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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

CENTRO DE ARTES E LETRAS


Disciplina: PPGLET 842- Aspectos da Narrativa Moderna
Docente: Maria Eulália Ramicelli
Acadêmica: Luciane Bernardi de Souza

Texto de reflexão sobre o eixo teórico “Romance e Realismo”, a partir dos textos “O
realismo e a forma romance” de Ian Watt, “O século sério” de Franco Moretti e
“Reflexões sobre o romance moderno” de Anatol Rosenfeld.

Considerações iniciais
Condenado injustamente por uma pretensão que nunca de fato possuiu, o estilo literário
realista foi durante muito tempo fortemente criticado e estigmatizado por grande parte da crítica
literária, que muitas vezes o reduziu à um conjunto de técnicas que visavam a estrita cópia do
real, tratando-o de modo simplista e atribuindo-lhe muitas vezes o rótulo de “falsário”. No
entanto, ainda que injustiçado, o realismo e seu potencial de representação não se exauriu e a
prova disso é que este estilo continua sendo questão de debate entre os críticos e teóricos da
literatura, questão essa intrincada e imprecisa que, desde o seu surgimento no século XVIII,
renasce de tempos em tempos.
Destarte, falar de realismo é simultaneamente evocar o gênero romance, ambos nascidos
no berço da modernidade (entre os séculos XVIII e XIX na França e Inglaterra) e ligados
umbilicalmente. A dupla, formada por uma união instável e volúvel, se desenvolveu
alimentando-se dos ideários positivistas de uma sociedade burguesa industrial em ascensão. Tal
união deu-se uma vez que o romance buscava representar os aspectos do mundo referencial
dessa nova sociedade em formação e, para tal, contou com o desenvolvimento de um arcabouço
de procedimentos formais, estilísticos e técnicos que Ian Watt (2010) denominou de “realismo
formal”. Nesse sentido, esse gênero “plástico” ao estar desde a sua origem intrinsicamente
ligado ao referente, e este, por sua vez, estar em constante mudança, foi adquirindo diferentes
tonalidades e nuances que acompanharam as mudanças socioculturais e econômicas da própria
sociedade, do próprio real. De tal modo, para manter-se vivo e atuante o gênero teve que
adequar-se ao constante dinamismo do mundo, resistindo à cristalização de sua forma e
perdurando até os dias de hoje.
Nesse sentido, se em sua “adolescência” (século XVIII e XIX) esse gênero buscava
pintar o real com fidelidade, representando a vida comum e cotidiana com precisão de detalhes e
criando assim a “ilusão de real”, a partir do século XX, agora já em fase de “maturação” (e, por
que não, em uma fase de “crise” e modificação da relação com o seu “irmão”) mudanças
formais e técnicas foram vistas como uma necessidade para que este se mantivesse vivo. Tais
transformações, que buscavam traduzir o dinamismo social da sociedade mercadológica
moderna, modificaram as convenções realistas passadas, apresentando por vezes um gênero
autônomo, capaz de se afastar do real empírico, mas nunca independente deste. Tal processo de
afastamento em relação ao real é denominado por Anatol Rosenfeld (1985) de estética da
“desrealização” e busca representar uma sociedade estilhaçada e cada vez mais descrente do
poder de abrangência do controle e conhecimento humano sobre o mundo. O resultado dessas
novas visões e percepções para a forma romance foi o desenvolvimento de técnicas que
representam a interiorização do indivíduo, em que o foco torna-se a descrição do “interno” e não
mais a predominância do real “externo”. Assim, a forma estrutural e as temáticas do gênero
acompanharam (e continuam acompanhando) as mudanças estruturais da própria sociedade,
ainda que este gênero não enfatize de modo absoluto e intenso seu referente externo.
Nessa perspectiva, os textos “O realismo e a forma romance” de Ian Watt, “O século
sério” de Franco Moretti e “Reflexões sobre o romance moderno” de Anatol Rosenfeld
discutem, cada um com ênfase em um determinado período social e histórico específico, a
formação e constituição do gênero romance e sua relação com a forma realista de composição
literária (forma esta que vai além da denominação dada à escola do século XIX) bem como com
o real. Tomados em seu conjunto, o potencial de abrangência destes textos sobre o gênero
romance e sua relação com o realismo literário estende-se do século XVIII com Ian Watt,
tangenciando o XIX com Franco Moretti e alcançando o século XX com Anatol Rosenfeld.
De tal modo, nesse trabalho buscamos pôr em diálogo estes autores que, além de
apresentar a envergadura ilimitada desse gênero (em função da sua estrutura específica e
mutante), discutem como este tornou-se suficientemente capaz de representar tanto a vida mais
“rasteira” e cotidiana (XVIII e XIX) quanto os sentimentos e sensações mais complexos da
existência humana (XX).

Discussão teórica
O gênero romance, fruto da sensibilidade específica de uma época e expressão fidedigna
do mundo moderno, é abordado nos três textos a partir de duas grandes reflexões: a de sua
relação com sua origem no seio da sociedade moderna, berço que lhe possibilitou desenvolver-
se e tornar-se um adulto vigorosamente metamórfico e a questão do realismo, que estende-se a
da representação literária. A relação estreita entre esta forma ficcional camaleônica e um
determinado conceito de realidade atribuem a este gênero um caráter elástico, fazendo do elo
com o referente externo um ponto nevrálgico de discussão, na medida em que o romance
acompanha as mudanças temporais e sociais, mantendo-se fixado ao real.
Para facilitar a visualização da relação entre o real e a representação estética, Franco
Moretti e Anatol Rosenfeld realizam um paralelo entre o gênero romance e a pintura, de modo
que esta última possibilita uma melhor e mais imediata visualização das técnicas de composição
artística da modernidade, bem como suas transformações. Nesse sentido, o ânimo de nossa
discussão dá-se considerando essa relação problemática: o surgimento e peculiaridade do gênero
romance e sua relação intrínseca com as formas de abordar e representar o real, na medida em
que o gênero alimenta-se deste, transformando-o e sendo transformado por ele, em uma relação
dialética e recíproca.
Todavia, a questão é complexa, pois como qualquer outro conceito engendrando pelo
ser humano, a noção de real apresentou (e continua a apresentar) transformações de acordo com
o contexto social e histórico em que é concebida. No século XIX o real era aquilo que se podia
ver e tocar (Ian Watt ressalta essa noção em seu texto, ao colocar o empirismo e o realismo
filosófico como a lente de um mundo que está aí, e que cabe a nós entende-lo) e as
manifestações estéticas, em decorrência dessa visão, acreditavam que deveriam representar o
mundo em sua inteireza, com minúcia de detalhes. Na literatura, em específico, essa visão sobre
o real e a concepção artística ocorreu através da construção e organização discursiva detalhada e
fiel da vida concreta e cotidiana, através de o “realismo formal”. Entretanto, enquanto estilo
com regras internas, é importante ressaltar que este nunca teve a pretensão de copiar a
realidade, mas de criar a ilusão de um real concreto, uma vez que o gênero pareceu ser a grande
promessa de uma forma literária que buscava representar a totalidade e a completude da vida.
Definida com maestria pelo teórico inglês, a convenção formal realista, assim como o
romance, desde o seu nascimento incorporou uma visão da existência humana do século XVIII,
século no qual tanto a filosofia como a literatura voltavam sua atenção para o sujeito individual,
com uma experiência particularizada. Com um enredo sem precedentes (na mitologia, História,
fábulas, bíblia, lendas e enredos de epopeias), centrado na fidelidade da experiência única e
renovada do indivíduo, este é colocado como elemento central da trama. De acordo com Ian
Watt o que ocorre nessa nova forma literária em relação à epopeia, por exemplo, é a substituição
do coletivo pelo sujeito individual (que agora ganha um nome e sobrenome). Outro índice
importante destacado pelo autor é a questão temporal, na medida em que este elemento passa a
moldar, através do poder agente da memória, a identidade e personalidade do sujeito.
Além disso, a presença de relações causais é o elemento que mais atribui coesão a essa
nova forma narrativa, assim como a descrição detalhada (2010, p.23) dos espaços (passam a ser
definidos com uma riqueza de detalhes nunca antes vista na literatura) e ações cotidianas,
elementos que atribuem a impressão de fidelidade do romance ao real. A linguagem apresenta-
se muito mais referencial, principalmente devido à exaustão da descrição e apresentação de
cunho analítico, que fazem com que correspondência entre as palavras e os objetos do mundo se
tornem mais imediatas. Assim, tanto a temática, centrada na vida particular dos indivíduos, mas
em especial a forma como essa vida é representada, através destes elementos discursivos
destacados, tornam o romance “um relato autêntico das verdadeiras experiências individuais”
(2010, p.29), que fazem com que o leitor vislumbre uma imitação mais imediata da experiência
individual situada em um contexto espacial e temporal especifico.
No entanto, ainda que o teórico inglês coloque a definição “realismo formal” como
“estrita”, esta é suficiente para visualizarmos a face desse novo gênero, ressaltando ser o
conjunto de elementos assim denominados o diferencial entre formas ficcionais anteriores à do
século XVIII. Para Ian Watt fica evidente que o foco de sua discussão é a questão formal, na
medida em que afirma categoricamente que “o realismo não está na espécie de vida
representada, e sim na maneira como a representa” (2010, p.11).
Dando continuidade ao percurso de Ian Watt, em seu ensaio “O século sério” (2003)
Franco Moretti discute com maestria a presença de alguns procedimentos formais de
constituição do gênero romance em obras de autores do século XIX (entre os quais figuram os
nomes de Jane Austen, Balzac e Flaubert). Realizando comparações com pinturas do holandês
Vermee e tomando como referência romances do século XIX o foco central do ensaio é a
formação e consolidação do que ele denomina de “estilo sério” e, para tal, passa a investigar a
frequente presença nesses romances das cenas da vida cotidiana, da vida comum, que se
constroem no texto através da presença daquilo que o ensaísta denomina de “enchimentos”.
O teórico define como “enchimentos” as “passagens inconcludentes e digressivas em
estilo analítico ou descritivo” (p.12, 2003), passagens estas que no romance deste século
parecem ganhar uma ênfase muito maior do que nos do século XIX, apontando aí para uma
transformação, ao nível formal, da composição deste gênero. Esta nova técnica, que passa a
expressar grandes valores da nova classe em ascensão, possui uma função “parasitária” ou
“tênue” pois não interferem no prosseguimento da narrativa, ocorrendo entre grandes núcleos do
enredo (bifurcações). No entanto, esses “enchimentos” ainda que não modifiquem e não tenham
consequências para o prosseguimento da história, são elementos que “mantém a narrativa no
caráter ordinário da vida”, elevando esta vida cotidiana e estilizando-a.
Na busca das razões para a presença dos enchimentos o autor realiza um deslocamento
“para fora” da obra estabelecendo uma ponte com o mundo social e apresentando as razões do
apego e elevação/seriedade do cotidiano ao primeiro plano do romance. De acordo com o
crítico, a presença frequente deste elemento pode ser explicada através da ênfase na vida
privada, que ganha destaque na sociedade burguesa do XIX e que se configura por ser um
padrão de vida que preza pela impessoalidade, precisão e regularidade, valores que passam a
configurar a “seriedade” moderna. Esse transbordamento da vida cotidiana, essa invasão de vida
ordinária e comum, não mais como pano de fundo, emancipa esse cotidiano (2003, p.11) e
tonaliza a narrativa com um caráter de real, adensando a cor do verossímil e destacando essa
atmosfera social do momento, que vislumbrava a formação de um mundo privado em crescente
regularidade. Deste modo, ainda que a princípio sejam tomados como insignificantes, em seu
conjunto começam a adquirir uma importância fundamental ao tornarem-se sinônimo de
cotidiano.
Essa necessidade que o romance do século XIX possuiu de elevar esse cotidiano
ordinário também pode estar relacionada com a crença do controle do homem sobre o real, com
a regularidade, a ordem e o domínio sobre a vida, que parece ser representada a partir da lente
de um microscópio, na medida em que a narrativa apresenta detalhes de ações concretizadas no
real material em detrimento das sensações e estados de espírito.
Além disso, Franco Moretti afirma que a técnica realista do enchimento se firmou por
que “oferecia um prazer narrativo compatível com a nova regularidade da vida burguesa” (2003,
p.16), pois apresentava o comedimento e controle do passional, com o predomínio da
racionalização da existência. Assim, prevalece nesses enchimentos a vida burguesa narrada a
partir da logica racional, não somente pelos conteúdos, mas pela forma analítica: “o enchimento
é uma tentativa de racionalizar o romance e desencantar o universo narrativo: poucas surpresas,
ainda menos aventuras e nada de milagres (...) por meio do enchimento a lógica da
racionalização atua sobre a forma mesmo do romance, o seu ritmo narrativo” (2003, p.16 e 17).
Nesse sentido, o objetivo dessa técnica é criar ilusão de controle do mundo, a ilusão de real, de
contenção dos desejos através da impessoalidade e objetividade, com a predominância da
descrição.
Outro elemento de destaque no ensaio de Franco Moretti é a presença do discurso
indireto livre, técnica narrativa esta que se radicalizou (e transformou) nos romances do XX
mas que, nos romances do XIX segundo Franco Moretti, “dá espaço à voz individual mas à
subordina ainda assim à voz do narrador” (2003, p.39) gerando assim a impressão de liberdade,
ainda que, apesar do tom abstrato e supra pessoal do narrador (sem identidade pessoal,
diferentemente dos personagens) ainda é este que está no “comando” e “controle” da narrativa.
Diante disso, observemos que, enquanto Franco Moretti apresenta a técnica do
“enchimento” como instrumento de cooptação do real que acentua a descrição analítica já
encontrada nos romances do século XVIII, em Ian Watt essa aproximação com o referente é
realizada também através de um conjunto de elementos estruturais que, como vimos, o autor
denomina de “realismo formal” (2010, p.34), este último comum ao romance a partir do século
XVIII, e o primeiro, somado ao realismo formal, comum ao romance do século XIX. A partir
disso, é possível afirmar que o “realismo formal” torna possível a técnica dos “enchimentos”,
uma vez que esta somente ocorre em função da presença de todos os procedimentos técnicos já
estabelecidos como base de consolidação do estilo realista encontrados nos romances do XVIII.
Enquanto Franco Moretti e Ian Watt centralizam, respectivamente, suas discussões na
forma realista dos romances do século XIX e VXIII, Anatol Rosenfeld discute o processo de
“desrealização” desse gênero romanesco no século XX, posto que, parecendo “voltar suas
costas” para o referente externo, este adquire uma importância ínfima para o romance. Ao
“esfumaçar-se” na narrativa, através do adensamento da técnica do discurso indireto livre, da
qual vai se originar o fluxo de consciência e o monólogo interior, o romance desestabiliza (mas
não abandona) suas bases centrais (“realismo formal” / “enchimentos”) sobre as quais se
sustentou desde o século XVIII e sofre modificações estruturais e temáticas.
O autor, iniciando sua reflexão em paralelo com a pintura do século XX (como modo de
melhor visualizar esse processo de construção formal que ocorre no romance, que por vezes
parece abstrato aos olhos do leitor), apresenta que esta, assim como as formas artísticas em
geral, a partir do século XX (Franz Kafka e Proust são alguns dos nomes mencionados)
deixaram de lado a “pretensão” mimética, recusando a função de copiar ou reproduzir a
realidade empírica. Nessa perspectiva, havendo assim uma relação com o real contraria à
encontrada nos romances do século XIX, o fenômeno que ocorre é, aparentemente, o da
negação do realismo, que estaria sendo concretizada através do uso de uma linguagem muito
mais figurativa e conotativa, predominando assim certa “tendência de reproduzir, de uma forma
estilizada ou não, idealizada ou não, a realidade apreendida pelos nossos sentidos” (1985, p, 81).
Anatol Rosenfeld, discute assim uma suposta crise do realismo (um realismo
dinamitado?) o que denomina de fenômeno da “desrealização” assegurando inúmeras
transformações desse novo romance com a tradição do século XVIII e XIX. O indivíduo rompe
bruscamente com qualquer possibilidade de coletividade, realizando um mergulho na sua
consciência individual. Em outros termos, a vida do homem do século XXI torna-se luta
constante pelo autoconhecimento, processo no qual dúvida e a incerteza afetam o olhar desse
novo homem sobre um mundo desencantando e escurecido pelo fracasso dos ideias iluministas.
O narrador, que antes possuía uma visão onipresente agora mostra-se inseguro, duvidoso,
hesitante diante dos fatos, e a representação é das tensões e ambivalências da consciência do
indivíduo, fio condutor de todo o romance a partir do século XX. A sensação e impressão
tomam o lugar da observação e da comparação, e são também considerados elementos de acesso
ao real.
O século XX dá origem assim à um romance experimental de cunho psicológico e, de
acordo com o autor, alguns elementos começam a ser postos em xeque pelas produções estéticas
literárias, em especial pela forma romance, no qual a sequência lógica (o acaso agora é
determinante), linear e cronológica tão cara ao romance de técnica realista do século XVIII e
XIX parece não mais ser possível, sendo substituída pela simultaneidade de acontecimentos. A
realidade explicável cede seu lugar de forma lenta e gradual ao psicologismo, à desmontagem
da pessoa humana, ao desaparecimento da posição divina do indivíduo e da perspectiva (ocorre
a ruptura entre os polos homem-mundo) e ao adensamento do psíquico através da radicalização
de técnicas como a do monólogo interior e o fluxo de consciência, que começam a alterar
radicalmente essa forma weberiana, evidenciando de modo mais agudo o desencanto do sujeito
diante do mundo.
Nessa lógica, a ausência de um narrador que não mais detém o total conhecimento da
história e a deformação da figura tradicional humana expressam, segundo Rosenfeld, “um
sentimento de vida ou atitude espiritual que põe em xeque a visão de mundo renascentista.”
(1985, p.92). A visão empirista do mundo (Ian Watt) é substituída pelos sentidos e sensações e a
continuidade temporal é abalada, não havendo mais o tempo e o espaço preciso, que antes
tomados como absolutos são agora encarados como relativos e subjetivos. A pessoa humana é
esfumaçada (assim como na pintura) e representada de modo fragmentado, num mundo caótico:
o indivíduo se mostra precário frente ao mundo, desaparecendo a perspectiva e a distância entre
o homem e o mundo.
Destarte, essa nova forma, agora afastada do real e voltada para o indivíduo enquanto
consciência questionadora, que percebe a fratura com o meio, representa com perspicácia o
progressivo afastamento, perturbação e indagação do homem em relação a si e ao mundo,
sujeito este solitário não mais sustentado pela força da comunidade. Nesse sentido, acentuada a
ruptura, a fenda se alargou, e sensação de fragmentação do indivíduo em relação ao mundo
exterior e a si próprio adquiriu proporções nunca antes vistas na sociedade industrial moderna.
Como Georg Lukács discute em A teoria do romance (2010), este gênero literário tenta
reestabelecer através de sua forma a completude no sujeito no mundo, o sentido da vida, mas o
que alcança é somente uma “totalidade abstrata”, não mais possível de ser reestabelecida. As
consequências dessa ruptura e fragmentação é ser encontradas além da temática, mas nas formas
de construção do romance.
Logicamente, Rosenfeld com hipóteses e analogias não pretende apresentar um
panorama completo das novas técnicas e mudanças do romance do século XX. O que o teórico
apresenta são os pontos de alteração mais visíveis encontrados nas representações do gênero,
transformações que acompanham (ou são acompanhadas) por outras áreas do pensamento e do
conhecimento, como a filosófica e a ciência. Nesse sentido, o maior ganho de seu ensaio é
explicitar que, na arte moderna está sendo representada uma nova visão do homem e da
realidade ou ainda, uma tentativa de representar a situação de precariedade do homem, tentativa
que se revela não somente na temática, mas também na estrutura da obra. Essa nova
configuração do romance do século XX além de expressar as diferentes formas de apropriação
que as manifestações estéticas possuem do real, também apresenta as distintas formalizações
que encontramos em relação ao romance e forma realista tradicional do século XVIII.

Considerações finais
De modo geral, a discussão que o enlace destes textos críticos possibilitou foi a
visualização do movimento de transformação dessa forma literária denominada romance, que
calcada no realismo formal, a princípio representou (através de técnicas realistas que mantinha
essa forma “pregada” ao real: “realismo formal”, “enchimentos”, “discurso indireto livre”) a
crença e euforia do homem sobre uma realidade aparentemente controlável e próspera (vista em
Franco Moretti e Ian Watt), e que no século XX, através de novas técnicas formais (e da
transformação das passadas) representou a descrença na potencialidade dada ao sujeito burguês
do século XIX, que, se reconhecendo frágil, desencantou-se diante da sua impotência frente a
realidade, se autoquestionando e autoanalisando incessantemente.
Nessa perspectiva, os três textos buscam realizar sempre o movimento dialético do
interno-externo, ao destacarem que as transformações desse gênero, que clama por liberdade e
explicita a transgressão, estabelecendo aquilo que Octavio Paz denominou de “tradição da
ruptura”, põe em evidencia o constante renovar-se, o constante reinventar-se a partir de uma
matriz realista que não é abandonada, apenas transformada, comprovando assim o fato deste
gênero literário vir acompanhado sempre de todo um sistema mais amplo, de nível sociocultural
e histórico. De outro modo, e posto em termos esquemáticos, a partir desta discussão podemos
afirmar que o realismo apresenta não somente uma dimensão de compreensão e interpretação da
vida e da realidade como experiência e apreensão humana em um determinado contexto
histórico- filosófico, mas também sua dimensão estética formal, que apresenta os meios de
expressão da realidade apreendida pelos sentidos humanos e representada através de uma
determinada construção discursiva especifica.
Deste modo, a partir do enlace desses três teóricos e críticos, nos parece que a relação
do romance com o realismo não é a de negação do primeiro em relação ao último, muito menos
da destruição da forma realista com o passar do tempo, mas sim de transformação deste
conjunto basilar de técnicas formais, pois o que visualizamos, através da incorporação de novas
técnicas na estrutura do romance é o movimento de proximidade e distanciamento deste gênero
com o seu referente empírico, ou ainda, de diferentes perspectivas enfocadas pelo homem sobre
aquilo que ele define por real. Assim, a transformação do gênero acompanha (e é
acompanhado) pela transformação de novas técnicas literária, transformações estas que somente
foram possíveis através de modificações das formas passadas, que por mais inovadoras que se
apresentam, deixam transparecer a essência dos elementos do “realismo formal” do século
XVIII (a problemática da inserção do indivíduo particularizado em determinadas condições
específicas), pilar este um tanto carcomido pelo tempo, mas fundador, e que em função disso
continua sendo a base de sustentação deste gênero irrequieto e transgressor.

Referencias:
MORETTI, Franco. O século sério. Novos Estudos. CEBRAP. nº65. pp. 03-33. Março de 2003.

WATT, Ian. O realismo e a forma romance In: A ascensão do romance. Tradução de Hildegard
Feist. São Paulo: companhia da Letras, 2010, pp.09-54
ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno In: Texto/Contexto. 4ª.ed. São
Paulo: Perspectiva, 1985. pp.75-97

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