Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
I
Imagens da Filosofia do Direito
filósofos do direito como John Rawls, Richard Posner (2010), Ronald Dworkin (2005)
ou Amartya Sen (2010). Toda a história da Filosofia do Direito que conhecemos passa,
portanto, pela história do desacerto e da variação conceitual do valor de justo. A grande
deficiência que permite reunir essa Filosofia contemporânea em torno do signo do
moralismo, ou das teorias dos valores, encontra-se em ignorar que os valores nunca
antecedem os afectos; repetido diversas vezes determinado valor de justo, a ideia de
justiça como sistema primário de afectos, sensações, decai em proveito de uma história
do conceito de justiça como um valor variável desatrelado do corpo que, em sentido
espinosano, pode ser entendido como poder de afetar e de ser afetado (Espinosa, 2007).
sujeitos ideais, e o desafio é fazer frente ao mercado por meio de uma teoria da justiça
procedimental pura capaz de assegurar resultados equitativos na divisão dos benefícios
sociais, com Dworkin o modelo ideal de justiça deixa de significar uma tentativa de
responder ao mercado com equidade distributiva e passa a receber em seu coração um
modelo extraído da economia de mercado.
Esses são apenas alguns fios invisíveis que, por um lado, é preciso tornar
aparentes na Filosofia do Direito contemporânea e que, por outro lado, permitem-me
chegar à justificativa da necessidade de renovar a filosofia do direito, desfazendo essas e
outras transcendências hegemônicas. Uma nova possibilidade de pensar um direito que
foi sequestrado pela técnica jurídica ou pelo ideal impotente deseja perguntar-se sobre
uma tradição filosófica menor, que seja suficientemente potente para desativar as
Filosofias do Direito contemporâneas (escritas com maiúsculas, porque são saberes de
estado) e, com sorte, levá-las a travar pequenas “guerras de guerrilha” consigo mesmas
(Deleuze, 2008, p. 07). A essa filosofia do direito menor, um contra-afecto, uma
tentativa de desativar o sistema do juízo e, sobretudo, incorporar no direito uma
filosofia da diferença que já não passe pelas quatro dimensões da representação
(identidade, semelhança, analogia e contrariedade), chamei certa vez de filosofia do
direito na imanência, filosofia de ruptura ou, simplesmente, direito na imanência
(Corrêa, 2009), com minúsculas: saber sem modelo, filosofia menor, cujas matérias são
feitas unicamente de criação, de experiência e de devir.
II
Signos e afectos: “aquilo que dá a pensar”
No último dos livros da Recherche [Le Temps Retrouvé] (Proust, 1999, p. 2129-
2401), Deleuze encontra uma ideia que o acompanhará durante toda a vida, e que será
mais tarde reencontrada na poesia de Antonin Artaud (2004): sendo a descoberta “uma
aventura do involuntário”, “Sem algo que force a pensar, sem algo que violente o
pensamento, este nada significa” (Deleuze, 2006b, p. 89). A poesia, e o poeta,
encontram-se no fora do pensamento, naquilo que dá a pensar – e é aquilo que dá a
pensar o objeto do maior interesse de Deleuze. O pensamento encontra-se sempre
coagido, forçado por impressões, olhares, encontros, ressonâncias, vibrações, afectos,
distensões, gestos, capturas, mas sob um modo sensível e afectivo que, segundo Marcel
Proust, é fortuito, inevitável como uma prova da verdade do passado. Deleuze tem uma
6
palavra para exprimir esse “o que dá a pensar”. Deleuze chama “o que dá a pensar” de
signo; o signo está sempre lançado a um encontro marcado, a um só tempo, pela
contingência e pela necessidade (Deleuze, 2006b, p. 91).
verdade sempre mantendo alguma relação inseparável com o tempo. Há, portanto,
alguma síntese importante no seio das faculdades sensíveis. Não por acaso a verdadeira
possibilidade de pensar fora das tagarelices alvissareiras da amizade nasce quando um
signo, uma vez emitido, afeta o sensível, faz, com ele, um corpo, aumenta ou diminui a
potência de agir desse corpo; apenas ao preço de atravessar pelo corpo como uma
variação de intensidade – e, em Deleuze, nunca há quantidades puras de intensidades, só
diferenças, apenas variações –, é que “traduzir, decifrar, desenvolver” podem ser as
faculdades envolvidas pelo pensamento. O signo é objeto de um encontro, contingente e
ao mesmo tempo necessário; o signo envolve e contém o sentido daquilo que se
desenvolve em Ideia, porque a Ideia já estava contida no signo, mas como uma
virtualidade, uma invisibilidade, “no estado obscuro [pode-se ler: “dionisíaco”] daquilo
que força a pensar” (Deleuze, 2006b, p. 91).
III
A diferença à enésima potência
Por isso propus a pequena e estranha frase de Deleuze: “Toda verdade é verdade
do tempo”, porque nenhuma verdade é essencial; o essencial na verdade é a diferença
9
A repetição pressupõe o tempo. Uma repetição material, ou nua, tal como diria
Pelbart (2007, p. 123), desmancha-se na sucessão dos casos. A repetição representada
como nua, segundo Deleuze (2006a, p. 96-97), supõe um espírito e uma contração
passiva dos casos na imaginação. Resultante de uma sensibilidade orgânica primária, tal
contração das repetições no espírito que contempla funda o presente e os eus larvares. O
presente, de uma maneira sub-representativa, contrai os instantes. A esse mundo, à vida
tal como vivida, Deleuze chama comumente de Atual.
no entanto, o passado não pode ser compreendido como se fosse um antigo presente.
Isso se deve ao fato de que o passado, o imemorial, são anteriores a qualquer repetição e
contração espiritual ativa. É dizer, sendo sub-representativos e, portanto, atravessados
pelo esquecimento como potência própria, o passado e o imemorial antecedem toda
representação espiritual ativa, que, ao recordar-se, deve vencer o imemorial.
Memória, como ser do passado, não se confunde com lembrança, ser passado,
objeto empírico que um dia foi presente. Por essa razão, Deleuze escreve que “O
passado não é o antigo presente, mas o elemento no qual este é visado” (Deleuze,
2006a, p. 124). A memória é involuntária na medida em que assume a forma de um
passado que nunca foi presente (Deleuze, 2006a, p. 149). No plano dessa segunda
síntese do tempo, a de Mnemósina, o imemorial pode retornar, mas sempre diferente,
involuntário, transcendental; nunca como signo de uma repetição nua.
Por sua vez, o homem tem de viver preso ao fardo da memória. O passado lhe
parece tão sombrio e pesado, que chega a invejar uma forma de vida bestial. O homem
só surge na natureza quando lhe advém a memória – essa teria sido uma das principais
teses de Nietzsche acerca das ontologias do humano. Não há humano antes da
memória.vi O peso sombrio da memória erige, no animal-homem, uma nova relação
com o tempo e, com ela, o faz padecer de uma tristeza que nenhum animal havia
experimentado.
Zaratustra, pelo contrário, não é homem nem animal, mas o primeiro iniciado, o
devoto da terra, uma espécie mais alta de regozijo do animal no homem como
anunciador do além-do-homem – ou, como Nietzsche (2008b, p. 80-81) o anunciará em
Ecce Homo, Zaratustra, uma espécie de portador da “grande saúde”. Zaratustra adoece
com o niilismo do anão, mas sorri e convalesce com seus animais; rindo de sua
ingenuidade ao pensar que o tempo é um círculo, redime o animal no homem, e os
afirma em devir. Da segunda vez, quando Zaratustra ri, já não se trata do eterno retorno
do mesmo.
“Olha esse portal, anão!”, prossegui; ele tem duas faces. Dois caminhos que
se juntam; ninguém ainda os percorreu até o fim.
Essa longa rua que leva para trás: dura uma eternidade. E aquela longa rua
que leva para frente – é outra eternidade.
13
Desse modo, o devir é qualquer coisa que está longe de ser absorvida pelo ser.
Ao contrário, ser e devir, como quisera Nietzsche, fazem dois mundos que se
aproximam no conceito do retornar como o ser do devir; o pensamento do puro devir
fundará, pois, o do eterno retorno (Deleuze, 1962, p. 54). Retornar, para dizê-lo em uma
palavra, é retornar para o diferente; retornar é a forma de um devir que se afirma
unicamente da diferença. Eis o que Deleuze chama de primeiro aspecto do eterno
retorno, o eterno retorno pensado como doutrina cosmológica ou física, já suficiente
para, em um nível inorgânico, romper com a tradição essencialista e eidética do tempo
como um círculo simples, muito própria da antiguidade grega e de um sentido trágico e
clássico da história como destino (Agamben, 2005, p. 112-114). Em A gaia ciência, há
um aforismo pouco célebre, mas indiciário de um eterno retorno em sentido
cosmológico; Alegoria, o aforismo 322, ensaia uma ruptura com as supostas órbitas
circulares dos astros: “Os pensadores nos quais todas as estrelas têm órbitas cíclicas não
14
são os mais profundos; quem olha para dentro de si como para um espaço sideral e traz
vias lácteas em seu interior, sabe como são irregulares todas as vias lácteas; elas
conduzem ao caos e ao labirinto da existência” (Nietzsche, 2007, p. 214-215).
Assim, ser e vontade têm sua integridade afirmada a cada lance de dados do
devir. Nietzsche chamara “transvaloração de todos os valores” a isto: reunir aquilo à
potência de que foi separado, suplantar o negativo, destituir o domínio das forças
reativas em proveito do novo; é dizer, igualar em uma equação complexa, e no entanto
una, destruição, devir e criação.
IV
Referências
DELEUZE, Gilles. Conversações. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo, Editora 34,
2008.
KELSEN, Hans. O que é justiça? Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
MACHADO, Roberto. Deleuze, a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
MILL,John Stuart. On liberty. The subjection of women. New York: Henry Holt and
Company, 1879. Disponível em: < http://files.libertyfund.org/files/347/0159_Bk.pdf >
NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Império. Tradução de Berilo Vargas. 8. ed. Rio de
Janeiro: Record, 206.
_____. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução de Mário
da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008a.
18
_____. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Tradução de Paulo César de Souza.
São Paulo: Companhia das Letras, 2008b.
_____. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução de Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 2008c.
PELBART, Peter Pál. O tempo não reconciliado: imagens de tempo em Deleuze. São
Paulo: Perspectiva, 2007.
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Tradução de Jussara Simões. São Paulo: Martins
Fontes, 2008.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
V
Notas
i
Doutorando em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em
Filosofia e Teoria do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduado em Direito
pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor Titular de Filosofia do Direito e Assistente de
Teoria Geral do Direito, vinculado ao Departamento de Propedêutica do Direito da Faculdade de Direito
de Curitiba (DPD/FD/UNICURITIBA); Professor Adjunto da Faculdade de Direito do Centro de Ciências
Sociais e Aplicadas da Fundação de Estudos Sociais do Paraná (FD/CCSA/FESP-PR). Contato:
<http://murilocorrea.blogspot.com>.
ii
Agamben, por sua vez, parece perceber esse entrecruzamento ao escrever que “(...) para Foucault, os
dois poderes que, no corpo do ditador parecem confundir-se por um instante, continuam sendo
essencialmente heterogêneos, e a sua distinção traduz-se em uma série de oposições conceituais (corpo
individual / população, disciplina / mecanismos de regulação, homem-corpo / homem-espécie) que, no
início da modernidade, definem a passagem de um sistema a outro. Claro que Foucault se dá
perfeitamente conta de que os dois poderes e as suas técnicas podem, em determinados casos, integrarem-
se mutuamente; mas eles, no entanto, continuam sendo conceitualmente diferentes.”
iii
Como exemplar desse entrecruzamento, Foucault (Idem, loc. cit.) escreve que “se tomarmos os
mecanismos de segurança tais como se tenta desenvolvê-los na época contemporânea, é absolutamente
evidente que isso não constitui de maneira nenhuma uma colocação entre parênteses ou uma anulação das
estruturas jurídico-legais ou dos mecanismos disciplinares.”
iv
Deleuze deu causa diversas críticas por ter interpretado uma diferença conceitual entre os conceitos de
força e vontade de potência em Nietzsche. A mais influente delas, provavelmente por sua precedência,
talvez tenha sido aquela de (MÜLLER-LAUTER, 1997, p. 110-111). No entanto, para o momento, uma
aprofundamento nessa polêmica é de todo desnecessário, pois ela toma a obra de Nietzsche como
19
referencial. Para nós, nos limites de nossa proposta, não importa mostrar se a interpretação deleuziana dos
conceitos de força e vontade de potência é fidedigna ou não à luz de Nietzsche, mas precisar qual a
importância dessa disjunção diferencial. Mesmo porque, a célebre imagem deleuziana da história da
filosofia é a da enrabada, ou a da imaculada concepção: “Eu me imaginava chegado pelas costas de um
autor e lhe fazendo um filho, que seria seu, e no entanto seria monstruoso”. (Deleuze, 2008, p.
14). Assim, mesmo no campo aparentemente estéril da história da filosofia, não existirá repetição nua dos
conceitos, mas repetição diferencial e, portanto, gênese do novo a partir de sua memória. Ainda a respeito
do conceito de vontade de potência, Deleuze (1962, p. 57) escreve: “La volonté de puissance, en effet,
n‟est jamais séparable de telle et telle forces déterminées, de leurs quantités, de leurs qualités, de leurs
directions ; [...]. Inséparable ne signifie pas identique.”
v
Deleuze (2006a, p. 407), a propósito, escreve que “a analogia exige que um terceiro tempo seja dado
[...]”.
vi
A interpretação heideggeriana da Segunda Consideração vai no mesmo sentido; ao invés de qualificar o
homem a partir da memória, porém, Heidegger prefere atribuir ao homem o sentido da historicidade:
“l‟homme est marquée et caractérisé dans son essence par l‟historique”. Contudo, isso não significa
esquecer-se de que a produção da historicidade no homem desarticula-se de uma forma animal que o
habita: “Mais l‟anhistorique possède en même temps un primat dans la vie humaine. Cette caractérisation
par l‟historique d‟une part et ce primat de l‟anhistorique d‟autre part vont de pair en l‟homme”
(Heidegger, 2009, p. 37).