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Dan Zahavi
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Fenomenologia da Percepção, que procura responder O que é a fenomenologia?
conclui essa primeira parte.
A segunda parte se dedica a uma apresentação aprofundada de problemas
particulares.
O anexo contem biografias breves de Husserl, Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty
e Lévinas.
Parte I
Temas Metodológicos Fundamentais
Capítulo 1 – O Fenômeno
4
é esse aparente que nos rodeia e é a única dimensão ontologicamente relevante para a
fenomenologia].
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A análise da intencionalidade, do estar dirigido da consciência, é muitas vezes
apresentada como um mérito decisivo da fenomenologia. Não apenas se ama, se teme,
se vê e se julga, se ama um amado, se teme algo temível, se vê um objeto e se julga um
estado de coisas... Essas formas da consciência são caracterizadas pelo fato de que se
articulam intencionalmente com objetos... Aceder a um ponto para além dos objetos
nunca pode, portanto, representar um problema, uma vez que o sujeito enquanto tal está
dirigido, se autotranscendendo, para algo diverso de si mesmo. Todavia, também para
além da análise detalhada de nossa consciência teórica do objeto, a fenomenologia
comprovou claramente que o mundo nos é dado antes de toda e qualquer análise, de
toda e qualquer identificação e objetivação – que há, em outras palavras, uma relação
não teórica com o mundo.
A fenomenologia é um reflexão crítica, uma (auto)problematização incansável, uma
meditação sem fim... Como espanto em face do mundo, não é um sistema rígido, mas
um movimento ininterrupto.
PARTE 2
ANÁLISES CONCRETAS
A. Prelúdio
Logo no início de Ser e Tempo, Heidegger escreve que o importante seria investigar
mais detidamente a relação entre ser, tempo, sentido de ser e compreensão de ser. A
questão do ser do ente é a mais fundamental da fenomenologia em geral e designa o ser
como seu propriamente dito. Desde Platão e Aristóteles, porém, a tradição é
caracterizada por seu esquecimento de ser...[Questão fundamental em Heidegger: o ser
do ente e seu esquecimento].
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Nós sempre nos movimentamos a cada vez em uma compreensão de ser. Não nos
comportamos apenas em relação a objetos pesados, extensos e amarelos, mas também
em relação a esses objetos em seu ser. O fato de haver familiaridade com o ser, uma
compreensão de ser pré-teórica, não significa, contudo, que nós também já disporíamos
de um saber conceitualmente articulado sobre o ser. Vivemos em uma compreensão de
ser, mas essa circunstância exige esclarecimento. A filosofia não pode pressupor nada
como óbvio. A filosofia tem de submeter aquilo que é fundamental a uma investigação
mais detalhada. [Há, de fato, uma compreensão pré-teórica do ser; porém, ela precisa
ser esmiuçada, investigada].
Heidegger dá um passo decisivo com a sua constatação de que o ser é sempre ser do
ente e não tem, com isso, como ser investigado de forma independente do ente. É
possível diferenciar entre diversos entes, por exemplos, objetos de uso (utensílios) como
faca e martelo, objetos naturais como pedra e planta, objetos ideais como o número 2 e,
por fim, o homem. Todos esse diversos tipos fundamentais do ente são, de acordo com
Heidegger, marcados a cada vez por seu modo de ser. A questão, então, é, porém, se um
desses modos de ser pode requisitar um primado, quando o que está em questão é
alcançar uma compreensão de ser. Há um determinado ente, junto ao qual se deveria
começar ou o ponto de partida é antes arbitrário? Heidegger declara então que a
elaboração da questão do ser exige a intelecção daquele ente, que está em condições de
colocar em geral essa pergunta, e, com isso, também dispõe daquela compreensão
prévia que deve servir como fio condutor da investigação. Esse ente somos nós mesmos,
e o ponto de partida da questão do ser tem, com isso, seu ponto de partida na
investigação de nosso próprio ser questionador. [O ser é sempre ser do ente. Há
diferentes tipos de ente, marcados pelo seu tipo de ser. O homem é o ente a partir do
qual se deveria começar a investigação acerca do ser, pois o homem é capaz de se
colocar a questão do ser].
O particular do modo de ser humano consiste precisamente no fato de que ele dispõe
de uma compreensão de ser pré-teórica. Esse modo particular de ser aí é denominado
por Heidegger de existência, enquanto ele reserva a designação ser-aí para o ente que
nós mesmos sempre a cada vez somos. [O modo particular do ser-aí é a existência].
A parte principal de Ser e tempo tem, com isso, a figura de uma análise do ser-aí,
isto é, de uma análise que delineia a descreve as estruturas fundamentais do ser-aí. A
análise do ser-aí procede de maneira ontológico-existencial. A análise do ser-aí – ou,
para usar outra palavra, da subjetividade – deve, portanto, ser analisada em referência às
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suas estruturas existenciais (e, portanto, não com vistas à sua biologia e fisiologia). [Ser
e tempo: analisa e descreve as estruturas fundamentais, as estruturas existenciais, do ser-
aí, procedendo de maneira ontológico-existencial. São os chamados existenciais, que se
distinguem do que a tradição chama de categorias ou propriedades].1
A explicitação dos existenciais corresponde à apresentação tradicional das
categorias, isto é, das determinações a priori que constituem as coisas. A ideia de
Heidegger é que essa tradição só tinha olhos para um tipo de ser, o ser objetivo, que ela
compreendeu categorialmente – ser objetivo que Heidegger chama de ser subsistente
em si, cujo ser nós encontramos quando assumimos um posicionamento teórico
puramente contemplativo. A tradição escolhe para formular a questão do ser o ser
subsistente em si como ponto de partida, e não o ser-aí. Isso teve como consequência a
tentativa de determinação do ser-aí com base nas categorias. O ser-aí foi,
consequentemente, interpretado como um objeto subsistente; é indiferente se achamos
que a essência desse objeto é puramente material ou puramente espiritual; em todo caso,
perde-se o modo de ser peculiar do ser-aí, razão pela qual Heidegger critica Descartes
por ter deixado de lado em seu cogito ergo sum o sum [Quando nossa tradição formulou
a questão do ser, ela partiu do ser subsistente em si – Vorhandenheit. Esse é um mau
começo, pois, de um lado, sugere uma postura teórico-contemplativa diante do mundo.
Por outro, torna invisível o fato de que os entes só aparecem em um mundo, para um
ser-aí, que é abertura. O ser-aí, na tradição metafísica, foi tratado como um ente
subsistente em si, ora considerado matéria, ora substância, como se devêssemos
procurar suas propriedades e categorias. De todo modo, não se o considerou como
sendo o ponto de partida de toda análise do ser. Por este motivo, Heidegger sugere
partirmos do ser-aí, do Dasein, único ente capaz de colocar a questão do ser, posto que a
compreensão é um dos seus existenciais fundamentais].
Mas por que então essa interpretação filosófica substancial do ser-aí é para
Heidegger tão problemática? Principalmente porque o ser-aí é compreendido nessa
interpretação justamente como substância, isto é, como algo autônomo e independente –
uma independência que se faz valer, sobretudo, em sua relação com o mundo. Com isso,
1
Sem o ser-aí não haveria nem ser, nem verdade, nem mundo... O conceito de ser-aí não pode ser
confundido com o de sujeito, se se entende por sujeito um ente autotransparente e sem mundo, que é
prévio ao mundo e independente dele... No entanto, o ser-aí precisa ser refletido de subjetividade ou de
si mesmo. Assim, uma análise do sujeito em seu ser é necessária. A própria tematização do ser-aí
corresponderia a uma análise da subjetividade do sujeito e uma compreensão ontológica da
subjetividade nos dirige para o ser-aí existente.
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portanto, nós terminamos junto ao sujeito autônomo, isolado e sem mundo da tradição
filosófica. [o sujeito pensado como substância é sem mundo, isolado, autônomo].
Toda a primeira seção do Ser e Tempo gira em torno do ser-no-mundo do ser-aí.
Heidegger amplia o conceito de intencionalidade de Husserl, na medida em que acentua
que a mundaneidade do ser-aí não poderia ser nenhuma propriedade, que o ser-aí
poderia ou não possuir. O ser-aí não existe por si mesmo... Ao contrário, o mundo, que
Heidegger compreende como um nexo significativo abrangente, precisa ser considerado
como um elemento constitutivo do ser-aí mesmo, como um momento estrutural do ser-
aí. [o mundo é, para Heidegger, um nexo significativo abrangente. Husserl fala em
horizonte. Esse mundo é constitutivo do ser-aí, é estrutural dele].
O fato de Heidegger determinar o ser-aí como o ente para o qual está em jogo o seu
próprio ser não significa que o ser-aí se encontra fechado. O ser-aí é um ente, cujo ser é
caracterizado pela abertura, e essa abertura transcende os limites do si mesmo. O ser-aí
é justamente caracterizado pelo fato de não se compreender apenas com vistas ao seu
ser, mas também com vistas ao ser de um outro ente e com vistas ao ser em geral. [O
ponto de partida para a investigação é o ser do ente Dasein. Isso não significa que o
Dasein só tenha acesso privado a si mesmo. Ele não é fechado. Ele é abertura,
transcende a si mesmo. Sua capacidade de compreensão não concerne apenas a si
próprio, mas outros entes e ao ser em geral].
O que, porém, é agora exatamente esse ser? Na Carta sobre o humanismo,
Heidegger dá a seguinte resposta: “Mas o ser – o que é o ser? Ele ‘é’ ele mesmo”. A
questão do ser permite ao ente se mostrar como aquilo que ele é. Perguntar sobre o ser
do ente significa, portanto, perguntar sobre as condições de possibilidade para a
manifestação do ente. Também não é, por acaso, que Heidegger denomina a ciência do
ser como ciência transcendental e que ele – assim como Husserl – diga que a
investigação do ser precisa ser levada a termo como uma investigação da compreensão
do ser do ser-aí, pois é justamente essa compreensão de ser que possibilita ao ente ser,
ou seja, aparecer como aquilo que ele é e se manifestar enquanto tal. [A pergunta pelo
ser é pelas condições de manifestação do ente. É uma pesquisa pelo nível
transcendental. Parte do ser-aí, pois a partir dele é possível investigar as condições de
possibilidade de manifestação do ente ].
Na esteira de sua interpretação e análise do ser-no-mundo, Heidegger se confronta
com toda uma série de suposições tradicionais de uma maneira completamente radical.
Pressupôs-se como óbvio que o ente, que nos envolve de início e no mais das vezes,
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seria formado por objetos substanciais, materiais, extensos, etc. Isso, no entanto, seria
um equívoco fundamental. Aquele ente, que vem ao nosso encontro no início e na
maioria das vezes, não é algo subsistente por si, mas um “utensílio à mão”. Nossa
relação primária com o ente intramundano é antes uma lida manuseadora e ocupada
com um à mão (com objetos de uso como instrumentos, utensílios de costura, veículos)
do que uma consideração e uma pesquisa teórica de um ente por si subsistente – e, para
Heidegger, nossa lida com o ente forma até mesmo o pressuposto para o fato de ele
poder se tornar em geral objeto do conhecimento. Enquanto nós utilizamos o martelo,
pode surgir a situação de que nosso uso seja perturbado, por exemplo, quando o martelo
quebra. Nesse momento, então, observamos pela primeira vez em geral o martelo, só
então o observamos como algo que possui propriedades, como extensão, peso, cor. Para
Heidegger, o ente intramundano não se mostra, portanto, na consideração teórica como
aquilo que ele primariamente é, mas, ao contrário, no seu uso prático. Quanto menos ele
é sondado, investigado, mais ele chega plenamente a si como utensílio (ou instrumento)
que ele é. Expresso de maneira geral, é possível dizer que o conhecimento
(compreendido como a pesquisa teórica de objetos), com isso, não institui a relação
entre o ser-aí e o ente intramundano, mas que o ser-aí conquista muito mais no
conhecimento uma nova relação com o ente em um mundo cada vez já descerrado.
[Concebe-se os entes que nos cercam na maioria das vezes – entes intramundanos –
como sendo subsistentes em si, ou Vorhandenheit. Porém, eles aparecem para nós com
um outro sentido, como objetos práticos à mão, do qual fazemos uso – como
Zuhandenheit. Geralmente, só pensamos neles teoricamente quando sua função prática
dá problema; quando algo quebra, p. ex.].
O conhecimento é um modo fundado do ser-no-mundo do ser-aí e só possível
porque o ser-aí já é sempre no mundo. Por isto, Heidegger critica a teoria do
conhecimento com base na sua predileção pelo seu posicionamento teórico e em sua
interpretação da relação entre ser-aí e mundo como uma relação entre dois objetos,
sujeito e objeto, sendo que o ser-no-mundo do ser-aí fica nesse caso completamente
desconsiderado. [Heidegger critica a separação sujeito-objeto da teoria do
conhecimento. Voltar-se para o conhecimento é estrutural do Dasein, pois esse sempre
está no mundo, voltado para o mundo].
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Voltemo-nos agora para os §§22-24 de Ser e Tempo, que contém a investigação
heideggeriana do espaço. No §22, Heidegger começa com a pergunta sobre a
espacialidade do ente intramundano. Ele se volta para a espacialidade do ente à mão. O
ponto de partida de suas análises fenomenológicas é formado sempre e a cada vez pelo
ente, que vem ao nosso encontro de início e na maioria das vezes. Heidegger aponta
para o fato de que a expressão “de início” não tem apenas uma conotação temporal, mas
também espacial: o que vem de encontro de início se encontra em nossa proximidade.
[Heidegger, na análise da espacialidade, volta-se para os entes à mão que geralmente
nos cercam, estão próximos].
O objeto de uso não se mostra primariamente na consideração teórica, mas
apenas no uso prático como aquilo que ele é. De modo correspondente, a espacialidade
do objeto se mostra preferencialmente na lida ocupada e não na medição contemplativa
do espaço. No caso da proximidade, não se trata de uma questão de distância física, mas
de uso. O à mão encontra-se na proximidade, quando ele é acessível “à mão” e
utilizável. Em geral, a espacialidade particular do objeto de uso é uma questão de sua
localização em um contexto ou em uma totalidade utensiliar, à qual ele pertence e na
qual ele preenche a sua função. Só justamente nesse contexto determinado é que o
objeto de uso tem seu significado e aplicabilidade, só aqui ele é relevante e útil para
algo. O objeto particular de uso nunca se encontra, com isso, sozinho, mas está em uma
rede de remissões a outros objetos de uso... As dimensões espaciais têm todas um
significado prático... O espaço primário é constituído, portanto, a partir de um nexo de
uso e não da coordenação tridimensional sem centro. Segundo Heidegger, esse nexo
significativo e referencial confere ao espaço sua unidade. [O objeto de uso mostra-se no
uso prático, e não teórico. O à mão é utilizável. Assim, a espacialidade tem a ver com o
contexto de uso de um objeto, com o seu significado e com sua aplicabilidade;
espacialidade, no sentido fenomenológico não é um conceito teórico, geométrico, digno
de contemplação].
Como é que se pode caracterizar de maneira mais detida nossa experiência do
espaço? Como dissemos, Heidegger acentua a diferença entre lida familiar com o
utensílio e investigação cuidadosa das coisas. Essa diferenciação também vale para o
espaço, que nos é dado, com isso, de início e na maioria das vezes com os objetos de
uso espaciais. O espaço é um traço característico dos objetos de uso enquanto tais – e
não um recipiente vazio, que pode ser, então, preenchido com coisas. Somente quando
essa lida ocupada é perturbada, nós notamos em geral o mero espaço; somente quando o
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farol da bicicleta não está mais onde esperamos que ele esteja é que nós notamos a
gaveta como recipiente. [O espaço não é um recipiente vazio preenchido com coisas. É
um traço característico dos objetos de uso. Só percebemos o espaço de um ponto de
vista contemplativo quando nossa lida ocupada é perturbada].
Heidegger conclui o §22 com a observação de que o “vir-ao-encontro do à mão
em seu espaço ligado ao mundo circundante (...) só é possível porque o ser-aí mesmo é
‘espacial’ com vistas ao seu ser-no-mundo”. Como se deve compreender um enunciado
como esse? Para Heidegger, a espacialidade do à mão é uma consequência de seu
assentamento em um nexo significativo mundano. A mundaneidade, contudo, só se
deixa compreender por meio de uma análise do ser-no-mundo, e, por isso, a análise da
espacialidade do à mão também inclui concomitantemente de maneira necessária a
análise da espacialidade do ser-aí.
Já no §12, Heidegger acentua a necessidade de uma distinção aguda entre o ser-
em existencial do ser-aí e o ser-em categorial das coisas. O ser-aí não é no mundo como
a água é em um copo ou uma camisa na cômoda, isto é, como um ente extenso, que é
delimitado pela relação com outro ente extenso. No entanto, nem toda espacialidade
pode ser recusada ao ser-aí. [Ser-em existencial X Ser-em categorial: o Dasein não está
no mundo como uma camisa em uma cômoda ou uma água no copo, que são entes
extensos. A espacialidade é de outra ordem, de ordem existencial].
Esse modo de pensar é retomado no §23... A espacialidade do Dasein não é
intramundana, mas antes uma espacialidade que pertence ao ser-no-mundo do ser-aí.
Mas como a espacialidade ganha expressão? Heidegger destaca em particular dois
aspectos: orientação e dis-tanciamento (Ent-fernung). No que concerne ao primeiro
conceito, Heidegger escreve que o ser-no-mundo do ser-aí sempre tem uma direção
(perspectiva, interesse). Nossa lida em uso nunca é completamente desorientada – ou
melhor: uma desorientação passageira só é possível porque o ser-aí enquanto tal é
orientado. Somente por isso, o ente intramundano mesmo também pode aparecer em
uma determinada perspectiva e orientação – como algo que é acessível a partir de uma
determinada direção, algo que se encontra acima ou abaixo, à esquerda ou à direita, aqui
ou lá. [A espacialidade do Dasein não é geométrica, teórica, mas prática. Ela envolve
orientação e distanciamento. A orientação significa que o Dasein se encontra desde
sempre voltado para a ação, orientado para algo, com uma direção. Isso faz com que os
entes apareçam para ele com uma determinada perspectiva. Isso é próximo da teoria da
enação e comporta uma proximidade com o pragmatismo].
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No que concerne ao dis-tanciamento, Heidegger joga aqui, tal como acontece
com muita frequência, com o significado verbal transitivo do conceito: quando ele
escreve que o ser-no-mundo do ser-aí mostra o caráter do dis-tanciamento, isso significa
que o ser-aí distancia o afastamento, isto é, deixa o ente vir ao encontro na
proximidade... No ser-aí reside uma tendência para a proximidade. Por outro lado,
contudo, precisamos acentuar o fato de que não se tem como medir geometricamente, se
algo se encontra na proximidade ou à distância. Isso é muito mais decidido de uma
maneira, que se encontra em uma ligação com nossa ação a cada vez particular e
precisamente por isso é relevante. Afastamento não é algo que se possa determinar com
conceitos absolutos, mas só pode ser compreendido em ligação com o contexto, com
aspectos e interesses práticos. O que se encontra em termos de afastamento em uma
proximidade imediata pode estar distante no que concerne o mundo circundante. A lida
em uso indica, portanto, se algo está na proximidade ou distante. Se aproximar de algo,
trazer algo para perto, não significa incondicionalmente diminuir o afastamento do
objeto de uso em questão em relação ao próprio corpo, mas muito mais poder
compartilhá-lo no campo de jogo do utilizável. [Perto ou longe não significa valor
absoluto, mas relativo ao contexto, em função da lida com os entes intramundanos].
Exemplo:
1. Em termos geométricos, o solo sobre o qual eu piso e os óculos que estão sobre
o meu nariz estão mais próximos do que o quadro para o qual eu olho. Porém,
fenomenologicamente, estou mais próximo do quadro. O mesmo vale para a
pessoa com a qual falo no telefone e o aparelho. [Há um desaparecimento
fenomenológico daquilo que não nos interessa. A proximidade fenomenológica
tem relação direta com os esquemas de ação].
2. Medida em termos de quilômetro, a distância entre Rio de Janeiro e Tóquio é a
mesma de 200 anos atrás. Porém, em uma perspectiva pragmática, essa distância
encolheu drasticamente – em todo caso, para aqueles que podem pagar um
bilhete de avião [As novas tecnologias encurtam o nosso senso de distância].
3. Se me tranco para o lado de fora de casa, o lado de dentro se encontra
geometricamente próximo, mas fenomenologicamente distante. O contrário se
observa se dou a volta para entrar pela porta da cozinha.
4. Uma cidade há 20km pode ser alcançada com algum esforço de bicicleta,
fazendo dela algo mais próximo do que o cume de uma montanha inescalável, há
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apenas 1km de distância. “Um caminho ‘objetivamente’ longo pode ser mais
curto do que um objetivamente muito ‘curto’, que talvez envolva um ‘curso
muito difícil’ e que se mostra para alguém como interminável”. [a utilidade e a
ação é que são os critérios fenomenológicos por excelência. Heidegger, portanto,
é um pragmatista].
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As considerações de Husserl sobre a aparição perspectivística do objeto perceptivo
(espacial e coisal) constituem um traço fundamental de sua análise da percepção. O
objeto nunca é dado em sua totalidade, mas aparece respectivamente de maneira
perspectivística. Isso é relevante para a compreensão do corpo vivo [Husserl e a análise
perspectivística do objeto: nunca é dado em sua totalidade, mas de um ponto de vista.
Isso tem impacto na compreensão do corpo vivo].
A perspectiva implica algo que aparece e alguém para quem aparece... Aquilo
que entra em cena a cada vez em uma distância determinada e em um ângulo
determinado para aquele que considera se deveria delinear distintamente a ideia
principal. Toda aparição perspectivística pressupõe o próprio sujeito que experimenta e
se encontra em ligação com o espaço. O sujeito assume uma posição espacial
unicamente com base em sua corporeidade. Husserl declara que objetos espaciais só
podem aparecer para um sujeito incarnado e ser constituído por ele. O sujeito é
ancorado corporalmente e, de modo correspondente, o modo de aparição do mundo é
determinado por nossa corporeidade. [Perspectiva: supõe sujeito e mundo. Esse sujeito é
incarnado, ancorado corporalmente].
Essas reflexões sobre o corpo como condição de possibilidade da
intencionalidade perceptiva podem ser radicalizadas, logo que se concebe o quão
estreitamente percepção e ação estão ligadas. Nossa percepção também é uma questão
de investigação ativa, não apenas uma recepção puramente passiva. O corpo vivo não
funciona, com isso, apenas como o centro estável de orientação, seu movimento
também desempenha um papel decisivo para a constituição da efetividade perceptiva.
Gibson apontou para o fato de que nós vemos com olhos móveis que, por sua vez, estão
ligados a um corpo, que pode se movimentar circundando o espaço... [A percepção está
diretamente ligada à corporeidade e à ação].
Husserl chama atenção para o significado que nosso movimento (dos olhos, o
toque da mão, o curso do corpo, etc.) desempenha para a experiência do dos espaço e
dos objetos espaciais. Essas experiências pressupõem um tipo de autoconsciência
corporal. Nossa experiência de objetos perceptivos é acompanhada por uma vivência
co-atuante da posição e do movimento do corpo vivo, da assim chamada vivência
kinestética. Se eu toco a superfície de uma maçã, então a maçã se dá junto com o
movimento dos meus dedos. O voo de um pássaro é acompanhado com a vivência do
movimento dos meus olhos. A intencionalidade perceptiva é, portanto, para Husserl,
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obra do sujeito corporal. [Questão da cinestesia: a percepção é acompanhada das
vivências dos próprios movimentos, da própria ação].
Só se pode perceber e usar objetos na medida em que se é um corpo, uma
subjetividade corporal... Minha percepção do objeto contém informações sobre mim
mesmo; ajo com base nela... Também nos deparamos com esse argumento em Merleau-
Ponty e em Sartre, embora não exclusivamente ligando o corpo vivo à teoria da
percepção. Quando experimento o mundo, o corpo vivo é dado concomitantemente
como o ponto central do mundo para o qual, apesar de inapreendido (isto é, apenas pré-
reflexivamente consciente) todos os objetos estão voltados... O corpo vivo não é
nenhuma lamina entre mim e o mundo, mas nosso ser-no-mundo primário – graças a ele
estamos desde sempre e a cada vez junto às coisas. [O corpo vivo é o centro de
gravidade da percepção, por mais que permaneça no nível pré-reflexivo. Isso também
está em Merleau-Ponty e Sartre].
Tanto Sartre como Merleau-Ponty apontaram para o fato de que o corpo vivo
não representa um objeto entre outros, um ente intramundano qualquer. Seu modo de
aparição o distingue de objetos habituais. Enquanto posso me aproximar ou afasta de
objetos espaciais, o corpo vivo está sempre presente como condição de possibilidade de
poder ter em geral perspectivas com vistas ao mundo. Originariamente, ele forma minha
perspectiva do mundo e também não se encontra por isso entre os demais objetos, com
vistas aos quais tenho uma perspectiva determinada. O corpo vivo está presente;
todavia, não como objeto perceptivo permanente, mas como eu mesmo... Nosso corpo
está presente de uma maneira tão fundamental que só o notamos expressamente quando
nossa interação familiar com o mundo é perturbada em meio à reflexão arbitrária
(considerações filosóficas ou quando olhamos no espelho) ou em meio à reflexão que
nos é imposta pela doença, o esgotamento, a dor. [O corpo vivo é objeto, mas também
condição de toda perspectiva para os objetos. A mão que se toca. Há nele um
desaparecimento fenomenológico, salvo quando me ponho a refletir filosoficamente ou
sou acometido por doença].
De maneira originária, isto é, pré-reflexiva, o corpo vivo não é dado
perspectivamente...
É preciso diferenciar o corpo vivo subjetivo e pré-reflexivo que funciona e o
corpo físico tematizado e objetivo. Minha consciência do corpo vivo não é consciência
de objeto, não é consciência do corpo vivo como objeto espacial. [Corpo vivo X Corpo
físico].
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