Você está na página 1de 421

Conjecturas

‘J P

e refutações
Λ
B'

_ UnB
Karl Raimund Popper nasceu em Viena,
Áustria, no dia 28 de julho de 1902 e faleceu
em 17 de setembro de 1994,
Popper tornou-se internacionalmente
conhecido por seu trabalho em filosofia da
ciência, no qual perseguiu a conquista da
verdade em áreas tão distintas como teoria
política, mecânica quântica, lógica, metodo­
logia científica e teoria evolucionária.
Popper foi membro da Royal Society, da
British Academy e do L'Institute de France.
Foi também membro honorário do London
School of Economics, do King's College
London e do Darwin College Cambridge.
Entre os prêmios que recebeu por todo o
mundo estão: o Austrian Grand Decoration
of Honor in Gold, o Lippincott Award of the
american Poütical Science Association e o
Sonning Prize, por seu trabalho em prol da
sociedade européia.
FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
Reitor pro tempore
Roberto A. R. de Aguiar
Vice-Reitor
José Carlos Balthazar

EDITORA

UnB
Diretor
Norberto Abreu e Silva Neto
Conselho Editorial
Norberto Abreu e Silva Neto
Presidente do Conselho
D enise Imbroisi
José Carlos Córdova Coutinho
José Otávio Nogueira Guimarães
Lúcia Mercês de Avelar
Luís Eduardo de Lacerda Abreu
M aria José M. S. da Silva

Data o q 2Q.QÍ_
tr VX I âCQ^ _________
N.F. % 5 5 b ________
rnRNrrfnnRrUoS^ djoXoiO
Karl R. Popper

Conjecturas e refutações
O progresso do conhecimento científico

Tradução
Sérgio Bath

5.a edição
EDITORA

UnB
J
EQUIPE TÉCNICA
Supervisão Editorial: Dival Porto Lomba
Coordenação Editorial: Lúcio Reiner, Manuel Montenegro da Cruz, Maria Rizza Baptista Dutra, Maria
Rosa Magalhães
Supervisor gráfico: Antônio Batista Filho e Elmano Rodrigues Pinheiro
Supervisor de revisão: José Reis
Capa: Ivanise Oliveira de Brito
Controladores de texto: Antônio Carlos Ayres Maranhão, Carla Patrícia Frade Nogueira Lopes, Clarice
Santos, Lais Serra Bátor, Maria dei Puy Diez de Uré Helinger, Maria Helena Miranda,
Mônica Fernandes Guimarães, Patrícia Maria Silva de Assis, Thelma Rosane Pereira
de Souza, Wilma G. Rosas Saltarelli
Título original: Conjectures and Refutations: The growth of scientific knowledge
’ Copyright © 2000 by Melitta Mew
Direitos exclusivos para esta edição em língua portuguesa:
EDITORA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
SCS, quadra 2, bloco C, ns 78, edifício OK, l2 andar
CEP 70302-509, Brasília, Distrito Federal
Telefone (61) 3035-4211, fax (61) 3035-4223
E-mail: direcao@editora.unb.br
www.editora.unb.br
Impresso no Brasil
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser armazenada ou reproduzida
por qualquer meio sem a autorização por escrito da Editora.
Editora Universidade de Brasília: 1* ed., 1980
2* ed., 1982
3a ed., 1994
4a ed., 2001
5a ed., 2008
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasília*3
Popper, Karl R. (1902-1994)
P831 Conjecturas e refutações / Karl R. Popper; tradução de Sérgio
Bath. - 5. ed. - Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008.
450 p.; 23 cm.
ISBN 978-85-230-1232-8
1. Ciência - metodologia. 2. Conhecimentos - teoria.
3. Metodologia. I. Título.
CDU 001
Conjecturas e refutações
O progresso do conhecimento científico
Μ

“Experiência é o nome que todos damos a nossos erros”


Oscar Wilde

“Todo o nosso problem a consiste em fazer com que nossos erros sejam tão
breves quanto possível!..."
/ H
John Archibald Whecler

r_
•TJ
SUMARIO
Prefácios 17
INTRODUÇÃO 27
As origens do conhecim ento e da ignorância 31
CONJECTURAS 59
L. Ciência: conjecturas e refutações 63
Apêndice: Alguns problem as da filosofia da ciência 89
2. A natureza dos problem as filosóficos e suas raízes científicas 95
3. Três pontos de vista sobre o conhecim ento hum ano 125
1. A ciência de Galileu novamente atraiçoada 125
2. O que está em jogo 127
3. Prim eiro ponto de vista: a explicação definitiva pelas essências 131
4. Segundo ponto de vista: as teorias como instrum entos 135
5. Crítica do ponto de vista instrum entalista 138
6. Terceiro ponto de vista: conjecturas, a verdade e a realidade 141
4. Rum o a um a teoria racional da tradição 147
5. Retorno aos pré-socráticos 161
Apêndice: Conjecturas históricas: a opinião de H eráclito sobre a m udança 179
6. Nota sobre Berkeley — um precursor de M ach e de Einstein 193
7. Crítica e cosmologia de Kant 203
1. Kant e o iluminismo 204
2. A cosmologia new toniana de Kant 205
3. A "Crítica" e o problem a cosmológicq 205
4 O espaço e o tem po 206
5. A "Revolução de Copérnico" de Kant 207
6. A doutrina da autonom ia 209
8. O status da ciência e da metafísica 211
1. Kant e a lógica da experiência 211
2. O problem a da irrefutabilidade das teorias filosóficas 219
9. Por que os cálculos lógicos e aritm éticos são aplicáveis à realidade? 227
10. V erdade, racionalidade e a expansão do conhecim ento científico 241
1. A expansão do conhecim ento: teorias e problem as 241
2. Teoria da verdade objetiva: correspondência com os fatos 248
3. V erdade e conteúdo: verossim ilhança versus probabilidade 254
4. Conhecim ento contextual e progresso científico 263
5. Três condições para a expansão do conhecim ento 266
Apêndice: Uma assertiva não empírica presumivelmente falsa porém de
elevada probabilidade formal 275
REFUTAÇÕES 277
11. A distinção entre ciência e m etafísica 281
1. Introdução 281
2. Meu ponto de vista. 283
3. Prim eira teoria de C arnap sobre a ausência de sentido 286
4. C arnap e a linguagem da ciência 292
5. T estabilidade e significação 301
6. Probabilidade e indução 308
12. A linguagem e o problem a das relações entre corpo e m ente 323
1. Introdução 323
2. As quatro funções principais da linguagem 325
3. Um conjunto de teses 325
4. O argum ento da m áquina 326
5. A teoria causai da denom inação 327
6. Interação 328
7. Conclusão 329
13. N ota sobre o problem a das relações entre corpo e m ente 331
14. Auto-referência e significação na linguagem ordinária 335
15. Que é a dialética? 343
1. A dialética explicada 343
. 2. A dialética hegeliana 354
3. A dialética depois de Hegel 361
16. Previsão e profecia nas ciências sociais 367
17. A opinião pública e os princípios liberais 379
1. O m ito da opinião pública 379
2. Os perigos da opinião pública 381
3. Os princípios liberais: um conjunto de teses 382
4. A teoria liberal do livre debate 383
5. As form as da opinião pública 384
6. Alguns problemas práticos: a censura e os monopólios de publicidade 385
7. Algumas ilustrações políticas 385
8. Sum ário 386
18. Utopia e violência 387
19. A história do nosso tempo: um a visão otim ista 397
20. Hum anism o e razão 411

Apêndices: 419
Notas técnicas 421
1. O conteúdo em pírico 421
2. Probabilidade e o rigor dos testes 424
3. Verossim ilhança 428
4. Exemplos numéricos 433
5. Linguagens anificiais e form alizadas 435
6. Nota histórica sobre a verossimilhança (1964) 435
7. Algumas indicações adicionais sobre a verossimilhança (1968) 438
8. Novas observações sobre os pré-socráticos, especialmente Parm ênides
(1968) 441
9 Os pré-socráticos: unidade ou novidade? 449

«
Prefácio
Os textos que com põem este livro — ensaios e conferências — constituem
variações em torno de um tem a m uito simples: a tese de que podemos aprender
com os erros que cometemos. Desenvolvem um a teoria do conhecim ento e do seu
progresso: um a teoria da razão que atribui aos argum entos racionais a função
m odesta - mas im portante — de criticar nossas tentativas, m uitas vezes equivo­
cadas, de resolver os problem as com que nos defrontam os. E um a teoria da ex­
periência que reserva para nossas observações o papel igualm ente modesto e quase
igualm ente im portante de experim entos que podem ajudar-nos a identificar erros.
Em bora acentue nossa falibilidade, não se resigna a u m a atitude de ceticismo, en ­
fatizando tam bém o fato de que o conhecim ento pode crescer, de que a ciência
pode progredir — justam ente porque aprendem os com nossos erros.
Nosso conhecim ento — em particular o conhecim ento científico — progride
por meio de antecipações justificadas (ou não), “palpites”, tentativas de soluções,
por meio de conjecturas, enfim . Conjecturas que são controladas pelo espírito
crítico; isto é, por refutações, que incluem testes rigorosam ente críticos. Elas po­
dem vencer esses testes, mas nunca são justificadas de m odo positivo: não se pode
dem onstrar que sejam verdades seguras, ou mesmo “prováveis” (no sentido do cál­
culo probabilístico). O exam e crítico das nossas conjecturas tem im portância
decisiva: põe em evidência nossos erros e nos leva a com preender as dificuldades do
problem a que pretendem os solucionar. E assim que nos fam iliarizam os com os
problem as e podemos propor soluções m ais m aduras: por si mesm a, a refutação de
um a teoria — isto é, de qualquer tentativa séria de solucionar nossos problem as —
constitui sempre um passo que nos aproxim a da verdade. Desta form a, aprendem os
com os erros.
A m edida que aprendem os com os erros cometidos, nosso conhecim ento
aum enta — em bora possa acontecer que não tenham os consciência (ou segurança)
disso. Como nosso conhecim ento cresce, não há razão para desesperar d a razão. E
como nunca podemos saber com certeza, não podemos tam bém adotar um a atitude
autoritária, pretensiosa ou orgulhosa em relação ao que sabemos.
D entre as teorias que sustentam os, algum as são m uito resistentes às críticas
e, num determ inado m om ento, parecem constituir um a m elhor aproxim ação da
verdade: estas podem ser descritas — juntam ente com os resultados dos testes a elas
aplicados — como a “ciência” daquela época. Mas, como nenhum a teoria pode ser
justificada de form a positiva, a racionalidade da ciência reside essencialm ente no
se u c a r á t e r c r ític o e p r o g r e s siv o — n o fa to de q u e p o d em o s debater s u a p re te n sã o
d e s o lu c io n a r p r o b le m a s m e lh o r d o q u e a s e x p lic a ç õ e s c o m p e titiv a s .

Em poucas palavras, esta é a tese fundam ental desenvolvida neste livro, que
é aplicada a m uitos temas — de problem as de filosofia e da história das ciências
físicas e sociais a problem as historicos e políticos.
E essa tese central que dá unidade ao livro; a variedade dos assuntos torna
aceitável a sobreposição de alguns capítulos. Revisei, aum entei e reescrevi a m aior
parte deles, mas evitei alterar o caráter distintivo das conferências e exposições
feitas pelo rádio. N ão teria sido difícil libertá-las do estilo narrativo característico
do conferencista, mas acho que os leitores preferirão tolerar esse estilo a sentir que
o autor não os tratou com confiança. M antive algum as repetições, de m odo que
cada capítulo se sustenta por si mesmo.
Como contribuição para os críticos potenciais deste livro incluí, como ca­
pítulo final, um a crítica a ele que contém parte essencial do argum ento (que o
leitor não encontrará em nenhum a outra seção do livro). Excluí todos os trabalhos
que pressupõem fam iliaridade com aspectos técnicos nos campos da lógica, da
teoria da probabilidade, etc. Nos Apêndices, contudo, reuni algum as notas téc­
nicas que poderão ser úteis aos que se interessam por essas coisas. Os Apêndices e
quatro dos capítulos vão publicados aqui pela prim eira vez.
Para evitar equívocos, quero deixar bem claro que uso sem pre os termos
“liberal”, "liberalism o", etc. no sentido em que são em pregados, de m odo geral, na
Inglaterra (mas não necessariam ente nos Estados Unidos): “liberal”, p ara m im , não
é o sim patizante de um determ inado partido político, mas aquele que valoriza a
liberdade individual e que é sensível aos perigos intrínsecos de todas as form as do
poder e da autoridade.
K.R.P.
Berkeley, Califórnia, primavera de 1962
Prefácio à Segunda Edição
Esta nova edição apresenta, além de am a revisão geral do texto, um a q u an ­
tidade considerável de m aterial histórico acum ulado desde que a prim eira edição
foi publicada. Procurei m anter a paginação, sempre que possível, de modo que as
referências à prim eira edição concordarão quase sempre com a segunda edição.
Houve tam bém um acréscimo à parte final do capítulo 5, e mais um Apêndice (6).
Alan Musgrave contribuiu m uito para aperfeiçoar o livro.
No m eu prefácio original procurei sintetizar a tese deste volume num a frase
— a afirmativa de que podemos aprender com os erros que cometemos. Valeria a
pena talvez acrescentar algum as palavras aqui. M inha tese implica que todo o nos­
so conhecim ento aum enta exclusivamente por meio da correção dos nossos erros.
Por exemplo: o que conhecemos hoje como “retroalim entação negativa” (“negative
feed-back") é apenas um a aplicação particular do m étodo genérico de aprendizado
por meio dos erros.
A parentem ente, para em pregar esse m étodo precisamos ter algum objetivo
em vista: erram os quando nos afastamos dele. (Um term ostato retroalim entado
depende da existência de um objetivo — um a tem peratura determ inada — que
precisamos escolher previamente.) Contudo, embora seja necessário selecionar um
objetivo antes de aplicar o m étodo do aprendizado pelo erro, isto não quer dizer
que nossos objetivos não se subordinem , por sua vez, ao m étodo em pregado: eles
podem ser substituídos, e muitos o são. (Da mesma form a, podemos alterar o te r­
m ostato, escolhendo, pelo m étodo das tentativas, a tem peratura mais apropriada
para um certo fim.) E nossó sistema de objetivos não só muda, mas tam bém se
desenvolve, de m odo m uito sem elhante à form a como cresce o conhecim ento.
K.R.P.
Penn, Buckinghamshire, janeiro de 1965
Prefácio à Terceira Edição
Além de numerosas alterações de pequena m onta, o texto teve vários acrés­
cimos, entre eles um a exposição mais clara sobre o que penso a respeito da teoria
da verdade de Tarski. Há tam bém alguns novos Apêndices.
K. R. P.
Penn, Buckinghamshire, abril de 1968
Prefácio à Edição Brasileira
Contra a Indução
(Uma Argumentação Dentre Muitas)
I
Muitos anos atrás — em 1954 —, escreví um trabalho, “T he Aim of Scien­
ce” 1, publicado pela prim eira vez em inglês e alem ão em dezem bro de 1957. Esse
trabalho continha, entre outras coisas, um a refutação do ponto de vista m antido
por grandes homens como Isaac Newton e Max Bom , de que a teoria de Newton
pode ser derivada das leis de Kepler, seja por meio de um a argum entação indutiva
seja de um a argum entação dedutiva.
Na época, não dei m uita ênfase à refutação do mito histórico de que a
teoria de Newton é resultado da indução, pois pensava haver destruído a teoria da
indução vinte anos antes; e era otim ista o suficiente para acreditar que toda resis­
tência ainda proveniente dos defensores da indução deveria desaparecer em breve.
(Contudo, critiquei de modo até certo ponto circunstanciado a então corrente
teoria da indução probabilística de C arnap, com o resultado de que ele a ab an ­
donou; e a últim a m aneira como ele defendeu a indução foi com pletam ente diversa
da fam osa teoria que desenvolvera no seu volumoso porém , na m inha opinião, in ­
defensável livro Logical Foundations o f Probability.)

Desde então, os indutivistas tom aram algum alento, em parte porque não
tenho m ais respondido as suas argum entações, que foram todas claram ente re­
futadas em várias partes de meus escritos anteriores. N ão mais as respondi porque
pensava, como ainda penso, que o assunto já havia sido definido há m uito tem po e
que era portanto entediante.

II
Todavia, pode ser bom agora repetir aqui, de modo m uito breve, um a das
mais interessantes argum entações contra o indutivismo.
Por indução quero dizer um a argum entação tal que, dadas algum as prem is­
sas em píricas (singulares ou particulares), leva a um a conclusão universal, a um a
teoria universal, seja com um a certeza lógica, seja “probabilisticam ente” (no sen­
tido em que este term o é utilizado no cálculo de probabilidades).
A argum entação que desejo reenunciar aqui é m uito simples.

1. Publicado pela primeira vez em Ratio, vol. 1, n.° 1, dezembro de 1957. Uma versão revisada constitui
agora o capítulo 5 do meu Objective Knowledge, Oxford University Press, 5.a impressão, 1979,
pp. 191-205. A presente reenunciação do argumento contra a indução, implícito neste trabalho, foi
escrita em abril de 1980.
24 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

Muitas teorias que, como a de Newton, pensava-se serem resultado da in ­


dução são na realidade inconsistentes em relação a suas supostas premissas in d u ­
tivas (parciais).
Mas, sendo isto verdade, então a indução rui, em todos os seus aspectos
relevantes. Isso quanto à indução não probabilística.
No que respeita à argum entação indutiva probabilística: segundo o cálculo
de probabilidades, se nos forem dadas algum as premissas indutivas consistentes,
então qualquer conclusão inferida que seja inconsistente com as mesmas somente
poderá ter, em relação a elas, um a probabilidade igual a zero.

III

A teoria de Newton indubitavelm ente deveu m uito às teorias de Galileu e de


Kepler; tanto, que o próprio Newton as considerou como sendo premissas indutivas
(parciais).
A teoria de Galileu sobre a queda dos corpos continha um a constante, g, a
constante da aceleração. Segundo a teoria de N ew ton, g não é um a constante, mas
um a variável que depende (a) da massa do corpo atraente (no caso de Galileu, a
T erra), e (b) da distância do centro de massa.
Conseqüentem ente, a teoria de Galileu é inconsistente em relação à de New­
ton.
Evidentem ente, na suposição de que som ente observamos os corpos em
queda livre próxim os à superfície da T erra, o que determ ina que todos eles estejam
a quase a mesma distância do centro da T erra; podemos explicar porque g (er­
roneamente) parece ser uma constante.

A situação em relação às leis de Kepler é bastante sim ilar.


Para qualquer sistema de dois corpos dos quais um é m uito pesado, e o
outro de peso desprezível, podemos derivar as três leis de Kepler da teoria de New­
ton e conseqüentem ente explicá-las. Mas, desde que Kepler form ulou suas leis para
um sistema de muitos corpos consistindo do som atório de vários planetas, elas são,
do ponto de vista da teoria de Newtom inválidas. Assim, essas leis não poderíam
constituir um sistema seja parcial seja total de premissas (indutivas ou dedutivas) da
teoria de Newton.

Isso quanto a um a derivação indutiva ou dedutiva da teoria de Newton a


partir da teoria de Kepler e da de Galileu.
IV
Evidentem ente, foi um êxito decisivo da teoria de Newton poder explicar as
teorias de Kepler e Galileu; isto é, que essas teorias pudessem ter sido deduzidas da
de Newton segundo certas suposições sim plificadoras (e, em termos estritos, falsas).
P R EFÁ C IO S 25

Mas desde que as supostas premissas indutivistas são, em termos estritos, in ­


consistentes em relação às supostas conclusões indutivistas, seria m uito errôneo
falar, nesse caso, de um a inferência indutiva, ou de um a relação de indução
probabilística.
V
Esta espécie de situação é tradicional na história da ciência. A relação entre
a teoria new toniana da gravitação e aquela de Einstèin é um outro exem plo m uito
im portante e sim ilar de um tal caso.
VI
Que eu saiba, nenhum a resposta séria foi dada a esta argum entação, até
agora, especialm ente por parte dos defensores das atuais teorias probabilísticas da
indução.
KarlR. Popper
abril de 1980
Introdução
“Deixarei contudo que o pouco que aprendí seja conhecido, de modo que
alguém m elhor do que eu possa adivinhar a verdade, provando e refutando meus
erros com seu trabalho. Isso me dará prazer, pois terei sido um meio para trazer à
luz a verdade”.
Albrecht Dürer

á /n*«.
“Posso alegrar-m e agora até mesmo com a dem onstração de que um a teoria
que estimo é falsa — isso constituiría tam bém um êxito científico”.

John Carew Eccles


*4. J

is
I 3
As Origens do Conhecimento e da Ignorância*
“ Segue-se, portanto, que a verdade se manifesta...”
Benedictus de Spinoza
“Todo homem traz consigo os critérios... para distinguir... a verdade das
aparências”.
John Locke
“...é impossível pensar em algo que não tenhamos anteriormente sentido,
através de nossos sentidos interiores ou exteriores”.
David Hume

Tem o que o título desta conferência possa ser criticado, pois em bora as ex­
pressões “origens do conhecim ento” e “origens do erro” estejam corretas, a expres­
são “origens da ignorância" é um caso diferente, “A ignorância é algo negativo: é a
ausência de conhecim ento. Mas, de que m aneira pode a ausência de algo ter a l­
gum a origem ?” 1 Esta pergunta me foi feita por um amigo quando lhe confiei o
título que havia escolhido para esta conferência. Pressionado, surpreendí-m e im ­
provisando um raciocínio para explicar que o curioso efeito lingüístico do título era
na verdade intencional. Disse-lhe que esperava, pelo enunciado do título, cham ar
atenção para um a série de doutrinas filosóficas não registradas, e especialmente
(além da doutrina que afirm a que a verdade é evidente) para a teoria da cons­
piração, que interpreta a ignorância não como a m era ausência de conhecim ento,
nas como a ação de um a força sinistra, origem de influências im puras e maléficas
que pervertem nossa m ente e nos impõem o hábito de resistir ao conhecim ento. *

Annual Phitosophicat Lecture da British Academy de 20 de janeiro de 1960. Publicada pela primeira
zez nos Proceedings of the British Academy (46, 1960) e separadamente pela Oxford University Press, em
1961.
— Descartes e Spinoza foram além, afirmando que o erro, além da ignorância, é “negativo" — uma
privação" de conhecimento e até mesmo do uso apropriado da nossa liberdade (Descartes, Princípios, I,
3-42; e também a Terceira e a Quarta Meditações', vide também a Ética de Spinoza (11,35) e Princípios
'a Filosofia de Descartes (1,15). Esses filósofos se referem, contudo (por ex.: na Ética, 11,41), à "causa"
a falsidade (ou do erro), como o faz Aristóteles (Met. 1046a — 30/35; vide também Met. 1052a — 1 e
iat. 12a26 - 13a35).
32 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

Não estou bem certo se a explicação tranqüilizou as apreensões do meu


am igo, mas certam ente o silenciou. Não sei se podería dizer o mesmo deste au ­
ditório, m antido em silêncio pelas norm as que regem este encontro. Espero, con­
tudo, tê-lo tranqüilizado o suficiente para poder com eçar pelo outro extrem o, ou
seja, pelas origens do conhecim ento. Mais adiante, retornarei à questão das origens
da ignorância e tam bém à “teoria da conspiração” .

I
O problem a que pretendo exam inar nesta conferência (e espero não apenas
exam inar mas tam bém resolver) pode ser descrito como um dos aspectos da velha
disputa entre as escolas de filosofia britância e continental — a disputa entre o em-
pirismo de Bacon, Locke, Berkeley, H um e e Mill e o racionalism o clássico ou in-
telectualism o de Descartes, Spinoza e Leibniz. Nessa disputa, a escola britânica in ­
sistia em que a origem fundam ental de todo conhecim ento está na observação, en ­
quanto a escola continental insistia em que sua origem reside na intuição intelec­
tual de idéias claras e distintas.
M uitas destas questões estão ainda hoje bastante vivas. O em pirismo, que
ainda é a doutrina dom inante na Inglaterra, não só conquistou os Estados Unidos,
mas é hoje tam bém largam ente aceito no próprio continente europeu como a ver­
dadeira teoria do conhecim ento científico. O intelectualism o cartesiano, infeliz­
m ente, tem sido dem asiadam ente distorcido pelas várias form as do irracionalism o
moderno.
Nesta conferência, procurarei dem onstrar que as diferenças entre as escolas
em pirista e racionalista são em verdade bem menos expressivas do que as seme­
lhanças, e que am bas estão erradas. Sustento que estejam erradas em bora eu m es­
mo seja um em pirista e um racionalista. Mas acredito que, em bora tanto a razão
corno a observação desem penhem funções im portantes, essas funções pouco se as­
semelham às que seus defensores clássicos lhes atribuíam . Mais precisam ente,
procurarei dem onstrar que nem a observação nem a razão podem ser descritas
como fontes do conhecim ento, no sentido em que até hoje têm sido definidas.
II
Nosso problem a pertence à teoria do conhecim ento, ou epistem ologia, que
tem a reputação de ser o cam po da filosofia pura mais abstrato, mais rem oto e
com pletam ente irrelevante. H um e, por exem plo, um dos m aiores pensadores neste
cam po, predisse que, tendo em vista o caráter rem oto e o nível de abstração do as­
sunto, bem como a irrelevância, na prática, de alguns de seus resultados, nenhum
leitor os aceitaria por mais de um a hora.
A atitude de Kant era diferente. Segundo ele, a pergunta “Que posso sa­
ber?" estava entre as três mais im portantes que um homem podia propor a si mes­
mo. Em bora mais próxim o de H um e em termos de tem peram ento filosófico. Ber-
trand Russell parece concordar com Kant neste ponto. Penso que Russell tem razão
em atribuir à epistem ologia conseqüências práticas para a ciência, a ética e mesmo
a política. Russell. de fato, afirm a que o relativismo epistemológico (ou seja. a
idéia de que não existe a verdade objetiva) e o pragm atism o epistemológico (isto é.

I
AS ORIGENS DO CONHECIMENTO E DA IGNORÂNCIA
; ° 7 ? i 33
o£ * ^ 0 1 >
a noção de que a verdade é o mesmo que a utilidade) estão intim am ente ligados às
idéias autoritárias e totalitárias. (Cf. Let the People Think, 1941, pág. 77).
Obviam ente, a posição de Russell está sujeita a discussão. Alguns filósofos
recentes têm desenvolvido a doutrina da im potência essencial e da irrelevância, na
prática, de toda filosofia genuína — incluindo portanto (pode-se supor) a epis-
temologia. Esses mesmos filósofos afirm am que, por sua própria natureza, a fi­
losofia não pode ter conseqüências significativas e, portanto, não pode influenciar a
ciência e a política. Creio, no entanto, que as idéias são coisas perigosas e pode­
rosas, e que mesmo os filósofos têm algum as vezes produzido idéias. Na m inha
opinião, esta nova doutrina da im potência da filosofia é largam ente rejeitada pelos
fatos.
Com efeito, a situação é m uito simples. A crença de um liberal — crença na
possibilidade do império das leis, da justiça igualitária, dos direitos fundam entais
e na sociedade livre — pode conviver facilm ente com o reconhecim ento de que os
juizes não são oniscientes e com etem erros; que a justiça absoluta jam ais se realiza
plenam ente. Mas a crença na possibilidade do im pério das leis, da justiça e da
liberdade certam ente não resistirá à aceitação de um a epistem ologia que propugne
a inexistência de fatos objetivos, não só neste caso particular mas em qualquer
outro; e que diga que o juiz não pode com eter erros factuais um a vez que não pode
estar equivocado a respeito dos fatos, da mesma form a como não pode ter certeza
deles.

III

O grande m ovimento de liberação que começou na Renascença e desem ­


bocou, após as vicissitudes da Reform a e das guerras religiosas e revolucionárias,
nas sociedades livres (nas quais os povos de língua inglesa têm o privilégio de viver)
inspirou-se, durante todo o seu desenrolar, em um otimismo epistemológico sem
paralelo: num a visão extrem am ente otim ista do poder do hom em de discernir a
verdade e adquirir conhecim ento.
No centro desta nova visão otim ista da possibilidade do conhecim ento está a
doutrina de que a verdade é evidente. A verdade pode encontrar-se velada, mas
pode revelar-se. Se não se revelar por si só, poderem os revelá-la, em bora isto nem
sempre seja fácil. Mas, quando a verdade nua se apresenta diante de nós, podemos
vê-la, distingui-la da falsidade e saber que é a verdade.
O nascim ento da ciência e da tecnologia m odernas inspirou-se nesta epis­
temologia otim ista, cujas figuras mais proem inentes foram Bacon e Descartes. Esses
filósofos ensinavam que não havia necessidade de apelar p ara a autoridade em as­
suntos relacionados com a busca da verdade porque cada hom em traz consigo as
fontes do conhecim ento: seja na sua capacidade de percepção pelos sentidos, que
pode utilizar ao observar cuidadosam ente a natureza, seja no poder de intuição in ­
telectual — que em pregará para distinguir a verdade da falsidade, recusando-se a
aceitar qualquer idéia que não seja clara e distintam ente percebida pelo intelecto.
O homem pode conhecer: logo pode ser livre. É esta a fórm ula que explica a
ligação entre o otimismo epistemológico e as idéias liberais.
34 C O N JE C T U R A S E R E FU T A Ç Õ E S

Existe tam bém a ligação oposta. A descrença no poder da razão hum ana,
na capacidade do hom em de discernir a verdade, está quase sem pre ligada à des­
confiança no próprio hom em . Assim, o pessimismo epistemológico está histori­
cam ente ligado à doutrina da depravação do hom em ; tende a gerar a necessidade
de tradições fortes e de um a autoridade poderosa que podería salvar o hom em da
sua loucura e m aldade. (Em O Grande Inquisidor (Os Irmãos Karamazov), de Dos-,
toievski, há um impressionante esboço desta teoria do autoritarism o e um a des­
crição do ônus daqueles que estão investidos de autoridade).
O contraste entre pessimismo e otimismo epistemológicos pode ser consi­
derado o mesmo que existe entre o tradicionalism o e o racionalism o epistem oló­
gicos. (Estou utilizando o últim o term o no seu sentido mais am plo, de m aneira a
opô-lo ao irracionalism o e a fazê-lo abarcar não só o intelectualism o cartesiano mas
tam bém o em pirismo). De fato, podemos interpretar o tradicionalism o como a
crença de que, na ausência de um a verdade objetiva e discernível, temos a escolher
entre a autoridade da tradição e o caos; enquanto o racionalism o, obviam ente,
sempre reivindicou o direito da razão e do em pirism o de criticar e rejeitar qualquer
tradição e qualquer autoridade, considerando-as baseadas na irracionalidade mais
com pleta, no preconceito ou em circunstâncias acidentais.

IV
E inquietante observar que mesmo um estudo abstrato como a epistemologia
pura não é, na verdade, tão puro quanto se possa pensar (e como acreditava Aris­
tóteles), que as idéias nela contidas podem ser em grande parte motivadas e incons­
cientem ente inspiradas por ideais políticos ou sonhos utópicos. Este fato deve cons­
tituir um a advertência ao epistemologista. Mas, que pode ele fazer? Como epis-
temologista, tenho apenas um interesse: descobrir a verdade sobre os problem as da
epistemologia e verificar se esta verdade se coaduna ou não com m inhas idéias
políticas. Mas não me estarei deixando influenciar inconscientem ente pelos meus
próprios ideais e crenças políticas?
Acontece que não sou só um em pirista e um racionalista, mas tam bém um
liberal (no sentido britânico do term o); mas, justam ente porque sou um liberal,
sinto que há coisas mais im portantes do que subm eter as várias teorias do liberalis­
mo a um agudo exam e crítico.
Enquanto engajado num exam e crítico deste tipo, descobri a função de cer­
tas teorias epistemológicas (sobretudo das diversas form as de otimismo episte­
mológico) no desenvolvimento das idéias liberais. Vi-me forçado a rejeitá-las por se
terem revelado insustentáveis. Esta experiência pessoal serve para ilustrar a afir­
m ação de que ideais e esperanças não influenciam necessariam ente nossas con­
clusões; que, na busca da realidade, talvez seja m elhor com eçar pela crítica de nos­
sas crenças mais enraizadas. T al procedim ento poderá parecer um plano perverso,
mas não para aqueles que não tem em a verdade e desejam descobri-la.
V
Ao exam inar a epistem ologia otim ista inerente a certas idéias liberais, des­
cobri um certo núm ero de doutrinas que, em bora im plicitam ente aceitas, pelo que
sei não têm sido explicitam ente discutidas ou mesmo percebidas pelos filósofos e
historiadores. Já mencionei a mais im portante dessas doutrinas, que afirm a que a
AS O R IG E N S DO C O N H E C IM E N T O E DA IG N O R Â N C IA 35

verdade é evidente. A teoria da conspiração, um a curiosa ram ificação da anterior,


é a mais estranha do grupo.
Como os senhores estarão lem brados, por "doutrina da verdade evidente”
refiro-m e à visão otim ista de que a verdade é sem pre reconhecível quando colocada
diante de nós: se ela não se revelar por si só, precisará apenas ser desvelada ou des­
coberta. Depois disso, não haverá mais necessidade de argum entos adicionais.
Recebemos olhos para ver a verdade, e a “luz n atu ral” da razão para poder enxer­
gá-la.
Essa doutrina constitui o âm ago dos ensinam entos de Descartes e Bacon.
Descartes baseou sua epistem ologia otim ista na im portante teoria da veracitas Dei:
aquilo que distinguimos claram ente como sendo a verdade será de fato verdadeira:
do contrário. Deus nos estaria enganando. Logo, a autenticidade de Deus forço-
sam ente torna a verdade evidente. >
Em Bacon encontram os um a doutrina sem elhante, que pode ser descrita
como a doutrina da veracitas naturae: a autenticidade da natureza. A natureza é
um livro aberto, e quem o ler com a m ente pura, não o interpretará erradam ente.
Só incorrerá em erro quem tiver a m ente deturpada.
Este últim o com entário dem onstra que a doutrina da verdade m anifesta sus­
cita a necessidade de se explicar a falsidade. O conhecim ento, ou seja. a posse da
verdade, não necessita ser explicado. Mas, como podemos incorrer em erro se a
verdade é evidente? Pode-se responder assim: incorremos em erro pela recusa
pecam inosa de enxergar a verdade evidente; porque nossas m entes abrigam p re­
conceitos inculcados pela educação, pela tradição e outras influências maléficas
que perverteram nossas mentes originalm ente puras e inocentes. A ignorância pode
resultar da ação de forças que conspiram p ara nos m anter ignorantes e para p er­
verter nossas mentes, enchendo-as de falsidade e cegando nossos olhos para que não
possam enxergar a verdade evidente. Tais preconceitos e tais forças são, portanto,
as fontes da ignorância.
A teoria da conspiração é bastante conhecida, na form a m arxista, como a
conspiração da im prensa capitalista que perverte e suprim e a verdade, incutindo
falsas ideologias no espírito dos trabalhadores. Entre elas estão, obviam ente, as
doutrinas religiosas. E surpreendente a pouca originalidade da teoria m arxista. O
sacerdote m alvado e fraudulento em penhado em perpetuar a ignorância do povo
era um a figura típica do século XVII e, temo, constituir um a das inspirações do
liberalismo, a qual rem onta à crença protestante na ação conspiratória da Igreja de
Rom a e tam bém à opinião dos dissidentes que tinham pontos de vista semelhantes
em relação à Igreja estabelecida. (Já tive a ocasião de expor a pré-história desta
crença a p artir de Critias, tio de Platão; vide m eu livro Open Society, cap. 8,
seção ii).
Esta crença curiosa num a conspiração é a conseqüência quase inevitável da
visão otim ista de que a verdade, e, portanto, a virtude, só prevalecerão se lhes for
dada um a oportunidade. “Deixem a verdade lutar contra a falsidade; quem já viu
a verdade levar a pior num a luta aberta e livre?” (Areopagitica. Com pare com o
provérbio francês: La vérité triomphe toujours). Assim, quando a V erdade de M il­
ton levou a pior, concluiu-se necessariam ente que o encontro não havia sido livre:
36 C O N JE C T U R A S E R E FU T A Ç Õ E S

se a verdade evidente não prevalece, deve ter sido suprim ida m aliciosam ente. O b ­
servamos que um a atitude tolerante, baseada na convicção otim ista no triunfo da
verdade, pode ser abalada facilm ente, tornar-se um a teoria da conspiração difícil
de conciliar com a atitude tolerante. (Vide J. W . N. W atkins sobre M ilton, em The
Listener de 22 de janeiro de 1959).
Não afirm o que a teoria da conspiração jam ais se baseou na verdade, mas
sim que é essencialm ente um m ito, da mesm a form a como o é tam bém a teoria da
verdade evidente.
O fato é que a verdade é freqüentem ente difícil de ser encontrada e se perde
novam ente com grande facilidade. Crenças errôneas têm a capacidade supreen-
dente de sobreviver m ilhares de anos, com ou sem a ajuda de um a ação conspi-
ratória, desafiando a própria experiência. Sob este aspecto, a história da ciência, e
sobretudo da m edicina, nos fornece bons exemplos, entre os quais podemos citar,
de fato, a própria teoria da conspiração no seu sentido mais am plo. Refiro-me à
visão errônea de que os acontecim entos malignos resultam sem pre da vontade de
algum a força maléfica determ inada. Diversas form as desta crença sobrevivem ain ­
da hoje.
Portanto, a epistem ologia otimista de Bacon e Descartes não pode ser ver­
dadeira. O mais estranho é que essa falsa epistem ologia constituiu a m aior ins­
piração de um a revolução intelectual e m oral sem paralelo na história. Ela incitou
o hom em a pensar por si mesmo; deu-lhe a esperança de que, através do conhe­
cim ento, podería libertar a si e aos outros da servidão e da m iséria; possibilitou a
ciência m oderna; tornou-se a base da luta contra a censura e a supressão do livre
pensam ento; a base da consciência não conform ista, do individualism o e de um
novo senso de dignidade do homem ; suscitou a exigência da educação universal e o
novo ideal de um a sociedade livre; fez o hom em sentir-se responsável por si mesmo
e pelos outros, pronto a m elhorar não só suas condições individuais de vida como
tam bém as da hum anidade. Este é bem o caso de um a m á idéia que inspirou
muitas boas idéias.

VI
Tal epistem ologia falsa, no entanto, teve tam bém conseqüências desastrosas.
A teoria da verdade evidente — segundo a qual a verdade será vista por todos que
assim desejarem — constitui a base de quase todas as formas de fanatism o. De fato,
só a m aldade mais depravada pode levar à recusa de se enxergar a verdade eviden­
te; só conspiram para suprim ir a verdade aqueles que têm motivo para tem ê-la.
Mas essa teoria não só gera fanáticos — convictos de que todos aqueles que
não enxergam a verdade devem estar possuídos pelo dem ônio — mas pode levar
tam bém .ao autoritarism o, em bora talvez não tão diretam ente quanto a episte­
mologia pessimista. Isso acontece simplesmente porque a verdade, via de regra, não
se m anifesta por si só; aquilo que supostam ente é a verdade evidente precisa não só
de constantes interpretações e afirm ações mas tam bém de reinterpretações e reafir­
mações. E preciso que praticam ente todo dia algum a autoridade se pronuncie
sobre a verdade, estabelecendo sua evidência — autoridade que pode fazê-lo a r­
bitrária e cinicam ente.
AS O R IG E N S DO C O N H E C IM E N T O E DA IG N O R Â N C IA 37

Muitos epistemologistas, portanto, abandonarão decepcionados sua posição


otim ista para construir um a im ponente teoria autoritária baseada num a episte-
mologia pessimista.
VII
Platão tem um papel decisivo na pré-história da doutrina da veracitas Dei
de Descartes (que afirm a que a intuição intelectual não nos ilude porque Deus é
autêntico e tam bém não nos engana; em outras palavras, nosso intelecto é um a
fonte de conhecim ento porque Deus tam bém o é). Essa doutrina tem um a longa
história, que podemos acom panhar pelo menos a partir de Hom ero e Hesiodo.
Consideramos n atural que os sábios e os filósofos façam referência às fontes
do seu conhecim ento. Por isso, talvez nos surpreendam os ao descobrir que esse
hábito se originou nos poetas gregos. De fato, eles se referem às fontes dos seus
conhecim entos, que têm natureza divina — as musas. Conform e observa Gilbert
M urray, em The Rise o f The Greek Epic (terceira edição, de 1924, pág. 96), “os
bardos gregos devem sem pre o que podemos cham ar de sua inspiração e tam bém
seu conhecim ento das coisas às musas. As musas estão presentes e conhecem tudo...
Hesiodo sempre explica que depende delas para adquirir conhecim ento. O utras
fontes de conhecim ento são de fato reconhecidas... porém , no mais das vezes, ele
consulta as m usas... como o faz tam bém H om ero para assuntos como o catálogo do
exército grego” .
Como esta citação dem onstra, os poetas costum avam afirm aria existência de
fontes divinas — garantidoras da veracidade de suas histórias — não só para sua
inspiração como tam bém para seu conhecim ento.
Os filósofos H eráclito e Parm ênides pensam da mesma form a. H eráclito.
aparentem ente, considera-se um profeta “que fala com palavras delirantes, ... pos­
suído pelo deus” — por Zeus, fonte de toda sabedoria (D K 2, B 92, 32; cf. 93, 41,
64, 50). Parm ênides, por sua vez, pode ser considerado o elo de ligação entre
Hom ero ou Hesiodo, de um lado, e Descartes, do outro. Sua estrela-guia e inspi-
radora é a deusa Diké, descrita por H eráclito (DK, B 28) como a guardiã da ver­
dade. O próprio Parm ênides a descreve como guardiã e possuidora das chaves da
verdade, a fonte de todo o seu conhecim ento. Contudo, Parm ênides e Descartes
têm mais em com um do que a doutrina da veracidade divina. A divina guardiã da
verdade, por exemplo, afirm a a Parm ênides que, para distinguir a verdade da fal­
sidade, deve-se recorrer apenas ao intelecto, excluindo totalm ente a visão, audição
e palato. (Cf. Heráclito, B 54, 123; 88 e 126 sugerem transform ações inobserváveis
produzindo opostos observáveis). Até mesmo o princípio da sua teoria física (que.
como Descartes, ele baseia na teoria intelectualista do conhecim ento) é o de Des­
cartes: a impossibilidade do vazio absoluto, a necessária plenitude do universo.
No Ion de Platão encontram os um a distinção precisa entre a inspiração
divina — o delírio divino do poeta — e as fontes divinas ou origens do conhecim en­
to verdadeiro. (O tem a é desenvolvido de modo mais com pleto no Phaedrus, es­
pecialm ente a partir de 259e; em 275b-c, como me fez notar H arold Cherniss,

2 — DK = Diels —Kranz, Fragmente der Vorsokratiker.


38 C O N JE C T U R A S E R E FU T A Ç Õ E S

Platão chega mesmo a insistir na distinção entre questões de origem e de veraci­


dade). Platão adm ite que os poetas sejam inspirados, mas nega qualquer autori­
dade divina sobre o conhecim ento das coisas que alegam possuir. Não obstante, a
doutrina da origem divina do conhecim ento tem um papel decisivo na famosa
teoria da anamnesis de Platão, que em certa m edida outorga a todo hom em o aces­
so às fontes divinas do conhecim ento. (O conhecim ento de que trata essa teoria é o
conhecim ento da natureza ou da essência das coisas, e não de fatos históricos em
particular). De acordo com o Meno de Platão (81b-d) não há nada que nossa alm a
im ortal já não saiba antes de nascermos; como todas as naturezas são semelhantes,
nossa alm a é sem elhante a todas as naturezas: conhece-as a todas e, portanto,
conhece todas as coisas. (Vide tam bém Phaedo 79d; República, 611 d ; Leis , 899d).
Ao nascer, esquecemos; mas podemos recobrar a m em ória, e recuperar o co­
nhecim ento que já tínham os, ainda que só parcialm ente; ao ver de novo a verdade,
nós a reconhecemos. Por isso, todo conhecim ento é re-conhecim ento — a recor­
dação da essência, da verdadeira natureza que já conhecíam os (Phaedo, 72 em
diante; 75e).
Essa teoria implica que nossa alm a perm anece num estado divino de onis-
ciência enquanto participa do m undo divino das idéias, essências ou naturezas, a n ­
te do nascim ento. Este corresponde à queda do estado de graça, do estado natural
ou divino em que tudo conhecemos; tal seria, portanto, a causa e a origem da nossa
ignorância. (Aí podería estar a base da idéia de que a ignorância é um pecado, ou
que está pelo menos relacionada com o pecado; vide Phaedo, 76d).
E óbvio que há um vínculo estreito entre a teoria da anamnesis e a doutrina
da verdade evidente; mesmo no nosso estado de privação e esquecim ento, se virmos
a verdade não poderemos deixar de reconhecê-la como tal. Portanto, o resultado
da anamnesis é a restauração da verdade ao estado do que não é esquecido nem
oculto (alethes ): a verdade como algo manifesto.
E o que Sócrates dem onstra num a bela passagem do Meno, ajudando um
jovem e inculto servo a “recordar” a prova de um caso especial do teorem a de
Pitágoras. Eis aí, sem dúvida, um a epistem ologia otim ista, e a raiz do cartesianis-
mo. Ao que parece, no Meno Platão tinha consciência do caráter altam ente otim is­
ta da sua teoria, pois a descreve como um a doutrina que provoca nos homens o
desejo de aprender, de expandir-se, de descobrir.
No entanto, Platão deve ter-se desapontado, pois na República (e tam bém
no Phaedrus) vamos encontrar o início de um a epistem ologia pessimista. Na fa ­
mosa analogia dos prisioneiros da caverna (514) o filósofo m ostra que o m undo da
nossa experiência é apenas um a som bra, um reflexo do m undo real; ainda que um
dos prisioneiros pudesse escapar da caverna para ver o m undo da realidade, en ­
frentaria dificuldades quase insuperáveis para entendê-lo — sem m encionar as
dificuldades que teria em transm itir sua experiência aos outros prisioneiros, retidos
na obscuridade. Os obstáculos que surgem no processo de com preensão do m undo
real são quase sobre-hum anos; só uns poucos (na m elhor das hipóteses) podem a l­
cançar o estado divino de entendim ento da realidade — o estado divino de co­
nhecim ento genuíno, de episteme.
Essa é um a teoria pessimista, no que se refere a quase toda a hum anidade,
pois ensina que só uns poucos eleitos podem alcançar a verdade. Contudo, com
AS ORIGF.NS DO C O N III C IM K N T O E DA IG N O R Â N C IA 39

relação a esses poucos, é um a visão mais extraordinariam ente otim ista do que a
doutrina da verdade evidente. As conseqüências autoritárias e tradicionalistas dessa
teoria tão pessimista aparecem desenvolvidas plenam ente nas Leis.
Encontram os portanto em Platão a prim eira transição do otimismo para o
pessimismo na teoria do conhecim ento. Cada um a dessas concepções constitui o
fundam ento de um a das duas filosdfias do Estado e da sociedade diam etralm ente
opostas: de um lado, o racionalism o utópico, antitradicionalista, antiautoritário.
revolucionário, do tipo cartesiano; de outro, o tradicionalism o autoritário. O que
podemos tam bém associar com a idéia de que a queda do hom em , no sentido epis-
temológico, aceita um a interpretação pessimista, além da explicação otim ista da
doutrina da anamnesis.
Na interpretação pessimista, a queda condena todos os m ortais — ou quase
todos — à ignorância. Creio que é possível discernir na analogia da caverna (e ta l­
vez tam bém na história da queda da cidade, quando os homens negligenciaram as
Musas e seus ensinam entos divinos — vide República, 546d) um eco de form a mais
antiga, m uito interessante, dessa idéia: a doutrina de Parm ênides, segundo a qual
as opiniões dos m ortais são meras ilusões, o resultado de convenções equivocadas (o
que pode provir da doutrina de Xenófanes de que todo conhecim ento hum ano é
um a espécie de trabalho de adivinhação e suas próprias teorias são, na melhor das

oO
hipóteses, semelhantes à verdade ) .s As convenções equivocadas são lingüísticas:
consistem em designar com nomes o que não existe. A mesm a idéia da queda epis-
temológica do homem talvez possa ser encontrada, como sugeriu Karl R einhardt,
nestas palavras da divindade que m arcam a transição da verdade para a opinião
ilusória.34
“Mas aprenderás tam bém como a opinião ilusória.
Confundida com a realidade, forçava sua presença
/em toda p arte...
Vou falar-te agora sobre este m undo que parece
/integralm ente verdadeiro:
Depois disso, nunca mais te deixarás desviar
/pelas opiniões dos m ortais”.

Portanto, em bora a queda afete todos os homens, a verdade pode ser re ­


velada aos eleitos por um ato de graça — até mesmo a verdade a respeito do m u n ­
do irreal das ilusões, opiniões, noções e decisões convencionais dos homens — o
m undo irreal da aparência, destinado a ser aceito (e aprovado) como real.
A revelação experim entada por Parm ênides e sua convicção de que uns
poucos poderíam alcançar a certeza tanto sobre o m undo imutável da realidade
eterna, como sobre o m undo cam biante e irreal das aparências e ilusões, consti-

3 — 0 fragmento de Xenófanes a que aludimos aqui é DK,B 35, citado no cap. 5, xii. Sobre a idéia da
semelhança da verdade vide o cap. 10 e os apêndices 6 a 8.
4 - Vide Karl Reinhardt, Pamiehides, 2.a edição, pág. 26; vide também págs. 5-11 (texto de Par­
mênides, DK, B 1; 31 -32 — as duas primeiras linhas); a terceira linha é Parmênides, DK, B8:60, cf.
Xenófanes, B 35; a quarta linha é Parmênides, DK, B 8: 61.
40 C O N JE C T U R A S E R E FU T A Ç Õ E S

tuíram duas das principais inspirações da filosofia de Platão: um tem a ao qual ele
sem pre retornava, oscilando entre a esperança, o desespero e a resignação.
VIII
Mas o que nos interessa aqui é a epistem ologia otim ista de Platão — a teoria
da anamnesis do Meno. Na m inha opinião, ela contém não só os germes do intelec-
tualismo de Descartes mas tam bém as sementes da teoria da indução de Aristóteles
e especialm ente de Bacon.
Com efeito, o escravo de Meno é ajudado pelo interrogatório judicioso de
Sócrates, a recordar ou recapturar o conhecim ento esquecido que sua alm a possuía
no estado de onisciência pré-natal. Trata-se do famoso m étodo socrático, m en ­
cionado no Theaetetus como a arte de parteira ou maiêutica (à qual Aristóteles
aludia ao dizer, na Metafísica, 1078bl7-33 — vide tam bém 987bl — que Sócrates
tinha sido o inventor do m étodo indutivo).
Proponho que Aristóteles, e Bacon tam bém , por “indução” queriam desig­
nar não só o ato de inferir leis universais de casos particulares observados, mas o
m étodo que em pregam os para chegar ao ponto èm que podemos intuir ou perceber
a essência ou natureza genuína de um a coisa.5 Como vimos, porém , esse é p re­
cisamente o objetivo da maiêutica socrática: ajudar-nos na anamnesis. Esta últim a
consiste em poder ver a natureza genuína ou essência das coisas, que conhecíamos
antes de nascer, até o m om ento da nossa queda do estado de graça. Assim, os o b ­
jetivos tanto da maiêutica como da indução são os mesmos. Incidentalm ente. Aris­
tóteles ensinava que o resultado de um a indução — a intuição de um a essência —
deveria ser expressado pela definição daquela essência.
Examinemos agora mais detidam ente os dois procedim entos. A maiêutica de
Sócrates consiste essecialmente em propor perguntas para destruir os preconceitos,
as falsas crenças (que se revestem m uitas vezes da form a de idéias tradicionais ou
atraentes), as falsas respostas, im buídas de segurança e ignorância. Sócrates não
pretende saber nada. Sua atitude é descrita deste m odo por Aristóteles: “... p ro ­
punha questões mas não adiantava respostas, confessando que não as conhecia”.
(Sofista EL, 183b 7 cf. Theaetetus, 150-cd, 157c, 161b). Portanto, a maiêutica
socrática não é um a arte que ensine algum a crença, mas busca apenas purgar ou
lim par à alm a das falsas crenças (cf. a alusão à Amphidromia, no Theaetetus 160
e), do conhecimento aparente, dos preconceitos. Faz isso ensinando-nos a pôr em
dúvida nossas próprias convicções.

5 — Por. "indução” (epagoge), Aristóteles queria indicar pelo menos duas coisas diferentes — que às
vezes aparecem associadas entre si. Em primeiro lugar, um método pelo qual “somos levados a intuir o
princípio geral” (Anal. Pr. 67a 22; sobre a anamnesis no Meno\ An. Post., 71a 7); além disso (Tópicos
105a 13, 156a 4, 157a 34; Anal. Posteriora 78a 35; 81 b 5·), um método destinado a aduzir provas (par­
ticulares) positivas, em vez de evidência critica ou contra-exemplos. O primeiro método me parece ser o
mais antigo, aquele que podemos associar melhor a Sócrates e sua maiêutica. O segundo parece ter tido
origem numa tentativa de sistematizar a indução logicamente ou, como diz Aristóteles (Anal. Priora,
68b 15), de construir um silogismo válido “que parta da indução”; este último, para ser válido, precisa
naturalmente ser um silogismo de indução completa ou perfeita (com a enumeração completa dos
casos). A indução ordinária, no sentido do segundo método aqui mencionado, não passa de uma forma
debilitada (e inválida) desse silogismo válido. (Vide meu livro Open Society, nota 33, Cap. 11) .
AS O RIGF.NS DO C O N H E C IM E N T O E DA IG N O R Â N C IA 41

Fundam entalm ente, esse procedim ento é parte da indução de Bacon.


IX
E o seguinte o contorno geral da teoria da indução de Bacon: o filósofo traça
um a distinção, no Novum Organum, entre o m étodo verdadeiro e o m étodo falso.
O nom e que dá ao prim eiro, "interpretatio naturae" , é traduzido geralm ente
por “interpretação da natureza”; sua denom inação do m étodo falso "anticipatio
mentis" costum a ser traduzida como “antecipação da m ente”. F.mbora essas
traduções sejam óbvias, são tam bém enganosas. N a m inha opinião, o que Bacon
quer dizer com "interpretatio naturae ” é o ato de ler (ou m elhor, de soletrar) o
livro da natureza. N um a passagem famosa do II Saggiatore, seção 6, de que fui
lem brado am avelm ente por Mário Bunge, Galileu se refere ao “grande livro que
temos diante dos olhos — isto é, o universo”; vide, a este propósito, o Discurso de
Descartes, seção 1.
Em inglês m oderno o term o interpretation, “interpretação”, tem um sentido
decididam ente subjetivista ou relativista. Q uando nos referimos à interpretação do
“Concerto do Im perador" por Rudolf Serkin querem os dizer que há vários modos
de executar aquela peça um deles, o de Serkin. N aturalm ente, não queremos
insinuar que a interpretação de Serkin não é a m elhor, a mais genuína, a mais
próxim a das intenções de Beethoven. Mas, em bora seja impossível conceber um a
m elhor execução do “Concerto", ao usar o term o “interpretação” deixamos enten­
der que há outras m aneiras de executá-lo, ficando em aberto a questão de saber
quais dessas m aneiras são “verdadeiras”.
Poderiamos falar em “leitura" como sinônim o de “interpretação", não só
porque o sentido das duas palavras é semelhante, mas tam bém porque “ leitura” e
“ler" passaram por modificação análoga à de “interpretação” e “interpretar". C on­
tudo, no caso de “leitura" a palavra pode ser usada nos dois sentidos. Na frase “li a
carta de João", o sentido é o tradicional, não subjetivista; mas em “m inha leitura
dessa passagem é m uito diferente", temos outro sentido, que é posterior, subjetivis­
ta ou relativista.
O que pretendo dizer é que o sentido de “interp retar” (não no sentido de
“traduzir") modificou-se exatam ente do mesmo modo, com a exceção de que o sen­
tido original (“leitura em voz alta para benefício dos que não podem ler por si mes
mos”) praticam ente se perdeu. Hoje, até mesmo a frase “o juiz precisa interpretar
a lei" significa que ele tem um a certa latitude ao interpretá-la; mas no tem po de
Bacon o significado seria o de que o juiz tem o dever de ler a lei como ela está
enunciada, expondo-a e aplicando-a da única form a correta. Interpretatio juris (ou
legis) ou tem esse significado ou quer dizer “a exposição da lei para os leigos"
(Bacon, De Augmentis VI, xlvi; T . Manley, The Interpreter: ... Obscure Wo^ds
and Terms Used in the Lawes of this Realm, 1672). O intérprete legal não tem
qualquer latitude: na m elhor das hipóteses teria a m argem concedida ao tradutor
juram entado que devesse traduzir um docum ento legal.
Por isso a tradução “interpretação da natureza” é errônea e deveria ser subs­
tituída por fórm ula como "a (verdadeira) leitura da natureza", análoga a “a (ver­
dadeira) leitura da lei”. Entendo que Bacon quis dizer “lendo o livro da natureza
como ele está escrito" ou, melhor ainda, “soletrando o livro da natureza" ("spelling
42 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

out the book of Nature”). O ponto essencial é que a frase deve sugerir que se evite
qualquer “interpretação” (no sentido m oderno); em especial, não deve conter q u al­
quer sugestão no sentido de interpretar o que se m anifesta na natureza à luz de
causas não evidentes, ou de hipóteses — isto seria um a anticipatio mentis, no dizer
de Bacon. (A m eu juízo é um erro atribuir a Bacon o ensinam ento de que seu
m étodo indutivo pode levar a hipóteses ou conjecturas: a indução baconiana leva a
conhecim entos seguros, não a conjecturas).
Q uanto ao sentido de anticipatio mentis, bastará citar Locke: “Os homens
se entregam às prim eiras antecipações da sua m ente” ( Conduct Underst., 26). Esta
é, praticam ente, um a tradução das palavras de Bacon; deixa bem claro que “an­
ticipatio” significa “preconceito” ou mesmo “superstição”. Podemos lem brar tam ­
bém a frase " anticipatio deorum" , que significa ter idéias prim itivas ou supersti­
ciosas sobre os deuses. Para elucidar o assunto ainda m elhor, a palavra “prejudice ”
(preconceito) deriva de um termo legal; de acordo com o Oxford English Dictio-
nary, foi Bacon que introduziu na língua inglesa o verbo “to prejudge”, usado no
sentido de “prejulgar adversam ente” — isto é, violando o dever do juiz.

Assim, os dois métodos são: 1) “a leitura do livro aberto da natureza”, que


leva ao conhecim ento ou episteme ; e 2) “o preconceito da m ente que prejulga
erroneam ente a natureza, e possivelmente a julga m al”, levando à doxa, às opiniões
e a um a leitura im própria do livro da natureza. Este últim o m étodo, rejeitado por
Bacon, é na verdade um a “interpretação”, no sentido m oderno da palavra. Corres­
ponde ao método da conjectura ou da hipótese (incidentalm ente, sou um advogado
convicto deste m étodo).
Como podemos preparar-nos para ler o livro da natureza adequadam ente,
do m odo verdadeiro? A resposta de Bacon é: elim inando da nossa m ente todas as
antecipações, conjecturas, preconceitos (Nov. Org., i, 68, 69). Há várias coisas que
podem ser feitas a fim de “lim p ar” nossa m ente. Devemos livrar-nos de todos os
tipos de “ídolos”, as falsas crenças aceitas de m odo geral, que distorcem nossas o b ­
servações (Nov. Org., i, 97). Mas precisamos tam bém — como Sócrates — p ro ­
curar todos os tipos de contra-exem plos para destruir os preconceitos que temos a
respeito do que constitui a verdadeira natureza ou essência do que pretendem os
conhecer. Como Sócrates, precisamos p reparar nossa alm a, pela purificação do in ­
telecto, para fazer face à luz eterna das essências ou naturezas (cf. S. Agostinho,
Civ. Dei, V III, 3). Nossos preconceitos im puros precisam ser exorcizados pela in ­
vocação de contra-exem plos (Nov. Org. ii, 16).
Só depois de lim par deste m odo nossa alm a podemos com eçar o trabalho de
soletrar diligentem ente o livro aberto da natureza, a verdade m anifesta.
T endo em vista tudo o que dissemos, acho que a indução baconiana (e tam ­
bém aristotélica) é, fundam entalm ente, a mesma maiêutica socrática: o preparo da
m ente pela “lim peza” dos preconceitos, a fim de perm itir o reconhecim ento da ver­
dade evidente — a leitura do livro aberto da natureza.
O m étodo cartesiano da dúvida sistem ática é tam bém fundam entalm ente o
mesmo processo de destruição de todos os falsos preconceitos, p ara chegar à base
sólida da verdade evidente.
AS O R IG E N S DO C O N H E C IM E N T O E DA IG N O R Â N C IA 43

Podemos agora ver mais ciaram ente, nesta epistem ologia otim ista, que o es­
tado do conhecim ento é o estado natural (puro) do ser hum ano, a situação do olho
inocente que pode perceber a verdade; o estado da ignorância se origina na injúria
sofrida pelo olho inocente, durante a queda do estado de graça — um a injúria que
pode ser rem ediada em parte pela purificação. Podemos ver tam bém mais cla­
ram ente por que razão essa epistem ologia, não só na form a proposta por Descartes
como na sugerida por Bacon, é essencialm ente um a doutrina religiosa, apresentan­
do a autoridade divina como fonte de todo conhecim ento.
Poder-se-ia dizer que, encorajado pelas divinas “essências” ou “naturezas” de
Platão, e pela oposição helênica tradicional entre a verdade da natureza e o engano
da convenção, na sua epistem ologia, Bacon substituiu “Deus” por “N atureza”. Essa
pode ser a razão por que precisamos purificar-nos antes de nos aproxim arm os da
deusa Natura: um a vez purificada nossa m ente, até mesmo nossos sentidos, que
nem sem pre m erecem confiança (e que Platão considerava totalm ente im puros), se
tornam lím pidos. As fontes do conhecim ento precisam ser m antidas puras porque
qualquer im pureza poderá transform á-las em fontes da ignorância.
X
A despeito do caráter religioso das suas respectivas epistemologias, as críticas
de Bacon e de Descartes ao preconceito e às crenças tradicionais que alim entam os
im pensadam ente são sem dúvida antiautoritárias e antitradicionalistas, pois exigem
que rejeitemos todas as nossas crenças, com exceção daquelas cuja verdade
podemos pessoalm ente perceber. Essas críticas pretendiam seguram ente dirigir-se
contra a autoridade e a tradição; eram parte de um a guerra contra a autoridade
que era m oda naqueles tempos -- contra a autoridade de Aristóteles e a tradição
das escolas. Os homens não têm necessidade dessas autoridades, já que podem p er­
ceber a verdade por si mesmos.
N ão creio porém que Bacon e Descartes tenham tido êxito na tentativa de
liberar da autoridade suas respectivas epistemologias; não tanto porque elas
apelavam afinal para um a autoridade religiosa — a natureza, ou Deus — mas
sobretudo por um a razão ainda mais profunda.
A despeito das suas tendências individualistas, aqueles filósofos não ousaram
fazer apelo a nosso julgam ento crítico; possivelmente porque pensavam que isso
levaria ao subjetivismo e à arbitrariedade. Com efeito, quaisquer que tenham sido
as razões disso, não foram capazes de deixar de pensar em termos de autoridade,
por mais que pretendessem fazê-lo. A única coisa que conseguiram foi substituir
um a autoridade — Aristóteles, ou a Bíblia — por outra. Um apelou p ara a au­
toridade dos sentidos·, o outro para a autoridade do intelecto.
Isso significa que ambos deixaram sem solução o grande problem a: como
podemos adm itir que nosso conhecim ento é hum ano (absolutam ente hum ano)
sem aceitar por im plicação, ao mesmo tem po, que ele é feito de arbitrariedade e de
caprichos individuais?
No entanto, esse problem a tinha sido considerado e resolvido há muitos
anos; prim eiro, aparentem ente, por Xenófanes e depois por Dem ocrito e Sócrates
(o Sócrates da Apologia e não o do Meno). A solução consiste em perceber que
44 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

todos podemos errar, individual ou coletivam ente, e que erram os com freqüência,
mas que a própria idéia do erro e da falibilidade hum ana im plica um a outra idéia
— a da v e r d a d e o b je tiv a , padrão que utilizamos para avaliar as afirm ativas que
fazemos. Por isso a doutrina da falibilidade não deve ser considerada como parte
de epistem ologia pessimista: ela implica que podemos buscar a verdade, a verdade
objetiva, em bora m uitas vezes dela nos afastemos am plam ente; implica tam bém
que, se é verdade que respeitamos a verdade, precisamos procurá-la com persistên­
cia, identificando nossos erros com a aplicação de um a crítica racional incansável,
e de perene autocrítica.
Erasmo de R otterdam tentou reviver a im portante doutrina socrática do
“conhece a ti mesmo e adm ite o pouco que conheces”. Mas a advertência de Só­
crates foi varrida pela crença na verdade evidente e pelo novo surto de autocon­
fiança exem plificado e ensinado, de diferentes modos, por Lutero e Calvino, Bacon
e Descartes.
A esse propósito, é im portante perceber a diferença existente entre a dúvida
cartesiana e a dúvida de Sócrates, Erasmo ou M ontaigne. Sócrates duvida do
conhecim ento e da sabedoria do hom em e perm anece firm e na sua rejeição de
qualquer pretensão ao conhecim ento ou à sabedoria; Descartes duvida de tudo,
mas term ina com um conhecim ento a b s o lu ta m e n te ce rto : descobre que sua dúvida
universal o levaria a duvidar de Deus, o que é absurdo. Tendo provado portanto,
que a dúvida universal é absurda, conclui que p o d e m o s c o n h e c e r com segurança;
que p o d e m o s ser sábio s, desde que tracem os um a distinção, à luz natural da razão,
entre as idéias claras e distintas — que se originam em Deus — e todas as outras
idéias, originadas na nossa im aginação im pura. A dúvida cartesiana é sim plesm en­
te um instrum ento m a iê u tic o que perm ite estabelecer um critério de verdade e, por
conseguinte, um processo para alcançar o conhecim ento e a sabedoria. Para o
Sócrates da A p o lo g ia , contudo, a sabedoria consistia na percepção das nossas li­
mitações; no conhecim ento do pouco que cada um de nós conhece.
Foi essa doutrina da falibilidade hum ana essencial que Nicolau de Cusa e
Erasmo de R otterdam (que se refere a Sócrates) reviveram; foi essa doutrina
"hum anista" (que se contrapõe à doutrina otim ista em que se baseou M ilton, a
doutrina de que a verdade prevalecerá) que Nicolau e Erasmo, M ontaigne, Locke e
Voltaire, seguidos por John Stuart Mill e B ertrand Russell, tom aram como base
para a pregação da tolerância. “Em que consiste a tolerância?” pergunta Voltaire
no D ic io n á rio F ilo só fic o ; e responde: “É um a conseqüência necessária da nossa
hum anidade. Somos todos falíveis e propensos ao erro; devemos perdoar-nos
m utuam ente nossa insensatez. Esse é o prim eiro princípio do direito n atu ral”. Mais
recentem ente, a doutrina da falibilidade foi adotada como base da teoria da liber­
dade política isto é, da liberdade da coerção (Vide F. A. Hayek, T h e C o n sti-
tu tio n o f L ib e r ty , em especial págs. 22 e 29).

XI

Bacon e Descartes erigiram a observação e a razão como novas autoridades,


dentro de cada indivíduo. Ao fazer isso, dividiram o hom em em duas partes —
um a porção superior, sede da autoridade com relação à verdade (as o b serva çõ es,
para Bacon; o in te le c to , para Descartes) e um a parte inferior, que representa o
AS O R IG E N S DO C O N H E C IM E N T O E DA IG N O R Â N C IA 45

nosso ser ordinário — o velho Adão que há em todos nós. Sem dúvida, somos “nós
mesmos” os responsáveis pelos erros, já que a verdade é evidente — devemos culpar
nossa negligência, no sso s preconceitos, n o ssa obstinação: somos a fonte da nossa
própria ignorância.
O hom em foi dividido assim num a parte hum ana, fonte das suas opiniões
falíveis ( d o x a ), dos erros e da ignorância; e um a p arte super-hum ana — os sen­
tidos ou o intelecto — fonte do conhecim ento verdadeiro (e p is te m e ), cuja au to ­
ridade sobre nós é quase divina.
Mas não podemos aceitar essa explicação. Sabemos que a física de D escar­
tes, em bora admirável sob muitos aspectos, estava errada; contudo, ela se baseava
em idéias reputadas claras e distintas — que, portanto, deveríam ser verdadeiras.
Q uanto à autoridade dos sentidos como fontes do conhecim ento, já os antigos —
como Xenófanes e H eráclito, antes mesmo de Parm ênides — sabiam que os sen­
tidos não m erecem confiança. E o que pensavam tam bém Dem ocrito e Platão.
E estranho que esse ensinam ento da antiguidade tenha sido praticam ente
ignorado pelos em piristas m odernos, inclusive os fenomenalistas e os positivistas;
contudo, essa lição não foi levada em conta na m aior parte dos problem as propos­
tos pelos positivistas e fenom enalistas e nas soluções que oferecem. A razão é sua
crença de que não são nossos sentidos que erram , mas “nós mesmos” que erramos
na in te r p r e ta ç ã o do que é “dado” aos sentidos. Estes dizem a verdade, mas nós
podemos errar — por exemplo, quando traduzim os num a lin g u a g e m c o n v e n c io n a l,
a r tific ia l e im p e r fe ita o que nos dizem. Nossa descrição lingüística é defeituosa,
porque é tingida por preconceitos.
Assim, a linguagem hum ana era culpada. Mas depois se descobriu que ela
tam bém nos era “dada", num sentido im portante: que incorporava a sabedoria e a
experiência de m uitas gerações e que não devia ser responsabilizada pelo m au uso
que dela fizéssemos. Desta form a a linguagem se tornou um a autoridade verídica,
que não nos podia enganar. Se caímos em tentação e usamos a linguagem em vão.
somos culpados pelos problem as que isso provoca. A linguagem é. um deus cium en­
to que não tolera que suas palavras sejam tom adas em vão, lançando o pecador na
confusão e na obscuridade.
Pondo a culpa em n ó s e na nossa linguagem (ou no uso im próprio que dela
fazemos) é possível sustentar a autoridade divina dos sentidos (e mesmo da própria
linguagem ). Mas isso só é possível ao custo da am pliação do hiato entre essa au
toridade e nós mesmos: entre as fontes puras das quais podemos obter um co­
nhecim ento autêntico da N a t u r a , deusa genuína, e nossos seres im puros e culpados
— um hiato entre Deus e o hom em . Como indiquei anteriorm ente, a idéia da ver­
dade da natureza que penso podermos discernir em Bacon se origina nos gregos: é
parte da oposição clássica entre a n a tu r e z a e a c o n v e n ç ã o (que, segundo Platão,
devemos a Pindaro), perceptível em Parm ênides e identificada por ele. por alguns
sofistas (Hípias, por exem plo) e em parte pelo próprio Platão como um a oposição
entre a verdade divina e o erro hum ano (ou mesmo a falsidade). Depois de Bacon
- e devido a sua influência - a idéia de que a natureza é divina e verdadeira e
que todo erro ou falsidade se deve ao caráter enganoso das convenções hum anas
continuou a desem penhar um papel im portante, não só na história da filosofia, da
ciência e da política, mas tam bém na história das artes visuais. Isso pode ser visto.
46 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

por exem plo, nas interessantes teorias de Constable sobre a natureza, a veracidade,
o preconceito e a convenção, citadas por E. H. G om brich em A r t a n d Illu sio n . E
desem penhou tam bém um a função na história da literatura, e mesmo na da
música.

XII
Pode-se atribuir a estranha idéia de que é possível decidir sobre a veracidade
de um a afirm ação averiguando-se suas fontes — isto é, sua o r ig e m — a algum erro
de lógica que precisa ser esclarecido? Será que não podemos explicá-la em termos
de crenças religiosas ou em termos psicológicos — fazendo referência, talvez, à
autoridade paterna? Penso que é possível discernir, de fato, um erro de lógica
ligado à analogia que existe entre o s e n tid o de nossas palavras, termos ou conceitos
e a v e r a c id a d e de nossas assertivas ou proposições (veja o quadro).
É fácil perceber que o sentido de nossas palavras tem algum a ligação com
sua história ou origem . Consideradas logicam ente, as palavras são símbolos conven­
cionais; em termos psicológicos, são símbolos cujo significado é estabelecido pelo
uso, pelo costume, ou por associação. Logicam ente, o significado é estabelecido por
um a decisão inicial — algo como um a definição ou convenção prim ária, um a es­
pécie de contrato social originário; psicologicam ente, estabelece-se o significado
quando aprendem os a usar as palavras pela prim eira vez, quando começamos a
form ar os prim eiros hábitos e associações. H á um certo fundam ento na anedota do
estudante que reclam a do artificialism o desnecessário da língua francesa, que
cham a o pão de “p ain ” , enquanto o vernáculo prefere cham á-lo, mais n aturalm en­
te, de “pão”. O estudante queixoso com preende perfeitam ente o convencionalismo
do uso lingüístico, mas expressa o sentim ento de que as convenções originais (para
ele) deveríam ser m antidas. Seu único equívoco consiste em esquecer que pode
haver mais de um a convenção original. Mas, quem já não cometeu im plicitam ente
o mesmo erro? Quase todos já tom am os consciência da surpresa que sentimos ao
verificar que na França até mesmo as crianças de pouca idade falam francês fluen­
tem ente. Como é de esperar, sorrimos da nossa própria ingenuidade; mas não
sorrimos do policial que descobre que o n o m e v e rd a d e iro de “Samuel Jones” é
“John Sm ith” — em bora haja aí, sem dúvida algum a, um últim o vestígio da crença
m ágica de que é possível adquirir poder sobre um a pessoa, um deus ou um espírito
conhecendo seu v e r d a d e ir o nome (de posse dessa inform ação podemos convocá-lo).
H á portanto um sentido fam iliar, e logicam ente defensável, na afirm ativa
de que a acepção “g enuína” ou “apropriada" de um term o representa sua signi­
ficação original: se o com preendem os, isto se dá porque o aprendem os corretam en­
te, de um a autoridade verdadeira — alguém que tinha conhecim ento da lin ­
guagem . Isso m ostra que o problem a do significado das palavras está relacionado
com o problem a da origem ou da fonte autorizada, do uso que fazemos delas.
A situação é diferente com respeito ao problem a da verdade de um a asser­
tiva factual — de um a proposição. Q ualquer um pode com eter um erro de fato —
mesmo em assuntos sobre os quais deveria ser um a autoridade, como a própria
idade, ou a cor de um objeto que acabou de ser visto, clara e distintam ente.
Q uanto às origens, um a afirm ativa pode ter sido falsa no m om ento em que foi feita
e com preendida pela prim eira vez.
AS O R IG E N S DO C O N H E C IM E N T O E DA IG N O R Â N C IA 47

IDÉIAS

ou seja

DESIGNAÇÕES, TERM O S AFIRM ATIVAS, PROPOSIÇÕES


OU CONCEITO S OU TEO RIA S

podem ser form uladas com


PALAVRAS ASSERTIVAS
que podem ser
SIGNIFICATIVAS VERDADEIRAS
e sua
SIGNIFICAÇÃO VERACIDADE
pode ser reduzida, por meio de
DEFINIÇÕES DERIVAÇÕES
a
CONCEITOS INDEFINIDOS PROPOSIÇÕES PRIM ITIVAS

a tentativa de estabelecer (e não de reduzir) por esses meios


SUA SIGNIFICAÇÃO SUA VERACIDADE
leva a um a situação de regresso
infinito
48 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

Se refletirmos assim sobre a diferença entre os modos como a significação


das palavras e a verdade das afirm ativas se relacionam com suas origens, não se­
remos m uito tentados a pensar que o problem a da origem pode ter grande relevân­
cia para a questão do conhecim ento ou da verdade. H á, contudo, um a analogia
profunda entre sig n ific a ç ã o e verd a d e·, e existe um ponto de vista filosófico —
cham ei-o de “essencialismo” — que procura vincular a significação com a verdade
de form a tão próxim a que a tentação de tratá-las da mesm a m aneira se torna
quase irresistível.
Para explicar isso em poucas palavras, podemos exam inar um a vez mais
nosso quadro de idéias, observando a relação entre os dois lados.
De que modo estão esses dois lados ligados entre si? No lado esquerdo, en ­
contrarem os a palavra “Definições”. Mas um a definição é um tipo de a fir m a tiv a ,
ju lg a m e n to ou p ro p o siç ã o - portanto, um a das coisas que aparecem no lado
direito do quadro. (O que, incidentalm ente, não prejudica a sim etria do quadro,
pois as derivações tam bém transcendem o que aparece com a palavra “derivação”:
da mesma form a como um a definição é form ulada por um tipo particular de s e ­
q u ê n c ia d e a ssertivas, em lugar de um a só afirm ativa). O fato de que as definições
que aparecem no lado esquerdo do quadro -- são afirm ativas sugere que de al­
gum a form a elas podem estabelecer um vínculo entre os dois lados.
Esse relacionam ento é parte da doutrina filosófica que cham ei de “essen­
cialismo", segundo a qual (especialmente na versão de Aristóteles) a definição con­
siste na afirm ativa da natureza (ou essência inerente) da coisa definida. Ao mesmo
tempo, a definição indica o sentido de um term o — da palavra que designa aquela
essência. (Por exemplo: Descartes — e Kant tam bém — sustenta que a palavra
"corpo" indica o que é essencialm ente extenso).
Além disso, Aristóteles e todos os outros essencialistas sustentavam que as
definições constituem p rin c íp io s, isto é, proposições primitivas que não podem ser
derivadas de outras proposições (por exemplo: “todos os corpos são extensos”) e
que form am a base, ou parte da base, de qualquer dem onstração, constituindo as­
sim o fundam ento de toda ciência. (Cf. O p e n S o ç ie ty , especialm ente as notas 27 a
33, cap. 11). Note-se que em bora esse entendim ento seja um a parte im portante do
credo essencialista, está livre de referências às “essências”, o que explica o motivo
por que foi aceito por alguns opositores nom inalistas do essencialismo, como Hob-
bes ou, por exemplo, Schlick (vide Erkenntnislehre, deste últim o, 2 .a edição, 1925,
pág. 62).
Penso que temos agora os meios à nossa disposição para explicar a lógica do
ponto de vista de que problem as de origem podem decidir questões de verdade fac­
tual: com efeito, se as origens podem determ inar o s ig n ific a d o v e r d a d e ir o de um
term o ou um a palavra, podem tam bém determ inar a v e rd a d e ira d e fin iç ã o de um a
idéia im portante e, em conseqüência, pelo menos alguns dos “princípios” básicos —
que descrevem a essência ou natureza das coisas, jazendo sob nossas demonstrações
e portanto sob nosso conhecim ento científico. P a recería h a ve r, a ssim , fo n t e s d e
a u to r id a d e p a ra nosso c o n h e c im e n to .

Precisamos levar em conta, no entanto, que o essencialismo se equivoca ao


sugerir que as definições acrescentam ao nosso c o n h e c im e n to f a c t u a l (em bora, na
AS O R IG E N S DO C O N H E C IM E N T O E DA IG N O R Â N C IA 49

qualidade de decisões sobre determ inadas convenções, possam ser influenciadas


pelo conhecim ento que temos dos fatos e tam bém , por outro lado, criem instru­
mentos que podem influenciar a form ação de nossas teorias e portanto a evolução
do nosso conhecim ento dos fatos). Ao perceberm os que as definições jam ais con­
tribuem com qualquer conhecim ento factual sobre a “n atureza”, ou a “natureza
das coisas”, percebem os tam bém a quebra do vínculo lógico entre o problem a da
origem e o da verdade factual — vínculo que alguns.filósofos essencialistas p ro ­
curaram estabelecer.

X III
Deixarei de lado agora todas essas reflexões em grande parte históricas para
debruçar-m e sobre os problem as em si e sua solução.
Esta parte da presente conferência podería ser descrita como um ataque
contra o e m p ir is m o ilustrado pelo seguinte enunciado clássico de H um e: “Se eu
perguntar por que acreditas em um ponto factual determ inado... precisarás dar-
me algum a razão; razão que será algum outro fato, relacionado com o prim eiro.
Contudo, como não é possível continuar assim in in fi n itu m , precisarás p arar em al­
gum fato que se apresente a nossa m em ória, ou a nossos sentidos; ou então p re­
cisarás adm itir que tua crença rxão tem qualquer fundam ento». (E n q u ir y C o n cer-
n in g H u m a n U n d ers ta n d in g , V, I; Selby-Bigge, pág.46).

O problem a da validade do em pirismo pode ser form ulado, em poucas


palavras, da seguinte form a: será a observação a fonte últim a do nosso conheci­
m ento da natureza? Caso contrário, quais as fontes desse conhecimento?
São indagações que perm anecem de pé — o que quer que tenha dito a res­
peito de Bacon e mesmo que tenha conseguido fazer com que os baconianos e
outros em piristas se sintam pouco atraídos pelos aspectos da sua filosofia, que tive
ocasião de com entar.
O problem a da fonte do nosso conhecim ento foi reform ulado recentem ente
do seguinte m odo: se faço um a afirm ativa, é preciso que a justifique; o que sig­
nifica que preciso ser capaz de responder a um a série de perguntas: “Como sei o
que sei? Quais são as fontes da m inha afirm ativa?” O que, para o em pirista, corres­
ponde à pergunta: “Quais são as observações (ou mem órias de observações) que es­
tão por baixo dessa afirm ativa?"
De m inha parte, considero essa série de indagações m uito pouco satisfatória.
Para com eçar, a m aior parte das nossas afirm ativas não se baseiam em o b ­
servações, mas em outros tipos de fonte: “Li num jo rn al” ou “Li na Enciclopédia
B ritânica" são respostas mais plausíveis e mais definidas à pergunta a respeito de
como viemos a saber de algum a coisa do que “Foi o que observei” ou “Sei o que
digo porque fiz um a observação neste sentido no ano passado”.
Responderá o em pirista: “Mas, de que form a o jornal ou a Enciclopédia
Britânica obtiveram aquela inform ação?” Não há dúvida de que, se desenvolvermos
suficientem ente nossa investigação, chegarem os a algum re la to das o b se rva ç õ es de
50 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

te s te m u n h a s (‘sentenças protocolares’ ou ‘afirm ativas básicas’). Indubitavelm ente,


os livros se baseiam em grande parte em outros livros. Um historiador, por exem ­
plo, trab alhará com docum entos. Em últim a análise, porém , os outros livros ou
docum entos consultados se baseiam em observações. Se não fosse assim, precisa­
riam ser descritos .como poesia, invenções ou m entiras, mas nunca como teste­
m unhos. E nesse sentido que nós, em piristas, dizemos que a observação é a fonte
últim a do conhecim ento”.

Esta é a explicação dos em piristas (e a que m e dão alguns amigos positivis­


tas). Procurarei dem onstrar que é tão pouco válida quanto a de Bacon: que a res­
posta à indagação a respeito das fontes do conhecim ento vai contra o em pirista; e.
finalm ente, que toda a questão das fontes últim as — às quais precisaríam os apelar,
como para um tribunal superior ou um a autoridade suprem a — deve ser rejeitada
porque se baseia num equívoco.
Prim eiram ente, pretendo m ostrar que se nos dermos ao trabalho de in ter­
rogar os redatores do jornal e seus correspondentes sobre a fonte consultada, n u n ­
ca chegarem os às observações de testem unhas indicadas pelo em pirista. Desco­
brirem os que cada pequeno passo que derm os nesse sentido se desdobrará -- como
um a bola de neve que se desloca, aum entando de volume e de velocidade.
Tom em os como exemplo o tipo de afirm ativas a respeito das quais as pes­
soas razoáveis aceitarão como suficiente a resposta ‘‘Li num jo rn al”. A dm itam os,
por hipótese, a afirm ativa de que “o presidente decidiu regressar à capital alguns
dias antes do .previsto”. Vamos supor que alguém duvide dessa notícia, ou por
qualquer motivo considere necessário investigar sua veracidade. Que poderá fazer?
Se tiver um amigo n a Presidência, nada m ais fácil do que cham á-lo pelo telefone;
se o amigo confirm ar a notícia, nada mais será necessário.
Em outras palavras, se isso for possível, o investigador procurará exam inar o
em vez de identificar a fonte da notícia. Contudo,
p r ó p n o f a t o q u e f o i a fir m a d o ,
de acordo com a teoria em pirista, a afirm ativa “Li num jornal” é apenas o p ri­
m eiro passo num processo de justificação que nos deverá levar à fonte últim a da in ­
form ação. Qual será, portanto, o próxim o passo?

Há pelo menos dois passos. Um deles consistiría na reflexão de que “Li num
jornal" é tam bém um a afirm ativa, o que nos levaria a indagar: “Q ual a fonte do se
conhecim ento de que leu essa inform ação num jornal, e não a ouviu pelo rádio,
por exem plo?” O outro consistiría em indagar quais as fontes da notícia publicada
pelos jornais. A resposta à prim eira pergunta podería ser “Soube na notícia esta
m anhã, e nunca ouço rádio de m an h ã” — o que provocaria m uitas outras p erg u n ­
tas, que não exam inarem os aqui. A segunda indagação podería provocar de algum
editor a seguinte explicação: “Soubemos da notícia, na redação do jornal, por meio
de um telefonem a recebido da Presidência”. O ra, p ara seguir com o m étodo re ­
com endado pelos em piristas, deveriamos perguntar: “Quem recebeu esse telefo­
nem a?” Mas, ao receber o relato da sua observação, teríamos que perguntar-lhe:
“Qual a fonte do seu conhecim ento de que a inform ação transm itida telefônica-
m ente à redação do jornal foi dada de fato por um funcionário da Presidência?” E
assim por diante.
AS O R IG E N S DO C O N H E C IM E N T O E DA IG N O R Â N C IA 51

H á um a razão simples que explica por que motivo essa tediosa seqüência de
perguntas nunca chega a um a conclusão satisfatória. É a seguinte: cada teste­
m unha fará sempre uso, no seu relato, do conhecim ento de pessoas, lugares, coisas,
usos lingüísticos, convenções sociais etc. Jam ais se lim itará apenas ao que seus olhos
viram e ao que seus ouvidos ouviram , especialm ente se seu relato tiver algum a
utilidade p ara justificar um a afirm ativa de im portância. Isso, como é natural,
levantará sem pre novas questões a respeito das fontes dos elementos do seu co­
nhecim ento que não derivam im ediatam ente da observação direta.
Por isso o program a recom endado, que consistiría em perseguir cada co­
nhecim ento até sua fonte últim a de observação, é logicam ente impossível, pois leva
a um a situação de regresso infinito, constituindo um processo sem fim. (A doutrina
de que a verdade é evidente elim ina esta dificuldade, o que pode explicar por que
ela é tão atraente).
Quero m encionar, incidentalm ente, o fato de que esse argum ento está es­
treitam ente associado a um outro, que diz que toda observação implica algum a in­
terpretação, à luz do nosso conhecim ento teórico,6 ou que o conhecim ento baseado
puram ente na observação, sem influência de qualquer teoria, seria de todo infértil
e fútil — caso fosse possível.
O que há de mais m arcante no program a em pirista de indagação de todas
as fontes além do seu caráter tedioso — é o m odo como viola o senso com um .
Com efeito, se temos algum a dúvida sobre determ inada afirm ativa, o procedim ento
norm al consistirá em testá-la, em lugar de indagar pela sua fonte: se encontrarm os
confirm ação independente, poderemos aceitar a afirm ativa sem nos preocuparm os
mais com o problem a das fontes envolvidas.
N aturalm ente haverá casos em que a situação será diferente. O teste de um a
afirm ativa h istó ric a , por exemplo, nos levará sem pre de volta às fontes em bora,
via de regra, não nos conduza ao relatório de testem unhas diretas.
Como é óbvio, nenhum historiador aceitará acriticam ente a evidência
docum ental. Há problem as de genuinidade, de distorção, bem como problem as
relacionados com a reconstrução de fontes anteriores. Há tam bém , naturalm ente,
problem as como o de saber se o escritor presenciou os acontecim entos que narra.
Este, contudo, não é um problem a característico do historiador, que poderá
preocupar-se com a fidedignidade de um relato mas que dificilm ente se preocupará
em saber se o autor de um docum ento testem unhou ou não os acontecim entos ali
tratados - mesmo que adm ita que esses acontecim entos poderíam ser “observa­
dos” . Uma carta contendo a declaração “O ntem , m udei m inha opinião sobre esse
assunto” pode ser um a prova histórica de grande valor, em bora as m udanças de
opinião não sejam eventos observáveis (e mesmo que possamos conjecturar, à luz de
outras provas, que o escritor não está dizendo a verdade).
As testem unhas diretas só são im portantes no tribunal, onde podem ser
questionadas. Como os advogados sabem m uito bem , as testem unhas erram com

6 Vide meu livro Logic of Scientific Discovery, último parágrafo da seção 24 e o novo apêndice X.
( 2 ).
52 C O N JE C T U R A S E R E FU T A Ç Õ E S

freqüência — um fato que já foi investigado experim entaim ente, com resultados
m arcantes. As vezes, testem unhas ansiosas por descrever acontecim entos a que as­
sistiram exatam ente como eles ocorreram cometem m uitos erros, especialmente se
esses acontecim entos foram rápidos e excitantes. Se um evento qualquer sugere a l­
gum a interpretação atraente, ela contribuirá quase sempre para distorcer a lem ­
brança do que foi presenciado.
O ponto de vista de H um e sobre o conhecim ento histórico era diverso. No
(I, III, iv; Selby-Bigge, pág. 83) ele escreve: "... acreditam os que César
T re a tise
foi assassinado no Senado, nos idos de m arço... porque este é o testem unho u n â ­
nim e dos historiadores, que concordam com a atribuição dessa oportunidade e
local precisos para o acontecim ento. Alguns caracteres e algum as letras são p er­
cebidos pelos nossos sentidos ou retidos na nossa m em ória; caracteres que lem ­
bram os ter sido usados como sinais de determ inadas idéias — idéias que existiam
ou na m ente dos que presenciaram im ediatam ente aquele acontecim ento e dele as
receberam de form a direta, ou dos que as derivaram do testem unho de outros, e
estes de outros ainda... até chegarm os aos que presenciaram o evento” . (Vide ta m ­
bém E n q u ir y , X; Selby-Bigge, pág. 111).
Parece-m e que esse ponto de vista levará ao regresso infinito descrito acima.
O problem a consiste, naturalm ente, em saber se podemos aceitar o “testem unho
unânim e dos historiadores” ou se esse testem unho deve ser rejeitado por apoiar-se
em fontes comuns mas espúrias. O apelo aos “caracteres e... letras percebidos pelos
nossos sentidos ou retido na nossa m em ória" não pode ter im portância para este ou
qualquer outro problem a relevante da historiografia”.
XIV
Mas quais são, nesse caso, as fontes do nosso conhecimento?
A resposta, creio, é a seguinte: há muitos tipos de fontes para o nosso co­
nhecim ento, n e n h u m dos q u a is te m a u to r id a d e .
Podemos dizer que um determ inado jornal constitui um a fonte de conhe­
cimento — ou a Enciclopédia Britânica; que certos artigos publicados no “P h ysica l
R e v ie w ” , a respeito de um problem a de física, têm m aior autoridade, e possuem
mais claram ente o característico d e f o n t e , do que um artigo sobre o mesmo p ro ­
blem a que encontram os num jornal ou na Enciclopédia. Mas seria um equívoco
dizer que a fonte do artigo do “P h y sic a l R e v ie w ” consiste integralm ente (ou mesmo
em parte) de observações. Essa fonte pode ser a descoberta de inconsistência em
outro artigo ou o descobrim ento do fato de que um a hipótese, proposta em outro
trabalho, pôde ser testada de determ inada form a. Todas essas descobertas, que
nada têm a ver com a observação, constituem “fontes” — no sentido de que todas
acrescentam nosso conhecim ento.
Não pretendo negar, naturalm ente, que os experim entos podem acres­
centar o nosso conhecim ento de modo im portante. Mas eles não representam fontes
últim as: precisam sem pre ser testados; como no caso do exemplo da notícia pu
blicada pelos jornais, via de regra, não questionam os os testem unhos de um a ex
periència; contudo, se temos razão de dúvida sobre os resultados proclam ados,
podemos repeti la, ou pedir a alguém que a repita.
AS O R IG E N S DO C O N H E C IM E N T O E DA IG N O R Â N C IA 5S

O erro fundam ental da teoria filosófica sobre as fontes últim as do conhe­


cimento consiste no fato de que ela não distingue com suficiente clareza a origem
da validade do conhecim ento. Admitimos que, no caso da historiografia, as duas
questões podem às vezes coincidir. A validade de um a afirm ativa histórica pode ser
testável exclusivamente (ou principalm ente) à luz da origem de certas fontes. De
modo geral, porém , as duas questões são diferentes: não testamos a validade de
um a assertiva ou de um a inform ação procurando identificar sua fonte ou sua
origem e sim, de form a m uito mais direta, exam inando criticam ente o que foi afir­
m ado - o próprio conteúdo da assertiva.
Assim, a questão colocada pelo em pirista “Como sabes? Qual a fonte da tua
afirm ativa?” não é apropriada; ela não está apenas enunciada de modo inexato ou
relaxado, mas é inteiram ente errônea na sua conceituação, solicitando um a respos­
ta autoritária.

Pode-se dizer que os sistemas epistemológicos tradicionais resultam de res­


postas “sim” ou “n ão ” dadas a indagações a respeito das fontes do nosso conhecí- ’’
m ento. E les n u n c a c o n te s ta m a fo r m u la ç ã o dessas p e r g u n ta s o u d is p u ta m su a
le g itim id a d e ; as perguntas são consideradas perfeitam ente naturais e ninguém lhes
atribui nada de errado.
O que é m uito interessante, porque essas perguntas têm espírito claram ente
autoritário; são comparáveis à questão tradicional da teoria política “Quem deve
governar?”, que solicita tam bém um a resposta autoritária — “os m elhores”,“os
mais sábios” , “o povo” ou “a m aioria” (e sugere, incidentalm ente, algum as alter­
nativas bastante tolas, tais como: “Quais devem ser nossos governantes: os capitalis­
tas ou os trabalhadores?” ; indagação análoga à seguinte: “Qual é a fonte últim a do
nosso conhecim ento: o intelecto ou os sentidos?"). Essa questão política está enun­
ciada erroneam ente e provoca respostas paradoxais (como procurei m ostrar no cap.
7 de Open Society). Deve ser substituída por um a pergunta totalm ente diversa, as­
sim como: “De que m odo podemos organizar nossas instituições políticas de form a
que os governantes m aus e incom petentes não possam causar m uito dano?" Penso
que só alterando a pergunta, deste modo, podemos ter algum a esperança de chegar
a um a teoria razoável a respeito das instituições políticas.
A indagação sobre as fontes do nosso conhecim ento pode ser substituída de
m odo sem elhante. Ela foi sempre proposta com o espírito de quem pergunta:'
“Quais são as melhores fontes do nosso conhecim ento — as mais seguras, que não
nos levarão ao erro — às quais nos devemos dirigir, em caso de dúvida, em últim a
instância?” Proponho aceitarm os que essas fontes ideais não existem — da mesma
form a como não existem governantes ideais —, todas as nossas “fontes” podem , em
certas ocasiões, induzir-nos em erro. Proponho-m e portanto a substituir a pergunta
a respeito das fontes do nosso conhecim ento por um a outra, inteiram ente diversa.
“De que form a podemos esperar a identificação e a elim inação do erro?”
A questão sobre as fontes do nosso conhecim ento, como tantas outras p er­
guntas de índole autoritária, é g e n é tic a : quer saber qual é a origem do conhecim en­
to im aginando que o conhecim ento possa ser legitim ado pelo seu p e d ig re e . A idéia
subjacente é a da nobreza do conhecim ento "racialm ente p uro” , sem m ácula.
54 C O N JE C T U R A S E R E FU T A Ç Õ E S

derivado da m ais alta autoridade — se possível do próprio Deus. Tais são as noções
metafísicas (m uitas vezes inconscientes) que existem por trás da pergunta. O subs­
titutivo que proponho — “De que m odo podemos esperar a detecção do erro?” —
deriva do ponto de vista de que não existem fontes de conhecim ento puras e ab-
solutam ente seguras, de que a origem ou a pureza do conhecim ento não deve ser
confundida com sua validade ou veracidade. É um ponto de vista que rem onta a
Xenófanes: ele sabia que nosso conhecim ento não passa de opinião, conjectura —
d o x a e não e p is te m e — conform e podemos perceber lendo se-us versos (DK. B. 18 e
34):
“Os deuses não nos revelaram desde o princípio
Todas as coisas; mas, com o tem po,
Se buscarm os poderem os aprender, conhecê-las m elhor.
A verdade certa, contudo ninguém jam ais a conheceu
Nem a conhecerá: a dos deuses
O u a de todas as outras coisas.
Mesmo se por acaso alguém pronunciasse o nome
Da verdade últim a, não podería reconhecê-la
Nessa rede tecida com opiniões”.
C ontudo, a questão tradicional a respeito das fontes autoritárias do co­
nhecim ento continua a ser repetida — m uitas vezes pelos próprios positivistas e
outros filósofos que pensam revoltar-se contra a autoridade.
Creio que a resposta apropriada à questão alternativa que propus seria:
“Podemos ter · a esperança de detectar e elim inar o erro c r itic a n d o as teorias e
opiniões alheias e — se treinarm os para isso — as nossas próprias". (Este últim o
ponto é sem dúvida altam ente desejável, mas desnecessário: se não puderm os
criticar nossas próprias teorias e opiniões, haverá quem o faça por nós). Essa res­
posta sintetiza a visão do que sugiro cham arm os de “racionalism o crítico”: um p o n ­
to de vista, um a atitude e um a tradição que devemos aos gregos. E m uito diferente
do “racionalism o” e do “intelectualism o” > da escola de Descartes e tam bém m uito
diferente da epistemologia de K ant. Contudo, é um a posição que, no cam po da
ética e do conhecim ento m oral, foi abordada por K ant com o seu p r in c íp io d a
a u to n o m ia . Este princípio expressa a percepção do filósofo de que não devemos
aceitar o com ando de um a autoridade — por mais sublim e que seja — como baset
da ética. Sempre que defrontam os um com ando dado por um a autoridade devemos
julgar, criticam ente, se obedecê-lo será um ato m oral ou im oral. A autoridade
poderá ter o poder de obrigar-nos a obedecer-lhe; porém , como temos a capaci­
dade de escolher, a responsabilidade últim a pela ação nos pertence. O bedecer ou
não um a ordem é um a decisão crítica que tom am os — como tam bém o é a subm is­
são a qualquer autoridade.
Kant transportou essa idéia, com ousadia, para o terreno da religião:
"... qualquer que seja a form a com que a divindade se revele a nós, ain d a... que se
apresente em pessoa, somos nós m esm os... que precisamos julgar se nos é lícito ou
não aceitá-la como Deus e adorá-la”.7
7 — Immanuel Kant, A Religião Dentro dos Limites da Razão Pura, 2.a edição inglesa, 1794, 4.° cap.,
parte II, § 1, primeira nota. Esta passagem é reproduzida de forma mais completa no cap. 7 do presente
livro.
AS O R IG E N S DO C O N H E C IM E N T O E DA IG N O R Â N C IA 55

T endo em vista essa afirm ativa corajosa, parece estranho que, na sua fi­
losofia da ciência, K ant não tenha adotado a mesm a atitude de racionalism o
crítico, de busca crítica do erro. T enho a certeza de que o motivo foi sua aceitação
da autoridade da cosmologia de Newton — devido ao êxito quase incrível com que
ela superou os testes m ais rigorosos. Se esta interpretação está correta, o racionalis­
m o critico (e tam bém o em pirism o crítico) que preconizo constituirá um simples
retoque final na filosofia crítica de Kant — graças a Einstein, que nos m ostrou
como a teoria de Newton pode perfeitam ente estar errada, a despeito do seu g ran ­
de êxito.
Por isso m inha resposta às perguntas “Como sabes? Qual é a fonte ou a base
da tua afirm ativa? Que observações te levaram a ela?" seria: “N ão sei; m inha afir­
m ativa é sim plesm ente um a opinião. N ão im porta sua fonte — ou fontes; há
m uitas fontes possíveis e posso não ter consciência de um a boa parte delas: de q u al­
quer m odo, as origens e os p e d ig re e s têm pouco a ver com a verdade. Mas, se estás
de fato interessado no problem a que procurei re so lv e r c o m a afirm ativa que fiz,
podes ajudar-m e criticando-a com toda a severidade de que fores capaz. Se puderes
conceber um teste experim ental p ara refutar o que disse, terei satisfação em te
ajudar a refutá-lo, o m elhor que possa” .
E stritam ente, essa resposta8 só será apropriada se a pergunta for dirigida a
um a afirm ativa científica (e não histórica). Se a conjectura for histórica, as fontes
(no sentido de fontes não finais) entrarão, como é n atural, na discussão critica
sobre a validade. Contudo, fundam entalm ente m inha resposta seria a m esm a, co n ­
form e vimos.
XVI
Creio ter chegado o m o m e n to d e fo r m u la r os r e s u lta d o s e p is te m o ló g ic o s des­
ta discussão. Vou fazê-lo sob a form a de dez teses:
1. Não há “fontes últim as” do conhecim ento. T oda fonte, todas as sugestões
são bem -vindas; e todas as fontes e sugestões estão abertas ao exam e crítico. Exceto
no cam po da história, exam inam os ordinariam ente os próprios fatos em vez de
exam inar as fontes da nossa inform ação.
2. A verdadeira questão epistem ológica não tem a ver com fontes: pergun­
tamos se a afirm ativa feita é verdadeira — isto é, se concorda com os fatos. (A obra
de Alfred Tarski dem onstra que podemos operar com a idéia da verdade objetiva,
no sentido da correspondência com os fatos, sem nos envolvermos com antinom ias).
É o que tentam os descobrir, na m edida em que isso é possível, exam inando ou tes­
tando a própria afirm ativa — diretam ente ou pelo exam e ou teste das suas con-
seqüências.
3. Com respeito a esse exam e, todos os tipos de argum entos podem ser
relevantes. Um procedim ento típico consiste em exam inar se nossas teorias são *1

8 — Esta resposta e quase todo o conteúdo da presente seção XV foram retirados, com pequenas al
terações, de um trabalho que publiquei pela primeira vez no The Indian Journal of Philosophy, 1, n.°
1, 1959.
56 C O N JE C T U R A S E R E FU T A Ç Õ E S

coerentes com as observações que fazemos. Mas podemos exam inar tam bém , por
exem plo, se nossas fontes históricas têm consistência m útua ou interna.
4. Do ponto de vista da quantidade e da qualidade, sem dúvida alguma^a
fonte mais im portante do nosso conhecim ento — além do conhecim ento inato — é
a tradição. A m aior parte do que sabemos aprendem os pelo exem plo, por ouvir
contar, lendo livros, aprendendo a criticar, a receber e aceitar a crítica, a respeitar
a verdade.
5. O fato de que a mais im portante fonte do nosso conhecim ento é a tra ­
dição condena o antitradicionalism o por fútil. Mas isso não nos deve levar a um a
atitude tradicionalista: todo o conhecim ento tradicional (e tam bém o conhecim en­
to inato) está aberto ao exam e crítico; se necessário, poderá ser abandonado. C on­
tudo, sem a tradição o conhecim ento seria impossível.
6. O conhecim ento não parte do nada — de um a ta b u la rasa — como tam ­
bém não nasce da observação; seu progresso consiste, fundam entalm ente, na
m odificação do conhecim ento precedente. Em bora algum as vezes possamos p ro ­
gredir graças a um a observação casual (em arqueologia, por exem plo), a signifi­
cação das descobertas que fazemos depende em geral do seu poder de m odificar as
teorias precedentes.
7. As epistemologias otimistas e pessimistas estão igualm ente equivocadas.
A analogia pessimista da caverna, de Platão, é verdadeira: não a estória otim ista
da a n a m n e s is (em bora devamos adm itir que todos os homens, como os outros
anim ais e até. mesmo as plantas, possuem conhecim ento inato). Mas, em bora o
m undo das aparências seja de fato um m undo de sombras projetadas nas paredes
da caverna onde vivemos, todos procuram os constantem ente alcançar a realidade:
e em bora ela esteja profundam ente oculta, como disse Dem ócrito, podemos ex
piorar a profundidade. Não há um critério da verdade à nossa disposição (o que
pode conduzir ao pessimismo), mas temos acesso a critérios que, se tiv e r m o s so rte,
poderão levar-nos a reconhecer o erro e a falsidade. A clareza e a distinção não
constituem critérios da verdade, mas a obscuridade e a confusão p o d e m indicar o
erro. Da mesma form a, a coerência não pode por si mesma estabelecer a verdade,
mas a incoerência e a inconsistência revelam a falsidade. Q uando reconhecemos
nossos erros, eles próprios nos dão um aviso que pode ajudar-nos a encontrar uma
via de escape da obscuridade da caverna.
8. Nem a observação nem a razão são autoridades. A intuição intelectual e
a im aginação são m uito im portantes, mas não oferecem segurança: podem in­
dicar-nos coisas com m uita clareza mas podem tam bém induzir-nos em erro. São
indispensáveis como as fontes principais das nossas teorias; mas a m aioria dessas
teorias são falsas, de qualquer form a. A função mais im portante da observação e
do raciocínio (e mesmo da intuição e da im aginação) é ajudar-nos no exame critico
dessas conjecturas ousadas com as quais podemos explorar o desconhecido.
9. Em bora a clareza seja valiosa por si m esm a, o mesmo não acontece com
a exatidão ou a precisão: não tem sentido procurarm os um nível de precisão m aior
do que o problem a que enfrentam os está a exigir. A precisão da linguagem é um
fantasm a; os problem as relativos ao significado e à definição das palavras na ver­
dade não têm im portância. Por isso nosso quadro de idéias, a despeito da sua si­
AS O R IG E N S DO C O N H E C IM E N T O E DA IG N O R Â N C IA 57

m etria, tem um lado im portante e outro sem im portância. O lado esquerdo, que
contém palavras e significados, não é im portante; o lado direito, sim, pois contém
teorias e problem as relacionados com sua veracidade. As palavras só têm utilidade
como instrum entos para a form ulação de teorias; os problem as verbais devem ser
evitados a todo custo.
10. T oda solução dada a um problem a levanta’novos problem as; principal­
m ente quando o problem a original é profundo e a solução apresentada é corajosa.
Q uanto mais aprendem os sobre o m undo, quanto mais profundo nosso
conhecim ento, mais específico, consciente e articulado será nosso conhecim ento do
que ignoram os — o conhecim ento da nossa ignorância. Essa, de fato, é a principal
fonte da nossa ignorância: o fato de que nosso conhecim ento só pode ser finito, mas
nossa ignorância deve necessariam ente ser infinita.
Podemos ver um relance da vastidão do que ignoram os ao contem plar os
céus; em bora a simples dim ensão do universo não constitua a causa mais séria da
nossa ignorância sobre ele, é um a dessas causas. Em F o u n d a tio n s o f M a th e m a tic s
(pág. 291), num a passagem encantadora, F.P. Ramsey escreveu: “Divirjo de alguns
amigos que atribuem grande im portância ao tam anho físico (do universo). Não me
sinto absolutam ente hum ilde diante da vastidão do espaço. As estrelas podem ser
grandes, mas não pensam nem am am — qualidades que me im pressionam bem
mais do que o tam anho. Não acho vantajoso pesar quase cento e vinte quilos”. Sus­
peito que os amigos de Ramsey concordariam com ele sobre a insignificância do
simples tam anho físico; mas im agino tam bém que se sentiam hum ildes diante da
vastidão do espaço porque viam nela um símbolo da sua ignorância.

Acredito que valeria a pena ten tar aprender algo sobre o m undo, mesmo
que, ao fazê-lo, descobríssemos apenas que não sabemos m uita coisa. Esse estado de
ignorância conhecida podería ajudar-nos, em m uitas das nossas dificuldades. Vale
a pena lem brar que, em bora haja um a vasta diferença entre nós no que respeita
aos fragm entos que conhecemos, somos todos iguais no infinito da nossa ignorân­
cia.
XV II
H á um a últim a questão que desejo levantar.
Se procurarm os bem , encontrarem os m uitas vezes um a idéia verdadeira,
que m erece ser conservada, num a teoria filosófica que precisamos rejeitar porque é
falsa. Será que encontrarem os algum a idéia assim em um a das teorias sobre as fon­
tes últim as do nosso conhecimento?
Creio que sim; e sugiro irmos buscá-la nas duas idéias principais subjacentes
à doutrina de que a fonte de todo o nosso conhecim ento é sobrenatural. Na m inha
opinião, a prim eira dessas idéias é falsa, mas a segunda é verdadeira.
A prim eira idéia, falsa, a de que precisamos ju s t ific a r nosso conhecim ento,
ou nossas teorias, por meio de razões p o sitiv a s — isto é, capazes de dem onstrá-las,
ou pelo menos de m ostrar que são altam ente prováveis; de qualquer form a, por
58 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

razões m elhores do que a de que resistiram à crítica. Esta idéia im plica, penso, que
precisamos apelar para um a fonte últim a ou autoritária de conhecim ento ver­
dadeiro; o que deixa em aberto ainda a natureza dessa autoridade — que pode ser
hum ana (como a observação ou a razão) ou sobre-hum ana (e portanto sobrena­
tural).
A segunda idéia, cuja im portância vital foi acentuada por Russell, é a de
que nenhum a autoridade hum ana pode estabelecer a verdade por decreto; d e­
vemos, portanto, sujeitar-nos à verdade, que está a c im a d a a u to r id a d e h u m a n a .
Tom adas em conjunto, essas duas idéias levam quase que im ediatam ente à
conclusão de que as fontes das quais deriva nosso conhecim ento precisam ser sobre­
hum anas um a conclusão que tende a encorajar a assunção da verdade pelo
hom em e o uso da força contra os que se recusam a adm iti-la.
Alguns que rejeitam (como é justo) essa conclusão não rejeitam tam bém , in­
felizmente, a prim eira idéia a crença na existência de fontes últim as do co­
nhecim ento. Em vez disso, rejeitam a segunda idéia — a tese de que a verdade está
colocada acim a da autoridade hum ana. Dessa form a, põem em perigo a idéia da
objetividade do conhecim ento e dos padrões com uns de crítica ou de racionalidade.
Penso que o que devemos fazer é abandonar a idéia das fontes últim as do
conhecim ento, adm itindo que todo conhecim ento é hum ano — que se mescla com
nossos erros, preconceitos, sonhos e esperanças; o que podemos fazer é buscar a
verdade, mesmo que ela esteja fora do nosso alcance. Podemos adm itir que nossa
busca é m uitas vezes inspirada, mas precisamos ficar em guarda contra a crença
(por mais profunda que seja) de que nossa inspiração tem algum a autoridade —
divina ou não. Se adm itirm os que em toda a província do conhecim ento não há
qualquer autoridade que possa escapar à crítica, por mais que tenham os penetrado
no reino do desconhecido, poderemos reter sem perigo a idéia de que a verdade es­
tá situada além da autoridade hum ana. E devemos retê-la, porque sem essa idéia
não pode haver padrões objetivos de investigação, crítica das nossas conjecturas,
busca do desconhecido ou procura do conhecim ento.
Conjecturas
ΚΛ» .
f-λ ->
'η»
“Não podería haver m elhor destino para qualquer ... teoria do que o de in­
dicar o cam inho para um a teoria mais abrangente na qual ela continue a viver,

ÍL..
como um caso lim ite.”

Albert Einstein
j
:s>
1. Ciência: Conjecturas e Refutações*
"O Senhor T urnbull tinha previsto conseqüências nefastas, ... e agora fazia
tudo o que podia efetivar suas próprias profecias.”
Anthony Trollope

I
Q uando recebí a lista dos participantes deste curso, e percebí que tinha sido
convidado a me dirigir a colegas filósofos, im aginei, depois de algum as hesitações e
consultas, que os senhores preferiríam que falasse sobre os problem as que mais me
interessam e os desenvolvimentos com os quais estou mais fam iliarizado. Decidi,
portanto, fazer algo que jam ais havia feito antes: um relato do m eu trabalho no
cam po da filosofia da ciência desde o outono de 1919, quando comecei a lutar com
o seguinte problem a: "Quando pode uma teoria ser classificada como científica ?",
ou “Existe um critério para classificar uma teoria como científica?”
N aquela época, não estava preocupado com as questões "Q uando é ver­
dadeira um a teoria?” ou ‘‘Q uando é aceitável um a teoria?” Meu problem a era
outro. Desejava traçar uma distinção entre a ciência e a pseudociência, pois sabia
m uito bem que a ciência freqüentem ente comete erros, ao passo que a pseudociên-
cia pode encontrar acidentalm ente a verdade.
Conhecia, evidentem ente, ά resposta mais com um dada ao problem a: a
ciência se distingue da pseudociência — ou “m etafísica” — pelo uso do método em ­
pírico, essencialmente indutivo, que decorre da observação ou da experim entação.
Mas essa resposta não me satisfazia. Pelo contrário, form ulei m uitas vezes m eu
problem a como a procura de um a distinção entre o m étodo genuinam ente em ­
pírico e o não em pírico ou mesmo pseudo-empírico — isto é, o m étodo que, em ­
bora se utilize da observação e da experim entação, não atinge padrão científico.
Um exemplo deste m étodo seria a astrologia, que tem um grande acervo de evidên­
cia em pírica baseada na observação: horóscopos e biografias.

• C o n fe rê n c ia fe ita e m P e te rh o u s e , C a m b rid g e , n o v e rã o d e J9 5 3 , c o m o p a r te d e c u rso so b re a e v o lu ç ão


e as te n d ê n c ia s d a filo so fia in g le sa c o n te m p o râ n e a , o rg a n iz a d o p e lo Bntish Council , p u b lic a d o o rig in a l-
m e n te so b o títu lo " Philosophy of Science: a Personal Report", in "Bntish Philosophy in Mid-Century ” ed it. C . A. M ace,
1957.
64 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

Mas, como não foi o exemplo citado que me levou ao m eu problem a, creio
que seria oportuno descrever brevem ente o clima em que ele surgiu e os exemplos
que o estim ularam . Após o colapso do Im pério A ustríaco, a Á ustria havia passado
por um a revolução: a atm osfera estava carregada de slo g a n s e idéias revolu­
cionárias; circulavam teorias novas e freqüentem ente extravagantes D entre as que
me interessavam , a teoria da relatividade de Einstein era sem dúvida a mais im por­
tante; outras três eram a teoria da história de M arx, a psicanálise de Freud e a
«psicologia individual» de Alfred Adler.
Popularm ente, falavam-se m uitas coisas absurdas sobre essas teorias, so­
bretudo a da relatividade (como acontece ainda hoje), mas tive sorte com as pessoas
que m e introduziram a elas. Todos nós — o pequeno grupo de estudantes ao qual
pertencia — vibramos ao tom ar conhecim ento dos resultados da observação de um
eclipse em preendida por Eddington, em 1919, a prim eira confirm ação im portante
da teoria da gravitação de Einstein. Foi um a experiência m uito im portante para
nós, com influência duradoura sobre o m eu desenvolvimento intelectual.
N aquela época, as três outras teorias que m encionei eram tam bém am ­
plam ente discutidas no meio estudantil. Eu mesmo tive um contato pessoal com Al­
fred Adler e cheguei a cooperar com ele em seu trabalho social entre as crianças e
os jovens dos bairros proletários de Viena, onde havia estabelecido clínicas de
orientação social.
D urante o verão de 1919, comecei a me sentir cada vez mais insatisfeito com
essas três teorias — a teoria m arxista da história, a psicanálise e a psicologia in ­
dividual; passei a ter dúvidas sobre seu s ta tu s científico. Meu problem a assumiu,
prim eiram ente, um a form a simples: “O que estará errado com o m arxism o, a
psicanálise e a psicologia individual? Por que serão tão diferentes da teoria de New-
ton e especialm ente da teoria da relatividade?”

Para tornar claro esse contraste, devo explicar que, naquela época, poucos
afirm ariam acreditar na v e r d a d e contida na teoria da gravitação de Einstein, O
que me incom odava, portanto, não era o fato de duvidar d a v e r a c id a d e daquelas
três teorias; tam bém não era o fato de que considerava a física m atem ática mais
e x a ta do que as teorias de natureza psicológica ou sociológica. O que me preo­
cupava. portanto, não era, pelo menos naquele estágio, o problem a da veracidade,
da exatidão ou da m ensurabilidade. Sentia que as três teorias, em bora se apresen­
tassem como ramos da ciência, tinham de fato mais em com um com os mitos prim i­
tivos do que com a própria ciência, que se aproxim avam mais da astrologia do que
da astronom ia.
Percebí que meus amigos adm iradores de M arx, Freud e Adler im pres­
sionavam-se com um a série de pontos comuns às três teorias, e sobretudo com sua
aparente c a p a c id a d e d e e x p lic a ç ã o . Essas teorias pareciam poder explicar p ra ti­
cam ente tudo em seus respectivos cam pos. O estudo de qualquer um a delas p a ­
recia ter o efeito de um a conversão ou revelação intelectual, abrindo os olhos para
um a nova verdade, escondida dos ainda não iniciados. Uma vez abertos os olhos,
podia-se ver exemplos confirm adores em toda parte: o m undo estava repleto de
v e rifica ç õ es da teoria. Q ualquer coisa que acontecesse vinha confirm ar isso. A ver­
dade com ida nessas teorias, portanto, parecia evidente: os descrentes eram n iti­
dam ente aqueles que não queriam vê-la: recusavam-se a isso para não entrar em
C IÊ N C IA : C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S 65

conflito com seus interesses de classe ou por causa de repressões ainda não anali­
sadas, que precisavam urgentem ente de tratam ento.
O mais característico da situação parecia ser o fluxo incessante de confir­
mações, de observações que «verificavam» as teorias em questão, ponto que era en ­
fatizado constantem ente: um m arxista não abria um jornal sem encontrar em cada
página evidência a confirm ar sua interpretação da história. Essa evidência era
detectada não só nas notícias, mas tam bém na form a como eram apresentadas pelo
jornal — que revelava seu preconceito de classe — e sobretudo, é claro, naquilo
que o jornal n ã o m encionava. Os analistas freudianos afirm avam que suas teorias
eram constantem ente verificadas por “observações clínicas” . Q uanto a Adler. fiquei
m uito impressionado por um a experiência pessoal. Certa vez, em 1919, informei-o
de um caso que não me parecia ser particularm ente adleriano, mas que ele não
teve qualquer dificuldade em analisar nos termos da sua teoria do sentim ento de
inferioridade, em bora nem mesmo tivesse visto a criança em questão. Ligeiram ente
chocado, perguntei como podia ter tan ta certeza. ‘‘Porque já tive mil experiências
desse tipo” — respondeu; ao que não pude deixar de retrucar: “Com este novo
caso, o núm ero passará então a m il e u m ...”
tí C

O que queria dizer era que suas observações anteriores podiam não m erecer
m uito mais certeza do que a últim a; que cada observação havia sido exam inada à
luz da «experiência anterior», somando-se ao mesmo tempo às outras como confir­
m ação adicional. Mas, perguntei a m im mesmo, que é que confirm ava cada nova
observação? Simplesmente o fato de que cada caso podia ser exam inado à luz da
teoria. Refleti, contudo, que isso significava m uito pouco, pois todo e qualquer
caso concebível pode ser exam inado à luz da teoria de Freud e de Adler. Posso ilus­
trar esse ponto com dois exemplos m uito diferentes de com portam ento hum ano: o
do hom em que joga um a criança na água com a intenção de afogá-la e o de quem
sacrifica sua vida na tentativa de salvar a criança. Ambos os casos po.dèm ser ex- r
plicados com igual facilidade, tanto em termos freudianos como adlerianos. Segun­
do Freud, o prim eiro hom em sofria de repressão (digamos, algum com ponente do
seu complexo de Edipo) enquanto o segundo alcançara a sublim ação. Segundo
Adler, o prim eiro sofria de sentim ento de inferioridade (gerando, provavelm ente, a
necessidade de provar a si mesmo ser capaz de com eter um crime), e o mesmo
havia acontecido com o segundo (cuja necessidade era provar a si mesmo ser capaz
de salvar a criança). Não conseguia im aginar qualquer tipo de com portam ento
hum ano que am bas as teorias fossem incapazes de explicar. Era precisam ente esse
fato — elas sempre serviam e eram sempre confirm adas — que constituía o mais
forte argum ento em seu favor. Comecei a perceber aos poucos que essa força
aparente era, na verdade, um a fraqueza. Com a teoria de Einstein, a situação era
extraordinariam ente diferente. Tom em os um exem plo típico — a predição de
Einstein, confirm ada havia pouco por Eddington. A teoria gravitacional de Eins­
tein havia levado à conclusão de que a luz devia ser atraída pelos corpos pesados
(como o Sol), exatam ente como ocorria com os corpos m ateriais. Calculou-se p o r­
tanto que a luz proveniente de um a estrela distante, cuja posição aparente estivesse
próxim a ao Sol, alcançaria a T erra de um a direção tal que a estrela parecería estar
ligeiram ente deslocada para longe do Sol. Em outras palavras, as estrelas próximas
ao Sol pareceríam ter-se afastado um pouco dele e entre si. Isso não pode ser no r­
m alm ente observado, pois as estrelas se tornam invisíveis durante o dia, ofuscadas
pelo brilho irresistível do Sol; durante um eclipse, porém , é possível fotografá-las.
Se a mesma constelação é fotografada durante um eclipse, de dia e à noite, pode-se
m edir as distâncias em am bas as fotografias e verificar o efeito previsto.
66 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

O m ais im pressionante neste caso é o risco envolvido num a predição desse


tipo. Se a observação m ostrar que o efeito previsto definitivam ente não ocorreu, a
teoria é sim plesm ente refutada: ela é in c o m p a tív e l c o m c e rto s r e su lta d o s p a ssíveis
d a o b se rva ç ã o ; de fato, resultados que todos esperariam antes de E instein.1 Essa
situação é bastante diferente da que descreví anteriorm ente, pois tornou-se evidente
que as teorias em questão eram compatíveis com o com portam ento hum ano ex­
trem am ente divergente, de modo que era praticam ente impossível descrever um
tipo de com portam ento que não servisse para verificá-las.
D urante o inverno de 1919-1920, essas considerações me levaram a con­
clusões que posso agora reform ular da seguinte m aneira.
(1) E fácil obter confirmações ou verificações para quase toda teoria — des­
de que as procurem os.
(2) As confirmações só devem ser consideradas se resultarem de predições
arriscadas; isto é, se, não esclarecidos pela teoria em questão, esperarm os um acon­
tecim ento incom patível com a teoria e que a teria refutado.
(3) T oda teoria científica “boa” é um a proibição: ela proíbe certas coisas de
acontecer. Q uanto mais um a teoria proíbe, m elhor ela é.
(4) A teoria que não for refutada por qqalquer acontecim ento concebível
não é científica. A irrefutabilidade não é um a virtude, como freqüentem ente se
pensa, mas um vício.
(5) T odo te ste genuíno de um a teoria é um a tentativa de refutá-la. A pos­
sibilidade de testar um a teoria implica igual possibilidade de dem onstrar que é fal­
sa. H á, porém , diferentes graus na capacidade de se testar um a teoria: algum as são
mais “testáveis” , mais expostas à refutação do que outras; correm , por assim dizer,
maiores riscos.
(6) A evidência confirm adora não deve ser considerada se n ã o re su lta r d e
o teste pode-se apresentar como um a tentativa séria
u m te ste g e n u ín o da te o ria ;
porém m alograda de refutar a teoria. (Refiro-me a casos como o da “evidência
corroborativa”).
(7) Algumas teorias genuinam ente “testáveis”, quando se revelam falsas,
continuam a ser sustentadas por adm iradores, que introduzem , por exem plo, al­
gum a suposição auxiliar a d h o c, ou reinterpretam a teoria a d h o c de tal m aneira
que ela escapa à refutação. T al procedim ento é sempre possível, mas salva a teoria
da refutação apenas ao preço de destruir (ou pelo menos aviltar) seu padrão cien­
tífico. (Mais tarde passei a descrever essa operação de salvam ento como um a “d is ­
to rç ã o c o n v e n c io n a lis ta '' ou um “e s tr a ta g e m a c o n v e n c io n a lis ta . ”)

Pode-se dizer, resum idam ente, que o critério que define o s ta tu s científico
de um a teoria é sua capacidade de ser refutada ou testada. 1

1 Há aqui uma ligeira simplificação, pois cerca de metade do efeito Einstein pode ser deduzido a
partir da teoria clássica, desde qüe se assuma uma teoria balística da luz.
C IÊ N C IA : C O N JE C T U R A S E R E FU T A Ç Õ E S 67

II
Posso exem plificar o que acabo de afirm ar com a ajuda das diversas teorias
já m encionadas. A teoria da gravitação de Einstein satisfazia nitidam ente o critério
da “refutabilidade”. Mesmo se, naquela época, nossos instrum entos não nos p er­
m itiam ter plena certeza dos resultados dos testes, existia claram ente a possibili­
dade de refutar a teoria.
A astrologia não passou no teste. Os astrólogos estavam m uito im pres­
sionados e iludidos com aquilo que acreditavam ser evidência confirm adora — ta n ­
to assim que pouco se preocupavam com qualquer evidência desfavorável. Além
disso, tornando suas profecias e interpretações suficientem ente vagas, eram capazes
de explicar qualquer coisa que possivelmente refutasse sua teoria se ela e as p ro ­
fecias fossem mais precisas. Para escapar à falsificação, destruíram a “testabili-
dade” de sua teoria. E um truque típico do adivinhador fazer predições tão vagas
que dificilm ente falham : elas se tornam irrefutáveis.
Apesar dos esforços sérios de alguns de seus fundadores e seguidores, a teoria
m arxista da história tem ultim am ente adotado essa mesm a prática dos adivi-
nhadores. Em algum as de suas form ulações anteriores (como, por exemplo, na
análise de M arx sobre o caráter da “revolução social vindoura”), as predições eram
“testáveis” e foram refu tad as.23Mas em vez de aceitar as refutações, os seguidores de
M arx reinterpretaram a teoria e a evidência para fazê-las concordar entre si. Sal­
varam assim a teoria da refutação, mas ao preço de adotar um artifício que a to r­
nou de todo irrefutável. Provocaram , assim, um a “distorção convencionalista” des-
truindo-lhe as anunciadas pretensões a um padrão científico.
As duas teorias psicanalíticas pertencem a outra categoria, por serem sim ­
plesm ente não "testáveis" e irrefutáveis. N ão se podia conceber um tipo de com por­
tam ento hum ano capaz de contradizê-las. Isso não significa que Freud e Adler es­
tivessem de todo errados. Pessoalmente, não duvido da im portância de m uito do
que afirm am e acredito que algum dia essas afirm ações terão um papel im portante
num a ciência psicológica “testável” . C ontudo, as “observações clínicas”, da mesma
m aneira que as confirmações diárias encontradas pelos astrólogos, não podem mais
ser consideradas confirmações da teoria, como. acreditam ingenuam ente os analis­
tas. 3 Q uanto à epopéià freudiana do Ego, Superego e Id, não se pode reivindicar
para ela um padrão científico mais rigoroso do que o das estórias de H om ero sobre
o Olim po. Essas teorias descrevem fatos, mas à m aneira de mitos: sugerem fatos
psicológicos interessantes, mas não de m aneira “testável”.

2 - Vide, por exemplo, meu livro Open Society and Its Enemies, cap. 15, seção iii, e as notas 13 e 14.
3 — As “observações clínicas”, como qualquer tipo de observação, são interpretações empreendidas à
luz das teorias (vide, a seguir, as seções ive seguintes); por esta razão, podem parecer sustentar as teorias
à luz das quais foram interpretadas. Mas o verdadeiro apoio a uma teoria só pode ser obtido através de
observações empreendidas como testes (“tentativas de reffitação”), para os quais os critérios de refutação
devem ser estabelecidos anteriormente: deve-se definir que situações observáveis refutariam a teoria se
fossem realrrrcnte observadas. Mas, que resultados clínicos poderíam refutar satisfatoriamente não só um
diagnóstico analítico em particular mas a própria psicanálise? Os analistas têm discutido critérios e con
cordado com eles? Não existirá, ao contrário, toda uma série de conceitos analíticos como, por exemplo.,
o conceito de “ambivalência” (não estou sugerindo que esse conceito não exista) que tomariam difícil, se
não impossível, chegar a um acordo sobre tais critérios? Além disso, que progresso tem sido
68 C O N JE C T U R A S E R E FU T A Ç Õ E S

Ao mesmo tem po, percebí que alguns desses mitos podem desenvolver-se e
tornar-se “testáveis” . C om preendí que, historicam ente, todas — ou quase todas —
as teorias científicas se originaram em mitos; que um m ito pode conter im portantes
antecipações de teorias científicas. Como exemplos, citaria a teoria da evolução por
erros e acertos, de Empédocles, e o m ito de Parm enides sobre o universo im utável,
onde nada jam ais acontece. Se adicionarm os mais um a dim ensão ao universo vi­
sualizado por Parm enides, terem os o universo de Einstein (no qual, tam bém , nada
jam ais acontece, pois, em termos de quatro dimensões, tudo está determ inado e
estabelecido desde o início). Acreditava, portanto, que, se um a teoria passa a ser
considerada não científica, ou «metafísica», nem por isso será definida como «ab­
surda» ou “sem sentido”. *4 Mas não se poderá afirm ar que esteja sustentada por
evidência em pírica (na acepção científica), em bora possa facilm ente ser um “resul­
tado da observação” em sentido lato.
(Havia um grande núm ero de outras teorias com este mesmo caráter pré ou
pseudocientífico, algum as das quais, infelizmente, tão influentes quanto a teoria
m arxista da história. Pode-se citar, como exem plo, a interpretação racista da his­
tória — outra daquelas impressionantes teorias que tudo explicam , e que atuam
como revelações sobre as mentes fracas.)
Assim, o problem a que eu procurava resolver propondo um critério de
«refutabilidade» não se relacionava com o sentido ou significado, a veracidade ou a
aceitabilidade. Tratava-se de traçar um a linha (da m elhor m aneira possível) entre
as afirm ações, ou sistemas de afirm ações, das ciências em píricas e todas as outras
afirm ações, de caráter religioso, metafísico ou sim plesm ente pseudocientífico. Anos
mais tarde, possivelmente em 1928 ou 1929, cham ei este m eu prim eiro problem a
de “p r o b le m a d a d e m a r c a ç ã o ”. O critério da “refutabilidade” é a solução para o
problem a da dem arcação, pois afirm a que, para serem classificadas como cien­
tíficas, as assertivas ou sistemas de assertivas devem ser capazes de entrar em con­
flito com observações possíveis ou concebíveis.

feito na tentativa de avaliar até que ponto as expectativas e teorias (conscientes ou inconscientes) aceitas
pelo analista podem influenciar as “respostas clínicas” do paciente? (Sem mencionar as tentativas cons­
cientes de influenciar o paciente, propondo interpretações, etc.). Anos atrás, criei a expressão “efeito de
Edipo” para denominar a influência exercida por uma teoria, expectativa ou predição sobre o acon­
tecimento previsto ou descrito: vale lembrar que a seqüência de acontecimentos casuais que levaram ao
parricídio de Édipo começou com a predição desse evento por um oráculo. Esse é um tema caracterís­
tico, que se repete com freqüência em mitos desse tipo, mas que, talvez não por acidente, não tem
atraído o interesse dos analistas. (O problema dos sonhos confirmadores sugeridos pelo analista é dis­
cutido por Freud, por exemplo, em Gesammelte Schriften, III, 1925, onde o autor afirma, na página
314: “Do ponto de vista da teoria analítica, nenhuma objeção pode ser feita à afirmativa de que a
maioria dos sonhos usados durante uma análise... devem sua origem à sugestão (do analista)”. Freud
afirma ainda, surpreendentemente, que “não há nada neste fato que possa prejudicar a confiabilidade
dos resultados obtidos”.
4 O caso da astrologia, uma típica pseudociência dos nossos dias, pode ilustrar esse ponto. Os aris-
totélicos e outros racionalistas, até a época de Newton, a criticavam por um motivo errado — a asser­
ção, hoje aceita, de que os planetas influenciam os acontecimentos terrestres (“sublunares”). De fato, a
teoria da gravitação de Newton, e especialmente a teoria lunar das marés, são, historicamente, deri­
vações do conhecimento astrológico. Newton, ao que parece, relutava em aceitar uma teoria da mesma
família da que afirmava, por exemplo, que as epidemias de gripe eram causadas por uma “influência"
astral. Galileu, por sua vez, chegou a rejeitar a teoria lunar das marés, sem dúvida pela mesma razão.
Além disso, o receio que tinha de Kepler pode ser facilmente explicado pelo seu receio em relação à as­
trologia.
C IÊ N C IA : C O N JE C T U R A S F. R E F U T A Ç Õ E S 69

III
Hoje sei, é claro, que esse c rité rio d e d e m a r c a ç ã o — ô critério de “testa-
bilidade” ou “refutabilidade” — está longe de ser óbvio; ainda hoje seu significado
é raram ente com preendido. N aquela época, em 1920, ele me pareceu quase trivial,
em bora resolvesse um problem a intelectual que me havia preocupado profunda­
m ente, e tivesse conseqüências práticas óbvias (políticas, por exem plo). Mas não
havia percebido ainda todas as suas implicações ou sua im portância filosófica.
Quando o expliquei a um colega, estudante do D epartam ento de M atem ática (hoje
um conhecido m atem ático na Inglaterra), ele sugeriu que o publicasse. Isso me
pareceu absurdo, pois estava convencido de que o problem a, tendo em vista a sua
im portância para m im , já havia decerto preocupado numerosos cientistas e filó­
sofos, que certam ente já teriam chegado à m inha solução, um tanto óbvia. O
trabalho de W ittgenstein e o m odo como foi recebido m ostraram que não era bem
assim; por isso publiquei m inhas idéias treze anos depois, sob a form a de um a
critica ao c r ité rio d e s ig n ific a ç ã o de W ittgenstein.

W ittgenstein, como todos sabem , procurou dem onstrar, em seu T r a c ta tu s


(vide, por exem plo, as proposições 6.53; 6.54 e 5), que as proposições filosóficas ou
metafísicas, como são cham adas, são na verdade falsas proposições, ou pseudo-
proposições, sem sentido ou significado. T oda proposição genuína (ou significativa)
deve ser função da verdade de proposição elem entar ou “atom ística”, que descreva
“fatos atôm icos”, isto é, fatos que em princípio podem ser verificados pela obser­
vação. Em outras palavras, as proposições significativas são totalm ente redutíveis a
proposições elem entares ou atomisticas, afirm ações simples descrevendo qm pos­
sível estado de coisas que podem em princípio ser estabelecidas ou rejeitadas
pela observação. Se cham arm os um a afirm ação de “afirm ativa resultante da obser­
vação”, ou porque implica de fato um a observação ou porque m enciona algo que
p o d e ser observado, teremos de dizer (de acordo com o T r a c ta tu s , 5 e 4.52). que
toda proposição genuína deve ser um a função da verdade de afirm ativa resultante
da observação^ e dela dedutível. Q ualquer outra proposição aparente será um a
pseudoproposição sem significado; não passará de um conjunto de palavras desar­
ticuladas, sem sentido algum

Essa idéia foi utilizada por W ittgenstein para um a caracterização da ciência


em oposição à filosofia. Podemos ler (por exem plo, em 4.11, onde a ciência natural
assume um a posição oposta à filosofia): “A totalidade das proposições verdadeiras
corresponde a toda a ciência natural (ou a todas as ciências naturais)”. Isso sig­
nifica que as proposições pertencentes ao cam po da ciência são dedutíveis das afir­
mações v e rd a d e ira s derivadas da observação, e podem ser v e rific a d a s por elas. Se
pudéssemos conhecer todas as afirm ações verdadeiras derivadas da observação,
saberiamos tudo o que pode ser afirm ado pela ciência natural.

Isso nos leva a um critério de dem arcação grosseiro, para a verificação de


teorias. Para torná-lo um pouco menos grosseiro, podemos acrescê-lo da seguinte
afirm ação: “As asserções que podem recair no cam po da ciência são aquelas ve­
rificáveis por afirmações derivadas da observação; elas coincidem , ainda, com a
categoria que com preende to d a s as assertivas genuínas ou significativas". Segundo
esta visão, portanto, h á u m a c o in c id ê n c ia d a v e r ific a b ilid a d e , d o s ig n ific a d o e d o
c a r á te r c ie n tífic o .
70 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

Pessoalmente, nunca me interessei pelo problem a do significado: ele· sempre


me pareceu um problem a apenas verbal, um típico pseudoproblem a. Estava só in ­
teressado no problem a de dem arcação, ou seja, na procura de um critério para
definir o caráter científico das teorias. Foi só esse interesse que me fez perceber
im ediatam ente que p ara a verificação de teorias de W útígenstein o critério da sig­
nificação deveria funcionar tam bém como um critério de dem arcação; que, como
tal, era com pletam ente inadequado, mesmo se não levássemos em conta os p ro ­
blemas devidos ao conceito duvidoso de “significado”. De fato, o critério de dem ar­
cação de W ittgenstein — para utilizar m inha term inologia neste contexto — é o da
verificabilidade, da capacidade de deduzir a teoria de afirm ações derivadas da o b ­
servação. Mas esse critério é ao mesmo tem po m uito restrito e m uito am plo: exclui
da ciência praticam ente tudo o que a caracteriza, ao mesmo tem po que deixa de
excluir a astrologia. N enhum a teoria científica pode ser deduzida de afirmações
derivadas da observação, ou descrita como função d a verdade nelas contida.
Em diversas ocasiões dem onstrei o que acabo de expor aqui a seguidores de
W ittgenstein e m em bros do Círculo de Viena. Em 1931-32, resumi m inhas idéias
num livro um tanto extenso (que foi lido por vários m em bros do Círculo, mas n u n ­
ca publicado, em bora parte dele tenha sido incorporado ao m eu livro L o g ic o f
S c ie n tific D isc o v e ry )·, em 1933, publiquei um a carta escrita ao editor da revista E r-
k e n n tn is na qual tentei condensar em duas páginas m inhas idéias sobre os pn>
blemas de dem arcação e indução.5 Nessa carta e em outros trabalhos, descreví o
problem a de significado como um pseudoproblem a, em contraste com o da dem ar­
cação. Os m em bros do Círculo, no entanto, classificaram m inha contribuição como
um a proposta para substituir o critério de s ig n ific a d o p ara verificação por um
critério de s ig n ific a d o para determ inar a “refutabilidade” — o que efetivam ente es­
vaziava m inhas proposições de qualquer sentido.6 De nada adiantaram meus
protestos, em bora afirmasse que estava tentando resolver não o pseudoproblem a de
significado, mas o problem a da dem arcação.

5 — Meu livro Logic of Scientific Discovery (1959, 1960, 1961) normalmente referido aqui como L. Sc.
D., foi traduzido de Logik der Forschung (1934) com uma série de notas e apêndices adicionais, in­
clusive (nas páginas 312-314) a carta do Editor da Erkenntnis mencionada no texto, publicada pela
primeira vez em Erkenntnis, 3, 1933, páginas 426 e seguintes.
No que diz respeito ao livro nunca publicado, mencionado acima, vide o trabalho de R. Carnap
"Ueber ProtOkollstaze" (As Proposições Protocolares), em Erkenntnis, 3, 1932, páginas 215 a 228, onde, a
partir da página 223, o autor apresenta um esboço da minha teoria, que aceita e chama de “procedi­
mento B", dizendo: “Partindo de ponto de vista diferente do de Neurath (que desenvolveu o que Carnap
denomina, na página 223, “procedimento A"), Popper desenvolveu o “procedimento B” como parte de
seu sistema”. Após uma minuciosa descrição da minha teoria dos testes, Carnap resume suas idéias:
"Após comparar os diversos argumentos aqui discutidos, parece-me que a segunda forma de linguagem,
com o procedimento B — na forma descrita aqui — é a mais adequada de todas as formas de linguagem
científica atualmente defendidas... na teoria do conhecimento”. O trabalho de Carnap contém o pri­
meiro relato publicado sobre minha teoria dos testes críticos. (Vide também minhas observações críticas
em L. Sc. D., nota 1, seção 29, página 104, onde a data 1933 deve ser corrigida para 1932; e no Cap. 11
deste livro).
6 — 0 exemplo de Wittgenstein de uma pseudoproposição sem significado é o seguinte: “Sócrates é
idêntico”. Obviamente, a afirmação “Sócrates não é idêntico” também não tem significado. Logo, a
negação de qualquer afirmativa sem significado também não terá significado, e a de uma afirmação
com significado, será sentido. Mas, como observei em L.Sc.D. (p. ex. nas páginas 38 e seguintes) e, mais
tarde, em minhas críticas, a negação de uma afirmação “test&vel” (ou seja, passível de ser refutada), não
será necessariamente “testâvel”. Pode-se imaginar a confusão que surge quando se considera a “testa-
bilidade” como um critério de significado e não de demarcação.
C IÊ N C IA : C O N JE C T U R A S E R E FU T A Ç Õ E S 71

M inhas criticas a respeito da verificação tiveram , contudo, algum resultado:


levaram rapidam ente os filósofos verificacionistas do sentido e do sem-sentido à
mais com pleta confusão. O riginalm ente, a proposta que considerava a verifica-
bilidade como critério de significado era pelo menos clara, simples e eficaz, o que
não acontecia com as modificações e substituições introduzidas. 7 Devo dizer que,
hoje, as próprias pessoas que participaram do processo percebem isso. Mas, como
sou norm alm ente citado como um a delas, desejo salientar que, em bora tenha criado
a confusão, jam ais participei dela. Não propus a refutabilidade ou a testabilidade
como critérios de significado. Em bora possa me considerar culpado por haver in ­
troduzido ambos os termos na discussão, não os introduzí na teoria do significado.
As criticas ao m eu alegado ponto de vista se difundiram m uito e alcançaram
êxito. -Mas ainda não encontrei nenhum a critica às m inhas idéias.8 A testabilidade,
por enquanto, tem sido largam ente aceita como critério de dem arcação.

IV
Discuti o problem a da dem arcação detalhadam ente porque acredito que sua
solução dá um a chave para a m aioria dos problem as fundam entais da filosofia da
ciência. Mais adiante, relacionarei alguns desses problem as, m as apenas um deles
a indução - poderá ser discutido am plam ente aqui.
Interessei-me pelo problem a da indução em 1923. Em bora ele esteja in ti­
m am ente ligado ao problem a de dem arcação, durante cinco anos não fiz um a
avaliação com pleta dessa ligação.

7 O exemplo mais recente do modo como a história desse problema pode ser mal-interpretada é o
trabalho de A. R. White “Notas Sobre Significado e Verificação”, em Mind, 63, 1954, páginas 66 e
seguintes. O artigo de J. L. Evans em Mind, 62, 1953, páginas 1 e seguintes, criticado por White, é na
minha opinião excelente e altamente perceptivo. Compreensivelmente, nenhum dos autores consegue
reconstruir essa história. (Pode-se encontrar algumas sugestões no meu livro Open Society and Its
Enemies, Cap. 11, notas 46, 51 e 52; há uma análise mais completa no Cap. 11 deste livro).
8 Em L. Sc. D., discuti certas objeções plausíveis que continuaram entretanto a ser levantadas, sem
qualquer referência às minhas respostas. Uma delas é a argumentação de que a refutação de uma lei
natural é tão impossível quanto sua verificação. A resposta é que essa objeção confunde dois níveis de
análise completamente diferentes (como acontece com a afirmação de que demonstrações matemáticas
são impossíveis, pois por mais vezes que se repita a correção, não podemos ter certeza de que não te­
nhamos deixado de notar um erro). No primeiro nível, há uma assimetria lógica: uma única asserção —
sobre, por exemplo, o periélio de Mercúrio — pode formalmente refutar as leis de Kepler, mas estas
não poderão ser formalmente verificadas por afirmativas isoladas, qualquer que seja seu número. A ten­
tativa de minimizar essa assimetria só poderá resultar em confusão. No outro nível de análise, podemos
hesitar em aceitar uma assertiva qualquer, mesmo a mais simples assertiva derivada da observação;
podemos mostrar que toda assertiva envolve uma interpretação à luz de teorias e é, portanto, incerta.
Isso não afeta a assimetria fundamental, mas é de grande importância: antes de Harvey, a maioria dos
que dissecavam o coração faziam observações errôneas — justamente aquelas que desejavam fazer. Não
pode haver observação totalmente segura, livre dos perigos da interpretação errônea. (Esse é um dos
motivos pelos quais a teoria da indução não funciona)^;A “base empírica” consiste quase sempre em uma
miscelânea de teorias de menor grau de universalidade (de “efeitos reproduzíveis”). De qualquer modo,
independentemente da base que o investigador aceite (arriscadamente), ele só poderá testar sua teoria
tentando refutá-laK^
72 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

A proxim ei-m e-dç problem a da indução através de H um e, cuja afirm ativa


de que a indução não pode ser logicam ente justificada eu considerava correta.
H um e argum enta que não pode haver argum entos lógicos válidos 910que nos p er­
m itam afirm ar que “a q u e le s casos dos q u a is n ã o tiv e m o s e x p e r iê n c ia a lg u m a a s ­
s e m e lh a m -s e à q u e le s q u e j á e x p e r im e n ta m o s a n te r io r m e n t e " . Conseqüentem ente,
“m e s m o a p ó s o b se rv a r u m a a sso c ia çã o c o n s ta n te o u f r e q ü e n t e d e o b je to s, n ã o
te m o s m o tiv o p a r a in fe r ir a lg o q u e n ã o se re fir a a u m o b je to q u e j á e x p e r im e n ­
.1° Como a experiência ensina que os objetos que se associam constan­
ta m o s "
tem ente a outros objetos perm anecem assim associados, H um e afirm a, a seguir:
“Podería renovar m inha pergunta da seguinte form a: p o r q u e , dessa e x p e r iê n c ia ,
tir a m o s c o n c lu sõ e s q u e vão a lé m dos casos a n te rio re s, d o s q u a is j á tiv e m o s e x p e ­
Em outras palavras, a tentativa de justificar a prática da indução apelan­
riên cia ? "
do p ara a experiência deve levar a um regresso Como resultado, podemos
in fin ito .
dizer que as teorias nunca podem ser inferidas de afirm ações derivadas da obser­
vação, ou racionalm ente justificadas por elas.

Considero a refutação da inferência indutiva de H um e clara e conclusiva.


Mas sua explicação psicológica da indução em term os de costum e ou hábito me
deixa totalm ente insatisfeito.
Tem-se notado com freqüência que essa explicação de H um e é pouco satis­
fatória em termos filosóficos. Sem dúvida, contudo, ela pretende ser um a teoria
p sic o ló g ic a e não filosófica, pois procura dar um a explicação causai a um fato
psicológico — o f a t o d e q u e a c r e d ita m o s e m leis, em assertivas que afirm am a
regularidade de certos eventos, ou em certos tipos de eventos constantem ente as­
sociados — afirm ando que este fato é devido ao (isto é, constantem ente associado
ao) hábito ou costume.
Mas essa reform ulação da teoria de H um e é ainda insatisfatória, pois o que
acabo de descrever como um “fato psicológico” pode ser descrito como um costume
ou hábito — o costume ou hábito de acreditar em leis e eventos regulares; de fato,
não é m uito surpreendente nem esclarecedor ouvir a explicação de que tal costume
ou hábito é devido (ou associado) a um hábito ou costum e diferente. Só quando nos
lem bram os de que as palavras “costum e” e “hábito” são usadas por H um e, como
tam bém na linguagem corrente, não só para d e s c re v e r com portam entos regulares
mas sobretudo para te o riza r so b re su a o rig e m (atribüída à repetição freqüente) é
que podemos reform ular sua teoria psicológica de m aneira mais satisfatória. Po­
demos afirm ar então que, como acontece com qualquer outro hábito, nosso h á b ito
d e a c r e d ita r e m leis é p r o d u to d a r e p e tiç ã o f r e q ü e n t e — da observação repetida de
que coisas de um a certa natureza associam-se constantem ente a coisas de outra
n atureza.

9 Hume não usa o termo lógico ', mas sim "demonstrativo" - terminologia que, creio, tende a
causar equívoco. As duas citações seguintes foram retiradas do Treatíse of Human Nature, tomo 1.
parte III. seções vi e xii. (A ênfase é do próprio Hume).
10 Fsta citação e a seguinte foram do loc. cit. seção vi. Vide também o Enquiry Concerning
lluni·: : 'nderstanding. do mesmo autor, seção IV, parte II, e o Abstract, editado em 1938 por J.M.
Keynes c P. Sraffa, página 15, citado em L. Sc. D., no novo apêndice* VII, texto da nota 6.
C IÊ N C IA : C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S 73

Como já indicado, essa teoria genético-psicológica está incorporada à lin­


guagem ordinária, e por isso não é tão revolucionária quanto acreditava H um e: é
de fato um a teoria psicológica extrem am ente popular — parte do “senso com um ”
poderiam os dizer. C ontudo, a despeito da m inha profunda adm iração por H um e e
pelo senso com um , estava convencido do erro dessa teoria psicológica; convencido
de que podia ser refutada com base em argum entos puram ente lógicos.
Estava convencido de que a psicologia de H um e — que é a psicologia p o ­
pular — estava errada em pelo menos três pontos: (a) o resultado típico da re­
petição; (b) a gênese dos hábitos; e especialm ente (c) o caráter daquelas experiên­
cias e tipos de com portam ento que podem ser descritos como “acreditar num a lei”,
ou “esperar um a sucessão ordenada de eventos”.
(a) O resultado típico da repetição — por exem plo, da repetição de um
trecho musical difíciEexecutado ao piano — é que os movimento^ que inicialm ente
necessitavam de atenção são afinal executados autom aticam ente. Podemos dizer
que o processo se torna radicalm ente abreviado e deixa de ser consciente: torna-se .1

“fisiológico”. Esse processo, longe de criar a crença num a lei, ou a expectativa de


um a sucessão de eventos aparentem ente baseados num a lei, pode, pelo contrário, *
iniciar-se com um a crença consciente e destruí-la, tornando-a supérflua. Ao ap ren ­
derm os a andar de bicicleta, podem os com eçar com a certeza de que, para evitar
um a queda, devemos voltar a roda para a direção em que am eaçam os cair; essa
certeza poderá ser útil para guiar nossos movimentos. Depois de algum a prática,
podemos esquecer a regra: não precisamos mais dela. Por outro lado, se é verdade,
que a repetição cria expectativas inconscientes, estas só se tornam conscientes a 7
p artir do m om ento em que algo sai errado (não percebem os as batidas do relógio,)
mas notarem os o silêncio, se o relógio parar).
(b) H ábitos e costumes, via de regra, não se originam na repetição. Mesmo os
hábitos de andar, falar e com er em horas determ inadas têm início antes de que a
repetição possa ter um papel im portante. Podemos dizer que só merecem o nome
de “hábitos" ou “costum es” a p artir do m om ento em que a repetição exerce seu
papel típico; não podémos afirm ar, no entanto, que as práticas em questão se
originam de inúm eras repetições.
(c) A crença num a lei não corresponde precisam ente ao com portam ento
que revela a expectativa de um a sucessão de eventos aparentem ente baseados num a
lei; contudo, as duas coisas estão suficientem ente interligadas para que sejam
tratadas em conjunto: podem talvez resultar, excepcionalm ente, da m era re­
petição de impressões dos sentidos (como no caso do relógio que deixa de fu n ­
cionar). Estava disposto a adm itir isso, mas norm alm ente, e na m aioria dos casos,
elas não podem ser explicadas dessa m aneira. Como adm ite H um e, um a única o b ­
servação pode ser suficiente para criar um a expectativa ou um a crença — fato
que ele procura explicar como resultado de um hábito indutivo, form ado por
inúm eras longas seqüências repetitivas que experim entam os em período anterior da
nossa v id a.11 Mas isso era apenas um a tentativa de explicar fatos desfavoráveis que]
am eaçavam a teoria; um a tentativa m alograda, pois esses fatos podem ser obser­
vados em filhotes de anim ais e bebês. “Seguramos um cigarro aceso perto do fo^

11 — Treatise, seção xiii; seção xv, regra 4.


74 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

cinho de cachorrinhos.”, relata F. Bage. “Eles aspiraram um a vez e fugiram ; nada


podia induzi-los a retornar à origem daquele cheiro. Alguns dias m ais tarde,
apenas ao ver um cigarro ou mesmo um pedaço de papel branco enrolado, re a ­
giam , fugindo e espirrando”. l2 Se procurarm os explicar casos como esse postulan­
do inúm eras longas sequências repetitivas prévias não só estaremos fantasiando mas
tam bém esquecendo de que na curta vida dos filhotes deve haver tem po não só
para a repetição mas tam bém p ara m uita novidade e, conseqüentem ente, o con­
trário da repetição.
Mas não são apenas certos fatos em píricos que negam apoio às idéias de
H um e; há tam bém argum entos decisivos de natureza p u r a m e n t e ló g ic a contrários à
sua teoria psicológica.
A idéia central da teoria de H um e é a da re p e tiç ã o b a se a d a n a s im ila r id a d e
(ou “sem elhança”). Essa idéia é usada de m aneira m uito pouco crítica; somos
levados a pensar nas gotas de água a corroer a pedra: seqüências de eventos inques­
tionavelm ente sem elhantes impondo-se a nós vagarosam ente, como o funcionam en­
to de um relógio. Mas devemos notar que, num a teoria psicológica como a de
H um e, só se pode adm itir que tenha efeito sobre o indivíduo aquilo que para ele se
caracteriza como um a repetição, baseada em sim ilaridade que só ele poderá iden­
tificar. O indivíduo deve reagir às situações como se fossem equivalentes; deve c o n ­
sid e rá -la s similares; deve in te r p r e tá -la s como repetições. Podemos presum ir que os
cachorrinhos m ostraram , pela sua resposta — sua m aneira de agir ou reagir — que
haviam reconhecido ou interpretado a segunda situação como repetição da p ri­
m eira: esperavam a presença do elem ento principal: o cheiro desagradável. A
situação foi percebida por eles como um a repetição, pois reagiram a ela a n te c ip a n ­
do sua sim ilaridade à situação anterior.

Essa crítica aparentem ente de caráter psicológico tem um a base puram ente
lógica, que pode ser sintetizada no seguinte argum ento, bastante simples (aciden­
talm ente, o mesmo com que comecei m inha crítica): o tipo de repetição im agi­
nado por H um e jam ais pode ser perfeito; os casos que ele expõe não são casos de
sim ilaridade perfeita; são apenas casos de sem elhança. Logo, são r e p e tiç õ e s a p e n a s
se co n s id e ra d a s d e u m p o n to d e vista e m p a r tic u la r (aquilo que sobre mim tem o
efeito de um a repetição poderá não ter o mesmo efeito sobre um a aranha). Mas isso
significa que, por motivos lógicos, deve haver sem pre um ponto de vista — um sis­
tem a de expectativas, antecipações, presunções ou interesses — a n te s que possa
existir qualquer repetição; o ponto de vista, conseqüentem ente, não pode ser
m eram ente resultado da repetição. (Vide tam bém o apêndice* X, (1), em
L. Sc. D.).
Para os objetivos de um a teoria psicológica que explique a origem das nossas
crenças é preciso, portanto, substituir a idéia ingênua de eventos que são sem elhan­
tes pela idéia de eventos aos quais reagimos in tè r p r e ta n d o - o s como semelhantes.
Mas, se é assim (e não consigo ver nenhum m odo de evitá-lo) então a teoria psi­
cológica da indução proposta por H um e leva a um regresso infinito, precisam ente
análogo ao que foi descoberto pelo próprio H um e e usado por ele para derrubar a12

12 — F. Bage, “Zur Entwicklung, etc.", Zeitschrift f. Hundeforschung, 1933; D Katz, Animais and
Men, cap. VI nota.
C IÊ N C IA : C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S 75

teoria lógica da indução. Na verdade, que pretendem os explicar? No exemplo dos


cachorrinhos, querem os explicar um tipo de com portam ento que pode ser descrito
como o r e c o n h e c im e n to ou a in te r p r e ta ç ã o de um a situação como repetição de
outra; claram ente, não podemos esperar explicá-la apelando para repetições a n ­
teriores, pois percebem os que tais repetições anteriores devem ter im plicado tam ­
bém outras repetições, de m odo que o mesmo problem a ressurge sempre: o p ro ­
blem a de re c o n h e c e r o u in te r p r e ta r um a situação como repetição de um a outra.
De m odo mais conciso, podemos dizer que vemos a sim ilaridade como o
resultado de um a resposta que envolve interpretações (as quais podem não ser
adequadas), antecipações e expectativas (que podem nunca se m aterializar). E
impossível portanto explicar antecipações ou expectativas como o resultado de
muitas repetições — conforme sugerido por H um e. Com efeito, mesmo a prim eira
repetição (como a vemos) precisa estar baseada naquilo que para nós é sim ilaridade
— e portanto expectativa -- precisam ente o tipo de coisa que queríam os explicar.
O que dem onstra que a teoria psicológica de H um e nos leva a um a situação
de regresso infinito.
Penso que H um e nunca aceitou plenam ente sua própria análise. Tendo
rejeitado a idéia lógica da indução, ele foi obrigado a enfrentar o seguinte p ro ­
blem a: como podemos efetivam ente alcançar o conhecim ento de que dispomos,
como um fato psicológico, se a indução é um procedim ento logicam ente inválido e
racionalm ente injustificável? H á duas respostas possíveis: 1) chegamos ao conhe­
cim ento por método não indutivo (resposta compatível com um certo racionalis-
mo); 2) chegamos ao conhecim ento pela repetição e a indução — por conseguinte,
por m étodo logicam ente inválido e racionalm ente injustificável, pelo que todo o
conhecim ento aparente não passa de um a m odalidade de crença, baseada no
hábito (resposta que im plicaria a irracionalidade até mesmo do conhecim ento cien­
tífico, levando à conclusão de que o racionalism o é absurdo e deve ser abando­
nado). Não exam inarei aqui as tentativas imem oriais — que voltaram à m oda —
de resolver o problem a afirm ando que em bora a indução seja logicam ente inválida
se entendem os por “lógica" a lógica dedutiva, ela possui seus próprios padrões
lógicos, o que se pode com provar com o fato de que todos os homens razoáveis a
utilizam n a tu r a lm e n te : a grande realização de H um e consistiu justam ente em des­
truir essa identificação errônea da questão factual — quid, f a c t i ? — com a questão
da validade ou da justificação - q u id juris? (Vide o ponto 13 do apêndice ao
presente c a p .)
Ao que parece, H um e nunca considerou seriam ente a prim eira alternativa.
Depois de rejeitar a explicação lógica da indução pela repetição, o filósofo “n e­
gociou" com o bom senso perm itindo o retorno da idéia de que a indução se baseia
na repetição, revestida de explicação psicológica. O que propus foi recusar essa
teoria de H um e, explicando a repetição (para nós) como conseqüência da nossa in ­
clinação para esperar regularidades, da busca de repetições, em vez de explicar tal
inclinação pelas próprias repetições.
Fui levado portanto, por considerações puram ente lógicas, a substituir a
teoria psicológica da indução pelo ponto de vista seguinte: em vez de esperar pas­
sivamente que as repetições nos im ponham suas regularidades, procuram os de
76 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

m odo ativo im por regularidades ao m undo. Tentam os identificar sim ilaridades e


interpretá-las em termos de leis que inventam os. Sem nos determ os em premissas,
damos um salto para chegar a conclusões — que podemos precisar pôr de lado,
caso as observações não as corroborem .
X Tratava-se de um a teoria baseada em processo de tentativas — de c o n je c ­
Um processo que permitia compreender por que nossas tentativas
tu ra s e. r e fu ta ç õ e s .
de im por interpretações ao m undo vinham , logicam ente, antes da observação de
sim ilaridades. Como havia razões lógicas para agir assim, pensei que esse proce­
dim ento podería ser aplicado tam bém ao cam po científico; que as teoriasj:ientí-
ficas não eram um a composição de observações mas sim invenções — conjecturas
apresentadas ousadam ente, para serem elim inadas no caso de não sc_ajust ar em jis
observações (as quais raram ente eram acidentais, sendo coligidas, de modo geral,
com o propósito definido de testar um a teoria procurando, se possível, refutá-la).
V
A crença de que a ciência avança da observação p ara a teoria é ainda aceita
tão firm e e am plam ente que m inha rejeição dessa idéia provoca m uitas vezes
reação de incredulidade. Já fui até acusado de ser insincero — de negar aquilo de
que ninguém pode razoavelm ente duvidar.
Na verdade, porém , a crença de que podemos com eçar exclusivam ente com
observações, sem qualquer teoria, é um absurdo, que podería ser ilustrado pela es­
tória absurda do hom em que se dedicou durante toda a vida à ciência n atural —
anotando todas as observações que pôde fazer, legou-as a um a sociedade científica
para que as usasse como evidência indutiva. Uma anedota que nos deveria m ostrar
que podemos colecionar com vantagem insetos, por exem plo, mas não observações.
Há um quarto de século, procurei cham ar a atenção de um grupo de es­
tudantes de física, em Viena, para este ponto, com eçando um a conferência com as
seguintes instruções: “Tom em lápis e papel; observem cuidadosam ente e anotem o
que puderem observar'. Os estudantes quiseram saber, naturalm ente, o q u e de­
veríam observar: “Observem — isto é um absurdo!”1314 De fato, não é mesmo h a ­
bitual usar dessa form a o verbo “observar". A observação é sem pre seletiva: exige
um objeto, um a tarefa definida, um ponto de vista, um interesse especial, um
problem a. Para descrevê-la é preciso em pregar um a linguagem apropriada, im ­
plicando sim ilaridade e classificação — que, por sua vez, im plicam interesses, p o n ­
tos de vista e problem as.
Katz escreveu 14: “Um anim al fam into divide o am biente em objetos
comestíveis e não comestíveis. Um anim al que foge enxerga cam inhos para a fuga e
esconderijos... De m odo geral, os objetos m ud am ... de acordo com as necessidades
do anim al". Poderiam os acrescentar que só dessa fo r m a — relacionando-se com
necessidades e interesses — podem os objetos ser classificados, assemelhados ou
diferenciados. A mesma regra se aplica tam bém aos cientistas. Para o anim al são

13 Vide a seção 30 de L. Sc. D.


14 Katz. loc. cit.
C IÊ N C IA : C O N JE C T U R A S E R E FU T A Ç Õ E S 77

suas necessidades, a tarefa e as expectativas do m om ento que fornecem um ponto


de vista; no caso do cientista, são seus interesses teóricos, o problem a que está in ­
vestigando, suas conjecturas e antecipações, as teorias que aceita como pano de
fundo: seu quadro de referências, seu “horizonte de expectativas” .
O problem a “Que vem em prim eiro lugar: a hipótese (H) ou a observação
(O)?” pode ser solucionado; como tam bém se pode resolver o problem a “Que vem
em prim eiro lugar: a galinha (G) ou o ovo (O)?” (A resposta adequada à prim eira
pergunta, é “Uma hipótese anterior”; a resposta apropriada à segunda é “Um ovo
anterior”). E verdade que qualquer hipótese particular que adotem os será sem pre
precedida de observações — por exemplo, as observações que ela se destina a ex­
plicar. Contudo, essas observações pressupõem a adoção de um quadro de referên­
cias — um a teoria. Se as observações “iniciais” têm algum a significação, se p ro ­
vocaram a necessidade de um a explicação, dando origem assim a um a hipótese, é
porque não podiam ser explicadas pelo quadro teórico precedente, o antigo h o ­
rizonte de expectativas. Aqui não correm os o perigo de encontrar um regresso in­
finito: se recusarm os a teorias e mitos cada vez mais primitivos, chegarem os final-
m ente a expectativas inconscientes e in a ta s.

É claro que a teoria das idéias in a ta s é absurda; mas todos os organismos


têm rea çõ es ou re sp o sta s inatas — entre elas, respostas adaptadas a acontecim entos
im inentes. Podemos descrever essas respostas como “expectativas” sem im plicar que
tais “expectativas" sejam iminentes. Assim, o bebê recém -nascido “tem a expec­
tativa” de ser alim entado (bem como — poderiam os dizer tam bém — a expectativa
de ser protegido e am ado). T endo em vista a relação estreita entre a expectativa e o
conhecim ento, podemos falar mesmo, de m odo m uito razoável, em “conhecim ento
inato”: um conhecim ento que não é v á lid o “a p r io r i" — um a expectativa inata, por
mais forte e específica que seja, pode constituir um equívoco (o bebê recém-nascido
pode ser abandonado e m orrer de fome).

Nascemos, portanto, com expectativas — com um “conhecim ento” que,


em bora não seja v á lid o a p r io r i, é p sic o ló g ic a o u g e n e tic a m e n te a p rio r ístic o — is­
to é, anterior a toda a experiência derivada da observação. Uma das mais im por­
tantes dessas expectativas é a de encontrar regularidades — ela está associada à in ­
clinação inata para localizar regularidades — ou à n e c e s sid a d e de e n c o n tr a r re ­
gularidades —, como podemos perceber pelo prazer que a criança sente em satis­
fazer esse impulso.
Esta expectativa “instintiva” de encontrar regularidades, que é psicologi­
cam ente a p rio r i, corresponde estreitam ente à “lei da causalidade” que Kant con­
siderava um a parte do nosso equipam ento m ental, válida a p r io r i. Poder-se-ia dizer
que Kant deixou de traçar a distinção entre as formas de pensar e de reagir psi-
cologiam ente apriorísticas e as crenças válidas a p r io r i. Não creio, porém , que seu
equívoco tenha sido tão elem entar — de fato, a expectativa de encontrar regula­
ridades é apriorística não só psicologicamente mas tam bém logicam ente; em termos
lógicos, é anterior a toda a experiência derivada da observação, precedendo, como
vimos, o reconhecim ento das semelhanças; e toda observação envolve o reconhe­
cim ento do que é sem elhante e do que não o é. Mas, a despeito de ser logicam ente
apriorística, neste sentido, a expectativa não é válida a p rio r i. Ela pode falhar:
78 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

poderiam os facilm ente construir um am biente (que seria letal) de tal form a caó­
tico, em com paração com nosso am biente ordinário, que nos fosse totalm ente im ­
possível encontrar nele quaisquer regularidades. (Todas as leis naturais poderíam
continuar válidas; am bientes desse tipo foram usados para experiências com
animais, conforme indicado na próxim a seção.)
Assim, a resposta de K ant a H um e estava quase certa: a distinção entre um a
expectativa válida a p r io r i e um a outra genética e logicam ente anterior à obser­
vação, sem ser contudo válida a p r io r i , é de fato bastante sutil. K ant, porém , foi
m uito longe na sua dem onstração. Procurando dem onstrar como o conhecim ento é
possível, propôs um a teoria que tinha a conseqüência inevitável de condenar ao
êxito nossa busca de conhecim ento — o que é evidentem ente um erro. Kant tinha
razão ao dizer que “nosso intelecto não deriva suas leis da natureza, mas impõe suas
leis à natureza”. Ao im aginar porém que essas leis fossem necessariam ente ver­
dadeiras ou que necessariam ente teríamos êxito em impô-las à natureza, ele se
en g an o u .15 M uitas vezes a natureza resiste com êxito, forçando-nos a rejeitar nos­
sas leis — o que não nos im pede de tentar outras vezes.
Para sum arizar esta crítica lógica da psicologia da indução de H um e po­
demos considerar a idéia de construir um a m áquina de indução. Posta num
universo sim plificado essa m áquina podería, pela repetição, “aprender” as leis
vigentes nesse m undo ou mesmo “form ulá-las”. Se é possível construir tal m á­
quina (não tenho dúvida de que isso c possível) pode-se argüir que m inha teoria es­
tá equivocada de fato, se um a m áquina pode praticar a indução na base da
repetição, não há razão lógica para que não possamos fazer o mesmo.
v. O argum ento parece convincente, mas é falso. Ao construir um a m áquina
de indução precisarem os, como seu arquiteto, decidir a p r io r i e m que consiste seu
"universo” que coisas devem ser consideradas “semelhantes" ou “iguais"; que
m odalidade de “leis" desejamos que a m áquina "descubra". Em outras palavras,
precisamos incorporar à m áquina um quadro de referências que determ ine o que é
relevante e interessante no seu “m undo” a m áquina funcionará então na base de
princípios seletivos “inatos” . Os problem as da sim ilaridade serão solucionados para
a m áquina pelos seus fabricantes, que lhe darão um a “interpretação” do m undo.
VI
Nossa inclinação para procurar regularidades e para im por leis à natureza
leva ao fenômeno psicológico do p e n s a m e n to d o g m á tic o ou, de modo geral, do
com portam ento dogm ático: esperamos encontrar regularidades em toda parte e
tentam os descobri-las mesmo onde elas não existem; os eventos que resistem a essas
tentativas são considerados como “ruídos de fundo”; somos fiéis a nossas expec­
tativas mesmo quando elas são inadequadas - e deveriamos reconhecer a derrota.

15 R a m a c r e d i t a v a q u e a d i n â m i c a d e N e w t o n fo s se v á lid a a priori . ( V id e s e u liv r o F undam entos


M etafísicos da Ciência N atural, p u b l i c a d o e n t r e a p r i m e i r a e a s e g u n d a e d iç õ e s d a Crítica da Razão
Pura.) C o n t u d o , se p o d e m o s e x p lic a r a v a lid a d e d a t e o r i a d e N e w to n , c o m o p e n s a v a , p e lo fa to d e
q u e n o s s o in t e l e c t o im p õ e s u a s leis à n a t u r e z a , o q u e se s e g u e , n a m i n h a o p i n i ã o , é q u e e sse e s f o r ç o d o
in te le c t o t e r á ê x ito n e c e s s a r i a m e n t e o q u e t o r n a d if íc il e n t e n d e r p o r q u e m o tiv o o c o n h e c i m e n t o a
priori, c o m o o d e N e w t o n , é t ã o d ifíc il d e a l c a n ç a r . N o c a p . 2 , e s p e c i a l m e n t e n a s e ç ã o X , e t a m b é m n o s
c a p s . 7 e 8 d e s te liv r o o l e ito r e n c o n t r a r á u m a e x p o s iç ã o m a is a m p l a d e s ta c r í t i c a .
C IÊ N C IA : C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S 79

Esse dogm atism o é, em certa m edida, necessário: corresponde a um a exigência de


situação que só pode ser tratad a pela aplicação das nossas conjecturas ao universo;
além disso, ele nos perm ite abordar um a boa teoria em estágios, por aproxim ações
— se aceitam os a derrota com m uita facilidade podem os deixar de descobrir que
estivemos m uito perto do cam inho certo.
Está claro que essa a tit u d e d o g m á tic a que nos leva a guardar fidelidade às
prim eiras impressões indica um a crença vigorosa; por outro lado, um a a titu d e
c r ític a , com a disponibilidade p ara alterar padrões, adm itindo dúvidas e exigindo
testes, indica um a crença mais fraca. O ra, de acordo com o pensam ento de H um e
e com a concepção popular, a força de um a crença resulta da repetição, devendo
portanto crescer com a experiência, apresentando-se sem pre m aior nas pessoas
menos prim itivas. Mas o pensam ento dogm ático, o desejo incontrolado de im por
regularidades e o prazer m anifesto com ritos e a repetição p e r se caracterizam os
primitivos e as crianças; a grande experiência e m aturidade criam algum as vezes
um a atitude de cautela e de crítica, em vez do dogm atism o.
M encionaria aqui um ponto de concordância com a psicanálise. Esta afirm a
que os neuróticos interpretam o m undo de acordo com um modelo pessoal fixo,
que não é facilm ente abandonado, e cujas raízes podem rem ontar às prim eiras
fases da infância. Um modelo ou esquem a adotado m uito cedo se m antém e serve
como padrão interpretativo para toda experiência nova, verificando-a, por assim
dizer, e contribuindo para enrijecê-la. Esta é um a descrição do que cham ei de
“atitude dogm ática", por com paração com a atitude crítica que tem em comum
com ela a facilidade da adoção de um sistema de expectativas — um m ito, talvez;
hipótese ou conjectura —, mas que estará sempre pronta a modificá-lo, a corrigi-lo
e até mesmo a abandoná-lo. Estou inclinado a achar que a m aioria das neuroses
podem ser devidas ao não desenvolvimento da atitude crítica — a um dogm atism o
enrijecido (e não natural); à resistência às exigências de adaptação de certas in ter­
pretações e respostas esquem áticas. Resistência que em si pode ser explicada, em
alguns casos, por um a injúria ou um choque que provocou medo e o aum ento da
necessidade de segurança, analogam ente ao que acontece quando ferimos um
m em bro, que depois temos m edo de usar — o que o enrijece. (Pode-se até mesmo
argum entar que o caso do m em bro é não só analógico à resposta dogm ática, mas
um exem plo desse tipo de resposta.) Em qualquer caso concreto, a explicação
precisará levar em conta o peso das dificuldades envolvidas nos ajustam entos neces­
sários dificuldades que podem ser consideráveis, especialm ente num m undo
complexo e cam biante: experiências feitas com anim ais nos ensinam que variando
as dificuldades impostas, podemos provocar vários graus de com portam ento
neurótico.
Identifiquei muitos outros vínculos entre a psicologia do conhecim ento e
cam pos psicológicos afastados (na concepção geral): por exemplo, a arte e a
música. Na verdade, m inhas idéias sobre a indução tiveram origem num a conjec­
tura a respeito da evolução da polifonia ocidental. Mas essa é um a outra estória, de
que vou poupá-los.
VII
M inha crítica lógica da teoria psicológica e as considerações correspondentes
(a m aior parte das quais datam de 1926/27, quando preparei um a tese intitulada
80 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

“O H ábito e as Crenças nas Leis’ 16) podem parecer um tanto afastadas do cam po
da filosofia da ciência. Mas a distinção entre o pensam ento crítico e o dogm ático
nos traz de volta ao problem a central. Com efeito, a atitude dogm ática está cla­
ram ente relacionada com a tendência para v e r ific a r nossas leis e esquemas, buscan­
do aplicá-los e confirmá-los sem pre, a ponto de afastar as refutações, enquanto a
atitude crítica é feita de disposição para modificá-los — a inclinação no sentido de
testá-los, refutando-os se isso for possível. O que sugere a identificação da atitude
crítica com a atitude científica e a atitude dogm ática com a que descreví quali-
ficando-a de pseudocientífica.
Acho tam bém que geneticam ente a atitude pseudocientífica é mais p ri­
m itiva do que a científica, e anterior a ela: é um a atitude p r é -c ie n tífic a . Esse
caráter prim itivo e essa precedência têm tam bém seu aspecto lógico. Com efeito, a
atitude crítica não se opõe propriam ente à atitude dogm ática; sobrepõe-se a ela: a
crítica deve dirigir-se contra as crenças prevalecentes, que exercem grande influên­
cia e que necessitam um a revisão crítica — em outras palavras, ela se dirige contra
as crenças dogm áticas. A atitude crítica requer — como “m atéria-prim a”, por as­
sim dizer — teorias ou crenças aceitas mais ou menos dogm aticam ente.
A ciência começa, portanto, com os mitos e a crítica dos mitos; não se
origina num a coleção de observações ou na invenção de experim entos, mas sim na
discussão crítica dos mitos, das técnicas e práticas m ágicas. A tradição científica se
distingue da tradição pré-científica por apresentar dois estratos; como esta últim a,
ela lega suas teorias, mas lega tam bém com elas, um a atitude crítica com relação a
essas teorias. As teorias são transferidas não como dogm as mas acom panhadas por
um desafio p ara que sejam discutidas e se possível aperfeiçoadas. Essa tradição é
helênica e rem onta a Tales, fundador da prim eira escola (digo, deliberadam ente,
da prim eira escola, e não da prim eira escola filo s ó fic a ) a não se preocupar fu n ­
dam entalm ente com a preservação de um d o gm a.17
A atitude crítica, tradição de livre debate sobre as teorias para identificar
seus pontos fracos e aperfeiçoá-las, é um a atitude razoável e racional. Em prega ex-
tensam ente a observação e os argum entos verbais — mas a prim eira é função dos
segundos. A descoberta do m étodo crítico pelos gregos provocou, inicialm ente, a
esperança enganosa de que ele levaria à solução de todos os grandes problem as do
passado; de que estabelecería o conhecim ento certo; de que ajudaria a p r o v a r nos­
sas teorias, a ju s tific á -la s . Essa esperança não passava de um resíduo da m entali­
dade dogm ática: na verdade, nada pode ser justificado ou provado (fora do cam po
da m atem ática e da lógica). A exigência de provas racionais p ara o conhecim ento
científico revela um a falha na separação que seria preciso m anter entre a am pla
região da racionalidade e o cam po estreito da certeza racional; é um a exigência
irrazoável, que não pode ser atendida.
No entanto, o argum ento lógico, o raciocínio lógico dedutivo, continua a
exercer um a função de grande im portância na abordagem crítica; não porque nos
perm ite provar nossas teorias ou inferi-las de afirm ativas derivadas da observação,

16 — T e s e n ã o p u b l i c a d a , s u b m e t i d a a o I n s t i t u t o d e E d u c a ç ã o d e V ie n a , e m 1 9 2 7 , s o b o t í t u l o “Ge-
w ohnheit u n d G esetzerlebnis".
17 — N o s c a p s . 4 e 5 d e s te liv ro o l e ito r e n c o n t r a r á c o m e n t á r i o s a d i c i o n a i s s o b r e o te m a .
C IÊ N C IA C O N JE C T U R A S E R E FU T A Ç Õ E S 81

mas porque é impossível descobrir as implicações dessas teorias (para poder criticá-
las efetivam ente) em pregando exclusivam ente o raciocínio dedutivo. Como disse, a
crítica é um a tentativa de identificar os pontos fracos das teorias — pontos que, de
m odo geral, só vamos encontrar nas suas conseqüências lógicas mais rem otas. É aí
que o raciocínio puram ente lógico desem penha um papel im portante.
H um e tinha razão ao acentuar o fato de que rfossas teorias não podem ser
inferidas validam ente do que podemos conhecer como verdadeiro — nem de obser­
vações nem de qualquer outra coisa. Sua conclusão era a de que nossa crença nes­
sas teorias é irracional. Se “crença” significa neste caso a incapacidade de pôr em
dúvida as leis naturais e a constância das regularidades que a natureza nos oferece,
H um e estava certo: esse tipo de fé dogm ática tem um a base “fisiológica”, por assim
dizer, e não racional. Contudo, se o term o “crença” é em pregado para denotar
nossa aceitação crítica das teorias científicas — um a aceitação te n ta tiv a , com bi­
nada com um a disposição para rever a teoria se conseguirmos refutá-la experim en­
talm ente —, H um e não tinha razão neste ponto. Com efeito, não há nada de ir­
racional na aceitação de um a teoria, como nada há de irracional na admissão de
teorias bem testadas, para fins práticos — nenhum outro tipo de com portam ento é
mais facional.
Vamos adm itir que aceitam os deliberadam ente a tarefa de viver neste m u n ­
do desconhecido, ajustando-nos a ele tanto quanto possível, aproveitando as opor­
tunidades que nos oferece; e que querem os explicá-lo, se p o ssív e l (não será preciso
presum ir esta possibilidade) e na m edida da nossa possibilidade, com a ajuda de
leis e de teorias explicativas. Se essa é no ssa ta re fa , o p r o c e d im e n to m a is r a c io n a l é
o m é to d o d a s te n ta tiv a s — d a c o n je c tu r a e d a r e fu ta ç ã o . Precisamos propor teo­
rias, ousadam ente; tentar refutá-las; aceitá-las tentativam ente, se fracassarmos.
Deste ponto de vista, todas as leis e teorias são essencialm ente tentativas,
conjecturais, hipotéticas — mesmo quando não é mais possível duvidar delas. Antes
de refutar um a teoria não temos condição de saber em que sentido ela precisa ser
m odificada. A afirm ativa de que o sol continuará a se levantar e a se pôr um a vez
cada vinte e quatro horas é, proverbialm ente, um conhecim ento “estabelecido pela
indução, além de qualquer dúvida ràzoável”. E curioso notar que ainda hoje
usamos esse exem plo, que serviu tam bém nos dias de Aristóteles e de Pítias de Mas-
sália — o grande viajante que ganhou reputação de m entiroso devido à sua des­
crição de T ule, com o m ar gelado e o “sol da m eia-noite”.
O m étodo das tentativas não se identifica sim plesm ente com o m étodo
crítico ou científico — o processo de conjecturas e refutações. O prim eiro é em ­
pregado não só por Einstein mas — de form a mais dogm ática — pela am eba; a
diferença reside não tanto nas tentativas mas na atitude crítica e construtiva as­
sum ida com relação aos erros. Erros que o cientista procura elim inar, consciente e
cuidadosam ente, na tentativa de refutar suas teorias com argum entos penetrantes
— inclusive o apelo aos testes experim entais mais severos que suas teorias e engenho
lhe perm item preparar.
A atitude crítica pode ser descrita como um a tentativa consciente de sub­
m eter nossas teorias e conjecturas, em nosso lugar, à “luta pela sobrevivência”, em
que os mais aptos triunfam . Ela nos dá a possibilidade de sobreviver à elim inação
de um a hipótese inadequada — quando um a atitude mais dogm ática levaria à nos-
82 C O N JE C T I''R A S E R E FU T A Ç Õ E S

sa elim inação. (Há um a estória tocante a respeito de com unidade indiana que
desapareceu por causa da sua crença na santidade da vida — inclusive a vida dos
tigres.)
Adotamos assim a teoria mais apta a nosso alcance, elim inando as que são
menos aptas. (Por “aptidão” não quero dizer apenas “utilidade”, mas tam bém ver­
dade; vide os caps. 3 e 10 deste livro.) Na m inha opinião, este procedim ento nada
tem de irracional, nem precisa de m aior justificação racional.
VIII
Voltemo-nos agora da crítica lógica da p sic o lo g ia d a e x p e r iê n c ia para nosso
problem a real: o problem a da ló g ic a d a ciê n c ia . Em bora algum as das coisas que
comentei aqui possam ajudar-nos, na m edida em que elim inaram certos precon­
ceitos em favor da indução, o tratam ento a que me proponho do p r o b le m a lógico
da in d u ç ã o independe totalm ente da crítica que fizemos, e de todas as conside­
rações psicológicas expostas. Desde que o leitor não aceite dogm aticam ente o
alegado fato psicológico de que fazemos induções, poderá esquecer tudo o que dis
se, com a exceção de dois pontos de lógica: m inhas observações sobre a testabili-
dade ou refutabilidade como critério de dem arcação e a crítica lógica feita por
H um e à indução.
Do que disse aqui é óbvio que havia um a estreita ligação entre os dois
problem as que me interessavam então: a dem arcação e a indução — ou o método
científico. Era fácil entender que o m étodo da ciência é a crítica, isto é, as ten ­
tativas de refutação. Contudo, levei alguns anos para perceber que os dois pro ­
blem as (o da dem arcação e o da indução) num certo sentido eram um só.
Perguntava-m e por que tantos cientistas acreditam na indução; descobri
que isso se devia ao fato de acreditarem que a ciência natural se caracteriza pela
indução: um m étodo que' tem início em longas seqüências de observações e ex­
periências c nelas se baseia. Acreditavam que a diferença entre a ciência genuína e
a especulação metafísica ou pseudocientífica dependia exclusivamente do em prego
do m étodo indutivo. Pensavam, portanto (para usar m inha própria term inologia)
que só o m étodo indutivo fornecia um c r ité rio d e d e m a r c a ç ã o satisfatório.
Encontrei recentem ente um a interessante form ulação dessa crença num
notável livro de filosofia, escrito por um grande físico — N a t u r a l P h ilo so p h y o f
C ause a n d C h a n c e , de Max B o m .18 Escreve o autor: “A indução nos perm ite
generalizar um certo núm ero de observações, sob a form a de regra geral: a de que
a noite segue o dia, por exem plo... Mas. em bora na vida quotidiana não tenhamos
um critério definido de validade para a indução, ... a ciência desenvolveu um
código ou norm a para sua aplicação". Born não revela o conteúdo desse código da
indução mas salienta que “não há um argum ento lógico” que apóie sua aceitação:
trata-se de “um a questão de fé”, pelo que o autor se inclina a qualificar a indução
de “princípio m etafísico” . Por que razão a crença de que deve existir um código de
regras indutivas válidas? A resposta fica clara quando o autor se refere ao “grande
núm ero de pessoas que ignoram ou rejeitam a regra da ciência, entre as quais os
CIÊNCIA: CONJKC ÍVRAS F. Rl.l í ' I AÇÒKS' 83

m em bros de ligas contra a vacinação e seguidores da astrologia. É inútil discutir


com eles: não posso obrigá-los a aceitar os mesmos critérios de indução válida nos
quais acredito — o código científico”. Essa passagem deixa bem claro que a “i n ­
d u ç ã o v á lid a ” é u sa d a a q u i c o m o c rité rio d e d e m a r c a ç ã o s e p a r a n d o a c iê n c ia d a
p s e u d o c iê n c ia .

E óbvio, porém , que a regra da “indução válida” não chega a ser metafísica:
ela sim plesm ente não existe. N ão há regra que possa' garantir um a generalização
inferida de observações verdadeiras, por m aior que seja sua regularidade. (O
próprio Born não acredita na verdade da física new toniana, a despeito do seu
êxito, em bora acredite que ela se baseia na indução.) Por outro lado, o êxito da
ciência não se fundam enta em regras indutivas mas depende da sorte, do engenho
dos cientistas e das regras puram ente dedutivas do raciocínio crítico
Podería, portanto, sintetizar da seguinte form a algum as das m inhas con­
clusões :
1) A indução — isto é, a inferência baseada em grande núm ero de obser- ‘
vações é um mito: não é um fato psicológico, um fato da vida corrente ou um
procedim ento científico. > J
2) O m étodo real da ciência em prega conjecturas e salta para conclusões <
genéricas, às vezes depois de um a única observação (conform e o dem onstram H um e
e Born). , _1 | £
"· IJ

3) A observação e a experim entação repetidas funcionam na ciência como


testes de nossas conjecturas ou hipóteses — isto é, como tentativas de refutação.
4) A crença errônea na indução é fortalecida pela necessidade de termos 1
um critério de dem arcação que — conforme aceito tradicionalm ente, e equivo­
cadam ente — só o método indutivo podería fornecer. j
5) A concepção de tal m étodo indutivo, como critério de verificabilidade.
im plica um a dem arcação defeituosa.
6) Se afirm arm os que a indução nos leva a teorias prováveis (e não certas)
nada do que precede se altera fundam entalm ente. (Vide em especial o cap. 10 des­
te livro.)

IX
Se é verdade, como sugeri, que o problem a da indução é apenas um exem ­
plo ou um a faceta do problem a da dem arcação, a solução dada a este últim o
deverá solucionar tam bém o prim eiro. É esta a m inha opinião, em bora a conclusão
possa não parecer im ediatam ente óbvia.
Para um enunciado sucinto do problem a da indução podemos retornar a
Born, que escreve: “... não há observação ou experim entação, por mais extensas,
que possam proporcionar a não ser um núm ero finito de repetições”. Portanto, “a
proposição de um a lei — B depende de A — transcende sem pre a experiência.
84 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

C ontudo, fazemos todo o tem po esse tipo de afirm ativa, baseando-nos às vezes em
fundam entação m uito lim itada”. 19
Em outras palavras, o problem a lógico da indução se origina (a) na des­
coberta de H um e (tão bem expressa por Born) de que é impossível justificar um a
lei pela observação ou por meio de experiências, um a vez que ela “transcende sem ­
pre a experiência” ; (b) no fato de que a ciência enuncia e usa leis todo o tempo.
(Como H um e, Born se impressiona com a “fundam entação lim itada” em que se
pode basear um a lei — isto é, o pequeno núm ero de observações.) A crescenta­
ríamos tam bém o p r in c íp io d o e m p ir is m o , (c) o fato de que na ciência só a obser­
vação e a experiência podem decidir a respeito da a c e ita ç ã o o u re je iç ã o das afir­
mativas, inclusive das leis e teorias.
Esses três princípios parecem à prim eira vista contradizer-se — nisso consiste
o p r o b le m a lógico da in d u ç ã o .
Diante dessa contradição, Born abandona o princípio do em pirismo (da
mesma form a como Kant e m uitos outros antes dele, inclusive B ertrand Russel) em
favor do que denom ina de “princípio m etafísico” — um princípio metafísico que
não chega sequer a form ular, descrevendo-o vagam ente como um “código”, ou
“regra". Incidentalm ente, jam ais encontrei qualquer enunciado desse princípio que
parecesse promissor e respeitável.
Mas na verdade os princípios (a) a (c) não se chocam . E o que podemos p er­
ceber quando entendem os que a aceitação de um a lei ou teoria pela ciência é
a p e n a s t e n ta tiv a ; isso quer dizer que todas as leis e teorias são simples conjecturas,
ou hipóteses (posição que cham o às vezes de “hipotetism o”); podemos rejeitar q u al­
quer lei ou teoria com base em novas evidências, sem que isso im plique o descarte
da antiga evidência que nos levou originalm ente a aceitá-la.20
O princípio do em pirism o (c) pode ser preservado de form a integral, pois o
destino de um a teoria — sua aceitação ou rejeição — é decidido pela observação e
pela experim entação; pelo resultado de testes. E nquanto um a teoria resiste aos tes­
tes mais rigorosos que podemos conceber, ela é aceita; quando isso deixa de acon­
tecer, ela é rejeitada. Mas a verdade é que as teorias nunca são inferidas d ireta­
m ente da evidência em pírica. N ão há nem um a indução psicológica nem um a in­
dução lógica. a fa ls id a d e d e u m a te o ria p o d e se r in fe r id a d a e v id ê n c ia e m p ír ic a ,
in fe r ê n c ia q u e é p u r a m e n te d e d u tiv q r

H um e dem onstrou que não é possível inferir um a teoria de afirm ativas


derivadas da observação; mas isso não afeta a possibilidade de refutar um a teoria
por meio de afirm ativas desse tipo. E o pleno reconhecim ento dessa possibilidade
que torna perfeitam ente clara a relação entre as teorias e as observações.
Isso resolve o problem a da alegada contradição entre os princípios (a), (b) e
(c); e resolve tam béríro problem a da indução proposto por Hume.
19 — N a tu ra l Philosophy o f Cause an d Chance, p á g . 6.

2 0 — N ã o d u v i d o d e q u e B o r n e o u t r o s c o n c o r d a s s e m c o m a a f i r m a t i v a d e q u e a s te o r i a s só s ã o a c e ita s
t e n t a t i v a m e n t e . M a s a c r e n ç a d i f u n d i d a n a i n d u ç ã o d e m o n s t r a q u e a s im p lic a ç õ e s m a is a m p l a s d e s te
p o n t o d e v is ta r a r a m e n t e s ã o p e r c e b i d a s .
C IÊ N C IA : C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S 85

X
Assim se soluciona o problem a da indução. Contudo, nada parece menos
necessário do que um a solução tão simples para problem a filosófico tão antigo.
W ittgenstein e seus discípulos sustentavam que não existem problem as filosóficos
genuínos;21 de onde se conclui que eles não podem ser solucionados. N a m inha
geração há outras pessoas que acreditam na existência de tais problem as e se
aproxim am deles com respeito; às vezes porém parecem respeitá-los demais,
acreditando talvez que sejam insolúveis ou que constituem um tabu. Essas pessoas
ficam chocadas e horrorizadas diante da alegação de que pode haver um a solução
simples, clara e lúcida para qualquer um desses problem as. Se algum a solução é
possível, ela deve ser profunda — ou, pelo menos, com plicada.
De qualquer m odo, estou ainda à espera de um a crítica simples, lúcida e
clara à solução que propus pela prim eira vez em 1933, na carta ao editor de E r k e n -
n tm s 22, reproduzida mais tarde em T h e L o g ic o f S c ie n tific D isco very.

Como é natural, é possível inventar novos problem as relacionados com a in ­


dução, diferentes dos que form ulei e solucionei (sua form ulação representou já um
bom passo para a solução). Mas ainda não encontrei qualquer reform ulação do
problem a que não possa ser solucionada facilm ente a p artir da velha solução que
propus. Vamos exam inar aqui algum as dessas reform ulações.
Uma indagação que se pode fazer é a seguinte; como “saltam os” de um a
afirm ativa derivada da observação para um a teoria?
Em bora a pergunta pareça ser mais psicológica do que filosófica, é possível
respondê-la de form a até certo ponto positiva sem invocar a psicologia. Podemos
dizer, em prim eiro lugar, que o “salto” não se dá a partir de um a afirm ativa d e­
rivada da observação, mas de um a situação-problem a; a teoria precisa perm itir a
e x p lic a ç ã o das observações que criaram o problem a (isto é: precisa perm itir sua
d e d u ç ã o da teoria, juntam ente com outras teorias aceitas e outras afirm ativas
derivadas da observação — conjunto a qtçe cham am os de “condições iniciais”). Isso
significa que há um núm ero m uito grande de possíveis teorias — “boas” e “m ás”
—, o que parece indicar que nossa pergunta não foi ainda respondida.

Por outro lado, fica bem claro que, quando propusem os nossa pergunta,
tínham os em m ente mais do que chegamos a perguntar (“De que form a saltamos
de um a afirm ativa derivada da observação para um a teoria?”). A parentem ente, o
que queríam os perguntar era; “Como saltamos de um a afirm ativa derivada da o b ­
servação para um a "b o a " teoria?” A resposta seria: “Saltando prim eiro para um a
teoria qualquer-, depois, testando essa teoria, para ver se ela é b o a ou m á — isto é,
aplicando reiteradam ente o método crítico, de modo a elim inar m uitas teorias
inadequadas e inventando muitas teorias novas”. Nem todos são capazes disso, mas
não há outro meio.

21 — W i t t g e n s t e i n a i n d a p e n s a v a a s s im e m 1 9 4 6 .
22 V id e n o t a a n t e r i o r s o b r e o a s s u n to , n e s te m e s m o c a p .
86 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

Há outras perguntas que são tam bém propostas. Já se disse que o problem a
original da indução é o da sua ju s tific a ç ã o — como justificar a evidência indutiva.
Se responderm os alegando que a cham ada “inferência indutiva” é sem pre inválida
que portanto não pode ser justificada — surge im ediatam ente um novo p ro ­
blem a: como justificar o m étodo das tentativas. A resposta será: esse m étodo e li­
m in a as teo ria s fa ls a s por meio de afirm ativas derivadas da observação; sua jus­
tificação é a relação puram ente lógica da dedutibilidade que nos perm ite afirm ar a
falsidade de assertivas universais se aceitam os a verdade de afirm ativas singulares.
O utra pergunta que tam bém se ouve é a seguinte: por que razão é razoável
preferir afirm ativas que não foram refutadas a outras que puderam ser refutadas?
Tem havido respostas bastante peculiares a essa pergunta — por exemplo, respostas
pragm áticas. Do ponto de vista pragm ático, porém , o problem a não existe, já que
as teorias falsas muitas vezes são eficazes; assim, por exem plo, m uitas das fórm ulas
usadas em engenharia e em navegação são reconhecidam ente falsas, mas como
oferecem excelentes aproxim ações e são fáceis de usar são em pregadas com toda
confiança por pessoas que não ignoram sua falsidade.
> A única resposta correta, portanto, é a mais direta: porque estamos sempre
buscando a verdade (em bora nunca possamos ter a certeza de havê-la encontrado)
e porque a falsidade das teorias refutadas é conhecida ou aceita, enquanto as
teorias ainda não refutadas podem ser verdadeiras. Aliás, não é verdade que te­
nham os preferência por to d a s as teorias não refutadas — somente por aquelas que.
à luz da nossa avaliação crítica, parecem melhores do que suas concorrentes: as que
resolvem nossos problem as foram bem testadas e a respeito das quais pensamos
(m elhor dito: conjecturam os ou esperamos, tendo em vista outras teorias aceitas
provisoriam ente) que continuarão resistindo à experim entação.
Já se afirm ou tam bém que o problem a da indução é o seguinte: “Por que é
ra zo á v el acreditar que o futuro repetirá o passado?” Uma resposta satisfatória a essa
pergunta deveria deixar claro que essa crença é efetivam ente razoável. Respondo
que é sem dúvida razoável acreditar que o futuro diferirá m uito do passado sob
vários pontos de vista; por outro lado, é perfeitam ente razoável a g ir com base na
premissa de que ele repetirá o passado em muitos aspectos; que as leis que foram
bem testadas continuarão em vigor (não temos um a premissa m elhor na qual
pudéssemos basear nossa conduta). No entanto, é tam bém razoável adm itir que es­
sa conduta nos criará às vezes problem as sérios, porque algum as das leis nas quais
hoje temos confiança podem não merecê-la. (Lembrem-se do “sol da meia-noite”!)
Poder-se-ia mesmo dizer que, a julgar pela nossa experiência passada e pelo co­
nhecim ento científico geial de que dispomos, o futuro n ã o será como o passado
possivelmente· na maioi parte dos aspectos. A água algum as vezes não m atará a
sede e o ai sufocai a aqueles que o respirarem . Uma solução aparente para esta
contradição é afiim ar que o luturo se assemelhará ao passado n o s e n tid o d e q u e as
leis n a tu ra is n ã o se a lte ra rã o mas essa não é um a resposta elucidativa, porque ser
nos leferim os a uma lei natural quando estarnos convencidos de que observamos
um a regulai idade imutável; se descobrirmos algum a alteração na form a como ela
s<· manifesta não coiiiinuaiem os a cham á-la de “lei natural". Como é natural, nossa
busca pelas leis naluiais indica que esperamos encontrá-las; acreditam os que elas
existem. Mas nossa crença em qualquer lei natural específica só pode ter como fu n ­
dam ento o fracasso das tentativas críticas feitas para refutá-la.
C IF.N Cl.V C O N JM '' I HAS t R K H l AÇÕKS 87

Creio que aqueles que form ulam o problem a da indução em termos da


das nossas crenças têm toda a razão em não se satisfazerem com um
r a z o a b ilid a d e
desespero cético da razão, hum eano ou pós-hum eano. Precisamos com efeito re­
jeitar o ponto de vista de que a crença na ciência ç tão irracional quanto a crença
nas práticas mágicas primitivas — que os dois tipos de crença im plicam a mesma
aceitação de um a “ideologia total” — tradição ou convenção baseada na fé. Mas
precisamos ter todo o cuidado se form ulam os nosso problem a, como H um e, em
termos da razoabilidade das nossas c re n ç a s. N a verdade, deveriamos dividir o
problem a em três partes o conhecido problem a da dem arcação (como d is tin g u ir
a ciência da m ágica prim itiva); o problem a da racionalidade do p r o c e d im e n to
crítico ou científico (e o papel exercido pela observação); finalm ente, o problem a
da racionalidade da nossa a c e ita ç ã o das teorias, para fins práticos e científicos.
Tivemos a ocasião de propor soluções aqui p ara esses três problem as.

E necessário ter cuidado tam bém para não confundir o problem a da ra ­


zoabilidade do procedim ento científico e da aceitação (tentativa) dos resultados
desse procedim ento isto é, das teorias científicas — com o problem a da ra ­
cionalidade ou não da cre n ç a n a e fic á c ia d esse p r o c e d im e n to . N a prática, na inves­
tigação cientítica, essa crença é inevitável e razoável, já que não existe alternativa
m elhor. Ela é injustificável, porém , num sentido teórico, como dem onstrei (na
seção V). Além disso, se pudéssemos provar, com base em argum entação lógica de
caráter geral, que a busca científica tem grande probabilidade de êxito, não p o ­
deriam os com preender a razão por que o êxito foi sem pre m uito raro, na longa his­
tória dos esforços hum anos dirigidos para o conhecim ento do m undo.

O utra m aneira de propor o problem a da indução é fazê-lo em termos


probabilísticos. Se T é uma teoria e E a evidência em seu favor, podemos indagar a
probabilidade de 1 , em função. de E = P(T, E). H á quem acredite que o problem a
da indução pode sei form ulado assim: como arm ar um cá lc u lo d e p r o b a b ilid a d e
que nos perm ita estim ar a probabilidade de qualquer teoria (T), à luz da evidência
em pírica disponível (E). Seria possível dem onstrar que P(T.E ) cresce com a
acum ulação da evidência em pírica E, alcançando valores elevados valores pelo
menos maiores do que 1.2.

Em T h e L o g ic o f S c ie n tific D isco very expliquei por que acredito que essa


abordagem seja fundam entalm ente errô n ea.23 Para tornar isso bem claro, in-
liodu/i um a distinção entre p r o b a b ilid a d e e g r a u d e c o n fir m a ç ã o (ou co rro b o -
ração) o teim o "confirm ação" tem sido de tal form a usado, e abusado, nos ú l­
timos tempos, que decidi abandoná-lo aos verificacionistas. passando a usar ox-
t lusi\aincnlc a expiessào “grau de corroboraçào"; já o term o “probabilidade" é
melhni em píeg.tdo em alguns dos muitos sentidos que satisfazem o conhecido cál
c ulo de ptobabiluladc axiom ati/ado. por exem plo, por Kavnes, Jeffrevs e poi
mim mesmo Natui alm enie. a esiolha da term inologia não será decisiva, desde que
não se presum a, de form a acrítica, que o “grau de corroboração” deve ser tam ­
bém um a pioliabilidatle isto e. que precise satisla/er o cálculo de probabilidade. 23

23 I . . S c . D ., c a p . X . e s p e c i a l m c n t e s e ç õ e s 8 0 a 8 3 ; e t a m b é m a s e ç ã o 3 4 . V id e t a m b é m m i n h a n o ta
s o b r e " l ' m C o n j u n t o d e A x io m a s I n d e p e n d e n t e s p a r a a P r o b a b i l i d a d e " , in M ind, N .S . 4 7 , 1 9 3 8 , p á g .
2 7 5 ).
88 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

No m eu livro expliquei por que razão nos interessamos por teorias que
apresentam um g r a u d e c o r ro b o ra ç ã o e le v a d o . Expliquei tam bém por que seria um
erro concluir daí que estamos interessados em teorias a lta m e n te p r o v á v e is , lem ­
brando que a probabilidade de um a afirm ativa (ou de um conjunto de afirm ativas)
é tanto m aior quanto menos ela inform ar; é o inverso do seu conteúdo ou poder
dedutivo — e, por conseguinte, da sua capacidade dê explicação. Por isso, toda
afirm ativa interessante e poderosa terá necessariam ente um a probabilidade re­
duzida — e vice-versa. Assim, um a afirm ativa de alta probabilidade terá pouco in ­
teresse científico, porque dirá pouco, terá pouca capacidade de explicação. Em bora
procurem os teorias com um grau elevado de corroboração, c o m o c ie n tista s n ã o e s­
ta m o s in te re ssa d o s e m te o ria s d e a lta p r o b a b ilid a d e , m a s s im e m e x p lic a ç õ e s; isto
.24 O ponto de vista oposto — de que a
é: q u e r e m o s te o ria s p o d e ro sa s e im p r o v á v e is
ciência procura a alta probabilidade — é um desenvolvimento característico do
verificacionismo: se não podemos verificar um a teoria, ou certificar-nos dela por
meio da indução, voltam o-nos para a probabilidade como um a espécie de E rsa tz.
de substituição da certeza, na esperança de que a indução poderá nos d ar pelo
menos um a certa garantia.
Examinei os dois problem as da dem arcação e da indução de form a exten­
siva. Contudo, como estou procurando relatar o trabalho que realizei neste cam po,
terei que acrescentar, num apêndice, algum as palavras sobre outros problem as aos
quais me dediquei entre 1934 e 1953. Fui levado à m aior parte desses problem as
pela tentativa de exam inar quais seriam as conseqüências das soluções apresentadas
aos dois problem as básicos — da dem arcação e da indução. O tem po não me p er­
m ite continuar a narrativa, nem contar-lhes como os antigos problem as deram
origem a novos problem as. Como não posso sequer dar início aqui a um exame
desses novos problem as, terei que lim itar-m e a fazer um a lista deles, com algum as
palavras de explicação. Contudo, mesmo um a lista simples como esta poderá ter
sua utilidade, servindo para dar um a idéia da fertilidade do m étodo que em-
preguei. Ilustrará a aparência que têm nossos problem as e poderá m ostrar quantos
problem as existem, convencendo-nos assim de que não é necessário que nos
preocupem os em saber se Os problem as filosóficos existem realm ente, ou em saber
em que consiste a filosofia. Por im plicação, essa lista contém um a desculpa pela
m inha falta de disposição para rom per com a antiga tradição que consiste em ten ­
tar resolver os problem as com a ajuda de argum entos racionais, em m inha inca­
pacidade de participar plenam ente de certos desenvolvimentos, tendências e in ­
clinações da filosofia contem porânea. 24
2 4 — U m a d e f i n i ç ã o p r o b a b i l í s t i c a . (v id e n o t a s e g u i n t e ) d e C ( T ,E ) — is to é , d o g r a u d e c o r r o b o r a ç ã o
( d e u m a t e o r i a T , r e l a c i o n a d a c o m a e v id ê n c ia E ) — q u e s a tis f a z a s e x ig ê n c ia s i n d i c a d a s e m L . S c . D .,
s e ç õ e s 82 e 8 3 , é a s e g u in t e :
C ( T .E ) = E ( T ,E ) (1 + P ( T ) P ( T .E )
o n d e E ( T ,E ) = ( P ( Ε ,Τ ) — P ( E ) ) Ί ( P ( E .T ) + P (E )) m e d e , d e m o d o n ã o a d itiv o , b p o d e r e x p li-
c a t ó r i o d e T c o m r e l a ç ã o a E : N o te -s e q u e C ( T ,E ) n ã o é u m a p r o b a b i l i d a d e , p o d e t e r v a lo r e n t r e — 1
( r e f u t a ç ã o d e T p o r E ) e C ( T , T ) 4 Ί 1. A f ir m a t iv a s T e n u n c i a d a s c o m o le is e q u e n ã o p o d e m s e r
v e r if i c a d a s n ã o c h e g a m a a l c a n ç a r C ( T . E ) = c ( T , T ) , c o m b a s e n a e v id ê n c ia e m p í r i c a E . C ( T . T ) é
o grau de corroborabilidade d e T , ig u a l a o grau de te sta b ü id a d e, o u a o conteúdo d e T . D e v id o à s
e x ig ê n c ia s i m p l i c a d a s p e lo p o n t o (6 ), n o f im d a s e ç ã o I, a c i m a , n ã o c r e io p o r é m q u e s e ja p o s s ív e l f o r ­
m a l i z a r c o m p l e t a m e n t e a id é ia d a corroboração ( o u , c o m o c o s tu m a v a d iz e r a n te s , d a confirm ação).
A c r e s c e n t a d o e m 1 9 5 5 : V id e t a m b é m m i n h a n o t a “G r a u d e C o n f i r m a ç ã o " , n o B ritish J o u rn a l f o r the
Phtlosophy o f Science, 5 , 1 9 5 4 , p á g . 1 4 3 . C o n s e g u i s i m p l i f i c a r a d e f i n i ç ã o d a s e g u in t e f o r m a :
C ( Τ ,Ε ) ( P ( Ε ,Τ ) - P (E ) / (P ( Ε ,Τ ) - P ( E , T ) + P (E ))
V id e t a m b é m o B .J .P .S ., 6 , 1 9 5 5 , p á g . 56 .
Apêndice
ALGUNS PROBLEM AS DA FILOSOFIA DA CIÊNCIA
Os primeiros três itens desta lista de problem as adicionais se relacionam com
o cálculo de probabilidade.
(1) Q uando escreví T h e
T e o ria p r o b a b ilís tic a b a se a d a n a fr e q u ê n c ia . L o g ic
estava interessado em desenvolver um a teoria da p ro b a­
o f S c ie n tific D isco very,
bilidade consistente, como ela é em pregada na ciência: quer dizer, um a teoria
probabilística estatística, baseada na freqüência. Mas em preguei tam bém outro
conceito, que denom inei “probabilidade lógica”. Senti a necessidade de generalizar
— de chegar a um a teoria form al da probabilidade que permitisse diferentes i n te r ­
p re ta ç õ e s: a) como um a teoria da probabilidade lógica de afirm ativas relacionadas
com determ inada evidência, incluindo um a teoria da probabilidade lógica absoluta
— isto é, da m edida da probabilidade de um a afirm ativa baseada em evidência
zero; b) como um a teoria da probabilidade de eventos de qualquer conjunto de
eventos. Para solucionar esse problem a, elaborei um a teoria bastante simples, que
perm ite um certo núm ero de interpretações adicionais, podendo ser usada como
um cálculo do conteúdG, de sistemas dedutivos ou de classes (de álgebra booleana);
ou ainda como cálculo de in c lin a ç õ e s (p r o p e n s itie s ). 2525

2 5 — V id e m i n h a n o t a e m M ind, loc. cit. O s is te m a a x i o m á t i c o q u e a p a r e c e a li p a r a a p r o b a b i l i d a d e


e l e m e n t a r ( n ã o c o n t í n u a ) p o d e s e r s im p l i f i c a d o d a s e g u i n t e f o r m a ( " x ” d e n o t a o c o m p l e m e n t o d e x ; “ x y ”
d e n o t a a in t e r s e c ç ã o o u c o n j u n ç ã o d e x e y):

( A l ) P ( x y ) > P <yx) c o m u ta ç ã o
( A 2 ) P ( x ( y z ) ) > P ((x y ) z) a s s o c ia ç ã o
(A 3 ) P (x x ) > P (x ) ta u to lo g ia
(B l)P (x ) > P (x y ) m o n o to n ia
( B 2 ) P (x y ) + P (x y ) = P (x ) a d iç ã o

( B 3 ) (x ) (E y ) ( P ( y ) f O e P (x y ) = P (x ) P (y ) m u ltip lic a ç ã o

( C l ) S e P (y ) Φ O , e n t ã o P ( x ,y ) = P ( x y ) / P (y )

( C 2 ) S e P (y ) O , e n t ã o P ( x ,y ) = P ( χ , χ ) = P (y .y ) = d e fin iç ã o d a p r o b a b ilid a d e re la tiv a .

O a x i o m a C 2 é v á lid o , n e s s a f o r m a , só p a r a a t e o r i a f i n i t i s t a ; p o d e s e r o m i t i d o , d e s d e q u e e s te ja m o s
p r e p a r a d o s p a r a a c e i t a r u m a c o n d i ç ã o ta l c o m o P (y) O n a m a io r p a r t e d o s te o re m a s s o b re a p r o ­
b a b i l i d a d e r e l a t i v a . P a r a a p r o b a b i l i d a d e re la tiv a , (A l) — (B 2 ) e ( C l ) — ( C 2 ) é o s u f ic ie n te ; ( B 3 ) n ã o é
90 CO N|F.CT I RAS K R K F IT A Ç O E S
(2) O problem a da in te r p r e ta ç ã o d a p r o b a b ilid a d e e m te r m o s d e in c li­
n a çõ es teve origem no m eu interesse pela teoria quântica. Acredita-se geralm ente
que a teoria quântica precisa ser interpretada estatisticam ente; não há dúvida de
que a estatística é um instrum ento essencial para os testes em píricos. Neste ponto,
porém , considero que os perigos da teoria do significado que se baseia na testa-
bilidade se tornam bastante claros. Em bora os testes da teoria sejam estatísticos, e
em bora a própria teoria (por exemplo, a equação de Schrodinger) possa im plicar
conseqüências estatísticas, não é necessário dar-lhe um a significação estatística:
pode-se ter exemplos de inclinações (p r o p e n s itie s ) objetivas (semelhantes a forças
generalizadas) e de “campos de inclinações” (fie ld s o f p r o p e n s itie s ) , mensuráveis
por processos estatísticos sem que em si mesmos eles tenham caráter estatístico.
(Vide o últim o parágrafo do cap. 3 deste livro).
( 3 ) A estatística é em pregada de m odo geral, nesses casos, em te ste s e m ­
p írico s de teorias que, em si mesmas, não precisam ser puram ente estatísticas — o
que levanta o problem a da r e fu ta b ih d a d e d a s a fir m a tiv a s esta tística s, tratado (mas
não de form a com pletam ente satisfatória) na edição de 1 9 3 4 de T h e L o g ic o f
S c ie n tific D iscovery. Descobri mais tarde, porém , que naquele livro se encontram ,
.prontos para ser usados, todos os elementos necessários para elaborar um a solução
satisfatória; alguns exemplos que fornecí perm item a caracterização m atem ática de
um a classe de infinitas seqüências casuais que são, num certo sentido, as s e q ü ê n c ia s
m a is cu rta s do seu tipo. 26 *1

n e c e s s á r io . P a r a a p r o b a b i l i d a d e a b s o l u t a , ( A l ) — (B 3 ) é n e c e s s á r io e s u f ic ie n te : s e m ( B 3 ) n ã o s e r á p o s ­
sív el, p o r e x e m p l o , d e r i v a r a d e f in iç ã o d o a b s o lu t o e m t e r m o s d e p r o b a b i l i d a d e r e l a t i v a ,

P ( χ ) = P (x , x x )

n e m s e u c o r o l á r i o m a is f r a c o

(x ) (F.y) (P (y) ψ O e .P (x ) = P (x , y))


d o q u a l (B 3 ) é o r e s u l t a d o i m e d i a t o . A s s im ,(B 3 ), c o m o 't o d o s o s o u t r o s a x io m a s , c o m a p o s s ív e l e x c e ç ã o
d e ( C 2 ), e x p r e s s a p a r t e d o s e n t i d o d e s e ja d o d o s c o n c e ito s e n v o lv id o s , e n ã o d e v e m o s c o n s i d e r a r 1 P (x ) o u
1 P (x , y), q u e s ã o d e riv á v e is d e ( B l ) , c o m (B 3 ) o u c o m ( C l ) , “c o n v e n ç õ e s n ã o e s s e n c ia is ” ( c o m o C a r n a p
e o u t r o s j á s u g e r i r a m ) . A c r e s c e n ta d o e m 1 9 5 5 : D e s e n v o lv í m a is t a r d e u m s is te m a d e a x io m a s p a r a a
p robabilidade relativa q u e p o d e s e r a p l i c a d o a s is te m a s f in i to s o u in f i n ito s ( n o q u a l a p r o b a b i l i d a d e a b ­
s o lu ta p o d e s e r d e f i n i d a c o m o n a p e n ú l t i m a f ó r m u l a a c i m a ) . O s a x i o m a s s ã o :

( B l ) P í x .z ) ^ P (x y .z )

( B 2 ) S e P (y .v ) φ P ( u ,v ) . e n t ã o P (x .v ) ~ P ( A “ ; - P (v .y )

(B 3 ) P (x v .z ) =- P ( x .v /) P ( v , z )

( C l ) P ( x .x ) P (y .v )

( D l ) Se ((u ) P (x ,u ) - P ( v .u ) . e n tã o P ( u .x ) P (w . s )

( K l ) (K x ) (K y) ( E u ) (E w ) P ( x .y ) - P ( u .w )

Esse s is te m a é u m p o u c o m e lh o r d o q u e o p u b l i c a d o e m B. J . P . S . , 6, 1 9 5 5 , p á g . 5 6 . O “ p o s t u l a d o 3 ” é
c h a m a d o a q u i “D l" .

Ac r e s c e n t a d o e m 1 9 6 1 : L’m t r a t a m e n t o b a s t a n t e c o m p l e t o d e t o d a s e s ta s q u e s tõ e s p o d e r á s e r e n c o n t r a d o
n u s n o v o s a p ê n d i c e s d e L . 3 c . 1).

26 \ id e 1. Sc . 1 ).. p á g . 163 (s e ç ã o 5 5 ) e e s p e c i a l m e n t e o n o v o a p ê n d i c e * xvi.


A LG U N S P R O B I I V \S !>.\ FILO SO FIA ΠΛ CIF.NCIA 91

(4) Há um certo núm ero de problem as adicionais relacionados com a in ter­


pretação do form alism o de um a teoria quântica. N um dos capítulos de T h e L o g ic
o f S c ie n tific D isco ve ry critiquei a interpretação “oficial” — e ainda estou conven­
cido de que m inha crítica é válida, exceto num ponto: um exem plo que usei, er-
radam ente (na seção 77). Mas, desde que escreví aquele texto, Einstein, Podolski e
Rosen publicaram um experim ento m ental que pode substituir m eu exemplo —
em bora a tendência desses autores (determ inista) seja bem diferente da m inha. A
m eu ver, a crença de Einstein no determ inism o (que tive a oportunidade de debater
com ele) não tem fundam ento e é infeliz: enfraquece sua crítica que, deve-se e n ­
fatizar, é bastante independente do seu determ inism o.
(5) Q uanto ao problem a do determ inism o propriam ente dito, tenho p ro ­
curado dem onstrar que mesmo a física clássica, que é determ inista num certo sen­
tido p r im a fa c ie , pode ser interpretada erroneam ente se usada para sustentar um a
visão determ inista do m undo físico, no sentido de Laplace.
(6) Sob esse aspecto, posso m encionar tam bém o p r o b le m a d a s i m p l i c i d a d e
a sim plicidade de um a teoria, que procuro relacionar com seu conteúdo. Pode-
se m ostrar que a sim plicidade de um a teoria, como é habitualm ente cham ada, está
associada à im probabilidade lógica e não à probabilidade, como m uitas vezes se' -
tem suposto. Isso, de fato, nos perm ite deduzir, a p artir da teoria da ciência es *
boçada acim a, a razão pela qual é sempre vantajoso testar as teorias mais simples^
em prim eiro lugar. Elas são as que m elhor se subm etem a testes severos: um a teoria
simples tem sempre m aior grau de testabilidade do que um a mais com plicada. 27
(Creio, contudo, que isso não resolve todos os problem as a respeito da sim plicidade.
Vide tam bém o cap. 10, seção xviii.)
(7) O problem a do caráter a d h o c de um a hipótese, e dos graus que esse
caráter pode assumir, está intim am ente ligado ao problem a m encionado acima·.
Pode-se m ostrar que a m etodologia da ciência (assim como sua história) se torna
inteligível num m aior nível de detalham ento se presum irm os que o objetivo da
ciência é obter teorias explicativas de caráter a d h o c o menos acentuado possível:
ao contrário da Teoria “m á”, a “b o a” teoria não tem caráter a d h o c . Por outro
lado, pode-se m ostrar que as teorias probabilísticas da indução im plicam inadver-
tidam ente (porém necessariam ente) um a regra inaceitável: usa-se sempre a teoria
de caráter a d h o c mais acentuado, isto é, a que transcende o menos possível a
evidência disponível. (Vide tam bém m eu trabalho. " T h e A im o f S c ie n c e ", m en ­
cionado em nota, mais adiante.)
(8) Um problem a im portante é o dos estratos de hipóteses explicativas e das
relações entre eles, que encontram os nas ciências de m aior desenvolvimento teórico.
Afirma-se com frequência que a teoria de Newton pode ser induzida ou mesmo
deduzida das leis de Kepler e Galileu. Pode-se dem onstrar porém que a teoria de
Newton (inclusive a teoria do espaço absoluto) contradiz, em term os estritos, a de
Kepler (mesmo se nos restringirm os ao problem a dos dois corpos,28 ignorando a

27 I b i d . , s e ç õ e s 41 a 4 6 . V id e t a m b é m c a p . 10, s e ç ã o x v iii.

28 A s c o n t r a d i ç õ e s m e n c i o n a d a s f o r a m o b s e r v a d a s , n o c a s o d o p r o b l e m a d e v á r io s c o r p o s , p o r P
D u b e m , T h e A im a n d S tructure o f Physical T heory ( 1 9 0 5 ; t r a d u z i d o p a r a o in g lê s p o r P . P . W ie n e r ,
92 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

atração m útua entre os planetas) e a de G alileu. em bora, obviam ente, aproxi­


mações dessas duas teorias possam ser deduzidas da de Newton. Mas é evidente
que, partindo de premissas consistentes, um a inferência dedutiva ou indutiva não
pode levar a conclusão que contradiga essas teorias. Essas considerações nos p er­
m item analisar as relações lógicas entre estratos de teorias, assim como a idéia de
a p r o x im a ç ã o em seus dois sentidos: (a) a teoria x é um a “aproxim ação" da teoria y;
e (b) a teoria x é um a “boa aproxim ação dos fatos”. (Vide tam bém o cap. 10.)

(9) A doutrina do o p e r a c io n a lis m o , ou seja, de que os conceitos teóricos


devem ser definidos em termos de medição de operações, suscita um a série de
problem as interessantes. Contra essa doutrina, pode-se m ostrar que a medição
p re ssu p õ e a e x istê n c ia d e teo ria s. N ão há m edição sem teoria, e nenhum a operação
pode ser satisfatoriam ente descrita em termos não teóricos. As tentativas de fazer
isso são sem pre circulares; por exem plo: para descrever a medição do com prim en­
to, precisa-se de um a teoria (rudim entar) do calor e da medição da tem peratura;
esta, no entanto im plica o uso de m edidas de com prim ento.
A análise do o p e ra c io n a lism o revela a necessidade de um a te o ria g e r a l d e
m e d iç ã o ; um a teoria que não considere ingenuam ente a prática da m edição como
“d ad a” , mas que analise sua função nos testes de hipóteses científicas. Isso pode ser
realizado m m a ajuda da doutrina dos graus de testabilidade.

A doutrina do b e h a v io rism o , isto é, de que as teorias devem ser form uladas


em termos de com portam entos prováveis, um a vez que todas as afirm ativas resul­
tantes de testes descrevem com portam entos, está intim am ente ligada ao opera­
cionalismo, colocando-se em paralelo com ele. Mas essa inferência é tão pouco
válida quanto a da doutrina fenomenológica que afirm a que as teorias devem ser
form uladas em termos de observações prováveis, um a vez que todas as afirm ativas
resultantes de testes são obtidas m ediante a observação. Essas doutrinas são sempre
formas da teoria do sentido baseada na verificabilidade, isto é, do indútivismo.
O in s tr u m e n ta lis m o , doutrina que interpreta as teorias científicas como ins­
trum entos práticos destinados a finalidades tais como a previsão de acontecim entos
iminentes, está tam bém relacionada intim am ente com o operacionalism o. E
inegável que as teorias podem ser usadas desse modo; o instrum entalism o, contudo,
afirm a que elas são m elhor com preendidas como instrum entos; tenho procurado
dem onstrar que essa visão é errônea com parando as d iversa s fu n ç õ e s das fórm ulas
da ciência pura e aplicada. Nesse contexto, pode-se igualm ente resolver o problem a
da função teó ric a , isto é, não prática, das previsões. (Vide o cap. 3, seção 5.)

1 9 5 4 ). N o c a s o d o p r o b l e m a d e d o is c o rp o s , a s c o n t r a d i ç õ e s s u r g e m e m r e l a ç ã o à t e r c e i r a le i d e K e p le r ,
q u e p o d e s e r r e f o r m u l a d a d a s e g u in t e f o r m a : “ C o n s id e r e - s e u m c o n j u n t o q u a l q u e r S d e d o is c o r p o s , d e
m a n e i r a q u e u m d o s c o r p o s p o s s u a m a s s a ig u a l à d o n o s so S o l; e n t ã o , / T ^ = co n sta n te , p a r a q u a l ­
q u e r c o n j u n t o S." E ssa t e o r i a c o n t r a d i z n i t i d a m e n t e a d e N e w t o n , q u e d á , p a r a u n i d a d e s a d e q u a d a ­
m e n t e d e f i n i d a s , α ^/Τ ? · = m 0 + m j ( o n d e m 0 = m a s s a d o S o l — co n sta n te , e m ] = m a s s a d o s e g u n ­
d o c o r p o , q u e v a r ia s e g u n d o o c o r p o q u e o p r o b l e m a c o n s id e r e ) . “ a ^ / T ^ = c o n s t a n t e ” , c o n t u d o , é u m a
a p r o x i m a ç ã o e x c e le n te , desde que a m a s s a v a r iá v e l d o s e g u n d o c o r p o s e ja s e m p r e d e s p r e z ív e l e m c o m ­
p a r a ç ã o c o m a d o n o s so S o l. (V id e t a m b é m m e u t r a b a l h o “ T he A im o f Science", R atio. 1, 1 9 5 7 , p á g s . 2 4
e s e g u in te s ; a s e ç ã o 15 d o pós-escrito a o m e u liv ro Logic o f Scientific Discovery.)
A L G U N S P R O B LE M A S DA F IL O SO FIA DA C IÊ N C IA 93

É interessante analisar, do mesmo ponto de vista, a função da língua como


instrum ento. Ao em preender essa análise, descobrimos im ediatam ente que usamos
a linguagem descritiva para f a l a r so b re o m u n d o , o que fornece novos argum entos
em favor do re a lism o .
Acredito que o operacionalism o e o instrum entalism o devem ser substituídos
pelo “teoricism o”, se assim o posso cham ar: o reconhecim ento de que operam os
sempre dentro de um a complexa estrutura de teorias; que nosso objetivo não é sim ­
plesm ente encontrar co rrela çõ es, mas sim ex p lic a ç õ e s.
(10) O próprio problem a da e x p lic a ç ã o . Tem-se afirm ado com freqüência
que a explicação científica é a redução do desconhecido p ara o que passamos a
conhecer. Se nos referimos à ciência pura, nenhum a afirm ação podería estar mais
longe da verdade. Pode-se afirm ar, sem paradoxo, que, ao contrário, a explicação
científica é a redução do conhecido para o desconhecido. N a ciência pura, em
oposição a um a ciência aplicada que a considere como “d ad a” ou “conhecida”, a
explicação é sem pre a redução de certas hipóteses a outras de m aior grau de
universalidade; de fatos ou teorias “conhecidos” a suposições que ainda conhecemos
m uito pouco, e que precisam ser testadas. Neste contexto, são exemplos de grande
interesse a análise do grau de capacidade explicativa e da relação entre a expli­
cação genuinae fraudulenta, assim como entre a explicação e a previsão.
(11) Isso me leva ao problem a da relação entre explicação nas ciências
naturais e explicação histórica (que, de m aneira estranha, é logicam ente um tanto
análogo ao problem a da explicação na ciência pura e aplicada); e ao vasto núm ero
de problem as no cam po da m etodologia das ciências sociais, especialm ente os da
p r e d iç ã o h istó ric a , h isto ric ism o e d e te r m in is m o h istó ric o , e re la tiv is m o h istó ric o .
Eles estão, por sua vez, ligados aos problem as de ordem mais genérica do deter­
minismo e do relativismo, inclusive os problem as de relativismo lingüístico.29
(12) Um outro problem a é a análise do que é conhecido como “objetividade
científica”. T enho tratado desse problem a em diversas oportunidades especialm en­
te em relação à crítica da “sociologia do conhecim ento”, como é ch am ad a.2930
(13) Uma m odalidade particular de solução para o problem a da indução
deve ser novam ente m encionada, (vide seção iv, acim a), pois m erece um a adver­
tência. (Soluções deste tipo são apresentadas, via de regra, sem um a form ulação
clara do problem a que se propõem a resolver.) A visão a que me refiro pode ser
descrita assim: prim eiram ente, pressupõe-se que ninguém duvida seriam ente de
que somos capazes, d e f a t o , de induções bem sucedidas. (M inha sugestão de que is­
so é um m ito, e de que os casos aparentes de indução, quando analisados com
cuidado, revelam-se como aplicações do m étodo das tentativas é tratad a com o des­
prezo que recebem as sugestões com pletam ente irrazoáveis.) Afirma-se, então, que
o papel de um a teoria da indução é descrever e classificar nossos planos de ação ou

2 9 — V id e m e u liv r o Poverty o f H istoricism , 1 9 5 7 , s e ç ã o 2 8 e n o t a s 3 0 a 3 2 ; e o a p ê n d i c e a o s e g u n d o


v o lu m e d e O pen Society ( a d i c i o n a d o à q u a r t a e d i ç ã o , d e 1 9 6 2 ).

3 0 — Poverty o f H istoricism , s e ç ã o 3 2 ; L . Sc. D ., s e ç ã o 8 ; O pen Society, c a p . 2 3 e a p ê n d i c e a o s e g u n d o


v o lu m e ( q u a r ta e d iç ã o ). O s tre c h o s sã o c o m p le m e n ta re s.
94 C O N JE C T U R A S F. R E F U T A Ç Õ E S

procedim entos indutivos e possivelmente discernir os mais eficazes e seguros; qu al­


quer outra justificativa estará deslocada. A visão a que me refiro se caracteriza, por­
tanto, pela alegação de que a distinção entre o problem a factual de descrever a
m aneira pela qual argum entam os indutivam ente ( q u id fa c ti? ) e o de justificar nos­
sos argum entos indutivos (q u id ju ris? ) está deslocada. Afirma-se igualm ente que a
justificação necessária é irrazoável, pois não podemos esperar que argum entos in ­
dutivos sejam “válidos” no mesmo sentido que o são os argum entos dedutivos: a in ­
dução sim plesm ente não é dedução; é irrazoável exigir dela um a conform idade aos
padrões da validade lógica — isto é, dedutiva. Devemos, julgá-la, portanto, segun­
do seus próprios padrões — padrões indutivos — de razoabilidade.
Considero essa defesa da indução um equívoco. Ela não só confunde um
mito com um fato, e o fato alegado com um padrão de racionalidade, como tam ­
bém propaga um princípio que pode ser usado para defender q u a lq u e r dogm a
contra q u a lq u e r crítica. Além disso, engana-se quanto ao “s ta tu s " da lógica form al
ou “dedutiva” . Está tão enganada quanto aqueles que viam nela a sistematização
das "leis de pensam ento" factuais, ou seja, psicológicas. Defendo a posição de que a
indução não se torna válida a p artir do m om ento em que decidimos adotar suas
regras como padrão, ou decretam os que devem ser aceitas; a indução é válida p o r­
que adota e incorpora as regras pelas quais a verdade é transm itida de premissas
(logicam ente mais fortes) para conclusões (logicam ente m ais fracas), e pelas quais a
falsidade é retransm itida das conclusões para as premissas. Essa retransm issão faz
da lógica form al o O rg a n o n d a c rític a r a c io n a l — isto é, da refutação.
Aos que sustentam a visão que estou criticando, pode-se fazer um a conces­
são no seguinte ponto: ao argum entar das premissas para a conclusão (a “direção
dedutiva”), passamos da veracidade, certeza ou probabilidade das premissas para a
correspondente propriedade da conclusão; por outro lado, se argum entam os da
conclusão para as premissas (num a “direção indutiva”), passamos da falsidade, in ­
certeza, im possibilidade ou im probabilidade da conclusão para a correspondente
propriedade das premissas; em conform idade com o que acabo de afirm ar, deve-se
adm itir que certos critérios (especialmente o da c e rte za ), aplicáveis na direção
dedutiva, não se aplicam aos argum entos na direção indutiva. Mesmo essa concep­
ção se volta, contudo, no final das contas, contra aqueles que sustentam a visão que
critico; há aí um a presunção errônea de que é possível argum entar na direção in ­
dutiva. em bora não se chegue a um a certeza, mas sim a um a p r o b a b ilid a d e de nos­
sas “generalizações". Essa suposição, contudo, é errônea com relação a todas as
idéias intuitivas de probabilidade que já foram sugeridas.
Esta é um a lista de apenas alguns dos problem as da filosofia da ciência que
encontrei no estudo de dois problem as férteis e fundam entais, cuja história p ro ­
curei relatar a q u i.31

31 O ite m (1 3 ) foi a d i c i o n a d o e m 1 9 6 1 . E n t r e 1 9 5 3 , q u a n d o p r o f e r i a c o n f e r ê n c i a , e 1 9 5 5 . q u a n d o
revi s e u te x to im p r e s s o , p a r a as c o r r e ç õ e s t i p o g r á f i c a s , a lis ta d o a p ê n d i c e c r e s c e u c o n s id e r a v e lm e n te ;
o u t r a s c o n t r i b u i ç õ e s r e c e n t e s , q u e t r a t a m t e m a s n ã o in c lu íd o s n a lis ta , e s tã o n e s te v o lu m e ( e s p e c i a l m e n ­
te n o c a p . 10) e e m o u t r o s liv ro s m e u s ( v id e o s n o v o s a p ê n d i c e s d e L. Sc. D. e d o s e g u n d o v o lu m e d e
Open Society, e s te ú ltim o , a d i c i o n a d o à q u a r t a e d iç ã o d e 1 9 6 2 ). V id e t a m b é m m e u t r a b a l h o “Proba-
bility M agic, or Know ledge out o f Ig n o ra n ce" . c m D ialectica , 11, 1 9 5 7 , p p . 3 5 4 - 3 7 4 .
2. A Natureza dos Problemas
Filosóficos e suas Raízes Científicas*
i
Foi com algum a hesitação que decidi tom ar como ponto de partida para es­
ta conferência a situação atual da filosofia inglesa, pois acredito que a função do
cientista e do filósofo é solucionar problem as científicos ou filosóficos e não falar
sobre o que ele e outros filósofos estão fazendo ou deveríam fazer. Q ualquer ten ­
tativa honesta e dedicada de resolver um problem a científico ou filosófico, mesmo
que não tenha bons resultados, parece-m e m ais im portante do que um debate
sobre problem a como a natureza da ciência ou da filosofia. Mesmo se nos dirigir­
mos a esta últim a questão de form a mais precisa (indagando, por exemplo, qual o
caráter dos problem as filosóficos), m inha inclinação seria não d ar m uita im portân­
cia a esse exercício: acho que ele tem pouco peso, ainda quando com parado com
um problem a m enor da filosofia — como o de saber se toda discussão e toda crítica
devem partir sem pre de “prem issas” ou “suposições” que perm anecem em si mes­
mas fora do d eb ate.1
Q uando disse que a indagação sobre o caráter dos problem as filosóficos é
mais apropriada do que a pergunta “Que é a filosofia?”, quis insinuar um a das
razões da futilidade da atual controvérsia a respeito da natureza da filosofia: a
crença ingênua de que existe' de fato um a entidade que podemos cham ar de “fi­
losofia" ou de “atividade filosófica”, com um a “natureza", essência ou caráter
determ inado. A idéia de que a física, a biologia e a arqueologia existem por si mes­
mas, como cam pos de estudo ou “disciplinas” distinguíveis entre si pela m atéria que
investigam, parece-m e resíduo da época em que se acreditava que qualquer teoria
precisava partir de um a definição do seu próprio co n teúd o .*12 Na verdade não é
possível distinguir disciplinas em função da m atéria de que tratam ; elas se distin­
guem umas das outras em parte por razões históricas e de conveniência adminis-

* P r o n u n c i a m e n t o n a q u a l i d a d e d e p r e s i d e n t e d o G r u p o d e F ilo s o f ia d a C iê n c ia d a S o c i e d a d e B r i t â n i c a
p a r a a H i s tó r ia d a C iê n c ia ( h o je c o n h e c i d o c o m o S o c ie d a d e B r i t â n i c a p a r a a F ilo s o f ia d a C ie 'n c ia ) .
P u b l i c a d o p e la p r i m e i r a vez n o T he B ritish Jo u rn a l f o r th e P hilosophy o f Science, 3, 1 9 5 2 .

1 T r a t a - s e d e u m p r o b l e m a m e n o r , n a m i n h a o p i n i ã o , p o r q u e p o d e s e r re s o lv id o f a c i l m e n t e , c o m a
r e je iç ã o d a d o u t r i n a ( “ r e la t i v i s t a " ) q u e d á o r ig e m a e ss a in d a g a ç ã o . A r e s p o s ta , p o r t a n t o , s e r á n e g a t iv a
(v id e o a p ê n d i c e a o v o l. 2 o d e O pen Society, a c r e s c e n t a d o à 4 a e d i ç ã o d o liv r o d e 1 9 6 2 ).

2 E s te é o p o n t o d e v is ta q u e c h a m e i d e " e s s e n c ia lis ta ’' (c f. p o r e x e m p lo os c a p s . 2 e 11 d e O pen


Society, e a s e ç ã o 10 d e T h e Poverty o f H istoricism ).
96 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

trativa (como a organização do ensino e do corpo docente), em parte as teorias


que form ulam os p ara solucionar nossos problem as têm a tendência3 de se desenvol­
ver sob a form a de sistemas unificados. Mas essa classificação e essas distinções são
superficiais e têm relativam ente pouca im portância. E s tu d a m o s p r o b le m a s , n ã o
m a té r ia s: problem as que podem ultrapassar as fronteiras de qualquer m atéria ou
disciplina.
Em bora esse fato possa parecer óbvio para algum as pessoas, ele é tão im por­
tante para a presente discussão que vale a pena ilustrá-lo com um exem plo. N ão é
preciso dizer que os problem as estudados pelos geólogos — como a avaliação da
possibilidade de encontrar petróleo ou urânio m im a determ inada região — p re­
cisam ser resolvidos com a assistência de certas teorias e técnicas classificadas o r­
dinariam ente como m atem áticas, físicas e quím icas. É menos evidente porém que
mesmo um a ciência “fundam ental”, como a física atôm ica, pode ter a necessidade
de em pregar um a investigação geológica — técnicas e teorias geológicas — para
resolver problem a relacionado com suas teorias m ais abstratas: por exem plo, o
problem a representado pelo teste de predições da estabilidade ou instabilidade
relativa dos átomos com núm ero atômico par ou ím par.
Estou pronto a adm itir que m uitos problem as “pertencem ” de algum a for­
m a a um a das disciplinas tradicionais, em bora sua solução envolva ás disciplinas
mais diversas. Os dois problem as que m encionei, por exem plo, “pertencem ” à
geologia e à física, respectivam ente. Cada um deles tem origem num a discussão
que é característica da tradição da disciplina em causa — da discussão de algum a
teoria, ou de testes em píricos relacionados com essa teoria; e as teorias, ao con­
trário dos assuntos, podem constituir um a disciplina (que poderiam os descrever
como um a constelação de teorias, um tanto “soltas”, que sofrem constantes d e­
safios, alterações e crescim ento). Mas isso não afeta m eu argum ento no sentido de
que a classificação das disciplinas tem relativam ente pouca im portância: que es­
tudam os p r o b le m a s , não d isc ip lin a s.
Mas, h a v e rá p r o b le m a s filo s ó fic o s ? A posição atual da filosofia inglesa —
m eu ponto de partida — se origina, creio, na doutrina de Ludwig W ittgenstein,
que responde negativam ente, a essa pergunta — todos os problem as genuínos se­
riam científicos; os alegados problem as filosóficos não passariam de pseudopro-
blemas e as alegadas teorias ou proposições filosóficas seriam pseudoteorias e
pseudoproposições: não falsas (se o fossem, suas negações constituiríam verdadeiras
proposições ou teorias) m as simples combinações de palavras sem sen tid o ,45não
mais significativas do que o balbucio inconseqüente de um a criança que não
aprendeu ainda a falar. 5
3 — T e n d ê n c i a q u e p o d e s e r e x p l i c a d a p e lo p r i n c í p i o d e q u e a s e x p lic a ç õ e s te ó r ic a s s ã o tã o m a i s s a ti s ­
f a t ó r i a s q u a n t o m e l h o r a p o i a d a s p o r p r o v a s independentes, p o r q u e só s e n d o m u i t o a b r a n g e n t e p o d e
u m a t e o r i a e n c o n t r a r a p o io e m p r o v a s in d e p e n d e n t e s .
4 — “ T o d o s o s a n i m a i s s ã o ig u a is , m a s a l g u n s s ã o m a is ig u a is d o q u e o u t r o s ” é u m e x c e le n te e x e m p lo d e
u m a e x p r e s s ã o d e s p i d a d e s e n t i d o , n a a c e p ç ã o t é c n i c a d e R u s s e ll e W i t t g e n s t e i n , e m b o r a t e n h a c e r ­
t a m e n t e s e n t i d o n o c o n te x to d e A n im a l F arm d e O r w e ll. É i n t e r e s s a n t e q u e O r w e ll c o n s id e r o u a p o s ­
s i b i l i d a d e d e i n t r o d u z i r u m a l i n g u a g e m , d e u s o o b r i g a t ó r i o , e m q u e a f r a s e “T o d o s o s h o m e n s s ã o
i g u a is ” d e i x a r i a d e t e r s e n ti d o — n a a c e p ç ã o t é c n i c a d e W it t g e n s t e i n .

5 — C o m o W i t t g e n s t e i n d e s c r e v e u s e u p r ó p r i o T ractatus c o m o c a r e n t e d e s e n t i d o ( v id e a n o t a s e g u in t e ) ,
e le a d m i t i u — p e lo m e n o s p o r i m p l i c a ç ã o — a d i f e r e n ç a e n t r e f a l t a d e s e n t i d o r e l e v a n t e e ir r e l e v a n t e , o
q u e n ã o a f e t a s e u p o n t o d e v is ta p r i n c i p a l , q u e e s to u e x a m i n a n d o a q u i , a r e s p e it o d a i n e x is tê n c ia d e
p r o b l e m a s filo s ó fic o s . ( N a s n o t a s d e O pen Society ,e s p e c i a l m e n t e a s d e n . ° s 2 6 , 4 6 , 51 e 5 2 , d o c a p . 1 1 , o
le ito r e n c o n tr a r á u m e x a m e d e o u tra s d o u tr in a s d e W ittg e n s te in ).
A N A T U R E Z A DO S P R O B L E M A S F IL O SÓ FIC O S E SU AS RA ÍZES C IE N T ÍF IC A S 97

Em conseqüência, a filosofia não podería conter nenhum a teoria. De acordo


com W ittgenstein, sua verdadeira natureza não seria a de um a teoria, mas sim a de
um a atividade. A função da filosofia genuína seria desm ascarar os absurdos fi­
losóficos e ensinar as pessoas a falar de modo que faça sentido.
Meu plano consiste em tom ar essa doutrina 6 de W ittgenstein como ponto de
partida. Procurarei explicá-la (na seção II); defendê-la, até certo ponto; e criticá-la
(na seção III). Nas seções IV a XI apresentarei exemplos extraídos da história das
idéias científicas.
Antes de desenvolver m eu plano desejo reafirm ar a convicção de que os
devem tentar resolver problem as filosóficos, em vez de
filó s o fo s d e v e m filo s o fa r —
falar sobre a filosofia. Se a doutrina de W ittgenstein fosse verdadeira, ninguém
podería filosofar, nesse sentido. Se pensasse assim, abandonaria a filosofia. A con­
tece porém que não só estou profundam ente interessado em certos problem as fi­
losóficos (não me im porta m uito se é “correto” cham á-los assim) mas alim ento a es­
perança de poder contribuir — um pouco, e m ediante m uito trabalho — para a
sua solução. A única desculpa que posso dar por estar aqui falando a respeito da
filosofia, em vez de filosofar, é a esperança de que, ao cum prir o program a que me
propus p ara o preparo desta conferência, poderei encontrar um a oportunidade
para filosofàr.
II
Desde a ascensão do hegelianismo tem havido um a perigosa separação entre
a ciência e a filosofia. Acredito que com razão os filósofos têm sido acusados de
“filosofar sem conhecim ento factual” e seus sistemas têm sido descritos como “sim ­
ples fantasias, e até mesmo fantasias imbecis”. 7 Em bora o hegelianismo tenha sido
a influência predom inante no continente europeu e na Inglaterra, a oposição a
Hegel e o desprezo pelo seu caráter pretensioso nunca desapareceram com pleta-
m ente. O hegelianismo foi derrubado por um filósofo que — como Leibniz, Ber-
keley e Kant — tinha um sólido conhecim ento da ciência e especialm ente da
m atem ática: B ertrand Russell.

6 — H ã u m a f a l h a q u e se p o d e p e r c e b e r d e s d e lo g o n e s s a d o u t r i n a : e la p r ó p r i a é u m a t e o r i a f ilo s ó fic a
q u e p r e t e n d e t e r s e n t i d o e s e r v e r d a d e i r a . E p o s s ív e l p o r é m q u e e s ta c r í t i c a s e ja u m p o u c o v u l g a r , p o ­
d e n d o s e r r e b a t i d a d e d u a s f o r m a s , p e lo m e n o s : '1) a f i r m a n d o q u e n ã o t e m s e n ti d o e n q u a n t o d o u t r i n a ,
m a s s im q ua a t i v i d a d e (é o q u e a le g a W i t t g e n s t e i n ; n o f im d o s e u T ractatus Logico-P hilosophicus e le
a f i r m a q u e q u e m c o m p r e e n d e u b e m ο Η ν ίο d e v e p e r c e b e r q u e n ã o te m s e n ti d o , r e j e i t a n d o - o c o m o se
a f a s t a u m a e s c a d a d e p o is d e u s á - la p a r a a t i n g i r u m a c e r t a a l t u r a ) ; 2 ) a f i r m a n d o q u e n ã o se t r a t a d e
u m a d o u t r i n a f ilo s ó fic a , m a s s im e m p í r i c a , e n u n c i a n d o o f a t o h is tó r ic o d e q u e to d a s a s a p a r e n t e s
“ te o r i a s ” p r o p o s t a s p e lo s filó s o fo s n ã o se a j u s t a m à s r e g r a s i n e r e n t e s à li n g u a g e m e m q u e s ã o f o r m u l a d a s
( s e n d o , p o r t a n t o , a g r a m a t i c a i s ) ; q u e n ã o é p o s sív e l c o r r i g i r e sse d e f e i t o e q u e to d a s a s t e n t a t i v a s d e
e n u n c i á - l a s c o m p r o p r i e d a d e l e v a r a m à p e r d a d o s e u c a r á t e r filo s ó fic o ( r e v e la n d o - a s , p o r e x e m p lo ,
c o m o tr u í s m o s e m p ír ic o s o u fa ls a s p ro p o s iç õ e s ) . P e n s o q u e e s te s d o is c o n t r a - a r g u m e n t o s r e s g a t a m a
d o u t r i n a d a s u a a l e g a d a in c o n s i s tê n c ia , t o r n a n d o - a s a s s im re s is te n te s a o t i p o d e c r í t i c a m e n c i o n a d o n e s ­
t a n o t a (v id e t a m b é m a s e g u n d a p r ó x i m a n o t a ) .

7 — E s sas d u a s c ita ç õ e s n ã o s ã o d e u m c r í t i c o c ie n tíf ic o ; i r o n i c a m e n t e , c o n s t i t u e m a c a r a c t e r i z a ç ã o ,


p e lo p r ó p r i o H e g e l, d a f ilo s o f ia n a t u r a l d o s e u p r e d e c e s s o r e e x - a m ig o S c h e llin g . C f . O pen Society, n o t a
4 (e te x to ) d o c a p . 2.
98 C O N JE C T U R A S E R E FU T A Ç Õ E S

Russell é tam bém o autor da classificação, estreitam ente relacionada com a


sua fam osa T e o ria do s T ip o s , que fundam enta a visão da filosofia de W ittgenstein:
a classificação (criticada no cap. 14) das expressões lingüísticas em:
1) a fir m a tiv a s v e rd a d e ira s
2) a fir m a tiv a s fa ls a s
3) exp ressõ es d e s p ro v id a s d e s e n tid o , entre as quais seqüências de palavras
semelhantes a proposições: as “pseudoproposições”.
Russell em pregou essa distinção p ara resolver o problem a dos paradoxos
lógicos que tinha descoberto. Para isso era essencial distinguir mais especialmente
entre 2) e 3). Poderiamos dizer, usando a linguagem ordinária, que um a afirm ativa
falsa com o^'3 vezes 4 é igual a 173” ou “Todos os gatos são bois” não tem sentido.
Mas Russell reservou a qualificação “desprovida de sentido” para afirm ativas do
tipo que é preferível não descrever sim plesm ente como “afirm ativas falsas” (com
efeito, a negativa de um a proposição falsa, que tenha sentido, será sem pre ver­
dadeira: mas a negação p r im a fa c ie da pseudoproposição “Todos os gatos são
iguais a 173” é: “alguns gatos não são iguais a 173” —- outra pseudoproposição, tão
insatisfatória quanto a prim eira. A s n e g a tiv a s d e p s e u d o -a fir m a tiv a s são ta m b é m
p s e u d o -a fir m a tiv a s , da mesma form a como as negativas de proposições válidas
(verdadeiras ou falsas) são sempre proposições válidas (falsas ou verdadeiras, res­
pectivam ente).
Foi essa distinção que perm itiu a Russell elim inar os paradoxos (que para
ele eram pseudoproposições sem sentido). Mas W ittgenstein foi além: movido pos­
sivelmente pela sensação de que os filósofos (em especial os filósofos hegelianos) es­
tavam propondo algo m uito sem elhante aos paradoxos da lógica, usou a distinção
de Russell para denunciar to d a filo s o fia como sendo estritam ente se m s e n tid o .
Em conseqüência, não podería haver problem as filosóficos genuínos. Todos
os supostos “problem as filosóficos” poderíam ser classificados em quatro catego­
rias8: 1) os puram ente lógicos ou m atem áticos, que deveríam ser solucionados por
meio de proposições lógicas ou m atem áticas; 2) os factuais, a serem respondidos
com algum a afirm ativa de ciência em pírica; 3) os que com binam 1 e 2;
4) pseudoproblem as sem sentido, tais como: “Todos os gatos são iguais a 173?”
“Sócrates é idêntico?” ou “Existirá um Sócrates invisível, intocável e aparentem ente
impossível de ser conhecido?”
A idéia de W ittgenstein de erradicar a filosofia (e a teologia) com a ajuda de
um a adaptação da teoria dos tipos de Russell era engenhosa e original (ainda mais
radical do que o positivismo do Comte, do qual se aproxim a m u ito ).9 Essa idéia
inspirou um a vigorosa escola contem porânea de analistas da linguagem que her­
daram sua crença de que não existem problem as filosóficos genuínos; de que tudo
8 — W i t t g e n s t e i n c o n t i n u a v a s u s t e n t a n d o a d o u t r i n a d a i n e x is tê n c ia d e “ p r o b l e m a s f ilo s ó f ic o s ” , c o m a
a r g u m e n t a ç ã o a q u i d e s c r i t a , q u a n d o o vi p e la ú l t i m a vez ( è m 1 9 4 6 , p r e s i d i n d o u m t e m p e s tu o s o e n c o n ­
tr o d o C l u b e d e C iê n c ia s M o r a is d e C a m b r i d g e , n a o p o r t u n i d a d e d a a p r e s e n t a ç ã o d e u m t r a b a l h o q u e
e s c re v í s o b r e “ E x is te m p r o b l e m a s filo s ó fic o s ? " ); c o m o n u n c a vi n e n h u m d o s s e u s m a n u s c r i t o s in é d ito s ,
c ir c u l a d o s p a r t i c u l a r m e n t e p o r a lg u n s d o s s e u s a lu n o s , fic o a i m a g i n a r se c h e g o u a a l t e r a r o q u e d e s ­
c r e v o a q u i c o m o s u a “ d o u t r i n a ” . S o b r e e s te p o n t o , c o n t u d o — a p a r t e m a is f u n d a m e n t a l d o q u e e n ­
s in o u , e d e m a i o r in f l u ê n c i a — e n c o n t r e i s e u p o n t o d e v is ta i n a l t e r a d o .
9 — C f. n o ta 51 (2 ), c a p . 11. Open Society
A N A T U R E Z A DO S P R O B L E M A S F IL O SÓ FIC O S E SU A S RA ÍZES C IE N T ÍF IC A S 99

que o filósofo pode fazer é desm ascarar e dissolver os quebra-cabeças lingüísticos


propostos pela filosofia tradicional.
Meu ponto de vista pessoal sobre o assunto é o de que só continuarei a me
interessar pela filosofia enquanto tiver problem as filosóficos genuínos para resolver.
Não com preendo a atração que pode ter um a filosofia sem problem as. N atural -
m ente, sei que há m uitas pessoas que fazem declarações sem sentido; que caiba a
alguém a tarefa (desagradável) de desm ascarar essas pessoas é concebível, porque a
falta de sentido pode ser perigosa. Acredito porém que algum as pessoas já disseram
coisas sem m uito sentido e que desrespeitavam a gram ática — no entanto extre­
m am ente interessantes e excitantes, mais valiosas talvez do que certas coisas com
sentido ditas por outros. Podería exem plificar com o cálculo diferencial e o integral
que, especialm ente na sua form a inicial, eram sem dúvida paradoxais e absurdos
pelos critérios de W ittgenstein.
Esses dois tipos de cálculo alcançaram , depois de cem anos de grandes esfor­
ços, um a fundam entação razoável — mas ainda hoje necessitam de algum a elu­
cidação. 101 A esse propósito, vale a pena lem brar que foi justam ente o contraste en ­
tre a aparente precisão absoluta da m atem ática e o caráter vago e impreciso da
linguagem filosófica que impressionou profundam ente os prim eiros seguidores de
W ittgenstein. Se tivesse surgido então um W ittgenstein, usando suas arm as contra
os pioneiros do cálculo, e conseguisse elim inar sua falta de sentido (o que queriam
os críticos da época — inclusive Berkeley, que fundam entalm ente tinha toda ra ­
zão), um dos desenvolvimentos mais fascinantes e filosoficamente mais im portantes
da história do pensam ento teria sido estrangulado no nascedouro.
W ittgenstein escreveu: “É preciso silenciar a respeito daquilo sobre o que
não se pode falar”. Se me lem bro bem , foi Erwin Schrõdinger que retrucou: “Mas é
justam ente quando vale a pena falar!”10a A história do cálculo o dem onstra bem
— como talvez a história da teoria do próprio Schrõdinger.11
Não há dúvida de que todos devemos treinar p ara falar do modo mais claro,
preciso, simples e direto que nos for possível. Acredito porém que não há um a só
obra clássica da ciência ou da m atem ática — qualquer livro que m ereça ser lido —
onde não se possa encontrar m uitas pseudoproposições sem sentido (e o que alguns
cham ariam de “tautologias”), m ediante a aplicação habilidosa da análise Iingüís-
tica.
Acredito tam bém que mesmo a adaptação original feita por W ittgenstein da
teoria de Russell se baseia num erro lógico. Do ponto de vista da lógica m oderna
não parece haver mais qualquer justificativa para falar em pseudoproposições (ou

10 — A l u d o à r e c e n t e c o n s t r u ç ã o , p o r G . K r e is e l, d e u m a s e q ü ê n c ia l i m i t a d a e m o n ó t o n a d e r a c io n a is ,
c u jo s t e r m o s p o d e m s e r c o m p u ta d o s , m a s q u e n ã o p o s s u i u m l i m i t e c o m p u t á v e l — c o n t r a r i a n d o a s s im o
q u e p a r e c e s e r a i n t e r p r e t a ç ã o p n m a fa c ie d o c lá s s ic o t e o r e m a d e B o lz a n o e W e i e r s t r a s , m a s e m c o n c o r ­
d â n c i a a p a r e n t e c o m a s d ú v i d a s d e B r o u w e r s o b r e e ss e te o r e m a .
1 0 a — D e p o is d a p u b l i c a ç ã o d e s te t r a b a l h o , S c h r ó d i n g e r d is s e - m e n ã o se l e m b r a r d e t e r f e ito e ss a o b ­
s e r v a ç ã o , e q u e a c r e d i t a v a n ã o s e r o a u t o r d a f r a s e ; m a s a d m i t i u q u e g o s ta v a d e l a . M a is t a r d e , d e s c o b r i
o v e r d a d e i r o a u t o r : m e u v e lh o a m ig o F r a n z U r b a c h .

11 — A n te s d e M a x B o r n p r o p o r s u a f a m o s a i n t e r p r e t a ç ã o p r o b a b i l í s t ic a , a lg u n s a u t o r e s p e n s a v a m q u e
a e q u a ç ã o d e o n d a s d e S c h r ò d in g e i e r a d e s p r o v i d a d e s e n ti d o (não_jé-essà c o n t u d o m i n h a o p i n i ã o ; .
100 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

erros de tipo ou categoria) nas linguagens ordinárias, que cresceram naturalm ente
(ao contrário do que acontece com os cálculos artificiais), desde que as regras con­
vencionais do costume e da gram ática sejam observadas. Pode-se mesmo dizer que
o positivista que nos afirm a, com um ar de iniciado, que estamos usando palavras
sem sentido ou exprim indo coisas sem sentido não sabe literalm ente o que diz —
está apenas repetindo o que ouviu de outras pessoas, que se encontravam na mesma
situação. Mas isso im plica um a questão técnica que não posso tratar aqui. (Ela é
desenvolvida, porém , nos caps. 11 a 14 deste livro.)

III
Prom etí dizer algum a coisa em defesa do ponto de vista de W ittgenstein. O
que pretendo dizer é, prim eiro, que há m uitos escritos filosóficos (especialmente da
escola hegeliana) que podem ser criticados com justiça por constituírem m ero
palavrório sem sentido; em segundo lugar, que esse tipo de publicação irrespon­
sável foi reprim ido — pelo menos durante algum tem po — pela influência de W it­
tgenstein e dos analistas da linguagem (em bora provavelm ente a influência mais
saudável nesse sentido tenha sido a de Russell que, com a clareza e o encanto in ­
comparáveis do seu estilo, dem onstrou o fato de que a sutileza do conteúdo é com ­
patível com a lucidez e a singeleza do estilo).
Estou preparado para conceder mais ainda. Para defender parcialm ente as
idéias de W ittgenstein, aceito as duas teses seguintes:
A prim eira é a de que toda filosofia — especialm ente toda “escola filosófica”
— pode degenerar de tal form a que seus problem as se tornem praticam ente in-
diferenciáveis de “pseudoproblem as”, e seu jargão praticam ente indistinguível de
um linguajar destituído de qualquer sentido. Conform e procurarei dem onstrar, es­
ta é um a conseqüência da cum ulatividade e da falta de abertura do pensam ento
filosófico; a degeneração das escolas filosóficas, de seu lado, é um a conseqüência da
crença errônea de que é possível filosofar sem ser a isso obrigado por p r o b le m a s s u r ­
g id o s f o r a d o c a m p o d a filo s o fia — na m atem ática, por exem plo, na cosmologia,
política, religião ou na vida social. Em outras palavras, m inha prim eira tese é de
que os p r o b le m a s filo s ó fic o s g e n u ín o s tê m s e m p r e raízes e m p r o b le m a s u r g e n te s
fo r a do c a m p o da filo s o fia , e m o r r e m se p e r d e m essas ra ízes. Nos esforços que
fazem para resolvê-los, os filósofos podem seguir o que parece a alguns um a téc­
nica ou m étodo filosófico, um a chave segura p ara o êxito filosófico. 12 N a verdade,
porém, não existem tais métodos ou técnicas. Aliás, na filosofia os métodos têm
pouca im portância: desde que produza resultados susceptíveis de discussão ra ­
cional, q u a lq u e r m é to d o é le g ítim o . O que im porta não é o m étodo ou as técnicas,
mas a sensibilidade aos problem as e um a paixão ardorosa pela sua solução: como
diziam os gregos, o dom de m aravilhar-se com o m undo. 12
12 — É i n t e r e s s a n t e n o t a r q u e os i m i t a d o r e s s e m p r e se i n c l i n a r a m a a c r e d i t a r q u e o “ m e s t r e " q u e lh e s
s e r v e d e m o d e l o u s a v a u m m é t o d o o u t r u q u e s e c r e to . D iz -s e q u e n o s d ia s d e J . S . B a c h a lg u n s m ú s ic o s
a c r e d i t a v a m q u e e le t i n h a u m a f ó r m u l a s e c r e t a p a r a c o n s t r u i r t e m a s d e f u g a . É t a m b é m in t e r e s s a n t e
o b s e r v a r q u e t o d a s a s filo s o fia s q u e se t o r n a r a m m o d a o f e r e c e r a m a s e u s d is c íp u lo s u m a e s p é c ie d e
m é t o d o p a r a a l c a n ç a r r e s u l t a d o s filo s ó fic o s . F o i o q u e a c o n t e c e u c o m o e s s e n c ia lis m o d e H e g e l, q u e e n ­
s in a v a c o m o e l a b o r a r e n s a io s s o b r e a e s s ê n c ia , a n a t u r e z a o u id é i a d e q u a l q u e r c o is a — a a l m a , o
u n iv e r s o o u a u n i v e r s i d a d e ; o m e s m o se p o d e d iz e r a r e s p e it o d a f e n o m e n o lo g ia d e H u s s e r l, d o e x is te n -
c ia lis m o e d a a n á l is e d a l in g u a g e m .
A N A T U R E Z A DOS P R O B LE M A S F IL O SÓ FIC O S E SU AS RA ÍZES C IE N T ÍF IC A S 101

Há pessoas que sentem a necessidade de resolver um problem a — para elas


um determ inado problem a se torna algo real, de que precisam se liberar. U Essas
pessoas podem dar um a contribuição à filosofia mesmo que se prendam a um
método ou técnica particular. H á outros porém que não sentem tal necessidade,
não têm qualquer problem a sério ou urgente p ara resolver, mas que ainda assim
form ulam exercícios nos métodos que estão em m oda — p ara eles a filosofia é um a
a p lic a ç ã o (um a técnica ou visão especial) e não unia p r o c u r a . São eles que levam a
filosofia p ara um pântano de pseudoproblem as e charadas verbais, form ulando
pseudoproblem as como se fossem problem as reais (perigo reconhecido por W itt-
genstein) ou persuadindo-nos a nos concentrarm os na tarefa sem fim e sem sentido
de desm ascarar o que tom am (com ou sem razão) por pseudoproblem as ou
“charadas” (arm adilha em que caiu W ittgenstein).
M inha segunda tese é a de que o m étodo p r im a f a c i e usado no ensino da
filosofia pode produzir um a filosofia que atenda à descrição de W ittgenstein. Por
“m étodo p r im a f a c i e usado no ensino da filosofia” (aparentem ente o único m étodo)
quero dizer o convite ao estudante (que adm itim os não estar inform ado sobre a his$
tória das idéias m atem áticas, cosmológicas e outras idéias científicas e políticas)
para ler as obras dos grandes filósofos, como por exem plo Platão, Aristóteles, Des-·1’ '
cartes, Leibniz, Locke, Berkeley, Kant e Mill. Q ual o efeito dessas leituras? Um,
m undo novo, de a b stra ç õ e s extraordinariam ente vastas e sutis, se abre diante do
leitor — abstrações de nível m uito elevado e difícil. Sua m ente é exposta a idéias e
argum entos que parecem às vezes não só difíceis de com preender mas tam bém
irrelevantes — porque o estudante não consegue identificar sua relevância. No en ­
tanto, ele sabe que são grandes filósofos e que esse é o estilo da filosofia. Fará p o r­
tanto um esforço para ajustar sua m ente ao que pensa (erradam ente, como vamos; j
ver) serem seus pontos de vista. O estudante tentará usar aquela* estranha lin­

Pífl
guagem , seguir as espirais tortuosas da argum entação apresentada,chegando talvez
a se am arrar nos seus nós. Alguns aprenderão esses truques de form a superficial;,
outros com eçarão a se deixar fascinar. Mas considero digno de respeito aquele que,
depois desse esforço, chega ao que se podería descrever como a conclusão de W itt­
genstein: “Aprendí o jargão tão bem quanto qualquer outra pessoa: um a lin ­
guagem inteligente e atrativa. Na verdade, perigosam ente cativante, porque a ver­
dade simples é que se trata de um a tem pestade num copo d ’água — um m onte de
absurdos”.
A m eu ver há um grande equívoco nessa conclusão; contudo, é a conclusão
quase inescapável do m étodo p r im a f a c i e de ensinar filosofia, que descreví. Não
nego, naturalm ente, que alguns estudantes m uito bem dotados podem encontrar
nas obras dos grandes filósofos m uito mais do que o exemplo sugere — e sem se
deixar iludir. De modo geral, contudo, a possibilidade que tem o estudante de des­
cobrir os problem as extrafilosóficos (m atem áticos, científicos, morais e políticos)
que inspiraram os grandes filósofos é bem reduzida. G eralm ente esses problem as só
podem ser identificados pelo estudo da história das idéias científicas, especialm ente
da m atem ática e das ciências, durante o período em questão; o que pressupõe, por
sua vez, considerável fam iliaridade com a m atem ática e a ciência. Só ao com preen­
der a situação das ciências em determ inada época, o estudante entenderá que os
grandes filósofos daquela época procuraram resolver problem as concretos e urgen- 13
13 — A lu d o a q u i a u m a o b s e r v a ç ã o d o p r o f e s s o r G i l b e r t R y le , q u e a f i r m a n a p á g . 9 d o s e u liv r o C on­
cepi o f M ind: " F u n d a m e n t a l m e n t e , e s to u p r o c u r a n d o e l i m i n a r d o m e u s is te m a a lg u n s d i s t ú r b i o s . ”
102 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

tes, que não podiam ser afastados. E só assim poderá ter um quadro diferente das
grandes filosofias — quadro que lhe m ostrará como os aparentes absurdos têm um
sentido.
T entarei ilustrar essas duas teses com exemplos. Antes, porém , vou su-
m arizar m inhas idéias sobre o assunto e “ajustar as contas” com W ittgenstein.
M inhas duas teses correspondem à afirm ativa de que como a filosofia tem
raízes profundas em problem as não filosóficos, o julgam ento negativo de W ittgens­
tein é de modo geral apropriado, na m edida em que se aplica a filosofias que es­
queceram suas raízes extrafilosóficas; e na m edida em que essas raízes são facilm en­
te esquecidas pelos filósofos que “estudam ” filosofia, em vez de serem forçados à
atividade filosófica pela pressão de problem as não filosóficos.
Resum iría da seguinte form a m inha opinião sobre a doutrina de W ittgens­
tein: talvez seja verdade, de m odo geral, que não existem problem as filosóficos
“puros”; na verdade, quanto mais puro um problem a filosófico m ais se perde sua
significação original, m aior o risco de que sua discussão degenere num verbalismo
vazio. Por outro lado, existem não só problem as científicos genuínos mas tam bém
problem as filosóficos genuínos. Mesmo quando a análise revela que esses problem as
contêm com ponentes factuais, não é preciso classificá-los como científicos. Por
outro lado, ainda quando podem ser solucionados com meios exclusivam ente ló­
gicos, não precisam ser qualificados como puram ente lógicos ou tautológicos. Há
situações análogas na física, por exem plo, onde o problem a de explicar as séries de
linhas espectrais (com o em prego de um a hipótese sobre a estrutura atôm ica) pode
ser solucionado m ediante cálculos m atem áticos. O que tam bém não quer dizer que
se trate de um problem a de m atem ática pura, e não de física. E perfeitam ente jus­
tificável denom inar um problem a de “físico” se ele se relaciona com teorias e outros
problem as discutidos tradicionalm ente pelos físicos (como· o problem a da consti­
tuição da m atéria), mesmo que os meios em pregados para solucioná-lo sejam
puram ente m atem áticos. Como vimos, a solução de problem as pode ultrapassar as
fronteiras de m uitas ciências. Da mesma form a, um problem a pode ser cham ado
de “filosófico”, apropriadam ente, se verificarm os que em bora tenha surgido, por
exemplo, no cam po da teoria atôm ica, se relaciona mais estreitam ente com as
teorias e os problem as discutidos pelos filósofos do que com as teorias que interes­
sam atualm ente os físicos.
Por outro lado, não im porta absolutam ente que métodos em pregam os para
solucionar um problem a. A cosmologia, por exem plo, terá sem pre grande interesse
filosófico, em bora se tenha aliado, em parte da m etodologia que em prega, com o
que poderiam os cham ar mais precisam ente de “física”. Afirm ar que a cosmologia
pertence à ciência é pedante e resulta claram ente de um dogm a epistemológico
(filosófico, portanto). Da mesma form a, não há razão para que se negue a um
problem a soluciónável por meios lógicos o atributo “filosófico”: ele pode m uito bem
ser tipicam ente filosófico, físico ou biológico. A análise lógica desem penhou um a
função considerável na teoria especial da relatividade, de Einstein; em parte foi is­
so que tornou essa teoria filosoficamente interessante, dando origem a um a am pla
gam a de problem as filosóficos correlatos.
A doutrina de W ittgenstein resulta da tese de que todas as afirm ativas
genuínas (e portanto todos os problem as genuínos) oodem ser classificadas em um a
A N A TU R E ZA DOS P R O B LE M A S F IL O SÓ FIC O S F. SU AS RA ÍZES C IE N T ÍF IC A S 103

de duas classes exclusivas: as afirm ativas factuais (s in té tic a s “a p o s te r io r i”) , p erten ­


centes às ciências em píricas, e as afirm ativas lógicas (a n a lític a s “a p r i o r i ”), perten­
centes exclusivamente à lógica form al ou à m atem ática. Em bora extrem am ente
valiosa para um a descrição superficial, essa dicotom ia simples é simples dem ais
para m uitos propósitos. 1415 Feita sob encom enda, por assim dizer, para excluir a
existência dos problem as filosóficos, não consegue chegar a esse resultado; mesmo
se a aceitarm os podemos sempre alegar que os problem as factuais, lógicos ou h í­
bridos, em certas circunstâncias, podem ser filosóficos.
IV
Volto-me agora para o m eu prim eiro exem plo: P la tã o e a crise do
a to m is m o o r ig in a l g r e g o .

M inha tese é que a doutrina filosófica central de Platão, a cham ada teoria
das form as ou idéias, não pode ser entendida adequadam ente exceto dentro de um
contexto extrafilosóficol5 — mais especialm ente, o contexto da situação-
problem a da ciência greg a16, em particular no que se refere à noção de m atéria
resultante do descobrim ento do caráter irracional da raiz quadrada de dois. Se
m inha tese está correta, a teoria de Platão até hoje não foi perfeitam ente com ­
preendida. (N aturalm ente, é duvidoso que um a “perfeita com preensão” seja pos­
sível algum dia). U m a conseqüência mais im portante seria a de que ela não pode

14 — J á n u m a te s e d e f e n d i d a e m 1 9 3 4 , tiv e a o p o r t u n i d a d e d e m o s t r a r q u e u m a t e o r i a c o m o a d e N e w -
to n p o d e s e r interpretada c o m o f a c t u a l o u c o m o c o n s is tin d o e m d e f in iç õ e s ( n o s e n ti d o d e P o i n c a r é e E d -
d i n g t o n ) ; q u e a i n t e r p r e t a ç ã o a d o t a d a p o r u m fís ic o se m a n i f e s t a n a a t i t u d e q u e a s s u m e c o m r e s p e it o
a o s te s te s q u e d ã o r e s u l t a d o s c o n t r á r i o s à t e o r i a (e n ã o p r o p r i a m e n t e n o q u e a f i r m a ) . O b s e r v e i t a m b é m
q u e h á t e o r ia s n ão · a n a l í t i c a s q u e n ã o p o d e m s e r te s t a d a s (e p o r t a n t o n ã o a posteriori), m a s q u e e x e r ­
c e r a m g r a n d e in f l u ê n c i a n o d e s e n v o lv im e n to c ie n tíf ic o ( e x e m p lo s s ã o a t e o r i a a t ô m i c a o r i g i n a l o u a
t e o r ia in ic ia l d a a ç ã o p e lo c o n t a t o ) . C h a m e i e ssas t e o r ia s n ã o te s tá v e is d e “ m e t a f í s i c a s ” , a s s e v e r a n d o q u e
t i n h a m s e n ti d o . O d o g m a d a d i c o t o m i a s im p le s fo i a t a c a d o r e c e n t e m e n t e , c o m a r g u m e n t o s b a s t a n t e
d if e r e n te s , p o r F . H . H e i n e m a n n ( P roc. o f the X th Intern. Congress o f P hiiosophy, F a s e . 2 , 6 2 9 , A m s te r -
d a m , 1 9 4 9 ), W .V . Q u i n e e M o r to n G . W h i t e . N o te - s e , d e o u t r o p o n t o d e v is ta , q u e a q u e l a d ic o t o m i a se
a p lic a c o m p r e c is ã o só à s lin g u a g e n s f o r m a l i z a d a s , o m e s m o p o d e n d o n ã o a c o n t e c e r c o m r e s p e it o à s l i n ­
g u a g e n s q u e p r e c is a m o s e m p r e g a r a n te s d e q u a l q u e r f o r m a l iz a ç ã o , is to é, à s lin g u a g e n s n a s q u a is to d o s
o s p r o b l e m a s t r a d i c i o n a i s f o r a m c o n c e b id o s .

15 E m O pen Society an d Its E nem ies p r o c u r e i e x p l i c a r c o m a l g u m a m i n ú c i a o u t r a o r ig e m e x tr a f i -


lo s ó fic a d a m e s m a d o u t r i n a — s u a o r ig e m p o lític a . E x a m in e i i g u a l m e n t e ( v id e n o t a 9 , c a p . 6 d a 4 a
e d iç ã o re v is ta d e 1 9 6 2 ) o p r o b l e m a a q u e m e d ir i jo e m p a r t i c u l a r n e s t a s e ç ã o — e m b o r a d e u m p o n t o d e
v is ta a lg o d i f e r e n t e . A n o t a m e n c i o n a d a e e s ta s e ç ã o se s o b r e p õ e m e m c e r t a m e d i d a , m a s t a m b é m se
s u p l e m e n t a m a m p l a m e n t e . A lg u m a s r e f e r ê n c ia s r e le v a n te s ( e s p e c ia lm e n te a P l a t ã o ) o m i t i d a s a q u i s e r ã o
e n c o n tra d a s n a n o ta .

16 A lg u n s h i s t o r i a d o r e s n e g a m q u e se p o s s a u s a r a p r o p r i a d a m e n t e o t e r m o “ c i ê n c i a ” a p l i c a n d o - o a
q u a l q u e r d e s e n v o lv im e n to a n t e r i o r a o s é c u lo X V I , o u m e s m o a o s é c u lo X V I I . C o n t u d o , i n d e p e n d e n ­
te m e n t e d o f a t o d e q u e d e v e m o s e v i t a r c o n tr o v é r s ia s a r e s p e it o d e d e n o m i n a ç ã o , c r e io q u e n ã o p o d e
h a v e r m a is n e n h u m a d ú v i d a s o b r e a e x t r a o r d i n á r i a s e m e l h a n ç a ( p a r a n ã o f a l a r e m i d e n t i d a d e ) e n t r e os
o b je tiv o s , os in te re s s e s , a s a tiv id a d e s , a a r g u m e n t a ç ã o e os m é to d o s d e G a lile u e A r q u i m e d e s ; d e C o p é r -
n ic o e P l a t ã o , K e p le r e A r is ta r c o (o “ C o p é r n i c o " d a A n t i g u i d a d e ) . Q u a l q u e r d ú v i d a s o b r e a o b s e r v a ç ã o
c ie n tíf ic a e o s c á l c u lo s d o s a n tig o s — b a s e a d o s n a o b s e r v a ç ã o — fo i e l i m i n a d a p e la d e s c o b e r t a d e n o v o s
f a to s r e la tiv o s à h is t ó r i a d a a s t r o n o m i a p r é - h e l ê n i c a . P o d e m o s a g o r a c o m p a r a r n ã o só T i c o e H i p a r c o ,
m a s H a n s e n (1 8 5 7 ) e C id e n a s , d a C a l d é i a (3 1 4 a .C .) , c u jo s c á l c u lo s d a s “ c o n s ta n te s p a r a o m o v i m e n t o
d o S o l e d a L u a ” s ã o a s s e m e lh á v e is , s e m e x c e ç ã o , a o s d o s m e l h o r e s a s tr ô n o m o s d o s é c u lo d e z e n o v e .
( V id e J .K . F o t h e r i n g h a m , “ T h e I n d e b t e d n e s s o f G re e k to C h a l d e a n A s t r o n o m y ” , T h e O bservatory,
9 2 8 , 5 1 , n . ° 6 5 3 ).
104 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

ser entendida por filósofos treinados de acordo com o m étodo p r im a fa c i e , já des­


crito — a não ser que fossem inform ados especialm ente, a d h o c , dos fatos relevan­
tes (que precisariam aceitar num a base de autoridade — isto é, abandonando o
m étodo p r im a f a c i e de estudo da filosofia).
Parece provável 1? que a teoria das form as de Platão esteja intim am ente as­
sociada, na sua origem e no seu conteúdo, à teoria pitagórica de que todas as coisas
são, essencialm ente, núm eros. Os porm enores dessa associação, bem como o re­
lacionam ento entre o atomismo e o pensam ento de Pitágoras e seus discípulos, tal­
vez não sejam bastante conhecidos; falarei, portanto, um pouco sobre o assunto, da
m aneira como o vejo atualm ente.
Ao que parece, o fundador da ordem ou seita pitagórica estava profun­
dam ente impressionado com duas descobertas: a de que um fenôm eno na aparência
puram ente qualitativo, como a harm onia musical, dependia de razões num éricas
— 1:2 ; 2:3 ; 3:4 ; e a de que o ângulo “reto” refletia as razões num éricas 3:4:5 ou
5:12:13 (os lados de um triângulo retângulo). Essas duas descobertas teriam levado
Pitágoras à generalização algo fantástica de que todas as coisas são, em essência,
núm eros ou proporções; de que o núm ero é a razão (logos = razão), a essência
racional das coisas, da sua natureza real.
Em bora seja um a idéia fantástica, ela teve algum a utilidade. Uma das suas
aplicações de m aior êxito foi às figuras geom étricas simples — quadrados, triân ­
gulos retangulares e isosceles — e a alguns sólidos simples, como as pirâm ides. O
tratam ento de alguns desses problem as geométricos se baseava no cham ado g n o ­
m on.

Podemos explicá-lo assim; se indicam os um quadrado por meio de quatro


pontos,
• ·

isso pode ser interpretado como o acréscimo de três pontos a um ponto


original, situado no lado esquerdo superior. Esses três pontos — que constituem o
prim eiro g n o m o n — seriam indicados assim:

Acrescentando um segundo gnom on, com outros cinco pontos, chegaríam os


à seguinte figura: 17

17 — S e p o d e m o s c o n f i a r n o fa m o s o r e l a t o d e A r is tó te le s , n a s u a M etafísica.
A N A T U R E Z A DOS P R O B LE M A S F IL O SÓ FIC O S E SU A S RA ÍZES C IE N T ÍF IC A S 105

• · ·
Vemos im ediatam ente que cada núm ero da seqüência de núm eros ím pares
1,3,5,7... form a o g n o m o n de um quadrado, e que as somas
1, 1 + 3, 1 + 3 + 5, 1 + 3 + 5 + 7 ... são núm eros quadrados; se n é o lado de um
quadrado (isto é, o núm ero de pontos que corresponde ao seu lado), a área corres­
pondente (o núm ero total de pontos = n2) será igual à soma dos prim eiros n n ú ­
meros ím pares.
O mesmo com relação aos triângulos equiláteros: a figura seguinte pode ser
considerada um triângulo em crescim ento (para baixo), m ediante o acréscimo
sucessivo de linhas horizontais de pontos:

• · ·
• · · ·
Neste caso, cada g n o m o n é a últim a linha horizontal de pontos; cada
elem ento da seqüência 1,2,3,4 ... é um g n o m o n . Os “núm eros triangulares” são as
somas 1 + 2 ; 1 + 2 + 3: 1 + 2 + 3 + 4 ..., isto é, as somas dos primeiros n números
naturais. Se colocarmos dois triângulos lado a lado·

teremos um paralelogram a com o lado horizontal n + l e e outro lado, n , contendo


η ( n + l ) pontos. Como esse paralelogram a consiste em dois triângulos isóceles, seu
núm ero é 2(1 + 2 + ... + n ), de modo que chegamos à equação

(1) 1 + 2 + ... + n = J_ n ( n 4 1)
e portanto 2
(2) d{ 1 + 2 + ... + n ) = d n (n + 1).
2
A partir desse ponto é fácil chegar à fórm ula geral para a soma das séries a rit­
méticas.
106 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

Teríam os tam bém “núm eros oblongos” — isto é, núm eros correspondentes a
figuras oblongas retangulares, das quais a mais simples é a seguinte:

• ·
# · · · #
com os núm eros oblongos 2 + 4 + 6 ...; o g n o m o n de um oblongo é um núm ero par
e os núm eros oblongos são somas dos núm eros pares.
Esse raciocínio foi estendido aos sólidos. Assim, por exemplo, chegou-se aos
núm eros piram idais, som ando os prim eiros núm eros triangulares. Contudo, a
aplicação mais im portante foi às figuras Dlanas, ou “form as” — que se acreditava
serem caracterizadas por um a sequência apropriada de números, e, portanto pelas
razões dos núm eros sucessivos da seqüência. Em outras palavras, as “form as” eram
consideradas números, ou razões entre núm eros. Por outro lado, qualidades abstra­
tas, como a harm onia e a retidão, eram vistas tam bém como núm eros. Desse modo se
chegou à teoria geral de que os núm eros são as essências racionais de todas as coisas.
Parece provável que o desenvolvimento desse ponto de vista foi influenciado
pela sem elhança dos diagram as de pontos com constelações, tais como a do Leão.
do Escorpião ou da Virgem . Se o Leão, por exem plo, é um arranjo de pontos, ele
deve ter um núm ero. Desta form a a doutrina pitagórica parece associada à crença
de que os núm eros, ou “form as”, são figuras celestiais das coisas.
V
Um dos elementos principais dessa antiga teoria era o cham ado “Q uadro de
Oposições”, que se baseava na distinção entre núm eros pares e ímpares. Esse
quadro continha conceitos como os seguintes:
UM M UITOS QUADRADO OBLONGO
ÍM PAR PAR RETO CURVO
MASCULINO FEM IN IN O D IREITO ESQUERDO
REPOUSO MUDANÇA LUZ OBSCURIDADE
DETERM INADO INDETERM INA D O BOM MAU
Esse estranho quadro nos dá um a idéia de como funcionava a m ente p i­
tagórica — porque não só as “form as:’ de figuras geométricas eram consideradas
como números, em sua essência, mas tam bém idéias abstratas como a justiça e.
naturalm ente, a harm onia e a saúde, a beleza e o conhecim ento. E interessante
notar que o quadro pitagórico foi adotado por Platão com m uito pequenas alte­
rações. A versão mais antiga da famosa teoria das “form as” ou das “idéias", de
Platão, podería ser descrita, em linhas gerais, como a doutrina de que o lado
“bom ” do Q uadro de Oposições constitui um universo invisível — um m undo de
realidade superior, povoado pelas form as imutáveis e determ inadas de todas as
coisas; de que a verdade e o conhecim ento seguro (e p is te m e = sc ie n tia = c iê n c ia )
só se podem dirigir a esse universo real e constante, de que o m undo visível de trans­
form ação e fluxo em que vivemos e m orrem os — o m undo da geração e da des­
truição, da experiência — não passa de um reflexo ou cópia: é um universo ex­
clusivamente de aparências, onde não há lugar para o verdadeiro conhecim ento. O
A N A TU R E ZA DOS P R O B LE M A S F IL O SÓ FIC O S E SU AS RA ÍZES C IE N T ÍF IC A S 107

que podemos ter, nesse m undo de som bras, são opiniões inseguras e preconcei­
tuosas (d o x a ) dos falíveis m ortais1®, em lugar da e p is te m e . Nesta sua interpretação
do Q uadro de Oposições, Platão recebeu a influência de Parm ênides, o pensador
cujo desafio provocou o desenvolvimento da teoria atom ística de Demócrito.
VI
A teoria de Pitágoras. com seus diagram as feitos de pontos, contém sem
dúvida a sugestão de um atom ism o m uito prim itivo, É difícil avaliar em que m e­
dida a teoria atom ística de Dem ócrito foi influenciada pelo pensam ento pitagórico.
Suas influências principais parecem ter vindo dos eleatas: Parm ênides e Zeno. O
problem a básico dessa escola de pensam ento (e de Dem ócrito) era o da com preen­
são r a c io n a l da m u d a n ç a . (Neste ponto divirjo da interpretação de Cornford e
outros.) Parece-m e que esse problem a vem de H eráclito — portanto, do pensam en­
to jôm co e não do pitagórico1819 e que continua a ser o problem a fundam ental da
filosofia da natureza.
Parm ênides pode não ter sido um físico (como seus grandes predecessores
jônicos), mas há razão para considerá-lo como o pai da fís ic a te ó ric a : elaborou um a
teoria antifísica20 — não a-física, como disse Aristóteles —, que foi contudo o
prim eiro sistema hipotético-dedutivo, o princípio de um a longa série de sistemas
desse tipo, teorias físicas cada vez m ais aprim oradas. Via de regra, esse aprim o­
ram ento se tornava necessário devido à consciência de que o sistema anterior era
refutado por alguns fatos da experiência em pírica. Essa refutação em pírica das
conseqüências de um sistema dedutivo levava a um esforço dirigido à sua recons­
trução e assim a novas teorias, aperfeiçoadas, as quais quase sempre exibiam
claram ente m arcas da sua origem, das teorias originárias e da experiência que
as refutou.
Essas experiências ou observações eram a princípio m uito cruas, tornando-se
contudo cada vez mais sutis, à m edida que as teorias se tornavam gradualm ente
18 — A d is t i n ç ã o p l a t ô n i c a e n t r e epistem e e doxa d e r iv a d e X e n ó f a n e s ( a verdade e a conjectura , o u
apa rên cia ), p o r m e io d e P a r m ê n i d e s . P l a t ã o p e r c e b i a c l a r a m e n t e q u e todo o c o n h e c i m e n t o d o m u n d o
v isív el, o m u n d o c a m b i a n t e d a s a p a r ê n c i a s , c o n s is te n a doxa-, e le é t i n g i d o p e la in c e r t e z a , m e s m o q u a n ­
d o u tiliz a a o m á x i m o a epistem e, c o n h e c i m e n t o d a p u r a m a t e m á t i c a e d a s “f o r m a s ” d e f i n i d a s — a i n d a
q u a n d o i n t e r p r e t a o m u n d o c a m b i a n t e c o m a a j u d a d e u m a t e o r i a d o m u n d o in v is ív e l, ( c f. Crátilo,
4 3 9 b , R ep ú b lica , 4 7 6 d , e e m e s p e c ia l T im eu , 2 9 b , o n d e e s s a d i s t i n ç ã o é a p l i c a d a às p a r t e s d a t e o r i a d o
p r ó p r i o P l a t ã o q u e c h a m a r í a m o s h o je d e “ f ís ic a ” , “ c o s m o l o g ia ” o u , d e m o d o m a is g e r a l , “ c iê n c ia n a ­
t u r a l ” . S e g u n d o o filó s o fo , e la s p e r t e n c e m a o r e i n o d a doxa — a d e s p e ito d o f a t o d e q u e c iê n c ia =
scientia = ep istem e ). U m p o n t o d e v is ta d i f e r e n t e s o b r e a s re la ç õ e s e n t r e o p e n s a m e n t o d e P l a t ã o e o d e
P a r m ê n i d e s é o d e S ir D a v id R o ss, P la to ’s T heory o f Ideas, O x f o r d , 1 9 5 1 , p á g . 1 6 4 .

19 — N o s e u liv r o P arm enides (1 9 1 6 ; s e g u n d a e d iç ã o , 1 9 5 9 , p á g . 2 2 0 ), K a r l R e i n h a r d t d iz , c o m m u i t o


v ig o r : “ A h i s t ó r i a d a filo s o fia é a h i s t ó r i a d o s s e u s p r o b l e m a s . Q u e m q u i s e r e x p l i c a r H e r á c l i t o p r e c i s a r á
d iz e r e m p r i m e i r o l u g a r q u a l e r a o s e u p r o b l e m a ” . C o n c o r d o i n t e i r a m e n t e e a c r e d i t o q u e o p r o b l e m a d e
H e r á c l i t o e r a o p r o b l e m a d a t r a n s f o r m a ç ã o d a s c o is a s — m a is p r e c i s a m e n t e , d a i d e n t i d a d e (e n ã o -
i d e n t i d a d e ) d a s c o is a s , d u r a n t e s u a m u t a ç ã o (v id e O pen Society, c a p . 2 ). S e a c e i t a r m o s a e v id ê n c ia
a p o n t a d a p o r R e i n h a r d t s o b r e o e s tr e i to r e l a c i o n a m e n t o e n t r e as id é ia s d e H e r á c l i t o e a s d e P a r m ê n i d e s ,
e s te p o n t o d e v is ta s o b r e o p r o b l e m a d e H e r á c l i t o fa z c o m q u e o s is te m a d e P a r m ê n i d e s se t o r n e u m a
te n t a t i v a p a r a r e s o lv e r a q u e s t ã o d o s p a r a d o x o s d a m u d a n ç a , c o n s i d e r a n d o t o d a m u d a n ç a i r r e a l . C o r n ­
f o r d e s e u s d is c í p u lo s a c o m p a n h a m a d o u t r i n a d e B u r n e t d e q u e P a r m ê n i d e s fo i u m p it a g ó r i c o ( d is s i­
d e n t e ) — o q u e p o d e s e r v e r d a d e , m a s a e v id ê n c ia n e s s e s e n ti d o n ã o p r o v a q u e e le n ã o te v e t a m b é m u m
p r o f e s s o r jô n i c o (v id e c a p . 5 d e s te liv ro ).
20 — P l a t ã o , T heaetetus, 1 8 1 a ; S e x tu s E m p ir ic u s , A dv. M a th em . ( B e k k e r ) , X .4 6 , p á g . 4 8 5 , 2 5 .
108 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

aptas a interpretar as observações m ais grosseiras. No caso da teoria de Parm ê-


nides, o choque com a observação era tão óbvio que parecería talvez fantasioso des-
crevê-la como o prim eiro sistema hipotético-dedutivo da ciência física. Podemos
descrevê-la, portanto, como o derradeiro antecessor dos sistemas dedutivos físicos
— cuja refutação provocou o surgim ento da prim eira teoria física sobre a m atéria:
a teoria atom ística de Dem ócrito.
A teoria de Parm ênides é simples: para ele é impossível entender racional­
m ente a m udança ou o m ovimento; daí a conclusão de que não há realm ente
m udança — ela é apenas aparente. Mas, antes de sentirm os superioridade diante
de teoria tão irrem ediavelm ente irrealista, precisamos tom ar conhecim ento do sério
problem a que ela apresenta. Se um a coisa “X ” se m odifica, obviam ente dçixa de
ser a mesma coisa “X ”. Por outro lado, não podem os dizer que “X ” se m odifica
sem im plicar que continua a existir durante o processo de m udança: que é a m es­
m a coisa “X ” , no princípio e no fim daquele processo. Parece que estamos diante
de um a contradição: que a idéia de que um a coisa pode m udar é impossível; p o r­
tanto, que a m udança é impossível.
T udo isso soa m uito filosófico e abstrato. A verdade, porém , é que a dificul­
dade indicada sem pre se fez sentir no desenvolvimento da física. 21 Um sistema
determ inístico como a teoria do cam po de Einste-in poderia até mesmo ser descrito
como um a versão em quatro dimensões do universo tridim ensional im utável de
Parm ênides — num certo sentido, no universo com pacto em quatro dimensões de
Einstein nada m uda: todas as coisas perm anecem no seu lo cu s quadridim ensional.
As m udanças se tornam um a espécie de “m udança ap aren te”; é “só” o observador
que desliza pelo seu w o r ld -lin e , tornando-se consciente, sucessivamente, dos d i­
ferentes loci no curso da sua linha — isto é, da sua vizinhança espaço-tem poral...
Para deixar este novo Parm ênides, voltando ao velho criador da física
teórica, poderiam os parafrasear sua teoria dedutiva mais ou menos assim:
1) Só o que é existe.
2) O que não é não existe.
3) O não-ser (o vazio) não existe.
4) O m undo é com pacto.
5) O m undo não tem componentes: é um só bloco (porque é com pacto). 21

21 — 0 q u e se p o d e c o m p r o v a r le n d o Id e n tity a n d ReaLity, d e E m i l e M e y e r s o n , u m d o s e s tu d o s f i l o ­
s ó fic o s m a is i n te r e s s a n te s s o b r e o d e s e n v o lv im e n to d a s te o r ia s fís ic a s . H e g e l ( s e g u in d o H e r á c l i t o — o u o
r e la to d e A r is tó te le s s o b r e s u a s id é ia s ) a d m i t i u q u e o f a t o d a m u d a n ç a ( q u e e le c o n s id e r a v a c o n t r a d i ­
tó r io ) p r o v a a e x is t ê n c ia d e c o n t r a d i ç õ e s n e s te m u n d o , r e f u t a n d o a s s im a “ le i d a c o n t r a d i ç ã o ” — is to é,
o p r i n c í p i o d e q u e n o s s a s t e o r ia s p r e c is a m e v i t a r a c o n t r a d i ç ã o a q u a l q u e r c u s to . H e g e l e s e u s s e g u id o r e s
- e s p e c i a l m e n t e E n g e ls , L e n i n e o u t r o s m a r x i s t a s — c o m e ç a r a m a e n x e r g a r “ c o n t r a d i ç õ e s ” e m t o d a
p a r t e , d e n u n c i a n d o a s filo s o fia s q u e s u s t e n t a v a m a “ le i d a c o n t r a d i ç ã o ” c o m o “ m e t a f í s i c a s ” — t e r m o
u s a d o p a r a d e n o t a r q u e e ss a s filo s o fia s i g n o r a v a m o f a t o d e q u e o m u n d o m u d a . V id e o c a p . 15 d e s te
liv ro .
A N A T U R E Z A DOS P R O B L E M A S F IL O SÓ FIC O S E SU AS RA ÍZES C IE N T ÍF IC A S 109

6) O m ovim ento é impossível, pois não há nenhum espaço vazio, que pudes­
se ser percorrido.
As conclusões 5) e 6) obviam ente contradiziam os fatos. Assim, Demócrito
argum entava a partir da falsidade das conclusões p ara chegar às premissas:
6’) O m ovimento existe (portanto ele é possível).
5’) O m undo é form ado de partes: não é uno, porém , vário.
4’) Portanto o m undo não pode ser com pacto.22
3’) O vazio (ou não-ser) existe.
Neste ponto, portanto, a teoria precisaria ser m odificada. Com relação ao
ser ou à pluralidade das coisas existentes (em contraposição ao vazio), Dem ócrito
adotou a teoria de Parm ênides: os átom os eram indivisíveis porque com pactos; não
havia nenhum vazio no seu interior.

O que há de im portante nessa teoria é o fato de que ela explica racional -


m ente as m udanças: o m undo consiste em espaço vazio, povoado de átomos. Os
átomos não sé alteram : são, em m iniatura, universos compactos, na concepção de
Parm ênides. 23 T oda m udança corresponde a um rearranjo dos átom os no espaço;
assim, to d a m u d a n ç a é u m m o v im e n to . Como o único tipo de novidade relacio­
nado com esse ponto de vista tem a ver com a distribuição no espaço,24, será pos­
sível, em princípio, p r e v e r to d a s as a lte ra ç õ e s f u t u r a s a o c o rre r n o m u n d o , desde
que possamos predizer o movimento de todos os átom os (ou, para usar terminologia
m oderna, de todos os pontos-de-massa).
A teoria da m udança de Dem ócrito teve enorm e im portância no desenvol­
vim ento da ciência física; foi aceita parcialm ente por Platão, que preservou em boa
parte a concepção atom ística — em bora explicasse a m udança não pelo conceito de
átom os que se m ovim entam sem se m odificar, m as por outras “form as”, indepen­
dentes da m udança e do m ovim ento. Mas foi condenada por Aristóteles, que en ­
sinou 25 que a m udança era sem pre o desenvolvimento de potencialidades inerentes
das s u b s tâ n c ia s essencialmente imutáveis. A teoiia de Aristóteles passou a preva-

2 2 — A in f e r ê n c i a q u e n o s le v a d a e x is t ê n c ia d o m o v i m e n t o à d o v a z io n ã o é v á l i d a ; d a m e s m a f o r m a ,
a in fe rê n c ia fe ita p o r P a rm ê n id e s d a im p o s s ib ilid a d e d o m o v im e n to , a p a r t i r d o c a r á t e r c o m p a c to d o
m u n d o , t a m b é m n ã o é v á lid a . P l a t ã o p a r e c e t e r s id o o p r i m e i r o a n o t a r , a i n d a q u e p o u c o c l a r a m e n t e ,
q u e n u m m u n d o c o m p a c t o o m o v i m e n t o c i r c u l a r o u e m v ó r ti c e é p o s sív e l, d e s d e q u e h a j a u m m e io
f lu i d o . (A s f o lh a s d e c h á se m o v e m n a x í c a r a c o m o m o v i m e n t o c i r c u l a r d o p r ó p r i o c h á ) . E s ta id é ia ,
a p r e s e n t a d a a p r i n c í p i o t i m i d a m e n t e n o T im e u ( o n d e o e s p a ç o a p a r e c e “ p r e e n c h i d o ” , 5 2 e ) , c o n s t i t u i r á
a b a s e d o c a r t e s i a n i s m o e d a t e o r i a d o “é t e r l u m i n í f e r o ” , a c e i t a a t é 1 9 0 5 . ( V id e t a m b é m n o t a 4 4 , a d i a n ­
te ).

2 3 — A t e o r i a d e D e m ó c r i t o a d m i t i a t a m b é m á to m o s c o m p a c t o s m a io r e s , m a s a g r a n d e m a i o r i a d e le s
e r a d e t a m a n h o m u i t o r e d u z i d o , in v is ív e is.

24 — V id e T h e Poverty o f H istoricism , s e ç ã o 3.
2 5 — I n s p i r a d o p elo . T im e u d e P l a t ã o (5 5 ) , o n d e a s p o t e n c i a l i d a d e s d o s e le m e n to s , s ã o e x p l i c a d a s p e la s
s u a s p r o p r i e d a d e s g e o m é t r i c a s ( p o r t a n t o , p e la s f o r m a s s u b s ta n c ia is ) d o s s ó lid o s c o r r e s p o n d e n t e s .
110 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

le c e r — m a s s e r e v e lo u p o u c o f é r t i l 2 6 ; a t e o r i a m e t a f í s i c a d e D e m o c r i t o , d e q u e
t o d a m u d a n ç a p r e c i s a s e r e x p l i c a d a p e lo m o v i m e n t o , c o n s t i t u i u a b a s e t á c i t a d a i n ­
v e s t ig a ç ã o , n a f í s ic a , a t é o s n o ss o s d ia s — e é a i n d a p a r t e d a filo s o f ia d a f ís ic a , a
d e s p e i to d e t e r s id o u l t r a p a s s a d a p e la p r ó p r i a fís ic a e t a m b é m p e l a s c iê n c ia s s o c ia is
e b io l ó g ic a s . N o s i s te m a d e N e w t o n e n t r a m e m c e n a , a l é m d e p o n to s - d e - m a s s a . fo rç a s
d e i m e n s i d a d e s e d ir e ç õ e s v a r iá v e is . E v e r d a d e q u e a s f o r ç a s n e w t o n i a n a s p o d e m
s e r e x p l i c a d a s c o m o s e n d o d e v id a s a o m o v i m e n t o ( o u d e le d e p e n d e n t e s ) ; is to é , e s ­
t a r i a m c o n d i c i o n a d a s à p o s iç ã o c a m b i a n t e d a s p a r t í c u l a s . C o n t u d o , e la s n ã o s ã o
i d ê n t i c a s à s m o d i f i c a ç õ e s n a p o s i ç ã o d a s p a r t í c u l a s — d e v id o à lei d o in v e r s o d o s
q u a d r a d o s , e s s a d e p e n d ê n c i a n ã o é l i n e a r . C o m F a r a d a y e M a x w e ll, o s c a m p o s d e
fo r ç a s c a m b i a n t e s s ã o t ã o i m p o r t a n t e s q u a n t o a s p a r t í c u l a s a t ô m i c a s m a t e r i a i s . O
f a t o d e q u e a c o n c e p ç ã o m o d e r n a d o á t o m o a d m i t e q u e e le s e ja u m a e n t i d a d e
c o m p o s ta é m e n o s i m p o r t a n t e — d o p o n t o d e v is ta d e D e m ó c r i t o , o q u e c h a ­
m a m o s d e “p a r t í c u l a s e l e m e n t a r e s ” s e r i a m o s v e r d a d e i r o s “ á t o m o s ” (c o m a e x c e ç ã o
d e 1 q u e e ssa s p a r t í c u l a s s ã o t a m b é m s u s c e p tív e is a m u d a n ç a s ) . C h e g a m o s , a s s im , a
u m a s i t u a ç ã o m u i t o i n t e r e s s a n t e : a filo s o f ia , q u e p r o c u r a v a u m a e x p l i c a ç ã o r a ­
c io n a l p a r a a m u d a n ç a , se rv e à c iê n c ia d u r a n t e m i l h a r e s d e a n o s , s e n d o u l t r a p a s ­
s a d a p e lo d e s e n v o l v im e n to d a p r ó p r i a c iê n c ia — f a t o q u e p a s s a p r a t i c a m e n t e i n a d ­
v e r t id o p e lo s filó s o f o s , o c u p a d o s e m n e g a r a e x is tê n c i a d e p r o b l e m a s filo s ó fic o s .

A t e o r i a d e D e m ó c r i to fo i u m a r e a l i z a ç ã o m a r a v i l h o s a , q u e p r o p o r c i o n o u
u m a b a se te ó r ic a p a r a e x p lic a r a m a io r p a r te d a s p r o p r ie d a d e s d a m a té r ia , c o ­
n h e c i d a s e m p i r i c a m e n t e (e j á d is c u ti d a s p e lo s j ô n i c o s ) , ta i s c o m o a c o m p r e s s i b i-
l i d a d e , a d u r e z a e a r e s is t ê n c ia , a r a r e f a ç ã o e a c o n d e n s a ç ã o , a c o e r ê n c i a , a d e s i n ­
t e g r a ç ã o , a c o m b u s t ã o e m u i t a s o u t r a s . M a s a t e o r i a só e r a i m p o r t a n t e c o m o e x ­
p li c a ç ã o d o f e n ô m e n o e x p e r i m e n t a l . E m p r i m e i r o l u g a r , e l a e s t a b e l e c i a o p r i n c í p i o
m e t o d o ló g i c o d e q u e u m a te o r i a o u e x p l i c a ç ã o d e d u t i v a p r e c i s a “r e s p e i t a r os f e ­
n ô m e n o s ” ; 27 is to é , a j u s t a r - s e à e x p e r i ê n c i a . E m s e g u n d o l u g a r , m o s t r a v a q u e u m a
te o r i a p o d e s e r e s p e c u l a t i v a , b a s e a n d o - s e n o p r i n c í p i o f u n d a m e n t a l ( d e P a r m ê -
n id e s ) d e q u e o m u n d o c o m p r e e n d i d o p e lo i n t e l e c t o é d i f e r e n t e d o m u n d o d a e x ­
p e r i ê n c i a p r im a f a c i e — c o n f o r m e é v is to , o u v id o , p r o v a d o , c h e i r a d o e t o c a d o ; 28
q u e , c o n t u d o , u m a t e o r i a e s p e c u l a ti v a p o d e a c e i t a r o “ c r i t é r i o ” e m p i r i s t a d e q u e é
o v isív e l q u e v a i d e c i d i r a a c e i t a ç ã o o u r e j e iç ã o d e u m a t e o r i a s o b r e o in v is ív e l. 29
E s ta p o s i ç ã o c o n t i n u a a s e r f u n d a m e n t a l p a r a to d o o d e s e n v o l v im e n to d a fís ic a ;
c o n t i n u a a c o n f l i t a r c o m a s t e n d ê n c i a s filo s ó f ic a s “r e l a t i v i s t a ” e “p o s i t i v i s t a ” . 30

26 — A p o u c a f e r t i l i d a d e d a t e o r i a “e s s e n c ia lis ta ” d a s u b s t â n c i a e s tã l i g a d a a o s e u a n t r o p o m o r t i s m o ;
d e f a t o , c o m o L o c k e v iu b e m , a s s u b s t â n c i a s d e r i v a m s u a p l a u s i b i l i d a d e d a e x p e r i ê n c i a d o h o m e m : u m
s e r id ê n t i c o q u e n o e n t a n t o m u d a e se d e s e n v o lv e . M a s , e m b o r a p o s s a m o s a c e i t a r o f a t o d e q u e a s u b s ­
t â n c i a a r i s t o t é l i c a t e n h a d e s a p a r e c i d o d a física, n ã o h á n a d a d e m a l — c o m o d iz o p r o f e s s o r H a y e k —
e m p e n s a r a n t r o p o m o r f i c a m e n t e a r e s p e it o d o hom em ; n ã o h á q u a l q u e r r a z ã o f ilo s ó f ic a , o u a p r i o r í s t i c a ,
p a r a q u e e ss a id é ia d e s a p a r e ç a d a p s ic o lo g ia .

27 — V id e a s e x ta n o t a d o c a p . S d e s te liv ro .

28 — C f . D e m ó c r i t o , D ie ls , f r a g . 11 (c f. A n a x á g o r a s , D ie ls , f r a g . 21 e t a m b é m f r a g . 7).

29 — C f. S e x tu s E m p i r i c u s , A d v. M a th em . ( B e k k e r ) , v ii, 1 4 0 , p à g . 2 2 1 , 2 3 B .

3 0 — " R e l a t i v i s t a ” n o s e n ti d o d o r e la tiv is m o filo s ó fic o , c o m o p o r e x e m p l o o d a d o u t r i n a d o hom o m e n ­


sura d e P r o t a g o r a s . I n f e l i z m e n t e , a i n d a é n e c e s s á r io e n f a t i z a r q u e a t e o r i a d e E i n s te in n a d a te m e m
c o m u m c o m e sse r e l a t i v i s m o filo s ó fic o . O t e r m o " p o s itiv is ta " d e n o t a t e n d ê n c i a c o m o a d e B a c o n , p o r
e x e m p lo ; a t e o r ia d a p r i m i t i v a R oyal Society ( t e o r i a m a s n ã o a p r á t i c a , a f o r t u n a d a m e n t e ) ; e , n o n o s so
te m p o , a s id é ia s d e M a c h ( q u e se o p ô s à t e o r i a a t ô m i c a ) e d o s te o r is ta s d o s d a d o s s e n s o r ia is .
A N A T U R E Z A DO S P R O B L E M A S F IL O SÓ FIC O S E SU A S RA ÍZES C IE N T ÍF IC A S 111

A lé m d is s o , a t e o r i a d e D e m ó c r i to le v o u a o s p r i m e i r o s ê x ito s d o m é t o d o d a
e x a u s t ã o ( p r e c u r s o r d o c á lc u lo d a i n t e g r a ç ã o ) ; o p r ó p r i o A r q u i m e d e s r e c o n h e c e u
q u e D e m ó c r i to fo i o p r i m e i r o a f o r m u l a r a t e o r i a s o b r e o v o lu m e d o s c o n e s e d a s
p i r â m i d e s . 31 O e l e m e n t o m a i s f a s c i n a n t e d a t e o r i a d e D e m ó c r i t o ta lv e z s e ja s u a
d o u tr in a d a q u a n tiz a ç ã o d o e sp a ç o e d o te m p o . R e fir o -m e à d o u tr in a — q u e u l ­
t i m a m e n t e t e m s id o m u i t o d i s c u t i d a 323 — d e q u e h á u m a d istâ n c ia m ín im a e u m
in te rv a lo d e te m p o m ín im o ·, is to é , q u e h á d i s t â n c i a s n o e s p a ç o e n o te m p o —
e l e m e n to s ta is d e e x t e n s ã o e d e t e m p o (o a m e r é s 3 3 d e D e m ó c r i t o , c iif e r e n te d o s e u
“á to m o ” ) q u e n ã o p o d e ría h a v e r m e n o re s.

V II

O a t o m i s m o d e D e m ó c r i t o fo i d e s e n v o lv id o e e x p o s to s o b a f o r m a d e r e s ­
p o s t a d e t a l h a d a 34 a o s a r g u m e n t o s m i n u c io s o s d o s s e u s p r e d e c e s s o r e s e le á tic o s —
P a rm e n id e s e Z en o .

A . d o u t r i n a d a s d i s t â n c i a s a t ô m i c a s e d o s in t e r v a l o s d e t e m p o d e D e m ó c r i to
r e s u l t a e m e s p e c i a l, d e f o r m a d i r e t a , d o s a r g u m e n t o s d e Z e n o — o u , m a i s p re c jP
s a m e n t e , d a r e j e iç ã o d a s s u a s c o n c lu s õ e s . C o n t u d o , e m t u d o o q u e c o n h e c e m o s d e
Z e n o n ã o h á n e n h u m a a lu s ã o à d e s c o b e r ta d o s irr a c io n a is , q u e t e m i m p o r t â n c i a
d e c is iv a p a r a o a s s u n to .

N ã o s a b e m o s d a t a r a p r o v a d a i r r a c i o n a l i d a d e d a r a iz q u a d r a d a d e 2 , o u
s u a d iv u l g a ç ã o . E m b o r a h a j a u m a t r a d i ç ã o q u e a t r i b u i a P i t á g o r a s (n o s e x to s é c u lo
a n t e s d e C r is to ) , e e m b o r a a lg u n s a u t o r e s 35 a c h a m e m d e “ t e o r e m a d e P it á g o r a s ? ,
n ã o p o d e h a v e r m u i t a d ú v i d a d e q u e e ss a d e s c o b e r t a n ã o fo i f e i t a , e c e r t a m e n t e
n ã o fo i d i v u l g a d a , a t é o a n o 4 5 0 a n te s d e C r is to — p r o v a v e l m e n t e n ã o a n te s d e
4 2 0 . E in c e r t o se D e m ó c r i t o a c o n h e c i a ; h o je , i n c l i n o - m e a p e n s a r q u e n ã o — q u e o
t í t u l o d a s d u a s o b r a s p e r d i d a s d e D e m ó c r i t o , P e r i A lo g ó n G r a m m ó n k a i N a s tó n ,

31 — C f. D ie ls , f r a g . 1 5 5 , q u e p r e c is a s e r i n t e r p r e t a d o à lu z d e A r q u i m e d e s ( e d . H e ib e r g ) I I 2 , p á g .
4 2 8 . V id e t a m b é m o i m p o r t a n t e a r t i g o d e S . L u r i a , “ D ie I n f i n i t e s i m a l m e t h o d e d e r a n t i k e n A t o m i s t e n ”
( Q uellen & S tu d ien zu r Gesch. d. M a th ., B , 2, H e f t 2 , 1 9 3 2 , p á g . 1 4 2 ).

32 — C f. A . M a r c h , N a tu r u n d E rkenntnis, V i e n a , 1 9 4 8 , p á g . 1 9 3 . -
3 3 — C f. S . L u r i a , opus cit., e m e s p e c ia l a p a r t i r d a s p á g i n a s 1 4 8 e 1 7 2 . A . T . N ic o ls a r g u m e n t a , e m
“ I n d iv i s ib le L i n e s ” ( Class. Q uarteríy, X X X , 1 9 3 6 , 1 2 0 ), q u e “ d u a s p a s s a g e n s , u m a d e P l u t a r c o , a o u t r a
d e S im p líc i o , m o s t r a m p o r q u e D e m ó c r i t o “ n ã o p o d i a a c r e d i t a r e m l i n h a s in d iv is ív e is ” ; o a u t o r n ã o
e x a m i n a , p o r é m , o p o n t o d e v is ta o p o s to , d e L u r i a (1 9 3 2 ) , q u e c o n s id e r o m u i t o m a is c o n v i n c e n t e — e s ­
p e c i a l m e n t e se r e c o r d a m o s q u e D e m ó c r i t o t e n t o u r e f u t a r Z e n o ( v id e a n o t a s e g u in t e ) . Q u a l q u e r q u e
t e n h a s id o a o p i n i ã o d e D e m ó c r i t o a r e s p e i t o d a s d is t â n c i a s a t ô m i c a s , o u in d iv is ív e is , P l a t ã o p a r e c e t e r
a c r e d i t a d o q u e o a to m is m o d e D e m ó c r i t o p r e c is a v a s e r r e v is to à lu z d a d e s c o b e r t a d o s i r r a c i o n a i s . C o n ­
tu d o , H e a t h ( G reek M a them atics, 1, 1 9 2 1 , p á g . 1 8 1 ), r e f e r i n d o - s e a S i m p líc i o e a A r is tó te le s , d e c l a r a
t a m b é m a c r e d i t a r q u e D e m ó c r i t o n ã o e n s i n o u a e x is t ê n c ia d e l i n h a s in d iv is ív e is .
34 — E ssa r e s p o s ta p o r m e n o r i z a d a fo i p r e s e r v a d a n o t r a b a l h o d e A r is tó te le s Sobre a Geração e a
Corrupção, 3 1 6 a , 14 e seg s. — u m a p a s s a g e m m u i t o i m p o r t a n t e q u e fo i a p r i n c í p i o q u a l i f i c a d a c o m o
r e f l e t i n d o a p o s iç ã o d e D e m ó c r ito ( p o r I. H a m m e r J e n s e n , e m 1 9 1 0 ), e d e p o is e x a m i n a d a c u i d a d o s a -
m e n t e p o r L u r i a , q u e d iz ( p á g . 13 5 , opus cit.) a r e s p e it o d e P a r m ê n i d e s e d e Z e n o : “ D e m ó c r i t o to m a
e m p r e s t a d a s u a a r g u m e n t a ç ã o d e d u t i v a , m a s c h e g a a c o n c lu s õ e s o p o s t a s ” .
35 — C f. G . H . H a r d y e E . M . W r i g h t , In tro d u ctio n to the T heory o f N u m bers, 1 9 3 8 , p á g s . 3 9 e 4 2 ,
o n d e e n c o n t r a m o s u m a o b s e r v a ç ã o h i s t ó r i c a m u i t o in t e r e s s a n t e s o b r e a p r o v a d e T e o d o r o , c o n f o r m e o
T h ea etetu s d e P l a t ã o . V id e t a m b é m o a r t i g o d e A . W a s s e r s te in , “ T h e a e t e t u s a n d t h e H is to r y o f th e
T h e o r y o f N u m b e r s ” , Classical Quarteríy, 8, N . S ., 1 9 5 8 , p ã g s . 1 6 5 -7 9 — o m e l h o r e x a m e d e s s e p o n t o
q u e conheço.
112 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

d e v e ria s e r t r a d u z i d o c o m o S o b re as L in h a s Iló g ic a s e os C o rp o s C o m p a c to s
(.Á to m o s ) 36 — e sse s d o is liv ro s n ã o d e v i a m c o n t e r q u a l q u e r r e f e r ê n c i a à d e s c o b e r t a
d a i r r a c i o n a l i d a d e . 37

M i n h a c r e n ç a e m q u e D e m ó c r i to n ã o e s t a v a c o n s c i e n te d o p r o b l e m a d o s
n ú m e r o s i r r a c i o n a i s se b a s e i a n o f a t o d e q u e n ã o h á v e s tíg io d e q u a l q u e r d e f e s a d a
s u a t e o r i a c o n t r a o g o lp e q u e e la r e c e b e u c o m a q u e l a - d e s c o b e r t a — g o l p e q u e fo i
t ã o l e t a l p a r a o a t o m i s m o , c o m o p a r a o p e n s a m e n t o p i t a g ó r i c o . E ssa s d u a s te o r ia s
se f u n d a m e n t a v a m , d e f a t o , n a d o u t r i n a d e q u e t o d a m e d i d a p o d e s e r r e d u z i d a a
n ú m e r o s p u r o s . A s s im , a d i s t â n c i a e n t r e d o is p o n to s a tô m ic o s q u a i s q u e r p r e c i s a
c o n s i s ti r e m u m c e r t o n ú m e r o d e d i s t â n c i a s a t ô m i c a s — p o r isso to d a s a s d i s t â n c i a s
s ã o c o m e n s u r á v e i s . M a s isso é im p o s s ív e l, m e s m o n a h i p ó t e s e m a i s s i m p l e s d a d i s ­
t â n c i a e n t r e os â n g u l o s d e u m q u a d r a d o , d e v id o à i n c o m e n s u r a b i l i d a d e d a d i a ­
g o n a l d c o m o l a d o a.

O t e r m o “ i n c o m e n s u r á v e l ” n ã o é m u i t o fe liz . O q u e se q u e r d iz e r é q u e n ã o
há u m a ra zã o d e n ú m e r o s n a tu r a is . P o r e x e m p l o : o q u e p o d e s e r p r o v a d o , n o c a s o
d a d i a g o n a l d o q u a d r a d o u n i t á r i o , é q u e n ã o e x is te m d o is n ú m e r o s n a t u r a i s , n e
m , c u ja r a z ã o , n / m , s e ja ig u a l ã s u a d i a g o n a l . “ I n c o m e n s u r a b i l i d a d e ” n ã o s i g n if i c a
p o r t a n t o i n c o m p a r a b i l i d a d e p o r m é t o d o s g e o m é t r i c o s o u p e l a m e d iç ã o , m a s in -
c o m p a r a b i l i d a d e p e lo s p ro c e s s o s a r i t m é t i c o s d e c o n ta g e m c o m n ú m e r o s n a t u r a i s —
in c lu s iv e o m é t o d o c a r a c t e r i s t i c a m e n t e p i t a g ó r i c o d e c o m p a r a r ra zõ es d e n ú m e r o s
n a tu r a is ( i n c l u i n d o , n a t u r a l m e n t e , a c o n t a g e m d e u n i d a d e s d e e x te n s ã o ) .

R e t o r n e m o s , p o r u m m o m e n t o , à s c a r a c t e r í s t i c a s d e s te m é to d o d o s n ú m e r o s
n a tu ra is e su a s ra zõ e s. A ê n f a s e p i t a g ó r i c a n o N ú m e r o fo i f r u t í f e r a , d o p o n t o d e
v is ta d o d e s e n v o l v im e n to d e id é ia s c i e n t í f i c a s , o q u e se c o s t u m a e x p r e s s a r c o m
f r e q ü ê n c i a — m a s v a g a m e n t e — c o m a a f i r m a t i v a d e q u e P i t á g o r a s d e u in íc io à
m e d i ç ã o n u m é r i c a c i e n t í f i c a . O q u e p r e t e n d o a c e n t u a r a q u i é q u e p a r a os p i t a -
g ó r ic o s isso e r a c o n ta g e m , n ã o m e d iç ã o : a c o n t a g e m d e n ú m e r o s , e ssa s e s s ê n c ia s o u
“ n a t u r e z a s ” in v is ív e is . E le s s a b i a m q u e n ã o p o d e m o s c o n t a r esses p e q u e n o s p o n to s

3 6 — E m vez d e Sobre as L inhas Irracionais e os Á to m o s (O n Irrational L ines a n d A to m s), c o m o t r a d u z i


n a n o t a 9 , c a p . 6 , d e Open. Society ( 2 . a e d i ç ã o ) . O s e n ti d o p r o v á v e l d e ss e t í t u l o , c o n s i d e r a n d o a p a s ­
s a g e m d e P l a t ã o m e n c i o n a d a n a n o t a s e g u in t e , l e v a r ia à t r a d u ç ã o “O n Crazy L ines and A to m s ” ( C f. H .
V o g t, Bibl. M a th ., 1 9 1 0 , 10 , 147 — c o n t r a q u e m H e a t h a r g u m e n t a , e m op. cit., 1 5 6 , n a m i n h a o p i n i ã o
s e m g r a n d e ê x ito — e S . L u r i a , opus cit., p á g . 1 6 8 , o n d e se s u g e r e , d e m o d o c o n v in c e n te , q u e De insec.
lin. 9 6 8 b 17 (A rist.) e De com m . n o tit., 3 8 ,2 , p á g . 1 0 7 8 ( P l u t . ) c o n t ê m v e s tíg io s d o t r a b a l h o d e D e ­
m ó c r ito . D e a c o r d o c o m e ssa s f o n te s , o a r g u m e n t o d e D e m ó c r i t o e r a o s e g u in t e : se a s l i n h a s s ã o i n f i ­
n i t a m e n t e d iv is ív e is , s ã o c o m p o s t a s p o r u m a i n f i n i d a d e d e u n i d a d e s ú lt i m a s , t o d a s e la s r e l a c i o n a d a s e n ­
t r e si c o m o oo: co is to é , s ã o to d a s “ n ã o c o m p a r á v e i s ” (s e m u m a p r o p o r ç ã o ) . D e f a t o , se c o n s i d e r a r m o s
as lin h a s c o m o c la s s e s d e p o n to s , o n ú m e r o c a r d i n a l ( p o t ê n c i a ) r e la tiv o a to d o s o s p o n to s d e u m a li n h a
s e r á o m e s m o ( s e g u n d o o p o n t o d e v is ta m o d e r n o ) , s e ja m a s l i n h a s f i n i t a s o u in f i n i t a s . E sse f a t o j á fo i
q u a l i f i c a d o d e “ p a r a d o x a l ” ( p o r e x e m p lo , p o r B o lz a n o ) — e p o d e r í a p e r f e i t a m e n t e s e r c h a m a d o d e
“ ir r a z o á v e l ” ( e m in g lê s , crazy) p o r D e m ó c r ito . N o te -s e q u e , s e g u n d o B r o u w e r , m e s m o n a t e o r i a c lá s s ic a
d e L e b e s g u e a m edida, d e u m co n tin u u m le v a f u n d a m e n t a l m e n t e a o m e s m o r e s u l t a d o : B r o u w e r a f i r m a
q u e to d o s o s co n tin u a c lá s s ic o s t ê m m e d i d a z e r o , d e m o d o q u e a i n e x is tê n c ia d e u m a p r o p o r ç ã o p o d e s e r
e x p r e s s a d a p o r 0 : 0 . 0 r e s u l t a d o d e D e m ó c r ito (e s u a t e o r i a d o am eres) p a r e e i a m e s c a p á v e l, n a m e d i d a e m
q u e a g e o m e t r i a se b a s e ia n o m étodo o-rhnético d e P i t á g o r a s — is to é , n a c o n t a g e m d e p o n to s .

37 — Is s o e s t a r i a d e a c o r d o c o m o f a t o , m e n c i o n a d o n a n o t a c i t a d a d e O pen Society, d e q u e o t e r m o
alogos s ó m u i t o m a i s t a r d e p a r e c e t e r s id o u s a d o c o m o s e n t i d o d e “ i r r a c i o n a l " ; a o a l u d i r a o t í t u l o d e
D e m ó c r ito , n a R ep ú b lic a ( 5 3 4 d ) , P l a t ã o u s a alogos n a a c e p ç ã o d e “ ir r a z o á v e l" — n u n c a o u ti l i z a c o m o
s in ô n im o d e arrhétos.
A N A T U R E Z A DO S P R O B LE M A S F IL O SÓ FIC O S E SU A S RA ÍZES C IE N T ÍF IC A S 113

d i r e t a m e n t e , j á q u e s ã o in v is ív e is , e q u e n a v e r d a d e n ã o c o n ta m o s n ú m e r o s o u
u n i d a d e s n a t u r a i s , m a s m e d im o s — is to é , c o n t a m o s u n i d a d e s v isív e is a r b i t r á r i a s .
C o n t u d o , p a r a e le s e ss a s m e d i ç õ e s r e v e l a v a m , i n d i r e t a m e n t e , as ra zõ es v e rd a d e ira s
das u n id a d e s n a tu r a is : os n ú m e r o s n a tu ra is.

D a í o f a t o d e q u e o m é t o d o d e E u c lid e s p a r a p r o v a r o c h a m a d o “T e o r e m a
d e P i t á g o r a s ( E u c lid e s , 1, 4 7 ), s e g u n d o o q u a l s e e é o l a d o d e u m t r i â n g u l o o p o s to
a seu â n g u lo re to e n tre b e c,

(1) a2 = b 2 + c 2,

é u m m é t o d o e s t r a n h o a o e s p í r it o d a m a t e m a n c a p i t a g ó r i c a . P a r e c e a g o r a g e r a l ­
m e n t e a c e i t o q u e esse t e o r e m a j á e r a c o n h e c i d o d o s b a b il ô n io s , q u e o h a v i a m
d e m o n s tra d o g e o m e tric a m e n te . C o n tu d o , n e m P itá g o ra s n e m P la tã o p a re c e m te r
c o n h e c i d o a p r o v a g e o m é tr ic a d e E u c lid e s ( q u e u s a d i f e r e n t e s t r i â n g u l o s c o m b a s e e
a l t u r a c o m u n s ) ; c o n h e c i d a a f ó r m u l a (1 ), o p r o b l e m a p a r a o q u a l o f e r e c e r a m
s o lu ç õ e s , o p r o b l e m a a r itm é tic o d e e n c o n t r a r s o lu ç õ e s i n t e g r a i s p a r a o s la d o s d o s
tr iâ n g u lo s r e tâ n g u lo s , p o d e ser s o lu c io n a d o f a c ilm e n te p e la f ó r m u la

(2 ) a = m 2 + n 2 b= 2m n c = m ^ + n^

(o n d e m e n são n ú m e ro s n a tu ra is e m > n ).

M a s a f ó r m u l a (2 ) e r a a p a r e n t e m e n t e d e s c o n h e c i d a p o r P i t á g o r a s e m e s m o
p o r P la tã o — é o q u e d e p r e e n d e m o s d a t r a d i ç ã o 38 s e g u n d o a q u a l P it á g o r a s
p ro p ô s o u tra fó r m u la :

(3 ) a = 2 n (n + 1) + 1 b = 2 n ( n + 1) c = 2n + 1

(o b tid a d a fó r m u la (1 ) m e d i a n t e m = n + 1 ), q u e p o d e s e r d e p r e e n d i d a d o
g n o m o n d o s n ú m e r o s q u a d r a d o s , m a s q u e é m e n o s g e r a l d o q u e (2 ), p o is f a l h a , p o r
e x e m p l o , n o c a s o d e 1 7 :8 :1 5 . A P l a t ã o , q u e p a r e c e t e r a p e r f e i ç o a d o a f ó r m u l a
p it a g ó r i c a 39, a tr ib u i-s e u m a o u tr a f ó r m u la q u e ta m b é m n ã o te m a p lic a ç ã o g e ra l.

P a r a m o s tr a r a d if e re n ç a e n tr e o m é to d o p ita g ó ric o , a r itm é tic o e o g e o ­


m é tric o , p o d e -s e m e n c io n a r a p ro v a d e P la tã o d e q u e o q u a d r a d o c o n s tru íd o c o m a
d i a g o n a l d o q u a d r a d o u n i t á r i o (is to é , o q u a d r a d o c o m l a d o 1 e á r e a d e m e d i d a 1)
te m á r e a q u e é o d o b r o d a d o q u a d r a d o u n i t á r i o (is to é , u m a á r e a d e m e d i d a 2 ).
E ssa p r o v a c o n s is te e m d e s e n h a r u m q u a d r a d o c o m a s e g u i n t e d i a g o n a l :

m o s t r a n d o e m s e g u i d a q u e o d e s e n h o p o d e s e r a m p l i a d o a s s im .

38 — Procli D iadochi in P rim um Euclidis Elem entorum L ibru m Com m entarii, e d . F rie d le in , L eip zig ,
1873, p á g s. 4 8 7 , 7-21.
39 — P o r P ro c lu s, op. cit., p á g s. 4 2 8 , 2 1 -4 2 9 , 8.
114 C O N JE C T U R A S E R E FU TA Ç Õ E S

A p a r t i r desse p o n to c h e g a m o s a u m re s u lta d o p o r c o n ta g e m . M as a tr a n s iç ã o d a
p r i m e i r a f i g u r a p a r a a s e g u n d a n ã o p o d e s e r p r o v a d a v á li d a p e la a r i t m é t i c a d o s
p o n to s — e t a m b é m n ã o p e lo m é t o d o d a s r a z õ e s .

É o q u e d e m o n s t r a a f a m o s a p r o v a d a i r r a c i o n a l i d a d e d a d i a g o n a l , is to é.
d a ra iz q u a d r a d a d e 2. q u e se p r e s u m e t e r s id o b e m c o n h e c i d a p o r P l a t ã o e A r is ­
tó te le s . C o n s is te e m m o s t r a r q u e a p r e m is s a

( 1 ) ^ = n /m

is to é , d e q u e f é é ig u a l à r a z ã o d e q u a i s q u e r d o is n ú m e r o s n a t u r a i s , n e m —
le v a a u m a b s u r d o .

O b s e r v a m o s , i n i c i a l m e n t e , q u e é p o ssív e l a d m i t i r q u e
(2 ) d o s d o is n ú m e r o s n a t u r a i s , n e m , u m só é p a r .

C o m e f e i to , se a m b o s fo s se m p a r e s , p o d e r i a m o s s e m p r e c a n c e la r o f a to r 2,
o b t e n d o d o is o u tr o s n ú m e r o s n a t u r a i s , n ’ e m ’, ta i s q u e n / m = n ' / m ’, d o s q u a is
n ’ou m \ s e r ia p a r . O r a , e le v a n d o (1 ) a o q u a d r a d o , te m o s :

(3 ) 2 = n 2 / m 2
e d a í:
(4 ) 2 m 2 = n 2
lo g o :
(5 ) n é p a r .

A s s im , d e v e h a v e r u m n ú m e r o n a t u r a l a , q u e f a ç a c o m q u e

(6 ) n = 2 a ;

de (3 ) e (6 ) e x tr a ím o s

(7 ) 2 m 2 = n 2 = 4a2
p o rta n to :

(8 ) m 2 = 2 a 2

p e lo q u e :
(9 ) m é p a r .

E s tá c l a r o q u e (5 ) e (9 ) c o n t r a d i z e m (2 ). A s s im , a p r e m is s a d e q u e h á d o is
n ú m e r o s n a tu r a is , n e m , c u ja ra z ã o é ig u a l a 2, le v a a u m a c o n c lu s ã o a b s u r d a .
P o r c o n s e g u i n t e , 12 n ã o é u m a r a z ã o , m a s u m n ú m e r o “ i r r a c i o n a l ” .
A N A T U R E Z A DOS P R O B LE M A S F IL O SO FIC O S E SU AS RA IZES C IE N T IF IC A S 115

E ssa p r o v a u s a a p e n a s a a r i t m é t i c a d o s n ú m e r o s n a t u r a i s — p o r t a n t o ,
m é t o d o s p u r a m e n t e p it a g ó r i c o s . N ã o p r e c i s a m o s q u e s t i o n a r a t r a d i ç ã o s e g u n d o a
q u a l e la fo i d e s c o b e r t a p e lo s p it a g ó r i c o s ; m a s é im p r o v á v e l q u e a d e s c o b e r t a t e n h a
s id o f e i t a p e lo p r ó p r i o P i t á g o r a s , o u q u e t e n h a s id o f e i t a n u m a é p o c a r e m o t a : Z e n o
e D e m ó c r i t o n ã o p a r e c e m tê - la c o n h e c i d o . A lé m d is s o , c o m o d e s t r u i u a b a s e d o
p e n s a m e n t o p i t a g ó r i c o , é r a z o á v e l p r e s u m i r q u e n ã o fo i c o n c e b i d a m u i t o a n te s d e
a q u e l a o r d e m t e r a t i n g i d o o á p ic e d a s u a in f l u ê n c i a — p e lo m e n o s n ã o a n te s d e
q u e e stiv e ss e p e r f e i t a m e n t e e s t a b e l e c i d a .

A t r a d i ç ã o d e q u e a d e s c o b e r t a fo i f e i t a d e n t r o d a o r d e m , m a s m a n t i d a e m
s e g r e d o , p a r e c e - m e b a s t a n t e p la u s ív e l , e p o d e r í a s e r a p o i a d a p e l a c o n s i d e r a ç ã o d e
q u e o t e r m o a n t i g o p a r a “i r r a c i o n a l ” (a r r h é to s , “i m p r o n u n c i á v e l ” o u " n ã o m e n -
c io n á v e l” ) i n s i n u a u m s e g r e d o . D e a c o r d o c o m e s s a t r a d i ç ã o , o m e m b r o d a e s c o la
q u e r e v e l o u o s e g r e d o fo i m o r t o p e l a s u a t r a i ç ã o . 40 D e q u a l q u e r m o d o , n ã o h á
m u i t a d ú v i d a d e q u e a p e r c e p ç ã o d e q u e e x is te m m a g n i t u d e s ir r a c i o n a i s ( n a t u r a l -
m e n t e , n ã o e r a m c o n c e b i d a s c o m o n ú m e r o s ) e d e q u e s u a e x is tê n c i a p o d i a s e r
d e m o n s t r a d a m i n o u a fé q u e d a v a c o n s i s tê n c i a à o r d e m p i t a g ó r i c a , d e s t r u i n d o a
e s p e r a n ç a d e q u e fo sse p o ss ív e l d e r i v a r a c o s m o lo g i a , o u m e s m o a g e o m e t r i a , d a
a ritm é tic a do s n ú m e ro s n a tu r a is .

V III

F o i P l a t ã o q u e p e r c e b e u isso ; fo i e le q u e , n a s L e is , a c e n t u o u a i m p o r t â n c i a d a
d e s c o b e r t a n o s t e r m o s m a i s v ig o ro s o s , d e n u n c i a n d o o s c o m p a t r i o t a s p o r n ã o e n t e n ­
d e r e m s u a s im p li c a ç õ e s . E s to u s e g u r o d e q u e t o d a a s u a filo s o f ia — e s p e c i a l m e n t e a
t e o r i a d a s “f o r m a s ” o u “ i d é i a s ” — s o f r e u a i n f l u ê n c i a d e s s e f a t o .

P l a t ã o se s i tu a v a m u i t o p e r t o d o s p i t a g ó r i c o s e d o s e l e a ta s ; e m b o r a p a r e ç a
t e r s e n t id o a n t i p a t i a c o m r e l a ç ã o a D e m ó c r i t o , e le p r ó p r i o e r a u m a e s p é c ie d e
a t o m i s t a . O e n s i n a m e n t o a t o m ís ti c o c o n s t i t u i u u m a d a s t r a d iç õ e s d a s u a A c a d e ­
m i a . 41 Isso n ã o n o s s u p r e e n d e r á se le v a r m o s e m c o n t a a e s t r e i t a r e l a ç ã o q u e h á
e n t r e a s id é i a s p i t a g ó r i c a s e a to m ís ti c a s . T u d o isso fo i a m e a ç a d o p e l a d e s c o b e r t a
d o s n ú m e r o s ir ra c io n a is .

P e n s o q u e a p r i n c i p a l c o n t r i b u i ç ã o p l a t ô n i c a à c iê n c ia te v e s u a s ra íz e s n a
p e r c e p ç ã o d o p r o b l e m a d o s ir r a c i o n a i s , n a m o d i f i c a ç ã o d a s id é ia s p i t a g ó r i c a s e
a t o m ís ti c a s q u e e le p r e c i s o u p r o m o v e r p a r a s a l v a r a c iê n c ia d e u m a s i t u a ç ã o c a t a s ­
tr ó fic a .

P l a t ã o p e r c e b e u q u e a t e o r i a p u r a m e n t e a r i t m é t i c a d a n a t u r e z a e s ta v a
d e r r o t a d a ; q u e e r a n e c e s s á r io c r i a r u m n o v o m é t o d o m a t e m á t i c o p a r a d e s c r e v e r e
e x p l i c a r o m u n d o — p o r isso in c e n t iv o u o d e s e n v o l v im e n to d e u m m é t o d o g e o ­
m é t r i c o a u t ô n o m o , q u e d a r i a f r u t o s n o s E le m e n to s d e E u c lid e s — u m p e n s a d o r q u e
s e g u iu a l i n h a p l a t ô n i c a .

4 0 — 0 d e l a t o r s e r ia u m c e r t o H ip a s o , f i g u r a q u e a p a r e c e c o m p o u c a n i tid e z n a p e n u m b r a d a h is tó r ia .
D iz -s e q u e e ss e H i p a s o m o r r e u n o m a r ( c f. D ie ls ). V id e t a m b é m o a r t i g o d e A . W a s s e r s te in , j á m e n ­
c io n a d o .

41 — V id e S . L u r i a , e s p e c i a l m e n t e a r e s p e it o d e P l u t a r c o , loc. cit.
116 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

Q u a is s ã o os f a t o s h is tó r ic o s ? T e n t a r e i r e l a c io n á - lo s e m p o u c a s p a la v r a s :

1) N a f o r m a c o m o se m a n i f e s t a m e m D e m ó c r i t o , t a n t o a s id é i a s a to m ís ti c a s
c o m o a s p i t a g ó r i c a s se b a s e i a m f u n d a m e n t a l m e n t e n a a r i t m é t i c a — is to é , n a c o n ­
ta g e m .

2 ) P l a t ã o a c e n t u o u o c a r á t e r c a t a s t r ó f i c o d a d e s c o b e r t a d o s ir r a c i o n a i s .

3) E le m a n d o u e s c r e v e r n o p o r t ã o d a s u a A c a d e m i a : “ N ã o E n t r a r á N e s ta
C a s a Q u e m N ã o S o u b e r G e o m e t r i a ” . M a s , d e a c o r d o c o m A r is tó te le s , q u e fo i s e u
a l u n o 4 2 43, e t a m b é m d e a c o r d o c o m E u c li d e s , a g e o m e tr ia t r a t a t i p i c a m e n t e d o s in -
c o m e n s u r á v e i s o u i r r a c i o n a i s , e m c o n t r a p o s i ç ã o à a r itm é tic a , q u e t r a t a d o s n ú ­
m e r o s “p a r e s e í m p a r e s ” — q u e r d iz e r , d o s n ú m e r o s i n t e ir o s e s u a s r e la ç õ e s .

4 ) P o u c o t e m p o d e p o is d a m o r t e d e P l a t ã o , s u a e s c o la p r o d u z i u u m a o b r a
— o s E le m e n to s d e E u c li d e s — q u e te v e c o m o u m d e s e u s e fe ito s p r i n c i p a i s l i b e r t a r
a m a t e m á t i c a d a p r e m is s a “ a r i t m é t i c a ” d a c o m e n s u r a b i l i d a d e e d a r a c i o n a l i d a d e .

5) O p r ó p r i o P l a t ã o c o n t r i b u i u p a r a esse d e s e n v o l v im e n to — e s p e c i a l m e n t e
n o c a m p o d a g e o m e t r i a s ó l id a .

6 ) M a is e s p e c i a l m e n t e , e le e l a b o r o u , n o T im e u , u m a v e r s ã o g e o m é t r i c a d a
te o r i a a t o m í s t i c a , q u e e m s u a o r i g e m e r a p u r a m e n t e a r i t m é t i c a : v e rs ã o q u e c o n ­
c e b i a p a r t í c u l a s e l e m e n t a r e s (o s fa m o s o s c o r p o s p la t ô n ic o s ) a p a r t i r d e t r i â n g u l o s
q u e i n c o r p o r a v a m a s ra íz e s q u a d r a d a s i r r a c i o n a i s d e d o is e d e tr ê s . E m q u a s e to d o s
os o u t r o s a s p e c to s , P l a t ã o p r e s e r v o u as id é i a s p i t a g ó r i c a s , b e m c o m o a lg u m a s d a s
id é ia s m a i s i m p o r t a n t e s d e D e m ó c r i t o . 4J P r o c u r o u , a o m e s m o t e m p o , e l i m i n a r o
c o n c e i to d e “ v a z io ” d e D e m ó c r i to , p o r q u e p e r c e b e u 44 q u e o m o v i m e n t o é p o ssív e l
m e s m o n u m m u n d o “ c o m p a c t o ” , d e s d e q u e s e ja c o n c e b i d o c o m o v ó r tic e s n u m
f l u i d o . G u a r d o u , p o r t a n t o , a l g u m a s d a s id é ia s m a is f u n d a m e n t a i s d e P s r m ê n i -
d e s . 45

7) P la tã o e n c o r a jo u a c o n s tru ç ã o d e m o d e lo s g e o m é tric o s d o m u n d o , e s ­
p e c i a l m e n t e m o d e l o s q u e e x p lic a s s e m o s m o v i m e n t o s p l a n e t á r i o s . A c r e d i t o q u e a
g e o m e t r i a d e E u c lid e s n ã o p r e t e n d i a s e r u m e x e r c í c io d e g e o m e t r i a p u r a (c o rn o

42 - A n . Post., 7 6 b 9 ; M eta}., 9 8 3 a 2 0 , 1 0 6 1 b 1; E pinom is, 9 9 0 d .


4 3 — P l a t ã o a c e i t o u a t e o r i a d o s v ó rtic e s , d e D e m ó c r ito , (D ie ls , f r a g m . 1 6 7 , 1 6 4 ; c f. A n a x á g o r a s , D ie ls
9 , 12 e 1 3 ) e s u a t e o r i a d o q u e c h a m a r í a m o s h o je d e f e n ô m e n o s g r a v i t a c i o n a i s (D ie ls , 1 6 4 ; A n a x á g o r a s ,
1 2 , 1 3 , 15 e 2 ), a q u a l fo i l i g e i r a m e n t e m o d i f i c a d a p o r A r is tó te le s e r e j e i t a d a d e p o is p o r G a lile u .

4 4 — A p a s s a g e m m a is c l a r a a e s te r e s p e it o é a d o T im eu , 8 0 c , o n d e se d iz q u e n e m n o c a s o d o â m b a r
f r i c c i o n a d o n e m n o d a “ p e d r a h e r a c l i a n a ” ( m a g n e t o ) h á d e f a t o q u a l q u e r a t r a ç ã o : “ n ã o e x is t e o v a z io ;
a s c o is a s d e s li z a m u m a s s o b r e a s o u t r a s ” . P o r o u t r o la d o , P l a t ã o n ã o fo i m u i t o c l a r o s o b r e e s s e p o n t o ,
p o is s u a s p a r t í c u l a s e l e m e n t a r e s ( e x c e t u a d a s o c u b o e a p i r â m i d e ) n ã o p o d e m s e r a p r o x i m a d a s s em
d e i x a r a l g u m e s p a ç o e n t r e si (v a z io ? ), c o m o o b s e r v o u A r is tó te le s e m De Caelo, 3 0 6 b 5 . 'V i d e t a m b é m o
T im eu , 5 2 e .
4 5 — A r e c o n c i l i a ç ã o d o a to m i s m o e d a t e o r i a d o p le n u m ( " a n a t u r e z a r e j e i t a o v á c u o ” ), p o r P l a t ã o ,
te m a m a i o r i m p o r t â n c i a p a r a a h i s t ó r i a d a fís ic a , a t é o s n o sso s d ia s . I n f l u i u f o r t e m e n t e e m D e s c a r te s ,
t o r n o u - s e a b a s e d a t e o r i a d o é t e r e d a lu z e , p o r t a n t o , e m ú l t i m a a n á l is e , d a m e c â n i c a o n d u l a t ó r i a d e
B r o g lie e d e S c h r o d i n g e r . a tr a v é s d e H u y g h e n s e M a x w e l l . V id e m e u r e l a t ó r i o e m A tt i d. Congr. In te m .
de Fitos (1 9 5 8 ) , 2 , 1 9 6 0 , p ã g . 3 6 7 .
A N A T U R E Z A DOS P R O B LE M A S F IL O SÓ FIC O S E SU A S RA ÍZES C IE N T ÍF IC A S 117

h o je se i m a g i n a , d e m o d o g e r a l ) , m a s s im o o r g a n o n d e u m a te o ria d o m u n d o . D e
i c o r d o c o m e s te p o n t o d e v is ta , o s E le m e n to s n ã o s ã o u m “c o m p ê n d i o d e g e o ­
m e t r i a ” , m a s u m a t e n t a t i v a d e re s o lv e r s i s t e m a t i c a m e n t e o s p r i n c i p a i s p r o b l e m a s
d a c o s m o lo g i a p l a t ô n i c a — o q u e c o n s e g u i u c o m t a l ê x ito q u e , u m a vez s o l u c io ­
n a d o s , a q u e lç s p r o b l e m a s d e s a p a r e c e r a m e f o r a m q u a s e e s q u e c i d o s . D e i x a r a m u m
v e s tíg io , c o n t y d o , e m P r o c l u s , q u e e s c r e v e u : “ A lg u n s t ê m i m a g i n a d o q u e o a s s u n to
d o s v á r io s liv ro s ( d e E u c lid e s ) d iz e m r e s p e ito a o c o s m o s , t e n d o p o r o b je t iv o a j u d a r -
n o s n a c o n t e m p l a ç ã o d o u n iv e r s o e n a s u a t e o r i z a ç ã o ” . T o d a v i a , n e m m e s m o
P r o c l u s m e n c i o n a n e s s e c o n t e x t o o p r o b l e m a m a i s i m p o r t a n t e — os i r r a c i o n a i s
( e m b o r a se r e f i r a a e le e m o u t r a s p a s s a g e n s ) . M a s o m e s m o P r o c l u s a p o n t a , c o r ­
r e t a m e n t e , q u e os E le m e n to s c u l m i n a m c o m a c o n s t r u ç ã o d o s p o li e d r o s r e g u l a r e s
“c ó s m ic o s ” o u “p l a t ô n i c o s ” . D e s d e P l a t ã o e E u c l i d e s 4 6 , m a s n ã o a n t e s d e le s , a
g e o m e tria a p a re c e , e m lu g a r d a a ritm é tic a , c o m o o in s tru m e n to fu n d a m e n ta l d e
to d a s a s e x p li c a ç õ e s e d e s c r iç õ e s fís ic a s , n a t e o r i a d a m a t é r i a e n a c o s m o l o g i a .47

IX

E sses s ã o o s f a t o s h is tó r ic o s , q u e c o n t r i b u e m m u i t o p a r a d e m o n s t r a r m i n h a
te s e p r i n c i p a l : o m é t o d o p r im a f a c i e u s a d o n o e n s i n o d a filo s o f ia n ã o p o d e le v a r à
c o m p r e e n s ã o d o s p r o b l e m a s q u e i n s p i r a r a m P l a t ã o , c o m o t a m b é m n ã o p o d e le v a r
à a p r e c i a ç ã o d o q u e se p o d e q u a l i f i c a r c o m j u s t i ç a s u a m a i o r r e a l i z a ç ã o filo s ó f ic a
— a t e o r i a g e o m é t r i c a d o m u n d o . A o se v o l t a r e m d e A ris tó te le s p a r a P l a t ã o , os
g r a n d e s fís ic o s d a R e n a s c e n ç a — C o p é r n i c o , G a l i l e u , K e p l e r , G i l b e r t — p r e t e n ­
d e r a m c o m isso s u b s t i t u i r a s s u b s t â n c i a s o u p o t ê n c i a s a r i s to t é li c a s , q u a l i t a t i v a s , p o r
u m m é t o d o g e o m é t r i c o d a c o s m o lo g ia . C o m e f e i to , isso f o i, e m g r a n d e p a r t e , o q u e
o R e n a s c i m e n t o s ig n if i c o u , e m te r m o s c ie n tíf ic o s : o r e s s u r g i m e n t o d o m é t o d o
g e o m é t r i c o , e m q u e se b a s e a r a m E u c lid e s , A r i s t a r c o , A r q u i m e d e s , C o p é r n ic o ,
K e p le r , G a l i l e u , D e s c a r te s , N e w t o n , M a x w e ll e E in s t e in .

P o d e m o s q u a l i f i c a r esse d e s e n v o l v im e n to p r o p r i a m e n t e c o m o filo s ó fic o ? N ã o


s e r á n a v e r d a d e u m c a p í t u l o d a f ís ic a — u m a c iê n c ia f a c t u a l — e d a m a t e m á t i c a
p u r a — q u e p a r a os s e g u i d o r e s d e W i t t g e n s t e i n é u m r a m o d a ló g ic a ta u t o ló g i c a ?

C r e io q u e n e s te p o n t o p o d e m o s p e r c e b e r c l a r a m e n t e p o r q u e a r e a l iz a ç ã o
p l a t ô n i c a fo i filo s ó f ic a — e m b o r a a p r e s e n t e t a m b é m c o m p o n e n t e s fís ic o s , ló g ic o s ,
h í b r i d o s e a t é m e s m o s e m q u a l q u e r s e n t id o ; p o r q u è s u a fís ic a e filo s o f ia d a n a ­
tu r e z a p e lo m e n o s e m p a r t e r e s is t ir a m a o te m p o e c o n t i n u a r ã o a r e s is tir .

4 6 — U m a e x c e ç ã o s e r ia o r e a p a r e c i m e n t o d e m é to d o s a r i t m é t i c o s n a t e o r i a q u â n t i c a , is to é , n a t e o r i a
d o s is te m a p e r i ó d i c o d e ó r b i t a s e le t r ô n i c a s b a s e a d o n o p r i n c í p i o d a e x c l u s ã o d e P a u l i — u m a in v e r s ã o
d a te n d ê n c ia p la tô n ic a p a r a geom etrizar a aritm ética. A r e s p e it o d a t e n d ê n c i a m o d e r n a p a r a a “ a r i t -
m e tiz a ç ã o d a g e o m e tr ia ” (q u e não é c a r a c t e r í s t i c a d e to d o s os t r a b a l h o s g e o m é tr ic o s m o d e r n o s ) , o u d a
a n á l is e , v a le n o t a r q u e a p r e s e n t a p o u c a s e m e l h a n ç a c o m a a b o r d a g e m p i t a g ó r i c a , p o is e m p r e g a conjun­
tos, ou sequências infinitas, d e n ú m e r o s n a t u r a i s — e n ã o o s p r ó p r i o s n ú m e r o s n a t u r a i s . S ó o s q u e se
lim i t a m a o e m p r e g o d o s m é to d o s " c o n s t r u t i v o s ” , " f i n i t i s t a s ” o u “ in t u i c i o n i s t a s ” p o d e r í a m a l e g a r q u e
s u a s t e n t a t i v a s d e r e d u z i r a g e o m e t r i a à t e o r i a d o s n ú m e r o s se a p r o x i m a m d a s id é ia s p i t a g ó r i c a s o u p r é -
p la t ô n i c a s . U m p a s s o i m p o r t a n t e n e s s e s e n t i d o fo i t o m a d o r e c e n t e m e n t e , a o q u e p a r e c e , p e lo m a t e ­
m á tic o a le m ã o E . d e W e tte .

47 - V id e G . F . H e m e n s , Proc. o f the X th. In tem . Congress o f Philosophy ( A m s t e r d a m , 1 9 4 9 ), F a s e


2, 8 4 7 , a p r o p ó s i t o d a i n f l u ê n c i a d e P l a t ã o e d e E u c lid e s .
118 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

O q u e e n c o n tr a m o s e m P la tã o e n o s seu s p re d e c e sso re s é a c o n s tru ç ã o


d e l i b e r a d a , a in v e n ç ã o d e u m a n o v a a b o r d a g e m d o m u n d o e d o c o n h e c i m e n t o a
r e s p e ito d o m u n d o . A b o r d a g e m q u e t r a n s f o r m a u m a id é i a o r i g i n a l m e n t e te o l ó g ic a ,
a id é ia d e e x p lic a r o m u n d o v isív el p o r u m m u n d o in v isív e l q u e é p o s tu la d o , 48 n o
i n s t r u m e n t o f u n d a m e n t a l d a c iê n c ia t e ó r i c a . E ssa i d é i a fo i f o r m u l a d a e x p l i c i t a ­
m e n t e p o r A n a x á g o r a s e p o r D e m ó c r i to 49 c o m o o p r i n c í p i o d a in v e s ti g a ç ã o d a
n a t u r e z a d a m a t é r i a o u d e u m c o r p o ; a m a t é r i a v isív e l d e v e r i a s e r e x p l i c a d a p o r
u m a h ip ó t e s e a r e s p e ito d o s in v is ív e is , s o b r e u m a e s tr u tu r a in v isív e l, p e q u e n a
d e m a is p a ra p o d e r ser vista . C o m P l a t ã o , e ss a i d é i a é c o n s c i e n t e m e n t e a c e i t a e
g e n e r a l i z a d a : o m u n d o v isív e l d a s m u d a n ç a s é e x p li c á v e l, e m ú l t i m a a n á li s e , p e lo
m u n d o in v isív e l d a s “f o r m a s ” ( “s u b s t â n c i a s ” , “ n a t u r e z a s ” o u “e s s ê n c ia s " — is to é ,
f i g u r a s g e o m é t r i c a s ) im u tá v e i s .

E s ta c o n c e p ç ã o d a e s t r u t u r a in v isív e l d a m a t é r i a é fís ic a o u f ilo s ó f ic a ? Se u m


físic o a p e n a s a ge c o m f u n d a m e n t o n e s s a t e o r i a , se a a c e i t a — ta lv e z i n c o n s c i e n ­
t e m e n t e — a c e i t a n d o os p r o b l e m a s t r a d i c i o n a i s d o s e u c a m p o d e e s t u d o , i n d i c a d o s
p e la s i t u a ç ã o - p r o b l e m a q u e o c o n f r o n t a , e se , a o a g i r a s s im , e l a b o r a u m a n o v a
t e o r i a e s p e c íf ic a s o b r e a e s t r u t u r a d a m a t é r i a , n ã o d i r i a q u e é u m f iló s o f o . M a s , se
e le r e f le t e s o b r e a t e o r i a e , p o r e x e m p l o , a r e j e i t a (c o m o B e r k e le y e M a c h ) , p r e ­
f e r i n d o a d o t a r u m a fís ic a p o s itiv is ta e f e n o m e n o l ó g i c a , e n ã o u m a fís ic a te ó r i c a e
a t é c e r t o p o n t o te o l ó g ic a , e n t ã o é u m filó s o f o . D a m e s m a f o r m a , os q u e e l a b o ­
r a r a m c o n s c ie n te m e n te a a b o r d a g e m te ó r ic a , f o r m u la n d o - a e x p lic ita m e n te —
t r a n s f e r i n d o a s s im os m é t o d o s h i p o t é t i c o e d e d u t i v o d a t e o l o g ia p a r a a fís ic a —
e r a m filó s o fo s , e m b o r a fo s s e m t a m b é m fís ic o s , n a m e d i d a e m q u e a t u a r a m c o m
b a s e n o s s e u s p r ó p r i o s p r e c e i to s , t e n t a n d o f o r m u l a r t e o r ia s e f e tiv a s s o b r e a e s ­
t r u t u r a in v isív e l d a m a t é r i a .

M a s n ã o m e d e m o r a r e i n a q u e s t ã o d o r ó t u l o filo s ó f ic o — e sse p r o b l e m a , q u e
é o d e W i t t g e n s t e i n , t e m a v e r c o m o u s o l i n g ü ís ti c o ; é u m p s e u d o p r o b l e m a , q u e
a liá s j á d e v e e s t a r a b o r r e c e n d o o le i to r . D e s e ja r ia , n o e n t a n t o , a c r e s c e n t a r a lg u m a s
p a l a v r a s a r e s p e ito d a te o r i a p l a t ô n i c a d a s f o r m a s , o u id é i a s — o p o n t o 6 d a lis ta
d e f a t o s h is tó r ic o s r e p r o d u z i d a a c i m a .

A te o r ia d e P la tã o so b re a e s tr u tu r a d a m a té r ia p o d e se r e n c o n tr a d a n o
T i m e u ; te m u m a s e m e l h a n ç a p e lo m e n o s s u p e r f i c i a l c o m a t e o r i a m o d e r n a d o s
s ó lid o s , q u e o s c o n s i d e r a c o m o c r is ta is : os c o r p o s fís ic o s s ã o c o m p o s to s p o r p a r t í ­
c u la s e l e m e n t a r e s in v is ív e is , d e d i f e r e n t e s f o r m a s — r e s p o n s á v e is p e la s p r o p r i e d a d e s
m a c r o s c ó p i c a s d a m a t é r i a v is ív e l. A s f o r m a s d a s p a r t í c u l a s e l e m e n t a r e s s ã o d e t e r ­
m i n a d a s , p o r s u a v e z , p e la s f i g u r a s p l a n a s q u e c o n s t i t u e m s e u s la d o s — a s q u a is ,
f i n a l m e n t e , se c o m p õ e m d e d o is t r i â n g u l o s e l e m e n t a r e s : o m e i o - q u a d r a d o ( o u
t r i â n g u l o is ó sc e le s r e t a n g u l a r ) , q u e i n c o r p o r a a ra iz q u a d r a d a d e dois·, e o t r i â n g u l o
r e t a n g u l a r s e m i - e q u i l á t e r o , q u e i n c o r p o r a a ra iz q u a d r a d a d e trê s — a m b o s i r ­
r a c i o n a i s . 48*

48 — C f. a e x p l i c a ç ã o h o m é r i c a s o b r e o m u n d o v isív e l e m t o r n o d e T r ó i a c o m a a j u d a d o m u n d o i n ­
v isív el d o O lim p o . C o m D e m ó c r ito , a id é ia p e r d e u m a p a r t e d o s e u c a r á t e r te o ló g ic o ( q u e a i n d a é b a s ­
t a n t e f o r t e e m P a r m e n i d e s , e m e n o s e m A n a x á g o r a s ) p a r a re a v ê - lo c o m P l a t ã o — p e r d e n d o - o p o u c o
d e p o is .

49 V id e A n a x á g o r a s , fr a g s . B 4 e 17, D ie ls - K r a n z .
A N A TU R E ZA DOS P R O B LE M A S FIL O SÓ FIC O S E SU AS RAÍZES C IE N T ÍF IC A S 119

E sses d o is t r i â n g u l o s p o d e m s e r d e s c r ito s c o m o c ó p i a s 50 d e “f o r m a s ” o u
“i d é i a s ” im u tá v e i s , o q u e s ig n if ic a q u e f i g u r a s e s p e c i f i c a m e n te g e o m é tr ic a s s ã o a d ­
m i t i d a s n o c é u d a s f o r m a s - n ú m e r o s a r itm é tic a s c o n c e b i d o p o r P i t á g o r a s .

N ã o h á m u i t a s d ú v id a s d e q u e a r a z ã o p a r a isso é a t e n t a t i v a d e s o l u c i o n a r a
c ris e d o a to m is m o i n c o r p o r a n d o os ir r a c i o n a i s a o s e le m e n to s d e q u e o m u n d o e s tá
c o n s t r u í d o . P o d e -s e v e n c e r , a s s im , a d i f i c u l d a d e r e l a c i o n a d a c o m a e x is tê n c i a d e
d is tâ n c ia s ir ra c io n a is .

P o r q u e P l a t ã o e s c o lh e u j u s t a m e n t e esses d o is t r iâ n g u l o s ? E m o u t r a o p o r ­
t u n i d a d e , 5! m a n i f e s t e i m e u p o n t o d e v is ta ( u m a c o n j e c t u r a ) d e q u e P l a t ã o
a c r e d i t a v a p o ss ív e l o b t e r to d o s os o u tr o s i r r a c i o n a i s s o m a n d o a o s n ú m e r o s r a c i o n a i s
o s m ú l t i p l o s d a ra iz q u a d r a d a d e d o is e d a r a i z q u a d r a d a d e tr ê s . 52 S in t o - m e a g o r a
m a is s e g u r o d e q u e e ss a d o u t r i n a ( e q u i v o c a d a , c o n f o r m e d e m o n s t r a r i a E u c lid e s ) e s ­
t á i m p l i c a d a n a p a s s a g e m c r u c i a l d o T im e u a e s te r e s p e ito , n a q u a l P l a t ã o a f i r m a
c l a r a m e n t e : “T o d o s os t r i â n g u l o s d e r i v a m d e d o is t r i â n g u l o s , c a d a u m d o s q u a is
te m u m â n g u l o r e t o " ; e p r o s s e g u e n a e s p e c i f i c a ç ã o d e s s e s d o is t r i â n g u l o s o r i g i ­
n á r i o s : o m e i o - q u a d r a d o e o s e m i - e q u i l á t e r o . N o c o n t e x t o , p o r é m , a a f i r m a t i v a só λ
p o d e s i g n if i c a r q u e to d o s os tr i â n g u l o s p o d e m s e r c o m p o s to s m e d i a n t e c o m b i n a ç õ e s
d e sse s d o is — u m p o n t o d e v is ta q u e e q u iv a l e à t e o r i a e r r ô n e a d a c o m e n s u r a b i -
l i d a d e r e f a ti v a d e to d o s os n ú m e r o s i r r a c i o n a i s c o m s o m a s d o s n ú m e r o s r a c i o n a i s
c o m a ra iz q u a d r a d a d e d o is e d e tr ê s . 53

M a s P l a t ã o n ã o p r e t e n d i a p o s s u ir u m a p r o v a d a te o r i a e m q u e s t ã o . A o c o n ­
t r á r i o , o filó s o fo a f i r m a v a a d m i t i r os d o is t r i â n g u l o s c o m o p r i n c í p i o s , “ d e a c o r d o
c o m u m p o n t o d e v is ta q u e c o m b i n a a c o n j e c t u r a p r o v á v e l c o m a n e c e s s i d a d e ” .
M a is a d i a n t e , d e p o is d e e x p l i c a r q u e a c e i t a o t r i â n g u l o s e m i - e q u i l á t e r o c o m o o s e u
s e g u n d o p r i n c í p i o , d iz : “ A r a z ã o d is so é u m a h i s t ó r i a p o r d e m a i s lo n g a ; m a s se a l ­
g u é m e x a m i n a r o a s s u n to , e c o n s e g u i r p r o v a r e ss a p r o p r i e d a d e ( i m a g i n o q u e a
p r o p r i e d a d e d e q u e to d o s os o u t r o s t r i â n g u l o s p o d e m s e r c o m p o s to s p o r esses d o is ),
a v it ó r i a s e r á s u a , o q u e r e c o n h e c e r e i d e b o a v o n t a d e ” . 54 A l i n g u a g e m a q u i é u m
t a n t o o b s c u r a , e a r a z ã o p r o v á v e l d is so é q u e P l a t ã o t i n h a c o n s c i ê n c ia d e q u e l h e
f a l t a v a u m a p r o v a d a s u a c o n j e c t u r a ( e r r ô n e a ) r e l a t i v a a o s d o is t r i â n g u l o s “o r i ­
g i n á r i o s ” — p r o v a q u e e le e s p e r a v a fo sse f o r n e c i d a p o r a l g u é m .

5 0 — V id e O pen Society, n o t a 1 5 , c a p . 3 , a r e s p e it o d o p r o c e s s o p e lo q u a l o s t r i â n g u l o s s ã o im p o s to s a o
e s p a ç o ( a “ m ã e ” ) p e la s id é ia s (o s “ p a i s ” ); a o a d m i t i r t r i â n g u l o s i r r a c i o n a i s n o s e u p a r a í s o d e f o r m a s
d iv in a s , P l a t ã o e s tá a d m i t i n d o o q u e é “ i n d e t e r m i n á v e l " , n o s e n t i d o p it a g ó r i c o — o q u e p e r t e n c e a o
la d o “ m a u ” d o Q u a d r o d e O p o s iç õ e s . É n o P arm ênides (lS O b ^ e ) q u e P l a t ã o d e c l a r a p e l a p r i m e i r a vez
q u e c o is a s “m á s " p o d e m p r e c i s a r s e r a c e ita s — a d m is s ã o a t r i b u í d a a o p r ó p r i o P a r m ê n i d e s .

51 — E m O pen Society, n a n o t a c i t a d a .

5 2 — 0 q u e s ig n if ic a q u e to d a s as d is t â n c i a s g e o m é t r i c a s ( m a g n i t u d e s ) s e r i a m c o m e n s u r á v e is c o m u m a
d e três “ m e d i d a s ” ( o u u m a s o m a d e d u a s o u d e t o d a s e la s ) , r e l a c i o n a d a s e n t r e si d o s e g u in t e m o d o :
1 : \J~2 : \f3. P a r e c e p r o v á v e l q u e A r is tó te le s c h e g o u m e s m o a a c r e d i t a r q u e t o d a s a s m a g n i t u d e s g e o ­
m é t r i c a s s ã o c o m e n s u r á v e is c o m u m a d e duas m e d i d a s — 1 e\A2, p o is e s c r e v e (M etafísica. 1 0 5 3 a 1 7 ):
“A d ia g o n a l e o l a d o d e u m q u a d r a d o e to d a s a s m a g n i t u d e s ( g e o m é tr ic a s ) s ã o m e d i d a s p o r d u a s
( m e d id a s ) " .
5 3 — N a n o t a 9 , c a p . 6 , d e O pen Society, c o n j e c t u r e t i g u a l m e n t e q u e a a p r o x i m a ç ã o d e T f p o r '/ 2 + V í
e n c o r a j o u P l a t ã o a e ss a c o n c e p ç ã o e q u i v o c a d a .
5 4 — A s d u a s c ita ç õ e s s ã o d o T im eu , 5 3 c / d e 5 4 a / b .
120 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

A o b s c u rid a d e d essa p a ss a g e m te v e a p a r e n t e m e n t e u m e s t r a n h o e f e i to : o
e n u n c i a d o p l a t ô n i c o d e u m a e s c o l h a d e t r i â n g u l o s q u e i n t r o d u z irr a c io n a is n o s e u
m u n d o d e f o r m a s e s c a p o u à a t e n ç ã o d e q u a s e to d o s os c o m e n t a r i s t a s — a d e s p e i to
d a ê n f a s e d a d a p e lo filó s o f o à i r r a c i o n a l i d a d e , e m o u t r a s p a s s a g e n s . P o r s u a v e z , is ­
so p o d e e x p l i c a r p o r q u e a te o r i a d a s f o r m a s p ô d e p a r e c e r a A ris tó te le s f u n d a m e n ­
ta l m e n t e ig u a l à te o r ia p ita g ó r ic a d a s f o r m a s - n ú m e r o s ; 55 p o r q u e o a to m is m o d e
P l a t ã o p a r e c i a a A ris tó te le s s i m p l e s m e n t e u m a v a r i a ç ã o m e n o r d o a t o m i s m o d e
D e m ó c r i t o . 5 6 A d e s p e i t o d e a d m i t i r a a s s o c ia ç ã o d a a r i t m é t i c a c o m “o s p a r e s e os
í m p a r e s ” , e a d a g e o m e t r i a c o m os i r r a c i o n a i s , A r is tó te le s n ã o p a r e c e t e r c o n s i­
d e r a d o s e r i a m e n t e o p r o b l e m a d o s i r r a c i o n a i s . P a r t i n d o d a i n t e r p r e t a ç ã o d o T im e u
q u e i d e n t i f i c a o esp a ço d e P l a t ã o c o m a m a té r ia , p a r e c e t e r a c e i to n a t u r a l m e n t e o
p r o g r a m a p l a t ô n i c o d e r e f o r m a d a g e o m e t r i a — esse p r o g r a m a j á t i n h a s id o
e x e c u t a d o e m p a r t e p o r E u d o x u s , a n te s d o in g r e s s o d e A r is tó te le s n a A c a d e m i a ;
p o r o u t r o l a d o , s e u in te r e s s e n o c a m p o d a m a t e m á t i c a e r a a p e n a s s u p e r f i c i a l : e le
n u n c a a l u d e , p o r e x e m p l o , à in s c r iç ã o e x is te n t e n o p o r t ã o d a A c a d e m i a . 56

5 5 — P e n s o q u e n o s s a o b s e r v a ç ã o p o d e e l u c i d a r e m p a r t e o p r o b l e m a r e p r e s e n t a d o p e lo s d o is “ p r i n ­
c íp io s ’' f a m o s o s d e P l a t ã o — “ a u n i d a d e ” e “ a d í a d e i n d e t e r m i n a d a ” . A i n t e r p r e t a ç ã o s e g u i n t e d e s e n v o l­
(De Ideegetallen van Plato,
v e s u g e s tã o a p r e s e n t a d a p o r v a n d e r W i e l e n 1 9 4 1 , p á g . 1 3 2 ), d e f e n d i d a
b r ilh a n te m e n te p o r R o ss (P lato’s Theory o f Ideas, p á g . 2 0 1 ) c o n tr a as c rític a s d o p r ó p r io v a n d e r
W ie le n . A d m ita m o s q u e a “d ía d e in d e te r m in a d a ” é u m a lin h a r e ta o u d is tâ n c ia , n ã o d e v e n d o c o n tu d o se r
in te rp r e ta d a co m o unidade d e d i s t â n c i a ( c o m e f e ito , n ã o t e r i a s id o m e d i d a d e n e n h u m a f o r m a ) . A d m i t a ­
m o s t a m b é m q u e u m p o n t o ( l i m i t e , “u n i d a d e " , m onas) é c o l o c a d o s u c e s s iv a m e n te e m p o s iç õ e s ta is
q u e d iv i d a a d í a d e d e a c o r d o c o m a p r o p o r ç ã o 1: n (se n d o n q u a lq u e r n ú m e r o n a tu r a l) . P o d e m o s e n tã o
d e s c r e v e r a " g e r a ç ã o ” d o s n ú m e r o s c o m o s e g u e . P a r a n = 1, a d í a d e é d i v i d i d a e m d u a s p a r t e s , c o m
a r a z ã o 1 :1 — o q u e p o d e s e r i n t e r p r e t a d o c o m o a “ g e r a ç ã o d a d u p l i c i d a d e , a p a r t i r d a u n i d a d e ’’ (1 :1 = 1)
e d a d í a d e , j á q u e d iv id im o s e s ta ú l t i m a e m duas p a r t e s ig u a i s . D e p o is d e “g e r a r ” o n ú m e r o 2 , p o ­
d e m o s d i v i d i r a d í a d e d e a c o r d o c o m a r a z ã o 1 :2 ( a m a i o r d a s s e ç õ e s s e g u in t e s , c o m o a n te s , s e g u n d o a
r a z ã o 1 :1 ), g e r a n d o p o r t a n t o tris p a r t e s ig u a is e o n ú m e r o 3 . E m g e r a l , a “ g e r a ç ã o ” d e u m n ú m e r o n
p r o v o c a u m a d iv is ã o d a d í a d e c o n f o r m e a r a z ã o 1: n ; c o m isso , a geração d o n ú m e ro n +1. E m c a d a
fa s e a “ u n i d a d e ” i n t e r v é m n o v a m e n t e c o m o o p o n t o q u e i n t r o d u z u m l i m i t e , f o r m a o u m e d i d a n a d í a d e
i n d e t e r m i n a d a , p a r a c r i a r o u t r o n ú m e r o . E s ta o b s e r v a ç ã o p o d e r e f o r ç a r a a r g u m e n t a ç ã o d e R o s s c o n t r a
v a n d e r W i e l e n . C o m p a r e c o m o s t r a b a l h o s d e T o e p l i t z , S te n z e l e B e c k e r e m Quellen & Studien z.
Gesch. d. M ath., 1, 1 9 3 1 . N e n h u m d e ss e s t r a b a l h o s , p o r é m , m e n c i o n a q u a l q u e r geom etrização da arit-
m éiica. N o te - s e q u e e m b o r a e ss e p r o c e d i m e n t o “ g e r e ” (p e lo m e n o s n o p r i m e i r o c a s o ) s o m e n t e a s é r ie d o s
n ú m e r o s n a t u r a i s , e le c o n t é m u m e l e m e n t o geom étrico — a d iv is ã o d e u m a l i n h a , p r i m e i r o e m d u a s
p a r t e s ig u a is e, e m s e g u id a , e m d u a s p a r t e s s e g u n d o u m a d e t e r m i n a d a p r o p o r ç ã o — 1: n. O s d o is tip o s
d e d iv is ã o r e q u e r e m m é t o d o s g e o m é tr ic o s e o s e g u n d o e x ig e , m a is e s p e c i a l m e n t e , u m m é t o d o c o m o o d a
t e o r i a d a s p r o p o r ç õ e s d e E u d o x u s . N a m i n h a o p i n i ã o , P l a t ã o c o m e ç o u a se p e r g u n t a r p o r q u e n ã o
d i v i d i r a d í a d e t a m b é m n a p r o p o r ç ã o 1 : \ f 2 e 1 :- V s . D e v e t e r s e n t i d o q u e a s s im se a f a s t a r i a d o m é t o d o
p e l o q u a l o s n ú m e r o s n a t u r a i s e r a m g e r a d o s — o p r o c e s s o s e r ia a i n d a m e n o s “ a r i t m é t i c o " , e x i g i n d o e s ­
p e c i f i c a m e n t e m é t o d o s “ g e o m é tr ic o s ” . C o n t u d o , e le “ g e r a r i a ”, e m l u g a r d o s n ú m e r o s n a t u r a i s , e l e m e n ­
to s lin e a r e s n a p r o p o r ç ã o 1: ^ 2 e y l : ; 3 , q u e p o d e m s e r id ê n tic o s à s “l i n h a s a t ô m i c a s ” (M etafísica,
9 9 2 a l9 c o m os q u a is os triâ n g u lo s a tô m ic o s e r a m c o n stru íd o s. A o m e sm o te m p o , a c a r a c te riz a ç ã o d a
d í a d e c o m o “i n d e t e r m i n a d a ” s e r i a m u i t o a p r o p r i a d a , t e n d o e m v is ta a a t i t u d e p i t a g ó r i c a ( c f . F ilo la o s ,
D ie ls , f r a g s . 2 e 3) c o m r e l a ç ã o a o i r r a c i o n a l . A d m i t i n d o q u e e s te p o n t o d e v is ta e s te ja c o r r e t o , p o d e ­
r ia m o s c o n j e c t u r a r q u e P l a t ã o se a p r o x i m o u g r a d u a l m e n t e d a p o s iç ã o d e q u e os irracionais são nú­
meros, p o is a ) s ã o c o m p a r á v e i s c o m os n ú m e r o s (M et. 1 0 2 1 a 4 ) e b ) ta n to os irr a c io n a is c o m o o s n ú ­
m e r o s n a t u r a i s s ã o “ g e r a d o s ” p o r p r o c e s s o s s im ila r e s , essencialm ente geom étricos. C o n t u d o , q u a n d o se
c h e g a a e sse p o n t o d e v is ta , m e s m o o s t r i â n g u l o s ir r a c i o n a i s d o T im eu se t o r n a m “ n ú m e r o s ” ( c a r a c t e ­
r iz a d o s p o r p r o p o r ç õ e s n u m é r i c a s , e m b o r a i r r a c i o n a i s ) . N e s s e p o n t o , p o r é m , a c o n t r i b u i ç ã o p e c u l i a r d e
P l a t ã o , e a d i f e r e n ç a e n t r e s u a t e o r i a e a d e P it á g o r a s , p o d e m f i c a r in d is tin g u ív e is — o q u e e x p l i c a r i a a
r a z ã o p o r q u e e la n ã o f o i p e r c e b i d a n e m m e s m o p o r A r is tó te le s ( q u e s u s p e ita v a t a n t o d a “ g e o m e tr i-
z a ç ã o " c o m o d a “ a r í t m e t i z a ç ã o ” ).
56 — L u r i a m o s t r o u q u e e sse fo i o p o n t o d e v is ta d e A r is tó te le s (op. cit.).
A N A T U R E Z A DO S P R O B L E M A S F IL O SÓ FIC O S E SU AS RA ÍZES C IE N T ÍF IC A S 121

E m re s u m o , p a re c e p ro v á v e l q u e a te o r ia d a s fo r m a s d e P la tã o e ta m b é m
s u a t e o r i a d a m a t é r i a t e n h a m s id o r e f o r m u l a ç õ e s d e t e o r i a s d o s s e u s p r e d e c e s s o r e s
— r e s p e c t i v a m e n t e os p it a g ó r i c o s e D e m ó c r i to — , à lu z d a p e r c e p ç ã o d e q u e os
i r r a c i o n a i s e x ig i a m q u e a g e o m e t r i a p a s s a s s e à f r e n t e d a a r i t m é t i c a . A o e n c o r a j a r
e s s a e m a n c i p a ç ã o , P l a t ã o c o n t r i b u i u p a r a o d e s e n v o l v im e n to d o s i s te m a d e E u ­
c lid e s , a t e o r i a d e d u t i v a m a i s i m p o r t a n t e e d e m a i o r in f l u ê n c i a j á e l a b o r a d a .
A d o t a n d o a g e o m e t r i a c o m o u m a t e o r i a d o m u n d o , i r i a p r o p o r c i o n a r a A r is ta r c o ,
N e w t o n e E in s t e in a s f e r r a m e n t a s i n t e l e c t u a i s q u e e le s u t i l i z a r a m . A c a l a m i d a d e d o
a t o m i s m o g r e g o se t r a n s f o r m o u , a s s im , n u m a r e a l i z a ç ã o m o m e n t o s a . M a s os i n ­
te r e s s e s c ie n tíf ic o s d e P l a t ã o f o r a m e m p a r t e e s q u e c id o s : h o je , a s i t u a ç ã o - p r o b l e m a
d a c iê n c ia q u e d e u o r i g e m a s e u s p r o b l e m a s filo s ó f ic o s é p o u c o c o m p r e e n d i d a . S u a
m a i o r c o n t r i b u i ç ã o , a t e o r i a g e o m é t r i c a d o m u n d o , in f l u e n c i o u - n o s d e ta l m o d o
q u e a a d m i t i m o s i m p l i c i t a m e n t e , s e m r e f le x ã o .

U m e x e m p l o is o la d o n u n c a é s u f i c i e n t e . C o m o s e g u n d o e x e m p l o e s c o lh í,
d e n t r e m u i t a s p o s s ib il id a d e s i n t e r e s s a n te s , K a n t . S u a C rític a d a R a z ã o P u ra é u m
d o s liv ro s m a i s d if íc e is j á e s c r ito s . K a n t e s c r e v e u - o à s p r e s s a s , 57 p a r a t r a t a r d e u m
p r o b l e m a q u e , c o m o p r o c u r a r e i d e m o n s t r a r , e r a n ã o a p e n a s in s o lú v e l m a s t a m b é m
m a l c o n c e b i d o . C o n t u d o , n ã o se t r a t a v a d e u m p s e u d o p r o b l e m a , m a s s im d e u m
p r o b l e m a in e s c a p á v e l, p r o v o c a d o p e la s i t u a ç ã o d a c iê n c ia n o s e u t e m p o .
O liv ro fo i e s c r ito a d m i t i n d o q u e o le i to r c o n h e c e s s e a lg o d a d i n â m i c a e s ­
t r e l a r d e N e w t o n , e q u e tiv e sse p e lo m e n o s u m a id é i a g e r a l a r e s p e ito d o s s e u s
p r e d e c e s s o r e s — C o p é r n i c o , T y c h o B r a h e , K e p le r e G a lil e u .
N ã o é f á c i l p a r a o i n t e l e c t u a l c o n t e m p o r â n e o , q u e o e s p e t á c u l o d o ê x ito
c ie n t íf ic o t o r n o u blasé, p e r c e b e r o s i g n if i c a d o d a t e o r i a d e N e w t o n , n ã o só p a r a
K a n t , m a s p a r a q u a l q u e r p e n s a d o r d o s é c u lo d e z o it o . D e p o is d a s o u s a d a s t e n t a t i v a s
c o m q u e os a n ti g o s t i n h a m a b o r d a d o o e n i g m a d o u n iv e r s o , s u c e d e r a m - s e lo n g o s
p e r í o d o s d e d e c a d ê n c i a e d e r e c u p e r a ç ã o , s e g u id o s p o r u m g r a n d e s u c e s s o : a d e s ­
c o b e r t a , p o r N e w t o n , d o s e g r e d o h á t a n t o p r o c u r a d o . S u a te o r i a g e o m é t r i c a ,
m o d e l a d a e m E u c li d e s , fo i r e c e b i d a a p r i n c í p i o c o m g r a n d e s h e s i ta ç õ e s , m e s m o
p e lo s e u f o r m u l a d o r . 585960 O m o tiv o e r a a f o r ç a g r a v i t a c i o n a l d a a t r a ç ã o , q u e p a r e c i a
“o c u l t a ” , e x i g i n d o a l g u m a e x p l i c a ç ã o . C o n t u d o , e m b o r a n ã o se tiv e sse e n c o n t r a d o
n e n h u m a e x p l i c a ç ã o p la u s ív e l (e N e w t o n d e s p r e z a v a a s h ip ó t e s e s a d h o c ) t o d a s e s ­
sas re lu tâ n c ia s tin h a m d e s a p a r e c id o m u ito a n te s d e K a n t p r o p o r su a im p o r ta n te
c o n t r i b u i ç ã o à t e o r i a n e w t o n i a n a , 7 8 a n o s d e p o is d o s P r in c ip ia . 5 9

N e n h u m á r b i t r o qualificado 60 p o d e r í a t e r a i n d a q u a l q u e r d ú v i d a d e q u e
N e w t o n t i n h a r a z ã o . S u a t e o r i a f o r a t e s t a d a p e la s m e d i ç õ e s m a is r ig o r o s a s , c o m

57 — T e m ia m o r r e r a n te s d e c o m p le ta r o tr a b a lh o .

58 — V id e a s c a r t a s d e N e w t o n a B e n t le y , 1 6 9 3 .

59 — A c h a m a d a h ip ó te s e K a n t - L a p l a c e , p u b l i c a d a p o r K a n t e m 1 7 5 5 .

6 0 — T i n h a h a v id o , é v e r d a d e , a l g u m a s c r í tic a s m u i t o p e r t i n e n t e s ( e s p e c i a l m e n t e d e L e ib n iz e B e r -
k e le y ) m a s , t e n d o e m v is ta o ê x ito d a t e o r i a , a c r e d i t a v a - s e ( a m e u v e r a p r o p r i a d a m e n t e ) q u e o s c r ític o s
n ã o t i n h a m p e r c e b i d o s e u s e n t i d o c e n t r a l . N ã o p o d e m o s e s q u e c e r q u e e la p e r m a n e c e d e p é a i n d a h o je ,
c o m p e q u e n a s m o d if ic a ç õ e s , c o m o u m a e x c e l e n t e p r i m e i r a a p r o x i m a ç ã o ( o u , à v is ta d e K e p le r , c o m o
u m a segunda a p r o x i m a ç ã o ) .
122 C O N JE C T U R A S E R E FU T A Ç Õ E S

r e s u lta d o s s e m p r e c o r r e to s . T i n h a p e r m i t i d o a p r e v i s ã o d e d e sv io s m u i t o p e q u e n o s
d a s le is d e K e p le r , le v a n d o a n o v a s d e s c o b e r ta s . N u m a é p o c a c o m o a n o s s a , e m q u e
a s te o r ia s se s u c e d e m r a p i d a m e n t e , e t o d o e s t u d a n t e j á o u v iu d iz e r q u e a c o n c e p ç ã o
d e N e w t o n fo i s u b s t i t u í d a p e la d e E in s t e in , é d if íc il i m a g i n a r a c o n v ic ç ã o i n s p i r a d a
p e la t e o r i a d e N e w t o n — o s e n t i m e n t o d e d is te n s ã o e l i b e r a ç ã o q u e e la p r o d u z i a .
N a h i s t ó r i a d o p e n s a m e n t o t i n h a a c o n t e c i d o u m e v e n to in s ó lito , q u e n ã o se r e ­
p e t i r í a f a c i l m e n t e : u m s o n h o s e c u l a r d a h u m a n i d a d e se h a v ia c o n c r e t i z a d o , c o m a
o b t e n ç ã o d e c o n h e c im e n to — r e a l , c e r t o , i n d u b i t á v e l e d e m o n s t r á v e l . E r a u m a
m a n i f e s t a ç ã o d a d i v i n a sc ie n tia o u e p is te m e , e n ã o a p e n a s d a d o x a , a o p i n i ã o d o s
hom ens.

A s s im , p a r a K a n t a te o r ia d e N e w t o n e r a s i m p l e s m e n t e v e r d a d e i r a ; a c r e n ç a
n a s u a v e r d a d e d u r o u u m s é c u lo d e p o is d a m o r t e d e K a n t . A té m o r r e r , o filó s o fo
a c e i to u o q u e e le e to d o s os s e u s c o n t e m p o r â n e o s a c r e d i t a v a m s e r u m f a t o , u m a
p a r t e d a sc ie n tia o u e p is te m e . A p r i n c í p i o , a c e i t o u - a s e m q u e s t i o n á - l a : o p e r í o d o
d e “d o r m ê n c i a d o g m á t i c a ', d e q u e fo i d e s p e r t a d o p o r H u m e .

H u m e e n s i n a r a q u e n ã o p o d i a h a v e r c o n h e c i m e n t o s e g u r o d e le is u n iv e r s a is ,
o u epistem e·. t u d o o q u e s a b í a m o s t í n h a m o s c o n h e c i d o p o r m e io d a o b s e r v a ç ã o ,
q u e só se p o d i a a p l i c a r a c a s o s s i n g u la r e s — a s s im , to d o c o n h e c i m e n t o te ó r ic o e r a
i n s e g u r o . C o n t u d o , h a v ia u m f a t o (o u o q u e a p a r e c i a c o m o u m f a t o ) a d e s a f i a r e ssa
a f i r m a t i v a — a e p is te m e a l c a n ç a d a p o r N e w t o n .

H u m e d e s p e r t o u K a n t p a r a o q u a s e - a b s u r d o d a q u i l o d e q u e e le n u n c a
d u v i d a r a . A li e s ta v a u m p r o b l e m a q u e n ã o p o d i a s e r d e s p r e z a d o . D e q u e f o r m a
t e r i a p o d i d o N e w t o n c h e g a r à q u e l e c o n h e c i m e n t o — c o n h e c i m e n t o g e r a l , p r e c is o ,
m a te m á tic o , d e m o n s trá v e l e in d u b itá v e l, c o m o a g e o m e tria e u c lid ia n a , e c o n tu d o
c a p a z d e d a r u m a e x p li c a ç ã o c a u s a i a f a to s o b s e r v a d o s ?

S u r g i u a s s im o p r o b l e m a c e n t r a l d a Crítica·. “ C o m o é p o s s ív e l h a v e r c iê n c ia
n a t u r a l p u r a ? ” P o r “c iê n c ia n a t u r a l p u r a ” ( s c ie n tia , e p is te m e ) K a n t q u e r i a d iz e r
s i m p l e s m e n t e a te o r i a d e N e w t o n . I n f e l i z m e n t e , n ã o o d iz d e m o d o e x p lí c it o ; p o r
isso u m e s t u d a n t e q u e le ia s u a p r i m e i r a C rític a , d e 1781 e 1 7 8 7 , n ã o p o d e r á d e s ­
c o b r i d o p o r si m e s m o . M a s a r e f e r ê n c i a f i c a c l a r a n o s F u n d a m e n to s M e ta fís ic o s da
C iên cia N a tu r a l, d e 1 7 8 6 , o n d e o filó s o fo f o r m u l a u m a d e d u ç ã o a p r io r i d a te o r i a
d e N e w t o n — v id e e m e s p e c ia l os o it o te o r e m a s d a S e g u n d a P a r t e P r i n c i p a l , c o m
se u s a d e n d o s , e s p e c i a l m e n t e o d e n . ° 2 , n o t a 1, p a r á g r a f o 2 . K a n t e x p õ e a t e o r ia
d e N e w t o n n o q u i n t o p a r á g r a f o d a “N o t a G e r a l F e n o m e n o l ó g i c a ” , f i n a l . A r e f e r ê n ­
c ia f ic a c l a r a t a m b é m n a “C o n c l u s ã o ” d a C rític a d a R a z ã o P rá tic a , d e 1 7 8 8 , o n d e
a m e n ç ã o a o s “c é u s e s t r e l a d o s ” é e x p l i c a d a , n o f i m d o s e g u n d o p a r á g r a f o , p o r u m a
r e f e r ê n c i a a o c a r á t e r a p r io r i às. n o v a a s t r o n o m i a . K a n t a f i r m a , a li , q u e N e w t o n
n o s d e u “ u m a v is ã o d a e s t r u t u r a d o u n iv e r s o q u e p e r m a n e c e r á i m u t á v e l e m to d o s
os t e m p o s ; e m b o r a h a j a e s p e r a n ç a d e q u e e ss a v is ã o se a m p l i a r á s e m p r e , p e l a o b ­
s e r v a ç ã o c o n t i n u a d a , n ã o se p r e c i s a r á j a m a i s t e m e r u m r e c u o ” .

E m b o r a a C rítica n ã o t e n h a s id o b e m e s c r i t a , a p r e s e n t a n d o m u i t a s i m p e r ­
fe iç õ e s g r a m a t i c a i s , o p r o b l e m a d e q u e t r a t a v a n ã o e r a u m s im p le s q u e b r a - c a b e ç a
l i n g ü is ti c o . T ra ta v a -se d o c o n h e c im e n to : c o m o te ria sid o p o ssív e l a N e w to n a lc a n ­
çá-lo? A q u e s t ã o e r a in e s c a p á v e l 61 e t a m b é m in s o lú v e l, p o r q u e o f a t o a p a r e n t e —

61 A in d a e m 1909 o p r o b le m a p e rtu r b a v a P o in c a ré .
A N A TU R E ZA DOS P R O B LE M A S F IL O SÓ FIC O S E SU AS RA ÍZES C IE N T ÍF IC A S 123

a e p is te m e q u e se t e r i a a l c a n ç a d o — n ã o e r a u m f a t o . C o m o s a b e m o s a g o r a , o u
a c r e d i t a m o s s a b e r , a t e o r i a d e N e w t o n n ã o p a s s a d e u m a m a r a v i l h o s a c o n je c tu r a ,
u m a e x c e l e n te a p r o x i m a ç ã o d a r e a l i d a d e ; in s ó li ta , d e f a t o , m a s n ã o c o m o v e r d a d e
d iv i n a , a p e n a s c o m o in v e n ç ã o d o g ê n i o h u m a n o . N ã o e r a e p is te m e , m a s d o x a .
P o r t a n t o , o p r o b l e m a d e K a n t d e s a p a r e c e , e c o m e le s u a s m a i o r e s p e r p l e x i d a d e s .

A s o lu ç ã o p r o p o s t a p o r K a n t p a r a esse p r o b l e m a in s o lú v e l c o n s is tia n o q u e
e le c h a m a v a , c o m o r g u l h o , s u a “r e v o l u ç ã o d e C o p é r n i c o ” d a e p i s t e m o l o g i a . O
c o n h e c i m e n t o — e p is te m e — e r a p o ss ív e l p o r q u e n ã o s o m o s m e r o s r e c e p t o r e s p a s ­
sivos d e d a d o s s e n s o r ia is , q u e p r o c e s s a m o s a t i v a m e n t e . A o a s s im ilá - lo s , n ó s o s o r ­
g a n iz a m o s n u m c o s m o s — o u n iv e r s o d a n a t u r e z a . C o m esse p ro c e s s o , i m p o m o s a o
m a t e r i a l q u e se a p r e s e n t a a n o ss o s s e n t id o s as le is m a t e m á t i c a s q u e p a r t i c i p a m d o
n o ss o m e c a n is m o d e a s s im i la ç ã o e o r g a n i z a ç ã o . N o s s o i n t e l e c t o n ã o d e s c o b r e leis^
u n iv e r s a is n a n a t u r e z a , m a s p r e s c r e v e s u a s p r ó p r i a s le is , i m p o n d o - a s à n a t u r e z a .
Q ->
E ssa te o r ia é u m a e s t r a n h a m i s t u r a d e v e r d a d e e d e a b s u r d o . E t ã o a b s u r d a >
q u a n t o o fa ls o p r o b l e m a q u e p r o c u r a re s o lv e r — v a i m u i t o lo n g e , p o is fo i c o n -í?
c e b i d a p a r a i r lo n g e d e m a i s . D e a c o r d o c o m a t e o r i a d e K a n t , a “c iê n c ia n a t u r a l
p u r a ” n ã o só é p o ssív e l m a s ( e m b o r a e le n ã o o p e r c e b a , e c o n t r a r i a m e n t e à s u a i n ­
t e n ç ã o ) r e su lta n e c e s s a r ia m e n te d o n o ss o e q u i p a m e n t o m e n t a l . C o m e f e i to , se o V
f a t o d e t e r m o s a l e g a d a m e n t e a l c a n ç a d o a e p is te m e p o d e s e r e x p l i c a d o p e lo f a t o d e
q u e n o s s o in t e l e c t o le g is la e im p õ e à n a t u r e z a s u a s p r ó p r i a s le is , e n t ã o o p r i m e i r o
d e sse s d o is f a t o s n ã o p o d e s e r m a i s c o n t i n g e n t e d o q u e o s e g u n d o . 62 O p r o b l e m a -
p a s s a a s e r, a s s im , p o r q u e n e n h u m a o u t r a p e s s o a d e s c o b r i u o q u e N e w t o n p ô d e
d e s c o b r i r . P o r q u e r a z ã o n o s s o m e c a n is m o d e p r o c e s s a m e n t o d o s d a d o s d a o b s e r ­
v a ç ã o n ã o f u n c i o n o u a n te s d e N e w to n ?
ZD

E s ta é , n a t u r a l m e n t e , u m a c o n s e q ü ê n c i a a b s u r d a d a id é i a d e K a n t . N ã o
b a s t a r i a , c o n t u d o , d e s p r e z á - la , e a f a s t a r s e u p r o b l e m a c o m o u m p s e u d o p r o b l e m a .
D e f a t o , p o d e m o s p e r c e b e r u m e l e m e n t o d e v e r d a d e n a s u a c o n c e p ç ã o (e u m
r e a j u s t e m u i t o n e c e s s á r io a a l g u m a s n o ç õ e s d e H u m e ) , se r e d u z i m o s o p r o b l e m a às
d im e n s õ e s j u s ta s . S u a i n d a g a ç ã o — s a b e m o s a g o r a , o u a c r e d i t a m o s s a b e r — d e ­
v e r i a t e r s id o a s e g u i n te : “C o m o é p o s s ív e l q u e c e r t a s c o n j e c t u r a s t e n h a m ê x it o ? ”
D e n t r o d o e s p í r it o d a “ r e v o lu ç ã o d e C o p é r n i c o ” , n o s s a r e s p o s ta d e v e r i a s e r m a i s o u
m e n o s a s s im : “ P o r q u e n ã o s o m o s r e c e p t o r e s p a s s iv o s d o s d a d o s s e n s o r ia is , m a s s im
o r g a n i s m o s a tiv o s ; p o r q u e n e m s e m p r e r e a g i m o s a o a m b i e n t e i n s t i n t i v a m e n t e , m a s
a l g u m a s v e z e s c o m c o n s c i ê n c ia , l i v r e m e n te ; p o r q u e p o d e m o s i n v e n t a r m i to s , e s ­
tó r i a s , te o r ia s ; p o r q u e te m o s s e d e d e e x p l i c a ç ã o , u m a c u r i o s i d a d e in s a c iá v e l , u m
d e s e jo d e c o n h e c e r ; p o r q u e n ã o só in v e n t a m o s e s t ó r ia s e te o r ia s , m a s a s te s ta m o s
p a r a v e r se f u n c i o n a m , e c o m o f u n c i o n a m ; p o r q u e f a z e n d o u m g r a n d e e s f o rç o e
c o m e t e n d o m u i t o s e r r o s p o d e m o s à s v e z e s, c o m s o r t e , e n c o n t r a r u m a e s t ó r i a , u m a
e x p li c a ç ã o q u e “r e s p e i t a os f e n ô m e n o s ” — q u e m s a b e , e l a b o r a n d o u m m i t o s o b r e
“in v is ív e is ” , c o m o os á to m o s o u a s fo r ç a s g r a v i t a c i o n a i s , q u e e x p li c a o v isív e l. P o r ­
q u e o c o n h e c i m e n t o é u m a a v e n t u r a c o m id é ia s . E b e m v e r d a d e q u e s o m o s n ó s q u e
p r o d u z i m o s e ss a s id é i a s — n ã o é o m u n d o q u e a s p r o d u z ; e la s n ã o r e f l e t e m a p e n a s
s e n s a ç õ e s o u e s tím u lo s r e p e t i d o s . N e s te p o n t o , K a n t t i n h a r a z ã o . C o n t u d o , s o m o s

6 2 — U m r e q u i s i t o m u i t o i m p o r t a n t e q u e q u a l q u e r t e o r i a d o c o n h e c i m e n t o p r e c i s a s a ti s f a z e r , p a r a s e r
a d e q u a d a , é o d e n ã o e x p lic a r d e m a is. Q u a lq u e r te o ria n ã o h is tó ric a q u e te n te e x p lic a r p o r q u e u m a
c e r t a d e s c o b e r t a t i n h a d e s e r f e ita é i n a d e q u a d a , p o r q u e n ã o p o d e r í a e x p l i c a r p o r q u e a d e s c o b e r t a n ã o
fo i f e ita u m p o u c o a n te s .
124 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

m a is a tiv o s e m a i s liv re s d o q u e o filó s o fo fo i c a p a z d e i m a g i n a r — o b s e r v a ç õ e s


s e m e l h a n t e s o u s i tu a ç õ e s a m b i e n t a i s s im ila r e s n ã o p r o d u z e m a s m e s m a s e x p lic a ç õ e s
e m p e sso as d if e re n te s , c o m o a te o r ia d e K a n t p o d e im p lic a r . N e m o fa to d e q u e
c r i a m o s n o s s a s t e o r i a s e p r o c u r a m o s i m p ô - l a s a o m u n d o e x p l i c a o s u c e s s o d e ss a s
t e o r i a s . 63 N a v e r d a d e , a e s m a g a d o r a m a i o r i a d a s n o s s a s te o r ia s e id é i a s e s t ã o d e s ­
t i n a d a s a o in s u c e s s o : n ã o r e s is te m a o s te s te s , e s ã o r e j e i t a d a s , p o is a e x p e r i ê n c i a a s
r e f u t a . N a l u t a p e l a s o b r e v iv ê n c ia q u e é a s u a c o m p e t i ç ã o , só u m a s p o u c a s a l c a n ­
ç a m a v i t ó r i a . 6465

XI

P o u c o s s u c e s s o re s d e K a n t p a r e c e m t e r e n t e n d i d o c l a r a m e n t e a s i tu a ç ã o -
p r o b l e m a p r e c i s a q u e d e u o r i g e m à o b r a d a q u e l e filó s o f o . H a v ia d o is p r o b l e m a s
d i a n t e d e K a n t : a d i n â m i c a c e le s tia l d e N e w t o n e os p a d r õ e s a b s o l u to s d a f r a t e r ­
n i d a d e h u m a n a e d a j u s t i ç a p r o c l a m a d o s p e lo s r e v o l u c io n á r io s fr a n c e s e s — c o m o
d is se K a n t , “ os c é u s e s t r e la d o s n o a l t o e a le i m o r a l d e n t r o d e m i m ” . M a s os “ c é u s
e s t r e l a d o s ” r a r a m e n t e s ã o e n t e n d i d o s c o m o a lu s ã o a N e w t o n . A p a r t i r d e F ic h t e . 65
m u i t o s c o p i a r a m o “m é t o d o ” d e K a n t e o e s tilo d if íc i l d e a lg u m a s p o r ç õ e s d a s u a
C rític a . A m a i o r p a r t e d e ss e s i m i t a d o r e s , i g n o r a n d o os in te r e s s e s e os p r o b l e m a s
o r i g in a i s d e K a n t , t e n t a r a m e m v ã o e x p l i c a r a d i f i c u l d a d e e m q u e o filó s o f o i n a d -
v e r t i d a m e n t e se d e ix o u e n v o lv e r .

P r e c is a m o s t o m a r c u i d a d o p a r a n ã o c o n f u n d i r a s s u tile z a s s e m s e n t i d o e
r e l e v â n c i a d o s i m i t a d o r e s c o m os p r o b l e m a s g e n u ín o s d o p i o n e i r o . E p r e c is o n ã o e s ­
q u e c e r q u e esse p r o b l e m a , e m b o r a n ã o se ja e m p í r i e o n o s e n t id o o r d i n á r i o d o t e r ­
m o , se t o r n a i n e s p e r a d a m e n t e f a c t u a l n u m c e r t o s e n t i d o ( K a n t c h a m o u esses fa to s
d e “ t r a n s c e n d e n t a i s ” ), p o r se t e r o r i g i n a d o e m u m e x e m p l o a p a r e n t e , e m b o r a
i r r e a l , d e s c ie n tia o u e p is te m e . P e n s o q u e d e v e r i a m o s c o n s i d e r a r s e r i a m e n t e a
s u g e s tã o d e q u e a r e s p o s ta d a d a p o r K a n t , e m b o r a s e ja p a r c i a l m e n t e a b s u r d a , c o n ­
t i n h a o n ú c le o d e u m a v e r d a d e i r a filo s o f ia d a c iê n c ia .

63 — A p lic a n d o a o b s e rv a ç ã o d a n o ta a n te rio r, n e n h u m a te o ria p o d e e x p lic a r p o r q u e n o ssa b u sc a d e


te o r ia s e x p lic a ti v a s te m ê x ito . U m a e x p l i c a ç ã o e x ito s a d e v e g u a r d a r , p a r a q u a l q u e r t e o r i a v á lid a , a
p r o b a b i l i d a d e z e r o — a d m i t i n d o q u e a m e d i d a d e s s a p r o b a b i l i d a d e s e ja , a p r o x i m a d a m e n t e , a r a z ã o e n ­
t r e a s h ip ó te s e s e x p lic a ti v a s “ b e m s u c e d i d a s ’’ e to d a s a s h ip ó te s e s q u e p o d e r i a m s e r f o r m u l a d a s .
64 — A s id é ia s p r i n c i p a i s d e s t a “ r e s p o s ta ” f o r a m e l a b o r a d a s e m L . Sc. D.
65 - C f. O pen Society, n o t a 5 8 , c a p . 12.
3. Três Pontos de Vista sobre
o Conhecimento Humano*
1. A C iên cia d e G a lile u N o v a m e n te A tr a iç o a d a .

H o u v e u m a vez u m c i e n t i s t a f a m o s o , c h a m a d o G a l i l e u G a lile i, q u e fo i j u l ­
g a d o p e la I n q u i s i ç ã o e o b r i g a d o a r e n u n c i a r a s u a s id é i a s . Isso p r o v o c o u u m a
g r a n d e e x c it a ç ã o ; p o r m a is d e d u z e n to s e c i n q ü e n t a a n o s o e p is ó d io c o n t i n u o u a
l e v a n t a r in d i g n a ç ã o — m u i t o t e m p o d e p o is d e a o p i n i ã o p ú b l i c a t e r a l c a n ç a d o a
v i t ó r i a e a I g r e j a c o m e ç a d o a t o l e r a r a c iê n c ia .

M a s e s t a é u m a h i s t ó r i a m u i t o a n t i g a , q u e j á d e v e t e r p e r d i d o in te r e s s e .
A p a r e n t e m e n t e , a c iê n c ia d e G a lil e u n ã o t e m m a i s in i m i g o s ; s u a e x is tê n c i a é b a s ­
t a n t e s e g u r a . A v i t ó r i a — a l c a n ç a d a h á m u i to s a n o s — fo i d e f i n it iv a e t u d o e s tá
t r a n q ü i l o n o f r o n t . P o r isso a d o t a m o s h o je u m a p o s i ç ã o d i s t e n d i d a a r e s p e ito d o
c a s o , c o m p r e e n d e n d o os d o is la d o s d a d i s p u t a , p o r q u e a p r e n d e m o s f i n a l m e n t e a
p e n s a r e m te r m o s h is tó r ic o s . E n i n g u é m p r e s t a a t e n ç ã o a o i m p o r t u n o q u e n ã o c o n ­
s e g u e e s q u e c e r u m a v e lh a r i x a .

A f in a l , d e q u e se t r a t a v a ? D o e s t a t u t o a t r i b u í d o a o “s i s te m a d o m u n d o ” d e
C o p é r n i c o q u e , e n t r e o u t r a s c o is a s , e x p li c a v a o m o v i m e n t o d i u r n o d o S o l c o m o u m
m o v i m e n t o a p a r e n t e , d e v id o à r o t a ç ã o d a T e r r a . 1 A I g r e j a e s t a v a p r o n t a a a d m i t i r
q u e o n o v o s is te m a e r a m a i s s i m p l e s d o q u e o a n t i g o : u m in s tr u m e n to m a i s c o n ­
v e n ie n t e p a r a os c á lc u lo s e p re v is õ e s d o s a s t r ô n o m o s , q u e a r e f o r m a d o c a l e n d á r i o
d o P a p a G r e g ó r i o u ti li z o u n a p r á t i c a . N ã o se o b j e t a v a a q u e G a lil e u e n s in a s s e s u a
t e o r i a m a t e m á t i c a , d e s d e q u e d e ix a s s e c l a r o q u e e l a t i n h a a p e n a s v a lo r in s t r u m e n ­
ta l — d e q u e n ã o p a s s a v a d e u m a “s u p o s i ç ã o ” , p a r a u s a r a s p a l a v r a s d o c a r d e a l
B e l a r m i n o , *12 o u “ h ip ó t e s e m a t e m á t i c a ” —- u m a e s p é c ie d e t r u q u e m a t e m á t i c o “ in -

* P u b l i c a d o o r i g i n a l m e n t e e m C ontem porary B ritish Philosophy, 3 . a s é r ie , e d . H . D . L e w is , 1 9 5 6 .


1 — A c e n tu o o m o v im e n to d iu r n o (e m lu g a r d o a n u a l) p o r q u e e ra p re c is a m e n te a te o ria d o m o v im e n to
d i u r n o q u e se c h o c a v a c o m a B íb lia — J o s u é , 10 , 12 — e t a m b é m p o r q u e a e x p l i c a ç ã o d a d a a esse
m o v i m e n t o é u m d o s p r i n c i p a i s e x e m p lo s q u e u s a r e i e m s e g u i d a . ( E s ta e x p l i c a ç ã o , n a t u r a l m e n t e , é
m u i t o m a i s a n t i g a d o q u e C o p é r n i c o — m a i s a n t i g a a i n d a d o q u e A r i s t a r c o — e t i n h a s id o r e d e s c o b e r t a ,
r e p e t i d a m e n t e , p ó r O r e s m e , p a r a d a r u m e x e m p lo ) .

2 — " . . . G a lile o s e r á p r u d e n t e ” , e s c r e v e u o C a r d e a l B e l a r m i n o ( q u e f o r a u m d o s i n q u is id o r e s c o n t r a
G i o r d a n o B r u n o ) “ se f a l a r h i p o t e t i c a m e n t e , ex suppositione . . . ; é p r ó p r i o d i z e r q u e d e s c r e v e m o s m e l h o r
a s a p a r ê n c i a s a d m i t i n d o q u e a T e r r a se m o v e e o S o l e s tá p a r a d o , e m v e z d e f a l a r e m e x c ê n tr ic o s e
e p ic ic lo s ; n ã o h á n e n h u m p e r ig o n is so , e é só o q u e o m a t e m á t i c o e x ig e ” . ( C f . H . G r is a r , G alileistudien,
1 8 8 2 , A p ê n d i c e ix ). E m b o r a e ss a p a s s a g e m f a ç a d e B e l a r m i n o u m d o s f u n d a d o r e s d a e p is t e m o lo g i a q u e
O s i a n d r o h a v ia s u g e r i d o a n t e r i o r m e n t e e q u e p a s s a r e i a c h a m a r d e “ i n s t r u m e n t a l i s m o ” , o p r ó p r i o
B e l a r m i n o — a o c o n t r á r i o d e B e r k e le y — n ã o e r a u m i n s t r u m e n t a l i s t a c o n v ic to , c o m o d e m o n s t r a m
o u t r o s tr e c h o s d a c a r t a . A p e n a s c o n s i d e r a v a o i n s t r u m e n t a l i s m o u m a d a s m a n e i r a s d e l i d a r c o m h i ­
p ó te s e s c ie n tíf ic a s i n c o n v e n ie n te s . P o d e - s e a f i r m a r o m e s m o d e O s i a n d r o .
126 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

v e n t a d o e a d o t a d o p a r a a b r e v i a r e f a c i l i t a r os c á l c u l o s ” . 3 E m o u t r a s p a l a v r a s , n ã o
h a v ia o b je ç õ e s e n q u a n t o G a lil e u c o n c o r d a s s e c o m A n d r é O s i a n d r o , q u e a f i r m a r a ,
n o p r e f á c i o a o D e R e v o lu tio n ib u s d e C o p é r n i c o : “ A s h ip ó t e s e s n ã o p r e c i s a m s e r
v e r d a d e i r a s , n e m p a r e c i d a s c o m a v e r d a d e ; b a s t a q u e n o s p e r m i t a m f a z e r c á lc u lo s
q u e e s te ja m d e a c o rd o c o m n o ssas o b s e rv a ç õ e s ” .

O p r ó p r i o G a lil e u , o b v i a m e n t e , e s t a v a d is p o s to a e n f a t i z a r a s u p e r i o r i d a d e
d o s is te m a d e C o p é r n ic o c o m o in s tr u m e n to d e c á lc u lo . A o m e s m o t e m p o , G a lil e u
c o n j e c t u r a v a (e a c r e d i t a v a m e s m o ) q u e o s i s te m a e r a u m a d e sc riç ã o v e r d a d e ir a d o
m u n d o , o q u e p a r a e le (e p a r a a I g r e j a ) e r a o a s p e c t o m a i s i m p o r t a n t e d a q u e s t ã o .
D e f a t o , e le t i n h a b o a s ra z õ e s p a r a a c r e d i t a r n a v e r a c i d a d e d a t e o r i a , p o is h a v ia
o b s e r v a d o p e lo te le s c ó p io q u e J ú p i t e r e s u a s lu a s f o r m a v a m u m m o d e l o e m m i ­
n i a t u r a d o s is te m a s o l a r d e s c r ito p o r C o p é r n i c o ( s e g u n d o o q u a l os p l a n e t a s e r a m
lu a s d o S o l) . A lé m d is s o , se C o p é r n ic o e s t a v a c o r r e t o , os p l a n e t a s m a i s p r ó x i m o s d o
S ol (e só e s te s ) d e v e r í a m a p r e s e n t a r fa s e s , d o m e s m o m o d o q u e a n o s s a l u a ; e
G a lil e u o b s e r v o u c o m s e u te le s c ó p io a s fa s e s d e V é n u s .

A I g r e j a r e l u t a v a e m c o n t e m p l a r a v e r d a d e d e u m N o v o S is te m a d o M u n d o
q u e p a r e c i a c o n t r a d i z e r u m t r e c h o d o A n tig o T e s t a m e n t o . E s te , n o e n t a n t o , d i f i c i l ­
m e n t e s e r ia o m o tiv o p r i n c i p a l ; u m a r a z ã o m a i s p r o f u n d a f o i c l a r a m e n t e e x p o s t a
p e lo b is p o B e rk e le y , c e r c a d e c e m a n o s m a i s t a r d e , e m s u a c r í t i c a d e N e w t o n .

N a é p o c a d e B e rk e le y , o s is te m a d o m u n d o d e C o p é r n ic o h a v ia - s e d e s e n v o l ­
v id o p a r a f o r m a r a t e o r i a d a g r a v i t a ç ã o d e N e w t o n , q u e B e r k e le y c o n s i d e r a v a u m
s é r io c o m p e t i d o r d a r e l ig i ã o . E s ta v a c o n v e n c i d o d e q u e o d e c lí n io d a fé e d a a u ­
t o r i d a d e r e lig io s a s e r ia o r e s u l t a d o d e u m a i n t e r p r e t a ç ã o c o r r e t a d a d a p e lo s “liv re s
p e n s a d o r e s ” à n o v a c i ê n c ia , c u ja e f i c á c ia p r o v a r i a a c a p a c id a d e d o in te le c to d e
d e s v e n d a r os seg red o s d o u n iv e rso — a r e a l i d a d e o c u l t a p e la s a p a r ê n c i a s — s e m o
a u x ílio d e re ve la çõ e s d iv in a s.

B e r k e le y a c r e d i t a v a q u e e s s a i n t e r p r e t a ç ã o d a n o v a c iê n c ia e r a e r r ô n e a .
A n a lis o u c o m t o t a l i m p a r c i a l i d a d e e g r a n d e a g u d e z a f ilo s ó f ic a a t e o r i a d e N e w to n ;
a p ó s u m e x a m e c r í ti c o d o s c o n c e ito s , e s t a v a c o n v e n c i d o d e q u e a t e o r i a n ã o r e ­
p r e s e n t a v a m a is d o q u e u m a “ h ip ó t e s e m a t e m á t i c a ” , o u s e ja , u m in s tr u m e n to co n -
v e n ie n t e p a r a c a l c u l a r e p r e v e r f e n ô m e n o s o u a p a r ê n c i a s ; n ã o p o d i a s e r c o n s i d e ­
r a d a u m a d e s c r iç ã o v e r d a d e i r a d a r e a l i d a d e 4 .

O s físic o s m a l t o m a r a m c o n h e c i m e n t o d a c r í t i c a d e B e r k e le y q u e fo i a c o ­
l h i d a , n o e n t a n t o , p e lo s filó so fo s c é tic o s e r e lig io s o s . C o m o a r m a , r e v e lo u - s e u m
v e rd a d e iro “b o o r n e r a n g ” : n a s m ã o s d e H u m e , to rn o u -s e u m a a m e a ç a a q u a lq u e r
c re n ç à e a to d o c o n h e c im e n to , h u m a n o o u re v e la d o . N a s m ã o s d e K a n t, q u e
a c r e d i t a v a f i r m e m e n t e e m D e u s e n a v e r a c i d a d e d a c iê n c ia n e w t o n i a n a , d e s e n v o l­
v e u -s e a t é f o r m a r a d o u t r i n a d a im p o s s i b i l i d a d e d o c o n h e c i m e n t o te ó r ic o d e D e u s ;

3 — C i t a ç ã o r e t i r a d a d a c r í t i c a a C o p é r n i c o p u b l i c a d a p o r B a c o n e m N o v u m O rganum , I I . 3 6 . N a
c i t a ç ã o s e g u i n t e ( r e t i r a d a d e De R evo lu tio n ib u s), t r a d u z i o t e r m o “v e r is im ilis ” p o r “ p a r e c i d o c o m a v e r ­
d a d e ” — e le c e r t a m e n t e n ã o p o d e r í a s e r t r a d u z i d o p o r “p r o v á v e l ” , p o is a q u e s t ã o g i r a e m t o r n o d a i n ­
d a g a ç ã o s o b r e se o s is te m a d e C o p é r n i c o é s e m e l h a n t e , e m s u a e s t r u t u r a , a o m u n d o , o u s e m e l h a n t e à
v e r d a d e . A q u e s t ã o d o s g r a u s d e c e r te z a o u p r o b a b i l i d a d e n ã o s u r g e a q u i . S o b r e o i m p o r t a n t e p r o b l e m a
d a Verossim ilhança, v id e t a m b é m o c a p . 10, e s p e c i a l m e n t e a s s e ç õ e s iii, x e x iv ; e o a p ê n d i c e 6.
4 — V id e t a m b é m o c a p . 6.
T R Ê S P O N T O S DE V IST A SO B R E O C O N H E C IM E N T O H UM AN O 127

d e q u e a a c e i t a ç ã o d a v e r a c i d a d e d a c iê n c ia n e w t o n i a n a im p li c a v a r e n u n c i a r à
a f i r m a ç ã o d e q u e d e s c o b r ir a _ o m u n d o r e a l , o c u l t o p e la s a p a r ê n é i a s — e r a , d e f a t o .
u m a t e o r i a v e r d a d e i r a d a n a t u r e z a , m a s a n a tu r e z a , d o m o d o c o m o se r e v e la a n o s ­
sa s m e n t e s a s s im i la d o r a s , c o n s t i t u i p r e c i s a m e n t e o u n iv e r s o d o s f e n ô m e n o s . M a is
t a r d e , c e r t o s p r a g m a t i s t a s f u n d a m e n t a r a m s u a filo s o f ia n a c o n c e p ç ã o d e q u e a
id é i a d o c o n h e c i m e n t o “p u r o ” é e r r ô n e a ; q u e só e x is te c o n h e c i m e n t o in s t r u m e n ta l :
o c o n h e c im e n to é p o d e r, e a v e rd a d e , u tilid a d e .

C o m a l g u m a s e x c e ç õ e s b r i l h a n t e s 56, os físic o s p e r m a n e c e r a m i n d i f e r e n t e s
c o m r e l a ç ã o a esses d e b a t e i filo s ó f ic o s ( q u e se m o s t r a r a m t o t a l m e n t e in c o n c lu s iv o s ) .
F ié is à t r a d i ç ã o d e G a lil e u , d e d i c a r a m - s e à b u s c a d a v e r d a d e c o m o e le a h a v ia
c o m p re e n d id o .

Isso d u r o u a t é r e c e n t e m e n t e e h o je é p a r t e d a h i s t ó r i a . A t u a l m e n t e , a v is ã o
d a c iê n c ia fís ic a f u n d a d a p o r O s i a n d r o , o c a r d e a l B e l a r m i n o e o b is p o B e rk e le y 6
v e n c e u a d is p u ta se m g a s ta r n e n h u m o u tr o c a r tu c h o ; se m m a is d e b a te so b re a
q u e s t ã o f ilo s ó f ic a , e s e m a p r e s e n t a r o u tr o s a r g u m e n t o s , a visão in s tr u m e n ta lis ta
(c o m o a c h a m a r e i a q u i ) t o r n o u - s e u m d o g m a a c e i t o . A d o t a d a p e l a m a i o r i a d o s
fís ic o s te ó r ic o s ( e m b o r a n ã o p o r E in s t e in e S c h r õ d i n g e r ) , p o d e s e r c o n s i d e r a d a h o je
a “v is ã o o f i c i a l ” d a t e o r i a fís ic a , t e n d o s id o i n c o r p o r a d a a o e n s i n o d e s s a d is c ip l in a .

2. O Q u e Eistá e m J o g o

T u d o isso p a r e c e u m a g r a n d e v i t ó r i a d o p e n s a m e n t o filo s ó f ic o c r í ti c o s o b r e
o “ r e a l is m o i n g ê n u o ” d o s fís ic o s . D u v id o , n o e n t a n t o , d e q u e e ss a i n t e r p r e t a ç ã o e s ­
te j a c o r r e t a .

P o u c o s d o s c ie n t is ta s q u e a c e i t a r a m a v is ã o i n s t r u m e n t a l i s t a d o c a r d e a l
B e la r m in o e d o b is p o B e rk e le y p e r c e b e m q u e a d o t a r a m u m a te o r i a filo s ó f ic a .

5 A s m a is i m p o r t a n t e s s ã o ; M a c h . K ir c h h o f , H e r tz , D u h e m , P o i n c a r é , B r i d g m a n e E d d i n g t o n to d o s
r e p r e s e n t a n d o d iv e rs a s c o r r e n t e s d o i n s t r u m e n t a l i s m o .

6 — E m s e u s c o n h e c id o s t r a b a l h o s Sózein ta p h a inóm ena (A n n de philos. chrétienne, a n n é e 7 9 , to m . 6,


1 9 0 8 , n . os 2 a 6 ), D u h e m r e iv in d ic a p a r a o i n s t r u m e n t a l i s m o u m a d e s c e n d ê n c i a m u i t o m a is ilu s tr e e
a n t i g a d o q u e p o d e s e r p r o v a d o . D e f a t o , o p o s t u l a d o d e q u e o s c ie n tis ta s d e v e m explicar os fa to s obser­
vados c o m s u a s h ip ó te s e s , e m l u g a r d e “ v io le n tá - lo s , p r o c u r a n d o f a z e r c o m q u e c a i b a m n a s s u a s t e o ­
r ia s " ( A r i s tó te le s , De Caelo, 2 9 3 a 2 5 ; 2 9 6 b 6 ; 2 9 7 a 4 ; b 2 4 e s e g u in t e s ; M el 1073037, 1074ul) te m p o u c o
a v e r c o m a te se i n s t r u m e n t a l i s t a ( d e q u e n o s s a s t e o r ia s só p o d e m fa ze r isso). E sse p o s t u l a d o , c o n t u d o , é
e s s e n c i a l m e n t e o m e s m o q u e a f i r m a q u e d e v e m o s “respeitar os fen ô m en o s", o u “ s a lv á - lo s " (dia-sózein
ta p h a in ó m en a ). E ssa e x p r e s s ã o p a r e c e e s t a r li g a d a a o r a m o a s t r o n ô m i c o d a t r a d i ç ã o p l a t ô n i c a . ( V id e
e s p e c i a l m e n t e o tr e c h o m u i t o i n t e r e s s a n t e s o b r e A r i s t a r c o e m De Facie in O rbe L unae, d e P l u t a r c o ,
9 2 3 a ; v id e t a m b é m 9 3 3 a , p a r a a " c o n f i r m a ç ã o d a c a u s a " p e lo s f e n ô m e n o s , e , n a e d iç ã o d e C h e r n is s d o
t r a b a l h o d e P l u t a r c o , a n o t a a n a p á g . 1 6 8 . A lé m d is s o , os c o m e n t á r i o s d e S im p líc i o s o b r e o D é Caelo,
o n d e e n c o n t r a m o s a e x p r e s s ã o , p . e . n a s p á g i n a s 4 9 7 1 .2 1 , 5 0 6 1 .1 0 e 4 8 8 1 .2 3 f , n a e d iç ã o d e H e ib e r g ,
e m c o m e n t á r i o s s o b r e De Caelo 2 9 3 á 4 e 2 9 2 b l 0 . ) P o d e m o s a c e i t a r o r e l a t o d e S im p líc i o s o b r e F .u d o x u s,
q u e , i n f l u e n c i a d o p o r P l a t ã o , d e d ic o u - s e à t a r e f a d e d e s e n v o lv e r u m s is te m a g e o m é t r i c o a b s t r a t o d e es
f e ra s r o t a t i v a s p a r a e x p l i c a r o f e n ô m e n o o b s e r v á v e l d o s m o v im e n to s p l a n e t á r i o s , ao qual não atribuiu
realidade física. ( P a r e c e h a v e r a l g u m a s e m e l h a n ç a e n t r e e ss e p r o g r a m a e o d o Epinonus, 9 9 0 -
1, o n d e o e s t u d o d a g e o m e t r i a a b s t r a t a — d a t e o r i a d o s i r r a c i o n a i s , 9 9 0 d — 9 9 I b - é d e s c r it o c o m o
r e q u i s i t o p r e l i m i n a r d a t e o r ia p l a n e t á r i a ; o u t r o r e q u i s i t o é o e s tu d o d ó n ú m e r o is to é, d o s n ú m e r o s
p a r e s e ím p a r e s , 9 9 0 c .) Isso n ã o s ig n if ic a , c o n t u d o , q u e P l a t ã o o u E u d o x u s a c e i t a r a m u m a e p is te m o -
lo g ia i n s t r u m e n t a l i s t a : p o s s iv e lm e n te se r e s t r i n g i r a m c o n s c ie n te e s .a b ia m e n t e a u m p r o b l e m a p r e l i ­
m in a r.
128 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

T a m b é m n ã o p e r c e b e m q u e r o m p e r a m c o m a t r a d i ç ã o d e G a l i l e u . P e lo c o n t r á r i o ,
m u i to s a c r e d i t a m t e r m a n t i d o a filo s o f ia à d i s t â n c i a ; e m to d o c a s o , a m a i o r i a n e m
s e q u e r d e m o n s t r a in te r e s s e n o a s s u n to . C o m o fís ic o s , e s t ã o i n t e r e s s a d o s : ( a ) n o
d o m ín io d o fo r m a li s m o m a te m á ti c o , is to é , n o i n s t r u m e n t o , e ( b ) n a s su a s a p l i ­
cações. P e n s a m q u e , t e n d o e x c lu í d o d e s t e m o d o t u d o o m a i s , e s t ã o liv re s d a s f i ­
lo s o fia s s e m s e n t i d o . E ssa m e s m a a t i t u d e in f le x í v e l, c o n t u d o , n ã o lh e s p e r m i t e c o n ­
s i d e r a r s e r i a m e n t e a v is ã o c ie n t í f i c a d e G a l i l e u , e m b o r a s e m d ú v i d a t e n h a m o u v id o
f a l a r d e M a c h . 7 P o r t a n t o , a v it ó r i a d a f ilo s o f ia i n s t r u m e n t a l i s t a d i f i c i l m e n t e p o d e
s e r a t r i b u í d a à c o n s i s tê n c i a d e s e u s a r g u m e n t o s .

C o m o fo i p o ss ív e l e n t ã o e ss a v it ó r i a ? A té o n d e p e r c e b o , p e l a c o i n c i d ê n c i a d e
d o is f a t o r e s : ( a ) a s d if i c u l d a d e s n a i n t e r p r e t a ç ã o d o f o r m a l i s m o d a t e o r i a q u â n t i c a ,
e ( b ) o ê x it o e s p e t a c u l a r d e s u a s a p li c a ç õ e s p r á t i c a s .

(a ) E m 1 9 2 7 , N ie ls B o h r , u m d o s m a i o r e s p e n s a d o r e s n o c a m p o d a fís ic a
a t ô m i c a , i n t r o d u z i u o c h a m a d o p r in c íp io d a c o m p le m e n ta r id a d e , q u e r e s u l t a n a
" r e n ú n c i a ” d e i n t e r p r e t a r a te o r i a a t ô m i c a c o m o a d e s c r iç ã o d e a lg o . B o h r o b s e r ­
v o u q u e só p o d e m o s e v i t a r c e r t a s c o n t r a d i ç õ e s ( q u e a m e a ç a m in t e r p o r - s e e n t r e o
f o r m a li s m o e s u a s d iv e r s a s i n t e r p r e t a ç õ e s ) l e m b r a n d o q u e o f o r m a l i s m o , c o m o ta l ,
é a u t o c o n s i s t e n t e , e q u e c a d a c a s o p a r t i c u l a r d e s u a a p l i c a ç ã o (o u c a d a t i p o d e
c a s o ) é c o n s i s te n t e c o m e le . A s c o n t r a d i ç õ e s s u r g e m a p e n a s d a t e n t a t i v a d e i n c l u i r
e m u m a ú n i c a i n t e r p r e t a ç ã o o f o r m a l i s m o e m a is d e u m c a s o , o u t i p o d e c a s o , d e
a p l i c a ç ã o e x p e r i m e n t a l . S e g u n d o B o h r , é f i s i c a m e n t e im p o s s ív e l c o m b i n a r e m u m a
ú n i c a e x p e r i ê n c i a d u a s a p li c a ç õ e s c o n f l i t a n t e s . L o g o , o r e s u l t a d o d e ca d a e x p e r i ê n ­
c ia é c o n s i s te n t e c o m a t e o r i a , e s t a b e l e c i d o p o r e l a s e m a m b i g ü i d a d e . Isso , d is se
B o h r, é o m á x im o q u e p o d e m o s o b te r . D e v em o s r e n u n c ia r à in te n ç ã o e m e s m o à
e s p e r a n ç a d e o b t e r s e m p r e m a i s ; a fís ic a só é c o n s i s te n t e se n ã o p r o c u r a r m o s i n t e r ­
p r e t a r o u c o m p r e e n d e r s u a s te o r i a s . 8

A filo s o f ia i n s t r u m e n t a l i s t a , p o r t a n t o , fo i u s a d a a d h o c p a r a q u e a t e o r ia
p u d e s s e e s c a p a r a c e r t a s c o n t r a d i ç õ e s q u e a a m e a ç a v a m . F o i u s a d a c o m e s p í r it o
d e fe n s iv o — p a r a s a l v a r a te o r i a e x is te n t e ; p o r e ss a r a z ã o , a c r e d i t o , esse p r i n c í p i o
p e r m a n e c e c o m p l e t a m e n t e e s té ril d e n t r o d a f ís ic a . E m v in t e e s e te a n o s n a d a
p r o d u z i u a lé m d e a l g u m a s d is c u s s õ e s filo s ó f ic a s e a r g u m e n t o s p a r a c o n f u n d i r os
c r ític o s ( e s p e c ia l m e n te E in s t e in ) .

N ã o a c r e d i t o q u e o s físic o s t e r i a m a c e i to ta l p r i n c í p i o a d h o c se tiv e sse m


c o m p r e e n d i d o s e u c a r á t e r a d h o c \ q u e se t r a t a v a d e u m p r i n c í p i o filo s ó f ic o — p a r ­
te d a filo s o f ia d a c iê n c ia d e B e l a r m i n o e B e rk e le y . L e m b r a r a m - s e , c o n t u d o , d o
p r e c e d e n t e “ p r i n c í p i o d a c o r r e s p o n d ê n c i a ” d e B o h r , q u e tiv e r a e x t r e m a u t i l i d a d e ,
e s p e r a n d o (e m v ã o ) r e s u lta d o s s e m e l h a n t e s .

7 — P a r e c e r a e s q u e c e r , c o n t u d o , q u e M a c h fo i le v a d o p e lo s e u i n s t r u m e n t a l i s m o a c o m b a t e r a t e o r i a
a t ô m i c a — u m e x e m p lo t í p ic o d o obscurantism o do instrum entalism o, a s s u n to t r a t a d o n a s e ç ã o 5.
8 — J á e x p liq u e i o “ p r i n c í p i o d a c o m p l e m e n t a r i d a d e ” d e B o h r d a m a n e i r a c o m o o i n t e r p r e t o a p ó s a n o s
d e e s f o rç o . S e m d ú v i d a , p o d e - s e a f i r m a r q u e m i n h a f o r m u l a ç ã o d o p r o b l e m a é i n s a t i s f a t ó r i a . N e s te
c a s o , e s to u e m b o a c o m p a n h i a , p o is E in s te in se r e f e r e a e le c o m o “ o p r i n c í p i o d a c o m p l e m e n t a r i d a d e d e
B o h r , q u e n ã o c o n s e g u i f o r m u l a r c l a r a m e n t e , . .. n ã o o b s t a n t e o g r a n d e e s f o r ç o q u e fiz p a r a isso ” . C f.
A lb e rt Einstein: Philosopher-Scientist, e d . p ó r P . A . S c h i l p p , 1 9 4 9 , p á g . 6 7 4 .
T R Ê S P O N T O S D E V IST A S O B R E O C O N H E C IM E N T O H UM AN O 129

b) E m vez d e r e s u l t a d o s d e v id o s a o p r i n c í p i o d a c o m p l e m e n t a r i d a d e , o u tr o s
r e s u l t a d o s , m a i s p r á t i c o s , f o r a m o b ti d o s , n o c a m p o d a fís ic a a t ô m i c a — a lg u n s
d e le s c o m re p e r c u s s õ e s r e t u m b a n t e s . N ã o h á d ú v i d a d e q u e os físic o s t i n h a m t o d a
r a z ã o e m i n t e r p r e t a r e ssa s a p li c a ç õ e s e x ito s a s c o m o c o r r o b o r a ç ã o d a s s u a s te o r ia s .
E s t r a n h a m e n t e , e le s a t o m a r a m t a m b é m c o m o c o n f i r m a ç ã o d o c r e d o i n s t r u m e n ­
ta l i s t a .

Isso , n a t u r a l m e n t e , e r a u m e r r o . O p o n t o d e v is ta i n s t r u m e n t a l i s t a a f i r m a
q u e a s te o r ia s s ã o a p e n a s in s t r u m e n t o s ; o p o n t o d e v is ta d e G a lil e u é o d e q u e e la s
n ã o s ã o só i n s t r u m e n t o s , m a s t a m b é m — p r i n c i p a l m e n t e — d e s c r iç õ e s d o m u n d o
o u d e c e r t o s a s p e c to s d o m u n d o . E s tá c l a r o q u e n e s s e d e s a c o r d o a t é m e s m o u m a
p r o v a d e m o n s t r a n d o q u e a s te o r ia s s ã o i n s t r u m e n t o s ( a d m i t i n d o q u e fo sse p o ss ív e l
“ p r o v a r ” t a l c o is a ) n ã o p o d e r í a s e r u s a d a p a r a a p o i a r q u a l q u e r d o s la d o s , j á q u e as
d u a s p o s iç õ e s c o n c o r d a v a m s o b r e e s te p o n t o .

S e m i n h a m a n e i r a d e v e r o p r o b l e m a e s t á c o r r e t a , p e lo m e n o s a p r o x i m a ­
d a m e n t e , os filó s o fo s — m e s m o os filó s o fo s i n s t r u m e n t a l i s t a s — n ã o tê m r a z ã o p a r a
se o r g u l h a r d a s u a v it ó r i a . A o c o n t r á r i o , d e v e r í a m r e e x a m i n a r s e u s a r g u m e n t o s .
C o m e f e i to , p e lo m e n o s p a r a os q u e , c o m o e u , n ã o a c e i t a m o i n s t r u m e n t a l i s m o , h á
m u i t o a i n d a a r e s o lv e r n e s te a s s u n to .

A q u e s t ã o , d o m e u p o n t o d e v is ta , é a s e g u i n te :

U m d o s i n g r e d i e n t e s m a is i m p o r t a n t e s d a c iv iliz a ç ã o o c i d e n t a l é o q u e
p o d e r í a c h a m a r d e “ t r a d i ç ã o r a c i o n a l i s t a ” , q u e h e r d a m o s d o s g re g o s : a t r a d i ç ã o d o
liv re d e b a t e — n ã o a d is c u s s ã o p o r si m e s m a , m a s n a b u s c a d a v e r d a d e . A c iê n c ia e
a f ilo s o f ia h e lê n i c a s f o r a m p r o d u t o s d e s s a t r a d i ç ã o , 9 d o e s f o rç o p a r a c o m p r e e n d e r
o m u n d o e m q u e v iv e m o s ; e a t r a d i ç ã o e s t a b e l e c i d a p o r G a lil e u c o r r e s p o n d e u a o
seu r e n a s c im e n to .

D e n t r o d e s s a t r a d i ç ã o r a c i o n a l i s t a , a c iê n c ia é e s t i m a d a , r e c o n h e c i d a m e n t e ,
p e la s s u a s re a liz a ç õ e s p r á t i c a s , m a i s a i n d a p o r é m p e lo c o n t e ú d o i n f o r m a t i v o e a
c a p a c i d a d e d e l i v r a r n o ss a s m e n t e s d e v e lh a s c r e n ç a s e p r e c o n c e i to s , v e lh a s c e r ­
te z a s , o f e r e c e n d o - n o s e m s e u l u g a r n o v a s c o n j e c t u r a s e h ip ó te s e s o u s a d a s . A c iê n c ia
é v a l o r i z a d a p e la i n f l u ê n c i a l i b e r a l i z a d o r a q u e e x e r c e — u m a d a s fo r ç a s m a is
p o d e ro s a s q u e c o n tr ib u i p a r a a lib e r d a d e h u m a n a .

D e a c o r d o c o m a v is ã o d a c iê n c ia q u e e s to u p r o c u r a n d o d e f e n d e r a q u i . isso
se d e v e a o f a t o d e q u e os c ie n t is ta s tê m o u s a d o ( d e s d e T a l e s , D e m ó c r i t o , o T im e u
d e P l a t ã o e A r is ta r c o ) c r i a r m i to s , c o n j e c t u r a s e t e o r ia s q u e c o n t r a s t a m d r a m a ­
tic a m e n te co m o m u n d o d a e x p e riê n c ia q u o tid ia n a , e m b o r a se ja m c a p a z e s d e e x ­
p l i c a r a lg u n s d o s se u s a s p e c to s . G a lil e u p r e s t a h o m e n a g e m a A r is ta r c o e a C o p é r -
n ic o p r e c i s a m e n t e p o r q u e o u s a r a m u l t r a p a s s a r o m u n d o c o n h e c i d o d o s n o sso s s e n ­
tid o s . E s c r e v e : 10 “ N ã o p o ss o e x p r i m i r c o m o v ig o r n e c e s s á r io m i n h a a d m i r a ç ã o
i l i m i t a d a p e la g r a n d e z a d e sse s h o m e n s q u e c o n c e b e r a m (o s is te m a h e li o c ê n t r i c o ) ,
c o n s i d e r a n d o - o v e r d a d e i r o . . . , e m o p o s iç ã o v i o l e n t a à e v id ê n c ia d o s s e n t i d o s . . . ” E sse

9 V id e o e a p . 4.

10 - E o q u e a f i r m a S a lv ia ti, v á r ia s vezes, p r a t i c a m e n t e s e m q u a l q u e r v a r i a ç ã o , n o T e r c e i r o D ia d e Os
Dois Sistem as Principais.
130 C O N JE C T U R A S E R E FU T A Ç Õ E S

é o t e s t e m u n h o d a d o p o r G a lile u s o b r e o e f e ito l i b e r a l i z a d o r d a c i ê n c i a . E ssas


te o r ia s s e r ia m i m p o r t a n t e s m e s m o q u e n ã o p a s s a s s e m d e e x e r c íc io s p a r a n o s s a
i m a g i n a ç ã o . C o n t u d o , s ã o m a i s d o q u e isso , c o m o n o s r e v e la o f a t o d e q u e as s u b ­
m e t e m o s a te s te s rig o r o s o s , p r o c u r a n d o d e la s d e d u z i r a l g u m a s d a s r e g u l a r i d a d e s d o
m u n d o c o n h e c i d o d a e x p e r i ê n c i a o r d i n á r i a — is to é , t e n t a n d o e x p lic a r e ss a s r e ­
g u l a r i d a d e s . A s te n t a t i v a s d e e x p lic a r a ssim o c o n h e c id o p e lo d e s c o n h e c id o —
c o m o a s d e s c r e v í e m o u t r a o p o r t u n i d a d e 11 — e s t e n d e r a m i m e n s a m e n t e o r e i n o d o
c o n h e c i d o ; e la s a c r e s c e n t a r a m a o s f a t o s d o m u n d o q u o t i d i a n o o a r in v is ív e l, o s a n ­
t i p o d a s , a c i r c u l a ç ã o d o s a n g u e , os m u n d o s d o te l e s c ó p i o e d o m i c r o s c ó p i o , d a
e l e t r i c i d a d e e d o s is ó to p o s q u e n o s m o s t r a m e m p o r m e n o r os m o v i m e n t o s d a
m a t é r i a d e n t r o d o s o r g a n i s m o s v iv o s. N ã o s ã o a p e n a s i n s t r u m e n t o s : t e s t e m u n h a m a
c o n q u is ta in te le c tu a l d o m u n d o p o r n o ssa m e n te .

M a s h á u m o u t r o m o d o d e v e r t u d o isso . P a r a a l g u n s , a c iê n c ia n ã o p a s s a d e
u m a f o r m a g lo r i f i c a d a d e m e c â n i c a , m u i t o ú ti l — c o n s t i t u i n d o p o r é m u m p e r i g o
p a r a a “c u l t u r a v e r d a d e i r a ” , a m e a ç a n d o - n o s c o m o d o m í n i o p e lo s s e m i-
a n a l f a b e t o s . P a r a os q u e tê m e ssa o p i n i ã o , n ã o se d e v e j a m a i s c i t a r a c i ê n c i a j u n -
t a m e n t e c o m a l i t e r a t u r a , as a r t e s e a f ilo s o f ia . A s d e s c o b e r t a s c ie n t íf ic a s n ã o p a s ­
s a m d e in v e n ç õ e s m e c â n i c a s ; s u a s t e o r ia s s ã o i n s t r u m e n t o s q u e n ã o p o d e m r e v e l a r e
n ã o n o s re v e la m u m n o v o m u n d o , p o r tr á s d o m u n d o d a n o ssa e x p e riê n c ia . O
m u n d o fís ic o é s u p e r f i c i a l : n ã o te m q u a l q u e r p r o f u n d i d a d e . O m u n d o é só o q u e
p a re c e ser. A p e n a s as te o ria s c ie n tífic a s n ã o são o q u e p a r e c e m . U m a t e o r i a c i e n ­
tí f i c a n ã o e x p l i c a o m u n d o , n e m o d e s c r e v e : é a p e n a s u m i n s t r u m e n t o .

N ã o p r e t e n d o q u e o m o d e r n o i n s t r u m e n t a l i s m o se r e d u z a a isso — e m b o r a
t e n h a f e ito , p e n s o , u m b o m r e s u m o d e p a r t e d a s u a f u n d a m e n t a ç ã o filo s ó f ic a
o r i g i n a l . H o je , u m c o m p o n e n t e m u i t o m a i s i m p o r t a n t e é o s u r g i m e n t o e a a f i r ­
m a ç ã o d o m o d e r n o “m e c â n i c o ” o u e n g e n h e i r o . 12 C r e i o , p o r é m , q u e n ã o se d e v e
s i t u a r 'o t e m a e n t r e u m r a c i o n a l i s m o c r í t i c o e a v e n t u r e i r o — o e s p í r it o d a s d e s ­
c o b e r t a s — e u m c r e d o e s t r e it o e d e f e n s iv o , s e g u n d o o q u a l n ã o p o d e m o s n e m
p r e c i s a m o s a p r e n d e r s o b r e o m u n d o m a is d o q u e j á s a b e m o s : c r e d o q u e , a lé m d e
t u d o , é i n c o m p a t í v e l c o ro a a v a li a ç ã o d a c i ê n c i a c o m o u m d o s m a i o r e s f e ito s d o e s ­
p írito h u m a n o .

S ã o e ss a s a s ra z õ e s p o r q u e t e n t a r e i d e f e n d e r , n e s t e t r a b a l h o , p e lo m e n o s e m
p a r t e , o p o n t o d e v is ta d e G a lil e u s o b r e a c i ê n c i a , c o n t r a a v is ã o i n s t r u m e n t a l i s t a .
N ã o p o ss o s u s te n tá - lo i n t e g r a l m e n t e ; h á u m a s p e c t o q u e os i n s t r u m e n t a l i s t a s f i ­
z e r a m b e m e m a t a c a r — a n o ç ã o d e q u e p o d e m o s a l c a n ç a r p e l a v ia c ie n t í f i c a u m a
e x p lic a ç ã o ú ltim a d o m u n d o , p o r m e io d e essências. A f o r ç a e o in te r e s s e filo s ó fic o
d o i n s t r u m e n t a l i s m o r e s id e m j u s t a m e n t e n e s s a o p o s i ç ã o a o a r i s to t e li s m o — a o q u e
c h a m e i 1* d e “e s s e r ic ia lis m o ” . P r e c i s a r e i a s s im e x a m i n a r e c r i t i c a r d u a s v isõ e s d o
c o n h e c i m e n t o h u m a n o — o e sse n c ia lism o e o in s tr u m e n ta lis m o , o p o n d o - l h e s o q u e 123

11 — V id e A p ê n d i c e a o c a p . 1, p o n t o 1 0 , b e m c o m o o p e n ú l t i m o p a r á g r a f o d o c a p . 6.

12 — A c o n s c iê n c ia d e q u e a c iê n c ia n a t u r a l n ã o é epistem e i n d u b i t á v e l (scientia) le v o u a o p o n t o d e
v is ta d e q u e s e r ia a p e n a s tech né ( t é c n i c a , a r t e , t e c n o l o g i a ,) e n q u a n t o a v is ã o a d e q u a d a , a m e u ju íz o , é a
d e q u e c o n s is te e m d o xa i ( o p in i õ e s , c o n j e c t u r a s ) c o n t r o l a d a s p e la d is c u s s ã o c r í t i c a e t a m b é m p e l a techné
e x p e r i m e n t a l . V id e c a p . 2 0 .

13 - V id e a s e ç ã o 10 d e Poverty o f H istoricism , b e m c o m o O pen Society a n d Its E nem ies, v o l. 1, c a p .


3 , s e ç ã o v i; v o l. 2 , c a p . 11, s e ç õ e s i e ii.
T R Ê S P O N T O S DE V IST A SO B R E O C O N H E C IM E N T O H UM A N O 131

d e n o m i n a r e i d e te rc e ira v is ã o , is to é , o q u e p e r m a n e c e d o p o n t o d e v is ta d e t . a l i l e u
d e p o is d a e l i m i n a ç ã o d o e s s e n c ia lis m o o u , m a i s p r e c i s a m e n t e , d e p o is d e se a d m i t i r
o q u e e r a ju s tific á v e l n a c r ític a in s tr u m e n ta lis ta .

3. P rim e iro P o n to d e V ista: A E x p lic a ç ã o D e fin itiv a P elas E ssê n cia s

O e s s e n c ia lis m o , o p r i m e i r o d o s tr ê s p o n to s d e v is ta s o b r e a te o r i a c i e n t íf ic a
q u e v a m o s e x a m i n a r a q u i , é p a r t e d a filo s o f ia d a c iê n c ia d e G a l i l e u . D e n t r o d e s s a
filo s o f ia h á tr ê s e l e m e n to s o u d o u t r i n a s q u e n o s i n t e r e s s a m . O e s s e n c ia lis m o é j u s ­
t a m e n t e a p a r t e d a filo s o f ia d e G a lil e u q u e n ã o p r e t e n d o d e f e n d e r : c o n s is te n u m a
c o m b i n a ç ã o d a s d o u t r i n a s 2 ) e 3 ). S ã o e ss a s a s tr ê s d o u t r i n a s a q u e m e r e f ir o :

1) O c ie n tis ta p r o c u r a u m a te o ria v e r d a d e ir a , q u e d escre va o m u n d o ( e s­


p e c ia lm e n te suas r e g u la r id a d e s o u “le is ”) e e x p liq u e os fa to s o b se rvá v eis. (O q u e
s i g n if ic a q u e u m a d e s c r iç ã o d e sse s f a t o s p r e c i s a s e r d e d u z i d a d a t e o r i a e m c o n j u n ­
ç ã o c o m c e r t a s a f i r m a t i v a s — a s c h a m a d a s “ c o n d iç õ e s i n i c i a i s ” ).

E s ta é u m a d o u t r i n a q u e a c e i to , e q u e f o r m a r á p a r t e d a “ t e r c e i r a v is ã o ” .

2 ) O c ie n tista é ca p a z d e d e m o n s tr a r a v e r d a d e dessas te o ria s a lé m d e q u a l­


q u e r d ú v id a ra zo á vel.

A m e u v e r, e s ta s e g u n d a d o u tr in a p re c is a se r c o r r ig id a . T u d o o q u e o c ie n ­
t i s t a p o d e f a z e r é t e s t a r s u a s te o r ia s , e l i m i n a n d o as q u e n ã o r e s is t e m a o s te s te s m a is
rig o ro s o s q u e p o d e c o n c e b e r . M a s e le n u n c a t e r á a c e r t e z a d e q u e n o v o s te s te s (o u
m e s m o u m a n o v a d is c u s s ã o te ó r i c a ) n ã o o le v a r á a m o d i f i c a r o u a r e j e i t a r s u a
te o r i a . N e s te s e n t id o , to d a s a s te o r ia s s ã o e p e r m a n e c e m h ip ó te s e s : s ã o c o n je c tu r a s
( d o x a ), e m c o n t r a p o s i ç ã o a o c o n h e c i m e n t o i n d u b i t á v e l ( e p is te m e ) .

3) A s m e lh o r e s te o ria s, as v e r d a d e ir a m e n te c ie n tífic a s, d e s c r e v e m as “e ssê n ­


c ia s ” das coisas — su a “n a tu r e z a e s s e n c ia l”, re a lid a d e s q u e e x is te m p o r trá s das
a p a rê n c ia s. E ssa s te o r ia s n ã o n e c e s s ita m e x p lic a ç õ e s a d ic i o n a is , n e m s ã o s u s c e p ­
tív e is d e ta is e x p lic a ç õ e s — s ã o e m si m e s m a s e x p lic a ç õ e s ú ltim a s . E n c o n t r á - l a s é o
o b je tiv o f i n a l d o c ie n t is ta .

E s ta t e r c e i r a d o u t r i n a ( j u n t a m e n t e c o m a s e g u n d a ) c o n s t i t u i o q u e c h a m e i
d e “e s s e n c ia l is m o ” . A c r e d it o q u e s e ja u m e r r o .

O q u e os filó s o fo s d a c iê n c ia i n s t r u m e n t a l i s t a — d e B e rk e le y a M a c h ,
D u h e m e P o i n c a r é — tê m e m c o m u m é o s e g u i n te : to d o s a f i r m a m q u e p a r a a c i ê n ­
c ia fís ic a e x p l i c a r n ã o é u m o b je t iv o , p o is a c iê n c ia n ã o p o d e d e s c o b r i r “ a e s s ê n c ia
o c u l t a d a s c o is a s ” . O a r g u m e n t o in d i c a q u e o q u e tê m e m m e n t e a o fa z e r e ssa o b ­
s e r v a ç ã o é o q u e c h a m e i d e e x p li c a ç ã o d e f in iti v a M A lg u n s , c o m o M a c h e B e r- *

'4 — E s te p o n t o j ã se p re s t u a l g u m a s v e ze s a c o n f u s ã o , p o is a c r i t i c a i n s t r u m e n t a l i s t a d i r i g i d a c o n t r a
a s e x p lic a ç õ e s ( d e f in i tiv a s ) io i e n u n c i a d a p o r a lg u n s p o r m e io d a f ó r m u l a d e q u e u o b j e t i v o d a c i ê n c i a é
a descrição , não a explicação. P o r descrição o q u e se q u e r i a d iz e r e r a a d e s c r iç ã o d o m u n d o em pírico
ordinário; o q u e a f ó r m u l a e x p r e s s a v a , i n d i r e t a m e n t e , e r a o f a t o d e q u e as te o r i a s q u e n ã o d e s c r e v e m
naquele sentido n ã o p a s s a m d e in s t r u m e n t o s c o n v e n i e n te s p a r a a j u d a r - n o s n a d e s c r iç ã o d o s f e n ô m e n o s
o rd in á rio s.
132 C O N JE C T U R A S E R E FU T A Ç Õ E S

k e le y , p e n s a m a s s im p o r q u e n ã o a c r e d i t a m q u e a s c o is a s fís ic a s t e n h a m u m a e s s ê n ­
c ia ; M a c h , p o r q u e n ã o a c e i t a a p r ó p r i a n o ç ã o d e essência; B e rk e le y , p o r q u e só
a c r e d i t a n a s e s s ê n c ia s e s p i r i t u a i s ; p a r a e le D e u s é a ú n i c a e x p li c a ç ã o e s s e n c ia l d o
m u n d o . D u h e m p a r e c e p e n s a r , l e m b r a n d o K a n t 15, q u e e x is te m e s s ê n c ia s , p o r é m
n ã o s ã o p e r c e p t ív e i s p e la c iê n c ia h u m a n a ( e m b o r a p o s s a m o s , d e a l g u m m o d o , n o s
a p r o x i m a r d e la s ) ; d a m e s m a f o r m a q u e B e rk e le y , e le a c h a q u e as e s s ê n c ia s p o d e m
s e r r e v e l a d a s p e l a r e l ig i ã o . M a s to d o s esses filó s o fo s e s t ã o d e a c o r d o e m q u e a e x ­
p l i c a ç ã o c ie n t í f i c a ( d e f in it iv a ) é im p o s s ív e l. D a in e x i s t ê n c ia d e u m a e s s ê n c ia o c u l t a
q u e p u d e s s e s e r d e s c r i t a p e la s te o r ia s c ie n t íf ic a s e le s c o n c lu e m q u e e ss a s te o r ia s (as
q u a is c l a r a m e n t e n ã o d e s c r e v e m n o s s o m u n d o o r d i n á r i o d a e x p e r i ê n c i a c o m u m )
n a d a d e s c r e v e m — s ã o m e r o s i n s t r u m e n t o s . 16 O q u e p o d e a p a r e c e r c o m o c r e s ­
c i m e n t o d o c o n h e c i m e n t o te ó r ic o n ã o é m a i s d o q u e u m a p e r f e i ç o a m e n t o i n s ­
tr u m e n ta l.

O s filó s o fo s i n s t r u m e n t a l i s t a s r e j e i t a m , p o r t a n t o , a t e r c e i r a d o u t r i n a — a
d o u t r i n a d a s e s s ê n c ia s . ( T a m b é m a r e j e it o , m a s p o r ra z õ e s a lg o d i f e r e n t e s .) A o
m e s m o t e m p o , r e c u s a m o b r i g a t o r i a m e n t e a s e g u n d a d o u t r i n a ; d e f a t o , se a te o r i a é
a p e n a s u m i n s t r u m e n t o , n ã o p o d e s e r v e r d a d e i r a ( p o d e , s im , s e r c o n v e n i e n t e , sim
p ie s , e c o n ô m i c a , p o d e r o s a , e t c .) . F r e q ü e n t e m e n t e c h a m a m a s te o r ia s d e " h i p ó ­
te s e s ” , e m b o r a n ã o e m p r e g u e m o t e r m o n o s e n t i d o e m q u e o u tiliz o : d e q u e se p o d e
c o n je c tu r a r q u e u m a te o ria é v e r d a d e ir a — q u e é u m a a f i r m a ç ã o d e s c r iti v a , e m ­
b o r a ta lv e z f a ls a (m a s p r e t e n d e m d iz e r q u e a s te o r ia s n ã o s ã o s e g u r a s ) . E sc re v e
O s i a n d r o : “ E a r e s p e ito d a u t i l i d a d e d a s h ip ó te s e s n i n g u é m d e v e e s p e r a r q u e s u r ja
a lg o s e g u r o d a a s t r o n o m i a ; n a d a d is s o p o d e r á o r i g i n a r - s e j a m a i s d e s s a c i ê n c i a ” .
O r a , c o n c o r d o i n t e i r a m e n t e e m q u e n ã o se p o d e t e r c e r t e z a d a s te o r ia s ( q u e s ã o
s e m p r e r e f u tá v e i s ) ; c o n c o r d o m e s m o e m d iz e r q u e s ã o i n s t r u m e n t o s , m a s n ã o q u e
isso j u s t i f i q u e n ã o t e r m o s c e r t e z a s o b r e e la s . A r a z ã o c o r r e t a , a m e u v e r , é s i m p l e s ­
m e n t e a d e q u e n o sso s te s te s n ã o p o d e m s e r e x a u s t iv o s . H á a s s im u m a á r e a d e c o n ­
c o r d â n c i a c o n s i d e r á v e l e n t r e m e u s o p o s i to r e s i n s t r u m e n t a l i s t a s e o p o n t o d e v is ta
q u e d e f e n d o a r e s p e ito d a s e g u n d a e d a t e r c e i r a d o u t r i n a s . C o m r e l a ç ã o à p r i m e i r a
d o u tr in a , n o e n ta n to , o d e s a c o rd o é to ta l.

V o lta r e i m a is a d i a n t e a f a l a r a r e s p e ito d e ss e d e s a c o r d o . N a p r e s e n t e s e ç ã o
p r o c u r a r e i c r i t i c a r a d o u t r i n a e s s e n c ia lis ta d a c iê n c ia ; f a r e i isso e m li n h a s a lg o
d i f e r e n t e s d a s d o s a r g u m e n t o s u s a d o s p e lo s i n s t r u m e n t a l i s t a s , q u e n ã o p o sso
a c e i t a r . C o m e f e i to , s e u a r g u m e n t o d e q u e n ã o p o d e h a v e r " e s s ê n c ia s o c u l t a s ” se
b a s e i a n a c o n v ic ç ã o d e q u e n ã o p o d e h a v e r n a d a o c u lto (o u d e q u e se h á a lg o o c u l ­
to , só p o d e s e r c o n h e c i d o p o r m e i o d a r e v e l a ç ã o d iv i n a ) . O q u e d is s e n a ú l t i m a
s e ç ã o t e r á d e i x a d o c l a r o q u e n ã o p o s s o a c e i t a r u m a r g u m e n t o q u e le v a à r e je iç ã o
d o p a p e l d a c iê n c ia n a d e s c o b e r t a d a r o t a ç ã o d a T e r r a , d o s n ú c le o s a tô m ic o s , d a
r a d i a ç ã o c ó s m ic a e d a s “ r a d i o - e s t r e l a s ” .

E s to u p r o n t o p o r t a n t o a c o n c e d e r a o s e s s e n c ia lis ta s q u e h á m u i t o o c u lt o d a
n o ss a p e r c e p ç ã o , e q u e p o d e r e m o s d e s c o b r i r m u i t o d o q u e n o s e s tá o c u l t o . ( D is c o r ­
d o p r o f u n d a m e n t e d o e s p í r it o d o d ic tu m d e W i t t g e n s t e i n : “ O e n i g m a n ã o e x is te ” ).
N ã o p r e t e n d o c r i t i c a r os q u e p r o c u r a m c o m p r e e n d e r a “e s s ê n c ia d o m u n d o ” . A

15 — C f . c a r t a e s c r i t a p o r K a n t a R e i n h o l d , 1 2 -5 - 1 7 8 9 , n a q u a l d e c l a r a q u e a “ e s s ê n c ia r e a l " o u ‘‘n a ­
t u r e z a ” d e u m a c o is a ( p o r e x e m p lo , d a m a t é r i a ) é in a c e s s ív e l a o c o n h e c i m e n t o h u m a n o .

16 V id e o c a p . 6.
T R Ê S P O N T O S D E V IS T A S O B R E O C O N H E C IM E N T O H U M A N O 13S

d o u t r i n a e s s e n c ia lis ta q u e c o n te s to é a p e n a s a d o u tr in a d e q u e a c iê n c ia b u sc a u m a
e x p lic a ç ã o d e fin itiv a — is to é , u m a e x p li c a ç ã o q u e , e s s e n c ia l m e n te , p e la s u a
p r ó p r i a n a t u r e z a , n ã o p o s s a s e r a m p l i a d a , q u e n ã o e x ij a e x p li c a ç õ e s a d ic i o n a is .

F ic a c l a r o , p o r t a n t o , q u e m i n h a c rític a d o e s s e n c ia lis m o n ã o v is a a e s t a b e le c e r
a in e x i s t ê n c ia d a s e s s ê n c ia s ; p r o c u r a s i m p l e s m e n t e m o s t r a r o p a p e l o b s c u r a n t i s t a
d e s e m p e n h a d o p e la id é i a d a s e s s ê n c ia s n a filo s o f ia d a c iê n c ia d e G a lile u ( a t é M a x ­
w e ll, q u e se i n c l i n a v a a a c e i t á - l a s , m a s c u ja s in v e s tig a ç õ e s d e s t r u í r a m s u a c r e n ç a ) .
E m o u t r a s p a l a v r a s , m i n h a c r í t i c a t e n t a d e m o n s t r a r q u e , e x is ta m o u n ã o as e s s ê n ­
c ia s , a c r e n ç a n e la s n ã o n o s a j u d a d e n e n h u m m o d o ; n a v e r d a d e , p o d e p r e j u d i c a r -
n o s ; p o r isso n ã o h á q u a l q u e r r a z ã o p a r a q u e o c ie n t i s t a p r e s u m a s u a e x is tê n c i a . >7

P o d e -s e d e m o n s t r a r isso , c r e i o , c o m u m e x e m p l o s i m p l e s — a te o ria n e w -
to n ia n a d a g r a v id a d e .

A i n t e r p r e t a ç ã o e s s e n c ia lis ta d e s s a te o r i a é d e v id a a R o g e r C o t e s . 171819 S e g u n ­
d o C o te s , N e w t o n d e s c o b r i u q u e to d a s as p a r t í c u l a s d e m a t é r i a p o s s u e m g r a v id a d e ,
is to é , u m a f o r ç a i n e r e n t e d e a t r a ç ã o d a m a t é r i a , b e m c o m o in é rc ia , u m p o d e r
i n e r e n t e d e r e s is tê n c ia a q u a l q u e r a l t e r a ç ã o n o s e u m o v i m e n t o ( p o d e r d e m a n t e r a
d i r e ç ã o e a v e lo c i d a d e d o m o v i m e n t o ) . C o m o t a n t o a g r a v i d a d e q u a n t o a i n é r c ia
s ã o in e r e n te s à m a t é r i a , s e g u e -s e q u e d e v e m s e r e s t r i t a m e n t e p r o p o r c i o n a i s à q u a n ­
t i d a d e d e m a t é r i a q u e c o m p õ e u m c o r p o ; d a í a le i d a p r o p o r c i o n a l i d a d e d a m a s s a
in e r t e e e m g r a v i t a ç ã o . C o m o a g r a v i d a d e se i r r a d i a d e to d a s a s p a r t í c u l a s , c h e ­
g a m o s à “ lei d o q u a d r a d o d a a t r a ç ã o ” : e m o u t r a s p a l a v r a s , a s le is d a d i n â m i c a
n e w t o n i a n a a p e n a s d e s c r e v e m e m l i n g u a g e m m a t e m á t i c a a s i t u a ç ã o d e v id a às
p r o p r i e d a d e s in e r e n t e s d a m a t é r i a : d e s c r e v e m a n a tu r e z a e sse n c ia l d a m a té r ia .

C o m o a te o r ia d e N e w to n d e s c r e v ia d e s te m o d o a n a t u r e z a e s s e n c ia l d a
m a t é r i a , p o d i a e x p l i c a r o c o m p o r t a m e n t o d a m a t é r i a p e lo p ro c e s s o d a d e d u ç ã o
m a t e m á t i c a . D e a c o r d o c o m C o te s , p o r é m , e l a n ã o e x ig e e x p li c a ç õ e s a d ic i o n a is ,
n e m p o d e d á -la s p e lo m e n o s d e n t r o d o c a m p o d a f ís ic a . A ú n i c a p o ss ív e l e x ­
p l i c a ç ã o a d i c i o n a l é a d e q u e D e u s a t r i b u i u à m a t é r i a e ss a s p r o p r i e d a d e s e s s ê n ­
c ia s . 19

17 — E s ta c r í t i c a é p o r t a n t o f r a n c a m e n t e m i l i t a r i s t a / e p o d e r i a s e r d e s c r i t a c o m o i n s t r u m e n t a l i s t a . . . O
q u e m e in te r e s s a a q u i é o p roblem a do m é to d o __ q u e é s e m p r e u m p r o b l e m a d e a d e q u a ç ã o d e m e io s a
f in s . M in h a c r í t i c a a o essencialism o , is to é, à doutrina da explicação definitiva, t e m s id o o b j e t a d a c o m a
o b s e r v a ç ã o d e q u e e u p r ó p r i o (ta lv e z d e f o r m a i n c o n s c ie n te ) f u n c io n o c o m a id é ia d e u m a essência da
ciência ( o u d o co n h ecim ento humano)·, e x p l i c i t a d o , m e u a r g u m e n t o s e r ia o s e g u in t e : O f a t o d e q u e n ã o
p o d e m o s c o n h e c e r , o u b u s c a r , c o is a s c o m o a s e s s ê n c ia s o u n a t u r e z a s é u m f a t o q u e p e r t e n c e à e s s ê n c ia
o u à n a t u r e z a d a c i ê n c i a h u m a n a ( o u d o c o n h e c i m e n t o h u m a n o ) . R e s p o n d í, p o r im p l i c a ç ã o , e m L. Sc.
D , s e ç õ e s 9 e 10, a n t e s m e s m o d e q u e a o b je ç ã o fo sse l e v a n t a d a — n a v e r d a d e , a n t e s d e d e s c r e v e r o u
a t a c a r o e s s e n c ia lis m o . V a le n o t a r a i n d a q u e s e r ia p o s sív e l a d m i t i r q u e c e r to s objetos que fa b rica m o s —
os re ló g io s , p o r e x e m p lo — tiv e s s e m u m a “ e s s ê n c ia ” , is to é , u m “ p r o p ó s i t o ” . C o m o a c iê n c ia é u m a
a t i v i d a d e i m b u í d a d e p r o p ó s i t o (é u m m é t o d o ) , poderia p o r t a n t o s e r c o n c e b i d a c o m o t e n d o u m a “e ss ê n
c i a ” , m e s m o q u e n e g á s s e m o s q u e os o b je to s n a t u r a i s tê m e s s ê n c ia s ( n e g a tiv a q u e , n o e n t a n t o , n ã o e stá
im p l í c i t a n a c r í t i c a q u e fa ç o a o e s s e n c ia lis m o ) .

18 — P r e f á c i o d e R . C o te s à s e g u n d a e d i ç ã o d o s Principia d e N e w to n .

19 — H á u m a t e o r i a e s s e n c ia lis ta d o t e m p o e d o e s p a ç o ( s e m e l h a n t e a e s ta t e o r i a d a m a t é r i a ) , q u e
d e v em o s a o p ró p r io N e w to n .
134 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

A c o n c e p ç ã o e s s e n c ia lis ta d a t e o r i a d e N e w t o n e r a , d e m o d o g e r a l , s u a i n ­
t e r p r e t a ç ã o “o f i c i a l ”. a t é a s ú l t i m a s d é c a d a s d o s é c u lo d e z e n o v e . E s tá c la r o q u e e r a
u m a i n t e r p r e t a ç ã o o b s c u r a n t i s t a , p o is im p e d ia a c o lo c a ç ã o d e in d a g a ç õ e s f r u t í ­
fe r a s , ta i s c o m o : “q u a l é a c a u s a d a g r a v i d a d e ? o u “s e r á p o s s ív e l e x p l i c a r a g r a ­
v id a d e d e d u z i n d o a t e o r i a d e N e w t o n , o u u m a b o a a p r o x i m a ç ã o d e l a , d e u m a
te o r ia m a is g e ra l (q u e p u d e ss e se r te s ta d a in d e p e n d e n te m e n te ) ? ”

E e l u c i d a t i v o c o n s t a t a r q u e o p r ó p r i o N e w t o n n ã o c o n s i d e r a v a a g r a v id a d e
u m a p r o p r i e d a d e e s s e n c ia l d a m a t é r i a ( e m b o r a c o n s i d e r a s s e a in é rc ia e s s e n c ia l,
c o m o a e x te n s ã o — a c o m p a n h a n d o D e s c a r te s ) . N e w t o n p a r e c e t e r r e c e b i d o d e D e s ­
c a r t e s a n o ç ã o d e q u e a e s s ê n c ia d e u m a c o is a é n e c e s s a r i a m e n t e u m a s u a p r o ­
p r i e d a d e v e r d a d e i r a o u a b s o l u t a — is to é , u m a p r o p r i e d a d e q u e n ã o d e p e n d e d a
e x is tê n c i a d e o u t r a s c o is a s , t a l c o m o a e x t e n s ã o o u o p o d e r d e r e s is t ir a m u d a n ç a s
n o s e u m o v i m e n t o , e n ã o u m a p r o p r i e d a d e “ r e l a c i o n a i ” , is to é , u m a p r o p r i e d a d e
q u e , c o m o a g r a v i d a d e , d e t e r m i n a as r e l a ç õ e s ( i n te r a ç õ e s e s p a c i a is ) e n t r e os c o rp o s .
P o r isso e le s e n t i a c l a r a m e n t e o c a r á t e r i n c o m p l e t o d a s u a t e o r i a , e a n e c e s s id a d e
d e e x p l i c a r a g r a v i d a d e , t e n d o o b s e r v a d o : 20 “A d m i t i r q u e a g r a v i d a d e s e ja i n a t a ,
i n e r e n t e e e s s e n c ia l à m a t é r i a , d e f o r m a q u e os c o r p o s p o s s a m a g i r e n t r e si à d i s ­
t â n c i a ... é p a r a m im u m a b s u r d o tã o g r a n d e q u e n ã o a c r e d ito q u e a lg u é m q u e
t e n h a a f a c u l d a d e d e p e n s a r c o m c o m p e t ê n c i a s o b r e a s s u n to s filo s ó fic o s p o s s a n e le
r e c a ir .”

É i n t e r e s s a n t e v e r q u e N e w t o n c o n d e n o u n e s s a p a s s a g e m , a n te c ip a d a m e n t e - ,
a m a i o r p a r t e d o s s e u s s e g u id o r e s . S e n te - s e a t e n t a ç ã o d e d iz e r q u e p a r a e ste s as
p r o p r i e d a d e s q u e a p r e n d e r a m n a e s c o la p a r e c i a m e s s e n c ia is (e a t é m e s m o e v i d e n ­
te s ), e m b o r a o m e s m o n ã o a c o n te c e s s e c o m N e w t o n , c o m s u a f o r m a ç ã o c a r t e s i a n a ,
p a r a q u e m e la s p r e c i s a v a m d e e x p l i c a ç ã o ( c h e g a n d o m e s m o a p a r e c e r q u a s e p a ­
ra d o x a is).

N o e n t a n t o , N e w to n e r a u m e s s e n c ia l is t a , q u e se h a v ia e s f o r ç a d o p o r e n c o n ­
t r a r u m a e x p li c a ç ã o d e f i n it iv a a c e itá v e l d a g r a v i d a d e p r o c u r a n d o d e d u z i r a “lei d o
q u a d r a d o ” d a p r e m is s a d e u m im p u ls o m e c â n i c o — o ú n ic o t i p o d e a ç ã o c a u s a i
a d m i t i d a p o r D e s c a r te s , p o is p o d i a s e r e x p l i c a d a p e l a e x te n s ã o , e ss a p r o p r i e d a d e
e s s e n c ia l d e to d o s os c o r p o s . 21 N e w t o n , p o r é m , f r a c a s s o u . Se n ã o fo sse isso , p o ­
d e r i a m o s t e r c e r t e z a d e q u e t e r i a i m a g i n a d o q u e o s e u p r o b l e m a t i n h a s id o f in a l -
m e n t e re s o lv id o q u e e n c o n t r a r a u m a e x p l i c a ç ã o d e f i n i t i v a p a r a a g r a v i d a d e 22
e t e r i a c o m e t id o u m e r r o . A p e r g u n t a : “ p o r q u e os c o r p o s p o d e m p r o d u z i r im -

20 C a r t a a R i c h a r d B e n tle y , 2 5 - 2 T 6 9 3 , e t a m b é m a c a r t a d e 17 d e j a n e i r o .

21 N e w t o n t e n t o u e x p l i c a r a g r a v i d a d e p e la ação p o r contato c a r t e s i a n a ( p r e c u r s o r a d e u m a action


at vam shing distances). S u a O pticks ( Qu 31) m o s tr a q u e e le d e f a t o c o n s id e r a v a q u e " . . . a q u i l o q u e
c h a m o a t r a ç ã o p o d e s e r e x e c u t a d o p e lo im p u l s o " ( a n t e c i p a n d o a s s im a e x p lic a ç ã o d a g r a v i d a d e p o r
L e s a g e c o m o u m ‘'e f e ito d e g u a r d a - c h u v a " n u m a c h u v a d e p a r t í c u l a s ) .

22 N e w t o n fo i u m e s s e n c ia lis ta , p a r a q u e m a g r a v i d a d e e r a i n a c e itá v e l c o m o e x p l i c a ç ã o d e f in itiv a ;


m a s e r a c r itic o d e m a i s p a r a a c e i t a r a té m e s m o s u a s p r ó p r i a s t e n t a t i v a s d e e x p lic á - la . N a m e s m a s i­
tu a ç ã o . D e s c a r te s te r i a p r e s u m i d o a e x is t ê n c ia d e a l g u m m e c a n i s m o d e i m p u ls ã o , p r o p o n d o o q u e
c h a m a r i a d e " h ip ó te s e . N e w to n , p o r é m , a l u d i n d o c r i t i c a m e n t e a D e s c a r te s , a c e n t u o u q u e p r e t e n d i a
“a r g u m e n t a r c o m b a s e e m te n ô m e n o s , s e m c o n c e b e r h ip ó te s e s ( a r b i t r á r i a s o u ad hoc)." ( Q u . 2 8 ) C o m o é
n a t u r a l , e le n ã o p o d i a e v i t a r t o d o o te m p o o e m p r e g o d e h ip ó te s e s , e s u a O pticks c o n t é m m u i t a s es
p e c u l a ç õ e s o u s a d a s . C o n t u d o , s u a r e je iç ã o e x p l í c i t a e r e i t e r a d a d o m é t o d o d a s h ip ó te s e s d e ix o u u m a i m ­
p re ssã o d u r a d o u r a : e D u h e m a u so u p a r a a p o ia r a c o n c e p ç ã o d o in s tru m e n ta lis m o .
T R Ê S P O N T O S D E V IST A S O B R E O C O N H E C IM E N T O H UM A N O 135

p u ls o s u n s s o b r e os o u t r o s ? ” p o d e s e r f e i t a ( c o n f o r m e L e ib n i z v iu e m p r i m e i r o
l u g a r ) , e é m e s m o u m a i n d a g a ç ã o m u i t o f é r til ( a ç r e d i t a m o s a g o r a q u e isso é p o s ­
sível d e v id o a c e r t a s fo r ç a s e lé t r i c a s re p u ls iv a s ) . M a s o e s s e n c ia lis m o c a r t e s i a n o e
n e w t o n i a n o p o d e r í a t e r e v it a d o e s s a p e r g u n t a , e s p e c i a lm e n te se N e w t o n tiv e sse ti d o
ê x it o a o t e n t a r e x p l i c a r a g r a v i d a d e .

A c h o q u e esses e x e m p lo s d e ix a m , c la r o q u e a c r e n ç a n a s e s s ê n c ia s (s e ja v e r ­
d a d e i r a o u f a l s a ) p o d e c r i a r o b s t á c u lo s a o p e n s a m e n t o — à p o s t u l a ç ã o d e p r o ­
b le m a s n o v o s e f é r te is . A lé m d is s o , e l a n ã o p o d e s e r p a r t e d a c i ê n c i a ( m e s m o se e n ­
c o n tr á s s e m o s , p o r s o r te , u m a t e o r i a q u e d e s c re v e s s e a s e s s ê n c ia s , n u n c a p o d e r i a m o s
te r c e rte z a d a su a a d e q u a ç ã o ) . C o n tu d o , u m a c r e n ç a q u e c o n d u z c o m p r o b a b i­
l i d a d e a o o b s c u r a n t i s m o n ã o é d e c e r t o u m a d e s s a s c r e n ç a s e x t r a c i e n t í i i c a s (ta is
c o m o a fé n o p o d e r d a d is c u s s ã o c r í t i c a ) q u e u m c i e n t i s t a p re c isa a c e i t a r .

C o n c lu o a s s im m i n h a c r í t i c a d o e s s e n c ia lis m o .
3
4 . S e g u n d o P o n to d e V ista: A s T e o ria s c o m o I n s tr u m e n to s

A v is ã o i n s t r u m e n t a l i s t a t e m g r a n d e s a t r a t i v o s : é m o d e s t a e m u i t o s im p le s ,
e s p e c i a l m e n t e q u a n d o c o m p a r a d a c o m o e s s e n c ia lis m o .

D e a c o r d o c o m o e s s e n c ia lis m o p o d e m o s d i s t i n g u i r e n t r e : i) o u n iv e r s o d a
r e a l i d a d e e s s e n c ia l; ii) o u n iv e r s o d o s f e n ô m e n o s o b s e r v á v e is ; e iii) o u n iv e r s o d a
li n g u a g e m d e s c r iti v a e d a r e p r e s e n t a ç ã o s i m b ó l ic a . R e p r e s e n t a r e j c a d a u m d e sse s
u n iv e r s o s p o r u m q u a d r a d o :

A f u n ç ã o d a s t e o r ia s p o d e r í a s e r d e s c r ita d a s e g u i n t e m a n e i r a : a e b s ã o
f e n ô m e n o s , A e B s ã o a s r e a l i d a d e s c o r r e s p o n d e n t e s , q u e e x is te m p o r t r á s d a s
a p a r ê n c i a s ; gC e / 3 s ã o a s d e s c r iç õ e s o u r e p r e s e n t a ç õ e s s i m b ó l ic a s d e s s a s r e a l i d a d e s .
E s ã o as p r o p r i e d a d e s e s s e n c ia is d e A e B ; £ é a t e o r i a q u e d e s c r e v e E . O r a , a p a r t i r
d e £ e d e (X p o d e m o s d e d u z i r / ? , o q u e s i g n if ic a q u e p o d e m o s e x p l i c a r , c o m a a j u d a
d a n o s s a t e o r i a , p o r q u e a le v a a b (é c a u s a d e b).

P o d e -s e r e p r e s e n t a r o i n s t r u m e n t a l i s m o , c o m esse e s q u e m a , s i m p l e s m e n t e
o m i t i n d o (i) o u n iv e r s o d a s r e a l i d a d e s p o r tr á s d a s v á r i a s a p a r ê n c i a s . cX d e s ­
c r e v e r á d i r e t a m e n t e a e / 3 d e s c r e v e r á d i r e t a m e n t e b . £ n ã o d e s c r e v e r á n a d a : s e r á só
u m i n s t r u m e n t o p a r a a j u d a r - n o s a d e d u z i r β d e θ (. O q u e p o d e s e r e x p re s s o d iz e n -
136 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

d o — c o m o o fez S c h lic k , s e g u i n d o W i t t g e n s t e i n — q u e u m a te o r i a o u le i u n iv e r s a l
n ã o é p r o p r i a m e n t e u m a a f i r m a t i v a , m a s “ u m a r e g r a , o u c o n j u n t o d e in s tr u ç õ e s ,
p a r a d e r i v a r u m a s a f i r m a t i v a s s i n g u la r e s d e o u t r a s . ” 23

E sse é o p o n t o d e v is ta i n s t r u m e n t a l i s t a . P a r a c o m p r e e n d ê - l o m e l h o r p o ­
d e m o s t o m a r m a is u m vez a d i n â m i c a n e w t o n i a n a c o m o e x e m p l o : a e b s ã o d u a s
p o s iç õ e s d e d o is fo c o s lu m in o s o s ( o u d u a s p o s iç õ e s d o p l a n e t a M a r t e ) ; c( e /3 s ã o as
f ó r m u l a s c o r r e s p o n d e n t e s ; f é a t e o r i a f o r t a l e c i d a p e l a d e s c r iç ã o g e r a l d o s is te m a
s o l a r ( p o r u m “m o d e l o ” d o s i s te m a s o l a r ) . N a d a c o r r e s p o n d e a f n o m u n d o (n o
u n iv e r s o ii): e n t i d a d e s c o m o f o r ç a s a t r a t i v a s , p o r e x e m p l o , s i m p l e s m e n t e n ã o e x is ­
te m . A s fo r ç a s p r o p o s ta s p o r N e w t o n n ã o s ã o e n t i d a d e s q u e d e t e r m i n a m a a c e ­
l e r a ç ã o d o s c o r p o s : s ã o a p e n a s i n s t r u m e n t o s m a t e m á t i c o s c u ja f u n ç ã o c o n s is te e m
p e r m i t i r - n o s d e d u z i r y S 'd eOC.

S e m d ú v i d a te m o s a q u i u m a s i m p l i f i c a ç ã o a t r a e n t e , u m a a p l i c a ç ã o r a d i c a l
d a “n a v a l h a d e O c k h a m ” . M a s , e m b o r a e ss a s i m p l i c i d a d e t e n h a p r o v o c a d o a c o n ­
v e rs ã o d e m u i to s c i e n t is ta s e filó s o fo s a o i n s t r u m e n t a l i s m o ( p o r e x e m p l o : M a c h ) .
e s tá lo n g e d e s e r o a r g u m e n t o m a is f o r t e e m s e u f a v o r .

O a r g u m e n t o m a i s f o r t e d a d o p o r B e rk e le y e m a p o io d o i n s t r u m e n t a l i s m o se
b a s e a v a n a filo s o f ia d a l i n g u a g e m n o m i n a l i s t a , s e g u n d o a q u a l a e x p r e s s ã o “f o r ç a
d e a t r a ç ã o ” n ã o t e r i a s e n t id o , j á q u e f o r ç a s d e s s e t i p o n ã o p o d e m s e r o b s e r v a d a s . O
q u e o b s e r v a m o s s ã o m o v i m e n t o s , n ã o s u a s a l e g a d a s “c a u s a s ” , o c u lt a s . P a r a B e r ­
k e le y isso s e r ia s u f ic ie n t e p a r a d e m o n s t r a r q u e a te o r i a d e N e w to n n ã o p o d e te r
q u a l q u e r c o n t e ú d o i n f o r m a t i v o o u d e s c r itiv o .

O r a , e s te a r g u m e n t o d e B e rk e le y p o d e ta lv e z s e r c r i t i c a d o p e l a t e o r i a d o s i g ­
n i f i c a d o i n t o l e r a v e l m e n t e e s t r e i t a q u e i m p l i c a ; se a a p lic á s s e m o s d e f o r m a c o n s is ­
t e n t e , to d a s as p a l a v r a s r e f e r e n te s a d is p o s iç õ e s n ã o t e r i a m s e n t i d o . N ã o só a s “f o r ­
ç a s d e a t r a ç ã o " n e w t o n i a n a s s e r ia m d e s p r o v id a s d e s i g n if i c a d o , m a s t a m b é m o u t r a s
p a l a v r a s e e x p re s s õ e s c o m o “ q u e b r á v e l ” ( q u e p o d e s e r q u e b r a d o , d i f e r e n t e d e
“q u e b r a d o ” ), o u “e l e t r o c o n d u t o r ” ( q u e p o d e c o n d u z i r e l e t r i c i d a d e , d i f e r e n t e d e
q u e e s t á c o n d u z i n d o e l e t r i c i d a d e ) . D e f a t o , “ q u e b r á v e l ” e “e l e t r o c o n d u t o r ” n ã o s ã o
n o m e s d e q u a l q u e r c o is a o b s e r v á v e l; p r e c i s a r i a m p o r t a n t o s e r t r a t a d o s e m i g u a l ­
d a d e d e c o n d iç õ e s c o m as “f o r ç a s ” n e w t o n i a n a s . C o n t u d o , s e r ia n a t u r a l m e n t e e m ­
b a r a ç o s o q u a l i f i c a r to d a s e ssa s e x p re s s õ e s c o m o c a r e n t e s d e s e n t id o — e d o p o n t o
d e v is ta d o i n s t r u m e n t a l i s m o isso é d e s n e c e s s á r io : t u d o o q u e p r e c i s a m o s é u m a
a n á lis e d o s e n t id o d o s te r m o s r e f e r e n te s a d is p o s iç õ e s — o q u e r e v e l a r á q u e p o s ­
s u e m u m s e n t id o . D o p o n t o d e v is ta i n s t r u m e n t a l i s t a , p o r é m , n ã o tê m u m s e n t id o
d e s c r itiv o : s u a f u n ç ã o n ã o s e r ia r e f e r i r e v e n to s , o c o r r ê n c i a s , “ i n c i d e n t e s ” , o u d e s ­
c r e v e r f a t o s ; s e u s i g n if i c a d o se l i m i t a r i a à p e r m is s ã o o u li c e n ç a q u e n o s d ã o p a r a
e x t r a i r i n f e r ê n c i a s o u p a r a a r g u m e n t a r a p a r t i r d e c e r t a s q u e s tõ e s d e f a t o p a r a
o u t r a s . A s a f i r m a t i v a s q u e n ã o d iz e m r e s p e ito a d is p o s iç õ e s , e d e s c r e v e m f a to s o b ­
s e rv á v e is ( “ s u a p e r n a e s tá q u e b r a d a ” ) s e r ia m c o m o o d i n h e i r o , q u e te m v a lo r
i m e d i a t o ; a s a s s e rtiv a s q u e c o n c e r n e m d is p o s iç õ e s ( i n c l u i n d o a s le is c ie n t íf ic a s )
s e r ia m c o m o i n s t r u m e n t o s d e c r é d i t o , q u e c r i a m d ir e it o s re s g a tá v e is e m d i n h e i r o . 23

2 3 — V id e a a n á l is e e c r í t i c a d e s s e p o n t o d e v is ta e m L . Sc. D , e s p e c ia lm e n t e n a n o t a 7 d a s e ç ã o 4; e
t a m b é m n a n o t a 5 1 , c a p . 11 d e O pen Society. A id é ia d e q u e a f i r m a t i v a s u n iv e r s a is p o d e m f u n c i o n a r
d e s s a f o r m a p o d e s e r e n c o n t r a d a n a L ogic d e M ill, L iv ro II , c a p . I I I , 3: “T o d a i n f e r ê n c ia p a r t e d e p a r ­
t i c u la r e s p a r a p a r t i c u l a r e s ” . V id e t a m b é m G . R y le , T h e C oncept o f M in d (1 9 6 9 ) , c a p . V , p á g . 121
p a r a u m a f o r m u l a ç ã o m a is c u i d a d o s a e c r í t i c a d o m e s m o p o n t o d e v is ta .
T R E S P O N T O S D E V IST A SO B R E O C O N H E C IM E N T O H UM A N O 137

B a s t a r á a v a n ç a r m a is u m p a s s o n a m e s m a d i r e ç ã o p a r a c h e g a r m o s a u m a r ­
g u m e n t o i n s t r u m e n t a l i s t a q u e é m u i t o d if íc i l d e c r i t i c a r — se n ã o im p o s s ív e l: n o sso
p r o b l e m a — s a b e r se a c iê n c ia é d e s c r iti v a o u i n s t r u m e n t a l — f i c a r á e x p o s t o e n t ã o
c o m o u m p s e u d o p r o b l e m a . 24

E sse p a s s o c o n s is te s i m p l e s m e n t e e m n ã o só a t r i b u i r s e n t i d o — s e n t i d o i n s ­
t r u m e n t a l — a o s te r m o s e e x p re s s õ e s r e f e r e n t e s a d is p o s iç õ e s , m a s e m a d m i t i r t a m ­
b é m q u e t ê m u m s e n tid o d e s c r itiv o . O s te r m o s c o m o “ q u e b r á v e l ” , q u e se r e f e r e m a
d is p o s iç õ e s (n o c a s o , a d is p o s iç ã o d e q u e b r a r o u d e s e r q u e b r a d o ) s e g u r a m e n t e d e s ­
c r e v e m a l g u m a c o is a : d e f a t o , d iz e r q u e u m a c o is a é “ q u e b r á v e l ” é d e s c r e v ê - la
c o m o u m a c o is a q u e p o d e s e r q u e b r a d a . C o n t u d o , d iz e r q u e a lg o é q u e b r á v e l , o u
s o lú v e l, é d e s c r e v e r d e m o d o p a r t i c u l a r , c o m u m m é t o d o d i f e r e n t e d o q u e e s tá i m ­
p l i c a d o n a a f i r m a t i v a d e q u e a lg o e s tá q u e b r a d o , o u d is s o lv id o . S e n ã o fo sse a s s im ,
n ã o u s a r ía m o s o s u f ix o " á v e l” . A d i f e r e n ç a é e x a t a m e n t e e s t a : a o u s a r te r m o s d e s s a
n a t u r e z a d e s c r e v e m o s o q u e p o d e a c o n te c e r à coisa e m q u e s tã o , e m d e te r m in a d a s
c ir c u n s tâ n c ia s . D a m e s m a f o r m a , a s d e s c r iç õ e s e m t e r m o s d e d is p o s iç ã o são d e s ­
c riç õ e s , s e m d ú v i d a , e m b o r a t e n h a m u m a f u n ç ã o p u r a m e n t e i n s t r u m e n t a l : p o d e -s e
d iz e r a s e u r e s p e ito q u e c o n s t i t u e m u m c a s o e m q u e o c o n h e c i m e n t o é p o d e r — o
p o d e r d e p r e v e r . Q u a n d o G a lil e u d is s e , r e f e r in d o - s e à T e r r a , “e , c o n t u d o , se m o v e ” ,
fez, s e m d ú v i d a , u m a a f i r m a t i v a d e s c r iti v a ; m a s o s e n t id o o u f u n ç ã o d e s s a a f i r ­
m a t i v a é e x c lu s iv a m e n te i n s t r u m e n t a l , l i m i t a d a à a j u d a q u e p r e s t a n a d e d u ç ã o d e
c e r t a s a f i r m a t i v a s n ã o r e f e r e n te s a d is p o s iç õ e s .

D e a c o r d o c o m e s te a r g u m e n t o , p o r c o n s e g u i n t e , a t e n t a t i v a d e d e m o n s t r a r
q u e a s te o r ia s tê m u m s e n t id o d e s c r itiv o , a lé m d o s e u s e n t i d o i n s t r u m e n t a l , é
p r o d u to d e u m e rr o d e c o n c e p ç ã o — to d o o p r o b le m a — o p o n to d e d is c o rd â n c ia
e n t r e G a lil e u e a I g r e j a — s e r ia , n a v e r d a d e , u m p s e u d o p r o b l e m a .

J á se a l e g o u , e m a p o io d e s s a te s e d e q u e G a lil e u fo i c o n d e n a d o p o r u m
p s e u d o p r o b l e m a , q u e à lu z d e u m s i s te m a d e fís ic a lo g i c a m e n t e m a i s a v a n ç a d o o
p r o b l e m a d e G a lil e u d e f a t o p e r d e o s e n t i d o . O u v e -s e m u i t a s v e z e s a a f i r m a t i v a d e
q u e o p r i n c í p i o g e r a l d e E in s te in d e ix a c l a r o q u e n ã o t e m s e n t i d o f a l a r e m m o ­
v im e n to a b s o l u t o , m e s m o n o c a s o d a r o t a ç ã o — p o d e m o s e s c o l h e r o s is te m a q u e
q u is e r m o s p a r a p o s t u lá - l o c o m o s e n d o ( r e l a t i v a m e n t e ) f ix o . P o r isso , o p r o b l e m a d e
G a lile u se d e s v a n e c e r ía , p r e c i s a m e n t e p e la s ra z õ e s q u e a v a n ç a m o s a c i m a : o c o ­
n h e c i m e n t o a s t r o n ô m i c o n ã o p o d e s e r s e n ã o o c o n h e c i m e n t o d e c o m o os a s tr o s se
c o m p o r t a m , o p o d e r d e d e s c r e v e r e p r e v e r n o s s a s o b s e r v a ç õ e s — o r a , c o m o e s ta s
d e v e m s e r i n d e p e n d e n t e s d a n o s s a e s c o lh a d o s i s te m a d e c o o r d e n a d a s , p e r c e b e m o s
m a is c l a r a m e n t e p o r q u e o p r o b l e m a d e G a lil e u n ã o p o d i a s e r r e a l .

N ã o p r e t e n d o c r i t i c a r o i n s t r u m e n t a l i s m o n e s t a s e ç ã o , o u r e p l i c a r a se u s
a r g u m e n to s - e x c e ç ã o fe ita d o ú ltim o , re la c io n a d o c o m a r e la tiv id a d e g e ra l.
T r a t a - s e d e u m a r g u m e n t o b a s e a d o n u m e q u ív o c o . D o p o n t o d e v is ta d a r e l a t i ­
v id a d e g e r a l fa z m u i t o s e n t id o — m e s m o e m t e r m o s a b s o l u to s — d iz e r q u e a T e r r a
te m u m m o v i m e n t o d e r o t a ç ã o : ela te m u m m o v im e n to d e ro ta ç ã o p r e c is a m e n te n o
m e s m o s e n tid o e m q u e u m a ro d a d e b ic ic le ta ta m b é m o t e m : c o m r e l a ç ã o a q u a l-

2 4 — A té a q u i n ã o p u d e e n c o n t r a r n o s t r a b a l h o s q u e c o n h e ç o s o b r e o a s s u n to e s s a m o d a l i d a d e p a r ­
t i c u l a r d o a r g u m e n t o i n s t r u m e n t a l i s t a ; se l e m b r a r m o s p o r é m o p a r a l e l i s m o e x i s t e n t e e n t r e p r o b l e m a s
r e la tiv o s a o sentido d e u m a e x p r e s s ã o e a q u e l e s r e la c i o n a d o s c o m s u a veracidade v e r e m o s q u e e le c o r r e s ­
p o n d e e s t r e i t a m e n t e à d e f i n i ç ã o d e “ v e r d a d e " d e W i llia m J a m e s — q u e a e n t e n d e c o m o " u t i l i d a d e " .
138 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

q u e r s i s te m a d e in é r c i a lo c a l q u e f o r e s c o lh id o c o m o r e f e r ê n c i a . C o m e f e i to , a
r e l a t i v i d a d e d e s c r e v e o s is te m a s o l a r d e t a l m o d o q u e d e s s a d e s c r iç ã o p o d e m o s
d e d u z i r q u e q u a lq u e r o b s e r v a d o r , s i t u a d o e m q u a lq u e r c o r p o e m m o v i m e n t o ,
s u f i c i e n t e m e n t e a f a s t a d o ( a L u a , o u t r o p l a n e t a o u u m a e s t r e la f o r a d o s i s te m a ) ,
o b s e r v a r ia a T e r r a g i r a n d o e p o d e r i a d e d u z i r d e s s a o b s e r v a ç ã o q u e s e u s h a b i t a n t e s
e s t a r i a m p e r c e b e n d o u m m o v i m e n t o a p a r e n t e d i u r n o d o S o l. E s tá c l a r o q u e e sse é
p r e c i s a m e n t e o s ig n if i c a d o d a e x p r e s s ã o “ a T e r r a t e m u m m o v i m e n t o d e r o t a ç ã o ”
q u e e s t á v a m o s d i s c u t i n d o ; p a r t e d a q u e s t ã o c o n s is tia e m s a b e r se o s is te m a s o l a r é
u m s i s te m a c o m o o d e J ú p i t e r e s u a s lu a s , a p e n a s m a i o r ; e se p a r e c e r í a t a l s is te m a ,
v is to d e f o r a . E m to d o s esses p o n to s , E in s t e in a p ó i a G a lil e u s e m q u a l q u e r a m b i -
g ü id a d e .

M eu a r g u m e n to n ã o d ev e se r in te r p r e ta d o c o m o a d m issã o d e q u e to d o o
p r o b l e m a p o d e s e r r e d u z i d o a u m a q u e s t ã o r e l a t i v a a o b s e r v a ç õ e s , o u a p o ss ív e is
o b s e r v a ç õ e s . S e g u r a m e n t e , t a n t o G a lil e u q u a n t o E in s t e in p r o c u r a r a m , e n t r e o u t r a s
c o is a s , d e d u z i r o q u e u m p o ssív e l o b s e r v a d o r v e r i a ; c o n t u d o , esse n ã o é o p r o b l e m a
p r i n c i p a l q u e c o n f r o n t a r a m . A m b o s in v e s ti g a r a m os s is te m a s fís ic o s e s e u s m o v i ­
m e n to s só o filó s o fo i n s t r u m e n t a l i s t a a f i r m a q u e o q u e e s t u d a r a m , o u “p r e t e n ­
d e r a m r e a l m e n t e " e s t u d a r , n ã o e r a m s is te m a s fís ic o s , m a s a p e n a s os r e s u lta d o s d e
o b s e r v a ç õ e s p o s s ív e is q u e se u s c h a m a d o s “s is te m a s fís ic o s ” , q u e p a r e c i a m c o n s ­
t i t u i r os r e s p e c tiv o s o b je to s d e e s t u d o , e r a m , n a r e a lid a d e , m e r o s i n s t r u m e n t o s p a r a
p re v e r o b se rv a ç õ e s.

5. C rítica do P o n to d e Vista I n s tr u m e n ta lis ta .

J á v im o s q u e o a r g u m e n t o d e B e rk e le y d e p e n d e d a a c e i t a ç ã o d e u m a c e r t a
filo s o f ia d a l i n g u a g e m ta lv e z c o n v in c e n te à p r i m e i r a v is ta , m a s n ã o n e c e s s a ­
r i a m e n t e v e r d a d e i r a . A lé m d is s o , d e p e n d e d o p r o b le m a d o s ig n ific a d o ,25 c o ­
n h e c id o p e lo s e u c a r á t e r v a g o e q u e n ã o o f e r e c e m u i t a s e s p e r a n ç a s d e s o lu ç ã o . A
p o s iç ã o se t o r n a a i n d a m a is d e s e s p e r a d a q u a n d o c o n s i d e r a m o s a lg u n s d e s e n v o l­
v im e n to s r e c e n t e s d a a r g u m e n t a ç ã o d e B e rk e le y , c o n f o r m e e x p o s to s s u m a r i a m e n t e
n a s e ç ã o p r e c e d e n t e . P r o c u r a r e i , p o r t a n t o , f o r ç a r u m a d e c is ã o in e q u í v o c a p a r a o
n o ss o p r o b l e m a m e d i a n t e a b o r d a g e m d i f e r e n t e — f a z e n d o u m a a n á li s e d a c iê n c ia ,
e tn l u g a r d e f a z e r u m a a n á li s e d a li n g u a g e m .

A c r í t i c a q u e p r o p o n h o a o p o n t o d e v is ta i n s t r u m e n t a l i s t a p o d e s e r s i n t e ­
ti z a d a c o m o s e g u e :

O in s tt u m e n t a l i s m o p o d e s e r e n u n c i a d o c o m o a te s e d e q u e a s t e o r ia s c i e n ­
tíf ic a s as te o r ia s d a s c h a m a d a s “ c iê n c ia s p u r a s ” — n ã o p a s s a m d e r e g r a s d e
c o m p u t a ç ã o ( o u d e in f e r ê n c i a ) , q u e t ê m f u n d a m e n t a l m e n t e o m e s m o c a r á t e r d a s
r e g r a s d e c o m p u t a ç ã o d a s c h a m a d a s “c iê n c ia s a p l i c a d a s " . P o d e r - s e - ia m e s m o f o r ­
m u l á - l a c o m o a te s e d e q u e “ c iê n c ia p u r a " é u m a d e n o m i n a ç ã o e q u i v o c a d a , p o is
to d a c iê n c ia é " a p l i c a d a " .

M i n h a r e s p o s ta a o s i n s t r u m e n t a l i s t a s c o n s is te e m d e m o n s t r a r q u e h á d i ­
fe r e n ç a s p r o f u n d a s e n t r e as te o r ia s " p u r a s " e a s r e g r a s a p lic á v e is à c o m p u t a ç ã o te c -

25 A r e s p e ito d o p r o b l e m a d o s i g n if ic a d o v id e m e u s d o is liv ro s, L . S c . D . e O pen Society. b e m c o m o


os c a p s . 1 . 1 1 . 13 v 11 d e s ta o b r a .
T R Ê S P O N T O S D E V IST A SO B R E O C O N H E C IM E N T O H UM ANO 139

n o ló g i c a ; q u e o i n s t r u m e n t a l i s m o p o d e p r o p i c i a r u m a d e s c r iç ã o p e r f e i t a d e s s a s
r e g r a s , m a s n ã o é c a p a z d e e x p l i c a r a d i f e r e n ç a e x i s t e n t e e n t r e e la s e a s t e o r i a s . D e s ­
ta f o r m a , o in s tru m e n ta lis m o p e rd e su a s u s te n ta ç ã o .

A a n á li s e d a s m u i t a s d i f e r e n ç a s f u n c i o n a i s q u e h á e n t r e a s r e g r a s d e c o m ­
p u t a ç ã o ( r e l a c i o n a d a s c o m a n a v e g a ç ã o , p o r e x e m p l o ) e a s te o r ia s c ie n t íf ic a s (c o m o
a d e N e w t o n ) é u m t e m a i n t e r e s s a n t e . A s r e l a ç õ e s ló g ic a s q u e p o d e m e x is ti r e n t r e as
te o r ia s e a s r e g r a s d e c o m p u t a ç ã o n ã o s ã o s i m é t r i c a s e d i f e r e m d a s q u e se a p l i c a m a
v á r i a s te o r ia s , b e m c o m o d a s q u e se r e f e r e m a v á r i a s r e g r a s d e c o m p u t a ç ã o . O
m o d o c o m o a s r e g r a s d e c o m p u t a ç ã o s ã o e x p e r im e n ta d a s é d i f e r e n t e d a m a n e i r a
c o m o a s te o r ia s s ã o te sta d a s. A h a b i l i d a d e e x ig i d a p a r a a a p l i c a ç ã o d a s r e g r a s d e
c o m p u t a ç ã o é b e m d i f e r e n t e d a q u e é n e c e s s á r ia p a r a s u a d is c u s s ã o ( t e ó r i c a ) e p a r a
a d e t e r m i n a ç ã o ( t e ó r i c a ) d o s li m i te s d a s u a a p l i c a b i l i d a d e . E s ta s s ã o a p e n a s a l ­
g u m a s in d i c a ç õ e s , m a s q u e p o d e m s e r s u f ic ie n t e s p a r a m o s t r a r a d i r e ç ã o e a f o r ç a
d o a rg u m e n to .

V o u e x p l i c a r a g o r a u m d e sse s p o n to s c o m u m g r a u m a i o r d e d e t a l h e , p o r ­
q u e e le p o d e d a r o r i g e m a u m a r g u m e n t o s e m e l h a n t e a o q u e e m p r e g u e i c o n t r a o
e s s e n c ia lis m o : t r a t a - s e d o f a t o d e q u e a s te o r ia s s ã o t e s t a d a s p o r m e i o d e te n ta tiv a s
d e r e fu ta ç ã o ( q u e n o s e n s i n a m m u i t o ) ; m a s n ã o h á n a d a q u e c o r r e s p o n d a a e ss a s
t e n t a t i v a s , n o c a s o d a s r e g r a s te c n o l ó g ic a s d e c o m p u t a ç ã o .

N ã o é s i m p l e s m e n t e p e l a s u a a p l i c a ç ã o , o u e x p e r i m e n t a ç ã o , q u e se te s ta
u m a t e o r i a , m a s a p l i c a n d o - a a c a s o s m u i t o e s p e c ia is — c a s o s e m q u e e la d e v e
p ro d u z ir re s u lta d o s d ife re n te s d a q u e le s q u e e s p e r a ría m o s sem a te o r ia e m q u e s tã o ,
o u à lu z d e o u t r a s te o r ia s . E m o u t r a s p a l a v r a s , p r o c u r a m o s e s c o l h e r p a r a n o ss o s
te s te s o s casos c r u c ia is , e m q u e e s p e r a r í a m o s a t e o r i a f a l h a r se n ã o fo s se v e r d a d e i r a .
E sses c a s o s s ã o “ c r u c i a i s ” n o s e n t i d o d e B a c o n : i n d i c a m e n c r u z i l h a d a s d e d u a s o u
m a is t e o r i a s . D e f a t o , a l e g a r q u e s e m a t e o r i a e m q u e s t ã o e s p e r a r í a m o s r e s u l t a d o s
d if e re n te s im p lic a q u e n o ssa e x p e c ta tiv a p o d e r ía r e s u lta r d e a lg u m a o u tr a te o r ia ,
p o s s iv e lm e n te a n t e r i o r p o r m e n o s c l a r a q u e s e ja n o s s a c o n s c i ê n c ia d e s s e f a t o .
M as, e n q u a n to B aco n a c re d ita v a q u e u m a e x p e riê n c ia c ru c ia l p o d e d e m o n s tra r o u
v e r i f i c a r u m a te o r i a , d ir e m o s q u e e la p o d e n a m e l h o r d a s h ip ó te s e s r e f u t á - l a . 26
T r a t a - s e d e u m a t e n t a t i v a d e r e f u t a ç ã o ; se e s s a t e n t a t i v a n ã o f o r b e m s u c e d i d a ,
d iz e m o s q u e a t e o r i a fo i c o r r o b o r a d a p e la e x p e r i ê n c i a — c o r r o b o r a ç ã o q u e é t a n t o
m a i o r q u a n t o m e n o s e s p e r a d o , o u m e n o s p r o v á v e l , o r e s u l t a d o d a e x p e r i ê n c i a . 2627

E o d e r - s e - ia o b j e t a r à c o n c e p ç ã o d e s e n v o l v id a a q u i — d e a c o r d o c o m
D u h e n q 28 q u e e m c a d à te s te n ã o é só a t e o r i a s o b i n v e s ti g a ç ã o q u e e s tá e n v o l ­
v id a , m a s t a m b é m t o d o o s i s te m a d e n o ss a s te o r ia s e p r e m is s a s — d e f a t o , m a i s o u
m e n o s a t o t a l i d a d e d o n o ss o c o n h e c i m e n t o — , d e m o d o q u e n u n c a p o d e m o s t e r
c e r t e z a d e q u a l d e s s a s p r e m is s a s fo i r e f u t a d a . M a s e ssa c r í t i c a n ã o le v a e m c o n t a o
f a t o d e q u e se t o m a r m o s c a d a u m a d a s d u a s te o r ia s q u e v ã o s e r t e s t a d a s p o r u m a

2 6 — N a s u a f a m o s a c r í t i c a d a s e x p e r iê n c ia s c r u c ia is , D u h e m (in A im a n d Structure o f Physical Theory)


c o n s e g u e d e m o n s t r a r q u e a s e x p e r iê n c ia s c r u c i a i s n u n c a p o d e m provar u m a t e o r i a , m a s n ã o c o n s e g u e
d e m o n s t r a r q u e e ssa s e x p e r iê n c ia s n ã o p o d e m r e f u t á - l a .

27 — O g r a u d e c o r r o b o r a ç ã o a u m e n ta r á p o r ta n to c o m a im p r o b a b ilid a d e d o s caso s d e c o r r o b o r a ç ã o .
V id e m e u t r a b a l h o "Degree o f C o n firm a tio n ”, B rit.J o u r. P hü. Sei., 5 , p á g . 1 4 3 , i n c l u í d o a g o r a e n t r e os
a p ê n d i c e s d e 1.. S c . D .; v id e t a m b é m o c a p . 10 d e s te liv r o .
2 8 — L oc. cit.
140 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

e x p e r i ê n c i a c r u c i a l , ju n ta m e n te c o m t o d o o r e s t a n t e d o n o s s o c o n h e c i m e n t o (c o m o
é n e c e s s á r io ) , d e c id i r e m o s a r e s p e ito d e d o is s is te m a s q u e d i f e r e m a p e n a s a r e s p e ito
d a s d u a s te o r ia s e m q u e s t ã o . A c r í t i c a n ã o c o n s i d e r a t a m b é m q u e n ã o a f i r m a m o s a
r e f u t a ç ã o d e u m a d a s te o r ia s c o m o t a l , m a s da teoria acrescen ta d a de todo o res­
ta n te do nosso co n h e cim e n to — p a r t e s d o q u a l p o d e r ã o s e r r e s p o n s a b i l i z a d a s , n o
f u t u r o , p e lo in s u c e s s o d a e x p e r i ê n c i a , g r a ç a s a o u t r a s e x p e r i ê n c i a s c r u c i a i s . P o ­
d e m o s a s s im c a r a c t e r i z a r m e s m o u m a teoria que está sen d o investigada c o m o
a q u e l a p a r t e d e u m a m p l o s i s te m a p a r a q u a l p o d e m o s t e r u m a a l t e r n a t i v a e m
m e n t e , a i n d a q u e p o u c o p r e c i s a , e p a r a a q u a l e s t a m o s p r o c u r a n d o c o n c e b e r te s te s
c r u c i a is .

N o q u e d iz r e s p e ito a o s i n s t r u m e n t o s e r e g r a s d e c o m p u t a ç ã o n ã o e n c o n ­
t r a r e m o s n a d a q u e s e ja s u f i c i e n t e m e n t e s e m e l h a n t e . E b e m v e r d a d e q u e u m i n s ­
t r u m e n t o p o d e a p r e s e n t a r u m d e f e i t o , o u t o r n a r - s e o b s o le to ; m a s n ã o fa z s e n t id o
d iz e r q u e s u b m e te m o s u m i n s t r u m e n t o a o s te s te s m a is r ig o r o s o s q u e p o d e m o s c o n ­
c e b e r , p a r a r e j e it á - lo c a s o n ã o p a s s e n e sse s te s te s ; u m a a e r o n a v e , p o r e x e m p l o ,
p o d e s e r “ t e s t a d a a t é a d e s t r u i ç ã o " ; m a s esse te s te r i g o r o s o n ã o te m p o r o b je tiv o
r e j e i t a r to d a s as a e r o n a v e s a q u e f o r s u b m e t i d o , p e la s u a d e s t r u i ç ã o , m a s s im o b t e r
i n f o r m a ç õ e s (isto é , t e s t a r u m a t e o r i a ) , d e m o d o a u t i l i z á - l a d en tro dos lim ites da
sua a p lic a b ilid a d e (o u s e ja , d e n t r o d e u m a m a r g e m d e s e g u r a n ç a ) .

P a r a os o b je tiv o s i n s t r u m e n t a i s r e l a c i o n a d o s c o m a a p l i c a ç ã o p r á t i c a , u m a
te o r i a p o d e c o n t i n u a r s e n d o e m p r e g a d a m esm o depois da sua refu ta çã o d e n tro
d o s li m i te s d a s u a a p l i c a b i l i d a d e , é c la r o ; i n f o r m a d o d e q u e a te o r i a d e N e w t o n é
d e m o n s tr a d a m e n te fa lsa , u m a s trô n o m o n ã o h e s ita r á e m a p lic á - la , d e n tr o dos
lim ite s e m q u e p o d e s e r a p l i c a d a .

P o d e m o s à s vezes f i c a r d e s a p o n t a d o s a o v e r i f ic a r q u e a g a m a d e a p l i c a b i ­
li d a d e d e u m i n s t r u m e n t o é m e n o r d o q u e e s p e r á v a m o s ; isso p o r é m n ã o n o s le v a a
r e je ita r a q u e le in s tr u m e n to t r a t a - s e d e u m a te o r i a o u d e u m a p a r e l h o . P o r o u t r o
l a d o , esse d e s a p o n t a m e n t o s i g n if i c a q u e c o n s e g u i m o s n o v a in fo rm a ç ã o p e la r e ­
f u t a ç ã o d a te o r i a s e g u n d o a q u a l a q u e l e i n s t r u m e n t o p o d i a s e r a p l i c a d o a u m a
g a m a m a is a m p la .

C o n f o r m e v im o s , m e s m o a s te o r ia s na m ed id a em q u e são in stru m en to s
n ã o p o d e m ser re f u ta d a s . A in te r p r e ta ç ã o in s tru m e n ta lis ta n ã o p o d e rá p o rta n to
e x p l i c a r os te s te s r e a is , q u e s ã o t e n t a t i v a s d e r e f u t a ç ã o , e n ã o i r á a lé m d a a s s e rtiv a
d e q u e d iferentes teorias têm diferen tes ga m a s de ap licação. P o r o u t r o l a d o , e la
n ã o p o d e t a m b é m e x p l i c a r o p r o g r e s s o c ie n t íf ic o . E m vez d e d iz e r (c o m o a f i r m o )
q u e a t e o r i a d e N e w to n foi r e f u t a d a p o r m e io d e e x p e r i ê n c i a s c r u c i a is q u e n ã o
r e f u t a r a m a t e o r i a d e E in s te in . e q u e p o r t a n t o e s ta ú l t i m a é m e l h o r d o q u e a d e
N e w t o n , o i n s t r u m e n t a l i s t a c o e r e n t e t e r á q u e r e p e t i r , a r e s p e ito d o s e u “ n o v o " p o n ­
to d e v is ta , a s p a l a v r a s d e H e is e n b e r g : “ s e g u e -s e q u e n ã o d e c l a r a m o s m a is : a
m e c â n i c a d e N e w to n é f a l s a . . . E m vez d is s o , u s a m o s a s e g u i n t e f o r m u l a ç ã o : a
m e c â n i c a c lá s s i c a ... é “ c o r r e t a " o n d e q u e r q u e s e u s c o n c e i to s p o s s a m s e r a p l i c a ­
d o s " . 2929

2 9 - V id e W . H e is e n b e r g , D ialectica. 2, 1 9 4 8 , p á g . 3 3 3 . O i n s t r u m e n t a l i s m o d e H e i s e n b e r g n ã o é
c o n s is te n te , e h á m u i t a s o b s e r v a ç õ e s a n t i i n s t r u m e n t a l i s t a s q u e lh e p o d e m s e r a t r i b u í d a s . O a r t i g o q u e
c ita m o s a q u i p o d e s e r q u a l i f i c a d o c o m o u m a te n t a t i v a r a d i c a l d e p r o v a r q u e s u a t e o r ia q u á n t i c a lev a
n e c e s s a r i a m e n t e a u m a filo s o fia i n s t r u m e n t a l i s t a , e p o r t a n t o a o r e s u l t a d o d e q u e a t e o r i a fís ic a n u n c a
p o d e rá se r u n ific a d a , n e m to r n a d a c o e re n te .
T R E S P O N T O S DE V IST A SO B R E O C O N H E C IM E N T O H UM AN O 141

“C o r r e t a ", a q u i , s ig n if ic a “ a p li c á v e l "; p o r t a n t o , a a s s e r tiv a s i g n if ic a a p e n a s


q u e “ a m e c â n i c a c lá s s ic a é a p li c á v e l o n d e q u e r q u e s e u s c o n c e i to s p o d e m s e r
a p l i c a d o s ” — o q u e n ã o é d iz e r m u i t o . D e q u a l q u e r f o r m a , a v e r d a d e é q u e , ao
negligenciar a refutação, e a ce n tu a r a aplicação, o in stru m en ta lism o é u m a filo ­
sofia tão obscurantista q u a n to o essencialism o . D e f a t o , só p e la s t e n t a t i v a s d e r e ­
f u t a ç ã o p o d e a c iê n c ia t e r e s p e r a n ç a n o p r o g r e s s o . Só p e lo e x a m e d e c o m o s u a s
v á r ia s te o r ia s r e s p o n d e m à e x p e r i m e n t a ç ã o p o d e m o s d i s t i n g u i r e n t r e a s te o r ia s
m e l h o r e s e as m e n o s b o a s , e e n c o n t r a r u m c r i t é r i o d e p r o g r e s s o c ie n t íf ic o (v id e o
c a p . 10).

P o r t a n t o , u m s im p le s i n s t r u m e n t o d e p r e v is ã o n ã o p o d e s e r r e f u t a d o . O q u e
n o s p a r e c e à s vezes c o m o u m a r e f u t a ç ã o n ã o p a s s a d e a d v e r t ê n c i a , a c a u t e l a n d o - n o s
s o b r e os lim ite s d a s u a a p l i c a b i l i d a d e . E p o r isso q u e o p o n t o d e v is ta i n s t r u m e n ­
t a l i s t a p o d e s e r u s a d o ad hoc p a r a s a l v a r u m a t e o r i a c ie n t íf ic a a m e a ç a d a p o r c o n ­
t r a d iç õ e s c o m o fez B o h r (se e s tá c e r t a m i n h a i n t e r p r e t a ç ã o , d o s e u p r i n c í p i o d a
c o m p l e m e n t a r i d a d e ) . Se as te o r ia s s ã o a p e n a s i n s t r u m e n t o s p a r a p r e v is ã o , n ã o
p r e c i s a m o s r e j e i t a r n e n h u m a t e o r ia e m p a r t i c u l a r , m e s m o q u a n d o d e ix a m o s d e
a c r e d i t a r n a c o n s i s tê n c i a d a i n t e r p r e t a ç ã o fís ic a d o s e u e n u n c i a d o f o r m a l .

E m s u m a , p o d e m o s a f ir m a r q u e o in s tr u m e n ta lis m o n ã o p o d e e x p lic a r a
i m p o r t â n c i a q u e r e p r e s e n t a p a r a a c iê n c ia p u r a a e x p e r i m e n t a ç ã o r i g o r o s a m e s m o
d a s im p li c a ç õ e s m a i s r e m o t a s d a s s u a s te o r ia s ; n ã o t e m c o n d iç õ e s d e j u s t i f i c a r o i n ­
te r e s s e q u e o c i e n t i s t a p u r o te m p e la v e r a c i d a d e e f a l s i d a d e d a s te o r ia s . C o n t r a s t a n ­
d o co m a a titu d e a lta m e n te c rític a d o c ie n tis ta p u r o , a p o siç ã o d o in s tr u m e n ta lis ­
m o (c o m o a d a c iê n c ia a p l i c a d a ) é c o m p l a c e n t e n o q u e c o n c e r n e o ê x it o d a s s u a s
a p li c a ç õ e s . F o r isso o i n s t r u m e n t a l i s m o p o d e s e r r e s p o n s á v e l p e la r e c e n t e e s t a g ­
n a ç ã o d a te o r i a q u â n t i c a (e s c r ito a n te s d a r e f u t a ç ã o d a p a r i d a d e ) .

6 . Terceiro P onto de Vista: C onjecturas, a V erdade e a R ea lid a d e.

N e m B a c o n n e m B e rk e le y a c r e d i t a v a m q u e a T e r r a t i n h a u m m o v i m e n t o d e
r o t a ç ã o ; h o je . to d o s a c r e d i t a m n is s o , in c lu s iv e o s fís ic o s . O i n s t r u m e n t a l i s m o é
a d o t a d o p o r B o h r e H e i s e n b e r g e x c lu s iv a m e n te c o m o u m m e io p a r a r e s o lv e r c e r t a s
d if i c u l d a d e s e s p e c ia is s u r g id a s n o c a m p o d a te o r i a q u â n t i c a .

E sse m o tiv o n ã o é s u f ic ie n t e . E s e m p r e d if íc il i n t e r p r e t a r a s te o r ia s m a is
r e c e n t e s , q u e à s vezes d e ix a m p e r p l e x o s s e u s p r ó p r i o s c r i a d o r e s , c o m o a c o n te c e u
c o m N e w to n . M a x w e ll, p o r e x e m p l o , a p r i n c í p i o se in c l in a v a n o s e n t id o d e i n t e r ­
p r e t a r s u a t e o r ia d o p o n t o d e v is ta d o e s s e n c ia lis m o - e m b o r a e la t e n h a c o n t r i ­
b u í d o m a is d o q u e q u a l q u e r o u t r a p a r a o d e c lí n io d o e s s e n c ia lis m o . E in s te in
i n i c i a l m e n t e te v e u m a v isã o i n s t r u m e n t a l i s t a d a r e l a t i v i d a d e , a p l i c a n d o u m a e s ­
p é c ie d e a n á li s e o p e r a c i o n a l a o c o n c e i to d e s i m u l t a n e i d a d e q u e c o n trib u iu p a ra
a p r e s e n t e m o d a i n s t r u m e n t a l i s t a m a is d o q u e q u a l q u e r o u t r a c o is a ; m a is t a r d e ,
p o r é m , se a r r e p e n d e u . 30

C o n fio e m q u e os físic o s n ã o t a r d a r ã o a p e r c e b e r q u e o p r i n c í p i o d a c o m ­
p l e m e n t a r i d a d e é ad hoc e (o q u e é m a is i m p o r t a n t e ) q u e s u a ú n i c a f u n ç ã o é e v it a r

30 Q u a n d o e s te te x t o fo i c o m p o s t o , E i n s te in e s ta v a a i n d a v iv o , e p r e t e n d i a e n v i a r - l h e u m a c ó p ia .
M in h a o b s e r v a ç ã o se r e f e r e a u m a c o n v e r s a q u e tiv e m o s e m 1 9 5 0 .
142 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S '

a c r í t i c a e i m p e d i r a d i s c u s s ã o d a s i n t e r p r e t a ç õ e s f í s ic a s , e m b o r a a c r í t i c a e ο
d e b a te se ja m u r g e n t e m e n t e necessários p a r a r e f o r m a r q u a l q u e r te o r ia . A p a r t i r
d e ss e m o m e n t o , d e i x a r ã o d e p e n s a r q u e o i n s t r u m e n t a l i s m o lh e s é i m p o s t o p e l a
p r ó p r i a e s t r u t u r a d a t e o r i a f í s ic a c o n t e m p o r â n e a .

De q u a l q u e r f o r m a , o in s t r u m e n t a l i s m o n ã o é m a is a c e itá v e l d o q u e o essen-
cialism o , c o m o p ro c u r e i d e m o n s tr a r . E n ã o é necessário a c e ita r u m o u o o u tro ,
p o r q u e h á u m t e r c e i r o p o n t o d e v is ta 31

Esse t e r c e i r o p o m o d e v is ta n ã o é e s p a n t o s o n e m c h e g a s e q u e r a s u r p r e e n ­
d e r. P reserv a a d o u tr in a d e G alileu d e q u e o cien tista b u s c a u m a d e sc riç ã o v e r ­
d a d e i r a d o m u n d o , o u d e a l g u n s d o s se u s a s p e c t o s , e u m a e x p l i c a ç ã o v e r d a d e i r a
d os fa to s o b serv áv eis, c o m b i n a n d o - a c o m o c o n c e ito ( q u e n ã o e n c o n t r a m o s e m
G a l i l e u ) d e q u e e m b o r a esses p e r m a n e ç a m c o m o o b j e t i v o s d o t r a b a l h o c i e n t í f i c o ,
n u n c a se p o d e s a b e r c o m c e r t e z a se os r e s u l t a d o s d a s i n v e s t i g a ç õ e s f e i t a s s ã o v e r ­
d a d e i r o s , e m b o r a a l g u m a s vezes se p o s s a c o m p r o v a r c o m r a z o á v e l s e g u r a n ç a q u e
u m a d e t e r m i n a d a t e o r i a é f a l s a . 32

P o d e - s e f o r m u l a r o t e r c e i r o p o n t o d e v is ta a r e s p e i t o d a s t e o r i a s c i e n t í f i c a s
e m p o u c a s p a l a v r a s , d i z e n d o q u e e l a s s ã o c o n je c tu r a s g e n u ín a s , a l t a m e n t e i n f o r ­
m a t i v a s , q u e , e m b o r a n ã o v e r i f i c á v e i s (isto é: p a s s ív e is d e s e r p r o v a d a s ) r e s i s t e m a
te s te s r i g o r o s o s . S ã o t e n t a t i v a s s é r i a s d e d e s c o b r i r a v e r d a d e . S o b e s t e a s p e c t o , as
h ip ó teses cien tífic a s são e x a t a m e n t e c o m o a fa m o s a c o n je c tu r a d e G o ld b a c h a
p ro p ó s ito d a te o ria dos n ú m e ro s . G o ld b a c h p e n s o u q u e ela p u d esse ser v e r d a d e ir a
o q u e p o d e a c o n t e c e r , e m b o r a n ã o sa ib a m o s, e ta lv e z n u n c a c h e g u e m o s a sa b e r
se d e fa to é v e r d a d e ir a o u n ã o .

V o u l i m i t a r - m e a q u i a m e n c i o n a r só u n s p o u c o s a s p e c t o s d e s s e “ t e r c e i r o
p o n t o d e v ista" os q u e os d i s t i n g u e m d o e s s e n c i a l i s m o e d o i n s t r u m e n t a l i s m o .
E m p r i m e i r o lu g a r , o essen cialism o :

O s essencialistas c o n s id e r a m o m u n d o o r d i n á r io c o m o u m c o n ju n t o d e
a p a r ê n c i a s , p o r t r á s d a s q u a i s e x is te u m m u n d o r e a l . Ê u m a c o n c e p ç ã o q u e r e ­
je ita m o s ao a d q u ir ir co n sc iê n c ia d o fa to d e q u e o m u n d o d e c a d a u m a d a s nossas
t e o r i a s p o d e s e r e x p l i c a d o p o r o u t r o s m u n d o s , q u e p o r s u a vez s ã o d e s c r i t o s p o r
novas te o ria s n u m n ív e l m a i s e l e v a d o d e a b s t r a ç ã o , d e g e n e r a l i d a d e e d e tes-
t a b i l i d a d e . A d o u t r i n a q u e p o s t u l a u m a r e a lid a d e e sse n c ia l e n t r a e m c o l a p s o j u n ­
t a m e n t e c o m a d a e x p lic a ç ã o d e fin itiv a .

U m a vez q u e , d e a c o r d o c o m n o ss o t e r c e i t o p o n t o d e v i s t a , as n o v a s t e o r i a s
c i e n t í f i c a s s ã o , c o m o as a n t e r i o r e s , c o n j e c t u r a s g e n u í n a s , e l a s c o n s t i t u e m t e n t a t i v a s
a u t ê n t i c a s d e d e s c r e v e r esses m u n d o s . P o r isso s o m o s l e v a d o s a c o n s i d e r á - l o s a t o d o s
( i n c l u s i v e n o s s o m u n d o o r d i n á r i o ) c o m o i g u a l m e n t e r e a i s — m e l h o r a i n d a , ta l v e z ,
c o m o a s p e c t o s o u e s t r a t o s i g u a l m e n t e r e a i s d o m u n d o r e a l (se, a o o l h a r n u m
m ic ro sc ó p io , a lte ra m o s s u a m a g n ific a ç ã o , v erem o s vários asp ecto s o u estra to s d a

31 C f . s e ç ã o v d o c a p . 6.

32 C f. a d is c u s s ã o d e s te p o n t o n a s e ç ã o v , a c i m a , e e m L . S c. D . (passim ); v id e t a m b é m o c a p . 1 d e s ­
te liv r o e o s f r a g m e n t o s d e X e n ó f a n e s m e n c i o n a d o s a o fim d o c a p . 5
TRÊS PONTOS DE VISTA SOBRE O CONHECIMENTO HUMANO 14»

m e s m a r e a l i d a d e , c o m p l e t a m e n t e d iv erso s e to d o s ig u a l m e n t e re a is). E u m e rr o ,
p o r t a n t o , d i z e r q u e m e u p i a n o , n a f o r m a c o m o o p e r c e b o , é r e a l , m a s q u e su a s
m o l é c u l a s e á t o m o s s ã o a p e n a s “c o n s t r u ç õ e s l ó g i c a s ” ( o u q u a l q u e r o u t r a e x p r e s s ã o
q u e d e n o te su a ir re a lid a d e ); d a m e s m a fo r m a , é u m e q u ív o co d iz e r q u e a teo ria
a t ô m i c a d e m o n s t r a q u e o p i a n o d o m e u m u n d o o r d i n á r i o é só u m a a p a r ê n c i a —
d o u t r i n a q u e é p e r f e it a m e n te in s a tis fa tó ria , p o is os á to m o s p o d e m ser e x p lic a d o s
ta m b é m c o m o d istú rb io s, o u e s tru tu r a s d e d is tú rb io s , n u m c a m p o q u â n tic o d e f o r ­
ç a s ( o u p o s s i v e l m e n t e d e p r o b a b i l i d a d e s ) . T o d a s essas c o n j e c t u r a s t ê m i g u a l d i r e i t o
a d escrev er a re a lid a d e , e m b o r a a lg u m a s sejam m a is c o n je c tu ra is d o q u e o u tra s.

P o r isso n ã o d e v e m o s , p o r e x e m p l o , d e s c r e v e r só a s c h a m a d a s “ q u a l i d a d e s
p r i m á r i a s " d e u m c o r p o (tais c o m o s u a f o r m a g e o m é t r i c a ) c o m o reais, c o n t r a s t a n ­
d o - a s — c o m o f a z i a m o u t r o r a os e s s e n c i a l i s t a s — c o m “ q u a l i d a d e s s e c u n d á r i a s ”
( t a is c o m o a c o r ) . D e f a t o , a e x t e n s ã o e m e s m o a f o r m a d o s c o r p o s j á se t o r n a r a m
o b je to s d e e x p lic a ç ã o , e m t e r m o s d e t e o r i a s d e g r a u d e a b s t r a ç ã o m a i s e l e v a d o —
te o ria s q u e d e s c re v e m u m e s tra to m a is p r o f u n d o d a r e a l id a d e : fo rç a s e c a m p o s de
f o r ç a s , r e l a c i o n a d o s c o m as q u a l i d a d e s p r i m á r i a s d a m e s m a f o r m a c o m o os e s s e n ­
c i a l i s t a s a c r e d i t a v a m q u e e s t a s e s t a v a m r e l a c i o n a d a s c o m a s s e c u n d á r i a s . E as ,
q u a l i d a d e s s e c u n d á r i a s , c o m o as c o r e s , s ã o t ã o r e a i s q u a n t o a s p r i m á r i a s — e m b o r a
n o s s a s e x p e r i ê n c i a s c o m a s c o r e s n ã o se c o n f u n d a m c o m as p r o p r i e d a d e s d e c o r d o s
o b j e t o s físicos., e x a t a m e n t e c o m o n o s s a s e x p e r i ê n c i a s c o m as f o r m a s g e o m é t r i c a s
p r e c i s a m s e r d i s t i n g u i d a s d a s p r o p r i e d a d e s d e f o r m a g e o m é t r i c a d a s c o is a s físic a s .
D o n o s s o p o n t o d e v i s t a os d o i s t i p o s d e q u a l i d a d e s s ã o i g u a l m e n t e r e a i s — e s t a é a
c o n j e c t u r a q u e f a z e m o s . A s s i m t a m b é m a s f o r ç a s e os c a m p o s d e f o r ç a s , a d e s p e i t o .
do seu c a r á te r in d u b ita v e lm e n te h ip o té tic o ou c o n je c tu ra l.

T o d o s esses v á r i o s n ív e i s s ã o i g u a l m e n t e r e a i s n u m d e t e r m i n a d o s e n t i d o d a
p a l a v r a “ r e a l " ; h á c o n t u d o u m o u t r o s e n t i d o e m q u e p o d e r i a m o s d i z e r q u e os n ív e is
m a i s e l e v a d o s e m a i s c o n j e c t u r a i s s ã o m a is rea is — a d e s p e i t o d e s e r e m m a i s c o n ­
j e c t u r a i s . Isso p o r q u e , d e a c o r d o c o m as n o s s a s t e o r i a s , s ã o m a i s e s t á v e i s e m i n t e n ­
ção, m a is p e rm a n e n te s , n o m e sm o sen tid o e m q u e u m a m esa, u m a árv o re o u u m a
e s tre la são m a is reais d o q u e q u a l q u e r u m dos seus asp ecto s p a r tic u la r e s .

M a s , n ã o é j u s t a m e n t e esse c a r á t e r c o n j e c t u r a l o u h i p o t é t i c o d a s n o s s a s
t e o r i a s q u e n o s le v a a n ã o a t r i b u i r , r e a l i d a d e a o s m u n d o s q u e d e s c r e v e m ? N ã o
- d e v e r i a m o s ( e m b o r a c o n s i d e r e m o s a f ó r m u l a d e B e r k e l e y — “s e r é s e r p e r c e b i d o ”
p o r d e m a i s e s t r e i t a ) c h a m a r d e “r e a is ” só a q u e la s situ a ç õ e s d e s c rita s p o r a f i r ­
m a tiv a s v e rd a d e ira s, e v i t a n d o d a r esse q u a l i f i c a t i v o à s s i t u a ç õ e s a s s o c i a d a s a c o n ­
j e c t u r a s — q u e , a f i n a l , p o d e m s e r f a l s a s ? E ssa s i n d a g a ç õ e s n o s l e v a m d e v o l t a à d i s ­
c u ss ã o d a d o u t r i n a in s tr u m e n ta l is ta , q u e , c o m s u a a sse rç ã o d e q u e as te o ria s são
m e r o s i n s tr u m e n to s , p r o c u r a n e g a r a a le g a ç ã o d e q u e h a j a q u a l q u e r co isa d e re a l
no m u n d o q u e descrevem .

A c e i t o o p o n t o d e v i s t a , i m p l í c i t o n a t e o r i a c l á s s i c a d a v e r d a d e 3 3 , d e q u e só
d e v e m o s d i z e r q u e u m a s i t u a ç ã o é r e a l se a a f i r m a t i v a q u e a d e s c r e v e é v e r d a d e i r a .

» 3 — V i d e A . T a r s k i , C oncept o f T ru th (D er W ahrheitsbegriff, e t c . , Studia P hilosophica, ΐ1θ35, te x to


d a n o t a 1: v e r d a d e i r o = d e a c o r d o c o m a r e a l i d a d e ’’). A t r a d u ç ã o in g le s a c o n s t a d e Logic, Sem antics,
M e ta m a ík e m a tic s , d e A . T a r s k i , 1 9 5 6 , p á g . 1 5 3 ; a t r a d u ç ã o e n u n c i a a f ó r m u l a a s s im : “true = corres-
p o n d in g w ith reality" ( p r e f i r o ; “ true - in agreem ent w ith reality"). A s o b s e r v a ç õ e s s e g u in t e s (e t a m b é m
o p e n ú l t i m o p a r á g r a f o a n t e s d a q u e l e a q u e se r e f e r e e s ta n o t a ) f o r a m a c r e s c e n t a d a s a o te x t o n u m a te n -
144 C O N JE C T U ftA S E R E F U T A Ç Õ E S

S e r i a u m g r a v e e r r o , n o e n t a n t o , c o n c l u i r q u e a i n c e r t e z a d e u m a t e o r i a — is to é,
c a r á t e r c o n j e c t u r a l e h i p o t é t i c o — d i m i n u i s u a p r e te n s ã o d e d e s c r e v e r a r e a l i d a d e .
I o d a assertiva a e q u iv a le à a f i r m a tiv a d e q u e a é re a l. Q u a n t o a o c a r á t e r c o n je c ­
t u r a l d e a, é p r e c i s o n ã o e s q u e c e r , q u e , a n t e s d e m a i s n a d a , u m a c o n j e c t u r a p o d e
ser v e rd a d e ira , e d e s c r e v e r u m a s i t u a ç ã o r e a l ; e m s e g u n d o l u g a r , se f o r f a l s a , c o n ­
t r a d i t a r á a l g u m a s i t u a ç ã o r e a l ( d e s c r i t a p e l a s u a n e g a ç ã o v e r d a d e i r a ) . A l é m d is s o ,
se t e s t a r m o s n o s s a c o n j e c t u r a , e c o n s e g u i r m o s r e f u t á - l a , p e r c e b e r e m o s c l a r a m e n t e a
e x i s t ê n c i a d e u m a r e a l i d a d e , c o n t r a a q u a l e l a se c h o c o u .

P o r t a n t o , n o s s a s r e f u t a ç õ e s i n d i c a m os p o n t o s o n d e to c a m o s a r e a lid a d e ,
p o r assim d iz e r. N o ssas te o ria s m e lh o re s e m a is re c e n te s c o r r e s p o n d e m s e m p r e à
t e n t a t i v a d e i n c o r p o r a i t o d a s as r e f u t a ç õ e s n u m d e t e r m i n a d o c a m p o , e x p l i c a n d o - a s
d e m o d o m a is sim p le s — o q u e q u e r d iz e r, d o m o d o m a is f a c i lm e n te testáv el (c o m o
p r o c u r a r e i d e m o n s t r a r e m T h e L o g ic o f S c ie n tific D isc o ve ry, s e ç õ e s 31 a 4 6 ) .

Se n ã o s o u b e r m o s c o m o t e s t a r u m a t e o r i a p o d e r e m o s t e r d ú v i d a s s o b r e se
h a v e r á a l g u m a r e a l i d a d e d o t i p o ( o u d o n í v e l ) q u e a t e o r i a p r e t e n d e d e s c r e v e r ; se
s o u b e rm o s p o s itiv a m e n te q u e ela n ã o p o d e ser te s ta d a , n o ssa d ú v id a c res cerá —
p o d e r e m o s s u s p e i t a r q u e se j a u m m i t o , u m a f á b u l a . M a s, se u m a te o ria é te stá v e l,
isso im p lic a q u e e v e n to s d e u m c e rto tip o p o d e m o co rrer; a ssim , essa te o ria a f i r ­
m a rá a lg o so b re a r e a lid a d e . P o r isso e x i g i m o s q u e q u a n t o m a i s c o n j e c t u r a l f o r
u m a t e o r i a , m a i o r s e j a s u a t e s t a b i l i d a d e . As c o n j e c t u r a s e s t á v e i s se r e f e r e m , p o r ­
ta n t o , à r e a l i d a d e . S eu c a r á t e r in c e r to o u c o n je c tu r a l faz c o m q u e n o sso c o n h e ­
c im e n to s o b re a r e a l id a d e q u e p r o c u r a m d e sc re v e r seja t a m b é m in c e r to o u c o n je c ­
t u r a l . E e m b o r a só se p o s s a c o n h e c e r c o m s e g u r a n ç a a q u i l o q u e é c e r t a m e n t e r e a l ,
é u m e r r o p e n s a r q u e só é r e a l o q u e é c o n h e c i d o c o m o t a l . N ã o s o m o s o n i s c i e n t e s :
n ã o h á d ú v i d a d e q u e h á m u i t a c o i s a r e a l q u e n ã o c o n h e c e m o s . E sse é o v e l h o e n ­
g a n o d e B e r k e l e y ( e n u n c i a d o c o m o “ s e r é s e r c o n h e c i d o ” ), q u e a i n d a p e r m e i a o ins-
tru m en talism o .
As t e o r i a s s ã o n o s s a s i n v e n ç õ e s , n o s s a s i d é i a s — n ã o se i m p õ e m a n ó s , s ã o
in s tru m e n to s d e p e n s a m e n to q u e f a b r ic a m o s . O s id ealistas o p e r c e b e m m u ito b e m .
A l g u m a s d e s s a s t e o r i a s p o d e m c h o c a r - s e c o m a r e a l i d a d e ; q u a n d o isso a c o n t e c e ,
fic a m o s s a b e n d o q u e h á u m a re a l id a d e : algo n o s avisa q u e nossas id é ia s p o d e m e s­
t a r e r r a d a s . P o r isso o r e a l i s t a t e m r a z ã o .

C o n c o r d o p o r t a n t o c o m o e s s e n c i a l i s m o n o q u e d iz r e s p e i t o à n o ç ã o d e q u e a
ciên c ia é ca p a z d e d e s c o b e rta s reais, e t a m b é m à n o ç ã o d e q u e a o d e s c o b r i r n o v o s
m u n d o s o in te le c to tr iu n f a s o b re nossa e x p e riê n c ia se n so ria l. M a s n ã o in c o r ro no
e rro de P a r m ê n id e s — n e g a r r e a lid a d e a tu d o q u e é c o lo rid o , v a ria d o , s in g u la r,
i n d e t e r m i n a d o e in d e sc ritív e l.

C o m o a c r e d i to q u e a c iê n c ia p o d e fazer d e s c o b e r ta s reais, u n o - m e a G a lile u


c o n tr a o in s tr u m e n ta lis m o . A d m ito , sem d ú v id a , q u e nossas d e s c o b e r ta s sã o con-

t a tiv a d e r e s p o n d e r a u m a c r í t i c a a m ig á v e l q u e m e fo i c o m u n i c a d a p r i v a d a m e n t e p e lo p r o f e s s o r A l e x a n ­
d r e K o y ré , a q u e m fic o m u i t o a g r a d e c i d o . N ã o c r e io q u e , se a c e i t a r m o s a s u g e s tã o d e q u e “ d e a c o r d o
c o m a r e a l i d a d e " s e ja e q u i v a l e n t e a “ v e r d a d e i r o " , e s te ja m o s c o r r e n d o s é r io p e r i g o d e t r i l h a r u m c a ­
m i n h o q u e l e v e a o id e a lis m o . N ã o p r o p o n h o d efin ir “ r e a l ” c o m a a j u d a d e s s a e q u i v a l ê n c i a . M e s m o q u e o
fizesse, a liá s , n ã o h á r a z ã o p a r a c r e r q u e u m a d e f i n i ç ã o n e c e s s a r i a m e n t e d e t e r m i n a o e s ta d o o n to ló g ic o
d o t e r m o d e f i n i d o . O p r o p ó s i t o d a e q u i v a l ê n c i a d e v e s e r a j u d a r - n o s a p e r c e b e r q u e o caráter hipotético
d e u m a a f i r m a t i v a (is to é , nossa incerteza a respeito da sua veracidade ) i m p l i c a q u e e s ta m o s t e n t a n d o
f a z e r s u p o s iç õ e s a r e s p e it o d a r e a l i d a d e .
TRÊS PONTOS DE VISTA SOBRE O CONHECIMENTO HUMANO 145

j e c t u r a i s ; m a s o m e s m o se p o d e d i z e r d a s e x p l o r a ç õ e s g e o g r á f i c a s . As c o n j e c t u r a s d e
C o l o m b o a r e s p e i t o d a s t e r r a s q u e d e s c o b r i u e s t a v a m e q u i v o c a d a s ; e P e a r y só p o d i a
c o n j e c t u r a r ( n a b a s e d e t e o r i a s ) q u e h a v i a c h e g a d o a o p ó l o . M a s esses e l e m e n t o s d e
c o n je c tu ra n ã o fa z e m c o m q u e suas d e s c o b e rta s t e n h a m sido m e n o s reais o u m e n o s
sig n ificativ as.

H á u m a d i s t i n ç ã o i m p o r t a n t e e n t r e d o i s ti p o s d e p r e v i s ã o c i e n t í f i c a — d i s ­
tin ç ã o q u e o in s tru m e n ta lis m o n ã o p o d e fazer, e q u e está a sso ciad a ao p r o b le m a d a
d e s c o b e r t a c i e n t í f i c a . T r a t a - s e d a d i s t i n ç ã o e n t r e a p r e v i s ã o d e e v e n to s d e tip o
c o n h e c id o e d e n o v o s tip o s d e e v e n to s (o q u e os físico s c h a m a m d e “ n o v o s e f e i t o s ” ).
P a r e c e - m e q u e o i n s t r u m e n t a l i s m o só p o d e e x p l i c a r as d e s c o b e r t a s d a p r i m e i r a
c a t e g o r i a . Se e n t e n d e m o s q u e as t e o r i a s s ã o i n s t r u m e n t o s d e p r e v i s ã o , p r e c i s a m o s
a d m itir q u e seu o b jetiv o p o d e ser d e te r m i n a d o p re v ia m e n te , c o m o a c o n te c e co m
o u t r o s i n s t r u m e n t o s . As p r e v i s õ e s d o s e g u n d o t i p o só p o d e m s e r c o m p r e e n d i d a s
p e rf e ita m e n te co m o d esco b ertas.

A c re d ito q u e nossas d e s c o b e r ta s são g u i a d a s p e la te o r ia , nesses casos e q u a s e


s e m p r e ; n ã o a c r e d i t o q u e as t e o r i a s r e s u l t e m d e d e s c o b e r t a s “ d e v i d a s à o b s e r v a ­
ç ã o ” , p o is a p r ó p r i a o b s e r v a ç ã o t e n d e a s e r o r i e n t a d a p e l a t e o r i a . M e s m o as d e s ­
c o b e r t a s g e o g r á f i c a s ( C o l o m b o , F r a n k l i n , os d o i s N o r d e n s k j ó l d , N a n s e n , W e g e n e r e
a e x p e d i ç ã o K o n - T i k i d e H e y e r d a h l ) s ã o m u i t a s vezes e m p r e e n d i d a s c o m o o b j e t i v o
d e t e s t a r u m a t e o r i a . N ã o se lim ita r a fa z e r p re visõ e s, m a s c ria r n o va s situ a ç õ e s,
p a ra n o vo s tip o s d e te ste s — e s t a é u m a f u n ç ã o d a s t e o r i a s q u e o i n s t r u m e n t a l i s m o
n ã o p o d e e x p lic a r sem o a b a n d o n o d as su as cara c te rístic a s m ais im p o rta n te s.

O c o n tr a s te m a is in te re s s a n te e n tr e o in s tr u m e n ta lis m o e nosso p ro p o s to
“ t e r c e i r o p o n t o d e v i s t a " t a l v e z s e j a o q u e d iz r e s p e i t o à r e j e i ç ã o i n s t r u m e n t a l i s t a d a
f u n ç ã o d e s c r i t i v a d o s t e r m o s a b s t r a t o s , e d a s p a l a v r a s q u e d e n o t a m d is p o s i ç õ e s .
D o u t r i n a q u e r e v e l a , a l i á s , u m v e s t í g i o e s s e n c i a l i s t a — a c r e n ç a d e q u e os e v e n t o s ,
o c o r r ê n c ia s o u “i n c i d e n te s ” ( d i r e t a m e n t e o b se rv á v e is) d e v e m ser, n u m c e r to s e n ­
t i d o , m a i s r e a i s d o q u e as d i s p o s i ç õ e s ( q u e n ã o o s e r i a m ) .

S o b r e esse p o n t o , a t e r c e i r a c o n c e p ç ã o é d i f e r e n t e . A c h o q u e a m a i o r p a r t e
d a s ob serv açõ es são m ais o u m en o s in d ire ta s; é d u v id o so q u e a d is tin ç ã o e n tr e i n ­
c i d e n t e s d i r e t a m e n t e o b s e r v á v e i s e a q u i l o q u e só p o d e s e r o b s e r v a d o d e f o r m a i n ­
d i r e t a n o s leve a a l g u m l u g a r . N ã o p o s s o d e i x a r d e p e n s a r q u e é u m e r r o d e n u n c i a r
c o m o o c u l t a s a s f o r ç a s n e w t o n i a n a s ( “c a u s a s d e a c e l e r a ç ã o ” ) e t e n t a r a f a s t á - l a s , e m
t r o c a d e a c e l e r a ç õ e s . D e f a t o , as a c e l e r a ç õ e s n ã o p o d e m s e r o b s e r v a d a s d e m o d o
m a i s d i r e t o d o q u e as f o r ç a s ; e r e f l e t e m d a m e s m a m a n e i r a d e t e r m i n a d a s d i s p o ­
s iç õ e s: a a f i r m a t i v a d e q u e a v e l o c i d a d e d e u m c o r p o s o f r e u a c e l e r a ç ã o n o s i n d i c a
q u e a v e lo c id a d e desse c o rp o , d a q u i a u m s e g u n d o , s e rá m a io r .

N a m i n h a o p i n i ã o , to d o s os u n iv e rsa is r e fle te m d isp o s iç õ e s. “ Q u e b r a d o ” ,


neste p a r t i c u l a r , n ã o d ife re m u i to d e “ q u c b r á v e r ' co n sid eran d o , por exem plo,
c o m o u m m é d i c o d e c i d e se u m o ss o e s t á o u n ã o q u e b r a d o . N ã o d i r i a m o s q u e u m
v i d r o e s t á “ q u e b r a d o " se t o d o s os s e u s p e d a ç o s se f u n d i s s e m n o m o m e n t o e m q u e
fo ssem - r e u n i d o s : o c r i t é r i o q u e d e t e r m i n a o “e s t a r q u e b r a d o " c o n s i s t e n o c o m p o r ­
t a m e n t o s o b d e t e r m i n a d a s c o n d i ç õ e s . D a m e s m a f o r m a , “v e r m e l h o ” r e f l e t e u m a
d isp o siç ã o u m o b j e t o é v e r m e l h o se r e f l e t e u m c e r t o t i p o d e luz - e le " p a r e c e r á
v e r m e l h o ” e m d e t e r m i n a d a s c o n d i ç õ e s . A té m e s m o “ p a r e c e r v e r m e l h o " r e f l e t e u m a
146 CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

d is p o sição — descreve a d is p o siç ã o d e u m c o r p o p a r a fa z e r c o m q u e seus o b s e r ­


vadores c o n c o rd e m e m q u e é v erm elh o .

H á , s e m d ú v i d a , g ra u s d e d i s p o s i ç ã o — “c a p a z d e c o n d u z i r e l e t r i c i d a d e ”
te m u m g ra u m a io r d o q u e “c o n d u z in d o e le tric id a d e a g o r a ” — q u e , n o e n ta n to ,
r e f l e t e t a m b é m u m a d i s p o s i ç ã o . Esses g r a u s c o r r e s p o n d e m e s t r e i t a m e n t e a o c a r á t e r
c o n je c tu ra l o u h ip o té tic o d as teo rias. N ã o te m s e n tid o , c o n tu d o , re je ita r a r e a ­
l i d a d e d a s d i s p o s i ç õ e s , m e s m o q u e r e j e i t e m o s a r e a l i d a d e d e t o d o s os u n i v e r s a i s e d e
to d a s as situ a ç õ e s, in clu siv e in c id e n te s , li m i ta n d o - n o s a u tiliz a r a q u e le s ig n ific a d o
d o t e r m o “r e a l ” q u e , d o p o n t o d e v i s t a d o u s o c o r r e n t e , é m a i s e s t r e i t o e m a i s
s e g u r o : c h a m a r í a m o s d e “ r e a i s ” só o s c o r p o s f ísic o s q u e n ã o s ã o p e q u e n o s o u g r a n ­
des d e m a is (o u q u e n ã o estão d is ta n te s d e m a is ), d e m o d o q u e p o d e m ser fa c ilm e n te
v is to s e m a n i p u l a d o s .

M e s m o a s s i m p e r c e b e r i a m o s — c o m o e s c r e v í h á v i n t e a n o s 3453 — q u e :

“T o d a d e s c r i ç ã o e m p r e g a .. . u n i v e r s a i s ; t o d a a f i r m a t i v a t e m u m c a r á t e r d e
u m a t e o r i a , u m a h i p ó t e s e . A a s s e r t i v a “E is a q u i u m c o p o d á g u a ” n ã o p o d e s e r
v e r i f i c a d a c o m p l e t a m e n t e p e l a e x p e r i ê n c i a s e n s o r i a l , p o r q u e os u n i v e r s a i s q u e n e l a
a p a r e c e m n ã o p o d e m ser c o rr e la c io n a d o s c o m q u a l q u e r e x p e riê n c ia se n so ria l e m
p a r t i c u l a r . U m a “e x p e r i ê n c i a i m e d i a t a ” é ú n i c a : e l a é “d a d a i m e d i a t a m e n t e ” u m a
só vez. C o m a p a l a v r a “c o p o ” , p o r e x e m p l o , d e n o t a m o s c e r t o s c o r p o s f ís ic o s q u e
t ê m u m d e t e r m i n a d o c o m p o r ta m e n to q u e se m a n ife s ta de f o r m a s e m e lh a n te a le is ;
com a p a la v ra “á g u a ” a co n te ce o m esm o .

N ã o c r e i o q u e p u d é s s e m o s u s a r u m a l i n g u a g e m q u e n ã o tiv e sse u n i v e r s a i s . E
o u so dos u n iv ersais n o s o b rig a a a f i r m a r — p o r c o n s e g u in te , a c o n je c tu r a r (pelo
m e n o s ) a r e s p e ito d a r e a l i d a d e d a s d isp o siçõ es, e m b o r a n ã o a re s p e ito d a s q u e fo s ­
s e m d e f i n i t i v a s e i n e x p l i c á v e i s , i s t o é , d a s e s s ê n c i a s . P o d e m o s e x p r e s s a r isso d i z e n d o
q u e a d i s t i n ç ã o h a b i t u a l e n t r e “ t e r m o s o b s e r v a c i o n a i s ” ( o u “n ã o t e ó r i c o s ” ) e “ t e r ­
m o s te ó r ic o s ” é e n g a n o s a , j á q u e to d o s os te r m o s sã o te ó ric o s e m a l g u m a m e d i d a ,
e m b o r a alg u n s sejam m a is teó rico s d o q u e o u tro s — d a m e s m a f o r m a c o m o d is ­
s e m o s q u e t o d a s as t e o r i a s s ã o c o n j e c t u r a i s , e m b o r a a l g u m a s o s e j a m m a i s d o
q u e o u tra s.

Se e s t a m o s e m p e n h a d o s , p o r é m , e m c o n j e c t u r a r a r e s p e i t o d a r e a l i d a d e d a s
t o r ç a s e d o s c a m p o s d e f o r ç a s ( o u p e l o m e n o s p r e p a r a d o s p a r a isso), n ã o h á m o t i v o
p o r q u e n ã o devéssem os c o n je c tu ra r q u e u m d a d o te m u m a in c lin a ç ã o , o u d is­
p o s i ç ã o (p r o p e n s ity ) p a r a c a i r s o b r e u m d o s s e u s l a d o s ; q u e e s s a i n c l i n a ç ã o p o d e s e r
a l t e r a d a , se i n t e r f e r i r m o s c o m o d a d o ; q u e i n c l i n a ç õ e s d e s s e t i p o p o d e m m u d a r
c o n s t a n t e m e n t e ; q u e p o d e m o s o p e r a r c o m c a m p o s d e d i s p o s i ç õ e s (fie ld s o f p r o p e n -
sities), o u e n t i d a d e s q u e d e t e r m i n a m d i s p o s i ç õ e s . U m a i n t e r p r e t a ç ã o d a p r o b a ­
b i l i d a d e d e n t r o d e s s a s l i n h a s p o d e r í a o f e r e c e r - n o s u m a n o v a i n t e r p r e t a ç ã o f í s ic a d a
teo ria q u â n tic a — d ife re n te d a in te rp re ta ç ã o p u r a m e n te estatística, q u e dev em o s a
B o r n — e m b o r a e s t e j a m o s d e a c o r d o c o m e le e m q u e a s a f i r m a t i v a s p r o b a b i l í s t i c a s
só p o d e m s e r t e s t a d a s e m p i r i c a m e n t e . 35 E s s a i n t e r p r e t a ç ã o t a l v e z p u d e s s e a j u d a r -
n o s u m p o u c o n o s n o s s o s e s f o r ç o s p a r a r e s o l v e r as g r a v e s d i f i c u l d a d e s s u r g i d a s n a
te o ria q u â n tic a , q u e h o je p a r e c e m p ô r e m p erig o a tr a d iç ã o d e G alileu .

3 4 — V i d e L . S c . D ., f i m d a s e ç ã o 2 5 , b e m c o m o o c a p . 1 d o p r e s e n t e v o lu m e .
3 5 — A r e s p e i t o d a t e o r i a d a p r o b a b i l i d a d e b a s e a d a n a s d is p o s iç õ e s (propensities ) v id e m e u s tra b a lh o s
in Observation a n d In terp reta tio n , e d . S . K õ r n e r , 1 9 5 7 , p á g . 6 5 , e t a m b é m n o B .J .P .S . , 10, 1 9 5 9 , p á g .
25.
4. Rumo a um a Teoria R acional da Tradição*

N o t í t u l o d e s t a c o n f e r ê n c i a d e v e - s e e n f a t i z a r a e x p r e s s ã o “r u m o a ” : d e f a t o ,
n ã o p r e te n d o e n u n c ia r u m a te o ria c o m p le ta , m a s a p e n a s e x p licar, c o m e x e m p lo s, o
tip o de in d a g a ç ã o a q u e u m a te o ria d a tr a d iç ã o d ev eria re s p o n d e r, f o r m u la n d o
s u m a r i a m e n t e a lg u m a s id éias q u e p o d e m ser ú teis p a r a a su a e la b o r a ç ã o .

A títu lo d e i n t r o d u ç ã o p r e t e n d o c o n t a r c o m o m e in teressei p o r e ste t e m a e


d i z e r p o r q u e a c r e d i t o n a s u a i m p o r t â n c i a , d e s c r e v e n d o a l g u m a s a t i t u d e s p o s s ív e is
a seu resp eito ,

S o u u m ra c io n a lis ta esp ecial. N ã o esto u c e rto d e q u e m e u ra c io n a lis m o será


a c e ito p elo s q u e m e lê e m ; é o q u e v e re m o s. In te re s s o -m e m u i t o p e lo m é t o d o c i e n ­
tí f i c o . D e p o i s d e e s t u d a r d u r a n t e a l g u m t e m p o os m é t o d o s d a s c i ê n c i a s n a t u r a i s ,
a c h e i q u e s e r i a i n t e r e s s a n t e e s t u d a r t a m b é m os m é t o d o s d a s c i ê n c i a s s o c i a i s ; foi
q u a n d o d e p a r e i p e l a p r i m e i r a vez c o m o p r o b l e m a d a t r a d i ç ã o . N o c a m p o d a
p o l í t i c a , d a t e o r i a s o c i a l , e t c . , os a n t i - r a c i o n a l i s t a s c o s t u m á m s u g e r i r q u e esse é u m
p r o b l e m a q u e n ã o p o d e ser a b o r d a d o p o r q u a l q u e r tip o d e te o ria ra c io n a l: su a
a t i t u d e c o n s i s t e e m a c e i t a r a t r a d i ç ã o c o m o u m d a d o . E p r e c i s o a d m i t i - l a ; n ã o se
p o d e racio n alizá-la: a tra d iç ã o d e s e m p e n h a fu n ç ã o im p o rta n te n a socied ad e e o
q u e se d e v e f a z e r é c o m p r e e n d e r s e u s i g n i f i c a d o e a c e i t á - l a .

O n o m e m a i s i m p o r t a n t e a s s o c i a d o a esse p o n t o d e v i s t a a n t i - r a c i o n a l i s t a é o
d e E d m u n d B u r k e q u e , c o m o s a b e m o s , lu t o u c o n t r a as id é ia s d a R e v o lu ç ã o F r a n ­
c e s a ; s u a a r m a m a i s e f e t i v a foi a a n á l i s e d a i m p o r t â n c i a d e s s e p o d e r i r r a c i o n a l q u e
c o n h e c e m o s c o m o “tr a d iç ã o " . M e n c io n o B u rk e p o r q u e n ã o c re io q u e t e n h a sido
j a m a i s r e f u t a d o a d e q u a d a m e n t e p e l o s r a c i o n a l i s t a s ; e s te s t e n d e m a i g n o r a r s u a s
críticas, p e rs e v e ra n d o n a a titu d e a n titr a d ic io n a lis ta sem re s p o n d e r ao d esafio . Sem
d ú v id a h á u m a ho stilid ad e tra d ic io n a l e n tre o ra cio n alism o e o tra d ic io n a lism ó . Os
r a c i o n a l i s t a s se i n c l i n a m a a d o t a r a p o s i ç ã o s e g u i n t e : “ N ã o m e i n t e r e s s o p e l a
tr a d iç ã o . P re firo ju lg a r tu d o n a b a se d o s m é rito s p ró p rio s , d e s c o b r in d o as re s p e c ­
tiv a s v a n t a g e n s e d e s v a n t a g e n s i n d e p e n d e n t e m e n t e d e q u a l q u e r t r a d i ç ã o . Q u e r o
j u l g a r c o m m e u p r ó p r i o c é r e b r o , e n ã o c o m os c é r e b r o s d e o u t r a s p e s s o a s , q u e
v iveram h á m u ito te m p o .”

* C o n f e r ê n c i a p r o n u n c i a d a n a T e r c e i r a C o n f e r ê n c i a A n u a l d a A s s o c ia ç ã o d a I m p r e n s a R a c i o n a l i s t a ,
e m M a g d a l e n C o lle g e , O x f o r d , 2 6 d e j u l h o d e 1 9 4 8 (s o b a p r e s i d ê n c i a d o P r o f e s s o r A .E . H e a t h ) . P u ­
b l i c a d a p e l a p r i m e i r a vez e m T h e Ratzonalist A n n u a l, 1 9 4 9 .
148 C O N JE C T U R A S F. R E F U T A Ç Õ E S

O f a t o d e q u e o r a c i o n a l i s t a q u e d iz e ss a s c o is a s e s t á e l e p r ó p r i o l i g a d o a
u m a “ t r a d i ç ã o r a c i o n a l i s t a ” , q u e t r a d i c i o n a l m e n t e r e p e t e ta i s a l e g a ç õ e s , m o s t r a
q u e o a ssu n to n ã o é tã o sim ples.

O p r e s i d e n t e d e s t a c o n f e r ê n c i a n o s d is s e q u e n ã o p r e c i s a m o s p r e o c u p a r - n o s
c o m a r e a ç ã o a n t i - r a c i o n a l i s t a , q u e é m u i t o f r a c a , se n ã o n e g l i g í v e l . N a m i n h a
o p i n i ã o , p o r é m , e x iste u m a r e a ç ã o a n t i - r a c io n a li s t a d e tip o m u i t o sério , e n t r e p e s ­
soas in te lig e n te s , q u e e stá a s s o c ia d a a este p r o b l e m a p a r t i c u l a r . U m b o m n ú m e r o
d e p e n sa d o re s de re n o m e fizeram d o p ro b le m a d a tra d iç ã o u m a a r m a p a r a a ta c a r
o ra c io n a lism o . P o d e ría d a r o ex em p lo d e M ichael O a k e sh o tt, u m h is to ria d o r d e
C a m b r i d g e , p e n s a d o r o rig in a i, q u e r e c e n te m e n te a ta c o u o ra c io n a lis m o n o C am -
b rid g e J o u r n a l. 1

D isc o rd o e m g r a n d e p a r t e dessa c rític a , m a s so u o b r i g a d o a a d m i t i r q u e o


a t a q u e foi p o d e r o s o . Q u a n d o f o i l a n ç a d o , n ã o h a v i a m u i t o q u e se p u d e s s e c o n ­
s i d e r a r u m a d e fe s a a d e q u a d a c o n tr a seus a r g u m e n to s . E x is te m a lg u m a s res p o stas ,
m a s d u v id o d a su a a d e q u a ç ã o - este é u m dos m o tiv o s p o r q u e a c h o q u e o assu n to
tem g r a n d e im p o rtâ n c ia .

O u t r a c o is a q u e m e i n d u z i u a e s c o l h e r e s t e t e m a foi m i n h a p r ó p r i a e x p e ­
riê n c ia pessoal a m u d a n ç a d e a m b i e n t e so cial p o r q u e p assei. C h e g u e i à I n ­
g la te r r a v in d o d e V ie n a ; p u d e verific ar q u e a a tm o s fe r a n este p aís é m u ito d if e r e n ­
te d a q u e l a e m q u e t i n h a c r e s c i d o . O u v i m o s d o d o u t o r J . A . C . B r o w n 21 a l g u m a s
o b s e r v a ç õ e s in te re s s a n te s s o b r e a i m p o r t â n c i a d o q u e c h a m a d e “a t m o s f e r a " d e
u m a f á b r i c a . E s t o u s e g u r o d e q u e e l e c o n c o r d a r i a e m q u e e ss a a t m o s f e r a t e m a l g o
a ver co m a tra d iç ã o . M u d e i-m e d a a tm o sfe ra o u tra d iç ã o c o n tin e n ta l p a ra a i n ­
g l e s a , e m a i s t a r d e , d u r a n t e a l g u m t e m p o , p a r a a d a N o v a Z e l â n d i a . E ssa s m u d a n ­
ças se m d ú v i d a m e e s t i m u l a r a m a re f le tir s o b r e o a s s u n to , p r o c u r a n d o in v estig á-lo
m ais p r o f u n d a m e n te .

C e rto s tip o s d e t r a d i ç ã o d e g r a n d e i m p o r t â n c i a sã o lo cais; n ã o p o d e m se r


t r a n s p l a n t a d o s f a c i l m e n t e . Essas t r a d i ç õ e s s ã o d e l i c a d a s , s e n d o d if íc i l r e s t a u r á - l a s
q u a n d o se p e r d e m . E s t o u p e n s a n d o n a t r a d i ç ã o c i e n t í f i c a , p e l a q u a l t e n h o u m i n ­
te r e s s e e s p e c i a l . Sei q u e é m u i t o d i f í c i l t r a n s p l a n t á - l a d o s p o u c o s l u g a r e s o n d e e l a
d e i t o u r a í z e s f i r m e s . H á d o i s m i l a n o s essa t r a d i ç ã o foi d e s t r u í d a n a G r é c i a e le v o u
m u i to te m p o a reviver. T e n ta tiv a s re c e n te s p a r a tr a n s p la n t á - l a d a I n g la te r ra p a r a
a lg u n s lu g ares n o a lé m - m a r n ã o tiv e ra m g r a n d e êx ito . N a d a é m a is m a r c a n te d o
q u e a in e x is tê n c ia d e u m a tr a d i ç ã o d e p e s q u is a e m a lg u n s p aíses d e o u tr o s c o n ­
tin e n te s : in ic iá -la o n d e ela f a lta re p r e s e n ta u m a lu ta d u rís s im a . Q u a n d o p a rti d a
N o v a Z e lâ n d ia , o R e ito r d a U n iv e rs id a d e p r o m o v e u u m e x ten so le v a n ta m e n to s o b re
a q u e s t ã o d a p e s q u i s a c i e n t í f i c a ; e m c o n s e q ü ê n c i a , fez u m e x c e l e n t e d i s c u r s o , e m
q u e c ritic a v a a U n iv e r s id a d e p o r te r n e g li g e n c ia d o as a tiv id a d e s d e in v e s tig a ç ã o .
M a s s e r i a i n g ê n u o p e n s a r q u e esse d i s c u r s o p r o m o v e r á o e s t a b e l e c i m e n t o d e u m a
tr a d iç ã o d e p e sq u isa cien tífic a n a N o v a Z e lâ n d ia — o q u e seria u m e m p r e e n d i m e n ­
t o m u i t o d i f í c i l . P o d e - s e c o n v e n c e r as p e s s o a s d e q u e u m a t r a d i ç ã o é n e c e s s á r i a ,
m a s isso n ã o q u e r d i z e r q u e e l a i r á n a s c e r , e q u e f l o r e s c e r á .

1 — A r t i g o r e p u b l i c a d o e m R a tio n a lism in Politics a n d O th er Essays. d e M . O a k e s h o t t , 1 9 6 2 , p á g s .


1 -3 6 .
2 — A lu s ã o à c o n f e r ê n c i a s o b r e “ C o m p o r t a m e n t o R a c i o n a l e I r r a c i o n a l e m G r u p o s I n d u s t r i a i s " , d e q u e
fo i p u b l i c a d o u m s u m á r i o e m T h e L iterary G uide, o u t u b r o d e 1 9 4 8 .
RUMO A UMA TEORIA RACIONAL DA TRADIÇAO 149

N a tu r a l m e n t e p o d e ría d a r e x e m p lo s co lh id o s e m o u tro s c a m p o s , a lé m d o
cien tífico , p a r a d e m o n s tr a r q u e n ã o é só n a c iê n c ia q u e a tr a d iç ã o é i m p o r t a n te .
V e j a m o s a m ú s i c a : q u a n d o e s t a v a n a N o v a Z e l â n d i a r e c e b í d is c o s n o r t e - a m e r i c a n o s
d o “ R é q u i e m ” d e M o z a r t; a o o u v i-lo s, p e r c e b í o q u e sig n ific a v a a f a l ta d e tr a d i ç ã o
— t i n h a m sido g ra v a d o s sob a d ir e ç ã o d e u m m a e s tr o o b v ia m e n te p o u c o fa m il ia r
c o m a t r a d i ç ã o m o z a r t i a n a . O r e s u l t a d o foi d e v a s t a d o r . N ã o p r e t e n d o d e m o r a r - m e
n e ss a e x e m p l if ic a ç ã o : q u is d a r essas ilu s tr a ç õ e s p a r a ' d e i x a r b e m c l a r o q u e a o
d esen v o lv er o te m a d a tr a d iç ã o cien tífic a o u ra c io n a l n ã o a c o n sid e ro n e c e s s a ­
ria m e n te a ú n ic a ou a m ais im p o rta n te .

E n t e n d a - s e q u e só h á d u a s a t i t u d e s f u n d a m e n t a i s a r e s p e i t o d a t r a d i ç ã o .
U m a c o n s i s t e e m a c e i t á - l a a c r itic a m e n te , m u i t a s vez e s s e m t e r c o n s c i ê n c i a s e q u e r
d o q u e sig n ifica. P o d e a c o n te c e r q u e n ã o c o n sig a m o s e s c a p a r d este p e rig o — co m
f r e q ü ê n c ia n ã o c h e g a m o s a p e rc e b e r q u e esta m o s se n d o to c a d o s p o r u m a tr a d iç ã o .
A o u s a r m e u reló g io n o pu lso e s q u e r d o n ã o p re c iso te r c o n s c iê n c ia d e q u e o b e d e ç o
a u m a t r a d i ç ã o . T o d o s o s d i a s f a z e m o s c e n t e n a s d e c o is a s s o b a i n f l u ê n c i a d e
t r a d i ç õ e s d a s q u a i s n ã o t e m o s c o n s c i ê n c i a . M a s , se n ã o s a b e m o s q u e n o s s o c o m p o r ­
t a m e n t o r e f l e t e u m a t r a d i ç ã o só p o d e m o s a c e i t á - l a a c r i t i c a m e n t e .

A o u t r a p o s s i b i l i d a d e c o n s i s t e e m a s s u m i r a t i t u d e c rític a -- o q u e p o d e
r e s u l t a r n a a c e i ta ç ã o , n a r e je iç ã o o u talv ez n u m a c o n c ilia ç ã o . E p re c iso p o r é m
c o n h e c e r e c o m p r e e n d e r u m a tr a d i ç ã o a n te s d e c r i ti c á - la ; a n te s d e p o d e r d izer:
“R e j e i t o a t r a d i ç ã o p o r m o t i v o s r a c i o n a i s . ” N ã o c r e i o , t o d a v i a , q u e p o s s a m o s l i v r a r -
n o s i n t e i r a m e n t e d a i n f l u ê n c i a d a t r a d i ç ã o . N a v e r d a d e , e ss a “ l i b e r a ç ã o ” n ã o p a s s a
de m u d a n ç a — de u m a trad ição p a r a o u tra . P o d em o s co n tu d o lib erar-n o s dos
ta b u s d e u m a t r a d i ç ã o — n ã o p e l o s e u a f a s t a m e n t o , m a s p e l a a c e i t a ç ã o c rític a .
L i b e r t a m o - n o s d e u m t a b u a o r e fle tir s o b r e e l e , p e r g u n t a n d o - n o s se d e v e m o s
i c e i t á - l o o u r e c u s á - l o . P a r a isso, é p r e c i s o e m p r i m e i r o l u g a r p e r c e b e r a t r a d i ç ã o
r la r a m e n te ; e n te n d e r d e m o d o g e ra l q u a l p o d e ser a fu n ç ã o e o s ig n ific a d o d as
t r a d i ç õ e s . P o r isso o p r o b l e m a é t ã o i m p o r t a n t e q u e n ó s , r a c i o n a l i s t a s — p e s s o a s
p r o n t a s a c o n te s ta r e a c r itic a r tu d o , in clu siv e, e s p e ro , s u a p r ó p r i a t r a d i ç ã o ra -
c io n a lis ta . Pessoas c a p a z e s d e tu d o q u e s tio n a r , p e lo m e n o s m e n t a l m e n t e ; q u e n ã o
se s u b m e t e m c e g a m e n t e a q u a l q u e r t r a d i ç ã o .

D e v e r i a d i z e r q u e n a n o s s a v a l i o s a t r a d i ç ã o r a c i o n a l i s t a ( q u e os r a c i o n a l i s t a s
m u i t a s vezes a c e i t a m a c r i t i c a m e n t e ) h á a l g u n s p o n t o s q u e d e v e r i a m o s c o n t e s t a r :
p o r e x e m p lo , a id é ia m e ta físic a d o d e te r m in is m o . A q u eles q u e d is c o rd a m d o d e t e r ­
m in is m o são g e r a lm e n te o b je to d e su sp eitas p o r p a r t e dos ra c io n a lista s , te m e ro so s
d e q u e, ao a c e ita r o in d e te rm in ism o , estejam o s o b rig a d o s a a c e ita r a d o u tr in a do
liv re a r b í t r i o , e n v o l v e n d o - n o s a s s i m n o d e b a t e t e o l ó g i c o a r e s p e i t o d a a l m a e d a
g r a ç a d i v i n a . C o s t u m o e v i t a r a m e n ç ã o a o li v r e a r b í t r i o , p o r q u e n ã o t e n h o m u i t a
c e rte z a so b re o q u e significa; su s p e ito m e s m o q u e nossa in t u iç ã o possa d e sv ia r-n o s
d o q u e é a v o n t a d e liv re d o h o m e m . P e n s o , c o n t u d o , q u e o d e t e r m i n i s m o é u m a
te o ria in s u ste n tá v e l p o r m u i ta s razões; n ã o te m o s q u a l q u e r m o tiv o p a r a a c e itá -la .
C o m e f e i t o , a c r e d i t o q u e é i m p o r t a n t e l i v r a r - n o s d o e l e m e n t o d e t e r m i n i s t a dc
t r a d i ç ã o r a c i o n a l i s t a : e l e n ã o só é i n s u s t e n t á v e l c o m o n o s c r i a m u i t o s p r o b l e m a s .
P o r isso é i m p o r t a n t e p e r c e b e r q u e o i n d e t e r m i n i s m o — is to é , a n e g a t i v a d o d e t e r ­
m in is m o — n ã o nos en v o lv e n e c e s s a r ia m e n te e m q u a l q u e r d o u t r i n a re la tiv a à nossa
“v o n t a d e ” , o u à “ r e s p o n s a b i l i d a d e ” .
150 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

O u tr o e le m e n to d a tr a d iç ã o ra c io n a lis ta q u e d ev e m o s q u e s tio n a r é a id é ia
d o o b se rv a c io n a lism o — d e q u e c o n h e c e m o s o m u n d o p o r q u e o e x a m in a m o s , c o m
o l h o s e o u v i d o s b e m a b e r t o s , a n o t a n d o o q u e v e m o s e o u v i m o s — essa s e r i a a
m a t é r i a - p r i m a d o c o n h e c i m e n to . T r a t a - s e d e u m p r e c o n c e i to q u e t e m raízes
p r o f u n d a s ; u m a id éia q u e im p e d e a c o m p r e e n s ã o d o m é to d o cien tífico . V o lta re i a
este p o n t o m a is a d i a n t e .

C o m o in tro d u ç ã o , b asta. Farei a g o ra u m breve su m á rio do p a p e l de u m a


te o r ia d a t r a d iç ã o . U m a te o ria s o b re a t r a d i ç ã o p re c is a ser u m a te o r ia so c io ló g ica,
p o r q u e a t r a d i ç ã o é o b v i a m e n t e u m f e n ô m e n o s o c i a l . M e n c i o n o isso p o r q u e d e s e j o
e x a m i n a r b r e v e m e n t e a f u n ç ã o das c iê n c ia s so c ia is te ó r ic a s , q u e t e m s i d o m a l i n t e r ­
p r e t a d a c o m m u i t a f r e q ü ê n c i a . P a r a p o d e r e x p li c a r e m q u e c o n siste, n a m i n h a
o p in i ã o , a f u n ç ã o b á s ic a d a c iê n c ia so cial, g o s t a r ia d e c o m e ç a r p e la d e s c r iç ã o d e
u m a t e o r i a , a c e i t a p o r m u i t o s r a c i o n a l i s t a s , q u e n a m i n h a o p i n i ã o le v a e x a t a m e n t e
a o o b j e t i v o o p o s t o a o d a c i ê n c i a s o c i a l — o q u e c h a m a r e i d e “t e o r i a c o n s p i r a t ó r i a
d a s o c i e d a d e ” . T r a t a - s e d e t e o r i a m a i s p r i m i t i v a d o q u e q u a s e t o d a s as m o d a l i ­
d a d e s d o t e í s m o ; l e m b r a a t e o r i a d a s o c i e d a d e d e H o m e r o , q u e c o n c e b i a os p o d e r e s
div in o s d e ta l f o r m a q u e o q u e q u e r q u e a c o n te c e sse n a p la n íc ie d e T r ó i a re fle tia
s e m p r e as v á r i a s c o n s p i r a ç õ e s u r d i d a s n o O l i m p o . A “ t e o r i a c o n s p i r a t ó r i a d a s o ­
c i e d a d e ” c o r r e s p o n d e a u m a v e rs ã o desse te ís m o — d a c r e n ç a e m d i v i n d a d e s cu jo s
c a p ric h o s g o v e rn a m o m u n d o . D eriv a d o gesto d e q u e m a b a n d o n a D eus p a r a
d ep o is p e r g u n ta r q u e m deve to m a r o seu po sto ; d a su a su b stitu iç ã o p o r g ru p o s e
h o m e n s p o d e r o s o s — s i n i s t r o s g r u p o s d e p r e s s ã o , r e s p o n s a b i l i z a d o s p o r t o d o s os
m ales q u e nos aflig em ,

A “te o ria c o n sp ira tó ria d a s o c ie d a d e ” é m u ito d if u n d id a , e c o n té m m u ito


p o u c a v e r d a d e . Só q u a n d o os q u e a s u s t e n t a m c h e g a m a o p o d e r e l a se t o r n a u m a
e x p l i c a ç ã o d e c o is a s q u e a c o n t e c e m r e a l m e n t e ( u m e x e m p l o d o q u e d e n o m i n e i
“e f e i t o d e É d i p o ” ). A s s i m , q u a n d o H i t l e r c h e g o u a o p o d e r , c o m o a c r e d i t a v a n o
m i to d a c o n s p i r a ç ã o d o s S á b io s d e S ião , t e n t o u u m a c o n t r a c o n s p i r a ç ã o . M a s o i n ­
t e r e s s a n t e é q u e as co n s p ira ç õ e s desse tip o n u n c a — o u q u a se n u n c a — se d e s e n v o l­
v e m c o n fo r m e p re v isto p e lo s co n sp ira d o re s.

E ssa o b s e r v a ç ã o j á i n s i n u a q u a l é o v e r d a d e i r o o b j e t i v o d e u m a t e o r i a s o c i a l .
C o m o d is s e , H i t l e r t r a m o u u m a c o n s p i r a ç ã o q u e f r a c a s s o u . F r a c a s s o u p o r q u ê ? N ã o
a p e n a s p o rq u e o u tra s pessoas c o n s p ira ra m c o n tr a H itle r, m a s sim p le sm e n te p o rq u e
u m a d a s c o i s a s m a i s m a r c a n t e s d a v i d a s o c i a l é q u e n a d a te m e x a ta m e n te os r e s u l­
ta d o s p re v isto s. As c o i s a s s e m p r e a c o n t e c e m d e m o d o u m p o u c o d i f e r e n t e d o e s ­
p e r a d o . Q u a s e n u n c a c o n s e g u im o s p r o d u z i r n a v id a social p r e c i s a m e n te o efeito a l ­
m e ja d o - é c o m u m .re c e b e rm o s u m “tro c o " in e s p e ra d o . N a t u r a l m e n t e , ag im o s
te n d o e m m e n t e d e t e r m i n a d o s o b jetiv o s; n o e n t a n t o , ao la d o desses o b jetiv o s (q u e
p o d e m o s o u n ã o a t i n g i r ) , h á s e m p r e u m a s é r ie d e c o n s e q ü ê n c i a s n ã o d e s e j a d a s q u e
a c o m p a n h a m n o s s a s a ç õ e s . N o r m a l m e n t e , essas c o n s e q ü ê n c i a s n ã o p o d e m s e r
e l i m i n a d a s . E x p l i c a r p o r q u e isso a c o n t e c e é a p r i n c i p a l t a r e f a d a c i ê n c i a s o c i a l .

V o u d a r u m e x e m p lo m u ito sim ples. D ig a m o s q u e a lg u é m precise v e n d e r


s u a c a s a , n u m a p e q u e n a v il a . P o u c o a n t e s h o u v e q u e m c o m p r a s s e u m a o u t r a c a s a ,
p o r q u e p r e c i s a v a e n c o n t r a r m o r a d i a c o m u r g ê n c i a . S u r g e a g o r a u m v e n d e d o r : e le
v erá q u e , e m co n d içõ e s n o rm a is , n ã o e n c o n tr a r á o fe rta ig u al à d o c o m p r a d o r q u e
precisou c o m p r a r u m a casa s e m e lh a n te . O sim p les fa to de q u e a lg u é m q u e r v e n d e r
RUMO A UMA TEORIA RACIONAL DA TRADIÇAO 151

sua casa a b a ix a o p reço de m e r c a d o d a q u e la casa. Q u e m deseja v e n d e r a lg u m a


c o is a d e p r i m e o m e r c a d o c o m p r a d o r ; q u e m q u e r c o m p r a r a l g o c o n t r i b u i p a r a
e l e v a r o p r e ç o d o q u e q u e r c o m p r a r . Isso só a c o n t e c e , n a t u r a l m e n t e , e m m e r c a d o s
p e q u e n o s e liv re s — m a s é o q u e t e n d e a a c o n t e c e r e m q u a l q u e r e c o n o m i a d e m e r ­
c a d o . S eria d e sn e c e s sá rio p ro v a r q u e q u e m q u e r v e n d e r a lg o n ã o t e m e m g e ra l a
in t e n ç ã o d e d e p r i m i r o seu p re ç o n o m e r c a d o e v ice-v ersa. A í e s tá u m e x e m p lo
típ ico d a s c o n s e q ü ê n c ia s n ã o d e s e ja d a s a q u e m e re fe ri.

O q u e d e s c r e v í é t í p i c o d e to d a s as situ a ç õ e s so cia is — s e m p r e h á i n d i v í d u o s
q u e f a z e m c o is a s , q u e q u e r e m c o is a s , q u e t ê m d e t e r m i n a d o s o b j e t i v o s e m v i s t a . N a
m e d i d a e m q u e e ss a s p e s s o a s a g e m n o s e n t i d o e m q u e d e s e j a m , a l c a n ç a n d o o s f i n s a
q u e se p r o p õ e m , n ã o se c o l o c a n e n h u m p r o b l e m a p a r a as c i ê n c i a s s o c i a is — e x c e t o
o p r o b l e m a d e s a b e r se s e u s o b j e t i v o s e i m p u l s o s p o d e m s e r e x p l i c a d o s s o c i a l m e n t e ,
p o r c e r t a s t r a d i ç õ e s , p o r e x e m p l o . O s p r o b l e m a s c a r a c t e r í s t i c o s d a s c i ê n c i a s s o c i a is

Fa Ká
só a p a r e c e m e m f u n ç ã o d o n o s s o d e s e j o d e c o n h e c e r as c o n s e q ü ê n c ia s n ã o a lm e ­
ja d a s d a s n o s s a s a ç õ e s e s p e c i a l m e n t e as c o n s e q ü ê n c ia s q u e q u e r e m o s e v ita r.
D e s e j a m o s p r e v e r n ã o só as c o n s e q ü ê n c i a s d i r e t a s d o q u e f a z e m o s , m a s t a m b é m as
c o n se q ü ên cias in d ire ta s e n ã o d esejad as. P o r q u e razão ? O u p o r c u rio sid a d e c ie n ­
t í f i c a o u p o r q u e q u e r e m o s e s t a r p r e p a r a d o s p a r a e n f r e n t á - l a s — p a r a e v i t a r q u e se <
t o r n e m m u i t o g r a v e s . ( O q u e s i g n i f i c a , p o r s u a v ez, n o v a s a ç õ e s , e c o n s e q ü e n t e -
m e n t e novos efeitos im p re v isto s ).

A c h o q u e q u e m se a p r o x i m a d a s c i ê n c i a s s o c i a is c o m u m a t e o r i a c o n s p i -
ra tó ria já p r o n t a a b a n d o n a a p o ssib ilid ad e d e c h e g a r a a te n d e r o p a p e l dessas c iê n ­
c ia s ; p r e s u m e q u e é poss ív e l e x p l i c a r p r a t i c a m e n t e t u d o n a v i d a s o c i a l p e r g u n t a n d o ■
“q u e m o q u i s a s s i m " q u a n d o , n a v e rd a d e , a fu n ç ã o real d a s ciên cias so ciais3 é
e x p lic a r o q u e n in g u é m deseja u m a g u e r r a , u m a d e p r e s s ã o . A r e v o lu ç ã o len in is-
ta e e s p e c ia lm e n te a re v o lu ç ã o e a g u e r r a d e H itle r são exceções: r e s u l t a r a m e f e ­
t i v a m e n t e d e c o n s p i r a ç õ e s , m a s t a m b é m d o f a t o d e q u e os t e ó r i c o s d a c o n s p i r a ç ã o
ch eg aram ao poder te n d o fracassado, sign ificativ am en te, n a te n ta tiv a de c o n ­
s u m a r as c o n s p i r a ç õ e s q u e i d e a l i z a r a m .

O o b j e t i v o d a t e o r i a s o c i a l é e x p l i c a r c o m o se r e a l i z a m as c o n s e q ü ê n c i a s n ã o
a l m e ja d a s d a s nossas in te n ç õ e s e d a s nossas açõ es; q u e tip o s d e efeito s o c o r r e m
q u a n d o se a g e d e u m a m a n e i r a o u d e o u t r a , e m d e t e r m i n a d a s i t u a ç ã o s o c i a l . D e
m o d o m a i s e s p e c i a l , s u a f u n ç ã o é a n a l i s a r a e x i s t ê n c i a e o f u n c i o n a m e n t o d e in s ­
titu iç õ e s ( c o m o a p o l í c i a , a s e m p r e s a s , a s e s c o l a s , os g o v e r n o s ) e as c o le tiv id a d e s
( E s t a d o s , n a ç õ e s , c la s se s e o u t r o s g r u p o s ) . Q u e m a c e i t a a t e o r i a c o n s p i r a t ó r i a
a c r e d i t a q u e as i n s t i t u i ç õ e s p o d e m s e r c o m p r e e n d i d a s p e r f e i t a m e n t e c o m o o re-

3 N o d e b a t e q u e se s e g u iu à c o n f e r ê n c i a , f u i c r i t i c a d o p o r r e j e i t a r a t e o r i a c o n s p i r a t ó r i a ; h o u v e q u e m
a f ir m a s s e q u e K a r l M a r x t i n h a r e v e la d o a e n o r m e i m p o r t â n c i a q u e te m a c o n s p i r a ç ã o c a p i t a l i s t a p a r a a
c o m p r e e n s ã o d a s o c ie d a d e . A o r e s p o n d e r , d is se q u e d e v ia t e r m e n c i o n a d o m i n h a d ív id a p a r a c o m M a r x ,
um dos prim eiros críticos da teoria da conspiração e u m d o s p r i m e i r o s a a n a l i s a r a s c o n s e q ü ê n c i a s n ã o
a l m e j a d a s d a s a ç õ e s v o l u n t á r i a s d a s p e s s o a s q u e a g e m d e n t r o d o c o n t e x t o d e c e r ta s s itu a ç õ e s s o c ia is .
M a r x d is s e , c l a r a e i n c is iv a m e n te , q u e o c a p i t a l i s t a e s tá t ã o e n r e d a d o n a s i t u a ç ã o s o c ia l ( o u “s is te m a
s o c ia l ) q u a n t o o t r a b a l h a d o r ; q u e n ã o p o d e d e i x a r d e a g i r c o m o a g e . O c a p i t a l i s t a é tã o p o u c o liv r e
q u a n to o tr a b a lh a d o r os r e s u lta d o s d a s s u a s a ç õ e s s ã o e m g r a n d e p a r t e n ã o in te n c i o n a i s . M a s a v e r ­
d a d e i r a a b o r d a g e m c ie n t í f i c a d e M a r x ( e m b o r a , a m e u v e r, m u i t o d e t e r m i n i s t a ) fo i a b a n d o n a d a p e lo s
s e u s d is c í p u lo s r e c e n t e s , os m a r x i s t a s v u lg a r e s , q u e p r o p õ e m u m a t e o r i a c o n s p i r a t ó r i a d a s o c ie d a d e e m
te r m o s b a s t a n t e p o p u l a r e s , q u e n ã o t e m m a is s e r i e d a d e d o q u e o m ito d o s S á b io s d e S iã o a c e i t o p o r
G o e h h e ls .
152 CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

s u l t a d o d a d e l i b e r a ç ã o c o n s c i e n t e e a t r i b u i às c o l e t i v i d a d e s u m a e s p é c i e d e “p e r ­
s o n a l i d a d e g r u p a i ” , t r a t a n d o - a s c o m o a g e n t e s c o n s p i r a d o r e s , c o m o se f o s s e m i n ­
d i v í d u o s . C o n t r a r i a m e n t e a e ss a c o n c e p ç ã o , o t e o r i s t a s o c i a l d e v e r e c o n h e c e r q u e a
p e rs is tê n c ia d a s in s titu iç õ e s e .co letiv id ad es c r ia u m p r o b l e m a a ser reso lv id o t a m ­
b é m e m t e r m o s d e u m a a n á l i s e d a s a ç õ e s s o c i a is d o s i n d i v í d u o s e s e u s e f e i t o s s o c i a is
n ã o p r e te n d id o s . A f u n ç ã o d e u m a t e o r i a d a t r a d i ç ã o p o d e s e r v is ta i g u a l m e n t e
d e s s a f o r m a : só m u i t o r a r a m e n t e a s p e s s o a s d e l i b e r a m c r i a r u m a t r a d i ç ã o ; m e s m o
n e ss e s c a s o s , é p r o v á v e l q u e n ã o o c o n s i g a m . P o r o u t r o l a d o , p e s s o a s q u e n u n c a
s o n h a r a m e m c r i a r u m a t r a d i ç ã o p o d e m c h e g a r a isso, s e m t e r j a m a i s t a l i n t e n ç ã o .
D e p a r a m o s assim c o m u m d os p r o b l e m a s b ásico s d a te o r ia d a t r a d i ç ã o : s a b e r c o m o
s u r g e m as t r a d i ç õ e s e , o q u e é m a i s i m p o r t a n t e , c o m o e l a s se m a n t ê m , n a q u a l i ­
d a d e d e c o n s e q ü ê n c ia s (p o ssiv elm en te n ã o d e lib e ra d a s ) d e ações h u m a n a s .

O u t r o 'p r o b le m a , m a is im p o r t a n t e , é s a b e r q u a l a f u n ç ã o d a tr a d iç ã o n a
v id a so cial. T e r á e la a l g u m a f u n ç ã o r a c i o n a l m e n t e c o m p r e e n s ív e l (c o m o o q u e
a c o n t e c e c o m a s e s c o l a s , a p o l í c i a , as lo j a s , a b o l s a d e v a l o r e s e o u t r a s in s titu iç õ e s
sociais)} P o d e r e m o s a n a l i s a r a s f u n ç õ e s d a t r a d i ç ã o ? E s t e t a l v e z s e j a o o b j e t i v o m a i s
im p o r ta n te d a teo ria. P re te n d o a b o r d a r o te m a a n a lis a n d o u m a tra d iç ã o e m p a r ­
t i c u l a r - a r a c i o n a l o u c i e n t í f i c a — , d e f o r m a e x e m p l i f i c a t i v a , u s a n d o d e p o i s e ss a
a n álise c o m o u tro s p ro p ó sito s.

M e u objetiv o p r i n c ip a l será t r a ç a r u m p a r a le lo e n tr e as te o ria s q u e a cei­


ta m o s e m fu n ç ã o d a nossa a titu d e r a c io n a l o u crític a , d ep o is d e s u b m e tê -la s a te s te s
( d e m o d o g e r a l , as h i p ó t e s e s c i e n t í f i c a s ) e a s c r e n ç a s , a t i t u d e s e t r a d i ç õ e s e m geral
c o n s id e ra n d o , p o r o u tr o la d o , o m o d o c o m o u m a s e o u tr a s n o s o r ie n ta m neste
m u n d o , e s p e c i a l m e n t e n a n o s s a v i d a s o c i a l.

J á se d i s c u t i u m u i t o o q u e c h a m a m o s d e tr a d iç ã o c ie n tífic a . M u i t a g e n t e j á
e s p e c u lo u a re s p e ito d essa co isa e s t r a n h a q u e a c o n te c e u d e a l g u m a f o r m a n u m
lu g a r d a G ré c ia , n o sex to e n o q u i n t o séculos a n te s d e C risto — a in v e n ç ã o d a
f i l o s o f i a r a c i o n a l . A l g u n s p e n s a d o r e s m o d e r n o s a f i r m a m q u e o s f i ló s o f o s g r e g o s
f o r a m os p r i m e i r o s a c o m p r e e n d e r o q u e a c o n t e c e n a n a t u r e z a : p r e t e n d o d e m o n s ­
tr a r q u e essa e x p lic a ç ã o n ã o é s a tis f a tó ria .

O s p r i m e i r o s f iló s o f o s g r e g o s t e n t a r a m d e f a t o e n t e n d e r o q u e a c o n t e c i a n a
n a t u r e z a - m a s o m e s m o f a z i a m a n t e s d e l e s os p r i m i t i v o s , c o m o s m i t o s q u e i n v e n ­
t a v a m . C o m o c a r a c t e r i z a r e n t ã o esse t i p o p r i m i t i v o d e e x p l i c a ç ã o q u e fo i s u b s t i ­
t u í d o p e l o s p a d r õ e s d o s filó so f o s h e l ê n i c o s — os f u n d a d o r e s d a n o s s a t r a d i ç ã o c i e n ­
tífica? P a r a e x p lic á -lo d e m o d o g ro s se iro , a o s e n t ir a a p r o x i m a ç ã o d e u m a t e m p e s ­
t a d e , os p r i m i t i v o s p r é - c i e n t í f i c o s d i z i a m : “ Z e u s e s t á z a n g a d o ! ” E q u a n d o v i a m o
m a r e n c a p e l a d o , c o m e n t a v a m : “ P o s e i d o n e s t á i r r i t a d o ! ” E sse t i p o d e e x p l i c a ç ã o e r a
c o n sid e ra d o satisfató rio an tes de a tr a d iç ã o ra c io n a lista im p o r novos p a d rõ e s de e x ­
p l i c a ç ã o . Q u a l e r a a d i f e r e n ç a d e c i s i v a e n t r e esses p a d r õ e s ? N ã o se p o d e d i z e r q u e
as n o v a s t e o r i a s i n t r o d u z i d a s p e l o s f i ló s o f o s g r e g o s f o s s e m c o m p r e e n d i d a s m a i s
f a c i lm e n te d o q u e as a n ti g a s te o r ia s. A c h o q u e é m u i t o m a i s fácil c o m p r e e n d e r a
a f irm a tiv a d e q u e Zeus está z a n g a d o d o q u e u m a e x p lic a ç ã o c ie n tífic a d e u m a t e m ­
p e s t a d e ; a assertiv a d e q u e P o s e id o n e s tá ir r i t a d o m e p a r e c e m u i t o m a is sim p le s e
com preensível d o qu e u m a e x p licação das vagas e m term os d a fricção d o a r sobre a
su p erfície do m a r.
RUMO A UMA TEORIA RACIONAL DA TRADIÇÃO 153

C r e i o q u e a i n o v a ç ã o q u e os p r i m e i r o s f i ló s o f o s g r e g o s i n t r o d u z i r a m foi m a i s
o u m e n o s a s e g u i n t e : e le s c o m e ç a r a m a d is c u tir esses a s s u n t o s . E m vez d e a c e i t a r a
tr a d i ç ã o relig io sa a c r i ti c a m e n t e , c o m o a lg o in a lte r á v e l, p a s s a r a m a c o n te s tá - la e
c h e g a v a m m e s m o a i n v e n t a r à s vez e s u m n o v o m i t o , p a r a s u b s t i t u i r u m m i t o
t r a d i c i o n a l . T e m o s q u e a d m i t i r q u e as n o v a s e stó ria s q u e p r o p u s e r a m , e m lu g a r
d a s a n t i g a s , e r a m f u n d a m e n t a l m e n t e m i t o s — e x a t a m e n t e c o m as e x p l i c a ç õ e s
a b a n d o n a d a s . M a s t i n h a m d u a s c o is a s i n t e r e s s a n t e s .

E m p r i m e i r o lu g a r , n ã o e r a m a p e n a s re p e tiç õ e s o u re a r r a n jo s d a s v elh as e s ­
t ó r i a s — c o n t i n h a m a l g u n s e l e m e n t o s n o v o s . N ã o q u e isso fosse e m si u m a g r a n d e
v a n t a g e m . M a s a s e g u n d a co isa, a p r i n c ip a l , e r a o f a t o d e q u e c o n s t it u ía m u m a
n o v a tr a d iç ã o — a a d o ç ã o d e a t i t u d e c r í t i c a c o m r e l a ç ã o a o s m i t o s , d e d i s c u t i - l o s ;
d e n ã o só n a r r a r os m i t o s a n t i g o s m a s t a m b é m q u e s t i o n á - l o s . A o c o n t a r u m m i t o
esses f i l ó s o f o s se d i s p u n h a m a o u v i r o q u e os o u t r o s p e n s a v a m — a d m i t i n d o , p o r ­
t a n t o , a p o s s i b i l i d a d e d e q u e t i v e s s e m u m a e x p l i c a ç ã o m e l h o r . Isso e r a a l g o q u e
n ã o a c o n te c ia até e n tã o : su rg ia p o r ta n to u m n o v o processo d e f o r m u la r in d a g a ç õ e s.
J u n t a m e n t e c o m a e x p l i c a ç ã o — o m i t o — c o l o c a v a - s e a p e r g u n t a : “H a v e r á u m a
e x p l i c a ç ã o m e l h o r ? ” . O u t r o filó s o f o p o d e r í a r e s p o n d e r : “ S i m ” ; o u e n t ã o : “N ã o sei,
m a s t e n h o u m a e x p l i c a ç ã o m u i t o d i f e r e n t e , q u e é i g u a l m e n t e b o a . C o m o as d u a s
n ã o p o d e m s e r v e r d a d e i r a s , d e v e h a v e r a l g o d e e r r a d o a í . N ã o p o d e m o s a c e i t a r as
d u a s ex p lic a ç õ e s, e n ã o te m o s q u a lq u e r m o tiv o p a r a p re f e rir u m a delas. C o m o
q u e r e m o s c o n h e c e r m e l h o r o a s s u n t o , p r e c i s a m o s d i s c u t i - l o p a r a v e r i f i c a r se n o s s a s
e x p l i c a ç õ e s r e a l m e n t e s a t i s f a z e m , t e n d o e m v i s t a o q u e s a b e m o s , e se p o d e m s e r
a p l i c a d a s a a l g u m a o u t r a co isa q u e n ã o le v a m o s e m c o n s i d e r a ç ã o . ”

D e f e n d o a te s e d e q u e o q u e c h a m a m o s d e “c i ê n c i a ” se d i s t i n g u e d o s a n t i g o s
m i t o s n ã o só p o r s e r d i f e r e n t e d e l e s , m a s p o r v i r a c o m p a n h a d a d e u m a t r a d i ç ã o d e
s e g u n d a o r d e m — a d e d i s c u t i r c r i t i c a m e n t e o m i t o . A n t e s , só h a v i a a t r a d i ç ã o d e
p r im e ira o rd e m : u m a estó ria e ra tr a n s m itid a . A g o ra, c o n tin u a v a a h a v e r n a t u r a l -
m e n t e u m a e s t ó r i a a s e r t r a n s m i t i d a , m a s c o m e l a se c o m u n i c a v a t a m b é m a l g o
c o m o u m tex to d e a c o m p a n h a m e n to : "P asso -te esta tr a d iç ã o , m a s deves d iz e r-m e o
q u e p e n s a s d e l a . R e f l e t e : t a l v e z p o s s a s d a r - m e u m a e x p l i c a ç ã o d i s t i n t a . ” E ssa
tr a d iç ã o d e s e g u n d a o r d e m e ra a a titu d e c rític a e a n a lític a : alg o novo, q u e é o
f u n d a m e n t a l d a t r a d i ç ã o c i e n t í f i c a . Se c o m p r e e n d e r m o s isso, t e r e m o s u m a a t i t u d e
c o m p le ta m e n te d ife re n te a resp eito d e m u ito s p r o b le m a s re la c io n a d o s c o m m é to d o
cien tífico . C o m p r e e n d e r e m o s q u e , n u m c e rto s e n tid o , a c iên c ia p ro d u z m ito s —
t a n t o q u a n t o a r e l i g i ã o . P o d e r á s u r g i r a o b j e ç ã o : “ M a s os m i t o s c i e n t í f i c o s s ã o
m u i t o d i f e r e n t e s d o s r e l ig i o s o s ! ” C e r t a m e n t e s ã o d i f e r e n t e s . M a s , p o r q u ê ? P o r q u e
q u a n d o a d o t a m o s e ss a a t i t u d e c r í t i c a , os n o s s o s m i t o s se to r n a m d i f e r e n t e s : e le s se
m o d i f i c a m , p a r a f o r n e c e r u m a e x p l i c a ç ã o c a d a vez m e l h o r d o m u n d o — d a s v á r i a s
c o is a s q u e p o d e m o s o b s e r v a r . P a s s a m a n o s d e s a f i a r a o b s e r v a r c o is a s q u e n u n c a
o b s e r v a r í a m o s s e m ta i s m i t o s o u t e o r i a s .

N o s d e b a t e s c r í t i c o s e n t ã o l e v a n t a d o s s u r g i u , p e l a p r i m e i r a vez, a l g o c o m o a
o b s e r v a ç ã o s is te m á tic a . A o r e c e b e r u m m i t o , a c o m p a n h a d o p e l a p e r g u n t a s i l e n ­
c i o s a e t r a d i c i o n a l — “ Q u e t e n s a d i z e r s o b r e isso? P o d e s c r i t i c a r o q u e c o n t e i ? ”
— a s p e s s o a s o a p l i c a v a m às v á r i a s c o is a s q u e e le a l e g a d a m e n t e d e v e r i a e x p l i c a r ,
ta i s c o m o o m o v i m e n t o d o s p l a n e t a s . E d i z i a m , p o r e x e m p l o : “ N a m i n h a o p i n i ã o
esse m i t o n ã o é m u i t o b o m , p o r q u e n ã o e x p l i c a o s m o v i m e n t o s o b s e r v á v e i s d o s
p l a n e t a s ” . A s s i m , s ã o o s m i t o s , o u a s t e o r i a s , q u e n o s l e v a m à o b s e r v a ç ã o siste-
RUMO A UMA TEORIA RACIONAL DA TRADIÇÃO 155

T u d o isso q u e r d i z e r q u e u m j o v e m c i e n t i s t a q u e d e s e j a f a z e r d e s c o b e r t a s
r e c e b e r á u m m a u c o n s e l h o se a l g u é m l h e d i s s e r : “ O b s e r v e o q u e e x i s t e à s u a v o l t a ” .
A o r i e n t a ç ã o c o r r e t a s e r i a : “ P r o c u r e s a b e r o q u e se d i s c u t e h o j e n a c i ê n c i a . D e s ­
c u b r a o n d e e s t ã o s u r g i n d o d i f i c u l d a d e s e se i n t e r e s s e p e l o s d e s a c o r d o s — e ss a s s ã o
a s q u e s t õ e s q u e v o c ê d e v e a b o r d a r . ” E m o u t r a s p a l a v r a s , d e v e - s e e s t u d a r a s itu a ç ã o -
p r o b le m a a t u a l ; is to é: é p r e c i s o e x p l o r a r a l i n h a d e i n v e s t i g a ç ã o a s s o c i a d a a t o d o o
d e s e n v o lv im e n to p re g re sso d a c iê n c ia — s e g u ir a t r a d i ç ã o c ie n tíf ic a . E ste é u m
p o n t o s i m p l e s e d e c i s i v o , q u e c o n t u d o m u i t a s vez e s n ã o é s u f i c i e n t e m e n t e p e r c e b i d o
p elo s ra c io n a lis ta s — n ã o p o d e m o s c o m e ç a r d a e s ta c a zero; p re c is a m o s u tiliz a r o
q u e n o s s o s a n t e c e s s o r e s f i z e r a m . Se c o m e ç a r m o s d o z e r o , n ã o u l t r a p a s s a r e m o s o
p o n to ao q u a l A d ã o e Eva c o n s e g u ira m c h e g a r (ou o h o m e m d e N e a n d e rth a l). N a
c iê n c ia , q u e re m o s fa z e r p ro g resso , o q u e sig n ifica q u e p re c is a m o s s u b ir nos o m b r o s
dos nossos p re d e c e s so re s. P re c is a m o s d e se n v o lv e r u m a c e r ta tr a d iç ã o . D o p o n to d e
vista d o q u e q u e r e m o s c o m o c ie n tis ta s — c o m p r e e n s ã o , p re v isã o , a n á lis e , e tc . — o
m u n d o e m q u e v iv em o s é e x t r e m a m e n t e c o m p l e x o ; e s t a r i a t e n t a d o a d iz e r q u e é
i n f i n i t a m e n t e c o m p l e x o , se a f r a s e tiv e sse s e n t i d o . N ã o s a b e m o s o n d e e c o m o
c o m e ç a r nossa an álise d este m u n d o . N ã o h á s a b e d o r ia c a p a z d e n o s e sc la re c e r
s o b r e isso — m e s m o a t r a d i ç ã o c i e n t í f i c a n ã o n o s a j u d a n e s t e p a r t i c u l a r : e l a só n o s
a p o n t a o n d e e c o m o o u t r a s p esso as c o m e ç a r a m , e a té o n d e c h e g a r a m . D iz-nos q u e
o u tr o s j á c o n s t r u í r a m u m q u a d r o te ó r ic o — talvez n ã o m u i t o b o m , m a s q u e f u n ­
c io n a m a is o u m e n o s, serv in d o c o m o u m a espécie d e re d e , de sistem a de c o o rd e ­
n a d a s c o m a a j u d a d o q u a l p o d e m o s i n d i c a r as v á ria s c o m p l e x id a d e s d o m u n d o .
N ó s o e m p r e g a m o s v e rific a n d o -o e c ritic a n d o -o : é assim q u e nosso c o n h e c i m e n to
p ro g rid e .

E n e c e ss á rio t o m a r c o n s c iê n c ia d e q u e , dos dois m o d o s p rirtc ip a is c o m q u e


se p o d e e x p l i c a r o d e s e n v o l v i m e n t o c i e n t í f i c o , u m t e m p o u c a i m p o r t â n c i a e o o u t r o
é m u ito im p o r ta n te . O p rim e iro e x p lic a a ciên c ia p e la a c u m u la ç ã o d o c o n h e c im e n ­
t o ; c o m o u m a b i b l i o t e c a o u m u s e u e m e x p a n s ã o : à m e d i d a q u e m a i s li v r o s s ã o
a c u m u la d o s , o co n h e c im e n to a c u m u la d o a u m e n ta . O o u tro te m a ver com a
c rític a : cresce p o r u m p rocesso q u e é m a is re v o lu c io n á rio d o q u e a sim p les a c u ­
m u l a ç ã o - u m m é to d o q u e d estró i, a lte ra tu d o — inclusive seu in s tr u m e n to m a is
i m p o r t a n t e , a lin g u a g e m e m q u e sã o f o r m u la d o s nossos m ito s e te o ria s.

E in te re s s a n te n o ta r q u e o p rim e iro m é to d o , o c u m u la tiv o , é m u ito m e n o s


i m p o r t a n t e d o q u e se p e n s a . N a c i ê n c i a h á m u i t o m e n o s a c u m u l a ç ã o d e c o n h e ­
c i m e n t o d o q u e u m a t r a n s f o r m a ç ã o r e v o l u c io n á r ia d e te o r ia s c ie n tíf ic a s . E ste é u m
p o n t o m u i t o in t e r e s s a n te , p o r q u e à p r i m e i r a v ista p o d e r i a m o s p e n s a r q u e a t r a ­
d i ç ã o fosse m a i s i m p o r t a n t e p a r a o c r e s c i m e n t o c u m u l a t i v o d o c o n h e c i m e n t o d o
q u e p a r a o p r o c e s s o r e v o l u c i o n á r i o . É e x a t a m e n t e o c o n t r á r i o : se a c i ê n c i a se
p u d e ss e d esen v o lv er p e la m e r a a c u m u la ç ã o , a p e r d a d a tr a d iç ã o cien tífic a n ã o
r e p r e s e n t a r i a m u i t o , p o r q u e s e r i a s e m p r e p o s s ív e i r e c o m e ç a r a a c u m u l a ç ã o . A l g o se
p e r d e r í a , m a s a p e r d a n ã o seria g ra v e . C o n t u d o , c o m o a c iê n c ia p r o g r id e
p r i n c i p a l m e n t e p e la tr a d i ç ã o d e a lt e r a r seus m ito s tr a d ic io n a is , p re c is a m o s c o ­
m e ç a r c o m a l g u m a c o i s a : se n ã o h o u v e r n a d a p a r a t r a n s f o r m a r , n ã o c h e g a r e m o s a
p a r te a lg u m a . P recisam o s p o r t a n to d e p o n to s d e p a r t i d a p a r a a c iên c ia: novos
m i t o s e u m a n o v a t r a d i ç ã o q u e n o s le v e a a l t e r á - l o s c r i t i c a m e n t e . M a s esses i n í c io s
são m u ito ra ro s. D a in v e n ç ã o d a lin g u a g e m d escritiv a — o m o m e n to e m q u e o
h o m e m se h u m a n i z o u , p o d e r i a m o s d i z e r — a o i n í c i o d a c i ê n c i a p a s s o u m u i t o t e m ­
p o . D u r a n t e esse p e r í o d o , a l i n g u a g e m — f u t u r o i n s t r u m e n t o c i e n t í f i c o — se
desenvolveu, ju n ta m e n te co m o m ito — to d a lin g u a g e m in c o rp o ra e p reserva
156 CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

in ú m e ro s m ito s e te o ria s, a té m e s m o n a s u a e s t r u tu r a g r a m a tic a l — e c o m a t r a ­


d i ç ã o , q u e u s a a l i n g u a g e m p a r a d e s c r e v e r f a t o s , e x p l i c á - l o s e d i s c u t i r s o b r e e les.
( V o l t a r e m o s a e ss e p o n t o . ) Se a t r a d i ç ã o d e s a p a r e c e s s e , n ã o se t e r i a p o d i d o i n i c i a r o
processo d e a c u m u la ç ã o : fa lta ria o in s tru m e n to a p ro p r ia d o .

D ep o is d e e x e m p lif ic a r c o m a f u n ç ã o d a tr a d iç ã o n u m c a m p o esp ecial -


o c ien tífico — , tr a ta r e i a g o ra , c o m u m c e rto a tr a s o , d o p r o b le m a d a te o ria s o ­
c i o l ó g i c a d a t r a d i ç ã o . Q u e r o r e f e r i r - m e o u t r a ve z a o D r . J . A . C . B r o w n , q u e m e
p r e c e d e u h o j e : e l e d is s e m u i t a s c o i s a s r e l e v a n t e s p a r a o a s s u n t o ; p o r e x e m p l o : d is se
q u e q u a n d o f a l t a d i s c i p l i n a n u m a f á b r i c a “os o p e r á r i o s f i c a m a n s i o s o s e a t e r r o ­
r i z a d o s ” . N ã o p r e t e n d o d i s c u t i r a n e c e s s i d a d e d a d i s c i p l i n a — esse n ã o é o m e u
t e m a . M a s p o d e r i a f o r m u l á - l o d a s e g u i n t e f o r m a : se o s t r a b a l h a d o r e s n ã o t e m n a d a
a q u e se a t e r , c o m p o r t a m - s e c o m a n s i e d a d e e t e r r o r . O u , d e m o d o m a i s g e r a l : s e m ­
p re q u e nos e n c o n tr a m o s e m a m b ie n te n a tu r a l o u social a resp eito d o q u a l sab em o s
tã o p o u c o q u e n ã o p o d e m o s p re v e r o q u e vai a c o n te c e r , nos t o r n a m o s ansiosos e
a t e r r o r i z a d o s . Isso a c o n t e c e p o r q u e se n ã o p o d e m o s p r e v e r o q u e a c o n t e c e r á — p o r
e x e m p l o , c o m o as p e s s o a s se c o m p o r t a r ã o — n ã o n 5 s é p o s s ív e l r e a g i r r a c i o n a l m e n ­
t e . Isso a c o n t e c e s e j a e m a m b i e n t e n a t u r a l o u s o c i a l .

A d is c ip lin a p o d e a ju d a r as pessoas a e n c o n t r a r seu c a m in h o n u m a d e t e r ­


m i n a d a s o c i e d a d e ; m a s e s t o u c e r t o d e q u e o D r . B r o w n c o n c o r d a r á e m q u e e l a é só
u m a d a s c o i s a s q u e p o d e t e r esse e f e i t o ; h á o u t r a s , e s p e c i a l m e n t e i n s t i t u i ç õ e s e
t r a d i ç õ e s , q u e p o d e m d a r às p e s s o a s u m a i d é i a c l a r a s o b r e o q u e e s p e r a r e c o m o
a g i r . Isso é m u i t o i m p o r t a n t e : o q u e c h a m a m o s d e “ v i d a s o c i a l ” só e x i s t e q u a n d o
p o d e m o s s a b e r c o m c o n f i a n ç a q u e c e r t a s c o is a s e c e r t o s a c o n t e c i m e n t o s t ê m d e t e r ­
m i n a d a f o r m a , e n ã o p o d e m ser d ife re n te s.

N este p a r tic u la r , é co m p re e n sív e l o p a p e l d e s e m p e n h a d o p e la tr a d iç ã o n a


n o s s a v i d a . Se o m u n d o s o c i a l n ã o a p r e s e n t a s s e u m c o e f i c i e n t e e l e v a d o d e o r d e m ,
g r a n d e n ú m e r o d e r e g u l a r i d a d e s às q u a is n o s p o d e m o s a ju s ta r , v iv e r ia m o s ansio so s,
f r u s t r a d o s e a t e r r o r i z a d o s . A s i m p l e s e x i s t ê n c i a d e ta i s r e g u l a r i d a d e s ta l v e z se ja
m a is i m p o r t a n t e d o q u e seus m é r ito s e d e m é r ito s p e c u lia re s . N ecessárias e n q u a n to
r e g u l a r i d a d e s , elas são t r a n s m i t i d a s c o m o tr a d iç õ e s — s e ja m o u n ã o ra c io n a is ,
n e c e s s á r i a s , b o a s , b e l a s , e t c . A v id a so c ia l e x ig e a tr a d iç ã o .

P o r isso, a c r i a ç ã o d e t r a d i ç õ e s t e m u m a f u n ç ã o s e m e l h a n t e à c r i a ç ã o d e
te o ria s. As te o ria s c ie n tífic a s são in s tr u m e n to s c o m os q u a is p r o c u r a m o s im p o r a l ­
g u m a o r d e m a o caos e m q u e vivem os, d e m o d o a to r n á -lo r a c i o n a l m e n t e p re d i-
z ível. N ã o q u e r o f a z e r e s t a a f i r m a t i v a c o m o u m p r o n u n c i a m e n t o f i l o s ó f i c o d e g r a n ­
d e p r o f u n d id a d e — estou a p e n a s d izen d o q u a l é u m a das fun çõ es p rá tic a s das
t e o r i a s . D a m e s m a f o r m a , a c r i a ç ã o d e t r a d i ç õ e s ( c o m o d e b o a p a r t e d a s n o s s a s leis)
t e m a m e s m a f u n ç ã o : i m p o r u m a c e r t a o r d e m e p re v is ib ilid a d e a o m u n d o social
e m q u e v i v e m o s . N ã o s e r i a poss ív e l a g i r r a c i o n a l m e n t e se n ã o t i v é s s e m o s i d é i a d e
c o m o o m u n d o r e s p o n d e r ía a nossas açõ es. T o d a a ç ã o r a c io n a l p r e s u m e u m sistem a
d e re f e r ê n c ia s q u e r e a g e d e m o d o p e lo m e n o s p a r c i a l m e n t e prev isív el. D a m e s m a
f o r m a ç o m o a in v e n ç ã o d e m ito s e te o ria s te m u m a f u n ç ã o n o c a m p o d a c iê n c ia
social — a ju d a r - n o s a o r d e n a r os ev en to s d a n a t u r e z a — , a c r ia ç ã o d e tra d iç õ e s
cria o rd e m n a so cied ad e.

A a n a lo g i a vai m a is lo n g e : é preciso l e m b r a r q u e a g r a n d e i m p o r t â n c i a dos


m ito s , n o m é t o d o c ie n tífic o , consistia n a su a c a p a c i d a d e d e to r n a r-s e o b je to s d e
RUMO A UMA TEORIA RACIONAL DA TRADIÇÃO 157

c r í t i c a : d e p o d e r s o f r e r m o d i f i c a ç õ e s . A s s i m t a m b é m as t r a d i ç õ e s t ê m a i m p o r t a n t e
fu n ç ã o d u p la d e n ã o só c r ia r u m a c e r ta o r d e m o u e s t r u tu r a s o c ia l, m a s t a m b é m d e
n o s d a r a l g c p a r a c r i t i c a r e a l t e r a r . E s te é u m p o n t o d e c i s i v o p a r a o s r a c i o n a l i s t a s e
os r e f o r m i s t a s s o c i a i s . D e s t e s ú l t i m o s , m u i t o s a c h a m q u e s e r i a p o s s ív e l “ l i m p a r a
te la ” d o m u n d o social (c o m o d ir ia P la tã o ), p a r t in d o p a r a a c o n s tru ç ã o d e u m novo
m u n d o , se m n a d a a p r o v e i ta r d o a n tig o . E sta é u m a id é ia se m s e n tid o , im possível
d e p ô r e m p r á t i c a . Se c o n s t r u i r m o s u m m u n d o n o v o a p a r t i r d o n a d a n ã o h á r a z ã o
p a r a c r e r q u e s e r i a u m m u n d o fe liz . N ã o h á m o t i v o p a r a p e n s a r q u e u m m u n d o
a r t i f i c i a l m e n t e p l a n e j a d o s e r i a m e l h o r d o q u e o m u n d o q u e t e m o s p a r a v iv e r . P o r
q u e r a z ã o s e r i a m e l h o r ? U m e n g e n h e i r o n ã o c r i a u m m o t o r a p e n a s c o m p l a n o s ; e le
o d e s e n v o l v e a p a r t i r d e m o d e l o s a n t e r i o r e s , q u e m o d i f i c a c o n s t a n t e m e n t e . Se o
m u n d o social q u e c o n h e c e m o s [ d e s a p a r e c e s s e , c o m su as tra d iç õ e s , s u b s titu íd o p o r
u m m u n d o n ovo a rtific ia lm e n te c o n c e b id o , n ã o ta r d a ría m o s a p re c isa r re a ju stá -lo .
O r a , se esses r e a j u s t e s s ã o n e c e s s á r i o s , p o r q u e n ã o c o m e ç a r r e a j u s t a n d o o m u n d o e m
q u e viv em o s? N ã o i m p o r t a c o m o ele é, e o n d e d e v e m o s c o m e ç a r . S e rá m u i t o m a i s r a ­
z o á v e l a c e i t a r o q u e t e m o s , p a r a f a z e r a s a l t e r a ç õ e s p o s s ív e is — d e s t e m o d o t e r e m o s
c erteza p e lo m e n o s a resp e ito d a s d ific u ld a d e s e dos d efeito s a c o rrig ir. S a b e re m o s,
q u a n d o m e n o s , q u e h á c e r t a s c o is a s q u e s ã o m á s e p r e c i s a m s e r m u d a d a s . N o b ra v e
n e w w o r ld c o n c e b i d o c o m o u m p r o j e t o i n t e i r a m e n t e n o v o p a s s a r á a l g u m t e m p o a t é
q u e p o s s a m o s p e r c e b e r o q u e e le t e m d e e r r a d o . A l é m d is s o , a i d é i a d a “ l i m p e z a d a
t e l a ” ( q u e e s t á a s s o c i a d a a u m a t r a d i ç ã o r a c i o n a l i s t a e q u i v o c a d a ) é i m p o s s í v e l ; se f o s ­
se p o s s ív e l p r a t i c á - l a , e l i m i n a n d o a t r a d i ç ã o , s e r í a m o s ( e l i m i n a d o s c o m e l a - n ó s e
to d a s as nossas id é ia s e p la n o s p a r a o fu t u r o .

C o m e f e i t o , os p l a n o s n ã o t ê m q u a l q u e r s e n t i d o n u m v á c u o s o c i a l , m a s
so m e n te d e n tr o d e u m c o n ju n to d e tra d iç õ e s e in stitu içõ es — m ito s , po esia e
valo res — q u e n a s c e m d a s o c ie d a d e e m q u e vivem os, fo ra d a q u a l p e r d e m a sig ­
n i f i c a ç ã o . A s s i m , u m a vez d e s a p a r e c i d a a t r a d i ç ã o , o p r ó p r i o i n c e n t i v o p a r a r e f a z e r
o m u n d o d e s a p a r e c e r á ta m b é m . N o c a m p o d a ciê n c ia , p o r e x e m p lo , h a v e ría u m a
p e r d a t r e m e n d a se d i s s é s s e m o s : “ N ã o e s t a m o s f a z e n d o m u i t o p r o g r e s s o . A b a n ­
d o n e m o s t o d o s os c o n h e c i m e n t o s c i e n t í f i c o s j á a c u m u l a d o s p a r a r e c o m e ç a r d e
n o v o . ” O r a c i o n a l s e r i a c o r r i g i r e r e v o l u c i o n a r esses c o n h e c i m e n t o s . P o d e - s e c r i a r
u m a n o v a t e o r i a , m a s e l a s e r á c r i a d a p a r a s o l u c i o n a r os p r o b l e m a s q u e a a n t i g a
te o r ia n ã o p ô d e resolver.

E x a m i n a m o s b r e v e m e n t e a f u n ç ã o d a t r a d i ç ã o n a v id a so cial. O s re s u lta d o s
d e s s e e x a m e p o d e m a j u d a r n o s a r e s p o n d e r à i n d a g a ç ã o s o b r e c o m o s u r g e m as
t r a d i ç õ e s , c o m o s ã o t r a n s m i t i d a s e c o m o se t o r n a m e s t e r e o t i p a d a s — c o n s e q ü ê n -
c ia s n ã o d e l i b e r a d a s d e a ç õ e s h u m a n a s . P o d e m o s e n t e n d e r a g o r a p o r q u e r a z ã o as
p e s s o a s n ã o só p r o c u r a m a p r e n d e r a s leis d o s e u a m b i e n t e n a t u r a l ( e n s i n a n d o - a s a
o u t r a s p e s s o a s , m u i t a s vez e s s o b a f o r m a d e m i t o s ) , m a s t a m b é m as t r a d i ç õ e s d o a m ­
b i e n t e s o c i a l ; p o r q u e a s p e s s o a s ( e s p e c i a l m e n t e a s c r i a n ç a s e os p r i m i t i v o s ) t ê m a
in c lin a ç ã o de a d e r ir a tu d o o q u e possa r e p r e s e n ta r u m a u n if o r m i d a d e n a s u a v id a.
P o r isso a c e i t a m o s m i t o s e as u n i f o r m i d a d e s d o s e u p r ó p r i o c o m p o r t a m e n t o — e m
p rim e iro lu g a r, p o rq u e te m e m a ir re g u la rid a d e e a m u d a n ç a ; e m s e g u n d o lu g ar,
p o rq u e d e sejam c a u sa r aos o u tro s u m a im p ressão d e ra c io n a lid a d e e p rev isib ili­
d a d e , n a e s p e r a n ç a t a l v e z d e l e v a r o s o u t r o s a a g i r d a m e s m a f o r m a . T e n d e m a s s im
a c r i a r t r a d i ç õ e s e a r e a f i r m a r as t r a d i ç õ e s q u e e n c o n t r a m , a j u s t a n d o - s e c u i d a ­
d o s a m e n te a elas e in s istin d o — c o m a n s i e d a d e — e m q u e os o u tr o s a ja m d o m e s ­
m o m o d o . E a s s im q u e s u r g e m e p e r s i s t e m o s t a b u s t r a d i c i o n a i s .
158 CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

Isto e x p li c a e m p a r t e a i n t o l e r â n c i a a l t a m e n t e e m o c i o n a l q u e c a r a c t e r i z a
t o d o t r a d i c i o n a l i s m o — u m a i n t o l e r â n c i a c o n t r a a q u a l os r a c i o n a l i s t a s s e m p r e se
le v a n ta ra m , ju s tific a d a m e n te . C o n tu d o , vem os a g o ra q u e ao a ta c a r a tra d iç ã o em
si m e s m a , o s r a c i o n a l i s t a s c o m e t i a m u m e r r o . P o d e m o s d i z e r , t a l v e z , q u e o q u e r e a l -
m e n te q u e r ia m e ra s u b s titu ir a in to le râ n c ia dos tra d ic io n a lista s p o r n o v a tr a d iç ã o
— u m a t r a d iç ã o d e to le râ n c ia . Q u e r ia m , d e m o d o m a is g e ra l, s u b s titu ir o resp eito
a o s t a b u s p e l a a t i t u d e q u e c o n s i s t e e m c o n s i d e r a r c r i t i c a m e n t e as t r a d i ç õ e s e x i s t e n ­
tes, s o p e s a n d o s e u s m é r i t o s e d e m é r i t o s , s e m e s q u e c e r o m é r i t o q u e r e p r e s e n t a o
f a t o d e s e r e m t r a d i ç õ e s e s t a b e l e c i d a s . M e s m o q u e se t e r m i n e p o r r e j e i t a r u m a
tra d iç ã o , p a r a su b stitu í-la p o r o u tr a m e lh o r (q u e a c re d ita m o s ser m e lh o r) p r e c i­
sam o s te r c o n sc iê n c ia d o fa to d e q u e to d a c rític a social — e to d o a p e rf e iç o a m e n to
so cial — p r e c i s a r e l a c io n a r - s e c o m u m q u a d r o d e t r a d iç õ e s so ciais, e m q u e a l g u m a s
são c r itic a d a s c o m a a j u d a d e o u tr a s — d a m e s m a f o r m a c o m o to d o p ro g re sso c i e n ­
tí f i c o p r e c i s a s e r f e i t o d e n t r o d e u m c o n t e x t o d e t e o r i a s c i e n t í f i c a s , a l g u m a s d a s
q u ais são c ritic a d a s c o m a a ju d a d e o u tra s.

M u i t o d o q u e d i s s e m o s a q u i a r e s p e i t o d a s t r a d i ç õ e s p o d e r i a s e r a p l i c a d o às
i n s t i t u i ç õ e s — d e f a t o , a s i n s t i t u i ç õ e s se a s s e m e l h a m s o b m u i t o s p o n t o s d e v is ta às
tra d iç õ e s . C o n tu d o , p a re c e desejável ( e m b o r a p o ssiv e lm e n te n ã o m u ito im p o r ta n te )
p re s e rv a r a d if e r e n ç a q u e p o d e m o s e n c o n t r a r n o e m p r e g o o r d i n á r io dessas d u a s
p a l a v r a s . T e r m i n a r e i e s t a c o n f e r ê n c i a p r o c u r a n d o s a l i e n t a r a s s e m e l h a n ç a s e as
d i f e r e n ç a s e n t r e esses d o i s t i p o s d e e n t i d a d e s s o c i a is .

N ã o c r e i o q u e s e j a b o a p r á t i c a d i s t i n g u i r os t e r m o s “t r a d i ç ã o ” e “ i n s t i t u i ç ã o ”
m e d ia n te d efin içõ es f o r m a is ,5 m a s é preciso e x p lic a r o seu uso c o m e x e m p lo s. N a
v e r d a d e , j á o fiz, m e n c i o n a n d o e s c o l a s , a p o l í c i a e a b o l s a d e v a l o r e s c o m o i n s t i ­
tu iç õ e s so ciais; o in te re ss e p e la in v e s tig a ç ã o c ie n tíf ic a , a a t i t u d e c r ític a d o c ie n tis ta ,
a to le râ n c ia ou in to le râ n c ia d o tra d ic io n a lista — ou do ra c io n a lista — , co m o
t r a d i ç õ e s . A s i n s t i t u i ç õ e s t ê m d e f a t o m u i t o e m c o m u m c o m as t r a d i ç õ e s : e n t r e
o u t r a s c o is a s , p r e c i s a m s e r a n a l i s a d a s p e l a s c i ê n c i a s s o c i a i s e m t e r m o s d e i n d i v í d u o s
— suas ações, a titu d e s , c re n ç a s , e x p e c ta tiv a s e in te r-re la ç õ e s . M as p o d e m o s d izer
q u e nos in c lin a m o s a f a la r e m in stitu içõ es s e m p re q u e u m g r u p o o b serv a u m c o n ­
j u n t o d e n o r m a s , o u e x e c u t a d e t e r m i n a d a s f u n ç õ e s s o c i a is p r im a f a c i e ( p o r e x e m ­
p l o : e n s i n a r , p o l i c i a r o u v e n d e r ) , p a r a s e r v i r a d e t e r m i n a d o s p r o p ó s i t o s s o c i a is
p r im a f a c i e ( p o r e x e m p l o : a p r o p a g a ç ã o d o c o n h e c i m e n t o , a d e f e s a c o n t r a a
v i o l ê n c i a o u a f o m e ) ; f a l a m o s e m “t r a d i ç õ e s ” p r i n c i p a l m e n t e p a r a d e s c r e v e r c e r t a
u n i f o r m i d a d e d e a t i t u d e s o u d e c o m p o r t a m e n t o s , o b j e t i v o s , v a l o r e s o u g o s t o s . As
tra d iç õ e s p o ssiv elm en te e ste ja m asso ciad as m a is d e p e r to às pessoas, suas p r e f e r ê n ­
c i a s , m e d o s e e s p e r a n ç a s , d o q u e as i n s t i t u i ç õ e s . A s s u m e m u m a p o s i ç ã o i n t e r ­
m e d i á r i a , p o r a s s i m d i z e r , e n t r e as p e s s o a s e a s i n s t i t u i ç õ e s , e m t e r m o s d e t e o r i a
so cial.

Essa d if e r e n ç a p o d e ser e l u c i d a d a f a z e n d o r e f e r ê n c ia a o q u e t e n h o c h a m a d o
d e “a m b i v a lê n c i a d a s in s titu iç õ e s so c ia is” — o fa to d e q u e e m c e rta s c irc u n s tâ n c ia s
u m a in s titu iç ã o social p o d e f u n c i o n a r d e m o d o q u e c o n tr a s ta m a r c a d a m e n t e c o m
s u a f u n ç ã o “ a p r o p r i a d a ” o u p r im a fa c i e . D i c k e n s e s c r e v e u m u i t o s o b r e a p e r v e r s ã o
dos in te rn a to s; já tem a c o n te cid o q u e e m lu g a r d e p ro te g e r a p o p u la ç ã o c o n tra a
v io lên cia, u m a fo rç a p o lic ia l a a m e a c e e a g r i d a . D a m e s m a f o r m a , a in s titu iç ã o d a 5

5 — V id e u m a c r í t i c a d e s s a p r á t i c a n o c a p . 11 d e T h e O pen Society an d its E nem ies.


RUMO A UMA TEORIA RACIONAL DA TRADIÇÃO 159

oposição parlamentar, que tem como uma das suas funções prim a f a c i e i m p e d i r o
governo de malversar recursos públicos, funciona em alguns países
os de o u tra fo r­
m a , co m o in s tru m e n topara divisão proporcional de despojos.
a A a m b iv a lê n c ia
d a s i n s t i t u i ç õ e s s o c i a is e s t á r e l a c i o n a d a c o m s e u c a r á t e r — c o m o f a t o d e q u e
e x e c u t a m c e r t a s f u n ç õ e s p r im a f a c i e e só p o d e m s e r c o n t r o l a d a s p o r p e s s o a s ( f a ­
líveis). E ssa a m b i v a l ê n c i a p o d e s e m d ú v i d a s e r m u i t o r e d u z i d a p o r m e i o d e “ f r e i o s ”
in s titu c io n a is c u i d a d o s a m e n t e o r g a n i z a d o s , m a s é im p o ssív el e l i m i n á - l a c o m p l e ­
ta m e n te . O f u n c io n a m e n to d a s in stitu içõ es — e d a s fo rtale zas — d e p e n d e d a s p e s ­
so a s q u e as s e r v e m . O m e l h o r q u e p o d e m o s f a z e r p a r a a s s e g u r a r o c o n t r o l e i n s t i ­
t u c i o n a l é d a r u m a m a i o r o p o r t u n i d a d e à q u e l a s p e s s o a s (se e x i s t i r e m ) q u e p r e t e n ­
d a m d ir ig i-la s p a r a su a f u n ç ã o social “a p r o p r i a d a ” .

N e s t e p o n t o as t r a d i ç õ e s p o d e m e x e r c e r u m a f u n ç ã o i m p o r t a n t e i n t e r m e ­
d i a n d o e n t r e p esso as e in s titu iç õ e s. E b e m v e r d a d e q u e as tr a d iç õ e s t a m b é m p o d e m
ser p e rv e r tid a s . H á a lg o c o m o a a m b i v a lê n c i a in s titu c io n a l q u e descreví q u e t a m ­
b é m as a t a c a . C o n t u d o , c o m o seu c a r á t e r é m e n o s i n s t r u m e n t a l d o q u e o d a s in s ­
t i t u i ç õ e s , e ss a a m b i v a l ê n c i a a s a f e t a m e n o s . P o r o u t r o l a d o , s ã o q u a s e t ã o i m p e s ­
so a is q u a n t o as i n s t i t u i ç õ e s — m e n o s p e s s o a i s e m a i s p r e d i z í v e i s d o q u e os i n d i v í ­
d u o s q u e c o n d u z e m as i n s t i t u i ç õ e s . T a l v e z se p o s s a d i z e r q u e o f u n c i o n a m e n t o
“ a p r o p r i a d o ” d a s i n s t i t u i ç õ e s , a l o n g o p r a z o , d e p e n d e s o b r e t u d o d e ta i s t r a d i ç õ e s :
s ã o e l a s q u e d ã o às p e s s o a s ( q u e c h e g a m e v ã o ) u m a b a s e e u m a s e g u r a n ç a d e
p r o p ó s i t o s q u e lh e s p e r m i t e r e s i s t i r à c o r r u p ç ã o . A t r a d i ç ã o p o d e p r o j e t a r a l g o d a
a t i t u d e p essoal d o se u f u n d a d o r m u i t o a l é m d a s u a v id a p esso al.

D o p o n t o d e v is ta d o e m p r e g o t í p i c o d o s d o i s t e r m o s , p o d e - s e d i z e r q u e u m a
d a s c o n o t a ç õ e s d o t e r m o “ t r a d i ç ã o ” é a a l u s ã o 'a im ita ç ã o c o m o s u a o r i g e m o u o
m o d o c o m o é t r a n s m i t i d a . Essa c o n o t a ç ã o e s tá a u s e n t e d o t e r m o “i n s t i t u i ç ã o ” —
u m a in stitu ição p o d e o u n ã o o rig in ar-se n a imitação; p o d e o u n ã o c o n ti n u a r e x is­
t i n d o p o r m e i o d a i m i t a ç ã o . V a l e n o t a r q u e a l g u m a s d a s c o is a s q u e c o n h e c e m o s
c o m o “tra d iç õ e s " p o d e m ser descrita s ta m b é m c o m o “in stitu içõ es” — e s p e c ia lm e n te
c o m o in s titu iç õ e s d a q u e l a s o c ie d a d e , o u d a q u e l e g r u p o social e m q u e a t r a d i ç ã o é
g e r a lm e n te se g u id a . P o d e ria m o s d izer, p o r t a n to , q u e a tr a d iç ã o ra c io n a lis ta . o u a
a d o ç ã o d e u m a a t i t u d e c rític a , é in s titu c io n a l e n tr e os cie n tista s (o u q u e a tr a d iç ã o
d e n ã o p isar o ad v e rs á rio c a íd o é — o u q u a s e — u m a in s titu iç ã o in g lesa). D a m e s ­
m a f o r m a , p o d e m o s d iz e r q u e , e m b o r a tr a n s m i t i d a tr a d i c i o n a l m e n t e , q u a l q u e r l í n ­
g u a f a l a d a p o r u r n p o v o é u m a i n s t i t u i ç ã o — m a s a p r á t i c a d e u s a r o “t u " e m vez
d e “v o c ê " , p o r e x e m p l o , é u m a t r a d i ç ã o ( e m b o r a p o s s a s e r i n s t i t u c i o n a l , d e n t r o d e
d e te rm in a d o grupo).

A lg u n s dos p o n to s e m q u e to q u e i a q u i p o d e m ser e x e m p lific a d o s a d ic io n a l-


m e n t e , se c o n s i d e r a r m o s c e r t o s a s p e c t o s d e s s a i n s t i t u i ç ã o s o c i a l q u e é a l i n g u a g e m .
K. B ü h l e r d i s t i n g u i u tr ê s a s p e c t o s n a f u n ç ã o p r i m o r d i a l d a l i n g u a g e m — a c o ­
m u n ica çã o ·. 1) a f u n ç ã o e x p r e s s i v a , d e s t i n a d a a m a n i f e s t a r os p e n s a m e n t o s e
e m o ç õ e s d e q u e m f a l a ; 2) a f u n ç ã o d e e s t í m u l o o u s i n a l i z a ç ã o , d e s t i n a d a a p r o ­
v o c a r c e r t a s r e a ç õ e s e m q u e m o u v e ( p o r e x e m p l o , as r e s p o s t a s l i n g ü í s t i c a s ) ; e 3) a
f u n ç ã o d e s c r i t i v a . Esses t r ê s a s p e c t o s s ã o s e p a r á v e i s n a m e d i d a e m q u e c a d a u m
d e le s d e m o d o g e r a l e s t á a c o m p a n h a d o p e l o p r e c e d e n t e , m a s n ã o p r e c i s a f a z e r - s e
a c o m p a n h a r d o s u c e s s iv o . O s d o is p r i m e i r o s se a p l i c a m t a m b é m a l i n g u a g e n s
a n im a is , m a s o te r c e ir o p a r e c e ser c a r a c t e r i s ti c a m e n t e h u m a n o .

E po ss ív e l (e n a m i n h a o p i n i ã o n e c e s s á r i o ) a c r e s c e n t a r u m q u a r t o a s p e c t o ,
e s p e c i a l m e n t e i m p o r t a n t e d o n o ss o p o n t o d e v is ta — a f u n ç ã o a r g u m e n ta tiv a o u
160 CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

e x p lic a tiv a , r e l a c i o n a d a c o m a a p r e s e n t a ç ã o e c o m p a r a ç ã o d e a r g u m e n t o s e e x ­
p l i c a ç õ e s . 6*7 U m a c e r t a l i n g u a g e m p o d e t e r a s t r ê s p r i m e i r a s f u n ç õ e s , m a s n ã o a
q u a r t a — p o r e x e m p l o , a l i n g u a g e m u s a d a p o r u m a c r i a n ç a q u e se e n c o n t r a a i n d a
n a f a s e d e só “ n o m e a r ” a s c o i s a s . 7 N a t u r a l m e n t e , c o m o a l i n g u a g e m e n q u a n t o i n s ­
t i t u i ç ã o t e m t o d a s e ss a s f u n ç õ e s , e l a p o d e s e r a m b i v a l e n t e . P o d e s e r u s a d a , p o r
e x e m p lo , p a r a o c u lta r em o çõ e s o u p e n s a m e n to s ta n t o q u a n to p a r a ex pressá-los; o u
p a r a r e p r i m i r u m a r g u m e n t o , e m vez d e e s t i m u l a r a d i s c u s s ã o . H á d i f e r e n t e s
t r a d i ç õ e s 11a s s o c i a d a s a c a d a u m a d e s s a s f u n ç õ e s — p o r e x e m p l o , d e m o d o m a r c a n ­
t e , n a I t á l i a e n a I n g l a t e r r a ( o n d e t e m o s a t r a d i ç ã o d o u n d e r s ta t e m e n t ) a p r o p ó s i t o
d a f u n ç ã o e x p r e s s i v a . Isso é r e a l m e n t e i m p o r t a n t e n o c o n c e r n e n t e à s d u a s f u n ç õ e s
c a ra c te ris tic a m e n te h u m a n a s d a lin g u a g e m — a d escritiv a e a a r g u m e n ta tiv a . C o m
r e s p e i t o à p r i m e i r a , p o d e m o s d i z e r q u e a l i n g u a g e m é u m “v e í c u l o d a v e r d a d e ” ,
e m b o r a p o ssa ser t a m b é m u m v e íc u lo d a fa ls id a d e . S e m u m a t r a d i ç ã o q u e t r a b a lh e
contra e s s a a m b i v a l ê n c i a , e m f a v o r d o u s o da l i n g u a g e m c o m o o b j e t i v o d a d e s ­
c r i ç ã o co rreta ( p e l o m e n o s n o s c a s o s e m q u e n ã o h a j a u m a f o r t e r a z ã o p a r a m e n ­
t i r ) , a f u n ç ã o d e s c r i t i v a d a l i n g u a g e m d e s a p a r e c e r á , p o r q u e as c r i a n ç a s n ã o
c h e g a r i a m a a p r e n d ê - l a . T a lv e z m a i s v alio sa a i n d a é a tr a d i ç ã o q u e t r a b a l h a c o n ­
tr a a a m b iv a lê n c ia a ss o c ia d a à f u n ç ã o a r g u m e n ta t iv a — c o n t r a o m a l uso d a l i n ­
g u a g e m q u e consiste n a u tiliz a ç ã o d e p s e u d o - a r g u m e n t o s e d e p r o p a g a n d a . E a
tr a d iç ã o e a d iscip lin a do fa la r e do p e n s a r c o m clareza — a tr a d iç ã o d a crítica e
d a razão .

O s i n i m i g o s m o d e r n o s d a r a z ã o q u e r e m d e s t r u i r e ss a t r a d i ç ã o , d e s t r u i n d o e
p e rv e rte n d o a fu n ç ã o a r g u m e n ta tiv a d a lin g u a g e m e p o ssiv elm en te ta m b é m a f u n ­
ção d escritiv a: v o lta n d o -se r o m a n ti c a m e n t e p a r a suas fu n çõ es e m o tiv a s — a e x p re s ­
siva ( f a l a - s e m u i t o h o j e e m “e x p r e s s ã o ” ) e ta l v e z a s i n a l i z a d o r a . S e n t i m o s e ss a t e n ­
d ê n c ia , d e f o r m a m u i t o c la r a , e m c e rto s tip o s a tu a i s d e p r o s a , d e p o e sia e d e f i­
lo so fia — u m a filo so fia q u e n ã o a r g u m e n t a p o r q u e n ã o lid a c o m p r o b l e m a s s u s ­
c e p t í v e i s d e d i s c u s s ã o . O s n o v o s i n i m i g o s d a r a z ã o s ã o à s vezes a n t i t r a d i c i o n a l i s t a s ,
e m b u s c a d e m é t o d o s i n o v a d o r e s e e f i c a z e s d e a u t o - e x p r e s s ã o o u d e “c o m u n i c a ç ã o ” ,
c o m o t a m b é m p o d e m s e r t r a d i c i o n a l i s t a s q u e e x a l t a m a s a b e d o r i a d a t r a d i ç ã o lin -
g ü í s t i c a . N o s d o i s c a s o s s a b e m o s q u e t ê m i m p l í c i t a u m a t e o r i a d a l i n g u a g e m q u e só
lev a e m c o n t a a p r i m e i r a e talv ez a s e g u n d a d a s su a s fu n ç õ e s — n a p r á t i c a o q u e
fazem é p reco n izar a fuga d a razão e d a g ra n d e trad ição d a resp o n sab ilid ad e in ­
telectu al.

6 — C o m p a r e c o m o c a p . 12. O m o tiv o p o r q u e c o n s id e r o a f u n ç ã o a r g u m e n t a t i v a ig u a l à e x p lic a ti v a


n ã o p o d e s e r e x a m i n a d o a q u i ; f u n d a m e n t a - s e n a a n á l is e ló g ic a d a e x p l i c a ç ã o e n o s e u r e l a c i o n a m e n t o
c o m a d e d u ç ã o (o u a rg u m e n to ).

7 — U m m a p a c o m u m é t a m b é m e x e m p l o d e d e s c r iç ã o n ã o a r g u m e n t a t i v a — e m b o r a p o s s a s e r u s a d o
p a r a a p o ia r u m a r g u m e n to , d e n tr o d e lin g u a g e m a rg u m e n ta tiv a .
5. R etom o aos Pré-Socráticos*

HSiDAj í f l DLkAI. DO PARA


“B a c k to M e th u s e la h ” , d e S h a w , p r o p u n h a u m p r o g r a m a p r o g r e s s i s t a c o m ­
p a r a d o c o m “De V o lta a T a l e s ” o u “De V o lta a A n a x i m a n d r o ” — o q u e S h aw nos

aiBUO TECA CENTRAL


o f e r e c i a e r a u m a p r i m o r a m e n t o i n e s p e r a d o d a n o s s a v i d a ; a l g o q u e se p o d i a s e n t i r
p a i r a n d o n o a r, p e lo m e n o s n a é p o c a e m q u e e screv ia. T e m o n a d a te r a o fe re c e r
q u e e s t e j a a t u a l m e n t e p a i r a n d o n o a r ; n a v e r d a d e , p r o p o n h o o r e t o r n o à r a c io ­
n a lid a d e f r a n c a e s i m p l e s d o s p r é - s o c r á t i c o s . O n d e e s t á e ssa t ã o d i s c u t i d a “ r a ­
c io n a lid a d e ” d o s p ré-so crático s? E m p a r te , n a s im p lic id a d e e o u s a d ia d a s i n d a ­
g a ç õ e s q u e f o r m u l a v a m ; d e a c o r d o c o m a m i n h a tese, e s tá s o b r e t u d o n a a t i t u d e
c rític a q u e , c o m o p r o c u r a r e i d e m o n s t r a r , foi d e s e n v o lv id a o r i g i n a l m e n t e p e lo s p e n ­
sa d o re s irô n ico s.

A s p e r g u n t a s q u e os p r é - s o c r á t i c o s p r o c u r a v a m r e s p o n d e r e r a m f u n d a m e n ­
ta l m e n t e cosm o ló g icas, m a s h a v ia t a m b é m q u e stõ e s relativ as à te o ria d o c o n h e ­
c im e n to . A c r e d it o q u e a filo so fia p r e c is a r e t o r n a r à c o s m o lo g ia e à s im p le s te o r ia
d o c o n h e c i m e n t o . H á p e l o m e n o s u m p r o b l e m a f i l o s ó f i c o p e l o q u a l t o d o s os h o ­
m e n s p e n s a n t e s se i n t e r e s s a m : o p r o b l e m a d e c o m o c o m p r e e n d e r o m u n d o o n d e
v iv e m o s (e , p o r t a n t o , a n ó s m e s m o s , q u e f a z e m o s p a r t e d e l e , e n o s s o p r ó p r i o c o ­
n h e c im e n to ) . C re io q u e to d a c iê n c ia é c o sm o ló g ic a ; p a r a m i m o interesse d a f i­
lo s o f ia r e s i d e , n ã o m e n o s q u e o d a c i ê n c i a , e x c l u s i v a m e n t e n a s u a o u s a d a t e n t a t i v a
d e a c r e s c e n ta r a o c o n h e c i m e n to q u e te m o s d o m u n d o , e à te o r ia a re s p e ito desse
c o n h e c im e n to . In teresso-m e p o r W ittg e n s te in , p o r e x e m p lo , n ã o p o r c a u sa d a sua
f i lo s o f ia l i n g ü í s t i c a , m a s p o r q u e o T r a c ta tu s é u m t r a t a d o d e c o s m o l o g i a ( e m b o r a
g rosseiro) e su a te o ria d o c o n h e c i m e n to e stá e s t r e it a m e n t e a ss o c ia d a à su a c o s­
m o lo g ia.

A m e u v er, t a n t o a c iê n c ia q u a n t o a filo so fia d e i x a m d e ser a t r a e n t e s a p a r ­


t i r d o m o m e n t o q u e d e s i s t e m d e s s a b u s c a — q u a n d o se t o r n a m e s p e c i a l i d a d e s e
d e i x a m d e v e r e a d m i r a r os e n i g m a s d o m u n d o . A e s p e c i a l i z a ç ã o p o d e s e r u m a
g r a n d e t e n t a ç ã o p a r a o c ie n tis ta , m a s p a r a o filósofo é u m p e c a d o m o r t a l .

* O r a ç ã o d o p r e s i d e n t e d a S o c ie d a d e A r is to té lic a , p r o n u n c i a d a n a s e s s ã o d o d i a 13 d e o u t u b r o d e 1 9 5 8 .
P u b l i c a d a p e la p r i m e i r a vez n o s Proceedings o f th e A ristotelian Society, N .S . 5 9 , 1 9 5 8 -9 . A s n o t a s e o
a p ê n d i c e f o r a m a c r e s c e n t a d o s n a p r e s e n t e v e r s ã o im p r e s s a .
162 CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

II

F alo , n este tr a b a lh o , c o m o a m a d o r , u m a m a n t e d a e s p lê n d id a estó ria dos


p ré-so crático s. N ã õ so u esp ecialista n e m p e rito : sin to -m e to ta lm e n te d eslo cad o
q u a n d o u m e n t e n d i d o n o a s s u n t o se p õ e a d i s c u t i r s o b r e q u a i s a s p a l a v r a s o u e x ­
pressões q u e H e rá c lito te ria o u n ã o u s a d o . P o ré m , q u a n d o u m e n te n d i m e n t o s u b s ­
titu i u m a b o n ita estó ria , b a s e a d a no s tex to s m a is an tig o s q u e c o n h e c e m o s, p o r
o u tr a q u e n ã o te m s e n tid o , (pelo m e n o s p a r a m im ) , sin to q u e m e s m o u m a m a d o r
p o d e l e v a n t a r - s e p a r a d e f e n d e r u m a a n t i g a t r a d i ç ã o . E x a m i n a r e i , p o r t a n t o , os a r ­
g u m e n t o s a p r e s e n ta d o s pelos e n te n d i d o s , e s u a c o n sistê n c ia . E u m a o c u p a ç ã o
i n o f e n s i v a ; e se a l g u m e n t e n d i d o o u q u a l q u e r o u t r a p e s s o a se d e r a o t r a b a l h o d e
r e f u ta r m in h a crítica, sen tir-m e-ei g ra to e h o n r a d o . 1

T r a t a r e i d a s te o ria s c o sm o ló g icas d o s p ré -s o c rá tic o s , m a s a p e n a s n a m e d i d a


e m q u e se r e l a c i o n a m c o m o d e s e n v o l v i m e n t o d o p r o b le m a d a m u d a n ç a , e n a
m e d i d a e m q u e s ã o n e c e s s á r i a s p a r a c o m p r e e n d e r a v is ã o — p r á t i c a e t e ó r i c a d o s
p ré-so crático s c o m re la ç ã o ao p r o b le m a d o c o n h e c im e n to .

É d e f a t o i n t e r e s s a n t e o b s e r v a r c o m o s u a p r á t i c a e t e o r i a d o c o n h e c i m e n t o se
l i g a m às p e r g u n t a s c o s m o l ó g i c a s e t e o l ó g i c a s q u e p r o p u n h a m . S u a t e o r i a d o c o ­
n h e c i m e n t o n ã o se f u n d a m e n t a v a e m p e r g u n t a s a s s i m : “ C o m o p o s s o s a b e r q u e is to
é u m a l a r a n j a ? ” ; o u : “C o m o posso s a b e r q u e o o b je to q u e n e ste m o m e n t o p e r c e b o é
u m a l a r a n j a ? ” P a r t i a d e p r o b l e m a s c o m o : “D e q u e f n o d o p o d e m o s s a b e r q u e o
m u n d o é f e i t o d e á g u a ? ” ; o u : “ C o m o p o d e m o s s a b e r se o m u n d o e s t á r e p l e t o d e
d e u s e s ? ” ; o u a i n d a : “ C o m o p o d e m o s a p r e n d e r a l g u m a c o i s a s o b r e os d e u s e s ? ”

H á u m a c re n ç a g e n e ra liz a d a (r e m o ta m e n te a trib u ív el, creio, à in flu ên cia d e


F r a n c i s B a c o n ) , d e q u e se d e v e e s t u d a r os p r o b l e m a s d a t e o r i a d o c o n h e c i m e n t o e m
re la ç ã o ao c o n h e c i m e n to de u m a la r a n j a , e n ã o d o co sm o s. D isc o rd o dessa c re n ç a ,
e u m dos objetivos p rin c ip a is d o p re s e n te t r a b a l h o é e x p o r a lg u n s dos m o tiv o s q u e
m e le v a ra m a tal p o sição . É b o m le m b r a r q u e nossa c iên c ia o c id e n ta l — p a re c e
n ã o h a v e r o u t r a — n ã o c o m e ç o u c o le c io n a n d o o b se rv a ç õ e s s o b re la r a n ja s , m a s sim
f o r m u l a n d o te o ria s o u s a d a s s o b re o m u n d o .

III

A ep istem o lo g ia e m p irista tra d ic io n a l e a h isto rio g ra fia tra d ic io n a l d a c iê n ­


cia fo r a m p r o f u n d a m e n t e in f lu e n c ia d a s p e lo m ito d e B a c o n d e q u e to d a c iê n c ia
c o m e ç a p o r observações p a r a d ep o is p r o c e d e r v a g a ro s a e c a u te lo s a m e n te à f o r ­
m u l a ç ã o d e t e o r i a s . E s t u d a n d o - s e os p r é - s o c r á t i c o s m a i s a n t i g o s , a p r e n d e - s e q u e os
fatos são m u ito d iferen tes. E n c o n tra m o s id éias o u s a d a s e fas c in a n te s, a lg u m a s das
q u ais são an te c ip a ç õ e s e stra n h a s e m e sm o su rp re e n d e n te s de re su lta d o s m o d e rn o s,
e n q u a n t o o u t r a s s ã o t o t a l m e n t e e r r ô n e a s ; m a s a m a i o r i a d e s s a s i d é i a s , e as m e ­
lh o re s, n a d a tê m a ver c o m a o b s e rv a ç ã o . T o m e m o s p o r e x e m p lo a lg u m a s das
t e o r i a s s o b r e a f o r m a e a p o s i ç ã o d a T e r r a . S a b e m o s q u e T a l e s a f i r m o u : “a T e r r a é
s u s te n ta d a p e la á g u a , so b re a q u a l n a v e g a c o m o u m n av io ; q u a n d o d iz e m o s q u e
h o u v e u m t e r r e m o t o , o m u n d o foi e s t r e m e c i d o p e l o m o v i m e n t o d a á g u a . ” S e m

1 — C o m p r a z e r , r e g is tr o q u e o S r. G . S. K irk d e f a t o r e s p o n d e u a o m e u d is c u r s o . V id e o apêndice a e s te
c a p i tu lo .
RETORNO AOS PRÉ-SOCRÁTICOS 163

d ú v id a , T a le s h a v ia o b se rv a d o te rre m o to s e o b a la n ç o d e u m n av io , a n te s d e c h e g a r
à s u a t e o r i a . M a s s e u p r o p ó s i t o e r a e x p lic a r a s u s t e n t a ç ã o o u s u s p e n s ã o d a T e r r a e
os t e r r e m o t o s p e l a c o n j e c t u r a d e q u e a T e r r a f l u t u a v a s o b r e a á g u a ; p a r a e ss a c o n ­
j e c t u r a ( q u e , d e m a n e i r a t ã o e s t r a n h a , a n t e c i p a - s e à t e o r i a m o d e r n a d o s d e s liz e s
c o n tin e n ta is), n ã o p o d e ria e n c o n tr a r fu n d a m e n to e m suas observações.

N ã o devem os esq u ecer q u e a fu n ç ã o d o m ito de B aco n é e x p lic a r a razão


p e l a q u a l a s a s s e r ç õ e s c i e n t í f i c a s s ã o v e r d a d e ir a s , a f i r m a n d o q u e a o b s e r v a ç ã o é a
“fo n t e v e r d a d e ir a " d o c o n h e c i m e n t o c i e n t í f i c o . A p a r t i r d o m o m e n t o q u e p e r c e ­
b e m o s q u e t o d a s as a s s e r ç õ e s c i e n t í f i c a s s ã o h i p ó t e s e s , s u p o s i ç õ e s o u c o n j e c t u r a s , e
q u e ( i n c l u s i v e as c o n j e c t u r a s d e B a c o n ) se t ê m m o s t r a d o f a l s a s , o m i t o d e B a c o n
p a ss a a se r ir r e le v a n te . N ã o t e m s e n tid o a r g u m e n t a r q u e as c o n je c tu r a s d a c iê n c ia
— t a n t o as q u e j á f o r a m r e f u t a d a s q u a n t o a s q u e a i n d a a c e i t a m o s — se f u n d a m e n ­
tam n a observação.

D e q u a l q u e r m o d o , a b e l a t e o r i a d e T a l e s s o b r e os t e r r e m o t o s e a s u s p e n s ã o
d a T e r r a , in s p iro u -se , q u a n d o m e n o s , n u m a a n a lo g i a e m p í r i c a o u d e r i v a d a d a o b ­
s e r v a ç ã o , e m b o r a n ã o d i r e t a m e n t e n e s t a ú l t i m a . P o r é m , n e m m e s m o is to se p o d e
dizer, a p r o p r i a d a m e n t e , a p ro p ó s ito d e o u t r a te o r ia , p ro p o s ta p o r u m i m p o r t a n t e
d is c íp u lo d e T a le s — A n a x i m a n d r o . C o m efeito, a te o ria d e A n a x i m a n d r o so b re a
s u s p e n s ã o d a T e r r a a i n d a é a l t a m e n t e i n t u i t i v a , e m b o r a n ã o se u t i l i z e m a i s d e
a n a l o g i a s a s s o c i a d a s à o b s e r v a ç ã o ; p o d e m o s , d e s c r e v ê - l a c o m o “c o n t r a - o b s e r v a -
cio n a l” . De a c o rd o c o m A n a x im a n d ro , “ a T erra... n ã o está s u s te n ta d a p o r
n a d a , p e r m a n e c e n d o e sta c io n á ria p o r q u e está s itu a d a a u m a d is tâ n c ia ig u al d e
t o d a s a s d e m a i s c o is a s . S u a f o r m a é . . . c o m o a d e u m t a m b o r . . . C a m i n h a m o s s o b r e
u m a d a s su p e rfíc ie s p la n a s , e n q u a n t o a o u t r a e stá s i tu a d a d o la d o o p o s t o .” O t a m ­
b o r , o b v i a m e n t é , é u m a a n a lo g i a d e r i v a d a d a o b s e r v a ç ã o . M a s a id é ia d a livre s u s ­
p en são d a T e r r a no espaço e a e x p licação d e sua e sta b ilid a d e n ã o tê m a n a lo g ia em
t o d o o c a m p o d os fa to s o b serv áv eis.

N a m i n h a o p in iã o , a id éia d e A n a x im a n d r o é u m a d as m a is ousadaS j r e ­
v o lu cio n árias e p o rte n to sa s d e to d a a h istó ria d o p e n s a m e n to . A b riu c a m in h o p a ra
a s t e o r i a s d e A r i s t a r c o e C o p é r n i c o . M a s o p a s s o d a d o p o r A n a x i m a n d r o foi a i n d a
m a is d ifícil e a u d a c io s o q u e o d e A r is ta r c o e C o p é r n ic o . A o v is u a liz a r a T e r r a li­
v r e m e n t e s u s p e n s a e m p l e n o e s p a ç o , e a f i r m a r q u e e l a “p e r m a n e c e i m ó v e l d e v i d o à
e q ü id i s t â n c ia o u a o e q u il íb r io ” (c o m o diz A ristóteles, p a r a f r a s e a n d o A n a x i m a n ­
d r o ) , a t e o r i a a n t e c i p a a t é c e r t o p o n t o a p r ó p r i a c o n c e p ç ã o d e f>Iewton d e f o r ç a s
g r a v i t a c i o n a i s i m a t e r i a i s e in v isív e is,2

IV

C o m o c h e g o u A n a x i m a n d r o a essa n o t á v e l t e o r i a ? C e r t a m e n t e n ã o m e d i a n t e
o b se rv a ç õ e s, m a s p e la ra z ã o . E la é u m a t e n t a ti v a d e s o l u c io n a r u m p r o b l e m a p a r a

2 -- O p r ó p r i o A r is tó te le s e n t e n d i a A n a x i m a n d r o d e s s a m a n e i r a ; e le fa z u m a c a r i c a t u r a d a s u a te o r ia
" e n g e n h o s a p o r é m f a ls a " d e s c r e v e n d o a s i t u a ç ã o d e u m h o m e m i g u a l m e n t e f a m i n t o e s e d e n to , m a s
s i t u a d o à m e s m a d i s t â n c i a t a n t o d a c o m i d a c o m o d a b e b i d a , e p o r t a n t o in c a p a z d e se m o v e r . (De Caeto,
2 9 5 b 3 2 . E s s a id é i a to r n o u - s e c o n h e c i d a c o m o n o m e d e " o a s n o d e B u r i d a n " . ) N a c o n c e p ç ã o d e A r i s ­
tó te le s , o h o m e m é m a n t i d o e m e q u i l í b r i o p o r f o r ç a s d e a t r a ç ã o im a t e r i a i s e in v is ív e is, s e m e l h a n t e s à s d e
N e w to n ; é i n t e r e s s a n t e o b s e r v a r q u e e s te c a r á t e r “ a n i m i s t a " o u " o c u lto " d a s f o r ç a s fo i f o r t e m e n t e ( e m ­
b o r a e r r o n e a m e n t e ) s e n ti d o c o m o u m d e f e ito p e lo p r ó p r i o N e w t o n e p o r s e u s o p o n e n te s , c o m o B e r k e le y .
164 CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

o q u a l T a le s , seu m e s tre , f u n d a d o r d a E scola M ile s ia n a o u J ô n i c a j á h a v ia p ro p o s to


u m a so lu ção . C o n je c tu ro , p o r ta n to , q u e A n a x im a n d r o c h e g o u à su a te o ria p ela
c rític a d a te o ria d e T a le s . C reio q u e m i n h a c o n je c tu ra p o d e a p o ia r-se n a c o n si­
d e r a ç ã o d a e s tru tu r a d a te o ria d e A n a x im a n d r o .

P o ssiv elm en te, A n a x im a n d r o a r g u m e n to u c o n tr a a te o ria d e T a le s (s eg u n d o


a q u a l a T e r r a f l u tu a s o b re á g u a ) d e a c o r d o c o m as se g u in te s lin h a s: a e x p lic a ç ã o
de T a le s p e rte n c e a u m c e rto tip o de te o ria q u e , q u a n d o c o n siste n te m e n te d e s e n ­
v o l v i d a , l e v a a u m r e g r e s s o i n f i n i t o . Se e x p l i c a m o s a p o s i ç ã o e s t á v e l d a T e r r a p e l a
s u p o s iç ã o d e q u e e stá su s p e n sa s o b re a á g u a — f l u t u a n d o n o o c e a n o ( O kea n o s) —
n ã o p re c is a re m o s e x p lic a r a e s ta b ilid a d e d o o c e a n o p o r u m a h ip ó tese a n á lo g a ? M as
isso s i g n i f i c a r i a e n c o n t r a r u m a p r i m e i r a s u s t e n t a ç ã o p a r a o o c e a n o , e u m a s e g u n d a
s u s t e n t a ç ã o p a r a a p r i m e i r a . E sse m é t o d o d e e x p l i c a ç ã o é i n s a t i s f a t ó r i o : p r i m e i ­
r a m e n te , s o lu c io n a m o s o p r o b le m a c r ia n d o u m o u tr o a n á lo g o ; e m se g u n d o lu g a r,
p o d e - s e p e r c e b e r (e s te é u m m o t i v o m e n o s f o r m a l e m a i s i n t u i t i v o ) q u e e m q u a l ­
q u e r s is te m a desse tip o , f o r m a d o p o r s u p o r te s e a p o io s , q u a l q u e r f a l h a p o d e lev ar
ao co lap so d e to d a a c o n stru ç ã o .

S e n tim o s assim , in t u i t i v a m e n t e , q u e a e s t a b il id a d e d o m u n d o n ã o p o d e e s ta r
g a r a n t i d a p o r u m sistem a d e a p o io e su p o rte s. A n a x im a n d r o , p o r o u tr o la d o , a p e la
p a r a a sim e tria in te r n a o u e s tru tu r a l d o m u n d o , q u e asseg u ra q u e n ã o h á d ireção
p r e f e r e n c ia l p a r a os co lap so s. A p lic a o p r in c íp io d e q u e q u a n d o n ã o e x is te m d i ­
fe re n ç a s n ã o p o d e h a v e r m u d a n ç a . D essa m a n e i r a , e x p lic a a e s ta b ilid a d e d a T e r r a
p e l a d i s t â n c i a i g u a l q u e a s e p a r a d e t o d a s a s d e m a i s c o is a s .

A p a r e n t e m e n t e , este e r a o a r g u m e n t o d e A n a x i m a n d r o . E im p o r t a n t e n o t a r
q u e ele e lim in a , e m b o r a n ã o m u i t o c o n s c i e n te m e n te o u d e m a n e i r a m u i to c o e re n te ,
a id é i a d a d ir e ç ã o a b s o l u ta — o s e n tid o a b s o l u to d e “p a r a c i m a ” o u “p a r a b a i x o ” .
Isso n ã o só é c o n t r á r i o a q u a l q u e r e x p e r i ê n c i a , m a s t a m b é m s i n g u l a r m e n t e d i f í c i l d e
se r c o m p r e e n d i d o . A o q u e p a r e c e , A n a x i m e n e s i g n o r o u esse f a t o e o p r ó p r i o
A n a x im a n d r o n ã o o c o m p r e e n d e u p le n a m e n te . D e fa to , a id éia d a e q u id istâ n c ia de
t o d a s as c o is a s d e v e r i a t e r l e v a d o à c o n c e p ç ã o d a T e r r a c o m o u m g l o b o . M a s e le
a c r e d i ta v a q u e a f o r m a d a T e r r a c o r r e s p o n d ia à d e u m ta m b o r , c o m superfícies
p l a n a s s u p e r i o r e i n f e r i o r . N o e n t a n t o , o c o m e n t á r i o “C a m i n h a m o s s o b r e u m a d a s
su p erfícies p la n a s , e n q u a n to a o u tr a está s itu a d a d o la d o o p o s to ” c o n té m a in si­
n u a ç ã o de q u e n ã o h á su p erfície su p e rio r a b so lu ta , m a s d e q u e , ao c o n trá rio , a
s u p e r f í c i e s o b r e a q u a l c a m i n h a m o s é a q u e p o d e m o s c o n s id e r a r s u p e r i o r .

Q u e im p e d iu A n a x im a n d r o d e c h e g a r à te o ria d e q u e a T e r r a é u m g lo b o e
n ã o u m t a m b o r ? N ã o p o d e h a v e r m u i t a d ú v i d a : p e l a e x p e r iê n c ia d a o b se rva ç ã o ,
e le a p r e n d e u q u e a s u p e r f í c i e d a T e r r a é d e m o d o g e r a l p l a n a . P o r t a n t o , foi u m
a r g u m e n t o e sp e c u la tiv o e c rític o , a d iscu ssão c rític a e a b s t r a t a d a te o r ia d e T a le s,
q u e q u a s e o levou à v e r d a d e i r a te o ria so b re o f o r m a t o d a T e r r a ; e a e x p e riê n c ia d a
observação que o d e sen cam in h o u .

H á u m a o b jeçã o ev id e n te à teo ria d a sim etria de A n a x im a n d r o , se g u n d o a


q u a l a T e r r a é e q u i d i s t a n t e d a s d e m a i s c o is a s n o e s p a ç o . P o d e - s e p e r c e b e r fa c il
m e n t e a a s s i m e t r i a d o u n i v e r s o p e l a e x i s t ê n c i a d o S ol e d a L u a , e e s p e c i a l m e n t e
p e l o f a t o d e q u e à s vezes a m b o s n ã o e s t ã o m u i t o d i s t a n t e s u m d o o u t r o , d e m a n e i r a
R E T O R N O AOS PRÉ SO C R A T IC O S 165

q u e se s i t u a m d o m e s m o l a d o d a T e r r a , e n q u a n t o n ã o h á n a d a d o o u t r o p a r a m a n ­
t e r o e q u i l í b r i o . P a r e c e q u e A n a x i m a n d r o s o l u c i o n o u e ss a o b j e ç ã o c o m o u t r a t e o r i a
a u d a c i o s a — a t e o r i a d a n a t u r e z a o c u l t a d o S ol, d a L u a e d e m a i s c o r p o s c e le s te s .

E le v i s u a l i z a a s b o r d a s d e d u a s i m e n s a s r o d a s d e c a r r u a g e m g i r a n d o e m
t o r n o d a T e r r a : u m a d e l a s é 27 vezes m a i o r q u e a T e r r a ; a o u t r a , 18 v e z e s. C a d a
u m a dessas b o rd a s (ou tu b o s c irc u la re s) e stá c h e ia d e fogo e te m u m r e s p ira d o u r o
a t r a v é s d o q u a l e l e p o d e s e r v is to . A esses d o i s o r i f í c i o s d e n o m i n a m o s , r e s p e c t i v a ­
m e n t e , Sol e L u a . O r e s t o d a r o d a é in v i s í v e l, p r e s u m i v e l m e n t e p o r s e r e s c u r o ( o u
n e v o e n t o ) e d i s t a n t e . As e s t r e l a s f i x a s ( e s u p o s t a m e n t e os p l a n e t a s ) s ã o t a m b é m
o r i f í c i o s e m r o d a s m a i s D r ó x i m a s d a T e r r a q u e a s d o Sol e d a L u a . A s r o d a s d a s e s ­
tre la s fix a s g i r a m e m to r n o d e u m e ix o c o m u m ( q u e h o je c h a m a m o s o eix o d a
T e r r a ) e f o r m a m u m a esfera e m seu re d o r , d e m a n e i r a a satisfazer g ro s s e ira m e n te
o p o s t u l a d o d a e q u i d i s t â n c i a d a T e r r a . Isso f a z d e A n a x i m a n d r o t a m b é m o f u n ­
d a d o r d a teo ria das esfera s. ( S o b r e a r e l a ç ã o e n t r e e s t a e a s r o d a s o u c í r c u l o s , v i d e
A r i s t ó t e l e s , D e C aelo, 2 8 9 b l 0 a 2 9 0 b l 0 ) .

VI

N ã o h á d ú v i d a d e q u e as t e o r i a s d e A n a x i m a n d r o s ã o c r í t i c a s e e s p e c u l a t i v a s
e n ão e m p íricas: c o n sid e ra d a s co m o m o d o s d e e n x e rg a r a v e rd a d e , suas e sp e c u ­
laçõ es a b s t r a t a s e c rític a s f o r a m m a is ú te is d o q u e a e x p e r i ê n c ia d a o b s e r v a ç ã o o u
a a n alo g ia.

LJm d i s c í p u l o d e B a c o n p o d e r í a a r g u m e n t a r , c o n t u d o , q u e e ss a é e x a t a m e n ­
te a r a z ã o p e l a q u a l A n a x i m a n d r o n ã o e r a u m c i e n t i s t a . P r e c i s a m e n t e p o r isso,
f a l a m o s e m filo s o fia , e n ã o e m c iê n c ia g r e g a a n t i g a . T o d o s s a b e m q u e a f i l o s o f i a é
e s p e c u l a t i v a . T o d o s s a b e m t a m b é m q u e a c i ê n c i a só a p a r e c e q u a n d o o m é t o d o e s ­
p e c u la tiv o é s u b s titu íd o p elo m é t o d o d a o b s e rv a ç ã o , e a d e d u ç ã o p e la in d u ç ã o .

E sse a r g u m e n t o c o n s i s t e o b v i a m e n t e n a te s e d e q u e a s t e o r i a s , p o r d e f i n i ç ã o ,
s ã o c ie n tífic a s se t ê m o r i g e m e m o b s e r v a ç õ e s , o u n o s c h a m a d o s “ p r o c e d i m e n t o s i n ­
d u t i v o s " . A c r e d i t o , n o e n t a n t o , q u e p o u c a s t e o r i a s f ís ic a s p o d e m s e r d e f i n i d a s d e s s e
modo. T am bém n ã o v e jo q u a l a i m p o r t â n c i a d a o r i g e m e m r e l a ç ã o a esse p r o ­
b le m a . O m ais im p o r ta n te de u m a te o ria é su a c a p a c id a d e de e x p licar, d e e n f r e n ­
t a r c r í t i c a e t e s te s . A q u e s t ã o d a o r i g e m , d e c o m o se c h e g o u à t e o r i a se j a p o r
" p r o c e d im e n to in d u tiv o " , c o m o d iz e m a lg u n s , o u p e la in tu iç ã o — p o d e ser e x ­
t r e m a m e n te in te re ss a n te p a r a u m b ió g ra fo o u p a r a q u e m in v e n to u a teo ria, m as
p o u c o te m a ver c o m seu p a d r ã o o u c a r á t e r cien tífico .

V II

Q u a n t o aos p ré -so c rá tic o s, s u s te n to q u e h á u m a c o n ti n u id a d e p e rf e ita e n tr e


s u a s t e o r i a s e os d e s e n v o l v i m e n t o s p o s t e r i o r e s d a f í s i c a . A m e u v e r , p o u c o i m p o r t a
q u e s e j a m c h a m a d o s d e filó s o f o s , p r é - c i e n t i s t a s o u c i e n t i s t a s . M a s a v e r d a d e é q u e
a t e o r i a d e A n a x i m a n d r o a b r i u c a m i n h o p a r a as t e o r i a s d e A r i s t a r c o , C o p é r n i c o .
K e p l e r e G a l i l e u . E l a n ã o a p e n a s “i n f l u e n c i o u " os p e n s a d o r e s p o s t e r i o r e s ; “ i n f l u ê n ­
cia é u m a c a te g o ria m u ito su p erficial. D iria, m a is a p r o p r ia d a m e n te , q u e a
re a liz a ç ã o d e A n a x i m a n d r o te m v a lo r in trín s e c o , c o m o u m a o b r a d e a r t e . A lé m
d is s o , p o s s i b i l i t o u r e a l i z a ç õ e s p o s t e r i o r e s , i n c l u s i v e as d o s g r a n d e s c i e n t i s t a s m e n ­
cio n a d o s .
166 CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

M a s as t e o r i a s d e A n a x i m a n d r o n ã o s ã o f a l s a s , e p o r t a n t o n ã o c i e n t í f i c a s ?
A d m it o q u e s e ja m falsas; m a s o m e s m o a c o n te c e c o m m u i t a s te o r ia s, b a s e a d a s e m
in ú m e r a s e x p e riê n c ia s e ac e ita s a té re c e n t e m e n t e p e la c iê n c ia m o d e r n a ; e m b o r a
r e c o n h e c id a s c o m o falsas, n in g u é m p e n s a r ia e m n e g a r seu c a r á t e r c ie n tífic o . (U m
e x e m p l o s e ria a te o r ia d e q u e as p r o p r i e d a d e s q u ím ic a s típ ic a s d o h id r o g ê n io p e r ­
t e n c e m a u m só t i p o d e á t o m o — o m a i s le v e d e t o d o s . ) J á h o u v e h i s t o r i a d o r e s d a
ciên c ia q u e te n d i a m a c o n s id e ra r n ã o cien tífic a (o u m e s m o su p ersticio sa) q u a lq u e r
t e o r i a q u e n ã o fo s se m a i s a c e i t a n a é p o c a e m q u e e s c r e v i a m ; e ss a a t i t u d e , n o e n ­
ta n t o , é in s u s te n tá v e l. U m a te o ria falsa p o d e ser u m a re a liz a ç ã o tã o im p o r t a n t e
q u a n t o u m a t e o r i a v e r d a d e i r a . A l é m d is s o , m u i t a s t e o r i a s f a l s a s t ê m s i d o m a i s ú te i s
n a b u s c a d a v e r d a d e d o q u e a lg u m a s te o ria s m e n o s in te re s s a n te s q u e sã o a in d a
ac e ita s. As te o ria s falsas, d e fa to , p o d e m ser ú te is d e div ersas m a n e i r a s ; p o d e m
su g erir, p o r e x e m p lo , m o d ificaçõ es m ais o u m e n o s ra d icais, o u e n tã o e stim u la r a
crítica. A te o ria d e T a le s d e q u e a T e r r a f lu tu a s o b re a á g u a re a p a r e c e u d e fo r m a
m o d if ic a d a e m A n a x im e n e s , e, e m é p o c a m a is re c e n te , n a te o ria d e W e g e n e r so b re
os d e sliz e s c o n t i n e n t a i s . J á d e m o n s t r e i a m a n e i r a p e l a q u a l a t e o r i a d e T a l e s e s ­
tim u lo u a crítica d e A n a x im a n d r o .

A te o ria d e A n a x im a n d r o , d e m o d o s e m e lh a n te , su g e riu u m a te o ria m o ­


d if ic a d a — a visão d o g lo b o te r r e s tr e l i v r e m e n te su s p e n so n o c e n t r o d o u n iv e rso ,
r o d e a d o p o r e s f e r a s n a s q u a i s e s t a v a m m o n t a d o s os c o r p o s c e le s te s . E s t i m u l a n d o a
c r í t i c a , l e v o u t a m b é m à t e o r i a d e q u e o b r i l h o d a L u a se d e v e a o r e f l e x o d a lu z ; à
te o r ia d e P itá g o r a s s o b re u m fogo c e n tr a l; p o r fim , a o siste m a d e m u n d o h e lio c ê n -
trico d e A ristarco e C o p é rn ic o .

V III

A c r e d i t o q u e os m i l e s i a n o s , a s s i m c o m o s e u s a n t e c e s s o r e s o r i e n t a i s , q u e v i a m
o m u n d o c o m o u m a te n d a , o c o n c e b ia m c o m o u m a espécie d e m o r a d a — a m o ­
r a d i a d e t o d a s as c r i a t u r a s , o n o s s o l a r . N ã o h a v i a , p o r t a n t o , n e c e s s i d a d e d e p e r ­
g u n t a r q u a l a s u a u t i l i d a d e , m a s s i m d e i n v e s t i g a r s u a a r q u i t e t u r a . As q u e s t õ e s
s o b r e s u a e s t r u t u r a , d e s e n h o e m a t e r i a l d e c o n s t r u ç ã o c o n s t i t u í a m os t r ê s p r o ­
b le m a s p rin c ip a is d a co sm o lo g ia m ile s ia n a . H a v ia ta m b é m o interesse esp ecu lativ o
n a o r i g e m d o m u n d o ; a q u e s t ã o d a c o s m o g o n i a . P a r e c e - m e q u e o i n t e r e s s e cos-
m o l ó g i c o d o s m i l e s i a n o s e x c e d i a m u i t o o i n t e r e s s e c o s m o g ô n i c o , e s p e c i a l m e n t e se
c o n s i d e r a r m o s a f o r t e t r a d i ç ã o c o s m o g ê n i c a , e a t e n d ê n c i a q u a s e i r r e s i s tí v e l d e
d e s c r e v e r u m a c o i s a c o n t a n d o c o m o foi f e i t a ( p o r t a n t o d e a p r e s e n t a r u m r e l a t o
co sm o ló g ic o e m f o r m a c o s m o g ô n ic a ). O interesse co sm o ló g ic o , e m c o m p a r a ç ã o
c o m o c o s m o g ô n i c o , d e v e s e r m u i t o f o r t e , se a a p r e s e n t a ç ã o d e u m a t e o r i a cos-
m o l ó g i c a se l i b e r t a m e s m o e m p a r t e , d o s o r n a m e n t o s d a c o s m o g o n i a .

A c r e d i t o q u e T a l e s foi o p r i m e i r o a d i s c u t i r a a r q u i t e t u r a d o c o s m o s — s u a
e s tru tu ra , p la n ta e m a te ria l d e co n stru ção . E m A n a x im a n d r o e n c o n tra m o s resp o s­
ta s p a r a a s t r ê s q u e s t õ e s . J á m e n c i o n e i b r e v e m e n t e s u a r e s p o s t a à q u e s t ã o d a e s ­
t r u t u r a . Q u a n t o a o p r o b l e m a d a p l a n t a d o m u n d o , ele t a m b é m a e s t u d o u e e x ­
p l i c o u , c o m o i n d i c a a a f i r m a t i v a t r a d i c i o n a l d e q u e foi o p r i m e i r o a e l a b o r a r u m
m a p a d o m u n d o . A n a x im a n d r o ta m b é m tin h a , o b v ia m e n te , u m a te o ria so b re o
m a t e r i a l d e c o n s t r u ç ã o — o “a p e i r o n ”: “i n f i n i t o ” , “ i l i m i t a d o ” , “ s e m f o r m a ” .

N o m u n d o concebido p o r A n ax im an d ro , o c o rria to d o tip o de m udanças.


O f o g o n e c e s s i t a v a d e a r e d e o r i f í c i o s p a r a v e n t i l a ç ã o — q u e à s vezes p e r m a n e c i a m
R E T O R N O AOS P R É -SO C R Á T IC O S 167

f e c h a d o s ( “ o b s t r u í d o s ” ), o q u e o a b a f a v a 3 : t a l e r a s u a t e o r i a d o s e c l i p s e s e d a s f a s e s
d a L u a . O s v e n to s e r a m re sp o n sá v e is p e la s m u d a n ç a s c li m á t ic a s 4 . H a v ia t a m b é m
v a p o r e s , q u e r e s u l t a v a m d a s e c a g e m d a á g u a e d o a r e c a u s a v a m os v e n t o s e os s o l s ­
t í c io s d o Sol e d a L u a .

T e m o s a q u i a p r i m e i r a i n s i n u a ç ã o d o q u e v i r i a a s e g u i r : o p r o b le m a g e r a l
da m u d a n ç a , q u e se t o r n o u o p r o b l e m a c e n t r a l d a c o s m o l o g i a g r e g a e l e v o u p o r
f i m , c o m L ê u c i p o e D e m o c r i t o , à le o ria g e r a l d a m u d a n ç a , a c e i t a p e l a c i ê n c i a
m o d e r n a a t é q u a s e o i n í c i o d o s é c u l o X X . (Só fo i r e j e i t a d a a p ó s o f r a c a s s o d o
m o d e lo d o é te r d e M ax w ell, u m a c o n te c im e n to h is tó ric o p o u c o n o ta d o a té 1905 )

O p r o b le m a g e r a l d a m u d a n ç a é u m p r o b l e m a f i l o s ó f i c o ; n a s m ã o s d e P a r -
m ê n i d e s e Z e n ã o q u a s e se t o r n o u u m p r o b l e m a l ó g i c o . D e q u e m a n e ir a é p o ssív e l
a m u d a n ç a , e m t e r m o s ló g i c o s ? C o m o p o d e a l g o m u d a r s e m p e r d e r s u a i d e n t i d a d e ?
Se p e r m a n e c e r n o m e s m o e s t a d o , n ã o s o f r e r á u m a m u d a n ç a ; se p e r d e r s u a i d e n ­
tid a d e , n ã o será m ais a q u ilo q u e sofreu a m u d a n ç a .

IX

A m e u ver, a h is tó ria e x c ita n te d o d e s e n v o lv im e n to d o p r o b l e m a d a m u d a n ­


ça c o r r e o risco d e f ic a r t o t a l m e n t e s o t e r r a d a p e la c r e s c e n te a c u m u l a ç ã o d e m i ­
n ú c ia s d a crítica te x tu a l. O b v ia m e n te , é u m a h is tó ria q u e n ã o p o d e ser r e la ta d a ,
e m to d a a s u a e x te n s ã o , n u m t r a b a l h o c u r t o c o m o este. R e s u m i n d o - a ao m á x i m o é
o q u e se s e g u e :

S e g u n d o A n a x im a n d r o , nosso m u n d o , nosso ed ifício c ó sm ic o é a p e n a s u m


e m i n f i n i d a d e d e m u n d o s — s e m l i m i t e s n o e s p a ç o e n o t e m p o . E sse s i s t e m a d e m u n ­
dos é e te r n o e e stá e m m o v im e n to . N ã o h á , p o r ta n to , n ecessid ad e d e e x p lic a r o
m o v im e n to , d e o te re c e r u m a te o ria geral d e m u d a n ç a (no sen tid o d o p r o b le m a e
d a te o ria g e ra is d a m u d a n ç a q u e v a m o s e n c o n t r a r e m H e rá c lito ; vide a seg u ir),
m a s s i m d e e x p l i c a r as m u d a n ç a s o r d i n á r i a s q u e o c o r r e m e m n o s s o m u n d o . A s
m u d a n ç a s m a is óbvias — d o d ia p a r a a n o ite , dos v e n to s e d o c lim a , d a s estações,
d a é p o c a d e cu ltiv o p a r a a d e c o lh e ita , d o c re s c im e n to d a s p la n t a s , a n im a is e p e s ­
soas — e stã o lig a d a s ao c o n tr a s te d e te m p e r a t u r a s , à o p o siç ã o e n tr e o frio e o c a lo r
o s e c o e o ú m i d o . A f i r m a - s e q u e “ as c r i a t u r a s v iv a s f o r a m g e r a d a s p e l a u m i d a d e
e v a p o r a d a p e l o sol . O c a l o r e o f r i o t a m b é m c o n t r i b u e m p a r a a g ê n e s e d o m u n d o :

3 — N ã o s u g i r o q u e o a b a f a m e n t o d o fo g o se d e v e s s e a o b l o q u e i o d o s p o r o s d e e n t r a d a d e a r ; d e a c o r d o
c o m a t e o r i a d ò f lo g ís tic o , p o r e x e m p l o , o fo g o p o d e r i a s e r a b a f a d o p e l a o b s t r u ç ã o d e o r if íc io s d e s a í d a
d o a r . M a s n ã o q u e r o a t r i b u i r a A n a x i m a n d r o a t e o r i a d o f lo g í s tic o o u u m a a n t e c i p a ç ã o d a s id é ia s d e
L a v o is ie r .

4 — N a f o r m a c o m o e s ta c o n f e r ê n c i a fo i o r i g i n a l m e n t e p u b l i c a d a , e s te tr e c h o p r o s s e g u ia a s s im : “ e d e
f a to p o r to d a s a s d e m a is m u d a n ç a s d e n t r o d o e d if íc io c ó s m i c o ” . B a s e a v a - m e e m Z e lle r , q u e e s c r e v e r a
( a p e l a n d o p a r a o te s t e m u n h o d e M eteor, d e A r is tó te le s , 3 5 3 b 6 ) ; “A o q u e p a r e c e , A n a x i m a n d r o e x p l i c a
o m o v im e n to d o s c o r p o s c e le s te s p e la s c o r r e n t e s d e a r r e s p o n s á v e is p e l o m o v i m e n t o g i r a t ó r i o d a s e s f e r a s
e s t e l a r e s . ” ( P h ü . d. Griechen, 5 . a e d i ç ã o , v o l. I, 1 8 9 2 , p .2 2 3 ; v id e t a m b é m p . 2 2 0 , n . ° 2; A ristarchus, d e
H e a t h , 1 9 1 3 , p . 3 3 ; e a e d i ç ã o d e L e e d e M eteoreologica, 1 9 5 2 , p . 1 2 5 .) P o r é m , n ã o d e v ia t e r i n t e r ­
p r e t a d o “ c o r r e n t e s d e a r ” c o m o “v e n t o ” , e s p e c i a l m e n t e p o r q u e Z e lle r d e v e r ia t e r u s a d o a p a l a v r a
“ v a p o r e s ” (a s “ c o r r e n t e s d e a r " s ã o e v a p o r a ç õ e s r e s u l t a n t e s d e u m p r o c e s s o d e s e c a g e m ) . E m d u a s
o c a s iõ e s , in s e r i “ v a p o r e s e ” a n t e s d e “ v e n to ” , e “ q u a s e ” a n te s d e “ t o d o s ” , n o s e g u n d o p a r á g r a f o d a s e ç ã o
ix ; n o te r c e i r o p a r á g r a f o d a s e ç ã o ix , s u b s t i t u í “ v e n to s ” p o r “ v a p o r e s ” . F iz e ss a s m u d a n ç a s p a r a f a z e r
f a c e à c r í t i c a d e G . S . K ir k , n a p á g i n a 3 3 2 d e s e u a r t i g o ( d i s c u t i d a n o a p ê n d i c e d e s te c a p í t u l o ) .
168 CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

s ã o t a m b é m r e s p o n s á v e i s p e l o s v a p o r e s e v e n t o s , c o n c e b i d o s p o r s u a vez c o m o a g e n ­
te s d e q u a s e t o d a s a s d e m a i s m u d a n ç a s .

A n a x im e n e s , d is c íp u lo e su cesso r d e A n a x i m a n d r o , d e se n v o lv e u essas id é ia s
d e t a l h a d a m e n t e . C o m o A n a x i m a n d r o , in te re sso u -se p e la o p o siç ã o e n tr e o c a lo r e o
f r i o , a u m i d a d e e a s e c u r a ; e x p l i c o u a t r a n s i ç ã o e n t r e esses o p o s t o s p o r u m a t e o r i a
d a co n d en sação e d a rarefação .

C o m o A n a x i m a n d r o , a c r e d i ta v a n o m o v i m e n t o e te r n o e n a a ç ã o d o s v en to s;
p a r e c e p ro v á v e l q u e te n h a c h e g a d o a u m dos dois p o n to s d e d is c o r d â p c i a c o m
A n a x i m a n d r o m e d i a n t e a c r í t i c a d a n o ç ã o d e q u e o a p e ir o n , e m b o r a a m o r f o e
t o t a l m e n t e s e m l i m i t e s , p o d e t e r m o v i m e n t o . S u b s t i t u i u o a p e ir o n p e l o a r — t a m ­
b é m a m o r fo e q u a s e ilim itáv el, p o ré m , d e a c o rd o c o m a a n tig a te o ria dos v ap o res
de A n a x im a n d r o , c a p a z d e m o v im e n ta r-s e e de ser o p rin c ip a l a g e n te d o m o v im e n ­
t o e d a m u d a n ç a . U m a u n i f i c a ç ã o d e i d é i a s s e m e l h a n t e s foi p r o m o v i d a p e l a t e o r i a
d e A n a x i m e n e s d e q u e “o S o l é c o n s t i t u í d o d e t e r r a , e se a q u e c e d e v i d o à r a p i d e z
d o s e u m o v i m e n t o ” . A s u b s t i t u i ç ã o d a t e o r i a a b s t r a t a d o a p e ir o n s e m l i m i t e s p e l a
te o ria d o a r, m e n o s a b s tr a ta e m a is razo áv el, p o d e ser e q u i p a r a d a à s u b s titu iç ã o
d a o u s a d a te o ria d e A n a x im a n d r o so b re a e s ta b ilid a d e d a T e r r a p ela id éia m ais
r a z o á v e l d e q u e “o a c h a t a m e n t o d a T e r r a é r e s p o n s á v e l p e l a s u a e s t a b i l i d a d e , p o i s
e la ... cobre o a r su b jacen te co m o u m a ta m p a ” . L ogo, a T e rra flu tu a no a r da m e s­
m a m a n e ir a q u e a ta m p a d e u m a p a n e la su sp en sa p elo v a p o r; a p e r g u n ta e a res­
p o sta de T a le s são re n o v a d a s e o a rg u m e n to de A n a x im a n d r o , q u e m a r c o u é p o ca,
n ã o é c o m p r e e n d id o . A n a x im e n e s é eclético , s is te m a tiz a d o r, e m p iris ta , u m h o m e m
d e sen so c o m u m . D os três g r a n d e s m ile s ia n o s , é o q u e m e n o s p r o d u z i u id é ia s r e ­
v o l u c i o n á r i a s , o q u e p o s s u i o e s p í r i t o m e n o s f i lo s ó f ic o .

O s três m ile s ia n o s v ia m o m u n d o c o m o n o ssa m o r a d i a . N e la h a v ia m o v i ­


m e n t o e m u d a n ç a , c a lo r e frio , fo g o e u m i d a d e . H a v ia fogo n a la r e ira ; so b re o
fogo, u m a c a ld e ira c o m á g u a . A casa, u m ta n to su je ita a c o rre n te s d e a r , estava
e x p o s ta aos v e n to s, m a s e ra nossa re s id ê n c ia , r e p r e s e n t a n d o u m a c e rta s e g u r a n ç a e
e sta b ilid a d e . P a r a H e rá c lito , n o e n ta n t o , a casa esta v a p e g a n d o fogo.

N a c o n c e p ç ã o d e H e r á c li to , n ã o h á e s t a b i l i d a d e n o m u n d o . “T u d o e stá e m
f l u x o , n a d a p e r m a n e c e e m r e p o u s o . ” T u d o e s t á e m f l u x o , a t é m e s m o as v ig a s , a
m a d e i r a , o m a t e r i a l d e q u e é f e i t o : o m u n d o : a t e r r a e as p e d r a s , o b r o n z e d e u m a
c a l d e i r a — t u d o e s t á e m f l u x o . A s v jg a s a p o d r e c e m , a t e r r a é l e v a d a e s o p r a d a p e l a s
c h u v a s e p e l o s v e n t o s , as p r ó p r i a s r o c h a s q u e b r a m e se d e s f a z e m , o c a l d e i r ã o d e
b r o n z e a d q u i r e u m a p á t i n a v e r d e . C o m o d is s e A r i s t ó t e l e s , “e m b o r a n o s s o s s e n t i d o s
n ã o o p e r c e b a m , t o d a s as c o is a s e s t ã o e m m o v i m e n t o o t e m p o t o d o " . A q u e l e s q u e
n ã o s a b e m d is s o a c r e d i t a m q u e só o c o m b u s t í v e l q u e i m a , e n q u a n t o o v a s o d e n t r o
d o q u a l e le q u e i m a ( c p . D K , A 4 ) p e r m a n e c e i m u t á v e l , p o i s n ã o v e m o s o v a s o
q u e i m a r . N o e n t a n t o e le t a m b é m q u e i m a ; é c o m i d o p e l o f o g o q u e a b r i g a . N ã o
vem o s nossos filh o s c r e s c e r e m , m u d a r e m e e n v e lh e c e r e m , m a s é o q u e a c o n te c e .

N ã o h á c o r p o s s ó l i d o s . As c o is a s n a v e r d a d e n ã o s ã o o b j e t o s : s ã o p r o c e s s o s ,
e s t ã o e m f l u x o . S ã o c o m o o f o g o , u m a c h a m a q u e , e m b o r a t e n h a f o r m a d e f i n id a ^ é
u m p r o c e s s o ; u m a c o r r e n t e d e m a t é r i a , u m r i o , t o d a s as c o is a s s ã o c h a m a s : o f o g o é
o p r ó p r i o m a t e r i a l d e c o n s t r u ç ã o d o n o s s o m u n d o ; a e s t a b i l i d a d e a p a r e n t e se d e v e
a p e n a s à s leis e m e d i d a s às q u a i s e s t ã o s u j e i t o s os p r o c e s s o s e m n o s s o m u n d o .
R E T O R N O AOS PRF. SO C R A T IC O S 169

E sse, c r e i o , é o r e l a t o d e H e r á c l i t o ; s u a “m e n s a g e m ” , a “p a l a v r a v e r d a d e i r a ”
(logos) q u e t o d o s d e v e m o u v i r : “ O u v i n d o n ã o a m i m , m a s a o r e l a t o v e r d a d e i r o , a
s a b e d o r i a c o n s i s t e e m a d m i t i r q u e t o d a s as c o is a s s ã o u m a só: u m f o g o e t e r n o ,
fla m e ja n d o e m o rre n d o e m g rau s d ife re n te s” .

Sei m u i t o b e m q u e , h o j e , a i n t e r p r e t a ç ã o t r a d i c i o n a l d a f i l o s o f i a d e H e ­
r á c l i t o , r e f o r m u l a d a a c i m a , g e r a l m e n t e n ã o é a c e i t a . M a s os c r í t i c o s n ã o a s u b s ­
t i t u í r a m p o r n a d a — is to é , p o r n a d a q u e t e n h a i n t e r e s s e f i lo s ó f ic o . N a s e ç ã o s e ­
g u in t e d is c u tire i b r e v e m e n te esta n o v a in t e r p r e t a ç ã o . A g o ra , q u e r o a p e n a s e n ­
fa tizar q u e , ao a p e l a r p a r a o p e n s a m e n to , a p a la v r a , o a r g u m e n to , a razão , e ao
o b s e r v a r q u e v i v e m o s n u m m u n d o d e c o is a s c u j a s m u d a n ç a s e s c a p a m a o s n o ss o s
s e n t i d o s ( e m b o r a s a ib a m o s q u e e l a s m u d a m ) , a f i l o s o f i a d e H e r á c l i t o c r i o u d o is
n o v o s p r o b l e m a s — o p r o b le m a d a m u d a n ç a e d o c o n h e c im e n to . P r o b l e m a s q u e se
t o r n a r a m u r g e n te s n a m e d i d a e m q u e seu p r ó p r io re la to d as m u d a n ç a s e r a de
d i f í c i l c o m p r e e n s ã o . M a s isso, c r e i o , se d e v e a o f a t o d e q u e e le v i a , c o m m a i s
c la r e z a q u e seu s a n te c e sso re s , as d if ic u l d a d e s e n v o lv id a s n a p r ó p r i a id é i a d a m u ­
dança.
T o d a m u d a n ç a , d e fa to , é a m u d a n ç a d e a l g u m a co isa: a m u d a n ç a p r e s ­
s u p õ e a l g o q u e m u d a . P r e s s u p õ e a i n d a q u e , d u r a n t e a m u d a n ç a , e ssa c o i s a d e v e
p e r m a n e c e r a m e s m a . P o d e m o s d izer q u e u m a fo lh a v e rd e m u d a q u a n d o a m a ­
r e l e c e , m a s n ã o p o d e m o s a f i r m a r q u e h o u v e m u d a n ç a se a s u b s t i t u i r m o s p o r u m a
fo lh a a m a r e la d a . O p rin c íp io de q u e a q u ilo q u e m u d a re té m sua id e n tid a d e é e s­
sen cial à id é ia d a m u d a n ç a . C o n tu d o , o q u e m u d a d e v e to r n a r-s e a lg o d if e re n te :
e ra v e rd e , to rn o u -se a m a r e la d o ; e ra ú m id o , to rn o u -se seco; e ra q u e n te , to rn o u -se
frio .
P o r t a n t o , to d a m u d a n ç a é a tr a n s iç ã o d e u m a coisa p a r a o u t r a q u e p ossui,
d e c e rta fo r m a , q u a lid a d e s opostas (co m o o b se rv a ra m A n a x im a n d r o e A n a x i­
m e n e s ) . A o m ú d a r , c o n t u d o , a c o is a d e v e p e r m a n e c e r i d ê n t i c a a si p r ó p r i a .

E sse é o p r o b l e m a d a m u d a n ç a , q u e l e v o u H e r á c l i t o a u m a t e o r i a q u e ( a n ­
t e c i p a n d o - s e p a r c i a l m e n t e a P a r m ê n i d e s ) d is ti n g u e e n t r e as a p a r ê n c i a s e a r e a l i ­
d a d e . “ A v e r d a d e i r a n a t u r e z a d a s c o is a s p r e f e r e e s c o n d e r - s e . U m a h a r m o n i a i n ­
visív el é m a i s f o r t e d o q u e u m a h a r m o n i a a p a r e n t e . ” E m su a a p a r ê n c ia (e p a r a n ó s )
as c o is a s s ã o o p o s t a s , m a s n a v e r d a d e (e p a r a D e u s ) s ã o i g u a i s .

“ A v id a e a m o r t e , e s t a r d e s p e r to o u a d o r m e c i d o , a j u v e n t u d e e a v elh ice,
t u d o é o m e s m o . . . p o i s o c o n t r á r i o d e u m a c o is a é a o u t r a ; e a o u t r a , i n v e r t i d a , é a
p r i m e i r a . . . O c a m i n h o q u e le v a p a r a c i m a e o q u e le v a p a r a b a i x o s ã o o m e s m o . . .
O b e m e o m a l sã o id ê n tic o s ... P a r a D eu s, tu d o é b e lo , b o m e ju s to , m a s os h o m e n s
p r e s u m e m q u e a l g u m a s c o is a s s ã o i n j u s t a s e q u e o u t r a s s ã o j u s t a s . .. N ã o p e r t e n c e à
n a t u r e z a o u c a r á t e r d o h o m e m p o ssu ir o c o n h e c i m e n to v e rd a d e iro , e sim à n a ­
tu reza d iv in a .”

A s s i m , v e r d a d e i r a m e n t e ( e m D e u s ) o s o p o s t o s se i d e n t i f i c a m : só p a r a o
h o m e m p a r e c e m n ã o s e r i d ê n t i c o s . T o d a s a s c o is a s s ã o , n a v e r d a d e , u m a só p a r t e
d o p r o c e s s o d o m u n d o , e ss a c h a m a e t e r n a .

E ssa t e o r i a d a m u d a n ç a a p e l a p a r a a r a z ã o , o logos: a “p a l a v r a v e r d a d e i r a ” .
P a ra H e rá c lito , n a d a é m ais real d o q u e a m u d a n ç a . C o n tu d o , sua d o u trin a d a
u n id a d e d o m u n d o , d a id e n tid a d e dos opostos, d a a p a rê n c ia e d a re a lid a d e ,
am e a ç a sua co n cep ção d a realid ad e d a m u d a n ç a .
170 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

D e f a t o , a m u d a n ç a é u m a t r a n s i ç ã o e n t r e d o i s o p o s t o s . P o r t a n t o , se n a v e r ­
d a d e os o p o s t o s s ã o i d ê n t i c o s , e m b o r a p a r e ç a m d i f e r i r , a m u d a n ç a e m si m e s m a
p o d e r í a s e r a p e n a s a p a r e n t e . Se n a v e r d a d e , e p a r a D e u s , t o d a s a s c o is a s s ã o u m a
só, n a v e r d a d e n ã o h á m u d a n ç a r e a l .

E s t a c o n s e q ü ê n c i a fo i d e r i v a d a p o r P a r m e n i d e s , a l u n o (p a c e B u r n e t e
o u t r o s ) d o m o n o t e í s t a X e n ó f a n e s , q u e d is s e a r e s p e ito d o D e u s ú n ic o : “E le e s tá s e m ­
p r e n o m e s m o l u g a r , n u n c a se m o v e . N ã o s e r i a p r ó p r i o q u e se d e s l o c a s s e p a r a
d ife re n te s lu g a re s , e m m o m e n to s d iv e rso s... N ã o se a s s e m e l h a a b s o l u t a m e n t e ao s
m o rta is, n o c o rp o o u n a m e n t e ” .

P a rm ê n id e s , d iscíp u lo d e X e n ó fa n e s , e n s in o u q u e o m u n d o real e ra u n o e
p e rm a n e c ia se m p re no m e sm o lu g a r, sem q u a lq u e r m o v im e n to . N ã o e ra a p ro ­
p r ia d o q u e se d e s l o c a s s e p a r a d i f e r e n t e s l u g a r e s , e m m o m e n t o s d i v e r s o s ; e n ã o se
p a r e c i a à i m a g e m q u e d e l e t i n h a m os m o r t a i s . E r a u m a u n i d a d e , s e m d i v i s ã o ,
s e m c o m p o n e n t e s , h o m o g ê n e o e im ó v e l. O m o v i m e n t o e r a im p o ssív el nesse m u n d o
— n a v e rd a d e , a m u d a n ç a e ra in ex isten te: o m u n d o d a s tr a n s fo r m a ç õ e s era il u ­
sório .

P a r m ê n id e s b a s e o u su a te o ria s o b re a r e a l id a d e im u tá v e l e m a lg o c o m o a
p r o v a ló g ic a p r o v a q u e p o d e ser f o r m u l a d a a p a r t i r d e u m a ú n i c a p r e m is s a : “o
q u e n ã o é n ã o é ” . D e la p o d e m o s in f e r ir q u e o n a d a — o q u e n ã o é — n ã o ex iste; o
q u e P a r m ê n id e s in t e r p r e ta c o m o s ig n ific a n d o q u e o v á c u o n ã o ex iste. O m u n d o e s­
t á r e p l e t o : c o n s i s t e e m u m só b l o c o , s e m d iv is õ e s — p o i s q u a l q u e r d i v i s ã o e m p a r t e s
i m p l i c a r i a a s e p a r a ç ã o d e s s a s p a r t e s p e l o v a z io . N e s s e m u n d o c o m p a c t o , o m o v i ­
m e n t o é i m p o s s í v e l . E s s a e r a a “v e r d a d e c o m p l e t a ” q u e a d e u s a r e v e l a r a a P a r ­
m ênides.
Só a c r e n ç a i l u s ó r i a n a r e a l i d a d e d o s o p o s t o s — n a e x i s t ê n c i a n ã o só d o q u e
ê, m a s t a m b é m d o q u e n ã o é — p o d e l e v a r à i l u s ã o d e u m m u n d o d e m u d a n ç a s .

A te o ria d e P a r m ê n id e s p o d e ser d e s c rita c o m o a p r im e ir a te o ria h ip o té tic o -


d e d u ti v a d o m u n d o . O s a to m is ta s a c o n s i d e r a r a m assim ; a f i r m a r a m q u e , u m a 'v e z
q u e o m o v i m e n t o n ã o e x is te , e l a é r e f u t a d a p e l a e x p e r i ê n c i a . A c e i t a n d o a v a l i d a d e
d o a r g u m e n to d e P a rm ê n id e s , in f e rir a m a fa lsid a d e de su a p rem issa a p a r tir d a
f a l s i d a d e d a c o n c l u s ã o a q u e c h e g a r a P a r m ê n i d e s . M a s isso s i g n i f i c a v a q u e o n a d a
— o v á c u o o u e s p a ç o v a z io — e x i s t e . C o n s e q ü e n t e m e n t e , n ã o h a v i a m a i s n e c e s ­
s i d a d e d e p r e s u m i r q u e “o q u e é ” — a q u i l o q u e o c u p a e s p a ç o — n ã o p o s s u i p a r t e s
d if e r e n te s , pois elas s e r ia m s e p a r a d a s p e lo v á c u o . E x iste m , p o r t a n t o , m u i ta s p a rte s ,
c a d a q u a l “ p l e n a ” : h á , n o m u n d o , p a r t í c u l a s “ p l e n a s ” , s e p a r a d a s p e l o e s p a ç o v a z io
e c a p a z e s d e m o v i m e n t a r - s e n e l e . C a d a p a r t e é “ p l e n a ” , u n a , i n d i v is ív e l e i m u t á v e l .
P o r t a n t o , e x is te m os á to m o s e o v á c u o . O s a t o m i s t a s c h e g a r a m , a s s i m , a u m a
teo ria da m u d a n ç a q u e d o m i n o u o p e n s a m e n t o c i e n t í f i c o a t é 1 9 0 0 . S e g u n d o e l a .
to d a m u d a n ç a , e s p e c ia lm e n te d e c a r á te r q u a lita tiv o , d e v e ser e x p lic a d a p e lo
m o v im e n to e s p a c ia l d e p e q u e n a s p a rte s im u tá v e is d e m a té r ia — á to m o s m o v im e n ­
ta n d o -s e no vá cu o .

O p ró x im o passo im p o r ta n te d a c o sm o lo g ia e d a te o ria d a m u d a n ç a o c o rre u


q u a n d o M a x w e ll, ao d e se n v o lv e r c e rta s id éias d e F a r a d a y , s u b s titu iu - a s p e la te o r ia
d a s im e n s i d a d e s v ariáv eis d os c a m p o s .
R E T O R N O AOS PRF.-SO CRÂ TICO S 171

Fiz u m e s b o ç o d a h i s t ó r i a d a t e o r i a d a m u d a n ç a d o s p r é - s o c r á t i c o s , d a
m a n e i r a c o m o a e n te n d o . E sto u co n sc ie n te , é c la ro , d e q u e m i n h a h is tó ria (b a s e a d a
e m P l a t ã o , A ristó teles e n a tr a d i ç ã o d o x o g r á f ic a ) , e n t r a e m c o n flito , e m m u i to s
p o n t o s , c o m a v is ã o d e a l g u n s e n t e n d i d o s i n g l e s e s e a l e m ã e s , e s p e c i a l m e n t e c o m a
d e G . S . K i r k e . J . E . R a v e n , e x p r e s s a e m s e u l i v r o T h e P re s o c ra tic P h ilo so p h e rs, d e
1957. O b v ia m e n te , n ã o posso e x a m i n a r a q u i d e t a l h a d a m e n t e seus a r g u m e n to s , e
m u ito m e n o s suas exegeses m in u c io s a s d e v ário s tre c h o s, a lg u n s d o s q u a is relev an tes
p a r a c o m p r e e n d e r as d i f e r e n ç a s e n t r e s u a i n t r e p r e t a ç ã o e a m i n h a . ( V i d e p . e . , a
d i s c u s s ã o d e K i r k e R a v e n s o b r e a q u e s t ã o d e s a b e r se h á u m a r e f e r ê n c i a a H e -
ráclito e m P a r m ê n id e s .)

D e s e jo a f i r m a r , c o n t u d o , q u e e x a m i n e i os a r g u m e n t o s a p r e s e n t a d o s e c o n
sid ero -o s p o u c o c o n v in c e n te s e f r e q ü e n t e m e n t e in ac e itá v e is.

M e n c io n a re i a p e n a s alg u n s p o n to s so b re H e rá c lito ( e m b o r a h a ja o u tro s p o n ­


to s i g u a l m e n t e i m p o r t a n t e s , c o m o os c o m e n t á r i o s s o b r e P a r m ê n i d e s ) .

H á q u a r e n t a a n o s B u r n e t c r i t i c o u a v is ã o t r a d i c i o n a l s e g u n d o a q u a l a
d o u t r i n a f u n d a m e n t a l é a d e q u e t o d a s as c o is a s e s t ã o e m f l u x o . S e u a r g u m e n t o
p r i n c i p a l ( d i s c u t i d o p o r m i m e x t e n s a m e n t e n a n o t a 2 d o 2 . ° c a p í t u l o d e m e u liv ro
O p e n S o c ie ty ), é q u e a t e o r i a d a m u d a n ç a n ã o e r a i n é d i t a , e só u m a n o v a m e n ­
s a g e m p o d e r í a j u s t i f i c a r a u r g ê n c i a c o m q u e f a l a H e r á c l i t o . Esse a r g u m e n t o
é r e i t e r a d o p o r K i r k e R a v e n , q u e e s c r e v e r a m ( p á g . 1 8 6 e s e g u i n t e s ) : “T o d o s
os p e n s a d o r e s p r é - s o c r á t i c o s , n o e n t a n t o , e s t a v a m i m p r e s s i o n a d o s p e l o p r ó p r i o
p r e d o m í n i o d a m u d a n ç a e m n o s s o m u n d o d e e x p e r i ê n c i a s ’’. S o b r e e ss a a t i t u d e ,
a f i r m e i e m O p e n S o c ie ty . “ A q u e l e s q u e s u g e r e m . . . q u e a d o u t r i n a d o f l u x o u n i v e r ­
sal n ã o e r a i n é d i t a . . . s ã o , a m e u v e r , t e s t e m u n h a s i n c o n s c i e n t e s d a o r i g i n a l i d a d e d e
H e r á c li to , pois n ã o p e r c e b e m h o je , t r a n s c o r r id o s 2 .4 0 0 a n o s , se u a s p e c to p r i n c i p a l . ”
E m p o u c a s p a la v ra s, n ã o p e rc e b e m a d if e re n ç a e n tr e a m e n s a g e m dos m ilesian o s
(“ h á f o g o n a c a s a " ) e a d e H e r á c l i t o ( “ a c a s a e s t á p e g a n d o f o g o ” ) — u m t a n t o m a i s
p r e m e n t e . P o d e - s e e n c o n t r a r u m a r e s p o s t a i m p l í c i t a a e s s a c r í t i c a n a p á g i n a 197 d o
liv ro d e K i r k e R a v e n : “ H e r á c l i t o a c r e d i t a v a r e a l m e n t e q u e u m a p e d r a o u u m c a l ­
d e i r ã o d e b r o n z e e s t a v a m p a s s a n d o p o r m u d a n ç a s in v isív e is d o s e u m a t e r i a l ? T a l ­
vez, m a s n a d a se p o d e e n c o n t r a r n o s f r a g m e n t o s e x i s t e n t e s q u e s u g i r a t a l c o i s a . ”
S erá v e rd a d e ? O s fr a g m e n to s ex isten tes de H e rá c lito s o b re o fogo (K irk e R a v e n ,
f r a g m . 220-2) sã o in t e r p r e ta d o s pelos p ró p r io s a u to r e s d a s e g u in te m a n e i r a : “O
fo g o é a f o r m a a r q u e t í p i c a d a m a t é r i a . ” N ã o e s t o u c e r t o d o s i g n i f i c a d o d a p a l a v r a
“a r q u e t í p i c a " nesse t r e c h o (e s p e c ia l m e n te te n d o - s e e m vista o f a t o d e q u e p o d e m o s
le r , u m p o u c o a d i a n t e : “N ã o h á c o s m o g o n i a e m H e r á c l i t o ” ). P o r é m , i n d e p e n d e n ­
t e m e n t e d o s i g n i f i c a d o d a p a l a v r a , u m a vez a d m i t i d o q u e H e r á c l i t o a f i r m a , n o s
fra g m e n to s, q u e to d a m a té ria , d e a lg u m a m a n e ir a (a r q u e tip ic a m e n te o u n ã o ) é
fo g o , d ev e-se a d m i t i r t a m b é m a a f i r m a ç ã o d e q u e t o d a m a t é r i a , ta l c o m o o fo g o , é
u m p rocesso; esta é p r e c i s a m e n te a te o r ia q u e K irk e R a v e n a le g a m n ã o ex istir e m
H eráclito .

I m e d i a t a m e n t e a p ó s a f i r m a r q u e “ n a d a se p o d e e n c o n t r a r n o s f r a g m e n t o s
e x i s t e n t e s " q u e s u g i r a q u e H e r á c l i t o a c r e d i t a v a e m m u d a n ç a s c o n t í n u a s e in v isív e is,
K ir k e R a v e n f a z e m o s e g u i n t e c o m e n t á r i o m e t o d o l ó g i c o : “N ã o se p o d e e n f a t i z a r
d e m a s i a d a m e n t e a a f i r m a ç ã o d e q u e (n o s te x to s) a n te r io r e s a P a r m ê n i d e s , e n a su a
172 C O N JE C T U R A S F. R E F U T A Ç Õ E S

p r o v a a p a r e n t e d e q u e os s e n t i d o s s ã o c o m p l e t a m e n t e f a l h o s . . . só se p o d e a c e i t a r
a fa s ta m e n to s i m p o r t a n te s d o senso c o m u m q u a n d o h á e v id ê n c ia p o d e ro s a e m seu
f a v o r ” . A i n t e n ç ã o d e s s e c o m e n t á r i o é i n s i n u a r q u e a d o u t r i n a d e q u e os c o r p o s ( d e
q u a l q u e r s u b s t â n c i a ) p a s s a m p o r m u d a n ç a s c o n s t a n t e s e invisív e is r e p r e s e n t a u m
a f a s t a m e n t o i m p o r t a n t e d o s e n s o c o m u m , q u e n ã o se e s p e r a r i a e n c o n t r a r e m
H eraclito .

S e g u n d o H e rá c lito , c o n tu d o , “ a q u e le q u e n ã o esp e ra r p elo in e s p e ra d o n ã o


o p e r c e b e r á : p a r a e l e , o i n e s p e r a d o s e r á im p o s s í v e l d e s e r d e t e c t a d o / e i n a b o r d á v e l "
( D K , B 18). D e f a t o , m u i t o s a r g u m e n t o s i n v a l i d a m a ú l t i m a a f i r m a ç ã o d e K i r k e
R aven. M u ito an te s de P a rm e n id e s, e n c o n tra m o s , em A n a x im a n d r o , P itág o ras.
X e n ó f a n e s e s o b r e t u d o H e r á c lito , id éias m u i t o a f a s ta d a s d o sen so c o m u m . D e f a to ,
a su g e s tã o d e q u e d e v e m o s te s ta r a h is to r i c id a d e d a s id éias a tr i b u í d a s a H e r á c li to
— co m o ta m b é m d a q u e la s a trib u íd a s a A n ax im en e s — u sa n d o co m o p a d rã o o
“s e n s o c o m u m " , é u m t a n t o s u r p r e e n d e n t e ( q u a l q u e r q u e s e j a o s e n t i d o d a e x p r e s ­
s ã o n e s t e c o n t e x t o ) . A s u g e s t ã o , d e f a t o , c o n t r a r i a n ã o só a n o t ó r i a o b s c u r i d a d e e o
e s t il o o r a c u l a r d e H e r á c l i t o , c o n f i r m a d o s p o r K i r k e R a v e n , m a s t a m b é m s e u g r a n ­
d e in teresse n a a n t i n o m i a e n o p a r a d o x o . P o r fim , c o n t r a d i z i g u a l m e n t e a d o u ­
t r i n a (a m e u v e r u m t a n t o a b s u r d a ) q u e K i r k e R a v e n a t r i b u e m a H e r á c l i t o (a ê n ­
f a s e é m i n h a ) : “ . . . t o d o t i p o d e m u d a n ç a n a t u r a l (e p r e s u m i v e l m e n t e os t e r r e m o t o s
e g r a n d e s i n c ê n d i o s ) é r e g u l a r e e q u ilib r a d a ; e c a u s a d e s s e e q u ilíb r io é o fo g o ,
e le m e n to c o n s titu in te d e to d a s as coisas, ta m b é m d e n o m in a d o lo g o s " . M a s , p o r q u e
r a z ã o s e r i a o f o g o a “ c a u s a ” d e u m e q u i l í b r i o — s e j a “d e s s e e q u i l í b r i o ” o u d e q u a l ­
q u e r o u t r o ? O n d e se e n c o n t r a m e ss a s a f i r m a ç õ e s e m H e r á c l i t o ? Se e s t a tiv e sse s i d o ,
d e f a t o , a f i lo s o f ia d e H e r á c l i t o , n ã o v e jo r a z ã o p a r a m e i n t e r e s s a r p o r e l a ; e l a e s ­
t a r i a m u i t o m a is a f a s t a d a d o sen so c o m u m d o q u e a in s p i r a d a filo so fia a t r i b u í d a
p e la tr a d iç ã o a H e r á c lito , e q u e é r e je ita d a , e m n o m e d o senso c o m u m , p o r K irk e
R aven.

M as o fa to d ecisiv o é q u e , o b v i a m e n t e , essa filosofia i n s p i r a d a é, p e lo q u e


s a b e m o s , v e r d a d e ir a ^ . C o m s u a i n t u i ç ã o i n c o m u m , H e r á c l i t o v iu q u e a s c o is a s s ã o
p ro cesso s; q u e nossos c o r p o s são c h a m a s ; q u e “u m a p e d r a o u c a ld e ir ã o d e b r o n z e . . .
p a s s a i n v a r i a v e l m e n t e p o r m u d a n ç a s in v isív e is" . K i r k e R a v e n a f i r m a m ( p á g . 19 7 ,
n o t a 1; o a r g u m e n t o p a r e c e u m a r e s p o s t a a M e l is s u s ) ; “ C a d a vez q u e o d e d o e s ­
f r e g a o m e t a l , d e s p r e n d e u m a q u a n t i d a d e inv isív e l d o m a t e r i a l ; q u a n d o isso n ã o
ac o n te c e , q u e ra z ã o h á p a ra a c re d ita r q u e o m e ta l c o n tin u a a m u d a r ? A razão é
q u e o v e n t o e r o d e o m e t a l , e s e m p r e h á v e n t o ; p e l a o x i d a ç ã o — is to é , u m a q u e i m a
v agarosa e le se t r a n s f o r m a d e m o d o inv isív e l e m f e r r u g e m : o m e t a l a n t i g o t e m
a p a r ê n c i a d i f e r e n t e d a d o n o v o , a s s im c o m o u m v e l h o n ã o se c o n f u n d e c o m u m a
c r i a n ç a " ( D K , B 8 8 ) . C o m o d e m o n s t r a m os f r a g m e n t o s e x i s t e n t e s , e r a e ss e o e n ­
s in a m e n to de H e ráclito .

S u g i r o q u e o p r i n c í p i o m e t o d o l ó g i c o d e K i r k e R a v e n d e q u e “ só se p o d e
a c e ita r a f a s ta m e n to s im p o r ta n te s d o senso c o m u m q u a n d o h á e v id ê n c ia p o d e ro s a

5 Isso c o n f i r m a q u e d e q u a l q u e r m a n e i r a a t e o r i a fa z s e n ti d o . E s p e r o q u e o te x to t e n h a d e i x a d o c la r o
q u e a p e le i p a r a a v e r d a d e d e m a n e i r a a : ( a ) m o s t r a r q u e m i n h a i n t e r p r e t a ç ã o p e lo m e n o s fa z s e n ti d o ; e
( b ) r e f u t a r os a r g u m e n t o s d e K irk e R a v e n ( d is c u tid o s m a is a d i a n t e n o m e s m o p a r á g r a f o ) d e q u e a te o r ia
é a b s u r d a . U m a re s p o s ta a G . S . K ir k , d e m a s i a d a m e n t e l o n g a p a r a s e r i n c l u í d a a q u i ( e m b o r a se r e f i r a a
e s te t r e c h o ) p o d e s e r e n c o n t r a d a n o a p ê n d i c e a e s te c a p í t u l o ) .
R E T O R N O AO S P R É -SO C R Á T IC O S 173

e m se u f a v o r ” seja s u b s titu íd o p e lo p r in c íp io m a is c la r o e i m p o r t a n t e d e q u e os
a fa s ta m e n to s im p o r ta n te s d a tra d iç ã o h istó ric a só p o d e m se r a c e ito s q u a n d o h á
e v id ê n c ia p o d e r o s a e m se u fa v o r . Esse é , d e f a t o , u m - p r i n c í p i o u n i v e r s a l d a h i s ­
to rio g rafia, sem o qual a h is tó ria seria im possível. P rin c íp io q u e é, c o n tu d o ,
c o n s ta n te m e n te v io lad o p o r K irk e R a v e n : q u a n d o , p o r e x e m p lo , p r o ­
c u r a m t o r n a r su s p e ita s as e v id ê n c ia s d e P la t ã o e A ris tó te le s, u s a n d o a r g u m e n t o s
p a r c i a l m e n t e c ir c u la r e s e q u e (c o m o a c o n te c e c o m o a r g u m e n t o d o senso c o m u m )
c o n tra d iz e m suas p ró p ria s a firm a ç õ e s. Q u a n to à a firm a tiv a d e q u e “ P la tã o e A ris­
tó teles n ã o t e n t a r a m s e r ia m e n te c o m p r e e n d e r seu s ig n ific a d o p r o f u n d o ” (re fe rin d o -
se a H e r ã c l i t o ) , p o s s o a p e n a s d i z e r q u e a f i l o s o f i a d e P l a t ã o e A r i s t ó t e l e s p o s s u i , a
m e u ver, s ig n ific a d o e p r o f u n d i d a d e reais. E u m a filo so fia d i g n a d e u m g r a n d e
f i ló s o f o . Q u e m , s e n ã o H e r á c l i t o , foi o g r a n d e p e n s a d o r q u e o b s e r v o u p e l a p r i m e i r a
vez q u e os h o m e n s s ã o c h a m a s e a s c o is a s p r o c e s s o s ? D e v e m o s a c r e d i t a r q u e e ss a
g r a n d e f i l o s o f i a f o i u m “e x a g e r o p o s t e r i o r a H e r á c l i t o ” ( p á g . 1 9 7 ) s u g e r i d o a P l a t ã o
“ t a l v e z e s p e c i a l m e n t e p o r C r a t i l o ” ? Q u e m fo i esse f i l ó s o f o d e s c o n h e c i d o — t a l v e z o
m a io r e m a is a u d a c io s o dos p e n s a d o re s p ré-so crático s? Q u e m , se n ã o H erá c lito ?

XI

A h is tó ria a n t i g a d a filo so fia g r e g a , e s p e c i a lm e n te d e T a l e s a P la t ã o , é e s ­


p lê n d id a : q u a se b o a d e m a is p a r a ser v e rd a d e ira . E m c a d a g e ra ç ã o e n c o n tra m o s
p e lo m e n o s u m a n o v a filo so fia, u m a n o v a c o s m o lo g ia d e i m p r e s s io n a n t e o r i g i ­
n a l i d a d e e p r o f u n d i d a d e . C o m o foi isso p o ss ív e l? C e r t a m e n t e n ã o h á e x p l i c a ç ã o
p a r a o rig in a lid a d e e a g e n ia lid a d e , m a s pode-se te n ta r c o m p re e n ó ê -la s. Q u a l e ra o
s e g r e d o d o s a n t i g o s ? S u g i r o q u e a tr a d iç ã o — a tr a d iç ã o d a d isc u ssã o crític a .

P ro c u ra re i e x p o r o p ro b le m a d e m a n e ira m ais cla ra . E m todas ou q uase


t o d a s as c i v i li z a ç õ e s e n c o n t r a m o s o e n s i n o r e l i g i o s o e c o s m o l ó g i c o ; e m m u i t a s s o ­
c i e d a d e s h á e s c o l a s . T o d a s a s e s c o l a s , s o b r e t u d o as p r i m i t i v a s , p o s s u e m , a o q u e
p a re c e , e s t r u t u r a e f u n ç ã o c a ra c te rís tic a s . L o n g e d e f o m e n t a r a d iscu ssão c rític a ,
assu m em a ta re fa d e d iv u lg ar u m a d o u tr in a d e fin id a e preserv á-la, p u r a e i m u ­
táv el. A f u n ç ã o d a escola é p a s s a r a d ia n t e , à g e r a ç ã o s e g u in te , a d o u t r i n a d o se u
f u n d a d o r e p r i m e i r o m e s t r e ; p a r a isso é e x t r e m a m e n t e i m p o r t a n t e m a n t e r a
d o u t r i n a i n v i o l a d a . Esse t i p o d e e s c o l a j a m a i s a d m i t e i d é i a s n o v a s . As i d é i a s i n o ­
v a d o ra s são c o n s id e ra d a s h e ré tic a s e g e r a d o r a s d e cism a s; o m e m b r o d a escola q u e
te n t a r m u d a r a d o u tr in a será ex p u lso c o m o h e ré tic o . V ia d e re g r a , o h e ré tic o a leg a
qu e a sua é a v e rd a d e ira d o u trin a . N e m o p ró p rio in o v a d o r, p o rta n to , a d m ite estar
i n o v a n d o ; e le a c r e d i t a e s t a r r e t o r n a n d o à v e r d a d e i r a o r t o d o x i a , q u e t e r i a s i d o p e r ­
v e rtid a.

D essa m a n e ir a , to d a s as m u d a n ç a s d e d o u tr in a são su b -re p tíc ia s; a p r e s e n ­


tam -se se m p re c o m o re fo rm u la ç õ e s dos e n sin a m e n to s v erd a d e iro s d o m estre: d e
su a s p r ó p r ia s p a la v ra s , seu s ig n ific a d o e in te n ç ã o g e n u ín o s .

E c la ro q u e n u m a escola desse tip o n ã o e n c o n tr a r e m o s u m a h is tó ria d e


i d é i a s , n e m m a t e r i a l p a r a e l a . N ã o se a d m i t e , d e f a t o , a n o v i d a d e d a s i d é i a s ; t u d o é
a t r i b u í d o a o m e s t r e . Só c o n s e g u i r e m o s r e c o n s t r u i r u m a h i s t ó r i a d e c i s m a s , e ta l v e z
a h i s t ó r i a d a d e f e s a d e c e r t a s d o u t r i n a s c o n t r a os h e r é t i c o s .

O b v i a m e n t e , n e ss e t i p o d e e s c o l a n ã o p o d e h a v e r q u a l q u e r d i s c u s s ã o r a ­
c io n al. P o d e h a v e r a r g u m e n t o s c o n t r a d is sid e n te s e h e ré tic o s , o u c o n t r a escolas
174 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

c o n c o r r e n te s ; d e m o d o g e r a l, p o r é m , a d o u t r i n a é d e f e n d i d a m e d i a n t e assertiv as,
d o g m as e co n d en açõ es — n ão com arg u m en to s.

S o b esse a s p e c t o , a E s c o l a I t a l i a n a , f u n d a d a p o r P i t á g o r a s , c o n s t i t u i u m
e x e m p l o i m p o r t a n t e d e n t r e as e s c o l a s f i lo s ó f ic a s g r e g a s . C o m p a r a d a c o m a E s c o l a
J ô n i c a o u c o m a d e E lea, a ss e m e lh a v a -se a u m a o r d e m religiosa, a p r e s e n t a n d o u m
m o d o d e v id a c a ra c te rís tic o e u m a d o u tr in a secreta,

V e r d a d e ir a o u n ã o , a e stó ria d e u m dos seus m e m b r o s , H ip a s o d e M e t a p o n ­


ti)., a f o g a d o p o r t e r r e v e l a d o o s e g r e d o d a i r r a c i o n a l i d a d e d e c e r t a s r a í z e s q u a -
d t a d a s , é c a r a c t e r í s ti c a d o c lim a q u e c e r c a v a a E sco la d e P itá g o r a s .

M a s essa e r a u m a e x c e ç ã o e n t r e a s e s c o l a s f i l o s ó f i c a s g r e g a s . D e i x a n d o - a d e
l a d o , p o d e m o s d i z e r q u e o c a r á t e r d a f i l o s o f i a g r e g a , e d a s s u a s e s c o l a s f i lo s ó f ic a s , é
n i t i d a m e n t e d i f e r e n t e d o t i p o d o g m á t i c o d e s c r i t o . J á d e m o n s t r e i isso c o m u m
e x e m p l o : a h istó ria do p r o b le m a d a m u d a n ç a q u e r e la te i é a h istó ria d e u m d e b a te
crítico , d e u m a discu ssã o ra c io n a l. I d é i a s n o v a s e r a m e x p o s t a s c o m o t a l , r e s u l t a n d o
d e c r í t i c a a b e r t a . Se r e a l m e n t e h á m u d a n ç a s s u b - r e p t í c i a s , s ã o p o u c a s . A o in v é s d a
A a n o n im id a d e , te m o s u m a h is tó ria d e id éias e d a q u e le s q u e as g e r a r a m .

Esse é u m f e n ô m e n o s i n g u l a r , l i g a d o i n t i m a m e n t e à i m p r e s s i o n a n t e l i b e r ­
d a d e e c r i a t i v i d a d e d a fi lo s o f ia g r e g a . C o m o e x p l i c á - l o ? O q u e h á a e x p lic a r é o
s u r g im e n to d e u m a tr a d iç ã o , q u e p e r m i t e e e s t i m u l a a d i s c u s s ã o c r í t i c a e n t r e v á r i a s
e s c o l a s e, o q u e é a i n d a m a i s s u r p r e e n d e n t e , d e n t r o d e c a d a e s c o l a . D e f a t o , n ã o
e n c o n t r a m o s e m p a r t e a l g u m a , e x c e t u a n d o - s e os s e g u i d o r e s d e P i t á g o r a s . u m a e s ­
c o l a d e d i c a d a à p r e s e r v a ç ã o d e d e t e r m i n a d a d o u t r i n a . E m l u g a r d is s o , o b s e r v a m o s
m u d a n ç a s , novas id éias, m o d ific a ç õ e s e c rític a a b e r t a a o m e s tre .

(Em P a rm e n id e s , pode-se m e sm o o b serv ar, em p e río d o m a is an tig o , u m


f e n ô m e n o e x t r e m a m e n t e i n t e r e s s a n t e : u m filó s o f o a e x p o r d u a s d o u t r i n a s , u m a d a s
q u a i s a f i r m a s e r a v e r d a d e i r a , e a o u t r a , f a l s a . N o e n t a n t o , n ã o se l i m i t a a c r i t i c a r
e c o n d e n a r a d o u t r i n a f a l s a ; a o invés d is s o , e le a a p r e s e n t a c o m o a m e l h o r d e s ­
c r i ç ã o p o s s ív e l d a o p i n i ã o i l u s ó r i a d o s m o r t a i s e d o m u n d o d a s a p a r ê n c i a s — a
m e lh o r d esc riç ã o q u e u m m o r ta l é c a p a z d e fazer.)

C o m o e q u a n d o foi f u n d a d a essa t r a d i ç ã o c r í t i c a ? O p r o b l e m a m e r e c e u m a
c o n s i d e r a ç ã o s é r i a . P o d e m o s t e r c e r t e z a d o s e g u i n t e : X e n ó f a n e s , q u e le v o u a
t r a d iç ã o jô n i c a p a r a E lea, estav a p l e n a m e n t e c o n sc ie n te de q u e seus e n s in a m e n to s
e ra m p u r a m e n te c o n je c tu ra is, e q u e o u tro s m ais sábios p o d e r ía m v ir a p ó s e l e .
R e t o r n a r e i a esse p o n t o n a p r ó x i m a s e ç ã o .

A o p r o c u r a r os p r i m e i r o s s i n a i s d e s s a n o v a a t i t u d e c r í t i c a , e ss a l i b e r d a d e d e
p e n s a m e n t o , r e t o r n a m o s à c r ític a feita p o r A n a x i m a n d r o a r e s p e ito d e T a le s .
T e m o s a q u i u m fato m u ito in teressan te: A n a x im a n d r o critica seu m e s tre e c o n ­
t e r r â n e o , u m d o s S e t e S á b i o s , f u n d a d o r d a E s c o l a J ô n i c a . S e g u n d o a t r a d i ç ã o , ele
era a p r o x im a d a m e n te q u a to rz e anos m ais jo v em do q u e T a le s, e deve ter d ese n v o l­
v i d o s u a c r í t i c a e n o v a s i d é i a s e n q u a n t o o m e s t r e a i n d a v iv i a . ( A o q u e p a r e c e ,
m o r r e r a m c o m p o u c o te m p o d e d if e r e n ç a .) N a s fo n te s h istó ric a s n ã o e n c o n tr a m o s
q u a l q u e r v e s t íg i o d e d i s s e n s ã o , c o n t e n d a o u c is m a .
R E T O R N O AO S P R É -SO C R Á T IC O S

Isso s u g e r e , a m e u v e r , q u e T a l e s f u n d o u a n o v a t r a d i ç ã o d e l i b e r d a d e —
b a s e a d a e m n o v o r e l a c i o n a m e n t o e n t r e m e s tr e e a l u n o — c r i a n d o u m t i p o d e e s c o la
t o t a l m e n t e d i f e r e n t e d a d e P i t á g o r a s . A o q u e p a r e c e , e le n ã o só to l e r a v a a c r í t i c a
c o m o in s titu iu a tr a d iç ã o d e q u e a c rític a d e v e s e r to le ra d a .

P r e f i r o i m a g i n a r q u e T a l e s fe z m a is a i n d a . T e n h o d i f i c u l d a d e e m c o n c e b e r
u m r e la c io n a m e n to e n tr e m e s tre e a lu n o n o q u a l o m e s tre a p e n a s to le ra a c rític a ,
d e ix a n d o d e e s tim u lá -la a tiv a m e n te . A m e u v e r, u m a lu n o tr e in a d o e m a titu d e
d o g m á t i c a j a m a i s o u s a r i a c r i t i c a r u m d o g m a ( e s p e c ia l m e n te d e u m s á b i o f a m o s o ) ,
d e fo r m a a b e r ta . P a re c e - m e u m a e x p lic a ç ã o m a is fá c il p r e s u m ir q u e o m e s tre
t e n h a e s t i m u l a d o a a t i t u d e c r í t i c a — ta lv e z n ã o d e s d e o p r i n c í p i o , m a s d e p o is d e
t e r f i c a d o i m p r e s s i o n a d o c o m a p e r t i n ê n c i a d e a l g u m a s p e r g u n t a s f e i ta s p e lo a l u n o ,
sem in te n ç ã o c rític a .

D e q u a lq u e r m a n e ir a , a c o n je c tu r a d e q u e T a le s e s tim u lo u a tiv a m e n te a
c rític a d e seu s p u p ilo s e x p lic a ria o fa to d e q u e a a titu d e c rític a d ia n te d a d o u tr in a
d o m e s tr e t o r n o u - s e p a r t e d a t r a d i ç ã o d a E s c o la J ô n i c a . G o s to d e i m a g i n a r T a l e s
c o m o o p r i m e i r o m e s t r e a d iz e r a s e u s d is c íp u lo s : “ É a s s im q u e v e jo a s c o is a s —.
c o m o c r e io q u e e la s s ã o . P r o c u r e m a p e r f e i ç o a r m e u s e n s i n a m e n t o s ” . O s q u e i
a c h a r e m q u e n ã o é a p r o p r i a d o a t r i b u i r e ss a a t i t u d e n ã o d o g m á t i c a a T a l e s d e v e m £
le m b r a r q u e , a p e n a s d u a s g e ra ç õ e s m a is ta r d e , e n c o n tr a r e m o s u m a a titu d e s e m e ­
lh a n te f o r m u la d a c la r a e c o n s c ie n te m e n te n o s fr a g m e n to s d e X e n ó fa n e s . R e s ta , d e
q u a l q u e r f o r m a , o f a t o h is tó r i c o d e q u e os j ô n i o s e s t a b e l e c e r a m a p r i m e i r a e s c o la
n a q u a l os d is c íp u lo s c r i t i c a v a m os m e s tr e s , g e r a ç ã o a p ó s g e r a ç ã o . N ã o h á m u i t a s
d ú v id a s d e q u e a t r a d i ç ã o d e c r í t i c a filo s ó f ic a g r e g a te v e s u a o r i g e m p r i n c i p a l n a
iô n i a .

Foi u m a in o v a ç ã o im p o r ta n tís s im a , q u e re p r e s e n to u u m r o m p im e n to c o m a
t r a d i ç ã o d o g m á t i c a q u e p e r m i t e u m a só d o u t r i n a n a s e s c o la s — s u b s t i t u i n d o - a p e la
t r a d i ç ã o q u e a d m i t e u m a p lu r a lid a d e d e d o u t r i n a s , to d a s e m b u s c a d a v e r d a d e
m e d i a n t e a d is c u s s ã o c r í t i c a .

E ssa in o v a ç ã o le v o u , q u a s e n e c e s s a r i a m e n t e , 'à t o m a d a d e c o n s c i ê n c ia d e :
q u e n o s s a s t e n t a t i v a s d e e n c o n t r a r a v e r d a d e n u n c a s ã o d e f i n it iv a s , e s e m p r e p o d e m
s e r a p r i m o r a d a s ; q u e n o ss o c o n h e c i m e n t o é c o n j e c t u r a l : c o n s is te e m s u p o s iç õ e s ,
h ip ó te s e s , e n ã o e m v e r d a d e s c e r t a s e d e f i n it iv a s ; d e q u e a c r í t i c a e a d is c u s s ã o
c r í t i c a s ã o os ú n ic o s m e io s q u e te m o s p a r a n o s a p r o x i m a r m o s d a v e r d a d e . L e v o u ,
a s s im , à t r a d i ç ã o d e c r í t i c a liv re e c o n j e c t u r a s a u d a c i o s a s q u e c r i o u a a t i t u d e r a ­
c io n a l o u c i e n t í f i c a , e , c o m e s t a , a c iv iliz a ç ã o o c i d e n t a l , a ú n i c a b a s e a d a n a c iê n c ia
( e m b o r a , é c l a r o , n ã o só n a c iê n c ia ) .

E ssa t r a d i ç ã o r a c i o n a l i s t a n ã o p r o í b e m u d a n ç a s a u d a z e s n a s d o u t r i n a s . P e lo
c o n t r á r i o , e s t i m u l a a in o v a ç ã o e a c o n s i d e r a u m ê x it o , u m a p r i m o r a m e n t o , d e s d e
q u e se b a s e i e n o r e s u l t a d o d e u m a d is c u s s ã o c r í t i c a d a s d o u t r i n a s p r e c e d e n t e s . A
p r ó p r i a o u s a d i a d a in o v a ç ã o é a d m i r a d a , p o is p o d e s e r c o n t r o l a d a p e la s e v e r id a d e
d o e x a m e c r í ti c o a q u e é s u b m e t i d a . P o r isso, a s m u d a n ç a s d e d o u t r i n a , lo n g e d e
o c o r r e r e m s u b - r e p t i c i a m e n t e , s ã o p a s s a d a s a d i a n t e c o m a s d o u t r i n a s m a is a n t i g a s e
os n o m e s d o s i n o v a d o r e s . A s s im , o m a t e r i a l p a r a u m a h i s t ó r i a d a s id é ia s to r n a - s e
p a rte d a tra d iç ã o e n s in a d a .

P e lo q u e se i, a t r a d i ç ã o r a c i o n a l i s t a o u c r í t i c a fo i i n v e n t a d a u m a só v ez.
P e r d e u - s e a p ó s d o is o u tr ê s s é c u lo s , p r o v a v e l m e n t e d e v id o a o s u r g i m e n t o d a
176 C O N JE C T Ü R A S E R E F U T A Ç Õ E S

d o u t r i n a d a e p is te m e , d e A r is tó te le s : o c o n h e c i m e n t o c e r t o e d e m o n s t r á v e l —
d e s e n v o l v im e n to d a d i s t i n ç ã o t r a ç a d a p e lo s e le á tic o s e p o r H e r á c l i t o e n t r e a v e r ­
d a d e c e r t a e a s m e r a s s u p o s iç õ e s ; m a s fo i r e d e s c o b e r t a e c o n s c i e n t e m e n t e re v iv id a
d u r a n t e a R e n a s c e n ç a , e s p e c i a l m e n t e p o r G a lil e u G a lile i.

X II

P asso a g o ra a m e u ú ltim o e m a is im p o r ta n te a r g u m e n to : a tr a d iç ã o ra -
c io n a l i s t a , d a d is c u s s ã o c r í t i c a , r e p r e s e n t a o ú n i c o m e i o p r a t i c á v e l p a r a e x p a n d i r o
c o n h e c i m e n t o c o n j e c t u r a l o u h i p o t é t i c o . N ã o h á o u t r a m a n e i r a . M a is e s p e c i f i ­
c a m e n t e , n ã o h á u m p ro c e s s o q u e c o m e c e p e l^ o b s e r v a ç ã o o u p e la e x p e r i ê n c i a . N o
d e s e n v o l v im e n to d a c iê n c ia , a s o b s e r v a ç õ e s e e x p e r i ê n c i a s t ê m a p e n a s a f u n ç ã o d e
a r g u m e n t o s c r í ti c o s ; d e s e m p e n h a m e s s a f u n ç ã o a o l a d o d e o u t r a , a d e a r g u m e n t o s
n ã o - o b s e r v a c io n a i s . É u m p a p e l i m p o r t a n t e , m a s o s i g n if i c a d o d a s o b s e r v a ç õ e s e
e x p e r i ê n c i a s d e p e n d e in te ir a m e n te d a s u a c a p a c i d a d e d e c r itic a r teo ria s.

S e g u n d o a t e o r i a d o c o n h e c i m e n t o e s b o ç a d a a q u i , h á , d e m o d o g e r a l , só
d u a s m a n e ir a s d e u m a te o r ia se r s u p e r io r a o u tr a s : e x p lic a r m e lh o r; e p o d e r se r te s ­
t a d a m e l h o r — is to é , s e r d i s c u t i d a d e m a n e i r a m a i s c o m p l e t a e c r í t i c a , à lu z d e
t u d o q u e c o n h e c e m o s , d e t o d a s a s o b je ç õ e s e m q u e p o d e m o s p e n s a r , e s p e c i a lm e n te
d e te s te s e x p e r i m e n t a i s o u d e o b s e r v a ç ã o d e s i g n a d o s p a r a c r i t i c á - l a .

H á a p e n a s u m in g r e d ie n te d e r a c io n a lid a d e e m n o ssas te n ta tiv a s d e c o ­


n h e c e r o m u n d o : o e x a m e c r í t i c o d a s te o r ia s . E m si m e s m a s , a s te o r ia s s ã o s u p o ­
siç õ e s . N ã o s a b e m o s ; s u p o m o s . S e a l g u é m m e p e r g u n t a r “ C o m o v o c ê s a b e ? ” , m i n h a
r e s p o s ta s e r á “ N ã o se i, a p e n a s p r o p o n h o u m a s u p o s iç ã o . Se e s tá i n t e r e s s a d o n o m e u
p r o b l e m a , f i c a r e i g r a t o se c r i t i c a r m i n h a s u p o s iç ã o ; e se m e o f e r e c e r c o n t r a p r o p o s ­
ta s , d e v e r e i c r i t i c á - l a s i g u a l m e n t e ” .

E ssa , a c r e d i t o , é a v e r d a d e i r a t e o r i a d o c o n h e c i m e n t o ( q u e d e s e jo s u b m e t e r
à c r í t i c a d o l e i t o r ) : a v e r d a d e i r a d e s c r iç ã o d e u m a p r á t i c a q u e s u r g i u n a iô n i a e e s ­
t á i n c o r p o r a d a à c iê n c ia m o d e r n a ( e m b o r a m u i t o s c ie n t is ta s a i n d a a c r e d i t e m n o
m i t o d a i n d u ç ã o d e B a c o n ) : a t e o r i a d e q u e o c o n h e c i m e n t o se p r o c e s s a a tr a v é s d e
c o n je c tu r a s e re fu ta ç õ e s.

G a lile u e E in s t e in f o r a m d u a s d a s f i g u r a s m a is i m p o r t a n t e s a p e r c e b e r e m
q u e n ã o e x is tia o p r o c e d i m e n t o , i n d u t i v o ; c o m p r e e n d e r a m c l a r a m e n t e a q u i l o q u e
c o n s i d e r o a v e r d a d e i r a t e o r ia d o c o n h e c i m e n t o . O s a n ti g o s , c o n t u d o , t a m b é m o
s a b i a m . P o r in c r ív e l q u e p a r e ç a , v a m o s e n c o n t r a r o c l a r o r e c o n h e c i m e n t o e a f o r ­
m u l a ç ã o d e s s a te o r i a q u a s e i m e d i a t a m e n t e a p ó s o in íc io d a p r á t i c a d a d is c u s s ã o
c r í t i c a . S o b esse a s p e c t o , os in d íc io s m a is a n ti g o s q u e c o n h e c e m o s s ã o os d e X e -
n ó f a n e s . A p r e s e n t a r e i a q u i c in c o d e le s , n u m a o r d e m q u e s u g e r e q u e a a u d á c i a d a
s u a c r í t i c a e a g r a v i d a d e d o s p r o b l e m a s d e q u e t r a t o u o t o r n a r a m c o n s c i e n te d e q u e
to d o o n o ss o c o n h e c i m e n t o é s u p o s iç ã o ; q u e , p r o c u r a n d o o “m e l h o r ” c o n h e c i m e n t o ,
p o d e r e m o s e n c o n t r á - l o e m t e m p o . A q u i e s tã o os c in c o f r a g m e n t o s (D K , B 16 e 15;
18; 35; e 3 4 ) d a o b r a d e X e n ó f a n e s :

“ O s e tío p e s d iz e m q u e s e u s d e u s e s tê m o n a r i z a c h a t a d o e s ã o n e g r o s ; os
tr á c i o s , q u e o s s e u s t ê m o lh o s a z u is e c a b e lo s ru iv o s .
R E T O R N O AO S P R É -SO C R Á T IC O S 177

S e os b o is , os c a v a lo s e os le õ e s tiv e s s e m m ã o s e p u d e s s e m d e s e n h a r e e s c u l p ir
c o m o o s h o m e n s , os c a v a lo s f a r i a m s e u s d e u s e s c o m o c a v a lo s ; os b o is c o m o u m b o i:
c a d a u m d e le s d a r i a f o r m a a o c o r p o d a s s u a s d i v i n d a d e s c o n f o r m e a i m a g e m d a
s u a p r ó p r i a e s p é c ie .

O s d e u s e s n ã o n o s r e v e l a r a m , d e s d e o p r i n c í p i o , to d a s a s c o is a s , m a s , n o
c u rs o d o t e m p o , p r o c u r a n d o , p o d e m o s a p r e n d e r , c o n h e c ê - l a s m e l h o r . . .

S u p o m o s q u e e ss a s c o is a s s ã o c o m o a v e r d a d e .

C o m r e s p e ito à v e r d a d e s e g u r a , n i n g u é m a c o n h e c e u , n e m a c o n h e c e r á , n e m
a r e s p e ito d o s d e u s e s , n e m s o b r e t u d o o q u e f a l a m o s . M e s m o se p o r a c a s o p r o n u n ­
c iá s s e m o s a v e r d a d e d e f i n i t i v a , n ã o a r e c o n h e c e r i a m o s — p o is t u d o é u m a t r a m a d e
o p in i õ e s "

P a r a m o s t r a r q u e X e n ó f a n e s n ã o e s ta v a só , r e p r o d u z o a q u i d o is d ito s d e
H e r á c l i t o (D K , B 78 e 8 0 ), q u e j á c ite i a n t e r i o r m e n t e e m o u t r o c o n t e x t o . A m b o s
e x p rim e m o c a r á te r c o n je c tu ra l d o c o n h e c im e n to h u m a n o ; o s e g u n d o faz r e f e r ê n ­
c ia à s u a o u s a d i a , à n e c e s s id a d e d e a n t e c i p a r , c o m c o r a g e m , o q u e n ã o s a b e m o s :

‘‘N ã o p e r t e n c e à n a t u r e z a d o h o m e m p o s s u ir o c o n h e c i m e n t o v e r d a d e i r o ,
m a s à n a t u r e z a d i v i n a . . . Q u e m n ã o e s p e r a o in e s p e r a d o n ã o o p e r c e b e r á ; p a r a e le
o i n e s p e r a d o s e r á im p o s s ív e l d e s e r d e t e c t a d o , e i n a b o r d á v e l "

M i n h a ú l t i m a c i t a ç ã o s e r á d e p a s s a g e m f a m o s a d e D e m o c r i to (D K , B 1 1 7 ):

‘‘M a s , n a v e r d a d e , n a d a s a b e m o s p o r t e r v is to ; a v e r d a d e e s t á o c u l t a n a
p r o f u n d id a d e ."

D e s ta f o r m a , a a t i t u d e c r í t i c a d o s p r é - s o c r á t ic o s p r e n u n c i o u e p r e p a r o u o
r a c i o n a l i s m o é ti c o d e S ó c r a te s : s u a c r e n ç a e m q u e a b u s c a d a v e r d a d e , p e l a d is c u s ­
s ã o c r í t i c a , e r a u m m o d o d e v id a — o m e l h o r q u e e le c o n h e c i a .
Apêndice
C O N JE C T U R A S H IS T Ó R IC A S : A O P IN IÃ O D E
H E R Á C L IT O S O B R E A M U D A N Ç A *

N u m a r t i g o i n t i t u l a d o “ P o p p e r a P r o p ó s ito d a C i ê n c i a e d o s P r é - S o c r á ti c o s ”
( M in d ., N S 6 9 , j u l h o d e 1 9 6 0 , p á g s . 3 1 8 a 3 3 9 ), o S e n h o r G .S . K ir k r e s p o n d e u a ó -
d e s a f io e à c r í t i c a c o n ti d o s e m c o n f e r ê n c i a q u e p r o n u n c i e i n a S o c ie d a d e A r is to <
té l ic a s o b r e o t e m a : “ R e t o r n o a o s P r é - S o c r á t i c o s ” . C o n t u d o , o a r t i g o e m q u e s tã o ^
n ã o se d i r i g e p r i n c i p a l m e n t e à m i n h a c r í t i c a ; p r o c u r a d e s c o b r i r c o m o e p o r q u e c a í
v ít im a d e u m a a t i t u d e “c o m r e l a ç ã o à m e t o d o l o g i a c i e n t í f i c a ” q u e e s tá f u n d a m e n ­
t a l m e n t e e r r a d a , e q u e m e le v o u a a f i r m a t i v a s e q u i v o c a d a s a r e s p e ito d o s p r é - -
s o c r á tic o s , b a s e a n d o - m e e m p r i n c í p i o s e r r ô n e o s d e h i s t o r i o g r a f i a .

U m c o n t r a - a t a q u e d e s s e t i p o p o d e r í a s e g u r a m e n t e t e r m é r i t o e in te r e s s e i n ­
tr ín s e c o s . O f a t o d e q u e o s e n h o r K irk a d o t o u esse p r o c e d i m e n t o d e m o n s t r a d e
q u a l q u e r f o r m a q u e h á p e lo m e n o s d o is p o n to s s o b r e os q u a i s e s t a m o s d e a c o r d o :
n o s s a d iv e r g ê n c ia f u n d a m e n t a l é filo s ó f ic a ; e a a t i t u d e filo s ó f ic a q u e a d o ta m o s
p o d e t e r u m a i n f l u ê n c i a d e c is iv a s o b r e n o s s a i n t e r p r e t a ç ã o d a e v id ê n c ia h i s t ó r i c a —
p o r e x e m p l o , n o q u e d iz r e s p e ito à e v id ê n c ia r e l a t i v a a o s p r é - s o c r á t i c o s .

O r a , o s e n h o r K irk n ã o a c e i t a m i n h a a t i t u d e f ilo s ó f ic a , c o m o e u n ã o a c e i to
a s u a . P o r isso a c h a , j u s t i f i c a d a m e n t e , q u e d e v e d a r as ra z õ e s p e la s q u a is r e j e i t a a
m i n h a p o s iç ã o .

N ã o c r e io , c o n t u d o , q u e t e n h a c o n s e g u i d o f a z e r o q u e p r e t e n d i a , s i m p l e s ­
m e n t e p o r q u e s u a c o n c e p ç ã o d o q u e p e n s a s e r m e u p o n t o d e v is ta e a s c o n c lu s õ e s
d e v a s ta d o ra s q u e d e riv a d e ssa c o n c e p ç ã o n ã o e s tã o r e la c io n a d a s c o m o q u e r e a l ­
m e n te p e n so , c o n fo rm e d e m o n s tra re i.

H á o u t r a d i f i c u l d a d e a i n d a . O m é t o d o d e c o n t r a - a t a q u e e s c o lh id o te m u m
in c o n v e n i e n t e p e c u l i a r : n ã o se p r e s t a f a c i l m e n t e a o d e s e n v o l v im e n to d o d e b a t e

*) E s te a p ê n d i c e , r e s p o s ta a o a r t i g o d e M in d , fo i p u b l i c a d o e m p a r t e s o b o tí t u l o : “ K ir k a P r o p ó s i t o d e
H e r á c l i t o — o F o g o c o m o C a u s a d o E q u i l í b r i o ” , n a m e s m a re v is ta , N .S . 7 2 , j u l h o d e 1 9 6 3 , p á g s . 3 8 6 a
3 9 2 . Q u e r o a g r a d e c e r a o e d i t o r d e M in d p e la p e r m is s ã o p a r a r e p r o d u z i r a q u i to d o o a r t i g o , c o n f o r m e
lh e fo i s u b m e t i d o o r i g i n a l m e n t e .
180 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

s o b r e os p o n t o s d e c r í t i c a e s p e c ífic o s l e v a n t a d o s n a m i n h a c o n f e r ê n c i a . P o r e x e m ­
p lo : K ir k n ã o e x p li c a c l a r a m e n t e q u e p o n t o s a c e i t a (se é q u e a c e i t a a l g u m d e le s ) e
q u a is o s q u e r e j e i t a ; e m l u g a r d is s o , a a c e i t a ç ã o e a r e j e iç ã o f i c a m s u b m e r s a s n a
r e j e iç ã o g e n é r i c a d o q u e s u p õ e s e r m i n h a “ a t i t u d e c o m r e l a ç ã o à m e t o d o l o g i a c i e n ­
tíf ic a ” e d e a lg u m a s c o n s e q ü ê n c ia s d essa a titu d e im a g in á r ia .

M in h a p r im e ir a ta r e f a se rá d e m o n s tr a r a a le g a ç ã o d e q u e a m a n e ir a c o m o
K ir k t r a t a a “ a t i t u d e c o m r e l a ç ã o à m e t o d o l o g i a c i e n t í f i c a ” a t r i b u í d a á m i m se
b a s e i a a m p l a m e n t e e m in c o m p r e e n s õ e s e i n t e r p r e t a ç õ e s e r r ô n e a s d o q u e t e n h o e s ­
c r i t o , b e m c o m o n u m a c o n c e p ç ã o p o p u l a r e q u i v o c a d a , d e c a r á t e r in d u t i v i s t a , a
r e s p e ito d a c iê n c ia n a t u r a l — t e m a e x a m i n a d o e x t e n s a m e n t e n o m e u liv ro T h e
L o g ic o f S c ie n tijic D isco very.

K ir k m e a p r e s e n t a , c o r r e t a m e n t e , c o m o o p o n e n t e d o d o g m a in d u tiv is ta s u s ­
t e n t a d o p o r m u i t a s p e s s o a s — a id é i a d e q u e a c i ê n c i a t e m c o m o p o n t o d e p a r t i d a
a o b s e r v a ç ã o , p a r a c h e g a r , p e l a i n d u ç ã o , a g e n e r a l iz a ç õ e s , e p o r f im a te o r ia s . S e u
e r r o c o n s is te e m a c r e d i t a r q u e p e lo f a t o d e s e r u m o p o n e n t e d o i n d u t iv i s m o t e n h a
d e s e r u m d is c íp u l o d o in t u i c i o n i s m o , e q u e m i n h a a b o r d a g e m se d e v a à t e n t a t i v a
d e d e f e n d e r u m a filo s o f ia d a i n t u i ç ã o — q u e e le c h a m a “filo s o f ia t r a d i c i o n a l " —
c o n tr a o e m p iris m o m o d e r n o . N a v e rd a d e , e m b o r a n ã o a c re d ite n a in d u ç ã o , n ã o
a c r e d i t o t a m b é m n a i n t u i ç ã o . A liá s , os in d u t i v i s t a s t e n d e m a p e n s a r q u e a i n t u i ç ã o
é a ú n i c a a l t e r n a t i v a p o ss ív e l p a r a a i n d u ç ã o , m a s n is s o se e q u iv o c a m : h á o u t r a s
a p r o x i m a ç õ e s , a lé m d e ss a s d u a s . A m i n h a p o d e r í a s e r d e s c r i t a a p r o p r i a d a m e n t e
c o m o u m e m p ir is m o c r í ti c o .

N o e n t a n t o , K ir k m e a t r i b u i u m i n t u i c i o n i s m o q u a s e c a r t e s i a n o , a o d e s ­
c r e v e r a s i t u a ç ã o d a s e g u i n te f o r m a ( p á g . 3 1 9 ): “ A filo s o f ia d o t i p o t r a d i c i o n a l
p r e s u m i a q u e as v e r d a d e s f ilo s ó f ic a s tiv e s s e m c o n t e ú d o m e t a f í s ic o e q u e p u d e s s e m
s e r a p r e e n d i d a s p e la i n t u i ç ã o — o q u e fo i n e g a d o p e lo s p o s itiv is ta s d o C ír c u l o d e
V i e n a . A o d i s c o r d a r d e s te s ú lt im o s , P o p p e r a f i r m a v a s u a c r e n ç a e m a lg o n ã o m u i t o
d i f e r e n t e d a c o n c e p ç ã o c lá s s ic a d o p a p e l d a f i l o s o f i a .” O q u e q u e r q u e se c o m e n t e
a esse r e s p e ito , h á s e g u r a m e n t e u m a “ filo s o f ia t r a d i c i o n a l ” — a d e D e s c a r te s e
S p in o z a , p o r e x e m p l o q u e c o n s id e ra a “in tu iç ã o ” c o m o fo n te d o c o n h e c im e n to :
m a s s e m p r e m e o p u s a e l a . 1 A p a r t i r d e s s e p o n t o , K irk e s c re v e “i n t u i ç ã o ” , n o s e n ­
tid o e m q u e u so o te r m o a q u i, v á ria s vezes e n tr e a sp a s , e o u tr a s ta n ta s sem a sp a s —
c o n t u d o , a o q u e p a r e c e , s e m p r e ’so b a im p r e s s ã o (e c e r t a m e n t e c r i a n d o essa i m ­
p r e s s ã o ) d e q u e m e e s tá c i t a n d o , a o m e a t r i b u i r id é i a s in t u i c i o n i s t a s : id é ia s q u e
n u n c a d e f e n d i . C o m e f e i to , a ú n i c a vez q u e a p a l a v r a “ i n t u i ç ã o " a p a r e c e n o te x t o
d a m i n h a c o n f e r ê n c ia ^ , é u s a d a n u m c o n t e x t o a o m e s m o te m p o a n t i i n d u t i v i s t a e
a n t i i n t u i c i o n a l i s t a . F a l a n d o s o b r e o c a r á t e r c ie n t íf ic o d e u m a t e o r i a , d is se ( itá lic o 12

1 — K ir k c i t a , a p á g i n a s 3 2 2 , L . S c . D . ( p á g . 3 2 ); c o n t u d o , le n d o - s e o q u e p r e c e d e a q u e l a m i n h a r e ­
f e r ê n c ia a B e r g s o n , v e r e m o s q u e a a d m is s ã o d e q u e t o d a d e s c o b e r t a c o n t é m u m “e l e m e n t o ir r a c i o n a l
( a l é m d e o u t r o s e le m e n to s ) — u m a “ i n t u i ç ã o c r i a d o r a ” — , n ã o é i r r a c i o n a l i s t a o u i n t u i c i o n i s t a , n o s e n ­
tid o d e q u a l q u e r " f ilo s o f ia t r a d i c i o n a l ” . V id e t a m b é m a i n t r o d u ç ã o d o p r e s e n t e v o lu m e .

2 — O c o r r e m t a m b é m r e f e r ê n c ia s c a s u a is , e m q u e a p a l a v r a é e m p r e g a d a s e m s e n t i d o t é c n ic o , quase
d ep recia tiva m en te.
C O N JE C T U R A S H IST Ó R IC A S: A O PIN IÃ O D E H E R A C L IT O SO B R E A M U DANÇA 181

a c re s c e n ta d o ): “O m a is im p o r ta n te d e u m a te o r ia é su a c a p a c id a d e d e e x p lic a r, d e
e n f r e n t a r c r í t i c a e te s te s . A q u e s t ã o d a o r i g e m , d e c o m o se c h e g o u à t e o r i a — s e ja
p o r ‘p r o c e d im e n to in d u t i v o ’, c o m o d iz e m a lg u n s, o u p ela in tu iç ã o ... t e m p o u c o a
ver c o m seu p a d r ã o o u c a r á te r c ie n tíf ic o .”

K ir k c i t a e ss a p a s s a g e m e a d i s c u t e . M a s o f a t o i n d i s c u t ív e l a li in d i c a d o —
d e q u e n e m a c re d ito n a in d u ç ã o n e m n a in tu iç ã o — n ã o o im p e d e d e m e a tr ib u i r
c o n s t a n t e m e n t e u m p o n t o d e v is ta i n t u i c i o n i s t a . E o q u e fa z , p o r e x e m p l o , n a p a s ­
s a g e m c i t a d a a c i m a ; o u n a p á g . 3 2 4 , a o e x a m i n a r a q u e s t ã o d e s a b e r se é a c e itá v e l
m i n h a a l e g a d a “ p r e m is s a d e q u e a c iê n c ia t e m s e u p o n t o d e p a r t i d a e m i n t u i ç õ e s ”
( e m b o r a a f i r m e q u e e la t e m s e u p o n t o d e p a r t i d a e m p r o b l e m a s ) ; o u a i n d a n a p á g .
3 2 6 , q u a n d o p e r g u n t a : “D e v e m o s p o r t a n t o i n f e r i r , c o m P o p p e r , q u e a te o r i a d e
T a l e s d e v e te r - s e b a s e a d o n u m a i n t u i ç ã o n ã o - e m p í r i c a ? ”

M a s o m e u p o n t o d e v is ta é m u i t o d i f e r e n t e . N ã o d ig o q u e a c iê n c ia p a r t e
d e in t u iç õ e s , m a s s im d e p ro b lem a s-, q u e d e m o d o g e r a l c h e g a m o s a u m a n o v a
te o r i a , t e n t a n d o r e s o lv e r p r o b l e m a s ; q u e esses p r o b l e m a s a p a r e c e m n a s te n t a ti v a s
q u e fa z e m o s p a r a c o m p r e e n d e r o m u n d o d a n o s s a “ e x p e r i ê n c i a ” ( “ e x p e r i ê n c i a ” q u e
c o n s is te e m g r a n d e p a r t e d e e x p e c t a tiv a s o u t e o r i a s , e t a m b é m e m p a r t e e m c o ­
n h e c i m e n t o d e r i v a d o d a o b s e r v a ç ã o — e m b o r a a c h e q u e n ã o e x is te c o n h e c i m e n t o
d e r i v a d o d a o b s e r v a ç ã o p u r a , s e m m e s c la d e t e o r ia s e d e e x p e c t a tiv a s ) . A lg u n s
d e sse s p r o b l e m a s — d o s m a i s in t e r e s s a n te s — s u r g e m d a c r í t i c a c o n s c i e n te d e
te o r ia s a c e i ta s a t é e n t ã o a c r i t i c a m e n t e , o u d a c r í t i c a c o n s c i e n te d e u m a te o r i a
p r e c e d e n t e . U m d o s o b je tiv o s p r i n c i p a i s q u e p r o c u r e i a l c a n ç a r e m m e u t r a b a l h o
s o b r e os p r é - s o c r á t ic o s e r a a s u g e s tã o d e q u e a t e o r i a d e A n a x i m a n d r o p o d e p e r -
f e i t a m e n t e te r - s e o r i g i n a d o n u m a t e n t a t i v a d e c r í t i c a às id é ia s d e T a le s ; e ssa p o d e
t e r s id o a o r i g e m d a t r a d i ç ã o r a c i o n a l i s t a , q u e i d e n t i f i c o c o m a t r a d i ç ã o d a d is c u s ­
são c rític a .

N ã o a c r e d i t o q u e e ss a c o n c e p ç ã o s e ja m u i t o s e m e l h a n t e à filo s o f ia i n t u i ­
c io n i s t a t r a d i c i o n a l . F iq u e i s u r p r e s o a o d e s c o b r i r q u e K irk s u g e r e q u e o e r r o d a
m i n h a a b o r d a g e m p u d e s s e s e r e x p l i c a d o c o m o o e q u ív o c o d e u m filó s o fo e s p e ­
c u la t iv o s e m f a m i l i a r i d a d e s u f ic ie n t e c o m a p r á t i c a c i e n t í f i c a , a o d iz e r , p o r e x e m ­
p lo , n a p á g . 3 2 0 : “ P a r e c e p o ssív e l q u e s u a c o n c e p ç ã o d a c iê n c ia n ã o r e s u lte d e u m a
o b s e r v a ç ã o o b je t iv a d o m o d o c o m o t r a b a l h a m o s c i e n t i s t a s , m a s q u e t e n h a r e s u l ­
t a d o e la p r ó p r i a d e u m a a p l i c a ç ã o in i c ia l d a t e o r i a d e s e n v o lv id a p o r P o p p e r —
u m a “i n t u i ç ã o ” r e l a c i o n a d a d e p e r t o c o m a s d i f i c u l d a d e s a t u a i s d a filo s o f ia e c o m ­
p a r a d a p o s t e r i o r m e n t e c o m o p r o c e d i m e n t o c i e n t í f i c o r e a l ” . 3 S e r ia d e e s p e r a r q u e
m e s m o u m le i to r s e m g r a n d e c o n h e c i m e n t o c ie n t íf ic o tiv e sse p e r c e b i d o q u e p e lo
m e n o s a lg u n s d o s m e u s p r o b l e m a s s e o r i g i n a r a m n o c a m p o d a s c iê n c ia s fís ic a s , e
q u e m i n h a f a m i l i a r i d a d e c o m a p r á t i c a e a in v e s ti g a ç ã o c ie n t íf ic a s n ã o é in te i-
ra m e n te d e s e g u n d a m ã o .

O ti p o d e d is c u s s ã o c r í t i c a a q u e m e r e f i r o é , n a t u r a l m e n t e , u m a d is c u s s ã o
e m q u e a e x p e r i ê n c i a d e s e m p e n h a u m p a p e l m u i t o i m p o r t a n t e : a p e la m o s c o n s t a n ­
t e m e n t e p a r a a o b s e r v a ç ã o e a e x p e r i m e n t a ç ã o c o m o te ste s d a s n o s s a s te o r ia s . N o
e n t a n t o , K irk c h e g a a o e x t r e m o ( n a p á g . 3 3 2 ; i t á l i c o a c r e s c e n t a d o ) d e m e n c i o n a r

3 K irk c o lo c a a p a l a v r a " i n t u i ç ã o " e n t r e a s p a s , s u g e r i n d o a s s im q u e e u e s te ja e m p r e g a n d o " i n t u i ç ã o "


n e ss e s e n ti d o e s p e c ia l.
182 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

“a tese d e P o p p e r d e q u e to d a s as te o ria s c ie n tífic a s se b a se ia m in te ir a m e n te e m in-


tu iç õ e s ’'.

C o m o a m a i o r p a r t e d o s filó s o fo s , e s to u a c o s t u m a d o a v e r m e u s p o n to s d e
v is ta d is to r c i d o s e c a r i c a t u r i z a d o s . T e m o s a í, p o r é m , a lg o d i f e r e n t e d e u m a c a ­
r i c a t u r a ( q u e s e m p r e se a p ó i a n u m a s e m e l h a n ç a r e c o n h e c í v e l c o m o o r i g in a l ) :
n e n h u m d o s m e u s a m ig o s , c r í ti c o s e o p o s ito r e s , e m p i r i s t a s o u p o s itiv is ta s , j a m a i s
m e a t a c o u p o r s u s t e n t a r o u r e v iv e r u m a e p i s t e m o l o g i a i n t u i c i o n i s t a ; a o c o n t r á r i o ,
d e m o d o g e r a l e le s a f i r m a m q u e m i n h a t e o r i a d o c o n h e c i m e n t o n ã o se a f a s t a d e
m o d o s i g n if ic a tiv o d a q u e s u b s c r e v e m .

D o q u e s e g u e v e r e m o s q u e K irk a p r e s e n t a v á r i a s c o n j e c t u r a s s o b r e o c o n ­
t e ú d o d a m i n h a filo s o f ia e s u a o r i g e m ; m a s n ã o p a r e c e t e r c o n s c i ê n c ia d o c a r á t e r
c o n j e c t u r a l d e s s a s c o n s t r u ç õ e s . A o c o n t r á r i o , a c r e d i t a h a ' e r e v id ê n c ia t e x t u a l a
s u s t e n t á - l a s . D e f a t o , d iz q u e m i n h a " a t i t u d e d e m e t o d o l o g i a c i e n t í f i c a . . . f o r m o u - s e
a o e s c r e v e r o p r e f á c io d e 1 9 5 8 d e T h e L o g ic o f S c ie n tific D is c o v e r y , n u m a r e a ç ã o
c o n t r a a s t e n t a t i v a s d o C ír c u l o d e V ie n a d e b a s e a r t o d a a v e r d a d e c i e n t íf ic a e f i ­
lo s ó fic a (sic) n a v e r i f ic a ç ã o e x p e r i m e n t a l ” ( p á g . 3 1 9 ). S e r ia d e s n e c e s s á r io c o m e n t a r
a d e s c r iç ã o e r r ô n e a d a filo s o f ia d e W i t t g e n s t e i n e d o C ír c u l o d e V ie n a . C o n t u d o ,
c o m o se t r a t a d e u m h i s t o r i a d o r d a filo s o f ia q u e te c e c o m e n t á r i o s s o b r e o q u e e s ­
c re v í, c r e io o p o r t u n o e s v a z ia r u m m i t o h is tó r i c o a e sse r e s p e ito . N o p r e f á c i o a q u e
K irk se r e f e r e , n ã o d is se u m a só p a l a v r a s o b r e a o r i g e m d o m e u p o n t o d e v is ta e d a
m i n h a a t i t u d e . N a v e r d a d e , n a d a p o d e r í a t e r e s c r ito n a s l i n h a s i n d i c a d a s p o r K ir k ,
p o r q u e a r e a l i d a d e é b e m d iv e r s a . U m a p a r t e d e s s a e s t ó r i a , p u b l i c a d a p e la p r i ­
m e i r a vez e m 1 9 5 7 , o S e n h o r K irk p o d e r í a e n c o n t r a r n u m a c o n f e r ê n c i a q u e
p r o n u n c i e i e m C a m b r i d g e , r e c o l h i d a a g o r a n e s te v o lu m e , s o b o t í t u l o “C iê n c ia :
C o n j e c t u r a s e R e f u t a ç õ e s ” ; n e ss e t r a b a l h o c o n te i c o m o se d e s e n v o lv e u m i n h a
a t i t u d e d e r e a ç ã o c o n t r a a s t e n t a t i v a s d e M a r x , F r e u d e A d le r — n e n h u m d o s q u a is
fo i p o s itiv is ta , o u p e r t e n c e u a o C ír c u l o d e V ie n a . P a r e c e im p r o v á v e l q u e e ssa i n ­
c o m p r e e n s ã o in e x p lic á v e l p o r p a r t e d o S e n h o r K ir k se d e v a à o b s c u r i d a d e h e r a -
c l i a n a d o m e u e s tilo : d e f a t o , a f a z e r u m a c o m p a r a ç ã o c o m o " R e t o r n o a o s P ré -
S o c r á t ic o s ” ( p á g . 3 1 8 ), d e s c r e v e o m e s m o p r e f á c io d e 1 9 5 8 , a q u e se r e f e r e a p a s ­
s a g e m a c i m a , q u a l i f i c a n d o - o d e “f o r m u l a ç ã o m a is l ú c i d a ” .

O u t r o e x e m p l o d a i n t e r p r e t a ç ã o e r r ô n e a d e T h e L o g ic o f S cien tific D is­


covery é t a m b é m in e x p lic á v e l — p e lo m e n o s p a r a q u e m t e n h a lid o a q u e l e liv ro a t é
a p á g . 61 ( p a r a n ã o m e n c i o n a r a s p á g s . 2 7 4 o u 2 7 6 ), o n d e m e r e f ir o a o p r o b l e m a
d a v e r d a d e e à te o r ia d a v e r d a d e d e A lf r e d T a r s k i . K irk d e c l a r a q u e " P o p p e r
a b a n d o n a o c o n c e i to d a v e r d a d e c i e n t íf ic a a b s o l u t a " ( p á g . 3 2 0 ). E le n ã o p a r e c e v e r
q u e , q u a n d o a f i r m o q u e n ã o te m o s c o n d iç õ e s d e s a b e r se a t é m e s m o u m a te o r i a
c ie n t íf ic a b e m c o r r o b o r a d a é v e r d a d e i r a o u n ã o , e s to u n a v e r d a d e p r e s u m i n d o u m
" c o n c e i to d e v e r d a d e c ie n t íf ic a a b s o l u t a ” e x a t a m e n t e c o m o a l g u é m q u e d iz
" N ã o c o n s e g u i a l c a n ç a r o o b j e t i v o ” a c e i ta u m “c o n c e i t o a b s o l u to d e o b je t iv o ” , c u ja
e x is tê n c i a é p r e s u m i d a in d e p e n d e n te m e n te de ser ele a lcançado ou não.

É s u r p r e e n d e n t e e n c o n t r a r e ssa s in c o m p r e e n s õ e s tã o ó b v ia s , e c ita ç õ e s
o c a s i o n a l m e n t e e q u iv o c a d a s , e m t r a b a l h o e s c r ito p o r u m e m i n e n t e e s tu d io s o , h i s ­
t o r i a d o r d a filo s o f ia . E la s t o r n a m d e s n e c e s s á b a u m a d e fe s a filo s ó f ic a d o s m e u s
p o n to s d e v is ta re a is a r e s p e ito d a c iê n c ia .
C O N JE C T U R A S H IST Ó R IC A S: A O PIN IÃ O DE H E R A C L IT O S O B R E A M U DA NÇA 183

II

P o ss o v o l t a r -m e a g o r a p a r a u m p o n t o m a is r e l e v a n t e — a h i s t ó r i a d o s p r é -
s o c r á tic o s . V o u d e d i c a r - m e , n e s t a s e ç ã o , a e s c l a r e c e r d o is d o s e r r o s d e K ir k a r e s ­
p e it o d o m é t o d o h is tó r i c o q u e u tiliz e i e d a m i n h a c o n c e p ç ã o d o m é t o d o d a h i s ­
t ó r i a , d e m o d o g e r a l . N a s e ç ã o s e g u i n te to c a r e i n a s n o s s a s d iv e r g ê n c ia s r e a is .

1) K ir k d i s c u t e , n a p á g . 3 2 5 , u m a o b s e r v a ç ã o q u e fiz p a r a c o p f e s s a r m i n h a
f a l t a d e c o m p e t ê n c i a n o q u e se r e f e r e à a n á li s e l i n g ü ís ti c a d o s te x to s . A p a s s a g e m
e m q u e s t ã o re z a : " . . . s i n to - m e t o t a l m e n t e d e s l o c a d o q u a n d o u m e n t e n d i d o n o a s ­
s u n t o se p õ e a d i s c u t i r s o b r e q u a is a s p a l a v r a s o u e x p re s s õ e s q u e H e r á c l i t o t e r i a o u
n ã o u s a d o .”

C o m e n t a n d o esse t r e c h o , K irk e x c l a m a : “ C o m o se a s p a l a v r a s o u e x p re s s õ e s
q u e H e r á c l i t o t e r i a o u n ã o u s a d o n ã o fo s se m r e l e v a n te s p a r a a v a l i a r o q u e p e n ­
s a v a !”

O r a , n u n c a d is se q u e e sse a s p e c t o n ã o e r a r e l e v a n t e . C o n fe s s e i a p e n a s q u e *
n ã o h a v ia e s t u d a d o b a s t a n t e os u so s lin g ü ís tic o s d e H e r á c l i t o (e o u t r o s a u t o r e s ) p a r a ·
m e s e n t i r e m c o n d iç õ e s d e d i s c u t i r o t r a b a l h o r e a l i z a d o n e s s e c a m p o p o r e r u d i t o s
c o m o , p o r e x e m p l o , B u r n e t , D ie ls , R e i n h a r d t o u , m a is r e c e n t e m e n t e , V la s to s e o
p r ó p r i o K irk .

M a s K irk p r o s s e g u e , d iz e n d o ;
“ E ssas p a l a v r a s e e x p re s s õ e s ', c o m o u t r o s f r a g m e n t o s v e r b a tim d o s p r ó p r i o s
p r é - s o c r á t ic o s , c o n s t i t u e m ‘os te x to s m a i s a n ti g o s d e q u e * d is p o m o s ’, e n ã o o s r e l a t o s *■
d e P l a t ã o , A r is tó te le s e d o s d o x ó g r a f o s , c o m o P o p p e r p a r e c e a c r e d i t a r . . . D e v e r ia
s e r ó b v io , m e s m o p a r a u m ‘a m a d o r ’, q u e a r e c o n s t r u ç ã o d o p e n s a m e n t o p r é -
s o c r á tic o d e v e b a s e a r - s e , a o m e s m o t e m p o , n a t r a d i ç ã o m a is r e c e n t e e n o s f r a g ­
m e n to s e x is te n te s .”
N ã o p o ss o i m a g i n a r c o m o p u d e i n d u z i r K irk a p ren sar q u e e ssa s c o is a s / n ã o
s ã o “ ó b v ia s ” — m e s m o p a r a e s te a m a d o r . E le p o d e r í a t e r o b s e r v a d o a f r e q ü ê n c i a
c o m q u e c ito , t r a d u z o e d is c u to a q u e le s f r a g m e n t o s ( m u i t o m a is d o q u e os r e l a to s
d e P l a t ã o e d e A r is tó te le s , e m b o r a c o n c o r d e m o s , a g o r a , q u e e s te s t a m b é m s ã o
r e l e v a n te s ) , t a n t o e m “R e t o r n o a o s P r é - S o c r á t i c o s ” , c o m o e m O p e n S o c ie ty , o n d e
e x a m i n e i m u i t o s d o s f r a g m e n t o s e x is te n te s d e H e r á c l i t o . K irk fa z r e f e r ê n c i a a esse
liv ro n a p á g . 3 2 4 . P o r q u e , e n t ã o , i n t e r p r e t a a q u e l a m i n h a f r a s e , n a p á g . 3 2 5 ,
c o m o se m a n i f e s t a s s e d e s in te r e s s e p o r esses f r a g m e n t o s , o u p e lo s e u s ta tu s h is tó r ic o ?
2 ) P a r a e x e m p l i f i c a r o m o d o in s a ti s f a t ó r io c o m o K irk r e s p o n d e às m i n h a s
c r í ti c a s , c it o a g o r a a p a r t e f i n a l d a s u a r e s p o s ta ( p á g . 3 3 9 ), e m q u e d iz :

“ M a is e s p a n t o s o a i n d a , ( P o p p e r ) a p li c a o c r i t é r i o d a v e r d a d e p o ss ív e l c o m o
te s e d a h i s t o r i c i d a d e d e u m a t e o r i a . N a p á g . 16, o b s e r v a q u e “ a s u g e s tã o d e q u e
te s te m o s a h is t o r i c i d a d e d a s id é ia s d e H e r á c l i t o . . . p e lo s p a d r õ e s d o s e n s o c o m u m ”
é u m t a n t o s u r p r e e n d e n t e . N ã o s e r á o c a s o d e c o n s i d e r a r m o s o te s te q u e p r o p õ e
m u i t o m a is s u r p r e e n d e n t e ? M a s o p o n t o d e c is iv o é , n a t u r a l m e n t e , q u e e s s a f i ­
lo s o fia i n s p i r a d a (isto é , o h o m e m v is to c o m o u m a c h a m a , e t c . ) é v e r d a d e ir a , t a n t o
q u a n t o s a b e m o s ."

A isso se p o d e r e s p o n d e r s i m p l e s m e n t e q u e n e m d is s e , n e m d e ix e i i m p l i c a d o
q u e a v e r d a d e , o u a p o ss ív e l v e r d a d e d e u m a t e o r i a , é u m “t e s t e ” d a s u a h is to r i-
184 C O N JE C T U R A S E R E FU T A Ç Õ E S

c i d a d e . (O q u e se p o d e v e r , a p a r t i r d a s p á g i n a s 16 e 17 d a - m i n h a c o n f e r ê n c i a , e
n o s e g u n d o p a r á g r a f o d a s e ç ã o v ii; i n c i d e n t a l m e n t e , t e r á K irk e s q u e c i d o s u a te s e d e
q u e a b a n d o n e i a id é i a d a v e r d a d e ? ) P o r o u t r o l a d o , a o p ô r “t e s t e ” e n t r e a s p a s , i n ­
d i c a n d o a s s im q u e e m p r e g u e i o t e r m o n e s s e c o n t e x t o , o u n e s s e s e n t i d o , K irk
c l a r a m e n t e f a z u m a f a ls a a t r i b u i ç ã o . T u d o o q u e d is s e , o u d e ix e i i m p l i c a d o , é q u e
a v e r d a d e d a t e o r i a s o b r e a m u d a n ç a t r a d i c í o n a l m e n t e (e a p r o p r i a d a m e n t e )
a t r i b u í d a a H e r á c l i t o d e m o n s t r a q u e essa a tr ib u iç ã o p elo m e n o s d á s e n tid o à f i ­
lo s o f ia d e H e r á c l i t o — m a s n ã o c o m p r e e n d e r o s i g n if i c a d o d a f ilo s o f ia a t r i b u í d a a
H e r á c l i t o p o r K ir k . I n c i d e n t a l m e n t e , c r e i o q u e u m p r i n c í p i o i m p o r t a n t e e a t é
m e s m o e v i d e n t e d a h i s t o r i o g r a f i a e d a i n t e r p r e t a ç ã o d a s id é i a s e o d e p r o c u r a r
s e m p r e a t r i b u i r a u m p e n s a d o r u m a t e o r i a in t e r e s s a n t e e v e r d a d e i r a , e m l u g a r d e
u m a te o r i a f a l s a e s e m in t e r e s s e , d e s d e , n a tu r a lm e n te , q u e a e v id ê n c ia h istó ric a a
isso n o s a u t o r i z e . N ã o se t r a t a d e c e r t o d e u m c r i t é r i o , o u d e u m “t e s t e ” , m a s , q u e m
n ã o o f iz e r p r o v a v e l m e n t e n ã o c o m p r e e n d e r á u m g r a n d e p e n s a d o r c o m o fo i H e ­
rá c lito .
III

A d i v e r g ê n c i a m a is i m p o r t a n t e e n t r e K ir k e m i m , n o q u e d iz r e s p e i t o a o s
p r é - s o e r á t ic o s , t e m a v e r c o m a i n t e r p r e t a ç ã o d e H e r á c l i t o . N e s te p o n t o a c h o q u e ,
ta lv e z d e f o r m a i n c o n s c i e n t e , K ir k q u a s e a c e i t o u m e u s d o is a r g u m e n t o s , q u e d i s ­
c u tire i a d ia n te .
D e m o d o g e r a l , m i n h a a p r o x i m a ç ã o a H e r á c l i t o p o d e s e r d e s c r i t a c o m as
p a l a v r a s d e K a r l R e i n h a r d t : “A h i s t ó r i a d a filo s o f ia é a h i s t ó r i a d o s s e u s p r o b l e m a s .
P a r a e x p l i c a r H e r á c l i t o é p r e c is o d iz e r p r i m e i r o q u a l e r a s e u p r o b l e m a ” . 4

M i n h a r e s p o s ta a esse d e s a f io c o n s is tiu e m d iz e r q u e o p r o b l e m a d e
H e r á c l i t o e r a o 'p r o b le m a d a m u d a n ç a — o p r o b l e m a g e r a l c o n t i d o n a in d a g a ç ã o :
“C o m o é p o ss ív e l a m u d a n ç a ? ” “ C o m o é p o s s ív e l q u e u m a c o is a m u d e s e m p e r d e r
s u a i d e n t i d a d e ? ” . ( V id e “ R e t o r n o a o s P r é - S o c r á ti c o s ” , s e ç õ e s v iii e ix .)

A c r e d i t o q u e a g r a n d e m e n s a g e m d e H e r á c l i t o e s t a v a a s s o c ia d a à d e s c o b e r ta
d e ss e p r o b l e m a tã o e s t i m u l a n t e — d e s c o b e r t a q u e le v o u à s o l u ç ã o d e P a r m ê n i d e s
d e q u e a m u d a n ç a é lo g i c a m e n t e im p o s s ív e l; e , m a is t a r d e , à t e o r i a d e L ê u c ip o e
d e D e m ó c r i to , r e l a c i o n a d a c o m a p r i m e i r a , d e q u e as c o is a s n a v e r d a d e n ã o
m u d a m i n t r i n s e c a m e n t e , e m b o r a m o d i f i q u e m a p o s i ç ã o q u e o c u p a m n o v a z io .

É a s e g u i n te a s o l u ç ã o p a r a esse p r o b l e m a q u e , s e g u i n d o P l a t ã o , A r is tó te le s
e os fr a g m e n to s , a t r i b u i a H e r á c l i t o : n ã o h á n a d a q u e s e ja i m u tá v e l ; o q u e v e m o s
c o m o u m a c o is a n a v e r d a d e é u m p ro c e s s o . N a r e a l i d a d e , u m a c o is a m a t e r i a l se a s ­
s e m e lh a a u m a c h a m a — q u e p a r e c e s e r m a t e r i a l , m a s n ã o o é : é u m p r o c e s s o , u m
f lu x o ; á m a t é r i a t r a n s i t a p o r e l a ; é c o m o u m rio .

4 — K . R e i n h a r d t , P arm enides, 2 . a e d . , 1 9 5 9 , p a g . 2 2 0 . N ão · p o s s o m e n c i o n a r e sse liv r o s e m m a n i f e s ­


t a r a e n o r m e a d m i r a ç ã o q u e t e n h o p o r e le , e m b o r a m e s i n t a le v a d o , h e s i t a n t e m e n t e , a d i s c o r d a r d a s u a
te s e f u n d a m e n t a l : d e q u e P a r m ê n i d e s n ã o s ó d e u o r ig e m a o s e u p r o b l e m a i n d e p e n d e n t e m e n t e d e
H e r a c l i t o , m a s q u e o p r e c e d e u , t r a n s m i t i n d o - l h e a q u e l e p r o b l e m a . C r e io , p o r é m , q u e R e i n h a r d t
a p r e s e n t a ra z õ e s m u i t o p o d e r o s a s p a r a a p o i a r o p o n t o d e v is ta d e q u e u m desses dois filósofos d ependeu
do outro. P o d e r í a d iz e r , ta lv e z , q u e m i n h a t e n t a t i v a d e “ l o c a l i z a r ” o p r o b l e m a d e H e r á c l i t o ( p o r a s s im
d iz e r ) p o d e s e r v is ta c o m o u m e s f o rç o p a r a r e s p o n d e r a o d e s a f io d e R e i n h a r d t , r e p r o d u z i d o a q u i . ( V id e
t a m b é m a s e ç ã o vi d o c a p . 2 .)
C O N JE C T U R A S H IST Ó R IC A S: A O PIN IÃ O D E H E R A C L IT O SO B R E A M U DANÇA 185

A s s im , to d a s a s c o is a s a p a r e n t e m e n t e e s tá v e is c o n s t i t u e m f lu x o s ; a lg u m a s
d e la s — a s q u e t ê m a p a r ê n c i a d e c l a r a e s t a b i l i d a d e — e s t ã o e m f lu x o in v isív el.
D e s ta f o r m a , a filo s o f ia d e H e r á c l i t o p r e p a r a o c a m i n h o p a r a a d i s t i n ç ã o e s t a ­
b e l e c i d a p o r P a r m ê n i d e s e n t r e a a p a r ê n c ia e a re a lid a d e .

P a r a q u e t e n h a o a s p e c t o d e u m a c o is a e s tá v e l, o p ro c e s s o (a r e a l i d a d e , p o r
tr á s d a c o is a ) p r e c i s a s e r r e g u l a r , s e m e l h a n t e a u m a lei — m e d id o . A s s im , a l â m ­
p a d a c u ja c h a m a é e s tá v e l p r e c i s a s u p r i m i - l a c o m u m a m e d i d a d e f i n i d a d e ó le o .
N ã o p a r e c e im p r o v á v e l q u e a id é i a d e u m p ro c e s s o m e d i d o , s e m e l h a n t e a u m a le i,
t e n h a s id o d e s e n v o lv id a p o r H e r á c l i t o a p a r t i r d e s u g e s tõ e s d o s m i le s ia n o s — e m e s ­
p e c ia l d e A n a x i m a n d r o — a r e s p e ito d o s e n t id o d a s m u d a n ç a s c ó s m ic a s p e r i ó d ic a s
(ta is c o m o a n o it e e o d i a , p o s s iv e lm e n te t a m b é m a s m a r é s , a s fa s e s d a l u a , e e s ­
p e c i a l m e n t e a s e s ta ç õ e s d o a n o ) . E ssa s r e g u l a r i d a d e s p o d e m m u i t o b e m t e r c o n ­
t r i b u í d o p a r a a c o n c e p ç ã o d e q u e a a p a r e n t e e s t a b i l i d a d e d a s c o is a s , e m e s m o d o
c o s m o s , p o d e s e r e x p l i c a d a c o m o u m p ro cesso “m e d i d o ” — r e g i d o p o r le i.

1) O p r i m e i r o d o s d o is p o n to s p r i n c i p a i s a r e s p e ito d o s q u a is c r i t i q u e i a i n ­
t e r p r e t a ç ã o d e H e r á c l i t o p o r K ir k é o s e g u i n te : K ir k s u g e r i u q u e H e r á c l i t o n ã o
a c r e d i t a v a q u e “u m a p e d r a , o u u m c a l d e i r ã o d e b r o n z e . . . e stiv e s s e m s e m p r e s o ­
f r e n d o a l t e r a ç õ e s in v is ív e is ” . ( S e r ia c o n t r á r i o a o s e n s o c o m u m a c r e d i t a r n is s o ). A
lo n g a d is c u s s ã o q u e K ir k d e d i c a à m i n h a c r í t i c a ( p á g . 3 3 4 ) c h e g a p o r fim à s e g u i n ­
te a f i r m a t i v a :

“N e s te p o n t o o a r g u m e n t o se t o r n a a lg o r a r e f e i t o . C o n c o r d o , n o e n t a n t o ,
q u e é t e o r i c a m e n t e p o ss ív e l q u e c e r t a s m u d a n ç a s inv isív eis d a n o s s a e x p e r i ê n c i a —
p o r e x e m p lo , a o x id a ç ã o g r a d u a l d o fe rro , c ita d a p o r P o p p e r — te n h a m im p r e s ­
s i o n a d o H e r á c l i t o f o r t e m e n t e , l e v a n d o - o a a f i r m a r q u e t u d o e stiv e ss e e m p ro c e s s o
d e m u d a n ç a , v isív e l o u n ã o . N ã o c r e i o , p o r é m , q u e os f r a g m e n t o s c o n t e n h a m
n e n h u m a s u g e s tã o n e s te s e n t i d o ” ( p á g . 3 3 6 ).

N ã o c r e io q u e o a r g u m e n t o p r e c is e t o r n a r - s e r a r e f e i t o e m n e n h u m m o m e n ­
to ; p o r o u t r o la d o , m u i to s f r a g m e n t o s s u g e r e m a t e o r i a q u e a t r i b u i a H e r á c l i t o .
M a s , a n te s d e c itá - lo s , p r e c i s o r e i t e r a r u m a p e r g u n t a q u e f o r m u le i n a m i n h a c o n ­
f e r ê n c i a : se o fo g o é p o r a s s im d iz e r o p r o t ó t i p o o u m o d e l o e s t r u t u r a l (o u “f o r m a -
a r q u é t i p o ” ) d a m a t é r i a , c o m o q u e r e m K irk e R a v e n , q u e p o d e isso s i g n if i c a r s e n ã o
q u e a s c o is a s m a t e r i a i s s ã o c o m o c h a m a s — p o r t a n t o , s ã o p ro c e s s o s ?

N ã o q u e r o d iz e r , n a t u r a l m e n t e , q u e H e r á c l i t o u s o u u m t e r m o a b s t r a t o
c o m o “ p r o c e s s o ” , m a s c o n j e c t u r o q u e a p l i c o u s u a te o r i a n ã o só à m a t é r i a e m a b s ­
t r a t o , o u “ à o r d e m d o m u n d o c o m o u m to d o ” , c o m o d iz K irk ( p á g . 3 3 5 ), m a s t a m ­
b é m a coisas c o n c r e t a s , is o la d a s ; c o is a s q u e p o d e m s e r c o m p a r a d a s a c h a m a s
is o la d a s e c o n c r e t a s .
Q u a n t o a o s f r a g m e n t o s , h á , e m p r i m e i r o l u g a r , os q u e se r e f e r e m a o so l.
P a r e c e - m e b a s t a n t e c la r o q u e H e r á c l i t o c o n s i d e r a v a o sol u m a co isa , o u ta lv e z
m e s m o u m a n o v a c o is a , c a d a d i a ; v e ja - s e , p o r e x e m p l o , D K , B 6, o n d e se lê: 5 " O
S ol é n o v o c a d a d i a ” — e m b o r a isso ta lv e z q u is e s s e d iz e r a p e n a s q u e , c o m o u m a
l â m p a d a , e le v o lt a a se a c e n d e r c a d a d i a . B 9 9 d iz : “S e n ã o h o u v e s s e o S o l, s e r ia
n o i t e , a d e s p e i to d e to d a s as o u t r a s e s t r e l a s .” ( V id e t a m b é m B 2 6 , e m i n h a o b s e r ­

5 — D ie ls - K r a n z . V id e B 51 in V la s to s , A J P 7 6 , 1 9 5 5 , p á g . 3 4 8 .
186 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

v a ç ã o a c i m a a r e s p e i t o d e l â m p a d a s e m e d i d a s , c o m p a r a n d o c o m B 9 4 .) E B 12 5 :
“ Se n ã o f o r a g i t a d a , a c e r v e ja se d e c o m p õ e ” — o m o v i m e n t o , o p r o c e s s o , é i n d i s ­
p e n s á v e l p a r a a e x is tê n c i a d a c o is a q u e , s e m e le , d e i x a d e e x i s t i r . D iz B 5 1 : “ O q u e
l u t a c o n s ig o m e s m o se c o m p r o m e t e c o n s ig o m e s m o ; h á u m v ín c u l o , u m a h a r m o n i a ,
p r o v o c a d a p e lo m o v i m e n t o d e r e t o m o d a m o l a , p e l a te n s ã o , c o m o a c o n t e c e
c o m o a r c o e c o m a l i r a ” . E a te n s ã o , a f o r ç a a t i v a , a l u t a i n e r e n t e ( u m p r o c e s s o )
q u e f a z e m c o m q u e o a r c o e a l i r a s e ja m o q u e s ã o — só e n q u a n t o a t e n s ã o é m a n ­
t i d a , e n q u a n t o a o p o s i ç ã o d a s s u a s p a r t e s se m a n t é m e le s c o n t i n u a m a s e r o q u e
são .
E v e r d a d e q u e H e r á c l i t o a m a v a a s g e n e r a l iz a ç õ e s e a b s t r a ç õ e s ; p r o s s e g u e ,
a s s im , p a r a u m a g e n e r a l i z a ç ã o i m e d i a t a q u e p o d e t e r p r e t e n d i d o s i t u a r e s c a l a c ó s ­
m i c a , c o m o e m B 8: “ O s o p o s to s c o n c o r d a m ; d a d i s c o r d â n c i a r e s u l t a a m e l h o r h a r ­
m o n i a ” (v id e t a m b é m B 10). M a s isso n ã o s i g n if ic a q u e d e i x a d e v e r a s c o is a s s i m ­
p le s — a l i r a , a l â m p a d a , a c h a m a , o r i o (B 12, 4 9 a ) ; “ S ã o á g u a s d i f e r e n t e s q u e
b a n h a m os q u e e n t r a m n o m e s m o r i o . . . E n t r a m o s e n ã o e n t r a m o s n o m e s m o r i o .
Som os e n ã o som os” .

C o n t u d o , a n t e s d e s e r s ím b o lo s d o s p ro c e s s o s c ó s m ic o s , os rio s s ã o r e a l i d a d e s
c o n c r e t a s ; a lé m d is s o , s ã o s ím b o lo s d e c o is a s c o n c r e t a s — in c lu s iv e d o h o m e m . E m ­
b o r a a a f i r m a t i v a “ S o m o s e n ã o s o m o s ” ( q u e , i n c i d e n t a l m e n t e , K ir k e R a v e n
p r e f e r e m n ã o a t r i b u i r a H e r á c l i t o ) s e ja , n u m c e r t o s e n t id o , u m a a b s t r a ç ã o e g e ­
n e r a l i z a ç ã o m u i t o a m p l a , c ó s m ic a ta lv e z , p r e t e n d e s e r t a m b é m u m a p e lo m u i t o
c o n c r e t o a to d o s o s h o m e n s : é u m m e m e n to m o n , c o m o ta n t o s o u tr o s f r a g m e n t o s
q u e n o s r e l e m b r a m q u e a v id a se t o r n a a m o r t e , e a m o r t e , a v id a . ( P o r e x e m p l o : B
8 8 , 2 0 , 2 1 , 2 6 , 2 7 , 6 2 , 7 7 .)

Se B 4 9 a se a p r o x i m a d e u m a v a s ta g e n e r a l i z a ç ã o , B 9 0 se a f a s t a d a id é ia
c ó s m ic a e g e r a l d o f o g o q u e c o n s o m e (e m o r r e ) p a r a c h e g a r a u m p o n t o p a r t i c u l a r :
“T u d o se tr o c a p e lo fo g o e o f o g o p o r t u d o , c o m o a s m e r c a d o r i a s s ã o t r o c a d a s p e lo
o u r o e e s te p e la s m e r c a d o r i a s ” .

A s s im , q u a n d o K irk p e r g u n t a ( p á g . 3 3 6 ): “ P o d e m o s d iz e r q u e a c o n c lu s ã o
d e q u e t o d a s as c o is a s , s e p a r a d a m e n t e , e s tã o e m f lu x o p e r m a n e n t e d e c o r r e d e
m o d o n e c e s s á r io d e q u a l q u e r r a c i o c ín i o s e g u id o p o r H e r á c l i t o ? ” , a r e s p o s ta é e n ­
f a t i c a m e n t e a f i r m a t i v a , n a m e d i d a e m q u e p o d e m o s d iz e r d e a l g u m a c o is a q u e
“ d e c o r r e n e c e s s a r i a m e n t e ” d e u m “ r a c i o c í n i o ” , n e s te c a m p o p e r m e a d o p e l a c o n j e c ­
tu r a e a in te rp re ta ç ã o .

T o m e m o s p o r e x e m p l o B 12 6 : “ O q u e é f r io se t o r n a q u e n t e ; o q u e é q u e n t e
se t o r n a f r io ; o q u e é ú m i d o se t o r n a se c o ; e q u e é s e c o , ú m i d o ” . É u m a a f i r m a t i v a
q u e p o d e p e r f e i t a m e n t e t e r u m s ig n if i c a d o c ó s m ic o , r e f e r ir - s e à s e s ta ç õ e s , à
m u d a n ç a c ó s m ic a . M a s , c o m o d u v i d a r d e q u e se a p li c a a c o is a s c o n c r e t a s , i n d i ­
v id u a is , e as m u d a n ç a s q u e s o f r e m — e , i n c i d e n t a l m e n t e , a n ó s m e s m o s e a n o ss a s
a lm a s — , s o b r e t u d o se q u e r e m o s a t r i b u i r a H e r á c l i t o “s e n s o c o m u m ” , o q u e q u e r
q u e is to s i g n if iq u e ? 6

6 — P a r e c e q u e K irk n ã o c o m p r e e n d e u m i n h a c r í t i c a a o s e u a p e l o a o “s e n s o c o m u m " . C r i t i q u e i o p o n ­
to d e v is ta d e q u e h á , n e s s a m a t é r i a , u m p a d r ã o c l a r o d e s e n s o c o m u m a q u e o h i s t o r i a d o r p u d e s s e
a p e l a r ; s u g e r i (m a s a p e n a s sugeri ) q u e m i n h a i n t e r p r e t a ç ã o d e H e r á c l i t o ta lv e z lh e a t r i b u a t a n t o s e n s o
C O N JE C T U R A S H IST Ó R IC A S: A O PIN IÃ O DE H E R A C L IT O SO B R E A M UDANÇA 187

M a s a s c o is a s n ã o e s tã o a p e n a s e m flu x o — e s tã o e m f lu x o in v isív el. É o q u e


le m o s e m B 8 8 : “ É s e m p r e u m a só e m e s m a c o is a e s t a r v iv o e m o r t o ; e s t a r a c o r d a d o
e d e s p e r t o ; s e r jo v e m e v e lh o . P o r q u e u m a c o is a se t r a n s f o r m a n a o u t r a , e a o u t r a
v o lta a s e r a p r i m e i r a . ” A s s im , n o ss o s filh o s c r e s c e m — c o m o s a b e m o s , d e m o d o i n ­
v is ív e l; m a s os p a is t a m b é m se t r a n s f o r m a m , d e a l g u m m o d o , n o s s e u s filh o s (v id e
B 2 0 , 2 1 , 2 6 , 62 e 9 0 ). T o m e m o s B 10 3 : “ N u m c ír c u lo , o c o m e ç o e o fim s ã o o
m e s m o ” (A i d e n t i d a d e d o s o p o s to s — o p o s to s q u e se f u n d e m in v is iv e lm e n te ; v id e
t a m b é m B 5 4 , 6 5 , 6 7 , 1 2 6 ).

B 4 6 n o s m o s t r a q u e H e r á c l i t o p e r c e b e q u e e ssa s m u d a n ç a s p o d e m d e f a t o
s e r in v isív e is e q u e , p o r t a n t o , s a b e t a m b é m q u e a v is ã o e a o b s e r v a ç ã o s ã o e n ­
g a n o s a s : “ .... a v is ã o é e n g a n o s a ” B 5 4 : “ A h a r m o n i a in v isív e l é m a i s f o r t e d o q u e a
v is ív e l” (v id e t a m b é m B 8 e 5 1 ) B 1 23: “A n a t u r e z a a m a o c u l t a r - s e ” (v id e t a m b é m
B 56 e 1 1 3 ).

N ã o t e n h o a m e n o r d ú v i d a d e q u e q u a l q u e r u m d e ss e s f r a g m e n t o s o u to d o s
e le s p o d e m s e r e x p li c a d o s d e f o r m a d iv e r s a . C o n t u d o , e le s m e p a r e c e m d a r a p o io
à q u i l o q u e , d e q u a l q u e r f o r m a , é r a z o á v e l s u p o r — e q u e r e c e b e a p o io i g u a l m e n t e
d e P l a t ã o e A ris tó te le s ( e m b o r a a e v id ê n c ia p o r p a r t e d e s te ú l t i m o se t e n h a t o r n a d o
s u s p e ita , e s p e c i a l m e n t e d e p o is d o t r a b a l h o i m p o r t a n t e d e H a r o l d C h e r n is s , n i n ­
g u é m a c r e d i t a — H a r o l d C h e r n is s m e n o s a i n d a — q u e e ss a e v id ê n c ia p e r d e u to t a l
m e n t e o c r é d i t o , in c lu s iv e a q u e se a p ó i a e m P l a t ã o e n o s “f r a g m e n t o s ” ).

2 ) O ú l t i m o p o n t o d a m i n h a r e s p o s ta — m e u s e g u n d o e p r i n c i p a l a r g u m e n ­
to a r e s p e ito d e H e r á c l i t o — t e m a v e r c o m o s u m á r i o d a s u a f ilo s o f ia q u e e n c o n ­
t r a m o s e m K ir k e R a v e n ( p á g . 2 1 4 ) , s o b o t í t u l o “C o n c lu s ã o " .

C ite i u m a p a r t e d e s s a c o n c lu s ã o n a m i n h a c o n f e r ê n c i a , d iz e n d o q u e a c h a v a
“ a b s u r d a ” a d o u t r i n a a li a t r i b u í d a a H e r á c l i t o ; e p a r a d e i x a r c l a r o o q u e c o n s i­
d e ra v a “ a b s u r d o ” , usei ê n fa s e . T r a ta - s e d a d o u tr in a , a le g a d a m e n te h e r a c lia n a , d e
q u e a s m u d a n ç a s n a t u r a i s d e to d o s os tip o s ( p o r t a n t o , p r e s u m i v e l m e n t e , t a m b é m os
t e r r e m o t o s e in c ê n d i o s ) s ã o r e g u l a r e s e e q u i l i b r a d a s ; q u e a c a u s a d e s s e e q u i l í b r i o é
o f o g o , a s u b s t â n c i a c o m u m d a s c o is a s , t a m b é m c h a m a d a s e u logos.

N ã o t e n h o o b je ç õ e s a q u e se a t r i b u a a H e r á c l i t o a c o n c e p ç ã o d a m u d a n ç a
g o v e r n a d a p o r le is, o u a d o u t r i n a , ta lv e z m a is d u v id o s a , d e q u e a r e g r a , o u r e ­
g u l a r i d a d e , é o logos d a s c o is a s ; o u a i n d a a id é i a d e q u e o f o g o é a s u b s t â n c i a
c o m u m d a s c o is a s . P a r e c i a m - m e c o n t u d o a b s u r d a s a s d o u t r i n a s : a ) d e q u e t o d a s as
m u d a n ç a s ( m u d a n ç a s d e to d o s o s tip o s ) fo s s e m “e q u i l i b r a d a s ” , n o m e s m o s e n t id o
e m q u e m u i to s p ro c e s s o s i m p o r t a n t e s p o d e m s e r a s s im q u a l i f i c a d o s : o fo g o d e u m a
l â m p a d a o u a s u c e s s ã o d a s e s ta ç õ e s ; b ) d e q u e o fo g o fo sse a c a u s a d e s s e e q u i l í b r i o ;
e c ) d e q u e a s u b s t â n c i a c o m u m d a s c o is a s — o f o g o — fo sse t a m b é m c o n h e c i d a
c o m o o s e u logos.

c o m u m q u a n t o a d e K ir k , ta lv e z m a is . S u g e r i ig u a l m e n t e q u e H e r á c l i t o s e r ia a ú l t i m a p e s s o a c u ja s a f i r ­
m a tiv a s d e v e s s e m s e r a v a l i a d a s p o r p a d r õ e s d e s e n s o c o m u m q u e n ã o fo s s e m os s e u s p r ó p r i o s . A “g u tta
cavat" d e O v id io - u m a m u d a n ç a in v is ív e l — n ã o é t a m b é m s e n s o c o m u m ? A la n M u s g r a v e c h a m o u - m e
a a t e n ç ã o p a r a u m c o m p l i c a d o a r g u m e n t o r e l a c i o n a d o c o m a m u d a n ç a in v is ív e l q u e p o d e m o s e n c o n t r a r
e m L u c r é c io De R er. N a t., i, 2 6 5 -3 2 1 — , q u e p o d e t e r s id o a f o n t e d e O v íd io .
188 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

A lé m d is s o , n ã o p o d i a e n c o n t r a r v e s tíg io d e s s a s d o u t r i n a s n o s f r a g m e n t o s d e
H e r á c l i t o o u e m q u a l q u e r d a s f o n t e s a n t i g a s , c o m o P l a t ã o e A r is tó te l e s .

O n d e , e n t ã o , a f o n t e d e s s a “c o n c l u s ã o ” — is to é , a f o n t e d o s tr ê s p o n to s
a c i m a in d i c a d o s , q u e e x p r e s s a m a v is ã o g e r a l d e K ir k s o b r e a f ilo s o f ia d e H e r á c l i t o ,
e q u e d ã o c o r tã o fo r te à su a in te r p r e ta ç ã o d o s fra g m e n to s ?

R e le n d o o c a p í t u l o d e K ir k e R a v e n s o b r e H e r á c l i t o só p u d e lo c a l iz a r u m a
p i s t a : a s d o u t r i n a s à s q u a is o b j e t o a p a r e c e m f o r m u l a d a s e m p r i m e i r o l u g a r n a p á g .
2 0 0 , c o m r e f e r ê n c i a a o f r a g m e n t o q u e c la s s if ic a m s o b o n ú m e r o 2 2 3 . O r a , t r a t a - s e
d o f r a g m e n t o D K , B 6 4 : “ É o r a i o q u e d ir ig e to d a s a s c o is a s ” .

P o r q u e r a z ã o esse f r a g m e n t o l e v a r ia K ir k a a t r i b u i r a H e r á c l i t o a s d o u t r i n a s
e m q u e s t ã o ? N ã o b a s t a r á a e x p l i c a ç ã o d e q u e o r à i o e r a o i n s t r u m e n t o d e Z e u s? D e
f a t o , d e a c o r d o c o m H e r á c l i t o , D K B 3 2 = K R 2 3 1 : “ U m a c o is a — a ú n i c a c o is a
s á b i a — e x ig e e n ã o e x ig e s e r c o n h e c i d a p e lo n o m e d e Z e u s ” . ( P a r e c e e x p li c a ç ã o
s u f ic ie n t e p a r a D K B 6 4 . N ã o é n e c e s s á r io a s s o c ia r e ss e f r a g m e n t o c o m D K B 41 =
K R 2 3 0 , o q u e só p o d e r í a r e f o r ç a r m i n h a i n t e r p r e t a ç ã o . )

N a s p á g i n a s 2 0 0 e 4 3 4 e n c o n t r a m o s a i n t e r p r e t a ç ã o d e K ir k e R a v e n , q u e é
m a is e l a b o r a d a : o r a i o é i d e n t i f i c a d o c o m o fo g o ; a t r i b u i - s e - l h e u m a “ c a p a c i d a d e
d e d i r e ç ã o ” ; s u g e r e - s e q u e o f o g o “r e f le t e a d i v i n d a d e ” ; p o r f i m , p r o p õ e - s e s u a
i d e n t i f i c a ç ã o c o m o logos.

Q u a l é a f o n t e d e s t a i n t e r p r e t a ç ã o a lg o e x c e s s iv a d e u m f r a g m e n t o tã o c u r t o
e s im p le s ? N ã o p u d e e n c o n t r á - l a e n t r e a s f o n t e s a n t i g a s — os p r ó p r i o s f r a g m e n t o s ,
P l a t ã o o u A r is tó te le s . O ú n i c o v e s tíg io q u e lo c a liz e i fo i u m a i n t e r p r e t a ç ã o d e
H i p ó l i t o — K irk e R a v e n o d e s c r e v e m , n a p á g . 2 d o s e u liv ro , c o m o “u m te ó lo g o d e
R o m a , d o t e r c e i r o s é c u lo d a n o s s a e r a ” ( q u a s e seis s é c u lo s d e p o is d e P l a t ã o ) — q u e
“ a t a c o u a s h e r e s ia s c r is tã s , a c u s a n d o - a s d e re v iv e r a filo s o f ia d o p a g a n i s m o ” . A o
q u e p a r e c e , H i p ó l i t o , q u e e r a u m b is p o c is m á t ic o , n ã o só a c u s a v a a h e r e s ia n o é ti c a
d e r e p r e s e n t a r “ u m r e n a s c i m e n t o d a t e o r ia d e H e r á c l i t o ” , m a s c o n t r i b u i t a m b é m ,
c o m s e u s a t a q u e s , p a r a a r e s p e c ti v a e l i m i n a ç ã o .

H i p ó l i t o é a f o n t e t a m b é m d e B 6 4 , u m b e lo f r a g m e n t o s o b r e o r a i o ; e le o
c i t a , a p a r e n t e m e n t e , p o r q u e q u e r i n t e r p r e t á - l o c o m o e s t a n d o a s s o c ia d o i n t i m a ­
m e n t e à h e r e s ia n o é t i c a . N e s s a t e n t a t i v a , i d e n t i f i c a o r a i o c o m o f o g o , c o m o fo g o
d iv i n o o u e t e r n o ; a t r i b u i - l h e u m a “c a p a c i d a d e d e d i r e ç ã o ” p r o v i d e n c i a l (c o m o K irk
e R a v e n ) e c o m p r u d ê n c i a o u r a z ã o (o logos d e K irk e R a v e n ) ; p o r f i m , a f i r m a q u e
o fo g o d e H e r á c l i t o e r a “a ca u sa d a e c o n o m i a c ó s m i c a ” , o u d o “g o v e r n o e c o n ô ­
m i c o ” o u “d i r e ç ã o ” q u e m a n t é m o e q u i l í b r i o d o m u n d o . ( K ir k e R a v e n d iz e m q u e o
fo g o s e r ia “ a c a u s a d e ss e e q u i l í b r i o " . ) 7

7 — A t e r c e i r a d e s s a s i d e n tif ic a ç õ e s d e H i p ó l i t o p o d e r í a - d e f a t o e n c o n t r a r b a s e t e x t u a l . N u m a r t i g o
p u b l i c a d o e m H erm es, 7 7 , 1 9 4 2 , K a r l R e i n h a r d t c o n j e c t u r a q u e h a v ia u m f r a g m e n t o , a l u d i d o p o r
H i p ó l i t o , f a l a n d o e m "pur p h ro n im o n " o u “p u r P hronoun". N ã o t e n h o c o n d iç õ e s d e a v a l i a r os a r g u ­
m e n to s d e R e i n h a r d t , e m b o r a n ã o m e p a r e ç a m m u i t o c o n v in c e n te s . C o n t u d o , e ss e a le g a d o f r a g m e n t o
se a j u s t a r i a b e m à m i n h a i n t e r p r e t a ç ã o : c o m o a c r e d i t o q u e H e r á c l i t o q u e r i a d iz e r q u e n ó s — n o s s a s a l ­
m a s — s ã o c h a m a s , a s e x p re s s õ e s “ fo g o p e n s a n t e ” o u ‘‘fo g o c o m u m p r o c e s s o m e n t a l ” s e r ia m p e r f e i-
t a m e n t e a c e itá v e is . M a s só u m a i n t e r p r e t a ç ã o c r i s t ã — o u c r i s t ã h e r é t i c a — f a l a r i a e m “ f o g o p r o v i d e n ­
C O N JE C T U R A S H IST Ó R IC A S: A O P IN IÃ O DE H E R A C L IT O SO B R E A M U DANÇA 189

A s s im , a d o u t r i n a q u e c o n s i d e r e i in a c e i t á v e l a t r i b u i r a H e r á c l i t o p a r e c e s e r
a i n t e r p r e t a ç ã o q u e d á K ir k a o u t r a i n t e r p r e t a ç ã o a t r a v é s d a q u a l H i p ó l i t o p o d e t e r
t e n t a d o d e m o n s t r a r o c a r á t e r s e m ic r i s t ã o d o s e n s i n a m e n t o s d e H e r á c l i t o — p o s ­
s i v e lm e n te , c o m o s u g e r e K a r l R e i n h a r d t , p a r a l i d a r c o m c e r t a s d o u t r i n a s h e r é t i c a s ,
n o é t i c a s , c o m o a d e q u e o f o g o t e m p o d e r e s d iv in o s o u p r o v i d e n c ia i s .

E m b o r a H i p ó l i t o p o s s a s e r u m a b o a f o n t e , q u a n d o c i t a H e r á c l i t o , e s tá c la r o
q u e n ã o p o d e s e r le v a d o m u i t o a s é r io q u a n d o in te r p r e ta H e r á c l i t o .

C o n s i d e r a n d o o c a r á t e r d u v id o s o d a s f o n t e s u s a d a s , n ã o s u r p r e e n d e q u e n ã o
tiv e sse p o d i d o c o m p r e e n d e r o s u m á r i o f i n a l o u “c o n c l u s ã o ” d e K irk e R a v e n . C o n ­
t i n u o a a c h a r q u e a d o u t r i n a a li a t r i b u í d a a H e r á c l i t o é a b s u r d a — e s p e c i a lm e n te
as p a l a v r a s q u e s a l ie n t e i e m i t á l i c o . T e n h o a c e r t e z a , p o r o u t r o l a d o , d e q u e e s ta
m i n h a r e a ç ã o n ã o é i s o la d a . C o n t u d o , r e f e r in d o - s e à p a s s a g e m d a m i n h a c o n f e r ê n ­
c ia o n d e e x a m i n o s u a “c o n c l u s ã o ” , c o n s i d e r a n d o - a “ a b s u r d a ” , K irk e s c re v e ( n a
p á g . 3 3 8 ): “ P o p p e r e s t á s o z in h o q u a n d o a f i r m a q u e e ss a i n t e r p r e t a ç ã o d e H e r á c l i t o
é ‘a b s u r d a ’. ” .N o e n t a n t o , se e x a m i n a r m o s c u i d a d o s a m e n t e s u a p r ó p r i a a p r e s e n ­
t a ç ã o , v e r e m o s q u e e le q u a s e m e d á r a z ã o , p o is d e i x a d e r e p e t i r q u a s e to d a s as
p a l a v r a s a q u e d e i ê n f a s e , p o r m e p a r e c e r e m a b s u r d a s ( a lé m d a s p a l a v r a s “m u d a n ­
ç a s d e to d o s os tip o s ”)·, o m i t e , e m e s p e c i a l, a a f i r m a t i v a d e q u e a ca u sa desse
e q u ilíb r io é o f o g o ( b e m c o m o , “ q u e f o i t a m b é m c h a m a d o d e s e u lo g o s ”.)

N a p á g . 3 3 8 , K irk s u g e r e a g o r a q u e esta é “ a i n t e r p r e t a ç ã o d e H e r á c l i t o ”
q u e e u h a v ia q u a lific a d o d e a b s u r d a . P a re c e c o n c o rd a r , p o r e x e m p lo , c o m a in t e r ­
p r e t a ç ã o d a d a · e m O p e n S o c ie ty , o n d e s u g e r i q u e o logos p o d e s e r a le i d a m u d a n ­
ç a . A lé m d is s o , e m b o r a o b j e t e f o r t e m e n t e a q u e se d e s c r e v a o f o g o ( c o m o o
f a z e m K ir k e R a v e n , e t a m b é m H ip ó l i t o ) c o m o ca u sa d o e q u i l í b r i o d o m u n d o , n ã o
r e j e it o u m a i n t e r p r e t a ç ã o q u e p o n h a u m a c e r t a ê n f a s e n o e q u i l í b r i o , o u n a m u ­
d a n ç a e q u i l i b r a d a . D e f a t o , se a s c o is a s m a t e r i a i s , a p a r e n t e m e n t e e s tá v e is , s ã o n a
r e a lid a d e p ro c e sso s c o m o a c h a m a , p re c is a m q u e im a r v a g a ro s a e s is te m a tic a m e n te .
C o m o a c h a m a d e u m a l â m p a d a , o u a d o so l, e la s “ n ã o u l t r a p a s s a r ã o s u a m e d i d a ”
— n ã o le v i t a r ã o s e m c o n t r o l e , c o m o u m a c o n f l a g r a ç ã o . V a le l e m b r a r q u e é u m
p ro c esso , u m m o v im e n to q u e im p e d e a d e c o m p o s iç ã o d a c e r v e j a , s u a s e p a r a ç ã o e
d e s i n t e g r a ç ã o ; n ã o é q u a l q u e r t i p o d e m o v i m e n t o q u e t e m t a l e f e i to , m a s só , p o r
e x e m p l o , os m o v i m e n t o s c ir c u l a r e s , m e d id o s . P o r t a n t o , é a m e d id a q u e p o d e s e r
q u a l i f i c a d a d e c a u s a d o e q u i l í b r i o d o f o g o , d a c h a m a e d a s c o is a s — d e ss e s p r o c e s ­
so s e m u d a n ç a s q u e p a r e c e m e s tá v e is , q u e s ã o r e s p o n s á v e is p e l a p r e s e r v a ç ã o d a s
c o is a s . A m e d i d a , a r e g r a , a m u d a n ç a d e a c o r d o c o m le is , o logos (e n ã o o fo g o )
são a c a u s a d o e q u ilíb r io — e s p e c ia lm e n te o e q u ilíb r io d o fo g o so b c o n tr o le , c o m o
n o c a s o d o s o l, d a l u a e d a n o s s a a l m a .

E s tá c l a r o q u e , d e a c o r d o c o m e s te p o n t o d e v is ta , a m a i o r p a r t e d a m u d a n
ç a e q u i l i b r a d a p r e c i s a s e r in v is ív e l: d e v e s e r i n f e r i d a p e l a r a z ã o , p e la r e c o n s t r u ç ã o
d o p ro c e s s o q u e fa z c o m q u e a s c o is a s a c o n t e ç a m (ta lv e z p o r isso o t e r m o lo g o s.)

c i a i " . Q u a n t o à “ c a u s a " d e H i p ó l i t o , R e i n h a r d t d iz e x p l i c i t a m e n t e q u e n ã o se t r a t a d e u m a n o ç ã o
h e r a c l i a n a . O f o g o c o m o c a u s a d o e q u i l í b r i o d o m u n d o só a p a r e c e r í a s o b a f o r m a d e c o n f l a g r a ç ã o n o
D ia d o J u l g a m e n t o F in a l, c o m o u m e q u i l í b r i o d e j u s t i ç a . M a s K ir k n ã o a c e i t a q u e t a l c o n f l a g r a ç ã o s e ja
— J “ n s in a m e n to s d e H e rá c lito .
190 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

E s te p o d e t e r s id o p e r f e i t a m e n t e o c a m i n h o q u e le v o u H e r á c l i t o à s u a n o v a
e p is te m o lo g i a , c o m a d i s t i n ç ã o i m p l í c i t a e n t r e r e a l i d a d e e a p a r ê n c i a , e a d e s c o n ­
f i a n ç a c o m r e l a ç ã o à e x p e r i ê n c i a s e n s o r ia l . F o i o q u e ( j u n t a m e n t e c o m a s d ú v id a s
d e X e n ó f a n e s ) le v o u p o s s iv e lm e n te P a r m ê n i d e s , m a i s t a r d e , à c o m p a r a ç ã o d a “v e r ­
d a d e c o m p l e t a ” (o lo g o s i n v a r i a n t e ) c o m a o p i n i ã o i l u s ó r i a , o p e n s a m e n t o fa lív e l
d o s m o r t a i s . S u r g i u a s s im , p e l a p r i m e i r a v ez, o c o n t r a s t e c l a r o e n t r e u m in te le c -
t u a l i s m o o u r a c i o n a l i s m o ( s u s t e n t a d o p o r P a r m ê n i d e s ) e u m e m p i r i c is m o o u s e n -
s o r ia li s m o ( q u e e le a t a c o u , m a s q u e fo i o p r i m e i r o a f o r m u l a r ) .

C o m e f e i to , P a r m ê n i d e s e n s i n o u (B 6 :5 ) q u e a h o r d a d o s m o r t a i s fa lív e is ,
s e m p r e d ú p l i c e s a r e s p e ito d a s c o is a s , c o m id é i a s e r r a n t e s (B 6 :6 ) n o s e u c o r a ç ã o ,
c o n s i d e r a m o s e r e o n ã o - s e r c o m o a m e s m a c o is a , e , a o m e s m o t e m p o , c o m o c o is a s
d iv e r s a s . C o n t r a e le s d iz ia o filó s o f o (B 7 ):

“ N u n c a a c o n t e c e r á q u e a s c o is a s in e x i s t e n te s e x i s t a m . D e v e s e v i t a r p e r c o r r e r
esse c a m i n h o : n ã o d e ix a q u e a e x p e r i ê n c i a o u o h á b i t o e s t a b e l e c i d o i m p o n h a l i ­
m i te s à t u a b u s c a . N ã o p e r m i t e q u e t e u o lh o v e n d a d o , te u o u v id o s u r d o o u m e s m o
t u a l í n g u a v a g u e ie m p o r e ss a e s t r a d a . Q u e só a r a z ã o d e c i d a a r e s p e ito d o a r g u ­
m e n t o , t a n t a s v e z e s c o n t e s t a d o , q u e te e x p u s p a r a m o s t r a r o n d e e s tá a f a l s i d a d e . ”

E sse o i n t e l e c t u a l i s m o e o r a c i o n a li s m o d e P a r m ê n i d e s , q u e c o n t r a s t a c o m a
ê n f a s e n o s e n t i d o d o s p o b r e s e fa lív e is m o r t a i s — q u e p e n s a m , e r r ô n e a e c o n v e n ­
c i o n a l m e n t e , q u e e x is te lu z e n o it e , c a l o r e f r io ; q u e e ss a c o m b i n a ç ã o d e t e r m i n a o
e sta d o fís ic o o u “n a tu r e z a ” d o s s e u s ó r g ã o s s e n s o r ia is o u d o s e u c o r p o ; n a t u r e z a q u e
os t r a n s f o r m a e m p e n s a m e n t o . E s ta d o u t r i n a d e q u e n ã o h á n a d a n o in te le c to q u e
se e q u iv o c a ( n o “p e n s a m e n t o e q u i v o c a d o ” o u “e r r ô n e o ” d e B 6 :6 ) q u e n ã o te n h a
■estado p r e v ia m e n te nos órg ã o s se n so ria is e q u iv o c a d o s é c i t a d a p o r P a r m ê n i d e s d a
s e g u i n te f o r m a (B 16):

“ O c o n h e c im e n to su rg e n o s h o m e n s , e m q u a lq u e r m o m e n to , c o m o a c o m ­
b i n a ç ã o d o s ó r g ã o s s e n s o r ia is , q u e m u i t o e r r a m . N a v e r d a d e , essa s d u a s c o is a s s ã o a
m e s m a : o q u e p e n sa , e a c o m b in a ç ã o q u e re p r e s e n ta a n a tu r e z a d o s ó rg ã o s d e p e r ­
c e p ç ã o . O q u e p r e v a l e c e n e s s a m i s t u r a se t r a n s f o r m a e m p e n s a m e n t o , e m to d o s os
h o m e n s .” ®

E ssa t e o r i a a n ti - s e n s o r ia lis ta d o c o n h e c i m e n t o lo g o d e p o is se t o r n o u u m a
t e o r ia p r ó - s e n s o r i a l i s t a p r a t i c a m e n t e s e m q u a l q u e r a l t e r a ç ã o , e x a l t a n d o os ó rg ã o s
s e n s o r ia is ( d e s p r e z a d o s p o r P a r m ê n i d e s ) c o m o f o n te s m a is o u m e n o s a u t o r i z a d a s d o
c o n h e c im e n to .

O q u e c o n te i a q u i r e f le t e , a té c e r t o p o n t o , u m a i d e a l iz a ç ã o ; p o r o u t r o l a d o ,
é c o n j e c t u r a l . P r o c u r e i a p e n a s m o s t r a r c o m o a s te o r ia s e os p r o b l e m a s ló g ic o s e
e p is te m o ló g i c o s p o d e m t e r s u r g id o n o c u r s o d e u m a d is c u s s ã o c r í t i c a s o b r e te o ria s e
p r o b le m a s co sm o ló g ico s.

8 - (N o ta do tra d u to r ) Em in g lê s : For a s, at any one tim e , is th e m uch — e rrin g sen se -


o r g a n s m i x t u r e , / S o d o e s k n o w le d g e a p p e a r in m e n . F o r th e s e tw o a r e th e s a m e t h i n g : / T h a t w h ic h
th in k s , a n d t h e m i x t u r e w h ic h m a k e s u p t h e s e n s e - o r g a n s n a t u r e . / W h a t in th is m ix tu r e p re v a ils b e -
c o m e s t h o u g h t . in e a c h m a n a n d a l l ” . O s ig n if ic a d o d e s s e p a s s a g e m e a m i n h a t r a d u ç ã o ( q u e d e v e s e r
c o m p a r a d a c o m E m p é d o c le s B 108) s ã o e x a m i n a d o s m a is e x t e n s a m e n t e n o a p ê n d i c e 8, n o f im d e s te
liv r o — e s p e c i a l m e n t e n a s s e ç õ e s 6 -1 0 .
C O N JE C T U R A S H IST Ó R IC A S: A O P IN IÃ O DE H E R A C L IT O SO B R E A M U D A N Ç A 191

Q u e a l g u m a c o is a , d e n t r o d e s s a s l i n h a s g e r a i s t e n h a d e f a t o a c o n t e c i d o
p a r e c e - m e m a i s d o q u e u m a s im p le s c o n j e c t u r a .

-T
X
6. N o ta so b re B erk eley — u m P recu rsor
d e M a ch e d e E in stein *

“ T i n h a s o m e n te u m a id é i a m u i t o v a g a a r e s p e i t o d o B is p o B e rk e le y , m a s
f i c a v a - l h e g r a t o p o r n o s t e r d e f e n d i d o d e u m a p r e m is s a i n i c i a l i n c o n t e s t á v e l . ”

S a m u e l B u tle r

O o b je t iv o d e s t a n o t a é r e l a c i o n a r a s id é i a s d e B e r k e le y , n o c a m p o d a f i ­
lo s o fia d a f í s ic a , q u e tê m u m a a p a r ê n c i a m a r c a d a m e n t e m o d e r n a . S ã o q u a s e to d a s
id é ia s r e d e s c o b e r t a s e r e i n t r o d u z i d a s n o d e b a t e s o b r e a fís ic a c o n t e m p o r â n e a p o r
E r n s t M a c h e H e i n r i c h H e r tz , b e m c o m o p o r o u t r o s filó s o fo s e fís ic o s , a l g u n s d e le s
i n f l u e n c i a d o s p o r M a c h — c o m o B e r t r a n d R u s s e ll, P h i l i p F r a n k , R i c h a r d v o n
M ise s, M o r itz S c h li c k 1 , W e r n e r H e is e n b e r g , e tc .

P r e c is o e x p l i c a r a n t e s d e m a i s n a d a q u e d is c o r d o d e s s a s id é ia s p o s itiv is ta s .
N a v e r d a d e , a d m i r o B e rk e le y , e m b o r a n ã o c o n c o r d e c o m e le . M a s o o b je t iv o d e s t a
n o t a n ã o é c r i t i c a r B e rk e le y — e ss a c r í t i c a e s t a r á l i m i t a d a a a l g u m a s o b s e r v a ç õ e s ,
c u r t a s e i n c o m p l e t a s , n a s e ç ã o v . *12

B e r k e le y e s c r e v e u u m ú n i c o liv ro (D e M o tu ) d e d i c a d o e x c lu s iv a m e n te à
filo s o f ia d a c iê n c ia f ís ic a ; m a s h á p a s s a g e n s e m m u i t o s d o s s e u s e s c r ito s e m q u e
id é ia s s e m e l h a n t e s e s u p l e m e n t a r e s s ã o d e s e n v o l v id a s .3

* P u b l i c a d a p e l a p r i m e i r a vez n o T h e B ritish Jo u rn a l f o r the P hilosophy o f Science, 4 , 1 9 5 3 .

1 — S o b a i n f l u ê n c i a d e W i t t g e n s t e i n , S c h lic k p r o p ô s u m a i n t e r p r e t a ç ã o i n s t r u m e n t a l i s t a d a s leis
u n iv e r s a is q u e e q u i v a l i a p r a t i c a m e n t e à s “ h ip ó te s e s m a t e m á t i c a s " d e B e r k e le y ; v id e N aturw issenschaf-
ten, 1 9 , 1 9 3 1 , p á g s . 151 e 1 56.
2 — D e s e n v o lv í m e l h o r e ss a s id é ia s n o c a p . 3 , e s p e c i a l m e n t e n a s e ç ã o 4.
3 — A lé m d e D M (De M otu, 1 7 2 1 ), c i t a r e i T V (Essay T ow ards a N e w T heory o f Vision, 1 7 0 9 ); P r
(Treatise C oncerning th e Principies o f H u m a n Know ledge, 1 7 1 0 ); H P (T h ree Dialogues B etw een Hylas
a n d Phtlonous, 1 7 1 3 ); A lc (A lc ip h ro n , 1 7 3 2 ); A n (T h e A nalyst, 1 7 3 4 ); e S (Siris, 1 7 4 4 ). T a n t o q u a n t o
e u s a ib a , n ã o h á u m a t r a d u ç ã o in g le s a d e D M q u e e l u c i d e o q u e B e r k e le y p r e t e n d i a d iz e r ; o
e d i t o r d a m a is r e c e n t e e d i ç ã o d a s s u a s Obras se d á a o t r a b a l h o d e d e p r e c i a r e sse e n s a io , a l t a m e n t e
o r i g i n a l e s o b m u i t o s a s p e c to s s i n g u l a r .
194 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

E n c o n t r a r e m o s o n ú c le o d a s id é i a s d e B e r k e le y s o b r e a filo s o f ia d a c iê n c ia
n o s e u C r itic is m o f N e w t o n s D y n a m ic s ( a m a t e m á t i c a d e N e w t o n fo i c r i t i c a d a p o r
B e rk e ly e m T h e A n a ly s t e s u a s d u a s s e q ü e l a s ) . B e r k e le y s e n t i a g r a n d e a d m i r a ç ã o
p o r N e w to n , p e r c e b e n d o , sem d ú v id a , q u e n ã o p o d e r ia e n c o n tr a r o b je to d e c rític a
m a is d ig n o .

II

A s v in t e e u m a te s e s q u e s e g u e m n e m s e m p r e e s t ã o e n u n c i a d a s n a t e r m i ­
n o lo g i a d e B e rk e le y ; p o r o u t r o l a d o , s u a s e q ü ê n c i a n ã o r e f l e t e a o r d e m e m q u e
a p a r e c e m n o s e s c r ito s d e B e rk e le y , o u e m q u e p o d e r í a m s e r a p r e s e n t a d a s n u m
t r a t a m e n t o s i s te m á ti c o d a s id é i a s d o filó s o f o .

P a r a c o m e ç a r c o m u m a e p í g r a f e , c it o o p r ó p r i o B e rk e le y (D M , 2 9 ).

1) “ P r o n u n c i a r u m a p a l a v r a e n a d a q u e r e r d i z e r c o m e la é u m a t o in d i g n o d e
u m f i ló s o f o .”

2 ) O s i g n if i c a d o d e u m a p a l a v r a é a id é i a o u q u a l i d a d e s e n s o r ia l c o m a q u a l
e la e s tá a s s o c ia d a ( q u e n o m e i a ) . P o r t a n t o , a s e x p re s s õ e s “e s p a ç o a b s o l u t o ” e “t e m p o
a b s o l u t o ” n ã o t ê m q u a l q u e r s e n t id o e m p í r i c o ( o u o p e r a c i o n a l ) ; p o r isso a d o u t r i n a
d e N e w t o n s o b r e o e s p a ç o a b s o l u t o e o te m p o a b s o l u t o d e v e s e r r e j e i t a d a e n q u a n t o
t e o r i a f ís ic a . (C f. P r . 9 7 , 9 9 , 1 1 6 ; D M , 5 3 , 5 5 , 6 2 ; A n , 5 0 , Q u . 8; S, 2 7 1 : “ A
p r o p ó s i t o d o e s p a ç o a b s o l u t o , esse f a n t a s m a d o s filó s o fo s d a m e c â n i c a e d a g e o ­
m e t r i a , b a s t a r á o b s e r v a r q u e n ã o é p e r c e b i d o p e lo s n o ss o s s e n t id o s o u p r o v a d o p e la
n o ssa r a z ã o ...” ; D M , 64: p a r a . . . o s fin s d o s filó s o fo s d a m e c â n i c a . . . b a s t a
s u b s t i t u i r s e u “e s p a ç o a b s o l u t o ” p o r u m e s p a ç o r e l a t i v o , d e t e r m i n a d o p e lo s f i r ­
m a m e n t o s d a s e s tr e la s f i x a s . . . O m o v i m e n t o e o r e p o u s o d e f i n id o s o o r e sse e s p a ç o
r e l a ti v o p o d e s e r u s a d o c o m o d a m e n t e e m l u g a r d o s a b s o l u t o s . . . ” .)

3) O m e s m o se a p l i c a à e x p r e s s ã o “ m o v i m e n t o a b s o l u t o ” . O p r i n c í p i o d e
q u e t o d o m o v i m e n t o é r e l a ti v o p o d e s e r d e m o n s t r a d o a p e l a n d o p a r a o s ig n if i c a d o
d e “m o v i m e n t o ” o u p a r a a r g u m e n t o s o p e r a c i o n a l i s t a s . (C f. P r 5 8 , 1 1 2 , 115 “ P a r a
d iz e r q u e u m c o r p o ‘se m o v e u ’ é n e c e s s á r i o ... q u e e le m u d e s u a d i s t â n c i a o u s i ­
t u a ç ã o c o m r e s p e ito a a l g u m o u t r o c o r p o . . . ” ; D M , 6 3 : “ N e n h u m m o v i m e n t o p o d e
s e r p e r c e b i d o , o u m e d i d o , e x c e to c o m a a j u d a d e c o is a s s e n s ív e is ” ; D M , 6 2 : “ . . . o
m o v i m e n t o d e u m a p e d r a n u m a 'f u n d a , o u d a á g u a n u m r e c i p i e n t e q u e é a g i t a d o ,
n ã o p o d e s e r q u a l i f i c a d o v e r d a d e i r a m e n t e d e m o v i m e n t o c i r c u l a r . . . p e lo s q u e
d e f i n e m [o m o v i m e n t o ] c o m a a j u d a d o e s p a ç o a b s o l u t o . . . ” .) 4

4 ) A s p a l a v r a s “g r a v i d a d e ” e “f o r ç a ” s ã o e m p r e g a d a s e r r o n e a m e n t e n a
fís ic a ; i n t r o d u z i r f o r ç a c o m o a c a u s a o u “p r i n c í p i o ” d o m o v i m e n t o ( o u d e u m a
a c e l e r a ç ã o ) é i n t r o d u z i r u m a “q u a l i d a d e o c u l t a ” ( D M , 1 -4 , e e m e s p e c i a l 5, 10, 11,
1 7 , 2 2 , 2 8 ; A lc v ii, 9 ). C o m m a i s p r e c i s ã o , d e v e r i a m o s d iz e r “u m a s u b s t â n c i a
m e t a f í s i c a o c u l t a ” p o is o t e r m o “ q u a l i d a d e o c u l t a ” é e m p r e g a d o e r r o n e a m e n t e ,
u m a vez q u e “ q u a l i d a d e ” d e v e r i a s e r r e s e r v a d o , m a i s a p r o p r i a d a m e n t e , p a r a as
q u a l i d a d e s o b s e r v á v e is o u o b s e r v a d a s — q u a l i d a d e s a t r i b u í d a s a o s n o ss o s s e n t id o s e
q u e , c o m o é n a t u r a l , n u n c a s ã o “o c u l t a s ” . ( A n , 5 0 , Q u . 9; e e m e s p e c ia l D M , 6:
“ E s tá c l a r o , p o r t a n t o , q u e é i n ú t i l p r e s u m i r q u e o p r i n c í p i o d o m o v i m e n t o é a
g r a v i d a d e o u a f o r ç a — c o m o p o d e r i a s e r esse p r i n c í p i o c o n h e c i d o m a i s c l a r a m e n t e
N O T A SO B R E B E R K E L E Y UM P R E C U R SO R DE M ACH E DE E IN ST E IN 195

m e d ia n te (su a id e n tif ic a ç ã o c o m ) o q u e é c h a m a d o d e m o d o m a is g e ra l d e q u a ­
lid a d e o c u lta i O q u e é e m si m e s m o o c u lt o n a d a p o d e e x p l i c a r ; s e m m e n c i o n a r o
fa to d e q u e u m a c a u s a d e s c o n h e c id a p o d e ria se r c h a m a d a m a is p ro p r ia m e n te d e
su b s tâ n c ia ( m e ta f ís i c a ) d o q u e d e q u a lid a d e .)

5 ) T e n d o e m v is ta e ss a s c o n s i d e r a ç õ e s , a t e o r i a d e N e w t o n n ã o p o d e s e r
a c e i t a c o m o u m a e x p l i c a ç ã o g e n u i n a m e n t e ca u sa i, is to é , b a s e a d a e m c a u s a s v e r ­
d a d e i r a m e n t e n a t u r a i s . O p o n t o d e v is ta d e q u e a g r a v i d a d e e x p li c a c a u s a l m e n t e o
m o v i m e n t o d o s c o r p o s (d o s p l a n e t a s , d o s c o r p o s e m q u e d a liv re , e t c . ) , o u d e q u e
N e w t o n d e s c o b r i u q u e a g r a v i d a d e o u a a t r a ç ã o é u m a “ q u a l i d a d e e s s e n c ia l” ( P r ,
1 0 6 ), c u j a i n e r ê n c i a n a e s s ê n c ia o u n a t u r e z a d o s c o r p o s e x p l i c a a s le is d o s se u s
m o v i m e n t o s , d e v e s e r r e j e i t a d o (S , 2 3 4 ; v id e t a m b é m S , 2 4 6 , ú l t i m a f r a s e ) . M a s é
p re ciso a d m itir q u e a te o ria d e N e w to n leva a re su lta d o s co rre to s (D M , 3 9 , 4 1 ).
P a r a c o m p r e e n d e r isso , “ t e m a m a i o r i m p o r t â n c i a . . . d i s t i n g u i r e n t r e h ip ó te se s
m a te m á tic a s e a s n a tu r e z a s ( o u essên cia s) d a s c o is a s 4 . . . Se o b s e r v a r m o s t a l d i s t i n ­
ç ã o , to d o s os f a m o s o s t e o r e m a s d a f ilo s o f ia m e c â n i c a q u e . . . t o r n a m p o s s ív e l s u j e i t a r
o s i s te m a d o m u n d o (is to é , o s i s te m a s o l a r ) a c á lc u lo s h u m a n o s p o d e s e r p r e s e r ­
v a d o ; a o m e s m o t e m p o , o e s t u d o d o m o v i m e n t o f i c a r á liv r e d e m il t r i v i a l i d a d e s e
s u tile z a s s e m s e n t i d o e d e id é i a s a b s t r a t a s ” [ d e s p r o v id a s d e s i g n if i c a ç ã o ] (D M , 6 6 ).

6) N a fís ic a (filo s o fia m e c â n i c a ) , n ã o h á e x p l i c a ç ã o c a u s a i (c f. S, 2 3 1 ), i. e .,


e x p l i c a ç ã o b a s e a d a n a d e s c o b e r t a d a n a t u r e z a o c u l t a o u e s s ê n c ia d a s c o is a s (Pr,
2 5 ). “ . . . a s v e r d a d e i r a s c a u s a s e f e tiv a s d o m o v i m e n t o . . . n ã o p e r t e n c e m , d e m o d o
a l g u m , a o c a m p o d a m e c â n i c a o u d a c iê n c ia e x p e r i m e n t a l , e n e m f a c i l i t a m a c o m ­
p r e e n s ã o d e s t e s . . . ” (D M , 4 1 ).

7 ) A r a z ã o p a r a isso é q u e a s c o is a s fís ic a s n ã o t ê m u m a “n a t u r e z a v e r d a ­
d e i r a o u r e a l ” , s e c r e ta o u o c u l t a ; u m a “ e s s ê n c ia r e a l ” , o u “ q u a l i d a d e s i n t e r n a s ”
(P r, 1 0 1 ).

8) N ã o há n a d a físic o p o r tr á s d o s co rp o s físico s. N ã o e x is te u m a r e a lid a d e


fís ic a o c u l t a . P o r a s s im d iz e r , tu d o é s u p e r fíc ie ; o s c o r p o s fís ic o s n a d a s ã o a lé m d a s
s u a s q u a l i d a d e s . S u a a p a r ê n c ia é su a re a lid a d e (P r, 8 7 ,8 8 ) .

9 ) A f u n ç ã o d o c ie n t i s t a ( d o “ filó s o fo m e c â n i c o ”) é d e s c o b r i r “p o r e x p e r i ê n ­
c ia e p e la r a z ã o ” (5, 2 3 4 ), a s le is d a n a t u r e z a , o u s e ja , a s r e g u l a r i d a d e s e u n if o r -
m id a d e s d o s fe n ô m e n o s n a tu r a is .

1 0 ) A s leis d a n a t u r e z a s ã o , d e f a t o , r e g u l a r i d a d e s , s i m i l a r i d a d e s o u a n a ­
lo g ia s (P r, 1 0 5 ) n o s m o v i m e n t o s d o s c o r p o s físic o s q u e p e r c e b e m o s (5 , 2 3 4 ) “ . . . e s ­
te s , a p r e n d e m o s m e d i a n t e a e x p e r i ê n c i a ” (Pr, 3 0 ); e le s s ã o o b s e r v a d o s , o u i n f e r id o s
a p a r t i r d e o b s e r v a ç õ e s (P r, 3 0 , 6 2 ; S , 2 2 8 , 2 6 4 ).

1 1 ) “ U m a vez f o r m a d a s a s le is d a n a t u r e z a , a t a r e f a d o filó s o f o é m o s t r a r
q u e c a d a f e n ô m e n o e s tá e m c o n f o r m i d a d e c o m e la s , is to é , q u e s e g u e m o s p r i n ­
c íp io s f o r m a d o s . " (D M , 37 ; c f. P r, 1 0 7 ; e S, 2 3 1 : “ s e n d o s u a t a r e f a ( i .e ., a d o s
“ filó s o fo s m e c â n i c o s ” ) . . . a d e e x p l i c a r f e n ô m e n o s p a r t i c u l a r e s r e d u z i n d o - o s a e ssa s
n o r m a s g e r a i s e m o s t r a n d o s u a c o n f o r m i d a d e c o m e l a s . ” )4

4 — A p r o p ó s ito d a e q u i v a l ê n c i a d a s "naturezas" e d a s "essências" vide O pen Society, c a p . 5, s e ç ã o vi.


196 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

1 2 ) E sse p ro c e s s o p o d e s e r d e n o m i n a d o , se q u is e r m o s , d e “e x p l i c a ç ã o ” (e
m e s m o “e x p l i c a ç ã o c a u s a i ” ), d e s d e q u e se f a ç a u m a d i s t i n ç ã o c l a r a e n t r e e le e a e x ­
p l i c a ç ã o v e r d a d e i r a m e n t e c a u s a i ( o u m e t a f í s i c a ) , b a s e a d a n a n a t u r e z a o u e s s ê n c ia
v e r d a d e i r a d a s c o is a s . S, 2 3 1 ; D M , 37: “ A e x p l i c a ç ã o m e c â n i c a d e u m f e n ô m e n o
d e v e r e d u z i - l o a o s p r i n c í p i o s m a i s s im p le s e u n iv e r s a is ( i .e . “ a s le is p r i m á r i a s d o
m o v i m e n t o p r o v a d a s p e l a e x p e r i ê n c i a . . . ” D M , 3 6 ) e p r o v a r , m e d i a n t e r a c i o c ín i o
p r e c i s o , q u e e la s e s t ã o d e a c o r d o c o m o s f e n ô m e n o s e li g a d a s a e l e s . . . Isso s i g n if ic a
q u e d e v e e x p lic a r e s o l u c i o n a r o f e n ô m e n o , d e s i g n a n d o s u a c a u s a .. E ssa t e r ­
m i n o l o g i a é a d m is s ív e l (c f. D M , 7 1 ), m a s n ã o n o s d e v e e n g a n a r . D e v e m o s s e m p r e
d i s t i n g u i r (c f. D M , 7 2 ) n i t i d a m e n t e e n t r e a e x p l i c a ç ã o “e s s e n c ia l is t a ” 5 , q u e a p e la
p a r a a n a t u r e z a d a s c o is a s , e a e x p l i c a ç ã o “d e s c r i t i v a ” , q u e a p e l a p a r a u m a le i d a
n a t u r e z a , i. e . p a r a a d e s c r iç ã o d e u m a r e g u l a r i d a d e o b s e r v a d a . A p e n a s o ú l t i m o
t i p o d e e x p li c a ç ã o é a d m is s ív e l n a c iê n c ia f ís ic a .

13) D ev em o s a g o r a d is tin g u ir u m te rc e iro tip o d e e x p lic a ç ã o — a q u e a p e la


p a r a h ip ó te se s m a te m á tic a s . A h ip ó t e s e m a t e m á t i c a p o d e s e r d e s c r i t a c o m o u m
p r o c e d i m e n t o p a r a c a l c u l a r c e r t o s r e s u l t a d o s . E u m m e r o f o r m a li s m o , u m u t e n ­
s ílio o u i n s t r u m e n t o m a t e m á t i c o , c o m p a r á v e l a u m a m á q u i n a d e c a l c u l a r . P o d e -s e
ju l g á - l a a p e n a s p o r s u a e f i c i ê n c i a . P o d e s e r m a is d o q u e s i m p l e s m e n t e a d m is s ív e l;
p o d e s e r ú t i l e a d m i r á v e l , n o e n t a n t o n ã o é c iê n c ia : e m b o r a p r o d u z a r e s u lta d o s
c o r r e to s , n ã o p a s s a d e u m t r u q u e , u m a r t i f í c i o ( A n , 5 0 , Q u . 3 5 ). C o m p a r a d a à e x ­
p l i c a ç ã o p e la s e s s ê n c ia s ( q u e , n a m e c â n i c a , é s i m p l e s m e n t e f a l s a ) e à e x p li c a ç ã o
p e la s le is d a n a t u r e z a ( v e r d a d e i r a , d e s d e q u e a s le is t e n h a m s id o “p r o v a d a s p e la e x ­
p e r i ê n c i a ” ), a q u e s t ã o d a v e r a c id a d e d e u m a h i p ó t e s e m a t e m á t i c a n ã o s u r g e — só
n o s in t e r e s s a s u a u tilid a d e c o m o in s tr u m e n to d e cá lcu lo .

14) O s p rin c íp io s d a te o r ia d e N e w to n q u e fo r a m “p ro v a d o s p e la e x p e r iê n ­
c i a ” — os p r i n c í p i o s d a s le is d e m o v i m e n t o q u e d e s c r e v e m s i m p l e s m e n t e a s re -
g u l a r i d a d e s o b s e r v á v e is n o s m o v i m e n t o s d o s c o r p o s — s ã o v e r d a d e i r o s . M a s a p a r t e
d a t e o r i a q u e e n v o lv e os c o n c e i to s c r i t i c a d o s a c i m a — e s p a ç o a b s o l u t o , m o v i m e n t o
a b s o l u t o , f o r ç a , a t r a ç ã o , g r a v i t a ç ã o — n ã o é v e r d a d e i r a , p o is c o n s is te e m “h i ­
p ó te s e s m a t e m á t i c a s ” . Se f u n c i o n a m c o r r e t a m e n t e , c o n t u d o , n ã o d e v e m s e r r e ­
j e i t a d a s (é o c a s o d a g r a v i t a ç ã o , d a f o r ç a e d a a t r a ç ã o ) . A s h ip ó te s e s d o e s p a ç o a b ­
s o lu to e d o m o v i m e n t o a b s o l u to d e v e m s e r a f a s t a d a s , p o is n ã o f u n c i o n a m c o r r e ­
t a m e n t e ( d e v e m s e r s u b s t i t u í d a s p e lo s is te m a d e e s tr e la s f ix a s , e o m o v i m e n t o
r e l a t i v o ) . “T e r m o s c o m o “ f o r ç a ” , “g r a v i t a ç ã o ” e “ a t r a ç ã o ” 6 s ã o ú te i s p a r a r a c i o ­
c i n a r e fa z e r c á lc u lo s s o b r e o m o v i m e n t o e os c o r p o s e m m o v i m e n t o , m a s n ã o n o s
a j u d a m a c o m p r e e n d e r a p r ó p r i a n a t u r e z a s im p le s d o m o v i m e n t o , n e m s e r v e m
p a r a d e s i g n a r t a n t a s q u a l i d a d e s d i s t i n t a s . . . N o q u e c o n c e r n e à a t r a ç ã o , e s tá c la r o
q u e N e w t o n n ã o a i n t r o d u z i u c o m o u m a q u a l i d a d e fís ic a v e r d a d e i r a , m a s m e r a ­
m e n te c o m o u m a h ip ó te s e m a t e m á t i c a ” (D M , 7 7 ) .7

P r o p r i a m e n t e c o m p r e e n d i d a , a h ip ó t e s e m a t e m á t i c a n ã o a f i r m a a e x is tê n c i a
d e n a d a a q u e c o r r e s p o n d a n a n a t u r e z a . N ã o h á c o r r e s p o n d ê n c i a c o m os te r m o s

5 - 0 t e r m o “ e s s e n c ia lis ta ” (e “ e s s e n c ia lis m o ” ) n a o é d e B e r k e le y ; fo i i n t r o d u z i d o p o r m im e m T he
Poverty o f H istoricism e T he O pen Society and its E nem ies.
6 A ê n fa se d o o rig in a l e m la tim a p a r e c e a q u i c o m o asp as.

7 - E ssa e r a , e m l i n h a s g e r a is , a o p i n i ã o d o p r ó p r i o N e w to n ; c f. c a r t a s d e N e w t o n a B e n tle y , 17 d e
j a n e i r o , e e s p e c i a l m e n t e 2 5 d e f e v e r e ir o d e 1 6 9 2 -3 ; e a s e ç ã o 3 d o c a p . 3, a c i m a .
N O T A SO B R E B E R K E L E Y - UM P R E C U R SO R DE M ACH E DE E IN ST E IN 197

c o m o s q u a is o p e r a , n e m c o m a s d e p e n d ê n c i a s f u n c i o n a i s q u e a p a r e n t e m e n t e a f i r ­
m a . E la e r i g e , p o r a s s im d iz e r , u m m u n d o m a t e m á t i c o f i c tí c io p o r t r á s d o m u n d o
d a s a p a r ê n c i a s , m a s s e m a f i r m a r q u e e sse m u n d o e x is te . “M a s t u d o q u e é d i t o s o b r e
a s f o r ç a s c o n t i d a s n o s c o r p o s , s e ja d e a t r a ç ã o o u r e p u l s ã o , d e v e s e r c o n s i d e r a d o
a p e n a s c o m o u m a h ip ó t e s e m a t e m á t i c a , e n ã o c o m o a lg o q u e r e a l m e n t e e x is te n a
n a t u r e z a ’’ ( S, 2 3 4 ; c f. D M , 1 8 , 39 e e s p e c i a l m e n t e A lc , v ii, 9 , A n , 5 0 , Q u . 3 5 ).
A f ir m a - s e a p e n a s q u e c o n s e q ü ê n c i a s c o r r e t a s p o d e m s e r d e r i v a d a s d e c e r t a s s u ­
p o s iç õ e s . M a s a h ip ó t e s e m a t e m á t i c a p o d e f a c i l m e n t e s e r m a l i n t e r p r e t a d a , c o m o se
a f i r m a s s e m u i t o m a i s — c o m o se d e s c r e v e s s e u m m u n d o r e a l o c u l t o p e lo m u n d o
d a s a p a r ê n c i a s . M a s t a l m u n d o n ã o p o d e r ía s e r d e s c r ito , p o is a d e s c r iç ã o s e r ia
n e c e s s a r i a m e n t e s e m s e n t id o .

1 6 ) P e r c e b e - s e , a s s im , q u e a s m e s m a s a p a r ê n c i a s p o d e m s e r c a l c u l a d a s c o m
ê x ito a p a r t i r d e m a is d e u m a h i p ó t e s e m a t e m á t i c a , e q u e d u a s h ip ó t e s e s m a t e ­
m á t i c a s q u e f o r n e c e m os m e s m o s r e s u l t a d o s e m r e l a ç ã o à s a p a r ê n c i a s c a l c u l a d a s
p o d e m n ã o só d i s c o r d a r , m a s t a m b é m c o n t r a d i z e r - s e ( e s p e c i a l m e n t e se m a l i n t e r ­
p r e t a d a s , c o m o a d e s c r iç ã o d e u m m u n d o d e e s s ê n c ia s o c u l t o p e lo m u n d o d a s
a p a r ê n c i a s ) ; n ã o o b s t a n t e , p o d e n ã o h a v e r e s c o lh a e n t r e e la s . “ O s m a is s á b io s d o s
h o m e n s p r o f e r e m . . . d iv e r s id a d e d e d o u t r i n a s , e a t é m e s m o d o u t r i n a s o p o s t a s ; s u a s
c o n c lu s õ e s , n o e n t a n t o (i. e . os r e s u l t a d o s c a l c u l a d o s ) a t i n g e m a v e r d a d e . . . N e w t o n
e T o r r i c e l l i p a r e c e m d i s c o r d a r e n t r e s i . . . m a s a m b o s d ã o p a r a isso b o a s e x p li c a ç õ e s .
T o d a s a s f o r ç a s a t r i b u í d a s a o s c o r p o s , d e f a t o , n ã o p a s s a m d e h ip ó t e s e s m a t e ­
m á tic a s ...; o m e s m o f a to , p o r ta n to , p o d e se r e x p lic a d o d e m a n e ir a s d if e r e n te s .”
(D M , 6 7 .)

1 7 ) A a n á li s e d a t e o r i a d e N e w t o n p r o d u z , p o r t a n t o , os s e g u i n te s r e s u l ­
ta d o s :

D e v e m o s d is t i n g u i r :

a ) O b s e r v a ç õ e s d e c o is a s c o n c r e t a s e p a r t i c u l a r e s .

b ) A s le is d a n a t u r e z a , q u e s ã o o b s e r v a ç õ e s d e r e g u l a r i d a d e s p r o v a d a s
( “ c o m p r o b a t a e ”, D M , 36 ; q u e d e v e s i g n if i c a r “s u p o r t a d o ” o u “ c o r r o b o r a d o ” ; v id e
D M , 31) p o r e x p e rim e n to s , o u d e s c o b e r ta s p o r u m a “o b s e rv a ç ã o d ilig e n te d o s
f e n ô m e n o s ” (P r, 1 0 7 ).

c ) A s h ip ó t e s e s m a t e m á t i c a s q u e n ã o se b a s e i a m n a o b s e r v a ç ã o , m a s c u ja s
c o n s e q ü ê n c i a s c o n c o r d a m c o m e le s ( o u “ r e s p e i t a m os f e n ô m e n o s ” , c o m o d i z i a m os
p la t ô n ic o s ) .

d ) A s e x p lic a ç õ e s c a u s a is e s s e n c ia lis ta s o u m e t a f í s ic a s q u e n ã o p e r t e n c e m à
c iê n c ia f ís ic a .

D e s s a s q u a t r o c a t e g o r i a s , a ) e b ) se b a s e i a m n a o b s e r v a ç ã o e p o d e m s e r
v e r i f i c a d a s p e l a e x p e r i ê n c i a ; c ) n ã o se b a s e i a n a o b s e r v a ç ã o e t e m i m p o r t â n c i a
a p e n a s i n s t r u m e n t a l — p o d e n d o h a v e r , p o r t a n t o , m a is d o q u e u m i n s t r u m e n t o
u ti li z á v e l (c f. 16), a c i m a ; d ) é s a b i d a m e n t e fa ls o s e m p r e q u e c o n s t r ó i u m m u n d o
in v isív e l d e e s s ê n c ia s p o r t r á s d o m u n d o d a s a p a r ê n c i a s . E m c o n s e q ü ê n c i a , s a b e - s e
q u e c ) é fa ls o s e m p r e q u e i n t e r p r e t a d o n o s e n t i d o d e d ) .
198 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

1 8 ) E sse s r e s u l t a d o s se a p l i c a m c l a r a m e n t e a o u t r o s c a s o s , a lé m d a te o r i a
n e w to n ia n a — p o r e x e m p lo , a o a to m is m o ( te o ria c o r p u s c u la r ) . N a m e d id a e m q u e
e ss a t e o r i a p r o c u r a e x p l i c a r o m u n d o d a s a p a r ê n c i a s , c o n s t r u i n d o u m m u n d o i n ­
v isív e l d e “e s s ê n c ia s i n t i m a s 4 ( P r . 1 0 2 ), p o r tr á s d o m u n d o a p a r e n t e , p r e c i s a s e r
r e j e i t a d a (c f. P r , 5 0 ; A n , 5 0 , Q u , 5 6 , S , 2 3 2 , 2 3 5 ).

1 9 ) O t r a b a l h o d o c i e n t i s t a le v a a a lg o q u e p o d e s e r c h a m a d o d e “e x p l i ­
c a ç ã o ” , m a s q u e r a r a m e n t e t e m g r a n d e i m p o r t â n c i a p a r a c o m p r e e n d e r a c o is a e x ­
p l i c a d a , j á q u e a e x p l i c a ç ã o a q u e se p o d e c h e g a r n ã o se f u n d a m e n t a n u m a p e ­
n e t r a ç ã o n a n a t u r e z a d a s c o is a s , e m b o r a t e n h a i m p o r t â n c i a p r á t i c a . E la n o s p e r ­
m i t e a p lic a ç õ e s e p re visõ e s, “ ...le i s n a t u r a i s o u m o v i m e n t o s n o s o r i e n t a m s o b r e
c o m o a g i r , n o s e n s i n a m o q u e p o d e m o s e s p e r a r ” (S , 2 3 4 ; c f. P r , 6 2 ). A p r e v i s ã o se
b a s e i a s i m p l e s m e n t e n a s e q ü ê n c i a r e g u l a r — n ã o n a s e q ü ê n c i a c a u s a i , p e lo m e n o s
n ã o n o s e n t i d o e s s e n c ia l is t a . U m a e s c u r i d ã o i n e s p e r a d a , d u r a n t e o d i a , p o d e s e r u m
i n d i c a d o r “p r o g n ó s t i c o ” , u m “ s in a l d e a l a r m e ” , a “ m a r c a ” d e t e m p e s t a d e q u e se
a p r o x i m a ; n i n g u é m a i n t e r p r e t a c o m o ca u sa d o m a u t e m p o . T o d a s a s r e g u l a r i -
d a d e s o b s e r v a d a s t ê m e ss a n a t u r e z a , e m b o r a o s “ p r o g n ó s tic o s " o u “s i n a i s ” s e j a m o r ­
d i n a r i a m e n t e c o n f u n d i d o s c o m a s c a u s a s g e n u í n a s ( T V , 1 4 7 ; P r , 4 4 , 6 5 . 1 0 8 ; S,
2 5 2 -4 ; A lc , iv , 1 4 ,1 5 ).

2 0 ) U m r e s u l t a d o p r á t i c o d e c a r á t e r g e r a l d e s s a a n á li s e d a f ís ic a — q u e
p r o p o n h o c h a m a r d e “ n a v a l h a d e B e r k e le y ” — p e r m i t e e l i m i n a r a p r io r i d a c iê n c ia
fís ic a t o d a s a s e x p li c a ç õ e s e s s e n c ia lis ta s ; se e la s t ê m u m c o n t e ú d o m a t e m á t i c o e
p r e d i t i v o , p o d e m s e r a d m i t i d a s q u a h ip ó t e s e s m a t e m á t i c a s ( e l i m i n a n d o - s e s u a i n ­
t e r p r e t a ç ã o e s s e n c ia lis ta ) . C a s o c o n t r á r i o , p o d e m s e r r e j e i t a d a s i n t e i r a m e n t e . E ssa
“ n a v a lh a ” , a liá s, é m a is a f i a d a q u e a d e O c k h a m : to d a s a s e n t i d a d e s s ã o r e j e i t a d a s ,
e x c e to a s q u e s ã o p e r c e b i d a s .

2 1 ) O a r g u m e n t o d e f i n it iv o e m f a v o r d e ss e p o n t o d e v is ta , o m o t iv o p o r q u e
a s s u b s t â n c i a s e q u a l i d a d e s o c u lt a s , a s f o r ç a s fís ic a s , e s t r u t u r a s d e c o r p ú s c u lo s , e s ­
p a ç o e m o v i m e n t o a b s o l u to s , e t c . , s ã o e l i m i n a d o s , é o s e g u i n t e : s a b e m o s q u e n ã o
h á e n t i d a d e s c o m o e s ta s p o r q u e s a b e m o s q u e os te r m o s q u e a l e g a d a m e n t e os d e s i g ­
n a m n ã o tê m s e n t id o . P a ra te r u m s e n tid o , u m a p a la v ra p re c isa r e p r e s e n ta r u m a
"i d é i a ”, is to é , u m a p e r c e p ç ã o , o u a m e m ó r i a d e u m a p e r c e p ç ã o ; n a te r m i n o l o g i a
d e H u m e , p r e c i s a r e p r e s e n t a r u m a im p r e s s ã o o u s e u r e f le x o n a n o s s a m e m ó r i a
(p o d e r e p r e s e n ta r ta m b é m u m a “n o ç ã o ” , c o m o D eu s; m a s as p a la v r a s q u e p e r t e n ­
c e m à c iê n c ia fís ic a n ã o p o d e m r e p r e s e n t a r “ n o ç õ e s ” ). O r a , a s p a l a v r a s q u e e s tã o
e m q u e s t ã o a q u i n ã o r e p r e s e n t a m id é ia s : “ A q u e le s q u e a f i r m a m q u e a f o r ç a a ti v a ,
a a ç ã o e o p r i n c í p i o d o m o v i m e n t o s ã o n a r e a l i d a d e in e r e n t e s a o s c o r p o s m a n t ê m
u m a d o u t r i n a q u e n ã o se b a s e i a e m q u a l q u e r e x p e r i ê n c i a , a p o i a n d o - a c o m te r m o s
g e n é r i c o s e o b s c u r o s ; p o r t a n t o n ã o c o m p r e e n d e m , e le s p r ó p r i o s , o q u e q u e r e m
d i z e r ” (D M , 3 1 ).

III

T o d o s o s q u e lê e m e s t a li s t a d e v in t e e u m a te s e s d e v e m f i c a r i m p r e s s io n a d o s
c o m o s e u a s p e c t o m o d e r n o : e la s se a s s e m e lh a m , s u r p r e e n d e n t e m e n t e (e m p a r t i ­
c u l a r n o c o n c e r n e n t e à c r í t i c a d e N e w t o n ) , à filo s o f ia d a fís ic a q u e E r n s t M a c h e n ­
s i n o u d u r a n t e m u i t o s a n o s , c o n v ic t o d e q u e e r a n o v a e r e v o l u c i o n á r i a — n o q u e
e r a s e g u i d o , p o r e x e m p l o , p o r J o s e p h P e tz o l d ; e q u e e x e r c e u e n o r m e i n f l u ê n c i a n a
fís ic a m o d e r n a , e s p e c i a l m e n t e n a te o r i a d a r e l a t i v i d a d e . H á só u m a d i f e r e n ç a : o
“p r i n c í p i o d a e c o n o m i a d o p e n s a m e n t o ” ( D e n k o e k o n o m in e ) d e M a c h v a i a lé m d o
N O T A SO B R E B E R K E L E Y UM P R E C U R SO R DE M ACH E DE EIN STE1N 199

q u e c h a m e i a q u i d e “n a v a l h a d e B e r k e le y ” , n a m e d i d a e m q u e n o s p e r m i t e n ã o só
r e j e i t a r c e r t o s “e l e m e n to s m e t a f í s ic o s ” , m a s t a m b é m d i s t i n g u i r , e m a l g u n s c a s o s , e n ­
t r e v á r i a s h ip ó t e s e s d i f e r e n t e s e c o m p e t it iv a s ( d o t i p o q u e B e rk e le y c h a m o u d e
“m a t e m á t i c a s ” ), c o m r e s p e ito à s u a sim plicidade ( C f. 1 6 ), a c i m a . H á t a m b é m u m a
n o tá v e l s e m e l h a n ç a c o m o s Princípios da Mecânica, d e H e r z (1 8 9 4 ) , e m q u e e le
p r o c u r o u e l i m i n a r o c o n c e i to d e “ f o r ç a ” , b e m c o m o c o m o Tractatus
d e W it tg e n s -
te in .

O m a i s n o tá v e l ta lv e z s e ja o f a t o d e q u e t a n t o B e r k e le y q u a n t o M a c h — a m ­
b o s g r a n d e s a d m i r a d o r e s d e N e w t o n — c r i t i c a m as i d é i a s d e t e m p o , e s p a ç o e
m o v i m e n t o a b s o l u to s d e f o r m a m u i t o s e m e l h a n t e . A c r í t i c a d e M a c h , e x a t a m e n t e
c o m o a d e B e rk e le y , c u l m i n a n a s u g e s tã o d e q u e to d o s o s a r g u m e n t o s e m f a v o r d o
e s p a ç o a b s o lu to n e w to n ia n o (c o m o o p ê n d u lo d e F o u c a u lt, o b a ld e d e á g u a q u e
g i r a , o e f e i to d a f o r ç a c e n t r í f u g a s o b r e a f o r m a d a T e r r a ) f r a c a s s a m p o r q u e esses
m o v i m e n t o s s ã o r e l a ti v o s a o s i s te m a d e e s tr e la s f ix a s .

P a ra d e m o n s tra r a im p o rtâ n c ia d essa a n te c ip a ç ã o d a c rític a d e M a c h ,


c i t a r i a d u a s p a s s a g e n s — u m a d o p r ó p r i o M a c h , a o u t r a d e E in s t e in . M a c h e s ­
c r e v e u ( n a 7 . a e d iç ã o d a M ecânica , 1 9 1 2 , C a p . ii, s e ç ã o 6 , § 1 1 ) a p r o p ó s i t o d a f o r ­
m a c o m o fo i r e c e b i d a s u a c r í t i c a d o c o n c e i to d e m ovim ento absoluto, p r o p o s to e m
e d iç õ e s a n t e r i o r e s d a Mecânica: “ H á tr in ta a n o s, c o n s id e ra v a -s e g e r a lm e n te m u ito
e s tr a n h a a id é ia d e q u e a n o ç ã o d e movim ento absoluto fo s se d e s p r o v i d a d e s e n t i d o
e d e c o n t e ú d o e m p í r i c o , e c i e n t i f i c a m e n t e i n ú t i l . H o je , e s te p o n t o d e v is ta é s u s t e n ­
t a d o p o r m u i t o s p e s q u i s a d o r e s r e p u t a d o s ” . E , n o n e c r o l ó g io d e M a c h ( “ N a c h r u f
auf M ach”, Physikalische Zeitschr., 1 9 1 6 ), r e f e r i n d o - s e a e s s a o p i n i ã o d e M a c h ,
E in s t e in a f i r m o u : “ N ã o é i m p r o v á v e l q u e e le tiv e sse d e s c o b e r t o a t e o r i a d a r e l a ­
t i v i d a d e se o p r o b l e m a d a c o n s t â n c i a d a v e lo c i d a d e d a lu z tiv e sse a g i t a d o os físic o s ,
n u m a é p o c a e m q u e s u a m e n t e e r a a i n d a j o v e m ” . A o b s e r v a ç ã o d e E in s te in é se m
d ú v i d a m a i s d o q u e g e n e r o s a . 8 U m a p a r t e d a lu z i n t e n s a q u e p r o j e t a s o b r e M a c h
d e v e r e c a i r e m B e r k e l e y .9

IV Ü
E p r e c is o d iz e r a l g u m a s p a l a v r a s p e lo m e n o s s o b r e a r e l a ç ã o q u e h á e n t r e a
filo s o f ia d a c iê n c ia d e B e rk e le y e s u a m e t a f í s i c a , q u e é m u i t o d i f e r e n t e , i n d u b i ­
ta v e lm e n te , d a d e M a c h .

M a c h fo i u m p o s i ti v is t a , in i m i g o d e t o d a m e t a f í s i c a n ã o - p o s iti v is ta , e s p e c i a l -
m e n t e d e t o d a te o l o g ia . B e rk e le y , d e o u t r o la d o , fo i u m te ó l o g o — p r o f u n d a m e n t e
i n t e r e s s a d o n a a p o l o g é t i c a c r i s t ã . M a c h e B e rk e le y e s t ã o d e a c o r d o e m q u e e x p r e s ­
sõ e s c o m o “ t e m p o a b s o l u t o ” , “ e s p a ç o a b s o l u t o ” e “m o v i m e n t o a b s o l u t o ” n ã o tê m
s e n t i d o , d e v e n d o p o r t a n t o s e r e l i m i n a d a s d a li n g u a g e m c i e n t í f i c a ; M a c h , c o n t u d o
s e g u r a m e n t e n ã o t e r i a c o n c o r d a d o c o m B e rk e le y a r e s p e ito d a r a z ã o p o r q u e a
tí s i c a n ã o é c a p a z d e t r a t a r d e c a u s a s r e a i s . B e rk e le y a c r e d i t a v a e m c a u s a s , e m b o r a
n ã o e m c a u s a s “ r e a i s ” o u “v e r d a d e i r a s " ; p a r a e le to d a s a s c a u s a s re a is o u v e r d a -

8 — M a c h v iv e u m a is d e o n z e a n o s d e p o is d e d e s c o b e r t a a t e o r i a e s p e c ia l d a r e l a t i v i d a d e — o i t o d o s
q u a i s , p e lo m e n o s , f o r a m a n o s m u i t o a tiv o s ; c o n t u d o , e le se m a n t e v e e m f o r t e o p o s iç ã o à q u e l a te o r i a : e,
e m b o r a t e n h a a l u d i d o a e la n o p r e f á c i o à ú l t i m a ( s é tim a ) e d i ç ã o a l e m ã ( d e 1 9 1 2 ) d e M echanik p u b l i ­
c a d a e n q u a n t o v iv o , e ss a a l u s ã o fo i u m a f o r m a d e c u m p r i m e n t o a H u g o D in g le r , o g r a n d e o p o s i t o r d e
E in s te in — n ã o m e n c io n o u o n o m e d a te o ria e d o seu fo r m u la d o r n a q u e la o p o rtu n id a d e .
9 — N ã o é e s te o l u g a r p a r a d i s c u t i r o u t r o s p r e d e c e s s o r e s d e M a c h , c o m o L e ib n iz .
200 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

d e ir a s e r a m “e f i c ie n t e s o u f i n a i s ” (S , 2 3 1 ) e p o r t a n t o e s p ir itu a is ... a b s o l u t a m e n t e
d i s t a n t e s d a fís ic a ( H P , ii); a c r e d i t a v a t a m b é m n a e x p lic a ç ã o c a u s a i r e a l o u v e r ­
d a d e i r a (S , 2 3 1 ) o u , c o m o ta lv e z se p u d e s s e d iz e r , n a “e x p l i c a ç ã o ú l t i m a e d e f i ­
n i t i v a ” — p a r a e le , D e u s .

T o d a s a s a p a r ê n c i a s s ã o c a u s a d a s g e n u i n a m e n t e p o r D e u s , e x p l i c a d a s p e la
i n t e r v e n ç ã o d iv i n a . E s ta , p a r a e le , é a r a z ã o s im p le s p o r q u e a fís ic a n ã o p o d e d e s ­
c re v e r r e g u la r id a d e s , n e m e n c o n tr a r as c a u sa s v e rd a d e ira s .

S e r ia u m e r r o , p o r é m , a c r e d i t a r q u e e ss a s d i f e r e n ç a s d e m o n s t r a m q u e a
s e m e l h a n ç a e n t r e B e rk e le y e M a c h é a p e n a s s u p e r f i c i a l . A o c o n t r á r i o , t a n t o u m
c o m o o o u t r o e s t a v a m c o n v e n c i d o s d e q u e n ã o h á u m m u n d o fís ic o (d e q u a l i d a d e s
p r i m á r i a s o u d e á to m o s , c f. P r , 5 0 ; S, 2 3 2 ; 2 3 5 ) p o r tr á s d o m u n d o d e a p a r ê n c i a s
fís ic a s ( P r , 8 7 , 8 8 ). O s d o is a c r e d i t a v a m n u m a f o r m a d a d o u t r i n a q u e h o je c o ­
n h e c e m o s c o m o fe n o m e n a lis m o — a c o n c e p ç ã o d e q u e a s c o is a s fís ic a s s ã o c o n j u n ­
to s , c o m p l e x o s o u c o n s t r u ç ã o ( c o n s tr u c ts ) d e q u a l i d a d e s f e n o m e n a i s , d e c o re s e so n s
p a r t i c u l a r e s ; M a c h c h a m a esses c o n j u n t o s d e “c o m p l e x o s d e e l e m e n t o s ” . A d i f e r e n ­
ç a e s tá e m q u e p a r a B e rk e le y e le s s ã o c a u s a d o s d i r e t a m e n t e p o r D e u s . M a c h a p e n a s
c o n s t a t a q u e e s tã o a li. B e rk e le y a f i r m a q u e n ã o p o d e h a v e r n a d a fís ic o p o r t r á s d o s
f e n ô m e n o s físic o s ; M a c h d iz q u e n ã o h á n a d a , a b s o l u t a m e n t e , p o r t r á s d e le s .

N a m i n h a o p i n i ã o , a g r a n d e i m p o r t â n c i a h i s t ó r i c a d e B e r k e le y e s t á n o s e u
p r o t e s t o c o n t r a as e x p li c a ç õ e s e s s e n c ia lis ta s n a c i ê n c i a . O p r ó p r i o N e w t o n n ã o i n ­
t e r p r e t a v a s u a t e o r i a n u m s e n t i d o e s s e n c ia lis ta : n ã o a c r e d i t a v a t e r d e s c o b e r t o q u e
p o r s u a n a t u r e z a o s c o r p o s físic o s s ã o n ã o só e x te n s o s , m a s e s tã o d o t a d o s d e u m a
f o r ç a d e a t r a ç ã o q u e se i r r a d i a d e le s e é p r o p o r c i o n a l à q u a n t i d a d e d e m a t é r i a q u e
c o n t ê m . L o g o d e p o is , p o r é m , a i n t e r p r e t a ç ã o e s s e n c ia l is t a d a s u a t e o r i a p a s s o u a
p re v a le c e r, m a n te n d o -s e a té a é p o c a d e M a c h .

A t u a l m e n t e , o e s s e n c ia h s m o p e r d e u o d o m í n i o , s e n d o s u b s t i t u í d o p o r u m
p o s itiv is m o o u i n s t r u m e n t a l i s m o à m o d a d e B e rk e le y o u d e M a c h .

H á , c o n t u d o , u m a t e r c e i r a p o s s ib il id a d e — u m a “t e r c e i r a v is ã o ” , c o m o c o s ­
tu m o c h a m á -la .

A c h o q u e o e s s e n c ia lis m o é i n s u s te n t á v e l. M a s , e m b o r a s e ja n e c e s s á r io
r e j e i t á - l o , isso n ã o s i g n if ic a q u e p r e c is e m o s a c e i t a r o p o s itiv is m o . P o d e m o s p e r -
f e i t a m e n t e f i c a r c o m a “ t e r c e i r a v is ã o ” .

N ã o e x a m i n a r e i a q u i o d o g m a p o s itiv is ta d o s i g n if i c a d o — o q u e j á fiz e m
o u t r a s o p o r t u n i d a d e s . V o u f a z e r a p e n a s seis o b s e r v a ç õ e s : i) E p o ss ív e l t r a b a l h a r
c o m a lg o c o m o u m m u n d o “ p o r t r á s ” d a s a p a r ê n c i a s s e m a s s u m ir u m c o m p r o m i s s o
c o m o e s s e n c ia lis m o ( e s p e c i a l m e n t e se a d m i t i m o s q u e n ã o é p o ss ív e l s a b e r se h á a l ­
g u m o u t r o m u n d o “ r e a l ” o c u lt o p o r t r á s d o p r i m e i r o ) . P a r a f a l a r d e m o d o m a is
c o n c r e t o , p o d e - s e t r a b a l h a r c o m a id é ia d e n ív e is h i e r á r q u i c o s d e h ip ó t e s e s e x ­
p l i c a t i v a s . H a v e r á a l g u m a s d e n ív e l r e l a t i v a m e n t e b a i x o (c o m o a s q u e B e rk e le y
t i n h a e m m e n t e a o f a l a r e m “le is d a n a t u r e z a ” ); o u t r a s , d e n ív e l m a i s e le v a d o c o m o
as leis d e K e p le r , a t e o r i a d e N e w t o n e , f i n a l m e n t e , a r e l a t i v i d a d e , ii) E ssa s te o r ia s
n ã o s ã o h ip ó te s e s m a t e m á t i c a s — is to é , a p e n a s i n s t r u m e n t o s p a r a a p r e v is ã o d e
a p a r ê n c i a s . S u a f u n ç ã o é m u i t o m a is a m p l a , p o is iii) n ã o e x is te o b s e r v a ç ã o o u
N O T A SO B R E B E R K E L E Y - UM P R E C U R S O R D E M ACH E D E E IN ST E IN 201

a p a r ê n c i a q u e s e ja pura·, o q u e B e rk e le y t i n h a e m m e n t e , a o f a l a r e m o b s e r v a ç ã o , é
s e m p r e o r e s u l t a d o d e u m a i n t e r p r e t a ç ã o , iv ) t e n d o , p o r t a n t o , u m a m i s t u r a d e
e l e m e n t o t e ó r i c o o u h i p o t é t i c o , v ) A lé m d is s o , n o v a s te o r ia s p o d e m le v a r a u m a re -
i n t e r p r e t a ç ã o d e v e lh a s a p a r ê n c i a s ; a l t e r a n d o a s s im o m u n d o a p a r e n t e , v i) A m u l ­
t i p l i c i d a d e d a s t e o r i a s e x p li c a ti v a s q u e B e r k e le y o b s e r v o u (v id e s e ç ã o ii (1 6 ) , a c i m a )
é e m p r e g a d a , s e m p r e q u e p o s s ív e l, p a r a c o n s t r u i r u m a s i t u a ç ã o e m q u e d u a s
t e o r ia s c o n f l i t a n t e s p o d e m d a r r e s u l t a d o s o b s e r v á v e is d i f e r e n t e s , p e r m i t i n d o a s s im a
a p l i c a ç ã o d e u m te s te c r u c i a l p a r a e s c o l h e r e n t r e e la s .

U m a s p e c t o i m p o r t a n t e d a “ t e r c e i r a v is ã o ” é o f a t o d e q u e a c i ê n c i a b u s c a
te o r ia s v e r d a d e ir a s , e m b o r a n u n c a p o s s a m o s e s t a r s e g u r o s d e q u e u m a t e o r i a e m
p a r t i c u l a r é v e r d a d e i r a ; p o r o u t r o l a d o , a c iê n c ia p o d e p r o g r e d ir ( s a b e n d o q u e
p r o g r i d e ) f o r m u l a n d o te o r ia s q u e , c o m p a r a d a s c o m a s a n t e r i o r m e n t e a c e i t a s s ã o
d e s c rita s c o m o u m a m e lh o r a p r o x im a ç ã o d a v e rd a d e .

P o d e m o s a d m i t i r , p o r t a n t o , s e m s e r e s s e n c ia lis ta s , q u e p e la c iê n c ia p r o ­
c u r a m o s s e m p r e e x p lic a r o c o n h e c id o p e lo d e s c o n h e c id o , o o b s e r v a d o (e o b s e r v á v e l)
p e lo n ã o o b s e r v a d o (p o s s iv e lm e n te in o b s e r v á v e l) . A o m e s m o t e m p o , p o d e m o s a d ­
m i t i r , s e m s e r i n s t r u m e n t a l i s t a s , o q u e B e rk e le y d is s e a r e s p e ito d a n a t u r e z a d a s
h ip ó t e s e s , n a p a s s a g e m s e g u i n te (S , 2 2 8 ), q u e m o s t r a t a n t o a d e b i l i d a d e d a s u a
a n á li s e — a f a l h a e m p e r c e b e r o c a r á t e r c o n j e c t u r a l d e t o d a c i ê n c i a , in c lu s iv e d o
q u e c h a m a d e “le is d a n a t u r e z a ” — c o m o s u a f o r ç a : a a d m i r á v e l c o m p r e e n s ã o d a
e s t r u t u r a ló g ic a d a e x p li c a ç ã o h i p o t é t i c a .

E s c re v e B e rk e le y : “U m a c o is a é c h e g a r a le is n a t u r a i s d e c a r á t e r g e n é r i c o , a
p a r t i r d a c o n t e m p l a ç ã o d o s f e n ô m e n o s ; c o is a d i f e r e n t e é f o r m u l a r u m a h ip ó t e s e
p a r a d e l a d e d u z i r os f e n ô m e n o s . P o d e m o s p e n s a r q u e a q u e le s q u e a d m i t i a m os
e p ic ic lo s , e x p l i c a n d o c o m e le s os m o v i m e n t o s e a a p a r ê n c i a d o s p l a n e t a s , n ã o d e s ­
c o b r ir a m p rin c íp io s v e rd a d e iro s d a n a tu r e z a . E m b o r a p o ssa m o s in f e r ir u m a c o n ­
c lu s ã o a p a r t i r d a s p r e m is s a s , isso n ã o s i g n if ic a q u e p o d e m o s a r g u m e n t a r r e c i ­
p r o c a m e n t e , i n f e r i n d o a s p r e m is s a s a p a r t i r d a c o n c l u s ã o . P o r e x e m p l o : p o d e m o s
s u p o r u m f l u id o d e c o m p o r t a m e n t o e lá s ti c o , c o n s t i t u í d o p o r p a r t í c u l a s m í n i m a s ,
e q u i d i s t a n t e s e n t r e si, d e ig u a l d e n s i d a d e e d i â m e t r o , a f a s t a n d o - s e u m a d a o u t r a
c o m u m a f o r ç a c e n t r í f u g a q u e é o in v e r s o d a d i s t â n c i a e n t r e e la s ; p o d e m o s a d m i t i r
q u e d e s s a s u p o s iç ã o se d e v a c o n c l u i r q u e a d e n s i d a d e e a f o r ç a e lá s ti c a d o f l u id o
m a n t ê m u m a p r o p o r ç ã o in v e r s a a o e s p a ç o q u e o c u p a , q u a n d o c o m p r i m i d o p o r
u m a f o r ç a q u a l q u e r ; c o n t u d o , n ã o p o d e m o s i n f e r i r , r e c i p r o c a m e n t e , q u e u m f l u id o
c o m t a l p r o p r i e d a d e d e v a c o n s i s ti r d e p a r t í c u l a s ig u a i s , c o n f o r m e s u p o s t o ” .
7. Crítica e Cosmologia de Kant*
H á c e n t o e c i n q u e n t a a n o s f a l e c ia I m m a n u e l K a n t , d e p o is d e p a s s a r os
o i t e n t a a n o s d a s u a v id a n a c i d a d e p r o v i n c i a n a d e K õ n ig s b e r g , n a P r ú s s ia . H á
m u i t o s a n o s q u e o filó s o f o se a p o s e n t a r a c o m p l e t a m e n t e *1, e s e u s a m ig o s p r e t e n ­
d i a m d a r - l h e u m f u n e r a l d is c r e to . M a s K a n t , f ilh o d e u m a r t e s ã o , fo i e n t e r r a d o
c o m o u m r e i . Q u a n d o a n o t í c i a d a s u a m o r t e se e s p a l h o u p e l a c i d a d e , o p o v o fo i à
s u a c a s a . N o d ia d o f u n e r a l a v id a d a c i d a d e p a r o u . O c a i x ã o fo i s e g u id o p o r
m i l h a r e s d e p e s s o a s , e n q u a n t o t o c a v a m os s in o s d e to d a s a s ig r e ja s . O s c r o n i s ta s
d iz e m q u e n u n c a se v ir a n a d a a s s im e m K õ n i g s b e r g . 2

E d if íc i l e x p l i c a r e s s a e s p a n t o s a e c lo s ã o d e s e n t i m e n t o p o p u l a r . S e r ia d e v id a
e x c lu s iv a m e n te à r e p u t a ç ã o d e K a n t c o m o u m g r a n d e filó s o f o e u m h o m e m b o m ?
P a r e c e - m e q u e h a v ia m a is d o q u e isso ; a c h o q u e a q u e le s s in o s d o b r a n d o p o r K a n t
e m 1 8 0 4 , s o b a m o n a r q u i a a b s o l u t i s t a d e F r e d e r i c o G u i l h e r m e , e c o a v a m a s id é ia s
d a R e v o lu ç ã o N o r t e - A m e r i c a n a e d a R e v o lu ç ã o F r a n c e s a — os i d e a i s d e 1 7 7 6 e d e
1 7 8 9 . P a r a s e u s c o n t e r r â n e o s , K a n t se h a v ia t r a n s f o r m a d o n u m s í m b o l o d e s s a s
i d é i a s . 3 E le s v i n h a m p o r t a n t o d e m o n s t r a r s u a g r a t i d ã o a o m e s tr e d o s D ir e ito s d o
H o m e m , d a i g u a l d a d e p e r a n t e a le i, d a c i d a d a n i a m u n d i a l , d a p a z u n iv e r s a l — e,
p o s s iv e lm e n te , o m a is i m p o r t a n t e , d a e m a n c i p a ç ã o p e lo c o n h e c i m e n t o . 4

* P a l e s t r a r a d i o f ô n i c a n a v é s p e r a d o 1 5 0 .° a n iv e r s á r i o d a m o r t e d e K a n t . P u b l i c a d a p e l a p r i m e i r a vez
(s e m n o t a s ) s o b o t í t u l o “ I m m a n u e l K a n t: P h i l o s o p h e r o f t h e E n l i g h t e n m e n t ” e m T h e Listener, 51,
1954.
1 — S eis a n o s a n t e s d a m o r t e d e K a n t, P o r s c h k e c o m e n t a v a ( c a r t a a F ic h te , d e 2 d e j u l h o d e 1 9 7 8 ) q u e ,
d e v id o à m a n e i r a r e s e r v a d a c o m o v iv ia , o filó s o fo e s ta v a s e n d o e s q u e c i d o a t é m e s m o e m K õ n ig s b e r g .
2 — C .E .A . C h . W a s ia n s k i , Im m a n u e l K a n t in setnen letzten L ebensjahren ( e m Ü ber Im m a n u e l K ant,
D r ítt e r B a n d , K õ n ig s b e r g , b e i N ic o lo v iu s , 1 8 0 4 ): “ O s j o r n a i s d e c i r c u l a ç ã o p ú b l i c a e u m a p u b l i c a ç ã o e s ­
p e c i a l f iz e r a m c o m q u e se p u d e s s e c o n h e c e r t o d a s a s c i r c u n s t â n c i a s d o f u n e r a l d e K a n t " .

3 - A s i m p a t i a d e K a n t p e lo s id e a is d e 1 7 7 6 e d e 1 7 8 9 é b e m c o n h e c i d a , p o is e le c o s tu m a v a m a n if e s tá -
la e m p ú b l i c o (C f. t e s t e m u n h o d e M o th e r b y a r e s p e it o d o p r i m e i r o e n c o n t r o d e K a n t c o m G r e e n , in, R .
B . J a c h m a n n , Im m a n u e l K ant geschildert in B riefen — Über I m m a n u e l K ant, Z w eiter B and,
K õ n ig s b e r g b e i N ic o lo v iu s , 1 8 0 4 ).
4 — 0 m a is im p o r ta n te p o r q u e a m e re c id a a sc e n sã o d e K a n t, d e u m a s itu a ç ã o m u ito p ró x im a d a
m is é r ia a t é a f a m a , e c o n d iç õ e s d e v id a r e l a t i v a m e n t e c o n f o r tá v e is , a j u d o u a c r i a r h o c o n t i n e n t e e u ­
r o p e u a id é ia d a e m a n c i p a ç ã o p e la a u t o - e d u c a ç ã o (s o b e s ta f o r m a a i n d a m a l c o n h e c i d a n a I n g l a t e r r a ,
o n d e o “s e l f - m a d e - m a n " e r a c o n s i d e r a d o · u m a r r iv i s ta i n c u l t o ) . A s ig n if ic a ç ã o d e s s a id é ia e s tá l i g a d a a o
f a t o d e q u e n o s p a ís e s c o n t i n e n t a i s a c la s s e c u l t a t i n h a s id o d u r a n t e m u i t o te m p o d a c la s s e m é d i a , m a s
n a I n g l a t e r r a e la e r a a c la s s e a r i s t o c r á t i c a .
204 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

1. K a n t e o I lu m in is m o

A m a i o r p a r t e d e s s a s id é i a s t i n h a m c h e g a d o a o c o n t i n e n t e , d à I n g l a t e r r a ,
n u m liv ro p u b l i c a d o e m 1 7 3 2 — a s C a rta s S o b re os In g le se s, d e V o l t a i r e . N e sse
liv r o , V o l t a i r e c o m p a r a o g o v e r n o c o n s t i t u c i o n a l b r i t â n i c o c o m o a b s o l u ti s m o
m o n á r q u i c o q u e p r e v a l e c i a n o s p a ís e s c o n t i n e n t a i s ; a t o l e r â n c i a re lig io s a d o s i n ­
g le s e s c o m a a t i t u d e d a I g r e j a C a t ó l i c a ; a c a p a c i d a d e e x p l i c a t i v a d a c o s m o lo g ia d e
N e w t o n e d o e m p i r i s m o a n a l í t i c o d e L o c k e c o m o d o g m a t i s m o c a r t e s i a n o . O liv ro
d e V o l t a i r e fo i q u e i m a d o , m a s s u a p u b l i c a ç ã o m a r c a o in íc io d e u m m o v i m e n t o
filo s ó f ic o c u jo e s tilo i n t e l e c t u a l m e n t e a g re s s iv o fo i m a l c o m p r e e n d i d o n a I n ­
g l a t e r r a , o n d e e le e r a d e s n e c e s s á r io .

S e s s e n ta a n o s d e p o is d a m o r t e d e K a n t e ss a s m e s m a s id é i a s in g le s a s e r a m
a p r e s e n t a d a s n a I n g l a t e r r a c o m o “i n t e l e c t u a l i s m o r a s o e p r e t e n s i o s o ” ; é ir ô n ic o q u e
a p a l a v r a in g l e s a E n lig h te n m e n t, u s a d a e n t ã o p a r a d a r n o m e a o m o v i m e n t o
in i c i a d o p o r V o l t a i r e , a i n d a h o je g u a r d a e ss a c o n o t a ç ã o d e s u p e r f i c i a l i d a d e e
p r e t e n s ã o — p e lo m e n o s , é o q u e n o s i n f o r m a o O x fo r d E n g lish D ic tio n a ry P D e s ­
n e c e s s á r io d iz e r q u e n ã o p r e t e n d o a b r i g a r essa c o n o t a ç ã o , a o e m p r e g a r a q u i a
p a la v r a .

K a n t a c r e d i t a v a n o I l u m i n i s m o ; fo i s e u g r a n d e d e f e n s o r . E s to u c o n s c i e n te
d e q u e e s te p o n t o d e v is ta n ã o é u s u a l . V e jo K a n t c o m o o d e f e n s o r d o I l u m i n is m o ,
e m b o r a a e le se a t r i b u a m a is C o m u m e n te a f u n d a ç ã o d a e s c o la q u e o d e s t r u i u — a
E s c o la R o m â n t i c a d e F ic h t e , S c h e llin g e H e g e l. D u a s i n t e r p r e t a ç õ e s q u e , p e n s o , s ã o
i n c o m p a tí v e is .

F ic h t e (e m a is t a r d e H e g e l) p r o c u r a r a m a p r o p r i a r - s e d e K a n t c o m o f u n ­
d a d o r d a s u a E s c o la . M a s K a n t v iv e u o b a s t a n t e p a r a r e c u s a r a s p r o p o s t a s p e r s i s ­
t e n t e s d e F i c h t e , q u e se p r o c l a m a v a s e u s u c e s s o r e h e r d e i r o . E m D e c la ra ç ã o P ú b lic a
a R e s p e ito d e F ic h te ®, t r a b a l h o p o u c o c o n h e c i d o , K a n t e s c r e v e u : “ Q u e D e u s n o s
p r o t e j a d o s a m i g o s . . . E x is te m “ a m i g o s ” p é r f id o s e f r a u d u l e n t o s q u e p l a n e j a m n o ss a
r u í n a , a o m e s m o t e m p o e m q u e p r o n u n c i a m p a l a v r a s d e b o a v o n t a d e . ” F oi só
d e p o is d a m o r t e d e K a n t , q u a n d o o filó s o fo n ã o p o d i a m a is p r o t e s t a r , q u e a q u e le
c i d a d ã o - d o m u n d o fo i u t i l i z a d o a s e r v iç o d a E s c o la R o m â n t i c a n a c i o n a l i s t a , a d e s ­
p e it o d e t o d a s as s u a s a d v e r t ê n c i a s c o n t r a o r o m a n t i s m o , o e n t u s i a s m o s e n t i m e n t a l ,
a S c h w ã r m e r e i. M a s , v e ja m o s c o m o o p r ó p r i o K a n t d e s c r e v e o I l u m i n i s m o : 567

“ O I l u m i n i s m o é a e m a n c i p a ç ã o d o h o m e m d e u m e s t a d o d e t u t e l a q u e e le
im p õ e a si m e s m o . . . d a i n c a p a c i d a d e d e u s a r s u a p r ó p r i a i n t e l i g ê n c i a s e m u m a

5 E)e f a to , o O . E . D . d e f i n e (a ê n f a s e é m i n h a ) : “E n Íig h ten m en t ... 2 . T e r m o e m p r e g a d o às vezes


( s e g u in d o o a l e m ã o A u fk iã r u n g , A ufklàrerei) p a r a d e s i g n a r o e s p í r i t o e os o b je tiv o s d o s filó s o fo s f r a n ­
c e s e s d o s é c u lo d e z o i to , o u o u tr o s , p re ten d en d o associá-los à acusação im pÍícita de intelectualism o
superficial e ped a n te, d e s p r e z o ir r a z o á v e l p e l a a u t o r i d a d e e a t r a d i ç ã o , e t c ." O O . E . D . n ã o e x p lic a q u e
o a l e m ã o “ a u f k i ã r u n g ” é u m a t r a d u ç ã o d o f r a n c ê s “ é c l a i r c i s s e m e n t ” , e q u e n ã o te m a m e s m a c o n o ta ç ã o ;
t a m b é m n ã o e x p l i c a q u e “ A u f k l à r e r e i (o u “ A u fk líirii h; ) é u m h o r r ív e l n e o lo g is m o i n v e n t a d o (e e m ­
p r e g a d o e x c l u s iv a m e n te ) p e lo s r o m â n t i c o s os in im ig o s d o “ I lu m i n i s m o " . O d ic i o n á r i o c i t a J . H .
S ti r lin g , T h e Secret o f H egel, 1 8 6 5 , e C a i r d , T he Philosophy o f K ant, 1 8 8 9 , p a r a e x e m p l i f i c a r o u s o d o
t e r m o n e ss e s e n t i d o p a r t i c u l a r .

6 — A d a t a d e s s a d e c l a r a ç ã o é 1 7 9 9 . C f. W VVC ( I m m a n u e l K a n t , W erke , e d . E r n s t C a s s ie r , et a i ) , v o l.
V I I I , p á g . 5 1 5 ; v id e t a m b é m O pen Society, n o t a 5 8 , c a p . 12 ( 4 . a e d i ç ã o , v o l. II , p á g . 3 1 3 . 1 9 6 2 ).
7 — Que é o Ilu m in ism o (1 7 8 5 ) ; W W C , IV , 1 69.
C R IT IC A E -COSM O LO GIA DE K A N T 205

o r i e n t a ç ã o e x t e r n a . D e f in o e sse e s t a d o d e t u t e l a c o m o a u t o - i m p o s t o ” p o r q u e é
d e v id o n ã o à f a l t a d e in t e l i g ê n c i a , m a s s im à f a l t a d e c o r a g e m e d e d e t e r m i n a ç ã o
p a r a u s a r a in te lig ê n c ia sem a a ju d a d e u m a g u ia . S a p ere a u d e ! T e m a c o ra g e m d e
u s a r t u a i n t e li g ê n c ia ! E ste é o g r i t o d e b a t a l h a d o I l u m i n i s m o . ”

N e s s a p a s s a g e m , K a n t d iz a lg o m u i t o p e s s o a l, q u e r e f le t e s u a p r ó p r i a h i s ­
t ó r i a . C r i a d o 'n a p o b r e z a , d e n t r o d e a m b i e n t e e s t r e i t a m e n t e p i e t i s t a — u m a v e rs ã o
rig o ro s a a le m ã d o p u r ita n is m o — , s u a b io g r a fia é u m a e s tó ria d e e m a n c ip a ç ã o
p e lo c o n h e c i m e n t o . J á m a d u r o , o filó s o f o l e m b r a v a c o m h o r r o r o q u e c h a m a v a d e
s u a “e s c r a v id ã o i n f a n t i l ” . N ã o s e r ia e x a g e r o d iz e r q u e o t e m a d a s u a v id a fo i a l u t a
p e la lib e r d a d e e s p iritu a l.

2 . A c o s m o lo g ia n e w to n ia n a d e K a n t

A te o r i a d e N e w t o n ( q u e V o lta i r e d i f u n d i r a n o c o n t i n e n t e ) d e s e m p e n h o u
u m p a p e l d e c is iv o n e s s a l u t a . A c o s m o lo g i a d e C o p é r n i c o e d e N e w t o n se t o r n o u
u m a i n s p i r a ç ã o v ig o r o s a e e s t i m u l a n t e , n a v id a i n t e l e c t u a l d e K a n t . S e u p r i m e i r o
liv ro d e i m p o r t â n c i a , 89 A T e o ria dos C éu s, t i n h a u m s u b t í t u l o i n t e r e s s a n t e : E n sa io
so b re a C o m p o siç ã o e a O r ig e m M e c â n ic a d o U n iverso , d e a c o r d o c o m os P r in ­
cíp io s d e N e w to n . T r a t a - s e d e u m a d a s m a i o r e s c o n t r i b u i ç õ e s j á d a d a s à c o s m o -
lo g ia e à c o s m o g o n ia . C o n té m a p r i m e i r a f o r m u l a ç ã o n ã o só d o q u e c o n h e c e m o s
h o je c o m o “H ip ó te s e K a n t - L a p l a c e ” ' s o b r e a o r i g e m d o s i s te m a s o l a r , m a s t a m b é m ,
a n t e c i p a n d o Je a n s, a a p lic a ç ã o dessa id é ia à “V ia L á c te a ’’ (q u e T h o m a s W r ig h t i n ­
t e r p r e t a r a c in c o a n o s a n te s c o m o u m s is te m a e s t r e l a r ) . M a s n a d a d is s o se c o m p a r a
c o m a i d e n t i f i c a ç ã o d a s n e b u lo s a s c o m o o u t r a s t a n t a s “ v ia s l á c t e a s ” — s is te m a s d e
e s t r e la s m u i t o d i s t a n t e s , s e m e l h a n t e s a o n o ss o .
C o n f o r m e K a n t e x p li c a e m u m a d a s s u a s c a r t a s , 5 fo i o p r o b l e m a c o sm o ·
ló g ic o q u e o le v o u à s u a t e o r i a d o c o n h e c i m e n t o , e à C rític a d a R a z ã o P u r a . E le se
p r e o c u p a v a c o m o d if íc il p r o b l e m a ( q u e to d o s os c o s m ó lo g o s p r e c i s a m e n f r e n t a r )
d o c a r á t e r f i n i t o o u i n f i n i t o d o u n iv e r s o , t a n t o c o m r e s p e ito a o e s p a ç o q u a n t o a o
t e m p o . N o c o n c e r n e n t e a o e s p a ç o , te m o s h o je u m a s o l u ç ã o f a s c i n a n t e , p r o p o s t a
p o r E in s t e in : u m m u n d o q u e a o m e s m o t e m p o é f i n i t o e n ã o t e m li m i te s . S o lu ç ã o
q u e c o r t a o “ n ó g o r d i o ” d e K a n t , g r a ç a s a o e m p r e g o d e m e io s m a i s p o d e r o s o s d o
q u e o s e x is te n te s n a é p o c a d o filó s o f o . N o r e l a ti v o a o t e m p o , n ã o s u r g i u a t é a g o r a
q u a l q u e r s o l u ç ã o p r o m is s o r a p a r a a s d if ic u l d a d e s a p r e s e n t a d a s p o r K a n t .

3. A “C r ític a ’’ e o P ro b le m a C o sm o ló g ic o

K a n t n o s d i z 101 q u e c h e g o u a o p r o b l e m a c e n t r a l d a C rític a a o c o n s i d e r a r se
o u n iv e r s o ti v e r a u m p r i n c í p i o n o te m p o o u n ã o . V e r if ic o u , e n t ã o , q u e p o d i a f o r ­
m u l a r p r o v a s a p a r e n t e m e n t e v á li d a s p a r a a s d u a s h ip ó t e s e s . E ssa s d u a s p r o v a s 11

1 7 5 5 . O t í t u l o p r i n c i p a l p o d e r í a s e r a s s im t r a d u z i d o : H istória N a tu ra l Geral (dos


8 — P u b lic a d o em
Céus) e Teoria dos Céus — o q u e i n d i c a q u e o t r a b a l h o é u m a c o n t r i b u i ç ã o â t e o r i a d a evolução d o s s is ­
t e m a s e s tr e l a r e s .

9 — C a r t a a C . G a r v e , 21 d e s e t e m b r o d e 1 7 9 8 : “ M e u p o n t o d e p a r t i d a n ã o fo i u m a in v e s t ig a ç ã o d a
e x is t ê n c ia d e D e u s , m a s a a n t i n o m i a d a r a z ã o p u r a : " O m u n d o te m u m p r i n c í p i o ; o m u n d o n ã o t e m u m
p r i n c í p i o " , e t c ., a t é a q u a r t a . . . " ( N e s t e p o n t o K a n t a p a r e n t e m e n t e c o n f u n d i u a t e r c e i r a a n t i n o m i a c o m
a q u a r t a ) . “ E s s as a n t i n o m i a s p e l a p r i m e i r a vez m e d e s p e r t a r a m d o s o n o d o g m á t i c o , c o n d u z i n d o - m e à
c r í t i c a d a r a z ã o . .. p a r a r e s o lv e r o e s c â n d a l o d a s u a a p a r e n t e c o n t r a d i ç ã o in t r í n s e c a " .

10 — V i d e a n o t a s e g u in t e , e t a m b é m a c o r r e s p o n d ê n c i a d e L e ib n iz c o m C la r k e ( P hitos. B ib l., e d it. p o r


K ir c h m a n n , 1 07, p á g s. 1 34, 14 7 , 188), b e m c o m o Reflxionen zur Kritschen P hitosophie, d e K a n t ,
e d it p o r B . E r d m a n n , e s p . n . ° 4 .
11 — V id e Crítica da Razão Pura, 2 .* e d . , 4 5 4 .
206 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

s í o i n t e r e s s a n t e s ; é p r e c i s o a t e n ç ã o p a r a s e g u i r o r a c i o c í n i o , m a s e la s n ã o s ã o l o n ­
g a s , n e m d if íc e is d e e n t e n d e r .

A p r im e ir a p ro v a c o m e ç a c o m a a n á lis e d a id é ia d e u m a s e q ü ê n c ia in f in ita
d e a n o s (o u d i a s , o u q u a l q u e r o u t r o i n t e r v a l o d e t e m p o i g u a l e f i n i t o ) — s e q ü ê n c i a
q u e c o n tin u a r á p a r a s e m p re , se m c h e g a r a u m fim : n ã o p o d e c h e g a r a u m fim p o r ­
q u e u m a in f in id a d e d e a n o s “c o m p le ta ” é u m a c o n tr a d iç ã o . K a n t a r g u m e n ta s im ­
p l e s m e n t e q u e o m u n d o d e v e t e r t i d o u m p r i n c í p i o n o t e m p o — se n ã o , e m q u a l ­
q u e r m o m e n t o , j á t e r i a p a s s a d o u m n ú m e r o i n f i n i t o d e a n o s , o q u e é im p o s s ív e l.
C o n c lu i a s s im a p r i m e i r a p r o v a .

A s e g u n d a p r o v a c o m e ç a c o m a a n á li s e d a i d é i a d o t e m p o “v a z io ” — o t e m ­
p o a n te s d e q u e h o u v esse o m u n d o : q u a n d o n ã o h a v ia n a d a , n e n h u m in te rv a lo d e
t e m p o s e r ia d is ti n g u ív e l d e q u a l q u e r o u t r o p e l a s u a r e l a ç ã o t e m p o r a l c o m c o is a s o u
e v e n to s (já q u e e ss a s c o is a s e e v e n to s e r a m i n e x i s t e n t e s ) . C o n t u d o , o ú l t i m o i n t e r ­
v a lo d o t e m p o “v a z iò ” — i r n e d i a t a m e n t e a n t e s d o p r i n c í p i o d o m u n d o — d i f e r i r í a
d e to d o s os o u t r o s p e la s u a p r o x i m i d a d e d e u m e v e n to — o c o m e ç o d o m u n d o .
H a v e r í a a í, p o r t a n t o , u m a o u t r a c o n t r a d i ç ã o e m te r m o s . N e s ta s e g u n d a p r o v a ,
K a n t a r g u m e n t a s i m p l e s m e n t e q u e o m u n d o n ã o p o d e t e r u m p r i n c í p i o n o te m p o
p o r q u e d e o u tr a fo r m a h a v e ría u m in te rv a lo d e te m p o — im e d ia ta m e n te a n te s d o
in íc io d o m u n d o — “v a z io ” e , a o m e s m o t e m p o , c a r a c t e r i z a d o p e l a s u a r e l a ç ã o
t e m p o r a l c o m u m a c o n t e c i m e n t o — o q u e é im p o s s ív e l.

T e m o s aí u m c h o q u e e n tr e d u a s p ro v a s — o q u e K a n t c h a m o u d e “a n t i ­
n o m i a ” . N ã o m e n c i o n a r e i a q u i as o u t r a s a n t i n o m i a s f o r m u l a d a s p o r K a n t , c o m o as
q u e d iz e m r e s p e i t o a o s lim ite s e s p a c ia is d o u n iv e r s o .

4. O E sp a ço e o T e m p o

Q u e li ç ã o p o d e m o s e x t r a i r d e s s a s a n t i n o m i a s e s p a n t o s a s ? K a n t c h e g o u à c o n ­
c l u s ã o 12 d e q u e n o s s a s id é ia s d e e s p a ç o e t e m p o n ã o p o d e m s e r a p l i c a d a s a o
u n iv e r s o c o m o u m t o d o . P o d e m o s n a t u r a l m e n t e a p l i c á - l a s à s c o is a s e a o s e v e n to s
físic o s o r d i n á r i o s . M a s o e s p a ç o e o t e m p o , e m si m e s m o s , n ã o s ã o c o is a s o u e v e n to s
— s ã o m a is s u t is e n ã o p o d e m s e r o b s e r v a d o s . C o n s t i t u e m u m a e s p é c ie d e m o l d u r a
p a r a a s c o is a s e os e v e n to s — a lg o c o m o u m s is te m a d e e s c a n i n h o s , o u a r q u i v o , ú ti l
p a r a a o b s e r v a ç ã o . O e s p a ç o e o t e m p o n ã o s ã o p a r t e d e n o ss o u n iv e r s o e m p í r i c o d e
c o is a s e a c o n t e c i m e n t o s ; s ã o p a r t e d o n o ss o e q u i p a m e n t o m e n t a l , i n s t r u m e n t o s
p a r a a p e r c e p ç ã o d o m u n d o . S e u u so a p r o p r i a d o , p o r t a n t o , é c o m o i n s t r u m e n t o s
d e o b s e r v a ç ã o : a o o b s e r v a r q u a l q u e r a c o n t e c i m e n t o , v ia d e r e g r a , n ó s o lo c a liz a m o s ,
i m e d i a t a e i n t u i t i v a m e n t e , n o e s p a ç o e n o t e m p o . P o r isso o e s p a ç o e o te m p o
p o d e m s e r d e s c r ito s c o m o u m q u a d r o r e f e r e n c i a l q u e n ã o se b a s e i a n a e x p e r i ê n c i a ,
m a s q u e é u s a d o in tu itiv a m e n te n a e x p e riê n c ia , e q u e p o d e se r a p lic a d o a d e ­
q u a d a m e n t e à e x p e r i ê n c i a . E p o r isso q u e e n c o n t r a m o s d i f i c u l d a d e s se a p li c a m o s
d e m o d o i m p r ó p r i o a s id é ia s d e e s p a ç o e t e m p o , u s a n d o - a s n u m c a m p o q u e t r a n s ­
c e n d e a e x p e r i ê n c i a p o ssív e l - c o m o n o c a s o d a s d u a s p r o v a s s o b r e o u n iv e r s o
c o m o u m to d o .

K a n t d e u à c o n c e p ç ã o q u e d e s c r e v í a c i m a u m a d e n o m i n a ç ã o f e ia e d u ­
p l a m e n t e e q u ív o c a - - “ I d e a l is m o T r a n s c e n d e n t a l . ” O filó s o f o se a r r e p e n d e u lo g o

12 — O p cit., 5 1 8 . “ A D o u t r i n a d o I d e a lis m o T r a n s c e n d e n t a l c o m o C h a v e p a r a a S o lu ç ã o d a D ia lé tic a


C o s m o l ó g i c a .”
C R lT I C A E C O S M O L O G IA D E K A N T 207

d a e s c o l h a , 13 q u e le v a v a a s p e s s o a s a c r e r q u e e le fo s se u m i d e a l i s t a n o s e n t i d o d e
q u e m n e g a a r e a l i d a d e d a s c o is a s fís ic a s , e n t e n d e n d o - a s c o m o s i m p l e s id é i a s . K a n t
se a p r e s s o u a e x p l i c a r q u e t i n h a n e g a d o a p e n a s q u e o esp a ço e o te m p o fo s s e m r e a is
e e m p í r i c o s — n o m e s m o s e n t i d o e m q u e d iz e m o s q u e h á c o is a s e e v e n to s r e a is e
e m p í r i c o s . M a s s e u s p r o t e s to s f o r a m e m v ã o : o e s tilo d if íc i l c o m q u e e s c r e v ia s e lo u
s e u d e s t i n o d e “ p a i d o i d e a l is m o a l e m ã o ” .

A c h o q u e já é t e m p o d e e s c l a r e c e r e sse p o n t o . K a n t s e m p r e i n s i s t i u e m q u e
a s c o is a s f ís ic a s , s i t u a d a s n o e s p a ç o e n o t e m p o , s ã o r e a i s . Q u a n t o à s e s p e ­
c u la ç õ e s m e t a f í s ic a s o b s c u r a s e d e s v a i r a d a s d o s id e a l is ta s a le m ã e s , v a le l e m b r a r q u e
o p r ó p r i o t í t u l o d a C rític a fo i e s c o l h id o p a r a a n u n c i a r u m a t a q u e c r í ti c o c o n t r a a
s u a a r g u m e n t a ç ã o e s p e c u l a ti v a . A C rític a se d i r i g e à r a z ã o p u r a : c r i t i c a e a t a c a
t o d o r a c i o c í n i o a r e s p e ito d o m u n d o q u e é “ p u r o ” , n o s e n t i d o d e n ã o e s t a r a s s o ­
c i a d o à e x p e r i ê n c i a d o s s e n t id o s . K a n t a t a c o u a r a z ã o p u r a d e m o n s t r a n d o q u e o
r a c i o c í n i o p u r o s o b r e o m u n d o le v a i n e v i t a v e l m e n t e a a n t i n o m i a s . E s t i m u l a d o p o r
H u m e , K a n t e s c r e v e u a C rític a p a r a d e m o n s t r a r 14 q u e os li m i te s d a n o s s a e x p e ­
r i ê n c i a s e n s o r ia l t a m b é m s ã o li m i te s p a r a o r a c i o c í n i o a p r o p r i a d o a r e s p e ito d o
m undo.

5. A “R e v o lu ç ã o d e C o p é r n ic o ” d e K a n t

A c r e n ç a d e K a n t n a s u a te o r ia d o e s p a ç o e d o te m p o c o m o u m q u a d r o
r e f e r e n c i a l i n t u i t i v o se c o n f i r m o u q u a n d o o filó s o f o d e s c o b r i u q u e e la p o d i a s o ­
lu c io n a r o u tr o p r o b le m a : a v a lid a d e d a te o r ia n e w to n ia n a , e m c u ja v e ra c id a d e a b ­
s o l u ta e in q u e s t i o n á v e l c r i a , 15 c o m o to d o s os físic o s d a s u a é p o c a . K a n t c o n s i d e r a v a
in c o n c e b ív e l q u e essa t e o r i a , d e p r e c i s a f o r m u l a ç ã o m a t e m á t i c a , r e s u lta s s e s i m p l e s ­
m e n t e d e o b s e r v a ç õ e s a c u m u l a d a s . M a s , q u e o u t r a c o is a p o d e r í a f u n d a m e n t á - l a ?
K a n t a b o r d o u o p r o b l e m a , e x a m i n a n d q e m p r i m e i r o l u g a r o s ta tu s d a g e o m e t r i a .
O b s e r v o u q u e a g e o m e t r i a e u c l i d i a n a n ã o se b a s e i a e m o b s e r v a ç õ e s , m a s n a n o s s a
i n t u i ç ã o d a s r e l a ç õ e s e s p a c i a is . A p o s iç ã o d a c iê n c ia n e w t o n i a n a é s e m e l h a n t e : e m ­
b o ra c o n f ir m a d a p o r o b se rv a ç õ e s, n ã o re s u lta d essas o b se rv a ç õ e s, m a s d o n o sso m o d o
d e p e n s a r , d a s t e n t a t i v a s q u e fa z e m o s p a r a o r g a n i z a r os d a d o s s e n s o r ia i s , c o m ­
p r e e n d ê - lo s e a s s im ilá - lo s i n t e l e c t u a l m e n t e . E o n o s s o p r ó p r i o in t e l e c t o , a o r g a

13 - P rolegom ena (1 7 8 3 ) , A p ê n d ic e : “ E s p é c im e d e um ju lg a m e n to so b re a C rític a , A n­


t e c i p a n d o s e u E x a m e " V id e t a m b é m a Crítica, 2 . a e d . ( 1 7 8 7 ; a p r i m e i r a e d i ç ã o fo i p u b l i c a d a e m
1 7 8 1 ), p á g s . 2 7 4 -9 , “ A R e f u t a ç ã o d o I d e a l i s m o ” , e a ú l t i m a n o t a a o P r e f á c i o d e Crítica da R azão
Prática.
14 — V id e a c a r t a d e K a n t a M . H e r z , d e 21 d e f e v e r e ir o d e 1 7 7 2 , n a q u a l r e f e r e o t í t u l o t e n t a t i v o d o
q u e s e r ia a p r i m e i r a Crítica·. “ L im ite s d a E x p e r i ê n c i a S e n s o r ia l e d a R a z ã o " . V id e t a m b é m a Crítica da
R azão Pura ( 2 . a e d iç ã o ) , p á g . 7 3 8 ( a ê n f a s e é m i n h a ) : "N ão há necessidade de u m a crítica da razão n o
q u e d iz r e s p e it o a o s e u u s o e m p í r i c o ; d e f a t o , s e u s p r i n c í p i o s s ã o s u b m e t i d o s c o n t i n u a m e n t e a o te s te d a
e x p e r i ê n c i a . D a m e s m a f o r m a , e ss a c r ít i c a n ã o é n e c e s s á r ia n o c a m p o d a m a t e m á t i c a , c u ja s c o n c e p ç õ e s
d e v e m s e r f o r m u l a d a s d e m o d o im e d i a t o e i n t u i t i v o (n o q u e r e s p e i t a o e s p a ç o e o t e m p o ) . . . T o d a v i a ,
n u m c a m p o e m q u e a r a z ã o é f o r ç a d a p e la e x p e r i ê n c i a s e n s o r ia l o u p e la i n t u i ç ã o p u r a a s e g u ir u m
c a m i n h o v isív el - q u e r d iz e r , n o c a m p o d a s u a u t i liz a ç ã o t r a n s c e n d e n t a l — . .. é m u ito necessário dis­
ciplinada, d e m odo a m oderar sua tendência para ultrapassar os lim ites estreitos da experiência pos­
sível.
15 — V id e , p o r e x e m p lo , o s F undam entos M etafísicos da Ciência N atural, d e K a n t , o b r a d e 1 7 8 6 q u e
c o n t é m u m a d e m o n s t r a ç ã o a priori d a m e c â n i c a n e w t o n i a n a . V id e t a m b é m a p a r t e f i n a l d o p e n ú l t i m o
c a p í t u l o d a Critica da Razão Prática. E m o u t r a o p o r t u n i d a d e ( c a p . 2 d e s te v o l u m e ) p r o c u r e i d e m o n s ­
t r a r q u e a l g u m a s d a s m a i o r e s d i f i c u l d a d e s q u e e n c o n t r a m o s e m K a n t s ã o d e v id a s à p r e m is s a t á c i t a d e
q u e a c i ê n c i a n e w t o n i a n a é v e r d a d e i r a ( is to é , é episteme)·, c o m a p e r c e p ç ã o d e q u e n ã o é a s s im , d e ­
s a p a r e c e u m d o s p r o b l e m a s m a is f u n d a m e n t a i s d a Crítica. V id e t a m b é m o c a p . 8 d e s te liv r o .
208 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

n iz a ç ã o d o n o s s o “ s i s te m a d ig e s tiv o " m e n t a l q u e é r e s p o n s á v e l p e la s te o r ia s q u e
e n u n c i a m o s — n ã o os d a d o s s e n s o r ia is d e q u e d is p o m o s . A n a t u r e z a c o n f o r m e a
c o n h e c e m o s , c o m s u a o r d e m e s u a s le is , é p o r t a n t o e m l a r g a m e d i d a o r e s u l t a d o
d a s a t i v i d a d e s d e a s s im i la ç ã o e d e o r d e n a ç ã o d a n o s s a m e n t e . N a f o r m a m a r c a n t e
c o m o o p r ó p r i o K a n t e n u n c i o u e s te p o n t o d e v is ta 16 “N o s s o i n t e l e c t o n ã o d e r i v a
s u a s le is d a n a t u r e z a , m a s im p õ e le is à n a t u r e z a ” .

E ssa f ó r m u l a s i n te t iz a u m a id é i a q u e K a n t b a t i z o u , c o m o r g u l h o , d e s u a
“ r e v o l u ç ã o d e C o p é r n i c o ” . N a c o n c e p ç ã o d e K a n t , C o p é r n i c o , 17 a o p e r c e b e r q u e
a t e o r i a d o s c é u s e m m o v i m e n t o n ã o le v a v a a n e n h u m p r o g r e s s o , r e s o lv e u o im p a s s e
v i r a n d o a m e s a , p o r a s s im d iz e r : a d m i t i u q u e n ã o e r a m o s c é u s q u e g ir a v a m e m t o r n o
d o o b s e r v a d o r im ó v e l, m a s q u e , a o c o n t r á r i o , o o b s e r v a d o r se d e s l o c a v a , e n q u a n t o
o c é u p e r m a n e c i a fix o . D a m e s m a f o r m a , d iz K a n t , d e v e s e r r e s o lv id o o p r o b l e m a
d o c o n h e c i m e n t o c ie n t íf ic o — c o m o é p o ss ív e l h a v e r u m a t e o r i a v e r d a d e i r a , c o m o a
n e w to n ia n a , e c o m o p o d e m o s c h e g a r a c o n h e c ê -la . D ev em o s re je ita r a n o ç ã o d e
q u e so m o s, m e r o s o b s e r v a d o r e s p a s s iv o s , à e s p e r a d e q u e a n a t u r e z a n o s e x ib a s u a
r e g u l a r i d a d e . P r e c i s a m o s a d o t a r a c o n c e p ç ã o d e q u e a o a s s im i la r os d a d o s s e n ­
s o r ia is d e f a t o i m p o m o s a e le s a o r d e m e a s le is d o i n t e l e c t o . O c o s m o s tr a z a m a r c a
d a n o ssa m e n te .

•Ao a c e n t u a r a f u n ç ã o d o o b s e r v a d o r , d o in v e s ti g a d o r , d o f o r m u l a d o r d e t e o ­
r i a s , K a n t d e i x o u u m a f o r t e im p r e s s ã o n ã o só n a f ilo s o f ia , m a s , t a m b é m , n a fís ic a
e n a c o s m o lo g i a . H á u m “c l i m a " d e r e f le x ã o , o r i g i n a d o e m K a n t , f o r a d o q u a l as
t e o r ia s d e E in s t e in e d e B o h r n ã o s ã o c o n c e b ív e is ; n e s te s e n t i d o , p o d e - s e d iz e r q u e
E d d i n g t o n é m a i s k a n t i a n o , s o b c e r t o s a s p e c to s , d o q u e o p r ó p r i o K a n t . M e s m o os
q u e (c o m o e u ) n ã o a c e i t a m to d a s a s id é ia s d e K a n t a c a t a m s e u p o n t o d e v is ta d e
q u e o e x p e r im e n ta d o r n ã o d e v e a g u a r d a r q u e a n a tu r e z a d e c id a re v e la r seu s s e ­
g r e d o s — é p r e c is o q u e s t i o n á - l a , 18 p r o p o r - l h e in d a g a ç õ e s à lu z d a s n o s s a s d ú v id a s ,
c o n j e c t u r a s , t e o r i a s , id é i a s e i n s p ir a ç õ e s . E is a í, n a m i n h a o p i n i ã o , u m a m a r a v i ­
lh o s a d e s c o b e r t a f ilo s ó f ic a , q u e t o r n a p o ss ív e l v e r a c iê n c ia — t e ó r i c a o u e x p e ­
r i m e n t a l — c o m o u m a c r i a ç ã o h u m a n a ; v e r a h i s t ó r i a d a c iê n c ia c o m o p a r t e d a
h i s t ó r i a d a s id é i a s , n o m e s m o n ív e l d a h i s t ó r i a d a a r t e e d a l i t e r a t u r a .

A v e rs ã o k a n t i a n a d a “ r e v o l u ç ã o d e C o p é r n i c o ” te m u m s e g u n d o s e n t id o ,
a i n d a m a is i n t e r e s s a n t e — s e n t id o q u e ta lv e z i n d i q u e u m a a m b i v a l ê n c i a n a a t i t u d e
d e K a n t . C o m e f e i to , a “r e v o l u ç ã o d e C o p é r n i c o " f e i ta p o r K a n t s o l u c io n a u m
p r o b l e m a h u m a n o o r i g i n a d o n a r e v o l u ç ã o d e C o p é r n i c o , p e lo a f a s t a m e n t o d o
h o m e m d a p o s i ç ã o c e n t r a l q u e o c u p a v a n o u n iv e r s o fís ic o . K a n t m o s t r a n ã o só q u e
n o s s a p o s iç ã o n o u n iv e r s o fís ic o é i r r e l e v a n t e , m a s , t a m b é m , q u e , n u m c e r t o s e n ­
ti d o , p o d e - s e c o n t i n u a r d iz e n d o q u e o u n iv e r s o g i r a à n o s s a v o lt a — d e f a t o , s o m o s
n ó s q u e c r i a m o s , p e lo m e n o s e m p a r t e , a o r d e m n e le e n c o n t r a d a ; n ó s p r ó p r i o s
p r o d u z i m o s o c o n h e c i m e n t o q u e te m o s d o u n iv e r s o . S o m o s d e s c o b r i d o r e s — e a a r ­
te d a d e s c o b e r t a é u m a t o d e c r i a ç ã o .

16 — V id e P rolegom ena, f im d a s e ç ã o 3 7 . A n o t a d e K a n t r e l a t i v a a C r u s iu s é i n t e r e s s a n t e , p o r q u e
s u g e r e q u e o filó s o fo s u s p e ita v a a a n a l o g i a e n t r e o q u e c h a m a v a d e s u a " r e v o l u ç ã o d e C o p é r n i c o " e o
p r i n c í p i o é tic o d a a u t o n o m i a q u e h a v ia e n u n c i a d o .

17 — M e u te x t o é u m a t r a d u ç ã o liv re d a Crítica da R azão Pura.

18 — Opus cit., p á g . x ii, e m p a r t i c u l a r a p a s s a g e m : " O s f ís ic o s ... p e r c e b e r a m q u e . . . e r a p r e c is o o b r i g a r


a n a t u r e z a a r e s p o n d e r a s u a s p e r g u n t a s , e m v ez d e se d e i x a r e m a m a r r a r a o s e u a v e n t a l " .
C R IT IC A E C O SM O LO G IA D E K A N T 209

6. A doutrina da autonomia
P a s s a r e i a g o r a d o K a n t c o s m ó lo g o , filó s o f o d o c o n h e c i m e n t o e d a c iê n c ia
p a r a o K a n t m o r a l i s t a . N ã o sei se j á se p e r c e b e u q u e a id é i a f u n d a m e n t a l d a é tic a
k a n t i a n a c o r r e s p o n d e a o u t r a “ r e v o l u ç ã o d e C o p é r n i c o ” a n á l o g a à q u e d e s c r e v í:
K a n t vê o h o m e m c o m o a f o n t e d a m o r a l i d a d e , d a m e s m a f o r m a c o m o o c o n s i d e r a
a f o n t e d a le i n a t u r a l . R e s t i t u i - l h e , a s s im , a p o s i ç ã o c e n t r a l t a n t o n o u n iv e r s o
m o r a l c o m o n o fís ic o . C o m e f e i to , K a n t h u m a n i z a a é ti c a , c o m o h u m a n i z a a c i ê n ­
c ia .

A r e v o l u ç ã o p r o m o v i d a p o r K a n t n o c a m p o d a é t i c a 19 e s tá c o n t i d a n a
d o u tr in a d a a u to n o m ia — o p rin c íp io d e q u e n ã o p o d e m o s a c e ita r a o rd e m d e u m a
a u t o r i d a d e , p o r m a is e le v a d a q u e s e ja , c o m o b a s e ú l t i m a d a é t i c a . S e m p r e q u e
d e f r o n t a m o s u m a o r d e m , é no ssa r e s p o n s a b i l i d a d e j u l g a r se e l a é m o r a l o u n ã o . A
a u t o r i d a d e ta lv e z t e n h a o p o d e r d e n o s o b r i g a r a o c u m p r i m e n t o d o q u e o r d e n a ;
p o d e m o s n ã o t e r c o n d iç õ e s d e re s is ti- la . C o n t u d o , a n ã o s e r q u e s e ja m o s im p e d id o s
f i s ic a m e n te d e f a z e r u m a e s c o l h a , a r e s p o n s a b i l i d a d e s e r á n o s s a . A d e c is ã o d e
o b e d e c e r a u m a o r d e m , d e a c e i t a r u m a a u t o r i d a d e , é u m a d e c is ã o q u e n o s p e r t e n ­
ce.

K a n t leva su a re v o lu ç ã o ao c a m p o d a re lig iã o . V e ja m o s essa p a ssa g e m


n o t á v e l : 20

“ P o r m a is q u e m i n h a s p a l a v r a s te e s p a n t e m , n ã o d e v e s c o n d e n a r - m e p o r
d iz e r q u e c a d a h o m e m c r i a o s e u D e u s . D o p o n t o d e v is ta m o r a l ... é p re c iso c r i a r
D e u s p a r a p o d e r a d o r á - l o c o m o n o ss o c r i a d o r . Q u a l q u e r q u e s e ja a f o r m a . . . e m
q u e to m e m o s c o n h e c im e n to d a d iv in d a d e ; m e s m o ... se D e u s se revela sse d ir e ta ­
m e n te a n ó s . . . p r e c i s a r í a m o s d e c i d i r se n o s é p e r m i t i d o ( p e l a n o s s a c o n s c i ê n c ia )
c r e r n e le , e a d o r á - l o ” .

A teo ria ética d e K a n t n ã o se lim ita à a f i r m a t i v a d e q u e a c o n s c i ê n c ia d o


h o m e m r e p r e s e n t a s u a a u t o r i d a d e m o r a l . P r o c u r a d iz e r - n o s t a m b é m o q u e n o s s a
c o n s c i ê n c ia p o d e e x ig i r d e n ó s . S o b r e e s te p o n t o — a le i m o r a l — , o filó s o fo
a p r e s e n t a v á r i a s f o r m u la ç õ e s . P o r e x e m p l o : 2123 “ É p r e c is o c o n s i d e r a r s e m p r e c a d a
h o m e m c o m o u m f im e m si m e s m o , n u n c a o u t i l i z a n d o a p e n a s c o m o u m m e i o p a r a
os n o ss o s f i n s . ” O e s p í r it o d a é t i c a d e K a n t p o d e r í a s e r s u m a r i z a d o c o m e ssa s
p a l a v r a s : te r α c o r a g e m d e se r liv re e re sp e ita r a lib e r d a d e d o s o u tro s.

C o m b a s e n e s s a é ti c a , K a n t e l a b o r o u s u a t e o r i a d o E s t a d o , 22 d e g r a n d e i m ­
p o r t â n c i a , e d o d i r e i t o i n t e r n a c i o n a l — p r o p ô s u m a li g a d e n a ç õ e s 23 o u f e d e r a ç ã o
q u e c o n d u z ir ía à p r o c la m a ç ã o e à m a n u te n ç ã o d a p a z e te r n a so b re a te r r a .

19 — V id e G ru n d leg u n g zu r M et. d. Sitten, 2 . a e d i ç ã o ( W W C , p á g . 2 9 1 ): “ A A u t o n o m i a d a V o n t a d e


c o m o o P r i n c í p i o M a is E le v a d o d a M o r a l ": e t a m b é m a 3 , a s e ç ã o ( W W C , p a g . 3 0 5 ).

2 0 — T e x t o b a s e a d o e m t r a d u ç ã o liv re d e p a s s a g e m c o n t i d a e m n o t a d o C a p í t u l o Q u a r t o , P a r t e I I , § 1
d e A R eligião D entro dos L im ites da R azão Pura ( W W C , vi, p â g . 3 1 8 ).

21 — G rundlegung. 2 . a s e ç ã o ( W W C , iv, p á g . 2 8 7 ).

2 2 — K a n t p r o p ô s v á r ia s f o r m u la ç õ e s l e v a n d o a o p r i n c í p i o d e q u e a f i n a l i d a d e d o E s ta d o j u s t o é f ix a r
a q u e l e s l i m i t f t p a r a a l i b e r d a d e d o s c i d a d ã o s q u e s ã o in e v itá v e is a f im d e q u e a liberdade de cada u m
possa coexistir com a liberdade de todos ( p . e x .: Crítica da R azão P ura. 2 . a e d iç ã o , p á g . 3 7 3 ).
2 3 — Sobre a Paz E terna ( 1 7 9 5 ).
210 C O X IFO TU RA S K R E FU T A Ç Õ E S

P r o c u r e i e s b o ç a r a filo s o f ia d e K a n t s o b r e o h o m e m e o m u n d o , m e n c i o n a n d o
s u a s f o n t e s p r i n c i p a i s d e i n s p i r a ç ã o : a c o s m o lo g ia n e w t o n i a n a e a é t i c a d a l i b e r ­
d a d e — a s d u a s in s p ir a ç õ e s a q u e o filó s o fo se r e f e r i a , a o f a l a r 24 d o c é u e s t r e la d o
s o b r e n o s s a s c a b e ç a s e d a le i m o r a l d e n t r o d e n ó s .

A s s u m in d o u m p o n t o d e v is ta m a is a b r a n g e n t e , p a r a a v a l i a r o p a p e l h i s ­
tó r ic o d e K a n t , p o d e m o s c o m p a r á - l o c o m S ó c r a te s . A m b o s f o r a m a c u s a d o s d e
s u b v e r t e r a r e l ig i ã o o f i c ia l e d e c o r r o m p e r o e s p í r it o d o s jo v e n s . O s d o is c o n t e s ­
t a r a m e ss a a c u s a ç ã o , d e f e n d e n d o a l i b e r d a d e d e p e n s a m e n t o . P a r a e le s l i b e r d a d e
s i g n if i c a v a a lg o m a is d o q u e a s im p le s a u s ê n c i a d e c o a ç ã o — e r a u m m o d o d e v iv e r.

D a a p o lo g i a d e S ó c r a te s e d a s u a m o r t e s u r g i u u m a n o v a c o n c e p ç ã o d o
h o m e m liv re — a id é i a d o h o m e m c u jo e s p í r it o n ã o p o d e s e r s u b j u g a d o q u e é liv re
p o r q u e é a u t o - s u f i c i e n t e ; q u e n ã o s e n te n e c e s s id a d e d e im p o s iç õ e s p o r q u e é c a p a z
d e d i r i g i r a si m e s m o , e d e a c e i t a r e m p l e n a l i b e r d a d e o i m p é r i o d a L e i.

A e ss a id é i a s o c r á t i c a d a a u t o - s u f i c i ê n c i a , q u e é p a r t e d a n o s s a h e r a n ç a
o c id e n ta l, K a n t a c re s c e n to u u m n o v o s e n tid o n o c a m p o d o c o n h e c im e n to e d a
m o r a l . E c o n t r i b u i u t a m b é m p a r a d e s e n v o lv e r a n o ç ã o d a c o m u n i d a d e d e h o m e n s
liv re s d e t o d a a h u m a n i d a d e . D e m o n s t r o u q u e to d o s os h o m e n s s ã o liv re s — n ã o
p o r q u e n a s c e m liv re s , m a s p o r q u e n a s c e m c o m o ô n u s d a r e s p o n s a b i l i d a d e p e la
liv re e s c o l h a .

24 N a " C o n c l u s ã o " d a Crítica da Razão Prática v id e e s p e c ia lm e n t e a p a r t e f in a l d o p e n ú l t i m o p a -


r á g r a f o , q u e j á m e n c io n e i.
8. O S t a t u s da Ciência e da Metafísica*

1. K a n t e a L ó g ic a d a E x p e r iê n c ia

N ã o p r e t e n d o f a l a r n e s t a p a l e s t r a s o b r e a e x p e r i ê n c i a o r d i n á r i a d e to d o s os
d ia s ; e s t o u e m p r e g a n d o a p a l a v r a “ e x p e r i ê n c i a ” n o s e n t i d o e m q u e d iz e m o s q u e a
c iê n c ia se b a s e i a n a e x p e r i ê n c i a . C o n t u d o , c o m o a e x p e r i ê n c i a , d o p o n t o d e vista
c ie n t íf ic o , n ã o p a s s a d e u m a e x te n s ã o d a n o s s a e x p e r i ê n c i a o r d i n á r i a , o q u e te n h o
a d iz e r se a p l i c a , e m l a r g a m e d i d a , a e s t a ú l t i m a .

P a r a n ã o m e p e r d e r e m a b s t r a ç õ e s , v o u e x a m i n a r o s ta tu s ló g ic o d e u m a
c iê n c ia e m p í r i c a e s p e c íf ic a — a d i n â m i c a d e N e w t o n . M e u s c o m e n t á r i o s n ã o
e x ig ir ã o n e n h u m c o n h e c i m e n t o p r é v io d e f ís ic a .

U m a d a s c o is a s q u e o s filó s o fo s f a z e m , q u e c o n s t it u i u m a d a s s u a s m a i o r e s
r e a l iz a ç õ e s , é p e r c e b e r u m e n ig m a , u m p r o b le m a , o u p a r a d o x o , q u e a t é e n t ã o n i n ­
g u é m t i n h a n o t a d o . E u m a r e a l iz a ç ã o m a i s i m p o r t a n t e d o q u e a r e s o lu ç ã o d o e n i g ­
m a . O filó s o f o q u e vê p e la p r i m e i r a vez u m p r o b l e m a e o c o m p r e e n d e p e r t u r b a
n o ss a p r e g u i ç a e c o m p l a c ê n c i a , f a z e n d o o q u e H u m e fe z p o r K a n t : d e s p e r ta - n o s d o
n o ss o “s o n o d o g m á t i c o ” , a b r i n d o - n o s n o v o s h o r i z o n t e s .

O p r i m e i r o filó s o f o a p e r c e b e r c l a r a m e n t e o e n ig m a d a c iê n c ia n a tu r a l fo i
K a n t . N ã o c o n h e ç o n e n h u m o u t r o filó s o fo q u e , a n t e s o u d e p o is d e le , se t e n h a i n ­
te r e s s a d o t a n t o p o r esse p r o b l e m a .

Q u a n d o K a n t f a l a v a e m “c i ê n c i a n a t u r a l ” , q u a s e in v a r i a v e l m e n t e se r e f e r ia
à m e c â n i c a c e le s tia l d e N e w to n . E le p r ó p r i o t i n h a d a d o i m p o r t a n t e s c o n t r i b u i ç õ e s
à fís ic a n e w t o n i a n a e e r a u m d o s m a i o r e s c o s m ó lo g o s d a s u a é p o c a . S u a s d u a s o b r a s
c o s m o ló g ic a s m a i s i m p o r t a n t e s s ã o : H istó r ia N a t u r a l e T e o ria d o s C éu s (1 7 5 5 ) e
F u n d a m e n to s M e ta físic o s d a C iên c ia N a t u r a l (1 7 8 6 ),. D e a c o r d o c o m as p a l a v r a s d o
p r ó p r i o filó s o f o , os d o is te m a s f o r a m t r a t a d o s p o r e le “e m c o n f o r m i d a d e c o m os
p r i n c íp i o s d e N e w t o n ” . *1

* D u a s p a l e s t r a s r a d i o f ô n i c a s e s c r it a s p a r a a R á d i o U n i v e r s i d a d e L iv r e d e B e r lim . T e x t o p u b l i c a d o p e la
p r i m e i r a v e z e m R a tio , 1, 1 9 5 8 , p á g s . 9 7 -1 1 5 .

1 - T a m b é m d e g r a n d e i m p o r t â n c i a é a M onadologia Física, d e 1 7 5 6 , e s c r it o e m l a t i m , e m q u e K a n t
a n t e c i p o u a i d é i a p r i n c i p a l d e B o sc o v ic . C o n t u d o , n a s u a o b r a d e 1 7 8 6 o f iló s o fo r e p u d i o u a t e o r i a d a
m a t é r i a p r o p o s t a n a M onadologia.
212 CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

C o m o q u a s e to d o s os se u s c o n t e m p o r â n e o s b e m i n f o r m a d o s n e s s e c a m p o ,
K a n t a c r e d i t a v a n a v e ra c id a d e d a m e c â n i c a c e le s ti a l d e N e w t o n . A c r e n ç a q u a s e
u n iv e r s a l d e q u e a te o r i a d e N e w t o n e r a v e r d a d e ir a e r a c o m p r e e n s í v e l e p a r e c i a
m u i t o b e m f u n d a d a . N u n c a se t i n h a v is to u m a t e o r i a m e l h o r o u t e s t a d a c o m m a is
r i g o r ; e la n ã o só p e r m i t i a p r e v e r e x a t a m e n t e a ó r b i t a d e to d o s os p l a n e t a s — i n ­
c lu s iv e se u s d e s v io s d a s e lip s e s d e K e p le r — m a s t a m b é m a ó r b i t a d e to d o s os s a ­
té lite s . A lé m d is s o , s e u s p r i n c íp i o s g e r a i s , p o u c o s e s im p le s , c o n s t i t u í a m , a o m e s m o
t e m p o , u m a m e c â n i c a c e le s te e u m a m e c â n i c a te r r e s t r e .

A te o r i a d e N e w t o n e r a v is ta c o m o u m “s i s te m a d o m u n d o ” u n i v e r s a l m e n t e
v á lid o , q u e d e s c r e v ia as le is d o m o v i m e n t o c ó s m ic o d o m o d o m a i s s im p le s e m a is
c la r o , c o m p r e c i s ã o a b s o l u t a . Esses p r i n c í p i o s e r a m t ã o s im p le s e p re c is o s q u a n t o os
d a g e o m e t r i a - a r e a l iz a ç ã o s u p r e m a d e E u c li d e s , m o d e l o in s u p e r á v e l d e to d a s as
c iê n c ia s . C o m e f e i to , N e w t o n t i n h a p r o p o s t o u m a e s p é c ie d e g e o m e t r i a c ó s m ic a :
E u c lid e s s u p l e m e n t a d o p o r u m a t e o r i a ( q u e t a m b é m p o d i a s e r r e p r e s e n t a d a
g e o m e t r i c a m e n t e ) d o m o v i m e n t o d e p o n to s d e m a s s a , s o b a i n f l u ê n c i a d e f o r ç a s .
A lé m d o c o n c e i to d e t e m p o , e le a c r e s c e n t a r a à g e o m e t r i a e u c l i d i a n a s o m e n te d o is
c o n c e ito s e s s e n c ia l m e n te n o v o s : o c o n c e i t o d e m a s s a , o u d e p o n t o d e m a s s a m a ­
t e r i a l e a n o ç ã o d e fo r ç a c o m u m a d i r e ç ã o , a i n d a m a is i m p o r t a n t e : vis e m l a t i m ,
d y n a m is e m g r e g o — d e o n d e o n o m e “d i n â m i c a ” a p l i c a d o à t e o r i a d e N e w t o n .

T í n h a m o s e n t ã o u m a c iê n c ia d o c o s m o s , d a n a t u r e z a , q u e se b a s e a v a
a l e g a d a m e n t e n a e x p e r i ê n c i a . U m a c iê n c ia d e d u t i v a , c o m o a g e o m e t r i a . C o n t u d o ,
o p r ó p r i o N e w to n a f i r m a v a q u e t i n h a c h e g a d o a s e u s p r i n c í p i o s f u n c i o n a i s p o r
m e io d a in d u ç ã o , a p a r t i r d a e x p e r i ê n c i a . E m o u t r a s p a l a v r a s , a s s e v e ra v a q u e a
v e r d a d e d a s u a te o r i a p o d i a s e r d e r i v a d a lo g i c a m e n t e d a v e r d a d e d e c e r t a s a fir ­
m a tiv a s ba sea d a s n a o b se rva ç ã o . E m b o r a n ã o d e s c re v e s s e e ssa s a f i r m a t i v a s p r e ­
c i s a m e n t e , e s tá c la r o q u e se r e f e r i a à s le is d e K e p le r s o b r e o m o v i m e n t o e lí ti c o d o s
p l a n e t a s . A i n d a h o je p o d e m o s e n c o n t r a r físic o s e m i n e n t e s q u e s u s t e n t a m q u e as le is
d e K e p le r p o d e m s e r d e r i v a d a s i n d u t i v a m e n t e d a o b s e r v a ç ã o , e q u e os p r i n c íp i o s d e
N e w to n , p o r s u a vez, p o d e m se r d e riv a d o s , in te ir a m e n te o u q u a s e in te ir a m e n te ,
d a s leis d e K e p le r .

U m a d a s m a i o r e s r e a liz a ç õ e s d e K a n t fo i t e r r e c o n h e c i d o q u e e ss a c o n c e p ç ã o
c o n t i n h a u m p a r a d o x o ( H u m e o d e s p e r t o u p a r a is s o ). K a n t v iu , m a i s c l a r a m e n t e
d o q u e q u a l q u e r o u t r a p e s s o a a n t e s o u d e p o is d e le , c o m o s e r ia a b s u r d o p r e s u m i r
q u e a t e o r i a d e N e w to n p u d e s s e s e r d e r i v a d a d a o b s e r v a ç ã o . C o m o e s ta i m p o r t a n t e
id é i a d e K a n t e s tá c a i n d o n o e s q u e c i m e n t o , e m p a r t e d e v id o à s c o n t r i b u i ç õ e s d o
p r ó p r i o filó s o fo p a r a a s o lu ç ã o d o p r o b l e m a q u e d e s c o b r i u , v o u a p r e s e n t á - l a a q u i e
e x a m in á -la em d e ta lh e .

C ritic a r e i a a f ir m a tiv a d e q u e a te o r ia d e N e w to n fo i d e r iv a d a d a o b s e r ­
v a ç ã o c o m tr ê s a r g u m e n t o s :

E m p r i m e i r o l u g a r , e ss a a f i r m a t i v a n ã o é c rív e l i n t u i t i v a m e n t e , se c o m p a ­
r a m o s o c a r á t e r d a t e o r i a c o m o d a s p r o p o s iç õ e s b a s e a d a s n a o b s e r v a ç ã o q u e se
p r e s u m e tê - la o r i g i n a d o .

E m s e g u n d o l u g a r , e la é h i s t o r i c a m e n t e f a l s a .

F i n a l m e n t e , é lo g i c a m e n t e fa ls a — é im p o s s ív e l.
O STATUS D A C IÊ N C IA E DA M E T A FÍSIC A 213

E x a m i n e m o s o p r i m e i r o p o n t o — n ã o se p o d e a c r e d i t a r , i n t u i t i v a m e n t e , q u e
a m e c â n i c a d e N e w t o n se b a s e i a n a o b s e r v a ç ã o .

B a s t a r á l e m b r a r c o m o a t e o r i a n e w t o n i a n a d if e r e c o m p l e t a m e n t e d e q u a l ­
q u e r a f ir m a tiv a b a s e a d a n a o b s e rv a ç ã o . P a r a c o m e ç a r, as o b se rv a ç õ e s sã o se m p re
i n e x a t a s , e n q u a n t o a t e o r i a f o r m u l a a s s e rtiv a s a b s o l u t a m e n t e e x a t a s . A l é m d is s o ,
u m a d a s g ló r ia s d a t e o r i a d e N e w t o n f o i o f a t o d e q u e e la r e s is t iu a o b s e r v a ç õ e s
s u b s e q i i e n t e s , m a i s p r e c is a s d o q u e s e r i a p o s s ív e l n a é p o c a e m q u e fo i f o r m u l a d a .
O r a , é in c r ív e l q u e se p u d e s s e t e r c h e g a d o lo g i c a m e n t e , a p a r t i r d a o b s e r v a ç ã o , a
p r o p o s iç õ e s m a i s p r e c is a s d o q u e os f a t o s o b s e r v a d o s .2 M e s m o se n ã o le v á s s e m o s e m
c o n t a e sse a s p e c t o d a p r e c i s ã o , p r e c i s a r í a m o s c o n s i d e r a r q u e u m a o b s e r v a ç ã o é
f e i t a s e m p r e e m c o n d iç õ e s m u i t o e s p e c ia is — c a d a s i t u a ç ã o o b s e r v a d a é s e m p r e
m u i t o e s p e c í f i c a . M a s a te o r ia p r e t e n d e s e r a p li c á v e l e m to d a s a s c i r c u n s t â n c i a s
p o s s ív e is — n ã o a p e n a s a o p l a n e t a M a r t e o u a J ú p i t e r , o u a o s s a t é li te s d o n o s s o s is ­
t e m a s o l a r , m a s a to d o s o s m o v i m e n t o s p l a n e t á r i o s e a to d o s os s is te m a s s o l a r e s . N a
v e r d a d e , s u a p r e t e n s ã o é m a i o r a i n d a . P o r e x e m p l o : a te o r i a fa z a f i r m a t i v a s a r e s ­
p e it o d a p r e s s ã o g r a v i t a c i o n a l d e n t r o d a s e s t r e la s , a s s e rç õ e s q u e a t é h o je n ã o p u ­
d e ra m se r te s ta d a s p e la o b s e rv a ç ã o . C a b e n o ta r ta m b é m q u e as o b se rv a ç õ e s são
s e m p r e concretas-, as te o r ia s , a b stra ta s. A s s im , n u n c a p o d e m o s o b s e r v a r p o n t o s d e ,
m a s s a , m a s s im p l a n e t a s . P o d e s e r q u e isso n ã o t e n h a m u i t a i m p o r t â n c i a ; m a s o
q u e é d a m a i o r i m p o r t â n c i a é o f a t o d e q u e n u n c a p o d e m o s o b s e r v a r a lg o c o m o as
fo r ç a s n e w t o n i a n a s . C o m o as fo r ç a s p o d e m s e r d e f i n i d a s d e m o d o a s e r e m m e d i d a s
p e la a c e l e r a ç ã o , p o d e m o s i n d i r e t a m e n t e m e d ir u m a f o r ç a ; à s vezes p o d e m o s fa z ê - lo
sem m e d ir a a c e le ra ç ã o — p o r e x e m p lo , c o m a a ju d a d e u m a b a la n ç a d e m o la s.
C o n tu d o , to d a s essas m e d id a s , s e m e x c e ç ã o , p r e s s u p õ e m s e m p r e a v e r d a d e da
d in â m ic a n e w to n ia n a . S e m a p r e m is s a d e u m a t e o r i a d i n â m i c a s i m p l e s m e n t e n ã o é
p o ssív e l m e d i r f o r ç a s . M a s as f o r ç a s e a s m u d a n ç a s d e fo r ç a s e s tã o e n t r e a s c o isa s
m a is i m p o r t a n t e s c o n s i d e r a d a s p e l a t e o r i a . P o d e m o s a f i r m a r , p o r t a n t o , q u e p e lo
m e n o s u m a p a r t e d o s o b je t o s t r a t a d o s p e l a t e o r i a s ã o a b s t r a t o s e n ã o o b s e r v á v e is .
P o r to d o s esses m o tiv o s , a i n t u i ç ã o n ã o n o s p e r m i t e a c e i t a r q u e a te o r i a p u d e s s e s e r
d e r i v a d a lo g i c a m e n t e d a o b s e r v a ç ã o .

E s te r e s u l t a d o n ã o s e r i a a f e t a d o p o r u m a h i p o t é t i c a r e f o r m u l a ç ã o d a te o r ia
n e w t o n i a n a , d e m o d o a e v i t a r q u a l q u e r r e f e r ê n c i a a fo r ç a s — se isso fo s se p o s s ív e l.
C o m o t a m b é m n ã o se a l t e r a r i a se e s tiv é s s e m o s d is p o s to s a a f a s t a r o c o n c e i to d e f o r ­
ça c o m o p u r a f ic ç ã o —- u m a c o n s t r u ç ã o e x c lu s iv a m e n te t e ó r i c a q u e n o s se rv isse
c o m o i n s t r u m e n t o . D e f a t o , a te s e q u e e s t a m o s q u e s t i o n a n d o a f i r m a q u e a t e o r i a d e
N e w to n p o d e s e r v e r i f ic a d a p e l a o b s e r v a ç ã o — e iio ssa o b je ç ã o fo i a d e q u e só
p o d e m o s o b s e r v a r o b je to s c o n c re to s, e n q u a n t o a t e ó r i a e , e m e s p e c ia l, a s f o r ç a s q u e
p o s t u la s ã o a b str a ta s. E ssa s d if ic u l d a d e s n ã o se r e d u z i r ã o se t o r n a r m o s a t e o r i a a i n ­
d a m a i s a b s t r a t a , e l i m i n a n d o a n o ç ã o d e f o r ç a o u c o n c e b e n d o - a c o m o s im p le s
c o n s tru ç ã o a u x ilia r .

M e u s e g u n d o a r g u m e n t o é o d e q u e é h i s t o r i c a m e n t e fa ls o q u e a t e o r i a d e
N e w to n t e n h a s id o d e r i v a d a d a o b s e r v a ç ã o . E m b o r a e ss a c r e n ç a s e ja c o m u m , t r a t a -
se d e c r e n ç a n u m m i t o h is tó r i c o o u , se p r e f e r i r m o s , u m a o u s a d a d is t o r ç ã o h i s ­
t ó r i c a . P a r a d e m o n s t r á - l o v o u m e n c i o n a r b r e v e m e n t e o p a p e l d e s e m p e n h a d o n e s te
c a m p o p e lo s tr ê s m a is i m p o r t a n t e s p r e c u r s o r e s d e N e w t o n : N ic o la u C o p é r n i c o , T y -
c h o B r a h e e J o ã o K e p le r .

2 - C o n s i d e r a ç ã o s e m e l h a n t e é f e ita p o r B e r t r a n d R u s s e ll e m T h e Anaiysis o f Minei, 1 9 2 2 , p á g . 9 5 .


214 C O N JE C T U R A S E R E FU T A Ç Õ E S

C o p é m ic o e s tu d o u e m B o lo n h a so b a d ir e ç ã o d o p la to n is ta N o v a ra ; su a
i d é i a d e c o l o c a r o S o l, e m l u g a r d a T e r r a , n o c e n t r o d o u n iv e r s o , n ã o r e s u l t o u d e n o ­
v a s o b s e r v a ç õ e s , m a s s im d e u m a n o v a in te r p r e ta ç ã o d e f a t o s b a s t a n t e c o n h e c i d o s
h á m u i t o t e m p o , à lu z d e . c o n c e p ç õ e s s e m i- r e li g io s a s , p l a t ô n i c a s e n e o p l a t ô n i c a s . A
id é i a f u n d a m e n t a l p o d e s e r e n c o n t r a d a n o s e x to liv r o d a R e p ú b lic a 'd e P l a t ã o , o n d e
h á a a f i r m a ç ã o d e q u e o Sol te m a m e s m a f u n ç ã o n o u n iv e r s o d a s c o is a s v isív e is d o
q u e a i d é i a d o b e m n o u n iv e r s o d a s id é i a s . A i d é i a d o b e m é a m a is e l e v a d a n a
h i e r a r q u i a d a s i d é i a s p l a t ô n i c a s . D e m a n e i r a c o r r e s p o n d e n t e , o S o l, q u e c o n f e r e
v is ib i li d a d e , v i t a l i d a d e , c r e s c im e n to e p r o g r e s s o à s c o is a s v isív e is, o c u p a Ό l u g a r
m a is e le v a d o n a h i e r a r q u i a d a s c o is a s v isív eis d a n a t u r e z a .

D e n t r e a s p a s s a g e n s q u e f o r m a r a m a b a s e d a filo s o f ia n e o p l a t ó n i c a —
s o b r e t u d o d o n e o p l a t o n i s m o c r i s tã o — esse t r e c h o d a R e p ú b lic a te m g r a n d e i m ­
p o rtâ n c ia .

Se o S o l t i n h a u m p a p e l t ã o i m p o r t a n t e , se m e r e c i a o s ta tu s d iv i n o q u e lh e
e r a a t r i b u í d o n a h i e r a r q u i a d a s c o is a s v is ív e is, n ã o p o d e r í a g i r a r e m t o r n o d a
T e r r a . O ú n i c o lo c a l a p r o p r i a d o p a r a u m a e s t r e la d e t a l n o b r e z a e r a o c e n t r o d o
u n i v e r s o . 3 P o r is so , a T e r r a d e v ia g i r a r e m v o lt a d o S o l.

E ssa i d é i a p l a t ô n i c a c o n s t i t u i a b a s e h i s t ó r i c a d a r e v o l u ç ã o d e C o p é r n i c o ,
q u e n ã o c o m e ç a , p o r t a n t o , c o m o b s e r v a ç õ e s , m a s c o m u m a c o n c e p ç ã o r e lig io s a o u
m i t o l ó g i c a . I d é i a s d e s s e t i p o — b e la s e e s p a n t o s a s — f o r a m a v a n ç a d a s m u i t a s vezes
p e lo s g r a n d e s p e n s a d o r e s , e t a m b é m p o r lo u c o s . C o p é r n i c o , p o r é m , n ã o e r a u m
lo u c o . A s s u m ia u m a a t i t u d e m u i t o c r í t i c a c o m r e s p e ito a s u a s p r ó p r i a s in t u iç õ e s
m í s t ic a s q u e e x a m i n a v a r i g o r o s a m e n t e à lu z d a s o b s e r v a ç õ e s a s t r o n ô m i c a s , r e i n t e r -
p r e t a d a s c o m a a j u d a d a n o v a c o n c e p ç ã o . C o n s id e r a v a e ss a s o b s e r v a ç õ e s e x t r e ­
m a m e n t e i m p o r t a n t e s . C o n t u d o , d o p o n t o d e v is ta h is tó r i c o o u g e n é t i c o , s u a s id é ia s
n ã o se o r i g i n a v a m n a o b s e r v a ç ã o : v i n h a m e m p r i m e i r o l u g a r e e r a m in d is p e n s á v e is
p a r a in t e r p r e ta r as o b se rv a ç õ e s.

J o h a n n e s K e p le r , a l u n o e a s s is te n te d e T y c h o B r a h e , a q u e m o g r a n d e m e s ­
tr e d e i x o u s e u s t r a b a l h o s in é d i to s , e r a u m s e g u i d o r d e C o p é r n i c o . C o m o o p r ó p r i o
P l a t ã o , e s ta v a im e r s o e m e n s i n a m e n t o s a s tr o ló g ic o s , e m b o r a fo sse u m p e n s a d o r
c r í t i c o ; c o m o P l a t ã o t i n h a s id o p r o f u n d a m e n t e i n f l u e n c i a d o p e lo m i s t ic i s m o
n u m e r o l ó g i c o d o s p i t a g ó r i c o s . O q u e K e p le r e s p e r a v a d e s c o b r i r , o q u e p r o c u r o u
t o d a a v id a , fo i a le i a r i t m é t i c a s u b j a c e n t e à e s t r u t u r a d o m u n d o — a le i q u e e x ­
p li c a v a a c o n s t r u ç ã o d o s c ír c u lo s d o s i s te m a s o l a r d e C o p é r n ic o , e n a q u a l se b a ­
s e a v a m s u a s d i s t â n c i a s e m r e l a ç ã o a o S o l. M a s n u n c a p ô d e e n c o n t r a r o q u e b u s ­
c a v a ; n ã o d e s c o b r iu , n a s o b s e r v a ç õ e s d e T y c h o , a a l m e j a d a c o n f i r m a ç ã o d a s u a
c r e n ç a d e q u e M a r t e g i r a v a e m t o r n o d o S ol e m ó r b i t a p e r f e i t a m e n t e c i r c u l a r , c o m
v e lo c i d a d e u n i f o r m e . M u i to p e lo c o n t r á r i o , e n c o n t r o u n a s o b s e r v a ç õ e s d e T y c h o
u m a r e fu ta ç ã o d a h i p ó t e s e d a s ó r b i t a s c i r c u l a r e s , q u e r e j e i t o u ; d e p o is d e t e n t a r e m
v ã o v á r i a s o u t r a s s o lu ç õ e s , a d o t o u a m a i s p r ó x i m a : a h ip ó t e s e d a ó r b i t a e l í p t i c a .
P ô d e v e rific a r, p o r fim , q u e as o b se rv a ç õ e s a s tro n ô m ic a s p o d ia m a ju s ta r- s e à n o v a
h ip ó t e s e — m a s só se a d m i ti s s e a p r e m is s a , a p r i n c í p i o i n c ô m o d a , d e q u e M a r t e
n ã o d e d e s lo c a v a e m v e lo c i d a d e u n i f o r m e .

P o r t a n t o , h i s t o r i c a m e n t e a s leis d e K e p le r n ã o r e s u l t a r a m d e o b s e r v a ç õ e s . O
q u e a c o n t e c e u fo i q u e K e p le r t e n t o u , e m v ã o , i n t e r p r e t a r a s o b s e r v a ç õ e s d e T y c h o

3 V id e A r is tó te le s , D e Caelo, 2 9 3 b l - 5 , o n d e a d o u t r i n a d e q u e o c e n t r o d o u n iv e r s o é “ p r e c i o s o ” ,
d e v e n d o s e r o c u p a d o p o r t a n t o p o r u m fo g o c e n t r a l , é c r i t i c a d a e a t r i b u í d a a o s “p i t a g ó r i c o s ” (o q u e p o d e
s i g n if ic a r os s e u s riv a is , o s s u c e s s o re s d e P l a t ã o q u e p e r m a n e c e r a m . n a A c a d e m i a ) .
O STATUS D A C IÊ N C IA E DA M E T A FÍSIC A 215

B r a h e p o r m e it) d a s u a h ip ó t e s e o r i g i n a l , d a s ó r b i t a s c i r c u la r e s . A s o b s e r v a ç õ e s
r e fu ta r a m e ss a h i p ó t e s e , o q u e o le v o u a t e n t a r o u t r a s s o lu ç õ e s — a ó r b i t a o v a l e a
e lip s e . A s o b s e r v a ç õ e s n ã o p r o v a r a m q u e a h ip ó t e s e e l í p t i c a e s t a v a c o r r e t a , m a s
p o d i a m se r e x p lic a d a s p o r essa h ip ó t e s e — a ju s ta v a m - s e a e la .

A lé m d is s o , a s le is d e K e p le r e m p a r t e s u s t e n t a v a m s u a c r e n ç a n u m a c a u s a
— u m p o d e r — q u e se i r r a d i a v a d o S ol c o m o a lu z , i n f l u e n c i a n d o , d i r i g i n d o o u
p r o v o c a n d o o s m o v i m e n t o s d o s p l a n e t a s , in c lu s iv e d a T e r r a ; e m p a r t e , e r a e ss a
c r e n ç a q u e in s p i r a v a a s s u a s le is . M a s a i d é i a d e u m a “i n f l u ê n c i a ” d o s a s tro s
c h e g a n d o à T e r r a e ra c o n s id e ra d a , n a é p o c a , u m a n o ç ã o fu n d a m e n ta l d a a s tro ­
lo g ia , e m o p o s i ç ã o a o r á c i o n a l i s m o a r i s t o t é l i c o . H a v i a u m a i m p o r t a n t e l i n h a d i ­
v is ó ria s e p a r a n d o d u a s e s c o la s : G a lil e u , p o r e x e m p l o , o g r a n d e c r í ti c o d e A r i s t ó ­
te le s , D e s c a r te s , B o y le e N e w to n p e r t e n c i a m à t r a d i ç ã o r a c i o n a l i s t a , a r i s t o t é l i c a .
P o r isso G a lil e u e r a c é ti c o c o m r e s p e ito à c o n c e p ç ã o d e K e p le r ; p o r isso n ã o
a c e i ta v a a t e o r i a q u e e x p li c a v a a s m a r é s p e l a “ i n f l u ê n c i a ” d a L u a — o q u e o le v o u
a d e s e n v o lv e r u m a t e o r i a n ã o l u n a r , q u e a t r i b u í a a s m a r é s s i m p l e s m e n t e a o s
m o v i m e n t o s d a T e r r a . P e la m e s m a r a z ã o N e w t o n h e s i t o u t a n t o e m a c e i t a r s u a
p r ó p r i a t e o r i a d a a t r a ç ã o e n u n c a se r e c o n c i l i o u i n t e i r a m e n t e c o m e l a . T a m b é m
p o r e ss a r a z ã o , os c a r t e s i a n o s f r a n c e s e s , d u r a n t e m u i t o t e m p o , n ã o q u e r i a m a c e i t a r
a s id é i a s d e N e w t o n . P o r f i m , a c o n c e p ç ã o o r i g i n a l m e n t e a s t r o ló g i c a te v e t a l ê x ito '
q u e t e r m i n o u a c e i t a p o r to d o s os r a c i o n a l i s t a s , s e n d o e s q u e c i d a s u a o r g i e m d u ­
v i d o s a .4

D o p o n t o d e v is ta h is tó r i c o e g e n é t i c o , esses f o r a m o s p r i n c i p a i s a n t e c e d e n t e s
d a t e o r i a d e N e w t o n , e le s d e ix a m c l a r o q u e a q u e l a t e o r i a n ã o d e r i v a v a d a o b s e r ­
vação.

K a n t p e r c e b e u g r a n d e p a r t e d is s o , m a s le v o u e m c o n t a o f a t o d e q u e m e s m o
as e x p e r iê n c ia s fís ic a s n ã o s ã o , g e n e t i c a m e n t e , a n t e r i o r e s às te o r ia s — d a m e s m a
f o r m a q u e a s o b s e r v a ç õ e s a s t r o n ô m i c a s . E la s t a m b é m r e p r e s e n t a m a p e n a s q u e s tõ e s
c r u c i a is f o r m u l a d a s p e lo h o m e m à n a t u r e z a , c o m a a j u d a d e te o r ia s a n á l o g a s às
p e r g u n t a s p r o p o s t a s p o r K e p le r a r e s p e ito d a s u a h ip ó t e s e d a ó r b i t a c i r c u l a r . A s ­
s im , K a n t e s c r e v e u n o p r e f á c i o d a s e g u n d a e d iç ã o d a C rítica d a R a z ã o P u ra :

“ Q u a n d o G a lil e u s o lto u s e u s p e s o s n u m p l a n o i n c l i n a d o , d e s l o c a d o s p e la
g r a v i d a d e q u e t i n h a e s c o l h id o ; q u a n d o T o r r i c e l l i fe z c o m q u e o a r s u s te n ta s s e o
p e s o q u e h a v ia c a l c u l a d o p r e v i a m e n t e p a r a e q u a l i z a r o p e s o d e u m a c o l u n a d e
á g u a d e d e t e r m i n a d a a l t u r a ; ... u m a lu z se fez e n t r e os filó s o fo s d a n a t u r e z a . E les
p e r c e b e r a m q u e n o s s a r a z ã o só p o d e c o m p r e e n d e r o q u e ela cria d e a c o rd o c o m se u
p r ó p r io d es e n h o ; q u e p re c isa m o s o b r ig a r a n a tu r e z a a r e s p o n d e r nossas p e r g u n ta s
em vez d e a m a r r a r m o s a seu a v e n ta l, d e ix a n d o - o g u ia r p o r e la . C o m e fe ito ,
o b serva çõ es p u r a m e n te a c id e n ta is, f e i t a s se m q u a lq u e r p la n o c o n c e b id o p r e v ia ­
m e n te , n ã o se p o d e m a sso c ia r e m c o n fo r m id a d e c o m ... u m a le i — q u e é o q u e a
razão busca. ” 5
E s ta c i t a ç ã o d e K a n t m o s t r a c o m o o filó s o fo c o m p r e e n d i a b e m q u e p r e ­
c is a m o s t o m a r a in i c ia t iv a d e c o n f r o n t a r a n a t u r e z a c o m h ip ó te s e s , e x ig i n d o - l h e

4 - P e n s o q u e a c r í t i c a d e G a l i l e u f e i t a p o r A r t h u r K o e s tle r , n o s e u n o tá v e l liv r o T h e Sleepwalkers, s o f r e


d o d e f e ito d e n ã o le v a r e m c o n t a o c is m a q u e d e s c re v í. G a lile u t i n h a t a n t a r a z ã o p a r a t e n t a r v e r se
p o d e r í a re s o lv e r o s p r o b l e m a s q u e c o n s id e r a v a d e n t r o d o q u a d r o d a s id é ia s r a c i o n a l i s t a s q u a n t o K e p le r
e s ta v a j u s t i f i c a d o e m s u a s t e n t a t i v a s d e re s o lv ê - lo s d e n t r o d o c o n t e x t o a s tr o ló g ic o .

5 - A ê n fa se é m in h a .
216 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

u m a r e s p o s t a à s .n o s s a s p e r g u n t a s ; q u e , à f a l t a d e s s a s h ip ó te s e s , e s t a m o s l i m i t a d o s a
f a z e r o b s e r v a ç õ e s e r r á t i c a s , q u e n ã o s e g u e m n e n h u m p l a n o e p o r isso n ã o n o s
p o d e m le v a r a n e n h u m a le i n a t u r a l . E m o u t r a s p a l a v r a s , K a n t v iu c o m p e r f e i t a
c la r e z a q u e a h i s t ó r i a d a c iê n c ia t i n h a r e f u t a d o o m i t o b a c o n i a n o d e q u e é n e c e s ­
s á r io c o m e ç a r p e la o b s e r v a ç ã o e d e l a d e r i v a r n o s s a s te o r ia s . V iu t a m b é m c l a r a m e n ­
t e q u e p o r t r á s d e ss e f a t o h is tó r i c o h a v i a u m f a t o ló g ic o — q u e h a v i a ra z õ e s ló g ic a s
p a r a q u e isso n ã o o c o rr e s s e n a h i s t ó r i a d a c i ê n c i a : e r a lo g i c a m e n t e im p o s s ív e l
d e r i v a r t e o r ia s d a o b s e r v a ç ã o .

M e u t e r c e i r o p o n t o — a a f i r m a t i v a d e q u e é lo g i c a m e n t e im p o s s ív e l d e r i v a r
a t e o r i a d e N e w t o n d e o b s e r v a ç õ e s — d e c o r r e im e d i a t a m e n t e d a c r í t i c a f e i t a p o r
H u m e à v a lid a d e d a s in fe rê n c ia s in d u tiv a s , c o n fo r m e a s s in a la d a p o r K a n t. O a r ­
g u m e n t o d e c is iv o d e H u m e p o d e s e r f o r m u l a d o a s s im :

T o m e m o s u m a c la s se q u e c o n s i s ta e m q u a l q u e r n ú m e r o d e a f i r m a t i v a s
d e riv a d a s d a o b s e rv a ç ã o — a firm a tiv a s v e r d a d e ir a s — , d e s ig n a n d o -a p o r K. As
a f i r m a t i v a s d a c la s s e K d e s c r e v e r ã o o b s e r v a ç õ e s r e a i s , is to é , p a ssa d a s. D e s ig n a m o s
a s s im p e l a l e t r a K q u a l q u e r c la s se d e a f i r m a t i v a s v e r d a d e i r a s a r e s p e ito d e o b s e r ­
v a ç õ e s f e i ta s n o p a s s a d o . C o m o a d m i t i m o s q u e K c o n s is te e x c lu s iv a m e n te d e a f i r ­
m a t i v a s , v e r d a d e i r a s , to d a s a s a f i r m a t i v a s d e s s a c la s s e d e v e m s e r c o n s i s te n t e s e c o m ­
p a tív e is e n tr e si. T o m e m o s a g o r a u m a a f i r m a t i v a a d i c i o n a l , t a m b é m d e r i v a d a d a
o b s e r v a ç ã o , d e s i g n a d a p e l a l e t r a B , a d m i t i n d o q u e d e s c r e v a u m a o b se rv a ç ã o f u ­
tu ra , lo g ic a m e n te po ssível: p o r e x e m p l o , d e q u e h a v e r á u m e c lip s e d o S o l a m a ­
n h ã . O r a , c o m o j á se p ô d e o b s e r v a r e c lip s e s s o l a r e s , p o d e m o s t e r a c e r t e z a d e q u e
a f i r m a t i v a c o m o B é p o ssível, e m te r m o s p u r a m e n t e ló g ic o s ; is to é , B é a u to c o n s is -
t e n t e . H u m e d e m o n s t r a o s e g u i n te : se B é u m a a f i r m a t i v a d e r i v a d a d a o b s e r v a ç ã o
s o b r e u m p o s s ív e l e v e n to f u t u r o , e K é a c la s s e d e q u a i s q u e r a f i r m a t i v a s d o m e s m o
ti p o , v e r d a d e i r a s , s o b r e o p a s s a d o , e n t ã o B p o d e s e m p r e s e r a s s o c ia d a a K s e m c o n ­
t r a d i ç ã o ; e m o u t r a s p a l a v r a s , se a c r e s c e n t a r m o s u m a a f i r m a t i v a B s o b r e u m p o s ­
sível e v e n to f u t u r o à s a f i r m a tiv a s d e K , n u n c a c h e g a r e m o s a u m a c o n t r a d i ç ã o
ló g i c a . A c o n c lu s ã o d e H u m e p o d e s e r f o r m u l a d a t a m b é m a s s im : a classe das o b ­
serva ç õ es p a ssa d a s n ã o p o d e ser c o n tr a d ita d a p o r q u a lq u e r o b se rv a ç ã o f u t u r a
lo g ic a m e n te possível.

A c r e s c e n t e m o s a g o r a à s im p le s c o n c lu s ã o d e H u m e u m t e o r e m a d e p u r a
ló g ic a : s e m p r e q u e u m a a f i r m a t i v a B p o d e s e r i n t e g r a d a , s e m c o n t r a d i ç ã o , n u m a
c la s se d e a f i r m a t i v a s K , p o d e t a m b é m s e r i n t e g r a d a s e m c o n t r a d i ç õ e s e m q u a l q u e r
c la s se d e a f i r m a t i v a s q u e c o n s is ta d a s a f i r m a t i v a s d e K r e u n i d a s a q u a l q u e r o u t r a
a firm a tiv a d e riv a d a d e K.

P r o v a m o s a s s im n o ss o p o n t o : se a t e o r i a d e N e w t o n p u d e s s e s e r d e r i v a d a d e
u m a c la s s e K , n e n h u m a f u t u r a o b s e r v a ç ã o B p o d e r í a c o n t r a d i z e r a t e o r i a e a s o b ­
serv açõ es K .

S a b e m o s c o n t u d o , p o r o u t r o l a d o , q u e d a te o r i a d e N e w t o n , e d e o b s e r ­
v a ç õ e s p a s s a d a s , é p o ss ív e l d e r i v a r u m a a f i r m a t i v a s o b r e se h a v e r á o u n ã o u m
e c lip s e s o l a r a m a n h ã . O r a , se e s s a a f i r m a t i v a ti v e r s e n t i d o n e g a ti v o ( n ã o h a v e r á
e c lip s e ) , e n t ã o o n o s s o B é c l a r a m e n t e i n c o m p a t í v e l c o m a c la s s e K e c o m a t e o r ia
d e N e w t o n . D iss o , e d o s r e s u lta d o s p r e c e d e n t e s , s e g u e - s e lo g i c a m e n t e q u e é i m p o s ­
sível a d m i t i r q u e a t e o r i a d e N e w t o n p u d e s s e s e r d e r i v a d a d a o b s e r v a ç ã o .

T e n d o p r o v a d o o te r c e ir o p o n t o , p o d e m o s v e r d e m o d o c o m p l e t o o e n ig m a
d a e x p e r i ê n c i a — o p a r a d o x o d a s c iê n c ia s e m p í r i c a s , q u e K a n t d e s c o b r i u : a d i ­
O STA TUS DA C IÊ N C IA E DA M E T A FÍSIC A 217

n â m ic a de N e iv to n u ltr a p a ssa e s s e n c ia lm e n te to d a s a i o b se rv a ç õ e s; é u n iv e rsa l,


e x a ta e a b s tr a ta ; s u r g iu h is to r ic a m e n te d e c e rto s m ito s ; e é p o s s ív e l d e m o n s tr a r , p o r
p ro c esso p u r a m e n te ló g ic o , q u e n ã o p o d e r ía ser d e r iv a d a d e a fir m a tiv a s re la c io ­
n a d a s c o m a o b se rva ç ã o .

K a n t d e m o n s t r o u t a m b é m q u e o q u e se a p l i c a à t e o r i a d e N e w t o n t a m b é m
se a p l i c a à e x p e r iê n c ia q u o tid ia n a , e m b o r a p o s s iv e lm e n te n ã o n a m e s m a e s c a l a : a
e x p e r i ê n c i a o r d i n á r i a u l t r a p a s s a t a m b é m a o b s e r v a ç ã o ; e la in te r p r e ta a o b s e r v a ç ã o ,
p o is s e m t a l i n t e r p r e t a ç ã o t e ó r i c a a o b s e r v a ç ã o é c e g a , n a d a i n f o r m a . A e x p e r i ê n ­
c ia c o r r e n t e f u n c i o n a c o n s t a n t e m e n t e c o m i d é i a s a b s t r a t a s , ta i s c o m o a d e c a u s a e
e f e ito — p o r isso n ã o p o d e s e r d e r i v a d a d e o b s e r v a ç õ e s .

P a r a s o lu c io n a r o e n i g m a d a e x p e r i ê n c i a , e e x p l i c a r c o m o a c i ê n c i a e a e x ­
p e r i ê n c i a s ã o p o s s ív e is , K a n t e l a b o r o u s u a te o r ia d a e x p e r iê n c ia e d a c iê n c ia n a ­
tu r a l, q u e a d m i r o c o m o u m a t e n t a t i v a v e r d a d e i r a m e n t e h e r ó i c a d e r e s o lv e r o p a ­
r a d o x o d a e x p e r i ê n c i a ; p e n s o , p o r é m , q u e e la r e s p o n d e a u m a f a l s a i n d a g a ç ã o e
p o r isso é e m p a r te i r r e l e v a n t e . O g r a n d e d e s c o b r i d o r d o e n i g m a d a e x p e r i ê n c i a
e r r o u n u m p o n t o i m p o r t a n t e — e r r o in e v itá v e l q u e , d e f o r m a a l g u m a , p r e j u d i c a
s u a m a g n í f i c a r e a l iz a ç ã o .

Q u a l fo i esse e r r o ? C o m o d is s e , q u a s e t o d o s os filó s o fo s e e p is te m o lo g i s ta s ,
a té o n o s s o s é c u lo , e s t a v a m c o n v e n c id o s d e q u e a t e o r i a d e N e w t o n e r a v e rd a d e ira
— e a s s im p e n s a v a K a n t . E ssa c o n v ic ç ã o e r a in e s c a p á v e l: e la t i n h a p e r m i t i d o a s
p re v is õ e s m a is e x a t a s e e s p a n t o s a s , n e n h u m a d a s q u a i s f a l h a r a . Só os i g n o r a n t e s
p o d i a m t e r d ú v id a s s o b r e s u a v e r a c i d a d e . A té m e s m o H e n r i P o i n c a r é , o m a i o r
m a t e m á t i c o , fís ic o e filó s o f o d a s u a g e r a ç ã o , f a l e c i d o p o u c o a n t e s d a P r i m e i r a
G u e rra M u n d ia l, a in d a a c r e d ita v a q u e a te o r ia n e w to n ia n a e ra v e r d a d e ir a e i r ­
r e f u t á v e l . P o i n c a r é fo i u m d o s p o u c o s c i e n t is ta s q u e se p r e o c u p a r a m c o m o p a ­
r a d o x o d e K a n t q u a s e t a n t o q u a n t o o filó s o f o p r u s s i a n o ; e m b o r a tiv e sse p r o p o s t o
u m a s o l u ç ã o a lg o d i f e r e n t e d a d e K a n t , e la e r a d e f a t o a p e n a s u m a v a r i a n t e d a
s o lu ç ã o k a n t i a n a . O p o n t o m a is i m p o r t a n t e , c o n t u d o , é q u e P o i n c a r é p a r t i c i p o u
p l e n a m e n t e d o e r r o d e K a n t — u m e r r o in e v i tá v e l , a n t e s d e E in s te in .

M e s m o os q u e n ã o a c e i t a m a t e o r i a d a g r a v i t a ç ã o d e E in s t e in p r e c i s a m a d ­
m i t i r q u e e l a r e p r e s e n t o u u m a r e a l iz a ç ã o m o m e n t o s a , a o d e m o n s t r a r , q u a n d o
m e n o s , q u e fo sse a t e o r i a d e N e w t o n v e r d a d e i r a o u f a ls a , n ã o era o ú n ic o sis te m a
p o ssível d e m e c â n i c a c e le s tia l, q u e e x p lic a s s e os f e n ô m e n o s a s t r o n ô m i c o s d e m o d o
s im p le s e c o n v i n c e n t e . P e la p r i m e i r a vez e m m a i s d e 2 0 0 a n o s a t e o r i a d e N e w t o n se
t o r n o u p r o b le m á tic a . D u r a n t e esses d o is s é c u lo s e la se h a v i a t r a n s f o r m a d o n u m
d o g m a p e r i g o s o , q u a s e e s t u p e f a c i e n t e . N ã o o b je t o a o s q u e se o p õ e m à t e o r i a d e
E in s t e in c o m ra z õ e s c i e n t íf ic a s . C o n t u d o , m e s m o os o p o s i to r e s d e E in s t e in t ê m ,
c o m o s e u s g r a n d e s a d m i r a d o r e s , u m a d ív i d a d e g r a t i d ã o p a r a c o m e le p o r n o s t e r
lib e r ta d o d a c re n ç a p a r a lis a n te n a v e rd a d e in c o n te s tá v e l d a te o r ia d e N e w to n .
G r a ç a s a E in s te in v e m o s h o je e ss a t e o r i a c o m o u m a h ip ó t e s e ( o u u m s i s te m a d e
h ip ó t e s e s ) — p o s s iv e lm e n te a m a i s e s p l ê n d i d a e m a is i m p o r t a n t e n a h i s t ó r i a d a
c iê n c ia , c e r t a m e n t e u m a e s p a n t o s a a p r o x i m a ç ã o d a v e r d a d e . 6

S e, a o c o n t r á r i o d e K a n t , c o n s i d e r a r m o s a te o r i a d e N e w t o n c o m o u m a
h ip ó t e s e d e v e r a c i d a d e p r o b l e m á t i c a , m o d i f i c a r e m o s r a d i c a l m e n t e o p r o b l e m a

6 — V id e o c o m e n t á r i o d o p r ó p r i o E i n s te in , n a c o n f e r ê n c i a q u e p r o n u n c i o u e m 1 9 3 3 s o b r e " O M é to d o
d a F ís ic a T e ó r i c a " , p á g . 1 1 , o n d e a f i r m a : " F o i a t e o r i a g e r a l d a r e l a t i v i d a d e q u e d e m o n s t r o u . . . s e r i m ­
p o s sív e l p a r a n ó s , u s a n d o p r i n c íp io s b á s ic o s , m u i t o d i s t a n t e s d o s d e N e w to n , f a z e r ju s t i ç a a to d a a g a m a
d o s d a d o s d a e x p e r i ê n c i a . .. "
218 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

k a n t i a n o . N ã o é d e e s p a n t a r , p o r t a n t o , q u e a s o l u ç ã o p r o p o s t a p e lo filó s o f o n ã o se
a ju s te a o e n u n c i a d o p ó s - e in s t e in i a n o d o p r o b l e m a , r e q u e r e n d o u m a e m e n d a .

A s o l u ç ã o d e K a n t é b e m c o n h e c i d a . E le p r e s u m i u , c o r r e t a m e n t e , q u e o
m u n d o c o m o o c o n h e c e m o s é nossa in te r p r e ta ç ã o d o s fa to s o b se rvá v eis, à lu z d e
te o ria s q u e in v e n ta m o s . N a s p a l a v r a s d e K a n t , “N o s s o in t e l e c t o n ã o d e r i v a s u a s le is
d a n a t u r e z a . . . m a s im p õ e leis à n a t u r e z a ” . C o n s id e r o e ss a f o r m u l a ç ã o e s s e n c ia l­
m e n te c o r r e ta , m a s a c h o q u e é m u ito r a d ic a l; g o s ta r ia p o r ta n to d e v ê -la r e f o r ­
m u l a d a d a s e g u i n te f o r m a : “N o s s o in t e l e c t o n ã o (deriva s u a s leis d a n a t u r e z a , m a s
t e n t a i m p o r à n a t u r e z a leis q u e i n v e n t a li v r e m e n t e , c o m u m g r a u v a r i á v e l d e
s u c e s s o ” . A d i f e r e n ç a é a s e g u i n te : a f o r m u l a ç ã o d e K a n t n ã o só i m p l i c a q u e n o s s a
r a z ã o t e n t a i m p o r le is à n a t u r e z a , m a s t a m b é m q u e esse e s f o rç o é i n v a r i a v e l m e n t e
e x ito s o . K a n t a c r e d i t a v a q u e a s le is d e N e w t o n t i n h a m s id o i m p o s t a s à n a t u r e z a p o r
n ó s m e s m o s , c o m g r a n d e su c e s so — q u e e s t á v a m o s o b r i g a d o s a i n t e r p r e t a r a n a ­
t u r e z a p o r s e u i n t e r m é d i o ; c o n c lu í a a s s im q u e e ss a s leis e r a m v e r d a d e i r a s a p n o n .
F o i a s s im q u e K a n t v iu o p r o b l e m a , d e f o r m a s e m e l h a n t e à d e P o i n c a r é .

S a b e m o s n o e n t a n t o , d e s d e E in s t e in , q u e o u t r a s i n t e r p r e t a ç õ e s e te o r ia s
m u i t o d i f e r e n t e s s ã o t a m b é m p o ss ív e is e p o d e m a t é s e r m e l h o r e s d o q u e a d e
N e w t o n . P o r c o n s e g u i n te , a r a z ã o é c a p a z d e m a i s d e u m a i n t e r p r e t a ç ã o , e n ã o
p o d e i m p o r u m a i n t e r p r e t a ç ã o à n a t u r e z a e m c a r á t e r d e f i n it iv o . A r a z ã o t r a b a l h a
p e lo m é t o d o d a s t e n t a t i v a s , c o m e r r o s e a c e r t o s . I n v e n t a m o s m i to s e t e o r i a s e e m
s e g u i d a os te s ta m o s e x p e r i m e n t a l m e n t e , p a r a v e r a t é o n d e n o s le v a m . S e te m o s a
p o s s i b i l i d a d e d e a p e r f e i ç o a r n o s s a s te o r i a s , é o q u e fa z e m o s . A t e o r i a m e l h o r é a
q u e t e m m a i o r c a p a c i d a d e d e e x p l i c a ç ã o —- q u e e x p l i c a m a i s , c o m m a i o r p r e c i s ã o ,
p e r m i t i n d o - n o s m e l h o r e s p re v is õ e s .

C o rn o K a n t a c r e d i t a v a q u e e r a n o s s a r e s p o n s a b i l i d a d e e x p l i c a r o c a r á t e r
s i n g u l a r d a t e o r i a d e N e w t o n e s u a v e r a c i d a d e , fo i le v a d o à c r e n ç a d e q u e e la se
a p o ia v a c o m n e c e s s id a d e ló g ic a n a s le is d o n o ss o c o n h e c i m e n t o . A a l t e r a ç ã o d o
e n u n c i a d o d e K a n t q u e p r o p u s , d e a c o r d o c o m a r e v o l u ç ã o d e E in s t e in , n o s liv ra
d e s s a c o m p u l s ã o . D e s te m o d o , a s te o r ia s p o d e m s e r v is ta s c o m o livres cria çõ es d a
n o ssa m e n te , o r e s u lta d o d e u m a in tu iç ã o q u a s e p o é tic a , d a te n ta tiv a d e c o m ­
p r e e n d e r i n t u i t i v a m e n t e as leis d a n a t u r e z a . C o n t u d o , n ã o im p o m o s m a is n o ss a s
c r i a ç õ e s . A o c o n t r á r i o , q u e s t io n a m o s a n a t u r e z a , c o m o K a n t n o s e n s i n o u , p r o ­
c u r a n d o e x t r a i r d e la r e s p o s ta s n e g a tiv a s a r e s p e ito d a v e r d a d e d a s t e o r ia s c o m q u e
a i n t e r r o g a m o s . N ã o p r o c u r a m o s p ro v á -la s o u v e rific á -la s — n ó s a s te s ta m o s
m e d i a n t e u m e s f o r ç o d i r i g i d o à s u a re fu ta ç ã o .

D e s te m o d o a l i b e r d a d e e a o u s a d i a d a s n o s s a s c r ia ç õ e s t e ó r i c a s s ã o c o n ­
t r o l a d a s e t e m p e r a d a s p e l a a u t o c r í t i c a , m e d i a n t e os te s te s m a i s r i g o r o s o s q u e
p o d e m o s c o n c e b e r . E a s s im , p e lo s m é t o d o s c r ític o s d e e x p e r i m e n t a ç ã o , q u e a ló g ic a
e o r i g o r c ie n t íf ic o se f a z e m s e n t i r n a c iê n c ia e m p í r i c a .

J á v im o s q u e a s te o r ia s n ã o p o d e m s e r d e r i v a d a s lo g i c a m e n t e d a o b s e r v a ç ã o .
P o d e m , c o n t u d o , c h o c a r - s e c o m a o b s e r v a ç ã o , c o n t r a d i z ê - l a . E isso q u e t o r n a p o s ­
sív el i n f e r i r d c d e t e r m i n a d a s o b s e r v a ç õ e s a fa ls id a d e d e u m a t e o r i a . A p o s s ib il id a d e
d e r e f u t a r a s te o r ia s p e la o b s e r v a ç ã o c o n s t i t u i a b a s e d o s te s te s e m p í r i c o s : t e s t a r
u m a t e o r i a é s e m p r e — c o m o q u a l q u e r e x a m e r ig o r o s o - - u m e s f o r ç o p a r a p r o v a r
q u e o c a n d i d a t o se e n g a n o u , is to é , q u e a s a f i r m a t i v a s d a tp o r ia s ã o f a l s a s . D o p o n ­
to d e v is ta ló g ic o , p o r t a n t o , to d o s os te s te s e m p í r i c o s s ã o te n ta tiv a s d e r e fu ta ç ã o .
O STATUS DA C IÊ N C IA E DA M E T A FÍSIC A 219

E m c o n c lu s ã o , g o s t a r i a d e d iz e r q u e s e m p r e se f a z e m te n t a t i v a s la p l a -
c i a n a s , b u s c a n d o a t r i b u i r a n o s s a s te o r ia s p e lo m e n o s u m a lto g r a u d e p r o b a b ili­
d a d e , e m vez d e v e r a c id a d e . C o n s id e r o e s s a s t e n t a t i v a s d e s c a b i d a s . 'S ó p o d e m o s t e r
a e s p e r a n ç a d e d iz e r , a r e s p e ito d e u m a te o r i a , q u e ela e x p li c a is to o u a q u i l o ; q u e
fo i r i g o r o s a m e n t e t e s t a d a e q u e r e s is t iu a to d o s os te s te s . P o d e m o s t a m b é m c o m ­
p a r a r , p o r e x e m p l o , d u a s te o r ia s , p a r a v e r q u a l d e la s re s is tiu m e l h o r a n o ss o s te s te s
m a i s s e v e ro s — e m o u t r a s p a l a v r a s — q u a l fo i m e lh o r c o rro b o ra d a p e lo s r e s u lta d o s
d e sse s te s te s . C o n t u d o , p o d e - s e d e m o n s t r a r p o r m é t o d o s p u r a m e n t e m a t e m á t i c o s
q u e o g r a u d e c o r ro b o ra ç ã o n ã o p o d e se r id e n tific a d o c o m o u m a p r o b a b ilid a d e
m a te m á tic a . P o d e - s e t a m b é m d e m o n s t r a r q u e t o d a s a s t e o r i a s , m e s m o a s m e l h o r e s ,
tê m a m e s m a p r o b a b i l i d a d e : z e ro . M a s , o g r a u e m q u e s ã o c o r r o b o r a d a s (o q u e ,
p e lo m e n o s t e o r i c a m e n t e , p o d e s e r e s t i m a d o c o m a a j u d a d o c á l c u l o d a s p r o b a ­
b i l i d a d e s ) p o d e a p r o x i m a r - s e m u i t o d a u n i d a d e — is to é , d o m á x i m o p o s s ív e l — ,
e m b o r a s u a p r o b a b i l i d a d e s e ja z e r o . A c o n c lu s ã o d e q u e o a p e lo à p r o b a b i l i d a d e
n ã o p o d e s o l u c i o n a r o e n i g m a d a e x p e r i ê n c i a fo i a l c a n ç a d a h á m u i t o t e m p o p o r
D a v id H u m e .

m i»
A s s im , a a n á lis e ló g i c a d e m o n s t r a q u e a e x p e r i ê n c i a n ã o c o n s is te n a
a c u m u la ç ã o m e c â n ic a d e o b se rv a ç õ e s — e la é c ria tiv a ; re s u lta d e in te rp re ta ç õ e s
liv re s , o u s a d a s e c r i a ti v a s , c o n t r o l a d a s p o r c r í t i c a s e v e r a e p o r te s te s rig o r o s o s .

jkí
2 . O P r o b le m a d a I r r e fu ta b ilid a d e das T e o n a s F ilo só fica s

P a r a e v ita r d e s d e o p rin c íp io o p e rig o d e m e p e r d e r e m g e n e ra lid a d e s , s e rá


m e l h o r e x p l i c a r lo g o , c o m a a j u d a d e c in c o e x e m p l o s , o q u e e n t e n d o p o r te o ria
filo s ó fic a .

T í p i c o e x e m p l o d e u m a te o r i a f ilo s ó f ic a é a d o u t r i n a d o d e te r m in is m o d e
K a n t , a p li c á v e l a o m u n d o d a e x p e r i ê n c i a . E m b o r a K a n t fo sse n o f u n d o u m in -
d e t e r m i n i s t a , a f i r m o u n a C rític a d a R a z ã o P r á tic a 7 q u e o c o n h e c i m e n t o c o m p l e to
d a s n o s s a s c o n d iç õ e s p s ic o ló g ic a s e fis io ló g ic a s , b e m c o m o d o n o ss o a m b i e n t e , t o r ­
n a r i a p o s s ív e l p r e v e r n o s s o c o m p o r t a m e n t o f u t u r o c o m a m e s m a c e r t e z a c o m q u e
p o d e m o s p r e v e r u m e c lip s e d o S o l e d a L u a .

De m odo m a is g e ra l, p o d e ria m o s fo rm u la r a d o u trin a d e te rm in is ta da


s e g u i n te f o r m a :

O f u t u r o d o m u n d o e m p ír ic o (o u f e n o m e n a l) é p r é - d e te r m in a d o c o m p le ­
ta m e n te , a té os m e n o r e s d e ta lh e s , p e lo se u e sta d o a tu a l.

O u t r a t e o r i a f ilo s ó f ic a é o id e a lis m o d e B e rk e le y o u S c h o p e n h a u e r , q u e
p o d e m o s f o r m u l a r c o m a s e g u i n te te s e : “o m u n d o e m p í r i c o é m i n h a i d é i a ” — “o
m u n d o é o q u e esto u s o n h a n d o ”.

U m a t e r c e i r a t e o r i a filo s ó f ic a — c o n s i d e r a d a h o je m u i t o i m p o r t a n t e — é o
irr a c io n a lism o e p iste m o ló g ic o , q u e p o d e s e r e x p l i c a d o a s s im :

7 - K ritik der P raktischen V ernunft, 4 .* a 6 . a e d . , p á g . 1 7 2 ; e d . C a s s ir e r , W orks, v o l. v , p á g . 1 0 8 .


220 CONJECTURAS E REFUTAÇÕES

C o m o s a b e m o s , g r a ç a s a K a n t , q u e a r a z ã o h u m a n a é in c a p a z d e p e r c e b e r
o u c o n h e c e r o m u n d o d a s c o is a s e m si m e s m a s , d e v e m o s o u a b a n d o n a r a e s p e r a n ç a
d e c h e g a r a c o n h e c ê -lo o u e n tã o t e n t a r o se u c o n h e c im e n to p o r o u tro s m e io s q u e
n ã o o d a r a z ã o ; u m a vez q u e n ã o p o d e m o s n e m q u e r e m o s a b a n d o n a r e ss a e s p e r a n ­
ç a , p r e c i s a m o s e m p r e g a r m e io s i r r a c i o n a i s o u s u p r a - r a c i o n a i s — o i n s t i n t o , a i n s ­
p ir a ç ã o p o é tic a , as e m o ç õ e s.

S e g u n d o o s ir r a c i o n a l i s t a s , isso é p o s s ív e l p o r q u e e m ú l t i m a a n á li s e s o m o s
t a m b é m c o is a s e m si m e s m a s ; p o r t a n t o , se p u d e r m o s d e a l g u m a f o r m a a l c a n ç a r
u m c o n h e c i m e n t o i m e d i a t o e í n t i m o d e n ó s m e s m o s , e n t e n d e r e m o s o q u e s ã o as
c o is a s e m si m e s m a s .

E s te a r g u m e n t o s im p le s d o i r r a c i o n a l i s m o é m u i t o c a r a c t e r í s t i c o d a m a i o r
p a r t e d o s filó s o fo s p ó s - k a n t i a n o s d o s é c u lo d e z e n o v e ; p o r e x e m p l o , d o e n g e n h o s o
S c h o p e n h a u e r , q u e d e s c o b r i u q u e , n a q u a l i d a d e d e c o is a s e m si m e s m a s , s o m o s
v o n ta d e e q u e p o r t a n t o a v o n t a d e d e v e s e r a c o is a e m si m e s m a : o m u n d o é v o n ­
t a d e , e m b o r a n o n ív e l d o s f e n ô m e n o s s e ja u m a i d é i a . P o d e p a r e c e r e s t r a n h o , m a s
e ss a f ilo s o f ia o b s o l e ta , v e s t id a c o m r o u p a s n o v a s , v o lto u a e n t r a r e m m o d a — e m ­
b o r a s u a m a r c a n te s e m e lh a n ç a c o m a s id é i a s p ó s - k a n t i a n a s t e n h a p e r m a n e c i d o
o c u l t a ( o u ta lv e z p o r c a u s a d is s o ) — n a m e d i d a e m q u e a s “r o u p a s n o v a s d o i m ­
p e r a d o r ” p o d e m o c u l t a r a lg o .

A t u a l m e n t e , a filo s o f ia d e S c h o p e n h a u e r é a p r e s e n t a d a e m li n g u a g e m i m ­
p r e s s io n a n te , o b s c u r a , s u b s titu in d o - s e a in tu iç ã o re v e la d o ra d e q u e o h o m e m ,
c o m o c o is a le m js i , é v o n ta d e p e l a i n t u i ç ã o a u t o - r e v e l a d o r a d e q u e o h o m e m p o d e
e n t e d i a r - s e d e t a l f o r m a q u e esse t é d i o p r o v a q u e a c o is a e m si é o n a d a , o v a z io
t o t a l . N ã o n e g o a r e l a t i v a o r i g i n a l i d a d e d e s s a v a r i a n t e e x is te n c i a li s ta d a filo s o f ia d e
S c h o p e n h a u e r , d e m o n s t r a d a p e lo f a t o d e q u e o p r ó p r i o S c h o p e n h a u e r n u n c a te r ia
ti d o u m a id é i a t ã o p o b r e d a s u a c a p a c i d a d e d e r e s is tir a o té d i o . O q u e o filó so fo
d e s c o b r i u n e le m e s m o fo i v o n t a d e , a t i v i d a d e , te n s ã o , e x c i t a ç ã o — o o p o s to d o q u e
fo i d e s c o b e r t o p o r a lg u n s e x is te n c ia lis ta s : o a b o r r e c i m e n t o p r o f u n d o d o e n t e d i a d o
e m / s i f m e s m o q u e se a b o r r e c e . M a s S c h o p e n h a u e r n ã o e s tá m a i s n a m o d a — a
g r a n d e m o d a d o n o ss o p e r í o d o p ó s - k a n t i a n o , p ó s - r a c i o n a l i s t a , é o q u e Ç Jie tz c h e
( “p e r s e g u i d o p o r p r e m o n iç õ e s , s u s p e ito s o d a s u a p r ó p r i a d e s c e n d ê n c i a ” ), d e n o ­
m i n o u a p r o p r i a d a m e n t e “ n iilis m o e u r o p e u ” . 8

T e m o s , a s s im , u m a lis ta d e c in c o t e o r ia s filo s ó f ic a s :

1) o d e te rm in ism o ·, o f u t u r o e s tá c o n t i d o n o p r e s e n t e q u e o d e t e r m i n a i n ­
te g r a lm e n te ;

2 ) o id e a lism o : o m u n d o é o m e u s o n h o ;

3 ) o irr a c io n a lism o : n o ss a s e x p e r i ê n c i a s i r r a c i o n a i s o u s u p r a - r a c i o n a i s n o s
le v a m a c o n h e c e r as c o is a s e m si m e s m a s ; p o d e m o s a s s im t e r a l g u m c o n h e c i m e n t o
d o m u n d o e m si m e s m o ;

4 ) o v o lu n ta r is m o : e m n o s s a s v o liç õ e s n o s r e c o n h e c e m o s c o m o v o n t a d e ; a
c o is a e m si m e s m a é v o n ta d e ;

8 - C f. J u l i u s K r a f t , Von H ussert zu H etdegger, 2 , a e d iç ã o , 1 9 5 7 . p . c x .: p á g s . 1 0 3 , 1 3 6 , e , e m e s p e c ia l


1 3 0 , o n d e o a u t o r d e c l a r a : " É d ifíc il, p o r t a n t o , c o m p r e e n d e r c o m o o e x is t e n c ia lis m o p o d e t e r s id o c o n ­
s i d e r a d o a lg o n o v o n a f ilo s o f ia , d e u m p o n t o d e v is ta e p is t e m o ló g i c o " . V id e t a m b é m o e s t i m u l a n t e
t r a b a l h o d e H . T i n t , e m Proc. A n st. Society, 1 9 5 6 -7 , p á g . 2 5 3 .
O STATUS D A C IÊ N C IA E DA M E T A FÍSIC A 221

5) o n iilis m o : n o s s o té d i o n o s f a z r e c o n h e c e r - n o s c o m o n a d a ; a c o is a e m si
m esm a é o n a d a .

E s c o lh í m e u s e x e m p lo s d e m o d o a p o d e r d iz e r a p r o p ó s ito d e c a d a u m a d e s ­
sa s t e o r i a s , d e p o is d e c u i d a d o s a c o n s i d e r a ç ã o , q u e e s t o u c o n v e n c i d o d a s u a f a l s i ­
d a d e . P a r a s e r m a i s p r e c is o : s o u , e m p r i m e i r o l u g a r , u m in d e te r m in is ta ; e m s e g u n ­
d o l u g a r , u m rea lista ; e m te r c e ir o , u m ra c io n a lista . C o m r e l a ç ã o a o q u a r t o e q u i n ­
to e x e m p l o s , a c e i to a l e g r e m e n t e — n a c o m p a n h i a d e K a n t e d e o u t r o s r a c i o n a l i s t a s
c r í ti c o s — q u e n ã o p o d e m o s a l c a n ç a r o c o n h e c i m e n t o c o m p l e to d o m u n d o r e a l ,
c o m s u a i n f i n i t a r i q u e z a e b e le z a . N e m a fís ic a n e m q u a l q u e r o u t r a c iê n c ia n o s
p o d e a j u d a r n is s o . P o r o u t r o la d o , e s t o u t a m b é m s e g u r o d e q u e a f ó r m u l a v o lu n -
t a r i s t a — “o m u n d o é v o n t a d e ” — t a m b é m n ã o n o s a j u d a . Q u a n t o a o s n ii li s t a s e
e x i s t e n c i a l i s t a s q u e se e n t e n d i a m ( p o s s iv e l m e n t e e n t e d i a n d o t a m b é m o s o u t r o s ) , só
p o ss o s e n t i r c o m i s e r a ç ã o p o r e le s : d e v e m s e r c e g o s e s u r d o s , p o is se r e f e r e m a o
m u n d o c o m o u m c e g o f a l a r i a s o b r e a s c o re s d e P e r u g i n o , o u u m s u r d o s o b r e a
m ú s ic a d e M o z a r t.

P o r q u e , e n t ã o , e s c o lh í c o m o e x e m p l o s t e o r ia s f ilo s ó f ic a s q u e r e p u t o fa ls a s ?
P o r q u e t e n h o a e s p e r a n ç a d e q u e a s s im f i q u e m a i s c la r o o p r o b l e m a c o n t i d o n a
a f i r m a ç ã o s e g u i n t e , q u e é m u i t o i m p o r t a n t e : e m b o r a c o n s i d e r e t o d a s a s c in c o
te o r ia s c i t a d a s c o m o fa ls a s , e s t o u t a m b é m c o n v e n c i d o d e q u e n ã o p o d e m ser r e ­
fu ta d a s .

P o d e r á c a u s a r s u r p re s a e s ta a f ir m a tiv a d e q u e , e m b o r a m e a p re s e n te c o m o
u m r a c i o n a l i s t a , c o n s i d e r o p o s s ív e l q u e u m a t e o r i a s e ja a o m e s m o t e m p o f a ls a e
i r r e f u t á v e l . C o m o p o d e u m r a c i o n a l i s t a a f i r m a r q u e u m a te o r i a é f a l s a e a o m e s m o
t e m p o ir r e f u t á v e l ? N ã o e s t a r á o b r i g a d o , c o m o r a c i o n a l i s t a , a r e f u t a r u m a te o r i a
a n te s d e d e c l a r a r q u e é fa ls a ? I n v e r s a m e n t e , n ã o p r e c i s a r á a d m i t i r q u e u m a te o r i a
irre fu tá v e l é v e rd a d e ira ?

C o m e ssa s p e r g u n t a s c h e g o , f i n a l m e n t e , a o n o s s o p r o b l e m a .

A ú l t i m a p e r g u n t a p o d e s e r r e s p o n d i d a m u i t o s i m p l e s m e n t e . A lg u n s p e n ­
sa d o re s a c r e d ita m , d e f a to , q u e a v e rd a d e d e u m a te o r ia p o d e ser in f e r id a d a su a
i r r e f u t a b i l i d a d e . E s te , c o n t u d o , é u m e n g a n o ó b v io , p o is p o d e h a v e r d u a s te o r ia s
in c o m p a t í v e i s e i g u a l m e n t e ir r e f u t á v e is — p o r e x e m p l o , o d e t e r m i n i s m o e o in -
d e t e r m i n i s m o . O r a , c o m o d u a s t e o r i a s c o n t r á r i a s e i n c o m p a tí v e is n ã o p o d e m a m ­
b a s se r v e rd a d e ira s , p e rc e b e m o s q u e sã o irre fu tá v e is e ta m b é m q u e , ir r e f u ta v e l­
m e n te , n ã o p o d e m se r v e rd a d e ira s .

In fe rir a v e ra c id a d e d e u m a te o ria d a su a ir re fu ta b ilid a d e é p o r ta n to in a d ­


m issív e l — q u a l q u e r q u e s e ja a f o r m a c o m o i n t e r p r e t e m o s a i r r e f u t a b i l i d a d e . N o r ­
m a l m e n t e , a p a l a v r a s e r ia u s a d a e m d o is s e n tid o s :

O p r i m e i r o é p u r a m e n t e ló g ic o : “i r r e f u t á v e l ” p o d e - s i g n i f i c a r o m e s m o q u e
i r r e f u t á v e l p o r m e io s p u r a m e n t e ló g i c o s ” , o q u e q u e r d iz e r c o n s is te n te . É ó b v io
q u e a v e r d a d e d e u m a te o r i a n ã o p o d e s e r i n f e r i d a d a s u a c o n s i s tê n c i a .
O s e g u n d o s e n t id o d e “i r r e f u t á v e l ” se r e f e r e à s r e f u t a ç õ e s p o r m e i o n ã o só
d e p r e m is s a s ló g ic a s ( o u a n a l í t i c a s ) , m a s t a m b é m e m p í r i c a s ( o u s i n té t ic a s ) ; e m
o u t r a s p a l a v r a s , a d m i t e a r e f u t a ç ã o e m p í r i c a . N e s te s e g u n d o s e n t i d o , “i r r e f u t á v e l ”
q u e r d iz e r o m e s m o q u e “n ã o r e f u t á v e l e m p i r i c a m e n t e ” o u , d e m o d o m a i s p r e c is o ,
“c o m p a t í v e l c o m q u a l q u e r a f i r m a t i v a e m p í r i c a p o s s ív e l” (“c o m p a t í v e l c o m q u a l ­
q u e r e x p e r i ê n c i a p o s s ív e l” ).
222 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

T a n t o a i r r e f u t a b i l i d a d e ló g i c a d e u m a a s s e r tiv a q u a n t o s u a i r r e f u t a b i l i d a d e
e m p í r i c a p o d e m s e r c o n c il ia d a s f a c i l m e n t e c o m s u a f a l s i d a d e . N o c a s o d a i r r e ­
f u t a b i l i d a d e ló g i c a , isso f i c a c l a r o p o r q u e t o d a s a s a f i r m a t i v a s e m p í r i c a s d e v e m s e i
t ã o lo g ic a m e n te ir r e f u t á v e i s q u a n t o a s u a n e g a t i v a . P o r e x e m p l o : a s d u a s p r o ­
p o s iç õ e s “ h o je é s e g u n d a - f e i r a ” e ” h o je n ã o é s e g u n d a - f e i r a ” s ã o lo g i c a m e n t e i r ­
r e f u tá v e i s ; d e o n d e se p o d e v e r q u e h á a f i r m a t i v a s f a l s a s q u e s ã o l o g i c a m e n t e i r ­
r e f u tá v e i s .

N o q u e d iz r e s p e i t o à i r r e f u t a b i l i d a d e e m p í r i c a a s i t u a ç ã o é u m p o u c o
d if e r e n te . O s e x e m p lo s m a is sim p le s d e a firm a tiv a s e m p ir ic a m e n te irre fu tá v e is são
a s c h a m a d a s p r o p o s iç õ e s e s t r i t a o u p u r a m e n t e e x is te n c i a is . E is u m e x e m p l o : “H á
u m a p é r o l a q u e é d e z v e z m a i o r d o q u e a s e g u n d a m a i o r p é r o l a e x i s t e n t e ” . Se r e s ­
t r i n g i r m o s a p a l a v r a “ H á ” a a l g u m a r e g i ã o d e f i n i d a d o e s p a ç o e d o t e m p o , te r e m o s
sem d ú v id a u m a a f ir m a tiv a r e f u tá v e l. P o r e x e m p lo , a p ro p o s iç ã o s e g u in te , q u e é
e m p i r i c a m e n t e r e f u t á v e l : “H á a g o r a n e s t a c a i x a p e lo m e n o s d u a s p é r o l a s , u m a d a s
q u a is é d e z v e z e s m a i o r d o q u e a o u t r a ” . P o r é m , e s s a j á n ã o s e r ia u m a a f i r m a t i v a
p u r a o u e s í r i t a m e n t e e x is te n c i a l, e s im u m a p r o p o s i ç ã o e x is te n c i a l re strita . A s a f i r ­
m a t i v a s p u r a m e n t e e x is te n c i a is se a p l i c a m a t o d o o u n iv e r s o : s ã o i r r e f u t á v e i s s i m ­
p l e s m e n t e p o r q u e n ã o e x is te u m p r o c e s s o q u e p e r m it is s e r e f u t á - l a s . M e s m o q u e f ô s ­
s e m o s c a p a z e s d e in v e s ti g a r t o d o o u n iv e r s o , u m a a f i r m a t i v a d e s s e ti p o n ã o p o d e r í a
se r r e f u ta d a p e la n ã o d e s c o b e r ta d a p é r o la e m q u e s tã o , q u e p o d e r ía e s ta r o c u lta
e m a l g u m l u g a r n ã o in v e s ti g a d o .

E is a q u i a lg u n s e x e m p lo s d e a f i r m a t i v a s e x is te n c ia is e m p i r i c a m e n t e i r r e ­
f u t á v e is , m a is in t e r e s s a n te s :

“H á u m a c u r a p a r a o c â n c e r c o m p l e t a m e n t e e f ic a z ; m a i s p r e c i s a m e n t e , h á
u m a s u b s t â n c i a q u e p o d e s e r t o m a d a e q u e c u r a o c â n c e r , s e m q u a l q u e r e f e ito
n o c i v o .” D e s n e c e s s á r io d iz e r q u e e s s a a f i r m a t i v a d e v e s e r i n t e r p r e t a d a d e m o d o a
s i g n i f i c a r q u e e ss a s u b s t â n c i a é c o n h e c id a , o u q u e s e r á d e s c o b e r t a d e n t r o d e u m
p e río d o d e te r m in a d o .

O u t r o e x e m p l o : “ E x is te u m a c u r a p a r a t o d a e q u a l q u e r d o e n ç a in f e c ­
c io s a ” . “H á u m a f ó r m u l a l a t i n a q u e , se p r o n u n c i a d a d a m a n e i r a c o r r e t a , c u r a
q u a lq u e r d o e n ç a .”

T e m o s a í p r o p o s iç õ e s e m p i r i c a m e n t e i r r e f u t á v e i s q u e p o u c o s c o n s i d e r a r i a m
v e r d a d e i r a s . S ã o i r r e f u t á v e i s p o r q u e s e r ia o b v i a m e n t e im p o s s ív e l e x p e r i m e n t a r
to d a s a s f ó r m u l a s l a t i n a s c o n c e b ív e is , c o m b i n a d a s c o m t o d a s a s f o r m a s p o ss ív e is d e
p r o n u n c i á - l a s . P o r t a n t o , r e s t a r á s e m p r e a p o s s i b i l i d a d e ló g i c a d e q u e h a j a d e f a t o
a l g u m a f ó r m u l a l a t i n a m á g i c a , c o m o p o d e r d e c u r a r to d a s a s d o e n ç a s .

M e s m o a s s im , t e r ía m o s j u s t i f i c a t i v a p a r a a c r e d i t a r n a f a l s id a d e d e s s a a f i r ­
m a t i v a e x is te n c i a l i r r e f u t á v e l . N ã o p o d e m o s , d e f a t o , p r o v a r q u e é f a l s a ; m a s t u d o
o q u e c o n h e c e m o s a r e s p e ito d a s d o e n ç a s n o s i n d i c a q u e n ã o p o d e s e r v e r d a d e i r a .
E m o u t r a s p a l a v r a s : e m b o r a n ã o n o s s e ja p o ss ív e l d e m o n s t r a r s u a f a l s i d a d e , a c o n ­
j e c t u r a d e q u e n ã o e x is te ta l f ó r m u l a m á g i c a é m u i t o m a is r a z o á v e l d o q u e a c o n ­
j e c t u r a i r r e f u t á v e l d e q u e e ssa f ó r m u l a e x is te .

S e ria d e s n e c e s s á r io l e m b r a r q u e d u r a n t e q u a s e 2 .0 0 0 a n o s m u i to s h o m e n s
b e m i n f o r m a d o s a c e i t a r a m a v e r d a d e d e u m a a f i r m a t i v a e x is te n c i a l d e ss e g ê n e r o —
p o r isso p e r s is t ia m n a b u s c a d a p e d r a filo s o f a l. O f a t o d e q u e n ã o a d e s c o b r i r a m
O STATUS DA C IÊ N C IA E DA M E T A FÍSIC A 223

n ão p ro v a n a d a — p r e c i s a m e n t e p o r q u e as p r o p o s iç õ e s e x is te n c ia is s ã o i r r e f u t á ­
v e is.

A s s im , a i r r e f u t a b i l i d a d e ló g ic a o u e m p í r i c a d e u m a t e o r i a n ã o é s e g u r a ­
m e n te u m a ra z ã o p a r a a d m iti- la c o m o v e r d a d e ir a ; d a í o m e u d ir e ito d e a c r e d ita r
q u e a s c in c o te o r ia s filo s ó f ic a s c i t a d a s s ã o t o d a s e la s ir r e f u t á v e i s e fa ls a s .

H á c e r c a d e v in t e e c in c o a n o s p r o p u s q u e se d is tin g u is s e a s t e o r ia s e m p í r i c a s
o u c i e n t í f i c a s d a s te o r ia s n ã o - e m p í r i c a s e n ã o - c i e n t í f i c a s , d e f i n i n d o a s p r i m e i r a s
c o m o r e f u t á v e i s e as s e g u n d a s c o m o i r r e f u t á v e i s . A s ra z õ e s d a m i n h a p r o p o s t a e r a m
a s s e g u i n te s : t o d o te s te a q u e s u b m e te m o s u m a t e o r i a é u m a t e n t a t i v a d e r e f u t á - l a .
“T e s t a b i l i d a d e ” , p o r c o n s e g u i n t e , é o m e s m o q u e r e f u t a b i l i d a d e ( fa ls ifia b ility ) .
C o m o c h a m a m o s d e “ e m p í r i c a s ” o u “ c i e n t í f i c a s ” só a s te o r ia s q u e p o d e m s e r t e s ­
t a d a s e m p i r i c a m e n t e , c o n c lu í m o s q u e é a p o s s i b i l i d a d e d e r e f u t a ç ã o e m p í r i c a q u e
d i s t i n g u e a s t e o r i a s c ie n t íf ic a s ( o u e m p í r i c a s ) .

A c e ito esse “c r i t é r i o d e r e f u t a b i l i d a d e ” , v e r e m o s i m e d i a t a m e n t e q u e as
te o r ia s filo s ó fic a s , o u m e t a f í s ic a s , s ã o ir r e fu tá v e is p o r d e fin iç ã o .

M i n h a a f i r m a t i v a d e q u e as c in c o te o r ia s filo s ó f ic a s r e f e r i d a s s ã o i r r e f u t á v e is
s o a r á a g o r a q u a s e t r i v i a l . A o m e s m o t e m p o , t e r á f i c a d o ó b v io q u e e m b o r a se ja u m
r a c i o n a l i s t a , n ã o e s to u o b r i g a d o a r e f u t a r e ss a s t e o r i a s p a r a p o d e r c o n s i d e r á - l a s
" f a /s a s ” . O q u e n o s leva ao p o n t o c r u c i a / d o p r o b / e m a :

Se to d a s as te o ria s filo s ó fic a s são ir r e fu tá v e is , c o m o p o d e m o s d is tin g u ir as


teo ria s fa ls a s d a s v e rd a d e ira s?

E u m p r o b l e m a s é r io , q u e t e m ra íz e s n a ir r e fu ta b ilid a d e d a s te o ria s f i l o ­
sóficas. P a r a > e n u n c iá - l o m a is c l a r a m e n t e , g o s t a r i a d e r e f o r m u l á - l o d a s e g u i n te f o r ­
m a:

P o d e m o s d i s t i n g u i r tr ê s tip o s d e t e o r i a :

E m p r i m e i r o l u g a r , as te o r ia s ló g ic a s e m a t e m á t i c a s .

E m s e g u n d o l u g a r , a s t e o r ia s e m p í r i c a s e c i e n t íf ic a s .

E m t e r c e i r o l u g a r , as te o r ia s filo s ó f ic a s o u m e t a f í s ic a s .

D e n t r o d e c a d a u m d e sse s g r u p o s , c o m o d i s t i n g u i r a s te o r ia s v e r d a d e i r a s d a s
fa ls a s ?

C o m r e l a ç ã o a o p r i m e i r o g r u p o , a r e s p o s ta é ó b v ia : p a r a s a b e r se u m a t e o r ia
m a t e m á t i c a é v e r d a d e i r a o u f a ls a , te m o s q u e t e s t á - l a , a p r i n c í p i o s u p e r f i c i a l m e n t e e
d e p o is c o m m a is r i g o r , t e n t a n d o s e m p r e r e f u t á - l a . Se n ã o o c o n s e g u i r m o s , t e n ­
t a r e m o s p r o v á - l a , o u r e f u t a r s u a n e g a ç ã o . Se isso t a m b é m n ã o f o r p o s s ív e l, p o d e m
s u r g i r d ú v id a s s o b r e a v e r a c i d a d e d a t e o r i a , e· p r e c i s a r e m o s m a i s u m a vez t e n t a r
r e f u t á - l a ; e a s s im p o r d i a n t e , a t é c h e g a r m o s a u m a c o n c lu s ã o — o u e n t ã o a f a s t a r ­
m o s o p r o b l e m a , p o r s e r d e m a s i a d a m e n t e d if íc il.

A s itu a ç ã o p o d e ría ta m b é m se r d e s c r ita d e o u tr a m a n e ir a : n o ssa ta r e f a c o n ­


siste e m t e s t a r , e e x a m i n a r c r i t i c a m e n t e , d u a s (o u m a i s ) t e o r ia s riv a is — n ó s a c u m ­
p r i m o s t e n t a n d o r e f u t á - l a s a té c h e g a r m o s a u m a d e c is ã o . N o c a m p o d a m a t e ­
224 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

m á t i c a ( m a s só n e s s e c a m p o ) e ss a s d e c is õ e s s ã o v ia d e r e g r a d e fin itiv a s : é r a r o e n ­
c o n t r a r p r o v a s in v á l i d a s q u e p a s s e m d e s p e r c e b i d a s .

S e c o n s i d e r a r m o s a s c iê n c ia s e m p í r i c a s , v e r e m o s q u e s e g u e m , d e m o d o g e
r a l , o m e s m o p r o c e d i m e n t o : a s t e o r ia s s ã o t e s t a d a s e e x a m i n a d a s c r i t i c a m e n t e , p r o ­
c u ra n d o - s e re f u tá - la s . A ú n ic a d if e re n ç a im p o r ta n te é q u e p o d e m o s u tiliz a r t a m ­
b é m a r g u m e n to s e m p íric o s , ju n ta m e n te c o m o u tr a s c o n s id e ra ç õ e s c rític a s . M as o
i n s t r u m e n t o p r i n c i p a l c o n t i n u a a s e r o p e n s a m e n t o c rític o . A s o b s e r v a ç õ e s só sã o
e m p r e g a d a s se se a j u s t a m à d is c u s s ã o c r í t i c a .

S e c o n s i d e r a m o s a s te o r ia s filo s ó f ic a s , n o s s o p r o b l e m a s e r á r e f o r m u l a d o a s ­
s im : É p o s s ív e l e x a m i n a r c r itic a m e n te t e o r i a s filo s ó f ic a s i r r e f u t á v e is ? E m c a s o a f i r ­
m a t i v o , q u a l o c o n t e ú d o d e u m a d is c u s s ã o c r í t i c a d e t e o r i a d e s s e g ê n e r o ( q u e
d e v e r i a s e r u m a te n ta tiv a d e r e fu ta r a teo ria ? ).

E m o u t r a s p a l a v r a s , s e r á p o s s ív e l a v a l i a r r a c i o n a l m e n t e — c r i t i c a m e n t e —
u m a t e o r i a ir r e f u t á v e l ? Q u e a r g u m e n t o s r a c i o n a i s p o d e m o s l e v a n t a r e m f a v o r d e
u m a t e o r i a ( o u c o n t r a e l a ) q u e s a b e m o s n ã o s e r d e m o n s t r á v e l n e m r e f u tá v e l ?

P a r a i l u s t r a r c o m e x e m p lo s e s s a s v á r i a s f o r m u l a ç õ e s d o n o s s o p r o b l e m a , v o u
r e f e r i r - m e o u t r a v ez a o d e t e r m i n i s m o . K a n t s a b i a p e r f e i t a m e n t e q u e n ã o s o m o s
c a p a z e s d e p r e v e r o c o m p o r t a m e n t o f u t u r o d e u m s e r h u m a n o c o m p r e c i s ã o ig u a l
à q u e l a c o m q u e p o d e m o s p r e v e r u m e c li p s e ; m a s e x p li c a v a a d i f e r e n ç a p e la p r e ­
s u n ç ã o d e q u e s a b e m o s m u i t o m e n o s s o b r e a s c o n d iç õ e s p r e s e n te s d a p e s s o a c u jo
c o m p o r t a m e n t o q u e r e m o s p r e v e r — s e u s d e s e jo s , t e m o r e s , s e n t im e n to s , s u a m o ­
ti v a ç ã o — d o q u e s o b r e a s i t u a ç ã o a t u a l d o s i s te m a s o l a r . E ssa p r e m is s a c o n t é m ,
i m p l i c i t a m e n t e , a s e g u i n te h ip ó t e s e :

“ H á u m a d e s c r iç ã o v e r d a d e i r a d a s i t u a ç ã o p r e s e n t e d e s s a p e s s o a q u e s e r ia
s u f ic ie n t e , e m c o n j u n ç ã o c o m as le is n a t u r a i s v e r d a d e i r a s , p a r a p r e v e r s e u c o m p o r ­
tamento f u t u r o . ”
O r a , t r a t a - s e d e u m a a f i r m a t i v a p u r a m e n t e e x is te n c i a l, p o r t a n t o i r r e f u t á v e l .
P o d e m o s p o is , a d e s p e i to d is s o , d i s c u t i r r a c i o n a l e c r i t i c a m e n t e o a r g u m e n t o d e
K a n t?

C o m o s e g u n d o e x e m p l o c o n s i d e r e m o s a te s e : “ O m u n d o é m e u s o n h o ” . E m ­
b o r a s e ja c l a r a m e n t e i r r e f u t á v e l , p o u c o s a c o n s i d e r a m v e r d a d e i r a . M a s , s e r á p o s ­
sív e l d i s c u t i - l a r a c i o n a l e c r i t i c a m e n t e ? S u a i r r e f u t a b i l i d a d e n ã o c o n s t i t u i r á u m o b s ­
tá c u l o ir r e m o v ív e l a q u a l q u e r d is c u s s ã o c r í t i c a ?

Q u a n t o a o d e t e r m i n i s m o k a n t i a n o , p o d e r - s e - i a p e n s a r q u e s u a d is c u s s ã o
c r í t i c a tiv e sse in íc io c o m a s e g u i n te o b s e r v a ç ã o , d i r i g i d a a o filó s o fo : “ M e u c a r o
K a n t : n ã o b a s t a , s i m p l e s m e n t e , a f i r m a r q u e .e x is te u m a d e s c r iç ã o v e r d a d e i r a s u ­
f i c i e n t e m e n t e d e t a l h a d a p a r a n o s p e r m i t i r p r e v e i s o f u t u r o . S e rá n e c e s s á r io q u e n o s
d ig a s e x a t a m e n t e e m q u e c o n s i s ti r í a e ss a d e s c r iç ã o , d e m o d o a p o d e r m o s t e s t a r t u a
t e o r i a e m p i r i c a m e n t e ” . D a r essa r e s p o s ta , c o n t u d o , e q u i v a l e r í a a p r e s u m i r q u e as
te o r ia s filo s ó f ic a s ( i r r e f u tá v e i s , p o r t a n t o ) n ã o p o d e m j a m a i s s e r d i s c u t i d a s ; q u e u m
p e n s a d o r r e s p o n s á v e l e s tá o b r i g a d o a s u b s t i t u í - l a s p o r te o r ia s te s tá v e is e m p i r i c a ­
m e n t e , p a r a t o r n a r p o ss ív e l s u a d is c u s s ã o r a c i o n a l .
O STATUS DA C IÊ N C IA E DA M E T A FÍSIC A 225

E s p e r o q u e n o s s o p r o b le m a e s t e ja a g o r a b a s t a n t e c l a r o ; p r o s s e g u ir e i, p o r ­
t a n t o , p r o p o n d o u m a so lu ç ã o p a r a e le .

M i n h a s o l u ç ã o é a s e g u i n t e : se a s te o r ia s filo s ó fic a s fo s s e m a p e n a s a f i r ­
m a t iv a s is o la d a s a r e s p e ito d o m u n d o , e n u n c i a d a s c o m o q u e m d iz “a c e i t e se
q u i s e r ” , s e m r e l a ç ã o c o m q u a l q u e r o u t r a c o is a , d e f a t o e la s n ã o p o d e r í a m s e r d i s c u ­
t i d a s . M a s o m e s m o se p o d e r í a d iz e r d e u m a t e o r i a e m p í r i c a . Se a l g u é m n o s
a p re se n ta s se as e q u a ç õ e s d e N e w to n , o u m e s m o se u s a r g u m e n to s , se m e x p lic a r -n o s
a n te s q u e p r o b le m a s e ss a t e o r i a p r e t e n d e r e s o lv e r , n ã o e s t a r ía m o s e m c o n d iç õ e s d e
d i s c u t i r r a c i o n a l m e n t e s u a v e r a c i d a d e ; s e r ia o m e s m o q u e d e b a t e r c r i t i c a m e n t e a
v e r d a d e d o L im o da R e v e la ç ã o . S e n ã o tiv e r m o s n e n h u m c o n h e c i m e n t o d o s r e s u l ­
ta d o s o b t i d o s p o r G a lil e u e K e p l e t , d o s p r o b l e m a s re s o lv id o s c o m e sse s r e s u l t a d o s , o
p r o b l e m a d e N e w t o n d e e x p l i c a r a s s o lu ç õ e s d e G a lil e u e K e p le r p o r m e i o d e u m a
te o r i a u n i f i c a d a , a c h a r e m o s q u e a t e o r i a d e N e w t o n e s t á t ã o a f a s t a d a d a p o s s i­
b i l i d a d e d e d is c u s s ã o q u a n t o q u a l q u e r t e o r i a m e t a f í s i c a . E m o u t r a s p a l a v r a s , t o d a
te o r i a ra c io n a l, se ja c i e n t í f i c a o u filo s ó f ic a , é r a c i o n a l n a m e d i d a e m q u e p r o c u r a
re so lve r d e te r m in a d o s p r o b le m a s . U m a t e o r i a só s e r á c o m p r e e n s í v e l e r a z o á v e l s e m
r e l a ç ã o a u m a c e r t a s i t u a ç ã o - p r o b l e m a ; só p o d e r á s e r d i s c u t i d a r a c i o n a l m e n t e d is -
c u t i n d o - s e e ssa r e l a ç ã o .

Se c o n s i d e r a r m o s u m a te o r i a c o m o s o l u ç ã o p r o p o s t a p a r a c e r t o c o n j u n t o d e
p r o b l e m a s , e la se p r e s t a r á i m e d i a t a m e n t e à d is c u s s ã o c r í t i c a , m e s m o q u e se ja n ã o -
e m p í r i c a e i r r e f u t á v e l . C o m e f e i t o , p o d e r e m o s f o r m u l a r p e r g u n t a s ta is c o m o : r e s o l­
ve o p r o b l e m a e m q u e s t ã o ? R e s o lv e - o m e l h o r d o q u e o u t r a s te o r ia s ? T e r á a p e n a s
m o d i f i c a d o o p r o b l e m a ? A s o l u ç ã o p r o p o s t a é s im p le s ? E f é r til ? C o n t r a d i t a r á
te o r ia s filo s ó f ic a s n e c e s s á r ia s p a r a r e s o lv e r o u t r o s p r o b l e m a s ?

P e r g u n t a s d e ss e ti p o d e m o n s t r a m q u e p o d e h a v e r p e r f e i t a m e n t e u m a d i s ­
c u s s ã o c r í t i c a m e s m o d e te o r ia s i r r e f u t á v e i s .

U m a vez m a i s v o u d a r u m e x e m p l o e s p e c íf ic o : o i d e a l is m o d e B e rk e le y o u d e
H u m e ( q u e r e p r e s e n t e i p e la f ó r m u l a s i m p l i f i c a d a : “O m u n d o é m e u s o n h o ” ). E sses
d o is filó s o fo s n ã o q u e r i a m e l a b o r a r u m a t e o r i a t ã o e x t r a v a g a n t e — o q u e se p o d e
d e p r e e n d e r d a in s is t ê n c ia d e B e rk e le y e m q u e s u a t e o r i a c o n c o r d a n o f u n d o c o m o
se n s o c o m u m . ( ) Se p r o c u r a r m o s e n t e n d e r a s itu a ç ã o -p r o b le m a q u e le v o u B e r ­
k e le y e H u m e a p r o p o r e m s u a s e x p li c a ç õ e s , v e r e m o s q u e a m b o s a c r e d i t a v a m q u e
t o d o o n o s s o c o n h e c i m e n t o p o d i a s e r r e d u z i d o a im p re ssõ e s se n so ria is e a a s s o ­
c ia ç õ e s e n t r e m e m ó r ia s e im a g e n s . E ssa p r e s u n ç ã o o s le v o u a a d o t a r o i d e a l is m o —
n o c a s o d e H u m e , m u i t o a c o n t r a g o s t o . H u m e só se t o r n o u u m i d e a l i s t a p o r q u e n ã o
c o n s e g u i u r e d u z i r a c o n c e p ç ã o r e a l i s t a a im p re ssõ e s se n so ria is.

P o r t a n t o , é p e r f e i t a m e n t e ra zo á v e l c r i t i c a r o i d e a l i s m o d e H u m e , a p o n t a n d o
q u e s u a te o r i a s e n s o r ia l is t a d o c o n h e c i m e n t o e d o a p r e n d i z a d o e r a d e q u a l q u e r f o r ­
m a i n a d e q u a d a , e q u e e x is te m t e o r ia s m e n o s i n a d e q u a d a s s e m c o n s e q ü ê n c i a s
i d e a l is ta s in d e s e ja d a s .

D a m e s m a fo r m a , p o d e m o s d is c u tir o d e te r m in is m o d e K a n t ra c io n a l e
c r i t i c a m e n t e . K a n t fo i, n o f u n d o , u m i n d e t e r m i n i s t a , e m b o r a a c e i ta s s e o d e t e r ­
m i n is m o c o m r e l a ç ã o a o m u n d o d o s f e n ô m e n o s — c o n s e q ü ê n c i a in e v itá v e l d a
te o r ia d e N e w t o n ; m a s n u n c a te v e d ú v i d a d e q u e o h o m e m , c o m o s e r m o r a l , n ã o
e r a d e t e r m i n a d o . C o n t u d o , o filó s o fo n u n c a c o n s e g u i u r e s o lv e r o c o n f l it o e n t r e s u a
226 C O N JE C T U R A S E R E F U T A Ç Õ E S

filo s o f ia p r á t i c a e s u a c o n c e p ç ã o t e ó r ic a d e m o d o q u e c o n s id e r a s s e p l e n a m e n t e
s a tis fa tó rio ; d e se s p e ro u d e c h e g a r a u m a s o lu ç ã o re a l.

A o d e te r m in a r a s itu a ç ã o - p r o b le m a e sp e c ífic a d o d e te r m in is m o k a n tia n o


t o r n a m o s p o ss ív e l s u a c r í t i c a . P o d e m o s i n d a g a r , p o r e x e m p l o , se e le d e c o r r i a r e a l ­
m e n te d a te o r ia d e N e w to n . V a m o s c o n je c tu r a r p o r u m m o m e n to q u e n ã o e ra a s ­
s im . N ã o te n h o d ú v i d a d e q u e u m a p r o v a c l a r a d a v e r d a d e d e s t a c o n j e c t u r a t e r i a
p e r s u a d i d o K a n t a r e n u n c i a r a s u a d o u t r i n a d e t e r m i n i s t a — e m b o r a e la fo sse i r ­
r e f u tá v e l e , p o r t a n t o , n ã o p u d e s s e o filó s o fo s e r o b r i g a d o lo g i c a m e n t e a r e n u n c i a r .

O m e s m o c o m r e l a ç ã o a o ir r a c i o n a l i s m o , q u e s u r g iu n o c a m p o d a filo s o f ia
r a c i o n a l c o m H u m e ; o s q u e l e r a m esse filó s o fo — u m s e r e n o a n a l i s t a — p e r c e b e m
q u e n ã o e r a isso q u e e le p r e t e n d i a . O i r r a c i o n a l i s m o fo i u m a c o n s e q ü ê n c i a n ã o
d e l i b e r a d a d a c o n v ic ç ã o d e H u m e d e q u e d e f a t o a p r e n d e m o s p o r m e io d a i n d u ç ã o
b a c o n i a n a , j u n t a m e n t e c o m a d e m o n s t r a ç ã o ló g ic a q u e d e s e n v o lv e u d e q u e é i m ­
p o ssível ju s tific a r r a c io n a lm e n te a in d u ç ã o . “T a n t o p i o r p a r a a j u s t i f i c a ç ã o r a ­
c i o n a l ', fo i a c o n c lu s ã o q u e t i r o u , n e c e s s a r i a m e n t e , d a s i tu a ç ã o ; a c e i to u e ss a c o n ­
c lu s ã o i r r a c i o n a l c o m a i n t e g r i d a d e c a r a c t e r í s t i c a d o v e r d a d e i r o r a c i o n a l i s t a . q u e
n ã o a f a s t a u m a c o n c lu s ã o d e s a g r a d á v e l , se e la p a r e c e in e v itá v e l.

C o n t u d o , n e sse c a s o e la n ã o e r a in e v itá v e l, e m b o r a p a r e c e s s e a s s im a se u s
o lh o s . N a v e r d a d e n ã o s o m o s “m á q u i n a s d e i n d u ç ã o ” b a c o n i a n a s , c o m o p e n s a v a . O
h á b i t o n ã o d e s e m p e n h a , n o p ro c e s s o d e a p r e n d i z a d o , a f u n ç ã o q u e H u m e lh e
a t t i b u i u . A ssim , o p r o b l e m a q u e e le e n f r e n t o u d e s a p a r e c e , e c o m o s e u p r o b l e m a
as c o n c lu s õ e s i r r a c i o n a l i s t a s a q u e se v iu o b r i g a d o .

A s i t u a ç ã o d o ir r a c i o n a l i s m o p ó s - k a n t i a n o é a t é c e r t o p o n t o s e m e l h a n t e .
Sc h o p e n h a u e r , e m p a r t i c u l a r , se o p u n h a g e n u i n a m e n t e a o i r r a c i o n a l i s m o , t e n d o
esc r i to m o v id o p o r u m d e s e jo : s e r c o m p r e e n d i d o — e s c r e v e u m a is l u c i d a m e n t e d o
q u e q u a l q u e r o u t r o filó s o fo a l e m ã o . O e s f o rç o q u e fez p a r a s e r c o m p r e e n d i d o t o r ­
n o u - o u m d o s p o u c o s g r a n d e s m e s tr e s d a l í n g u a a l e m ã .

O s p r o b l e m a s d e S c h o p e n h a u e r f o r a m os m e s m o s d a m e t a f í s ic a k a n t i a n a —
o p r o b l e m a d o d e t e r m i n i s m o n o m u n d o d o s f e n ô m e n o s , o p r o b l e m a d a c o is a -e m -s i-
m e s m a e d a n o s s a p a r t i c i p a ç ã o n u m m u n d o d e c o is a s e m si m e s m a s . E le s o l u c io n o u
esses p r o b l e m a s q u e tr a n s c e n d ia m to d a a e x p e r iê n c ia p o ssível — d e m a n e i r a
t i p i c a m e n t e r a c i o n a l . M a s s u a s o l u ç ã o t i n h a q u e ser. i r r a c i o n a l , p o r q u e S c h o p e ­
n h a u e r e r a u m k a n t i a n o e c o m o t a l a c r e d i t a v a n o s lim ite s d a r a z ã o q u e K a n t h a v ia
d e s c o b e r to : a c r e d i t a v a q u e os li m i te s d a r a z ã o h u m a n a c o in c i d ia m c o m os lim ite s
da e x p e r iê n c ia possível.

N o e n t a n t o , o u t r a s s o lu ç õ e s e r a m p o ss ív e is . O s p r o b l e m a s d e K a n t p o d e m e
p r e c i s a m s e r re v is to s ; o s e n t id o d e s s a re v is ã o é i n d i c a d o p e la s u a id é ia f u n d a m e n t a l
d e u m r a c i o n a li s m o c r í ti c o , o u a u t o c r í t i c o . A d e s c o b e r t a d e u m p r o b l e m a filo s ó fic o
p o d e s e r a lg o d e f i n it iv o : u m a vez o c o r r i d a , e s tá f e i t a p a r a s e m p r e . M a s a s o lu ç ã o d e
u m p r o b l e m a filo s ó fic o n u n c a é d e f i n i t i v a , p o is n ã o se p o d e f u n d a m e n t a r n u m a
p r o v a f i n a l, o u n u m a r e f u t a ç ã o d e c is iv a e ssa é a c o n s e q ü ê n c i a d a