de Maputo, anteriormente denominada Lourenço Marques, em Moçambique,
em 28 de maio de 1922, e faleceu em 6 de fevereiro de 2003. Seu pai era de Algarve e
sua mãe era africana. Esteve intimamente ligado a atividades políticas relacionadas à
independência de Moçambique, tendo grande influência na Frente de Libertação de
Moçambique (FRELIMO). Foi preso de 1965 a 1969 pela Polícia Internacional e de
Defesa do Estado (PIDE), que atuou fortemente durante a ditadura de António Salazar
em Portugal, devido a sua atuação política.

Figura 1. José Craveirinha.


Fonte: Mozambique History Net (2012)

Como jornalista, Craveirinha trabalhou nos principais veículos da imprensa de


seu país: Notícias, O Brado Africano, A Tribuna, Notícias da Beira, O Jornal e Voz de
Moçambique. Ocupou, também, o cargo de primeiro presidente da Associação dos
Escritores Moçambicanos (AEMO), depois da independência. Sobre si, ele faz o
seguinte depoimento (RODRIGUES, 2017):

Nasci a primeira vez em 28 de maio de 1922. Isto num domingo. Chamaram-me


Sontinho, diminutivo de Sonto. Pela parte da minha mãe, claro. Por parte do meu pai
fiquei José. Aonde? Na Av. do Zichacha entre o Alto Maé e como quem vai para o
Xipamanine. Bairros de quem? Bairros de pobres. Nasci a segunda vez quando me
fizeram descobrir que era mulato. A seguir fui nascendo à medida das circunstâncias
impostas pelos outros. Quando o meu pai foi de vez, tive outro pai: o seu irmão. E a
partir de cada nascimento eu tinha a felicidade de ver um problema a menos e um
dilema a mais. Por isso, muito o cedo, a terra natal em termos de Pátria e de opção.
Quando a minha mãe foi de vez, outra mãe: Moçambique. A opção por causa do meu
pai branco e da minha mãe negra. Nasci ainda mais uma vez no jornal "O Brado
Africano". No mesmo em que também nasceram Rui de Noronha e Noémia de Sousa.
Muito desporto marcou-me o corpo e o espírito. Esforço, competição, vitória e derrota,
sacrifício até à exaustão. Temperado por tudo isso. Talvez por causa do meu pai, mais
agnóstico do que ateu. Talvez por causa do meu pai, encontrando no Amor a
sublimação de tudo. Mesmo da Pátria. Ou antes principalmente da Pátria. Por causa
da minha mãe só resignação. Uma luta incessante comigo próprio. Autodidata. Minha
grande aventura: ser pai. Depois eu casado. Mas casado quando quis. E como quis.
Escrever poemas, o meu refúgio, o meu país também. Uma necessidade angustiosa e
urgente de ser cidadão desse país, muitas vezes altas horas da noite.

Entre tantos dados biográficos que Craveirinha menciona, você pode perceber
um grande envolvimento do poeta com sua produção literária, que toma também como
uma forma de intervir politicamente na sociedade. Seus poemas circulavam
inicialmente de forma clandestina entre os pensadores africanos, sobretudo da Casa
dos Estudantes do Império (CEI). Posteriormente, os textos são reunidos em livros
para serem publicados. Entre eles, podemos destacar: Chigubo, editado inicialmente
em 1964 e reeditado em 1980 sob o título Xigubo (dança tradicional guerreira do sul
de Moçambique); Karingana ua karingana (expressão equivalente a "era uma vez ... ",
utilizada pelos povos de etnia ronga para contar uma história), também editado de
início em 1974 e posteriormente revisado em 1982; e Cela 1, publicado em 1980.
Essas publicações apontam para as principais tendências em seus textos.
Considerando a influência inicial do neorrealismo português para sua obra,
Craveirinha denuncia a exploração do negro africano durante o período colonial e a
degradação a que esse sujeito foi submetido. Dessa forma, são tônicas a negritude,
que valoriza a identidade do negro, a condição da moçambicanidade e a luta pela
libertação do país. A discussão desses aspectos revela a preocupação do autor com a
questão do local de onde fala, Moçambique, e considerando o uso da língua
portuguesa.
Apesar da língua portuguesa ser a língua do colonizador, ela é utilizada de
forma subversiva como instrumento de luta. Isso se expressa por meio de uma
linguagem que se aproxima da oralidade, fundamental para as culturas africanas, pelo
uso de palavras e da estrutura da língua ronga, uma das línguas locais, e pelo uso de
recursos narrativos, inclusive na poesia, reforçando a busca de uma estética que se
aproxime da oralidade.
Veja, como exemplo, "Grito negro", poema publicado no livro Xigubo
(CRAVEIRINHA, 1980, p. 13):
Eu sou carvão!
E tu arrancas-me brutalmente do chão
E fazes-me mina Patrão!

Eu sou carvão!
E tu acendes-me, patrão
Para te servir eternamente como força motriz
Mas eternamente não Patrão!

Eu sou carvão!
E tenho que arder, sim
E queimar tudo com a força da minha combustão.

Eu sou carvão!
Tenho que arder na exploração
Arder até às cinzas da maldição
Arder vivo como alcatrão, meu irmão
Até não ser mais tua mina Patrão!

Eu sou carvão!
Tenho que arder
E queimar tudo com o fogo da minha combustão.

Sim!
Eu serei teu carvão Patrão!

No poema, o sujeito lírico expressa sua revolta por meio da consciência em


relação à exploração que sofre pelo colonizador português.
O sistema colonial pressupõe a inferioridade do negro, tanto moral como
culturalmente, e a superioridade do branco, que possibilitou um discurso de direito à
"posse" por parte deste último em relação ao sujeito negro na condição de escravo.
Nesse sentido, o poema de Craveirinha não apenas denuncia a lógica desse
sistema que gerou tanto sofrimento, mas também considera esse sujeito agente da
sua própria história. Por isso, à medida que o poema vai se desenvolvendo, a imagem
"coisificada" do negro dá espaço para o desejo de lutar, de mudar a situação em que
se encontra (como se lê no verso, "mas eternamente não").
Confira o vídeo, disponível no link a seguir, José Craveirinha declamando seu
poema "Grito negro" no Festival Internacional de Poesia de Medellín, na Colômbia
(REVISTA PROMETEO, 2007):
https://goo.gl/XCqDAZ

Agostinho Neto

António Agostinho Neto, que você pode ver na foto da Figura 2, nasceu em 17
de setembro de 1922, em Ícolo e Bengo, em Angola, e faleceu em 10 de setembro de
1979. Cursou Medicina na cidade de Lisboa e exerceu sua escrita como poeta. Teve
grande importância na luta pela independência de seu país, tendo sido preso pela
PIDE e exilado em Cabo Verde.
Na década de 1940, participou de diversas atividades políticas e culturais que
propunham a reflexão sobre as identidades culturais na CEI. Integrou o importante
grupo de jovens intelectuais a favor da independência que surgiu na ainda colônia,
"Vamos descobrir Angola", mesmo estando em Portugal.
Em 1950, colaborou com a revista Mensagem e criou, junto com importantes
pensadores das independências, como Amílcar Cabral, Mário de Andrade, Marcelino
dos Santos e Francisco José Tenreiro, o Centro de Estudos Africanos, que tinha, entre
tantos outros, o objetivo da afirmação identitária.
Atuou como presidente do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA)
e, posteriormente, como primeiro presidente de Angola, em 1975. Também foi um dos
fundadores da União dos Escritores Angolanos. É considerado um ícone política,
cultural e literariamente.

Figura 2. Agostinho Neto.


Fonte: Encyclopaedia Britannica (c2017).
Em relação a sua produção, assim como ocorre com Craveirinha, é importante
atentar para o fato de que os poemas foram publicados, de início, clandestinamente,
por meio de cópias ou de revistas, nos meios onde circulavam os intelectuais da
época, como a CEI.
Apenas depois dessa circulação inicial que esses textos foram reunidos em
coletâneas para publicação.
Entre a sua produção, especial destaque é dado para a coletânea de poemas
Sagrada Esperança (1974). Nela, a libertação de seu povo a tomada de
consciência em relação à opressão gerada pela empresa colonial e a identidade
negra são algumas das temáticas abordadas, evidenciando influência do neorrealismo
português.
Ao ter contato com textos da Negritude francófona, entre outras importantes
referências, como Roumain, Guillén e Wright, Neto dirige sua luta para a união de
todos os negros e africanos de forma geral, aderindo, então, também aos ideais do
Pan-africanismo de forma moderada, sem abrir mão da influência do neorrealismo
português.
Essa concomitância de influências se dá devido ao fato de ambos os
movimentos constituírem a expressão da luta por uma sociedade mais justa, sem
repressão, sem exploração e sem racismo.
Portanto, a obra de Neto reflete sobre a questão da Negritude, vista nesse
momento positivamente, valorizando a cultura e a história locais como formas de
afirmação do sujeito negro.
Esse movimento também foi importante para estabelecer a necessária
identificação, a fim de que houvesse a união entre os povos africanos. Essa união era
necessária para a busca da descolonização dos sujeitos, outro ideal pelo qual lutava o
poeta.
O poema que você vai ler é "Aspiração" (AGOSTINHO NETO, 1949), que
compõe o livro Sagrada Esperança. Leia-o a seguir:

Ainda o meu canto dolente


e a minha tristeza
no Congo na Geórgia no Amazonas

Ainda
o meu sonho de batuque em noites de luar

Ainda os meus braços


ainda os meus olhos
ainda os meus gritos

Ainda o dorso vergastado


o coração abandonado
e a alma entregue à fé
ainda a dúvida

E sobre os meus cantos


os meus sonhos
os meus olhos os meus gritos
sobre o meu mundo isolado
o tempo parado

Ainda o meu espírito


ainda o quissange*
a marimba
a viola
o saxofone
ainda os meus ritmos de ritual orgíaco

Ainda a minha vida


oferecida à Vida
ainda o meu Desejo

Ainda o meu sonho


o meu grito
o meu braço a sustentar
o meu Querer

E nas sanzalas
nas casas
nos subúrbios das cidades
para lá das linhas
nos recantos escuros das casas ricas
onde os negros murmuram: ainda
O meu Desejo
transformando em Força
inspirando as consciências desesperadas.
(*Quissange: instrumento musical angolano.)

Como o próprio título sugere, "Aspiração" traz à tona o desejo pela libertação
de Angola, pela qual o poeta tanto lutou em vida.
O tom que prevalece no poema é o da tristeza, acompanhada da consciência
da opressão colonial, que se estende ao Congo, à Geórgia e ao Amazonas, ou seja, a
lugares importantes para os continentes africano e americano. São esses os lugares
para onde os sujeitos negros na condição de escravos foram levados à força.
No que se refere à linguagem., as repetições das estruturas sintáticas (como se
lê em "Ainda o meu canto dolente", "Ainda/ o meu sonho de batuque em noites de
luar", "Ainda os meus braços [ ... ]") aproximam o poema da linguagem oral, de uma
poesia que se pretende um canto a ser ecoado por todos os lugares, e reforçam a
ideia de permanência da opressão colonial com o uso do advérbio "ainda", usado
diversas vezes.
Devido à permanência mencionada, a liberdade ainda está no plano do sonho.
Entretanto, a conscientização, que precede a libertação, só pode ocorrer por meio da
valorização da cultura, sendo esta retomada pela menção aos instrumentos musicais
(quissange, marimba, viola, saxofone).
No poema (AGOSTINHO NETO, 1949), são citados os espaços ocupados
pelos negros na nona estrofe (senzalas, subúrbios das cidades, recantos escuros das
casas ricas), os quais são marcados pela perifericidade.
A partir deles, ao sujeito negro só é permitido o murmúrio. Nesse momento, o
grito ainda está contido, mas a revolta já está presente de maneira intensa, e se
constitui como força motriz para a revolução que se aponta.

Orlanda Amarílis
Orlanda Amarílis Lopes Rodrigues Fernandes Ferreira, na foto da Figura 3,
nasceu em 8 de outubro de 1924, em Cabo Verde, e faleceu em I de fevereiro de
2014. Sua família foi muito importante para o cenário literário de Cabo Verde, tendo o
seu pai, Armando Napoleão Rodrigues Fernandes, publicado o primeiro dicionário da
língua crioula no país.
Amarílis cursou Magistério em Goa e posteriormente Pedagogia em Lisboa,
local onde passou a viver. Casou-se com Manuel Ferreira, outro importante intelectual
que lutava pela libertação das colônias portuguesas e nome fundamental para a
literatura cabo-verdiana. Fez parte do rol de escritores que publicou na revista Certeza
(1944), que exerceu, juntamente com a revista Claridade (1936-1960), papel crucial
para a difusão dos ideais nacionais no país. Também integrou o Movimento Português
contra o Apartheid e a Associação Portuguesa de Escritores.

Figura 3. Orlanda Amarílis.


Fonte: Fenske (2015).

Sua obra, como ocorre com outros escritores dessa geração, se encontra
dispersa em revistas e antologias e já foi traduzida para diversas línguas. Entre as
coletâneas de contos da autora, destacam-se Cais-do-Sodré té Salamansa (1974) e A
Casa dos Mastros (1989).
Como é de se esperar, devido ao seu vínculo com a revista Certeza, a
narrativa de Amarílis evidencia forte ligação com o neorrealismo português, que tornou
latente a preocupação com a perspectiva social nos textos. Além disso, também
pende, mesmo que a própria autora não concorde, para o realismo fantástico, que se
entrelaça ao elemento místico das culturas africanas.
Por meio de urna linguagem que mescla ao português a oralidade da língua
cabo-verdiana, Amarílis traz à tona a difícil realidade do povo cabo-verdiano, que
precisa migrar para obter melhores condições de vida, bem como a realidade das
mulheres. Dessa forma, a diáspora, o exílio, a insularidade e a condição feminina são
temáticas centrais em seus textos.
O conto sobre o qual vamos nos ater chama-se "A Casa dos Mastros"
(AMARÍLIS, 1989), e compõe a coletânea homônima.
Nessa narrativa, a denúncia da violência e da lógica patriarcal do colonialismo
são eixos centrais. A narradora, morta, nos conta a história de Violete (nome que
remete à violência), entrelaçando passado e presente. A personagem vive na casa
mencionada no título do conto junto com sua família, porém a convivência diária não
garante a aproximação entre as pessoas que convivem no local. Ao ser abandonada
pelo noivo, essa personagem passa a ser uma pessoa mais amarga, e seu futuro não
aponta para qualquer tipo de realização pessoal. Depois do episódio com o noivo,
Violete descobre ainda traições do pai quando era casado com sua mãe. Essa
revelação gera um conflito intenso na personagem, de modo que chega ao seu ápice
quando ela agride a madrasta, D. Maninha, que acaba morrendo. Sentindo-se culpada
pelo que fez, a personagem vai à igreja em busca de redenção. No entanto, o local
que seria o do encontro de auxílio espiritual surge como um espaço de violência, pois
o padre André, a quem recorre, a estupra. Ela também sofre abuso por parte do primo
e do próprio pai. Este último caso faz com que a personagem nunca mais fale. Assim,
Violete e o pai continuam vivendo na casa dos mastros até a morte, quando vão ao
encontro da narradora.
As violências que a personagem sofre certificam o estado de inferioridade
como é tratada a mulher cabo-verdiana, como o fim do noivado, o estupro pelo padre,
pelo primo e pelo próprio pai, um trauma incapaz de ser apagado. A narradora
também vê na história de Violete sua história refletida, no sentido de ambas viverem
sob a mesma lógica social.
É importante que você pense sobre a escolha de uma narradora que se suicida
e volta ao mundo dos vivos para contar a história da personagem. Ao optar pela figura
da suicida, Amarílis aponta para a fundamental questão da liberdade de expressão
feminina que, nesse caso, só se realiza com a morte, revelando uma crítica
contundente à estrutura social cabo-verdiana que acaba por silenciar as mulheres.
Nesse sentido, ao centrar o foco de sua narrativa na vida de uma mulher
reprimida, explorada e violentada pelo poder patriarcal, Amarílis (l 989) representa
amplamente a condição da mulher cabo-verdiana. O próprio título do conto remete ao
poder patriarcal e o revela como uma extensão do sistema colonial que subjuga os
sujeitos. Daí a percepção que os homens no conto têm em relação ao corpo das
mulheres, tidos como meros objetos à disposição do seu prazer.

José Luandino Vieira

José Vieira Mateus de Graça, que você pode observar na foto da Figura 4,
nasceu em 4 de maio de 1935 em Portugal, mas foi para Angola com 3 anos, onde
viveu sua infância e juventude. Foi membro do MPLA, incentivando a libertação da
ainda colônia portuguesa.
Foi preso pela PIDE e posteriormente exilado em Cabo Verde no ano de 1964.
Depois de quatro anos de permanência na prisão, a Sociedade Portuguesa dos
Escritores, por aval do então presidente Jacinto do Prado Coelho, premiou-o por seu
livro de contos Luuanda.
A imprensa noticiou o fato, que em seguida foi censurado pelo governo, e a
instituição dos escritores foi destruída. Além disso, o escritor foi taxado como terrorista
pelas autoridades do governo português. Apenas em 1972 Vieira foi liberto, mas ainda
sob regime de vigilância. Nesse momento, começou a publicar seus livros, a maior
parte escrita durante o período em que esteve preso. Desempenhou diversas
atividades importantes em Angola. Entre elas, podemos destacar sua atuação para a
libertação do país, os cargos de diretor da Televisão Popular de Angola, diretor do
Departamento de Orientação Revolucionária do MPLA, diretor do Instituto Angolano de
Cinema e como membro fundador da União dos Escritores Angolanos.

Figura 4. Luandino Vieira.


Fonte: Castanheira (2015).

A obra de Luandino Vieira é bastante vasta e de suma importância para as


literaturas africanas. Sua produção é composta por contos, novelas, romances, textos
infanto-juvenis, poemas, entre outros.
Seus livros receberam diversas reedições e traduções. Entre os principais
estão: A vida verdadeira de Domingos Xavier (1961), Luuanda (1963), Nós, os do
Makuluso (1974) e João Véncio: os seus amores (1979).
Em 2006, foi contemplado com o Prêmio Camões, no entanto o recusou. Como
os demais escritores, também centra sua discussão na violência sofrida pelo
colonizado e na necessidade da conscientização para a libertação de seu povo. Para
tanto, retrata a sociedade em que seus personagens vivem e seus conflitos
psicológicos em meio ao despertar para a consciência de um sentimento de
angolanidade.
Seus textos evidenciam um importante trabalho com a linguagem, até então
não realizado nas literaturas africanas. Se a opção pela língua portuguesa, por ser a
língua do colonizador, sempre foi vista como um problema para os autores que
buscavam romper com o colonialismo e tudo que o representasse, Luandino Vieira
resolve muito bem essa questão ao trazer para a ficção uma construção nova da
língua, com influência da língua portuguesa falada nos musseques (bairros periféricos
de Angola) e do quimbundo (uma das línguas locais).
Dessa forma, são utilizados neologismos, gírias e outros recursos orais e de
alteração na estrutura sintática do português. Como uma forma de evidenciar a
importância das narrativas orais na África, o escritor passa a denominar suas
narrativas de "estórias", como fez o brasileiro Guimarães Rosa. Seriam as estórias de
Vieira uma mistura de mussosso (narrativas populares contadas em Angola) e fábula,
de modo a criar uma aproximação com as narrativas populares e a propor a reflexão
da violência colonial a partir do cotidiano do musseques. O conto que veremos chama-
se "Estória da galinha e do ovo" e integra a coletânea Luuanda (VIEIRA, 2004), que foi
escrita durante o período em que o autor esteve preso e é considerada fundamental
para as literaturas africanas devido ao seu caráter inovador.
As estórias que compõem esse livro têm como eixos norteadores a fome e a
pobreza e evidenciam uma posição ideológica marcadamente anticolonialista. "Estória
da galinha e do ovo" (VIEIRA, 2004) tem como espaço o musseque Sambizanga, um
bairro periférico de Luanda. A tensão do conto centra-se na maka (conflito) entre duas
vizinhas: nga Zefa e nga Bina por causa de um ovo. Nga Zefa, uma idosa, dona da
galinha Cabíri, afirma que Bina, uma jovem grávida, roubou o ovo que Cabíri pôs.
Contudo, Bina julga ter direito ao ovo, uma vez que a galinha foi botá-lo no seu quintal.
Nesse momento, diversas personagens são envolvidas a fim de resolver o
conflito, todas representativas de diferentes setores da sociedade: um comerciante,
um proprietário de terras e de cubatas (habitações precárias onde as pessoas
moravam), um seminarista e um ex-ajudante de notário. De forma ampla, temos então
representados os setores do comércio, da burguesia colonial e da religião, com a
assimilação dos sujeitos e a hipocrisia pela exaltação das boas aparências (apenas
exteriores) e da burocracia.
Você deve atentar para o fato de que essas personagens, ao tentarem resolver
o conflito, buscam favorecer a si. Encaminhando-se para o momento do fim da
narrativa, a polícia age violentamente contra as mulheres e impõe seu poder decidindo
levar Cabíri para a prisão, contudo uma forma de punir as pessoas pela confusão que
geraram. No entanto, a galinha ouve o canto de Beto, filho de Zefa, imitando um galo e
voa em liberdade. Os policiais vão embora irritados, e Zefa dá o ovo à Bina, dizendo
entender essas fomes da gravidez.
*Nga é um modo respeitoso de chamar mulheres e homens.
Em sua narrativa, ao optar por centrar o conflito na posse do ovo, Luandino
Vieira (2004) denuncia a pobreza em que vivem os sujeitos nos bairros periféricos de
Luanda e põe em questão a noção de posse, que não estava presente nessas
sociedades antes da chegada do branco colonizador.
Simbolicamente, tanto o ovo como a gravidez de Bina, cuja barriga muito se
assemelha a um enorme ovo, como diz o narrador, remetem ao princípio da vida.
Esses símbolos, junto à imagem final da galinha em voo para a liberdade,
permitem a interpretação do nascimento de uma nova sociedade, que só poderá
acontecer pela união do povo do musseque e pela vitória do novo, representado pelo
menino Beto, em relação ao velho.
Dessa forma, Vieira (2004) se vale de uma linguagem simbólica em sua estória
para problematizar a história de Angola, exigindo ao leitor uma reflexão no âmbito da
coletividade em que se insere.

Saiba mais
O filme Sambizanga, produzido por Sarah Maldoror, é baseado na narrativa A vida
verdadeira de Domingos Xavier, de Luandino Vieira. Confira o filme e a narrativa do
escritor para comparar os dois gêneros e conhecer um pouco mais sobre a realidade
de Angola.

Conclusão
A noção de clássicos é bastante relativa, uma vez que as narrativas
consideradas canônicas são móveis e dependem do ponto de vista de quem as
determina.
Diferentes perspectivas implicam, portanto, a escolha por diferentes autores e
obras. Desse modo, realizamos uma exposição breve de alguns autores e obras que
foram fundamentais à consolidação de um estilo literários próprio em Moçambique,
Angola e Cabo Verde. Isso não significa, porém, que outros autores ou obras também
não tenham contribuído de maneira decisiva para as literaturas africanas em língua
portuguesa.
Referências

AGOSTINHO NETO, A Aspiração. Luanda: FAAN, 1949. Disponível em: <http://www.


agostinhoneto.org/index.php7option=com_content&view:artide&id=592:aspiraca
o&catid=45:sagrada-esperanca&ltemid=233>. Acesso em: 10 fev. 2020.

AMARÍLIS, O. A casa dos mastros. Linda-a-Velha: ALAC, 1989.

CRAVEIRINHA, MOZAMBIQUE HISTORY NET 7922-2003. [S.I.), 2012. Disponível em:


<http://www.mozambiquehistory.net/craveirinha.php>. Acesso em: 05 fev. 2020.

CRAVEIRINHA, J. Xigubo. Lisboa: Edições 70, 1980.

FENSKE, E. K. Orlando Amarílis: o universo cabo-verdiano. [S .I.J: Templo Cultural


Delfos, 2015. Disponível em: <http://www.elfikurten.eom.br/2015/05/orlanda-
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REVISTA PROMETEO. Grito negro (José Craveirinha, Mozambique). [S.I.J: Youtube,


2007. 1 vídeo. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=p6Ug9c2riCU>.
Acesso em: 05 fev. 2020.

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