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Direito e imanência: o que é pensar a diferença?


Murilo Duarte Costa Corrêai

Índice. I Imagens da Filosofia do Direito; II Signos e afectos: “aquilo que dá


a pensar”; III A diferença à enésima potência; IV Notas; V Referência

Resumo. O presente texto é fruto da comunicação realizada na mesa “Direito e pós-


estruturalismo”, do I Colóquio Baiano de Filosofia e Direito (“Direito e Filosofia:
Conversações”), organizado pelo curso de Graduação em Direito da Universidade Católica de
Salvador (UCSAL/BA). Partindo de uma breve cartografia da condição da Filosofia do Direito
contemporânea, bem como de suas principais influências modernas, pretende-se elucidar uma
via alternativa à Filosofia contemporânea do Direito baseada na filosofia da diferença e da
crítica à representação que atravessam por toda a obra de Gilles Deleuze. Sem adiantar
conclusões sobre a viabilidade da presente proposta à luz da Filosofia do Direito, o presente
ensaio, de pequeno fôlego, afigura-se uma investida em direção à renovação do direito a partir
de um pensamento da diferença. Trata-se, pois, de uma etapa antecedente e, no entanto,
necessária, àquilo que – evocando uma tradição renegada pela Filosofia do Direito do ocidente
– chamei outrora “Filosofia do Direito na imanência” ou, simplesmente, “Direito na
Imanência”.

Palavras-chave. Diferença; Pós-Estruturalismo; Direito; Pensamento.

I
Imagens da Filosofia do Direito

Se retomássemos uma certa tradição comum à qual se filiam as filosofias da


justiça ditas contemporâneas – e aqui devo limitar-me a elucidar brevemente aquilo que
nelas há de hegemônico –, perceberíamos sem dificuldade que elas derivam de dois
eixos modernos da filosofia política. Primeiro, uma certa matriz contratualista de raiz
deontológica, da qual derivam a antropologia moderna, a crença na autonomia moral e
racional dos homens, como encontramos comumente em Jean-Jacques Rousseau (2006)
e Emmanuel Kant (1980); de uma divergência no interior dessa mesma tradição, haverá
toda uma formulação muito peculiar do problema da soberania, nascida no momento da
passagem do estado de natureza, e do direito natural, à sociedade civil – passagem que,
se retornarmos ao De Cives hobbesiano (Hobbes, 2002), deve envolver a transferência
dos direitos naturais dos súditos em benefício do soberano político.

Por outro lado, a tradição contemporânea entretém-se com o utilitarismo clássico


de Jeremy Bentham (1907) e John Stuart Mill (1879), no seio do qual aproveita – é
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certo que muito criticamente – alguns conceitos-chave da modernidade. É dizer, a


filosofia contemporânea do direito extrai do utilitarismo noções puras de soberania,
liberdade e igualdade, mas, também, um princípio empírico de governamentalidade que
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servirá à elaboração de mecanismos disciplinares no século XVIII em diante. Como
Foucault nos mostra em meados dos anos setenta, os mecanismos de disciplina não
desapareceram durante o novecentos, mas foram paulatinamente integrados a estratégias
microfísicas de normalização das condutas, mecanismos de segurança e, mais
recentemente, como atestam Deleuze (2008, p. 219-226) e Agamben (2008, p. 89), de
dispositivos de sujeição biopolítica nas sociedades de controle. Como eu mesmo
observei em outro lugar (Corrêa, 2010), Foucault distingue com muito rigor os
conceitos de disciplina, norma e mecanismo de segurança; isso, porém, não significa
que eles não possam sofrer entrecruzamentos em dado momento histórico, como o
próprio Foucault reconhece em algumas passagens de Segurança, território, população
(Foucault, 2008, p. 10) iii.

Em resumo, poderíamos dizer que a filosofia do direito hegemônica fundamenta-


se em três eixos derivados diretamente desse contexto da modernidade: (a) A Filosofia
do Direito contemporânea é, hegemonicamente, contratualista. John Rawls (2008),
considerado o mais relevante filósofo político e do direito dos últimos quarenta anos,
não por acaso transforma o modelo moderno do contrato social em um esquema
hipotético de raciocínio. Seu conceito de posição original supõe sujeitos ideais,
racionais e interessados, mas forçados à imparcialidade por encontrarem-se
condicionados pelo véu da ignorância. Assim, Rawls concebe o que se pode chamar de
uma teoria da justiça procedimental pura, pensada não a partir da igualdade substancial,
mas de critérios de equidade, dos quais derivarão seus princípios de justiça. Isso seria
suficiente para indicar, em nossa tradição, a persistência de uma raiz contratualista, que
busca dar conta de problemas essencialmente modernos, como a Razão de Estado, de
suas instituições, distribuição de riqueza e recursos sociais, Constituição Política,
relações Soberano-Súdito, Igualdade e Liberdade etc.

(b) Pode-se dizer, ainda, que a Filosofia do Direito contemporânea é, em


segundo lugar, moralista. A qualificação não deve ser entendida apenas no sentido
negativo da palavra, mas significa que o coração das teorias da justiça é habitado por
certo sistema axiológico variável desde Hans Kelsen (2001, p. 01-25) – que, ao
contrário do que muitos pensam, efetivamente possuía um conceito de justiça – até
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filósofos do direito como John Rawls, Richard Posner (2010), Ronald Dworkin (2005)
ou Amartya Sen (2010). Toda a história da Filosofia do Direito que conhecemos passa,
portanto, pela história do desacerto e da variação conceitual do valor de justo. A grande
deficiência que permite reunir essa Filosofia contemporânea em torno do signo do
moralismo, ou das teorias dos valores, encontra-se em ignorar que os valores nunca
antecedem os afectos; repetido diversas vezes determinado valor de justo, a ideia de
justiça como sistema primário de afectos, sensações, decai em proveito de uma história
do conceito de justiça como um valor variável desatrelado do corpo que, em sentido
espinosano, pode ser entendido como poder de afetar e de ser afetado (Espinosa, 2007).

(c) Finalmente, chegamos a uma terceira característica que perpassa toda a


Filosofia do Direito atualmente: seu liberalismo e uma relação aparentemente
indecomponível entre justiça e mercado. Tal relação encontra sustentação em uma
ideologia bastante limitada, e até hoje pouco implementada nos países subdesenvolvidos
ou, ditos, em desenvolvimento, como Brasil, China e Índia, que reduz todo o conceito
de democracia à democracia liberal, e que garante formalmente a proteção aos direitos
humanos, mas se apresenta ainda hoje deficitária se cotejarmos a previsão formal de
garantias constitucionais, direitos individuais e sociais e sua efetividade no plano
sociológico ou empírico.

Negri e Hardt (2006), em um sentido próximo, parecem ter decifrado o modelo


de autoridade imperial e de produção biopolítica que se encontra por baixo de um
direito cada vez mais internacionalizado, atacando, inclusive, o modelo dos “valores
universais” como um aparelho de captura da belle âme que parece recobrir as
heterogêneas projeções imperiais (Negri; Hardt, 2006, p. 35-39). Exemplar a esse
respeito é o desacoplamento entre discurso e prática imperiais: hoje, todas as guerras e
massacres financiados pelo Ocidente no Oriente têm por leitmotiv a nobreza do objetivo
humanista irrefutável de levar ao Oriente teocrático os Direitos Humanos e o modelo
democrático liberal laico (leia-se, “capitalismo cognitivo de mercado”), que parece
esgotar todo o sentido possível da democracia contemporânea. Caso nos acerquemos de
Dworkin, por exemplo – estranhamente chamado de “igualitarista” –, veremos que entre
as justificações de seu modelo ideal de justiça igualitária está uma espécie de derrisório
autoelogio do professor de Harvard por ter conseguido, com o modelo do leilão
hipotético, criar um modelo ideal que utiliza uma categoria de mercado (o leilão) como
estratagema teórico. Se com Rawls o egoísmo é presumido como dado natural de seus
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sujeitos ideais, e o desafio é fazer frente ao mercado por meio de uma teoria da justiça
procedimental pura capaz de assegurar resultados equitativos na divisão dos benefícios
sociais, com Dworkin o modelo ideal de justiça deixa de significar uma tentativa de
responder ao mercado com equidade distributiva e passa a receber em seu coração um
modelo extraído da economia de mercado.

Esses são apenas alguns fios invisíveis que, por um lado, é preciso tornar
aparentes na Filosofia do Direito contemporânea e que, por outro lado, permitem-me
chegar à justificativa da necessidade de renovar a filosofia do direito, desfazendo essas e
outras transcendências hegemônicas. Uma nova possibilidade de pensar um direito que
foi sequestrado pela técnica jurídica ou pelo ideal impotente deseja perguntar-se sobre
uma tradição filosófica menor, que seja suficientemente potente para desativar as
Filosofias do Direito contemporâneas (escritas com maiúsculas, porque são saberes de
estado) e, com sorte, levá-las a travar pequenas “guerras de guerrilha” consigo mesmas
(Deleuze, 2008, p. 07). A essa filosofia do direito menor, um contra-afecto, uma
tentativa de desativar o sistema do juízo e, sobretudo, incorporar no direito uma
filosofia da diferença que já não passe pelas quatro dimensões da representação
(identidade, semelhança, analogia e contrariedade), chamei certa vez de filosofia do
direito na imanência, filosofia de ruptura ou, simplesmente, direito na imanência
(Corrêa, 2009), com minúsculas: saber sem modelo, filosofia menor, cujas matérias são
feitas unicamente de criação, de experiência e de devir.

II
Signos e afectos: “aquilo que dá a pensar”

Logo somos tragados, portanto, pelo problema da diferença – muito além do


qual não pretendo ir, hoje à noite. Tudo se passa como se responder à questão “o que é
pensar a diferença?” fosse essencial a uma filosofia do direito devolvida a seu plano de
imanência. Para ensaiar uma breve resposta, devemos ter em mente que, em Proust e os
signos, Deleuze (2006b, p. 88) escreve que “toda verdade é verdade do tempo”. Essa
pequena frase que Deleuze escreve a propósito da Recherche proustiana é uma forma
nada convencional de perguntar-se, em Deleuze, o que significa pensar, e o que
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significa pensar a diferença; muitos de vocês, leitores de Deleuze, lembrar-se-ão de seus


belos livros sobre o cinema, Nietzsche ou Bergson, do constante elogio deleuziano das
potências do falso e, assim, irão estranhar por que começo com essa frase “toda verdade
é verdade do tempo”.

Ao abrir “A imagem do pensamento”, conclusão original de Proust e os signos,


Deleuze explica que o tempo tem uma importância capital na obra proustiana porque – e
eis nossa pequena e estranha frase – “toda verdade é uma verdade do tempo”. A
pergunta essencialmente deleuziana é “apesar de estranha, como essa frase funciona?”.
Se o ensaio dessa entrada na obra de Deleuze tiver sucesso, pretendo mostrar que a frase
nada tem de estranha; ao contrário, exprime sob a forma de uma definição muito breve
uma série de conceitos fundamentais que permitem a Deleuze responder “o que é
pensar?” e “como o pensar só pode se dar em múltiplos agenciamentos com a
diferença?”.

Deleuze encontra em Proust uma interessante crítica da filosofia e da amizade


como “boas vontades” naturais, inatas. Buscar a verdade, mote imemorial de toda a
Recherche, seria, portanto, demasiadamente natural, fruto de uma decisão premeditada.
Uma vez que a filosofia tenha sido transformada na “expressão de um Espírito universal
que concorda consigo mesmo para determinar significações explícitas e comunicáveis”,
nas palavras de Deleuze (2006b, p. 89), Proust construirá uma imagem do pensamento
capaz de combater as verdades fundadas na boa vontade de pensar. Boa vontade,
método e amigo comunicam-se convencionalmente, engendram apenas o possível; logo,
nada disso bastaria para aproximar-nos da verdade.

No último dos livros da Recherche [Le Temps Retrouvé] (Proust, 1999, p. 2129-
2401), Deleuze encontra uma ideia que o acompanhará durante toda a vida, e que será
mais tarde reencontrada na poesia de Antonin Artaud (2004): sendo a descoberta “uma
aventura do involuntário”, “Sem algo que force a pensar, sem algo que violente o
pensamento, este nada significa” (Deleuze, 2006b, p. 89). A poesia, e o poeta,
encontram-se no fora do pensamento, naquilo que dá a pensar – e é aquilo que dá a
pensar o objeto do maior interesse de Deleuze. O pensamento encontra-se sempre
coagido, forçado por impressões, olhares, encontros, ressonâncias, vibrações, afectos,
distensões, gestos, capturas, mas sob um modo sensível e afectivo que, segundo Marcel
Proust, é fortuito, inevitável como uma prova da verdade do passado. Deleuze tem uma
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palavra para exprimir esse “o que dá a pensar”. Deleuze chama “o que dá a pensar” de
signo; o signo está sempre lançado a um encontro marcado, a um só tempo, pela
contingência e pela necessidade (Deleuze, 2006b, p. 91).

Contra o pensamento imaginado como uma possibilidade natural, o que em


Diferença e Repetição encontrará eco na poesia de Antonin Artaud – conclamando os
idiotas a açoitarem o próprio inatismo –, aparece, pela primeira vez, uma breve
definição deleuziana de pensamento que alcançará verdadeira celebridade nos anos
noventa e, por vezes, suscitará a seu redor alguma suspeita: “O ato de pensar [...] é a
única criação verdadeira. A criação é a gênese do ato de pensar no próprio pensamento.
Ora, essa gênese implica alguma coisa que violenta o pensamento, que o tira de seu
natural estupor, de suas possibilidades apenas abstratas.” (Deleuze, 2006b, p. 91).
Aquilo que Proust criticava nas filosofias de boa vontade eram a arbitrariedade e a
abstração das ideias; ideias que ignoravam as forças, as zonas obscuras que precipitam
as forças que nos violentam a pensar.

Nesse sentido, reencontramos talvez o cerne do campo problemático que faz


corpo com o plano de imanência deleuziano, o terreno de criação de seus conceitos mais
próprios e impessoais: Deleuze está sempre às voltas com o problema da gênese – seja a
gênese do novo, do pensamento ou mesmo da diferença. Responder a ele passa por
saber que as coisas vêm a ser, pois bem, mas essa constatação trivial logo se aprofunda
no problema de Deleuze, e torna-se uma infinita proliferação de ensaios para responder:
“como tudo vêm a ser?”, “como algo pode estar lançado a uma cadeia heterogênea de
devires?”, “Como tornar o devir objeto de uma afirmação no seio do ser, de uma forma
tal que ser e devir coincidam sem resíduos?”. Tudo isso pode ser sintetizado em uma
palavra muito cara ao vocabulário deleuziano, e cujo début assistimos em 1962, nas
páginas de Nietzsche et la Philosophie: genealogia. É dizer, como o próprio Deleuze a
define a propósito da filosofia de Nietzsche, genealogia remete a um princípio
“diferencial e genético”, assim como a vontade de potência é interpretada, ao mesmo
tempo, como um complemento das forças e como algo de interno a elas, uma espécie de
“querer interno” (Deleuze, 1962, p. 56) que, para Deleuze, é delas inseparável, mas
delas diferenteiv.

A verdade não surge, pois, da boa vontade ou da comunicabilidade, mas do ato


de pensar coagido pelos signos, pelas “pressões da obra de arte”. O amante ciumento
que descobre no rosto da pessoa amada um signo de mentira é afetado por ele e busca a
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verdade sempre mantendo alguma relação inseparável com o tempo. Há, portanto,
alguma síntese importante no seio das faculdades sensíveis. Não por acaso a verdadeira
possibilidade de pensar fora das tagarelices alvissareiras da amizade nasce quando um
signo, uma vez emitido, afeta o sensível, faz, com ele, um corpo, aumenta ou diminui a
potência de agir desse corpo; apenas ao preço de atravessar pelo corpo como uma
variação de intensidade – e, em Deleuze, nunca há quantidades puras de intensidades, só
diferenças, apenas variações –, é que “traduzir, decifrar, desenvolver” podem ser as
faculdades envolvidas pelo pensamento. O signo é objeto de um encontro, contingente e
ao mesmo tempo necessário; o signo envolve e contém o sentido daquilo que se
desenvolve em Ideia, porque a Ideia já estava contida no signo, mas como uma
virtualidade, uma invisibilidade, “no estado obscuro [pode-se ler: “dionisíaco”] daquilo
que força a pensar” (Deleuze, 2006b, p. 91).

Quando Deleuze se pergunta, portanto, “o que é pensar?”, o sentido envolvido


nas ideias de memória involuntária, em Proust, e de inatismo do pensamento, em
Artaud, afetam Deleuze ao desenvolvimento de um sentido que se encontra enrolado e
obscuro nas obras de arte, e que só podem emergir como um afecto. Desse
desenvolvimento, surge uma pergunta que Deleuze (2006a) tentará desdobrar e
circunscrever durante todo o Diferença e repetição: “como engendrar pensar no
pensamento?”. Uma vez mais, o problema da gênese e da criação encontra, no signo, o
limite exterior do sensível.

Engendrar pensar no pensamento a partir dos signos, “daquilo que dá a pensar”,


portanto, logo convém com o problema de pensar a diferença. No interior desse
protótipo da gênese do pensamento entendido como a criação que deve emergir do
encontro com um signo, a assimetria entre signo e sensível expõe a diferença entre uma
simples recognição platônica acerca do claro e do distinto – exercício voluntário da
faculdade do pensamento –, e o momento involuntário em que se pensa forçado pela
contingência e pela necessidade. O sensível suscita o problema, expõe o obscuro ser do
problemático, “como se o objeto do encontro, o signo, fosse portador do problema”
(Deleuze, 2006a, p. 204). A Ideia é distinta e obscura porque um sentido singular
permanece envolvido nos signos e, todavia, deve ser desenvolvido ao preço de
violentar-se o pensamento, isto é, engendrar pensar no pensamento. O advento de uma
Ideia provocada por um signo: eis o momento em que o pensamento advém e a verdade
– o signo – se trai. Ser toda verdade uma verdade do tempo significa que o tempo trai a
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verdade do signo ao diferi-la no encontro com o sensível. A isso, Deleuze chama de


“síntese assimétrica do sensível”. Os sentidos de um signo e seu desenvolvimento
diferencial na Ideia foram o maior elogio que, depois de Nietzsche, um filósofo pôde
fazer às potências do falso.

III
A diferença à enésima potência

O projeto deleuziano de constituir uma filosofia da diferença tem o hegelianismo


como inimigo declarado. Em diversos textos, Deleuze transforma em teatro filosófico o
combate entre Hegel e Nietzsche. Para Deleuze, o hegelianismo representaria um dos
últimos graus da subordinação da diferença à representação. Sendo preciso liberar a
diferença de uma tradição vinculada às exigências do Mesmo, é na repetição que
Deleuze encontra a condição para emancipar a diferença das quatro grandes ilusões da
representação na metafísica ocidental: a identidade, a semelhança, a oposição e a
analogia (Deleuze, 2006a, p. 368-374). Todo o Diferença e repetição significa uma
violenta e transmudadora apropriação da filosofia da representação; violenta porque a-
fundar o mundo da representação importa destituir o lugar de uma visão tranquilizadora
da filosofia; transmudadora porque a diferença deve ser liberada de sua submissão ao
idêntico e (para sermos malévolos com Hegel) tornada absoluta. “Queremos pensar a
diferença em si mesma e a relação do diferente com o diferente, independentemente das
formas da representação que as conduzem ao Mesmo e as fazem passar pelo negativo”,
escreve Deleuze (2006a, p. 16). Transmudadora, ainda uma vez, porque a filosofia é
lançada a um devir ativo quando a diferença é tornada objeto de uma afirmação pura. É
dizer, a partir da repetição que, por encontrar-se sempre já atravessada pelo tempo, não
pode nunca encarnar uma reprodução material nua, Deleuze quer atingir o seio em que a
gênese da diferença é criação de diferença – o plano de imanência é a terra atravessada
pela rachadura do tempo.

Por isso propus a pequena e estranha frase de Deleuze: “Toda verdade é verdade
do tempo”, porque nenhuma verdade é essencial; o essencial na verdade é a diferença
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que ela é capaz de expressar na síntese assimétrica do sensível. Não interpretamos


signos para atingir a sua precisão conceitual absoluta, a sua essência hermenêutica –
pretendê-lo já significa tomar o signo como um afecto que produz em nós a ressonância
de uma diferença que já não se deve ao suporte material do signo, e muito menos à
inclinação do “sujeito cognoscente”. O modelo diferencial deleuziano é, portanto,
espinoso-bergsoniano – o modelo do encontro contingente e, todavia, necessário, dos
corpos com consistência material ou espiritual.

No entanto, como garantir que a repetição material nua permaneça impossível?


Como garantir que a repetição, ou o eterno retorno, não façam retornar o negativo, ou o
Mesmo? Como garantir que o tempo não retorne a si mesmo como uma aliança divinal
e negativa? À luz do bergonismo deleuziano (Deleuze, 1966), sabemos que mesmo a
matéria, que parece perseverar em uma repetição nua, dura, está sujeita à ação
desagregadora – logo, criadora – do tempo. Gostaria, no entanto, de esboçar a saída do
problema da repetição do Mesmo mais precisamente a partir de Nietzsche.

A repetição pressupõe o tempo. Uma repetição material, ou nua, tal como diria
Pelbart (2007, p. 123), desmancha-se na sucessão dos casos. A repetição representada
como nua, segundo Deleuze (2006a, p. 96-97), supõe um espírito e uma contração
passiva dos casos na imaginação. Resultante de uma sensibilidade orgânica primária, tal
contração das repetições no espírito que contempla funda o presente e os eus larvares. O
presente, de uma maneira sub-representativa, contrai os instantes. A esse mundo, à vida
tal como vivida, Deleuze chama comumente de Atual.

Em Le bergsonisme, porém, nasce uma outra ideia de presente em relação com a


memória. Deleuze (1966, p. 72) a descreve como “o nível mais contraído do passado”,
em remissão ao célebre capítulo III de Matiére et Mémoire (Bergson, 2001). Para essa
síntese, supõe-se não mais uma simples repetição nua ou material, mas uma repetição de
tipo espiritual, em que o passado como Todo Virtual é contraído, e, ao invés de suceder,
saltando de instante em instante, coexiste com o presente como sua forma mais
contraída.

Esse dualismo bergsoniano – especialmente a versão virtual para explicar a


síntese do presente – logo enseja a segunda síntese do tempo, a síntese do passado, ou
da memória, o fundamento do tempo. Sem querer, acabamos por retornar a uma ideia
muito cara a Deleuze em Proust e os Signos: o conceito de memória involuntária. O
passado apresenta-se como a condição transcendental pela qual os instantes se sucedem;
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no entanto, o passado não pode ser compreendido como se fosse um antigo presente.
Isso se deve ao fato de que o passado, o imemorial, são anteriores a qualquer repetição e
contração espiritual ativa. É dizer, sendo sub-representativos e, portanto, atravessados
pelo esquecimento como potência própria, o passado e o imemorial antecedem toda
representação espiritual ativa, que, ao recordar-se, deve vencer o imemorial.

Memória, como ser do passado, não se confunde com lembrança, ser passado,
objeto empírico que um dia foi presente. Por essa razão, Deleuze escreve que “O
passado não é o antigo presente, mas o elemento no qual este é visado” (Deleuze,
2006a, p. 124). A memória é involuntária na medida em que assume a forma de um
passado que nunca foi presente (Deleuze, 2006a, p. 149). No plano dessa segunda
síntese do tempo, a de Mnemósina, o imemorial pode retornar, mas sempre diferente,
involuntário, transcendental; nunca como signo de uma repetição nua.

A possível analogia e circularidade das duas repetições anteriores prepara o


advento da terceira síntese do tempov, a do futuro, a qual recoloca o problema da
diferença sob o ponto de vista do eterno retorno. Um terceiro tempo advém unicamente
a fim de romper definitivamente o círculo que as duas primeiras repetições poderiam
ensejar. Entrando-lhe pelo miolo, a linha da terceira repetição, que possui uma forma
imanente, arrebata a circularidade que subordina as duas repetições anteriores. “É a
terceira repetição que as distribui [as repetições] segundo a linha reta do tempo”, afirma
Deleuze (2006a, p. 408).

É a interpretação do eterno retorno nietzscheano que permitirá a Deleuze levar a


crítica da filosofia da representação a seu extremo, e a diferença será, enfim, conduzida
à sua enésima potência. Trata-se de estabelecer, no interior do eterno retorno, um
vínculo conceitual com a repetição e a diferença. O que significa retornar eternamente?
Que tipo de relação com o tempo estaria envolvida em um eterno retorno místico e
obscuro, do qual Nietzsche pouco fala mas, sobretudo, qual a relação intrínseca do
eterno retorno com a vontade de potência?

Na terceira parte do Zaratustra, de Nietzsche, ora sai da boca do anão, ora da


boca dos animais, a ideia de que o tempo é um círculo; de que a roda do ser é um eterno
girar vazio e sobre si mesmo, “o centro está em toda parte. Curvo é o caminho da
eternidade”. Da visão e do enigma, bem como O convalescente, mostram um Zaratustra
encarando o fundo de horror que pode haver em um eterno retornar que é o eterno
retornar do mesmo – a roda do ser gira em falso sobre seu próprio centro, que já está em
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todos os lugares e menores acontecimentos. Aquilo que faz Zaratustra adoecer


(Nietzsche, 2008a, p. 257) é, par excellence, a antevisão de que tudo retorna, mesmo o
homem apequenado.

Deleuze lê o Zaratustra como um teatro filosófico; como tal, percebe que


Zaratustra nunca enuncia o eterno retorno como eterno retorno do mesmo. A hipótese
circular do eterno retorno sempre é levantada pelo anão – de quem Zaratustra zomba e a
quem pede “Não simplifiques demais as coisas, espírito de gravidade”, ora pelos
animais, a quem Zaratustra chama “farsantes”. O anão é o demônio do niilismo, o
espírito do negativo; a águia e a serpente, animais de Zaratustra, exprimem o eterno
retorno, mas como eterno retorno do mesmo, de maneira animal (Machado, 2010, p.
88).

Não se deve esquecer que, se há uma possibilidade de ler Nietzsche


antropologicamente – isto é, de encontrar uma diferença entre o homem e o animal em
sua obra –, ela deve passar por uma qualidade diferencial em suas relações com o
tempo.

Na Segunda Consideração Intempestiva, intitulada “Da utilidade e desvantagem


da história para a vida”, Nietzsche (1990, p. 95-96) diferencia o homem do animal em
face da qualidade de sua relação com o tempo. O animal vive feliz, aferrado unicamente
ao instante presente; cada instante se sucede como se fosse único, de modo que o animal
vive anistoricamente. Por isso, os animais de Zaratustra não podem contemplar senão o
eterno retorno do instante – sem a capacidade de operar no espírito uma síntese passiva
que guarde um pouco de virtual, ou de memória; toda a sucessão diferencial dos
instantes é compreendida como o uniforme retornar da forma vazia e circular do tempo.

Por sua vez, o homem tem de viver preso ao fardo da memória. O passado lhe
parece tão sombrio e pesado, que chega a invejar uma forma de vida bestial. O homem
só surge na natureza quando lhe advém a memória – essa teria sido uma das principais
teses de Nietzsche acerca das ontologias do humano. Não há humano antes da
memória.vi O peso sombrio da memória erige, no animal-homem, uma nova relação
com o tempo e, com ela, o faz padecer de uma tristeza que nenhum animal havia
experimentado.

É porque o advento de uma forma-homem está ligada à história da gênese da


memória como uma nova qualidade de relação com o tempo que, já no início da
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Segunda Dissertação da Genealogia da Moral, Nietzsche (2008c, p. 47) escreve que o


verdadeiro – e paradoxal – problema que a natureza se impôs com relação ao homem é
o de criar um animal capaz de fazer promessas. Porque o anão, espírito do niilista, não
consegue livrar-se do peso perturbador da memória, o tempo é o eterno retornar de uma
memória que o acossa desde a origem, e forma um círculo com o presente que a
filosofia da diferença precisa romper.

É certo que tanto nos primeiros parágrafos da segunda dissertação de Genealogia


da Moral, quanto ao longo da Segunda Consideração Intempestiva, Nietzsche confronta
a forma-homem, e o pesadume de sua memória, com a potência do esquecimento, uma
força ativa e contrária, animal e vital que habita o coração da memória. É o
esquecimento que traz ao homem a paz de espírito, “um pouco de sossego, um pouco de
tabula rasa da consciência, para que novamente haja lugar para o novo” (Nietzsche,
2008c, 47). Sem essa vis activa que é o esquecimento, viveríamos amargurados com o
passado. O esquecimento é o que faz o tempo passar.

Zaratustra, pelo contrário, não é homem nem animal, mas o primeiro iniciado, o
devoto da terra, uma espécie mais alta de regozijo do animal no homem como
anunciador do além-do-homem – ou, como Nietzsche (2008b, p. 80-81) o anunciará em
Ecce Homo, Zaratustra, uma espécie de portador da “grande saúde”. Zaratustra adoece
com o niilismo do anão, mas sorri e convalesce com seus animais; rindo de sua
ingenuidade ao pensar que o tempo é um círculo, redime o animal no homem, e os
afirma em devir. Da segunda vez, quando Zaratustra ri, já não se trata do eterno retorno
do mesmo.

Dito isso, voltamos a Nietzsche et la Philosophie, a fim de compreender como


Deleuze interpreta o eterno retorno nietzscheano e, bem assim, por que razão afirmará
em Diferença e repetição que Nietzsche é o ápice de uma filosofia da diferença.

O argumento deleuziano fundamental parece aproximar-se de um excerto de Da


visão e do enigma. Defronte a um portal, o anão desce das costas de Zaratustra,
aliviando-o, e este lhe fala do eterno retorno, seu pensamento abissal:

“Olha esse portal, anão!”, prossegui; ele tem duas faces. Dois caminhos que
se juntam; ninguém ainda os percorreu até o fim.
Essa longa rua que leva para trás: dura uma eternidade. E aquela longa rua
que leva para frente – é outra eternidade.
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Contradizem-se, esses caminhos, dão com a cabeça um no outro: – e aqui,


neste portal, é onde se juntam. Mas o nome do portal está escrito no alto:
„momento‟. –
Mas quem seguisse por um deles – e fosse sempre adiante e cada vez mais
longe: pensas, anão, que esses caminhos iriam contradizer-se eternamente?”

“Tudo o que é reto mente”, murmurou, desdenhoso, o anão. “Toda a verdade
é torta, o próprio tempo é um círculo.”
“Ó espírito de gravidade!”, disse eu, zangado, “não simplifiques as coisas tão
de leve. Senão, deixo-te encarapitado onde estás [...]”.
“Olha”, continuei, “este momento! Deste portal chamado momento, uma
longa, eterna rua leva para trás: às nossas costas há uma eternidade.
Tudo aquilo, das coisas, que pode caminhar, não deve já, uma vez, ter
percorrido esta rua? Tudo aquilo, das coisas, que pode acontecer, não deve já
– ter existido?
E não estão as coisas tão firmemente encadeadas, que este momento arrasta
consigo todas as coisas vindouras? Portanto – – também a si mesmo?
Porque aquilo, de todas as coisas, que pode caminhar deverá, ainda uma vez,
percorrer – também esta longa rua que leva para a frente! [...].”
(NIETZSCHE, 2008a, p. 193-194).

O argumento deleuziano é o de que “se o devir tivesse uma meta ou um estado


final, já o teria atingido. [...] o instante atual, como instante que passa, prova que não é
atingido” (Deleuze, 1962, p. 53). O passado infinito, essa rua sem fim atrás do momento
atual, provaria que, se houvesse uma meta que o devir devesse atingir, ela já teria sido
atingida. Agora podemos compreender por que Deleuze escreveria mais tarde que o
passado é o fundamento do tempo.

Desse modo, o devir é qualquer coisa que está longe de ser absorvida pelo ser.
Ao contrário, ser e devir, como quisera Nietzsche, fazem dois mundos que se
aproximam no conceito do retornar como o ser do devir; o pensamento do puro devir
fundará, pois, o do eterno retorno (Deleuze, 1962, p. 54). Retornar, para dizê-lo em uma
palavra, é retornar para o diferente; retornar é a forma de um devir que se afirma
unicamente da diferença. Eis o que Deleuze chama de primeiro aspecto do eterno
retorno, o eterno retorno pensado como doutrina cosmológica ou física, já suficiente
para, em um nível inorgânico, romper com a tradição essencialista e eidética do tempo
como um círculo simples, muito própria da antiguidade grega e de um sentido trágico e
clássico da história como destino (Agamben, 2005, p. 112-114). Em A gaia ciência, há
um aforismo pouco célebre, mas indiciário de um eterno retorno em sentido
cosmológico; Alegoria, o aforismo 322, ensaia uma ruptura com as supostas órbitas
circulares dos astros: “Os pensadores nos quais todas as estrelas têm órbitas cíclicas não
14

são os mais profundos; quem olha para dentro de si como para um espaço sideral e traz
vias lácteas em seu interior, sabe como são irregulares todas as vias lácteas; elas
conduzem ao caos e ao labirinto da existência” (Nietzsche, 2007, p. 214-215).

De início, fica claro que Nietzsche ensaia destituir a autoridade da ideia de


círculo no cosmos, reconduzindo-o de um aparente estado de equilíbrio e regularidade
ao caos. Isso se deve a uma relação histórica que, ademais, Agamben (2005) mostrara
muito sinteticamente, entre uma certa concepção antiga, e platônica, de tempo como
circularidade simples derivada do movimento dos astros e sua retomada, pela filosofia
teológica medieval, por exemplo, quando Agostinho de Hipona se pergunta se, por
acaso, os astros parassem de se mover, e a roda de um oleiro continuasse a girar, haveria
sido suprimido o tempo. Nietzsche dispara, portanto, contra as variações de toda uma
tradição metafísica ocidental e, mais tarde, cristã, que pensa o tempo como eterno
retornar do Mesmo.

Contudo, o eterno retorno aproxima-se verdadeiramente da vontade de potência


apenas em um segundo aspecto: a que Deleuze chamará de eterno retorno como
pensamento ético e seletivo. Mesmo em Alegoria, Nietzsche parece supor uma
contiguidade entre eterno retorno em sentido cosmológico, ou físico (a órbita irregular
dos astros, o cosmos reconduzido ao caos) e o eterno retorno em sentido ético ou
seletivo – especialmente, quando escreve “quem olha para dentro de si como para um
espaço sideral e traz vias lácteas em seu interior, sabe como são irregulares todas as vias
lácteas; elas conduzem ao caos e ao labirinto da existência”. Seu desenvolvimento,
porém, aparece um pouco mais tarde, no célebre aforismo 341, O maior dos pesos:

E se um dia, ou uma noite, um demônio aparecesse furtivamente em sua mais


desolada solidão e dissesse: “Esta vida, como você a está vivendo e já viveu,
você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de
novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o
que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder
novamente, tudo na mesma sequência e ordem – e assim também essa aranha
e esse luar entre as árvores, e também este instante e eu mesmo. A perene
ampulheta do existir será sempre virada novamente – e você com ela,
partícula de poeira!” - Você não se prostraria e rangeria os dentes e
amaldiçoaria o demônio que assim falou? Ou você já experimentou um
instante imenso, no qual lhe responderia: “Você é um deus e jamais ouvi
coisa tão divina!” Se esse pensamento tomasse conta de você, tal como você
é, ele o transformaria e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada
coisa, “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?”, pesaria sobre
os seus atos como o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem
consigo mesmo e com a vida, para não desejar nada além dessa última,
eterna confirmação e chancela? (Nietzsche, 2007, p. 230).
15

A ideia de eterno retorno como retorno do mesmo poderia fornecer um princípio


seletivo ao eterno retorno tomado em sentido ético. O que O maior dos pesos afirma é
que viveríamos de forma muito diferente se tivéssemos de viver essa mesma vida
eternamente. Nesse sentido, Nietzsche elaboraria uma paródia do imperativo categórico
kantiano: “viva de tal modo que você deva desejar reviver, é o dever – pois de todo
modo você reviverá”. Nesse primeiro nível seletivo, como pensamento prático e ético, o
eterno retorno fortalece a vontade, eliminando todos os semi-quereres, tudo o que
desejamos precariamente, sem afirmá-lo infinitamente e por toda a eternidade. Deleuze
(1962, p. 77) o reescreve de uma forma muito clara: “O que você quiser, queira-o de tal
modo que também queira o seu eterno retorno” – regra, sem dúvida, prática e rigorosa
do desejo.

No entanto, a seleção ética e a eliminação dos semi-desejos não é capaz de


conjurar todas as forças reativas. É certo que, nesse primeiro nível, eliminam-se
determinados estados reativos, caprichos e semi-quereres. Contudo, é ainda preciso
eliminar especialmente a vontade de nada, tornando sua negação uma negação das
próprias forças reativas (Deleuze, 1962, p. 78). A vontade de nada opera separando uma
força ativa daquilo que ela pode. Essa destruição ativa importaria fazer o niilismo
vencer-se a si mesmo, promovendo um devir-ativo do reativo ou impedindo o retorno
do negativo. Deleuze (1962, p. 80) afirma que a segunda seleção consiste em produzir o
devir ativo. Do encontro com o niilismo, corporificado no anão, espírito de gravidade,
para quem o tempo é curvo, Zaratustra adoece; seu riso e sua convalescença terão lugar
quando se apercebe de que entregar a vontade de nada ao ser seletivo do eterno retorno
importa, como quisera Deleuze (idem, loc. cit.), “fazer entrar no ser aquilo que aí não
pode entrar sem mudar de natureza”.

Assim, ser e vontade têm sua integridade afirmada a cada lance de dados do
devir. Nietzsche chamara “transvaloração de todos os valores” a isto: reunir aquilo à
potência de que foi separado, suplantar o negativo, destituir o domínio das forças
reativas em proveito do novo; é dizer, igualar em uma equação complexa, e no entanto
una, destruição, devir e criação.

Só a esse preço – o de que “{destruição} = {devir} = {criação}” – a filosofia


deleuziana da repetição e da diferença pode transformar as identidades em simulacros;
isto é, toda identidade, sob as formas do Mesmo, do Semelhante, do Análogo e do
Oposto, ao passar pelo movimento turbilhonar do eterno retorno, é expulsa por uma
16

afirmação seletiva. O Mesmo, o Semelhante, o Análogo e o Oposto não retornam; só os


veremos uma vez, repete Deleuze. As identidades esfacelam-se em simulacros, e “Tudo
é diferença nas séries e diferença de diferença na comunicação das séries” (Deleuze,
2006a, p. 411).

A tese de Deleuze, em que se unem em uma só aliança demoníaca Duns Scott,


Espinosa e Nietzsche, é a de que o ser se diz em uma só voz: a diferença: “o que é
unívoco é o próprio ser, o que é equívoco é aquilo de que ele se diz” (Deleuze, 2006a, p.
417). Por um lado, as formas pelas quais o ser se diz, suas expressões, “não rompem a
unidade de seu sentido”; por outro, aquilo de que o ser se diz “é a própria diferença”. A
conclusão de Diferença e Repetição não pode, portanto, ser outra: “o Tudo é igual e o
Tudo retorna só podem ser ditos onde a ponta extrema da diferença é atingida”. Se o
eterno retorno faz jus ao ícone da roda que gira eternamente, Deleuze deu a ela, enfim,
uma ponta móvel e excessiva sobre a qual girar – a diferença.

IV
Referências

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V
Notas

i
Doutorando em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em
Filosofia e Teoria do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Graduado em Direito
pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professor Titular de Filosofia do Direito e Assistente de
Teoria Geral do Direito, vinculado ao Departamento de Propedêutica do Direito da Faculdade de Direito
de Curitiba (DPD/FD/UNICURITIBA); Professor Adjunto da Faculdade de Direito do Centro de Ciências
Sociais e Aplicadas da Fundação de Estudos Sociais do Paraná (FD/CCSA/FESP-PR). Contato:
<http://murilocorrea.blogspot.com>.
ii
Agamben, por sua vez, parece perceber esse entrecruzamento ao escrever que “(...) para Foucault, os
dois poderes que, no corpo do ditador parecem confundir-se por um instante, continuam sendo
essencialmente heterogêneos, e a sua distinção traduz-se em uma série de oposições conceituais (corpo
individual / população, disciplina / mecanismos de regulação, homem-corpo / homem-espécie) que, no
início da modernidade, definem a passagem de um sistema a outro. Claro que Foucault se dá
perfeitamente conta de que os dois poderes e as suas técnicas podem, em determinados casos, integrarem-
se mutuamente; mas eles, no entanto, continuam sendo conceitualmente diferentes.”
iii
Como exemplar desse entrecruzamento, Foucault (Idem, loc. cit.) escreve que “se tomarmos os
mecanismos de segurança tais como se tenta desenvolvê-los na época contemporânea, é absolutamente
evidente que isso não constitui de maneira nenhuma uma colocação entre parênteses ou uma anulação das
estruturas jurídico-legais ou dos mecanismos disciplinares.”
iv
Deleuze deu causa diversas críticas por ter interpretado uma diferença conceitual entre os conceitos de
força e vontade de potência em Nietzsche. A mais influente delas, provavelmente por sua precedência,
talvez tenha sido aquela de (MÜLLER-LAUTER, 1997, p. 110-111). No entanto, para o momento, uma
aprofundamento nessa polêmica é de todo desnecessário, pois ela toma a obra de Nietzsche como
19

referencial. Para nós, nos limites de nossa proposta, não importa mostrar se a interpretação deleuziana dos
conceitos de força e vontade de potência é fidedigna ou não à luz de Nietzsche, mas precisar qual a
importância dessa disjunção diferencial. Mesmo porque, a célebre imagem deleuziana da história da
filosofia é a da enrabada, ou a da imaculada concepção: “Eu me imaginava chegado pelas costas de um
autor e lhe fazendo um filho, que seria seu, e no entanto seria monstruoso”. (Deleuze, 2008, p.
14). Assim, mesmo no campo aparentemente estéril da história da filosofia, não existirá repetição nua dos
conceitos, mas repetição diferencial e, portanto, gênese do novo a partir de sua memória. Ainda a respeito
do conceito de vontade de potência, Deleuze (1962, p. 57) escreve: “La volonté de puissance, en effet,
n‟est jamais séparable de telle et telle forces déterminées, de leurs quantités, de leurs qualités, de leurs
directions ; [...]. Inséparable ne signifie pas identique.”
v
Deleuze (2006a, p. 407), a propósito, escreve que “a analogia exige que um terceiro tempo seja dado
[...]”.
vi
A interpretação heideggeriana da Segunda Consideração vai no mesmo sentido; ao invés de qualificar o
homem a partir da memória, porém, Heidegger prefere atribuir ao homem o sentido da historicidade:
“l‟homme est marquée et caractérisé dans son essence par l‟historique”. Contudo, isso não significa
esquecer-se de que a produção da historicidade no homem desarticula-se de uma forma animal que o
habita: “Mais l‟anhistorique possède en même temps un primat dans la vie humaine. Cette caractérisation
par l‟historique d‟une part et ce primat de l‟anhistorique d‟autre part vont de pair en l‟homme”
(Heidegger, 2009, p. 37).

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